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NOTA INTRODUTÓRIA
from Treino em Futebol
by Grupo Lidel
O treino em futebol, até alguns anos atrás, era relativamente reservado, com os treinadores a fechar-se muito sobre si e sobre os seus processos, sobre as ideias que davam corpo à forma de jogar da equipa e os meios utilizados para o atingir. Lembramo-nos de um professor de faculdade, de uma modalidade individual, que apelidava o treino em metodologia de “bruxaria”, pois, além de esta se apoiar em muitas crenças e superstições, ninguém sabia muito bem o que se fazia durante a semana e a metodologia não seria algo muito claro. Claro que o rigor e o cuidado na preparação estavam presentes, mas o treino em futebol era sobretudo um meio muito blindado ao exterior.
Esta perspetiva mudou, com os treinadores a dedicar cada vez mais atenção à preparação das suas equipas, usando diferentes metodologias, mas tendo em comum a repetição de processos bem definidos. Os elementos nas equipas técnicas com diferentes perspetivas e backgrounds debateram constantemente, no sentido de garantir que as equipas estão o mais bem preparadas possível. Por outro lado, há cada vez mais abertura à investigação e à interação entre treinadores, seja em formações, seja em momentos em que estes “abrem a porta” a outras pessoas (treinadores, estudantes, escritores, investigadores, psicólogos, etc.), sem pudor em mostrar os pormenores da sua metodologia de treino. Acreditamos que essa partilha é importante, porque, por um lado, possibilita que outros vejam como equipas profissionais trabalham, sendo um exemplo importante para quem um dia queira trabalhar num patamar idêntico; por outro, mostra a convicção generalizada do treinador de que o seu trabalho é bem executado.
Este livro é escrito por treinadores e destinado a treinadores, não com a pretensão de ensinar o que quer que seja, mas com o intuito de partilhar! E esta partilha é encarada como um exercício de humildade, que nos faz querer ser mais competentes, recebendo críticas que nos levem a questionar cada passo que damos, na certeza de que, para poder andar, teremos momentos em que vamos cambalear, outros em que vamos tropeçar e, seguramente, alturas em que iremos cair. Mas a recetividade a aprender, a ouvir fará sempre parte da nossa forma de encarar o treino, ajudar-nos-á a erguer nos momentos difíceis, dando-nos a capacidade de encontrar soluções que se possam ajustar melhor às realidades com que vamos deparando.
O processo de treino é fascinante, complexo, no sentido em que é trabalhoso e temos de nos decidir por um caminho, face às diversas opções possíveis. Além do mais, implica repetir até à exaustão o processo de pensar, preparar, analisar, planear, aplicar, corrigir, alterar, competir, avaliar… na procura de uma perfeição que sabemos não existir. Tudo isto sem perder o foco de que o Jogo, a sua realidade, a lógica interna e comportamental devem estar sempre presentes.
Julgamos que esta procura incessante de ser melhor é inerente à condição de treinador de futebol, sabendo que nos movemos num meio altamente competitivo, em que não queremos ficar para trás.
Na nossa ótica, independentemente da forma como possa ser avaliado o sucesso dos treinadores, trabalhamos todos os dias no sentido de estar mais bem preparados, partindo essa exigência de nós próprios. Estamos convictos de que só desse modo é possível estar com ambição no futebol. Temos de ser nós a criar o nosso lugar, através de uma crítica constante em relação a tudo o que fazemos, com uma grande sagacidade na busca de informação, mas, ao mesmo tempo, não perdendo o critério na sua filtragem. As oportunidades não nos aparecem de “mão beijada”, temos de correr atrás delas, e, quando aparecem, o único caminho a tomar é mostrar que temos competência e podemos ajudar a fazer a diferença dentro de uma estrutura.
Com essa necessidade em mente, precisamos de primar pela diferença. Isso não quer dizer que nos consideremos melhores do que os outros. Significa, isso sim, que estamos dispostos a trabalhar mais do que todos, com ética, sem atropelos e com o máximo respeito por todos e pelo Jogo que tanto admiramos e de que fazemos parte.
Este livro é um produto desse trabalho de reflexão, influenciado pela autocrítica e pela crítica construtiva, que nos faz pensar sobre se estamos a tomar as melhores decisões que podemos. Temos as nossas convicções, as nossas ideias consolidadas1, mas mantemos o princípio de que é necessário não nos fecharmos sobre elas e estarmos recetivos ao mundo que nos rodeia. Atualmente, o mais difícil é termos ideias próprias, coerentes e consistentes. É um chavão dizer que “jogamos com as ideias”, mas acreditamos que podemos desenvolver as nossas próprias ideias, fruto de uma análise constante e das influências que temos. Claro que também podemos adaptá-las em função da nossa realidade, ao invés de copiar, dando-lhes o nosso cunho pessoal e sujeitando-as ao escrutínio da reflexão. Devemos ter a humildade de as estruturar, fundamentar e questionar, estudando e analisando os contributos que vão surgindo de treinadores e entendedores, e ouvindo (observando) aqueles cuja opinião mais importa: os nossos jogadores.
1 Atenção, “consolidadas” não quer dizer que estejam cristalizadas. Usamos a palavra “consolidação” no sentido de as ideias serem firmes, o que é diferente de se manterem sempre no mesmo estado (cristalização).
Depois, vem a partilha, que na nossa perspetiva é excelente. Permite, por um lado, verificar se conseguimos comunicar a nossa mensagem de forma inteligível, e, por outro, confrontar as nossas ideias com a crítica, voltando a refletir sobre elas e a mergulhar neste processo sem fim, neste círculo vicioso que nos leva a questionar continuamente todas as opções.
Acreditamos que a metodologia pode ser vista como o conjunto de ferramentas que se encontram ao alcance do treinador para potenciar o rendimento individual e coletivo nos diferentes fatores de rendimento e resolver os problemas com os quais se depara a cada passo do processo de treino. Este livro encontra-se estruturado da seguinte forma: começamos por abordar a organização da semana de treino, enquanto unidade estrutural de planeamento (microstruturação2). Esta semana pode ser ajustada em função do momento da época, da carga competitiva e do tempo compreendido entre dois jogos. De seguida, entramos na sessão de treino, abordando alguns aspetos extremamente práticos, desde o planeamento à preparação e implementação. A preparação da sessão de treino deve obedecer a um racional, e, nessa medida, abordamos o modelo de jogo, avançando um conjunto de comportamentos (ou princípios de jogo), a título ilustrativo, para posteriormente entrarmos na parte fundamental deste livro: o exercício de treino. Aqui, tecemos algumas considerações sobre a sua construção, apresentamos uma forma de classificação dos vários exercícios que podemos utilizar e, por último, avançamos alguns exercícios para concretizar as nossas ideias através de vários exemplos.
Esperamos que seja útil para cada um de vós, com a certeza de que o conhecimento tanto nasce na convergência de ideias, como, muitas vezes de forma até mais profícua, surge da divergência de perspetivas e ideias!