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INTOXICAÇÕES NO PRÉ-HOSPITALAR Joana Russo1; Maria Bilro1 1 Enfermeira

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Estatuto Editorial

Estatuto Editorial

especialista do SU do HPA-Alvor

O paracetamol foi comercializado pela primeira vez em 1950, após ter sido considerado seguro em doses terapêuticas adequadas e livre de efeitos gastrointestinais1. Tornou-se num dos farmácos mais vendidos no mundo, sendo comercializado como Ben-u-ron, Panadol, Tylenol, Dafalgan, entre outros e sob a forma de supositório, comprimido, comprimido efervescente, comprimido orodispersível, solução para perfusão, solução oral e xarope2

O paracetamol, também designado por acetaminofeno (figura 1), apresenta propriedades antipiréticas e analgésicas sendo utilizado em diversas faixas etárias3. Trata-se de um medicamento de venda livre, em que na maioria das vezes, as indicações utilizadas para a sua administração, são apenas as descritas na bula não necessitando de prescrição médica 5

A ingestão de paracetamol numa dose única de 10g ou de 150-200mg/ Kg, acarreta um risco de hepatotoxicidade, não sendo esta sempre necessária para causar lesão hepática caso existam precedentes

Figura 1 - Estrutura química do Acetaminofeno de alcoolismo crónico ou anorexia. Assim, torna-se necessário entender como todo este mecanismo se desencadeia. O paracetamol é um medicamento metabolizado pelo fígado de onde resultam os metabólitos não tóxicos: sulfatos e glucuronidos; mas também o N-acetil-p-benzoquinoneina (NAPQI), altamente tóxico e reativo, sendo este o responsável por muitas das lesões hepatocelulares. Quando este metabólito é produzido em pequenas quantidades, acabam por ser neutralizados pela glutationa presente no fígado, no entanto, aquando da existência de um quadro de intoxicação, o NAPQI esgota os níveis de glutationa, ligando-se assim às proteínas celulares do fígado, podendo levar à perda de função ou mesmo morte celular, o que entendemos por hepatotoxicidade ou falência hepática4

A absorção do acetaminofeno é rápida e quase completamente realizada pelo trato gastrointestinal após administração oral, sendo que possui 88% de biodisponibilidade e atinge o pico da sua concentração plasmática 90 minutos após a ingestão6

SINTOMATOLOGIA E SINAIS CLÍNICOS

Após a ocorrência de sobredosagem por paracetamol, os sintomas surgem de acordo com o tempo decorrido e a dose ingerida. Doses compreendidas entre 2-4g de paracetamol podem causar náuseas; doses entre 4-7g podem desenvolver náuseas, vómitos e diarreia, devido à hepatotoxicidade já existente; e doses superiores a 10g causam um quadro clínico clássico de intoxicação5

Podemos constatar que as manifestações clínicas de intoxicação por acetaminofeno podem ser descritas em quatro fases (Tabela 1)4,7

Fase I (0 -24 horas)

Fase II (24 - 72 horas)

Assintomática ou sintomas não específicos, como náuseas, vómitos, dor abdominal, anorexia, palidez e hipersudorese.

Assintomática ou dor no quadrante superior direito, hepatomegalia e sensibilidade hepática.

Fase III (72 - 96 horas) Coma, hipoglicemia, hipotensão, sonolência, edema cerebral, confusão mental, falência hepática e morte.

Fase IV (4 dias a 2 semanas) Recuperação de danos.

Abordagem

Tendo em consideração a abordagem pré-hospitalar, numa primeira fase importa caracterizar a intoxicação, tendo em conta uma correta identificação do tóxico e do intoxicado, isto é (Tabela2)8: exposição e tóxicos (E)8 de suspeita de intoxicação (adaptado de Valente et al., 2012)8

• QUEM – idade, sexo e peso?

• O QUÊ – nome do tóxico; para que serve?

• QUANTO – quantidade de produto?

• QUANDO - tempo decorrido desde a exposição?

• ONDE – local da exposição ao produto?

• COMO – ingeriu? com bebidas alcoólicas?

A abordagem à vitima de intoxicação quando precocemente implementada, prevê a estabilização inicial da mesma, para tal aconselha-se o uso da abordagem ABCDE, iniciando com a permeabilização da via aérea (A), manutenção de oxigenação adequada (B), avaliação do pulso e pressão arterial (C), avaliação do estado de consciência (D) e apreciação da

Na intoxicação por paracetamol o principal objetivo é diminuir a absorção do fármaco na corrente sanguínea. Assim, a lavagem gástrica e a utilização de carvão ativado apresentam-se como boas opções terapêuticas a serem implementadas o mais precocemente possível, estando descrito o benefício das mesmas quando realizadas até 4 horas após a ingestão do fármaco9

A dose única de carvão ativado a utilizar é de 1gr/kg tanto em adultos como em crianças até um máximo de 50gr. O carvão ativado deve ser diluído em água10,11,12

Para além do uso de carvão ativado, pode ainda ser administrado o antídoto do paracetamol, a acetilcisteína, capaz de neutralizar o NAPQI, evitando danos hepáticos. A acetilcisteína atua na hepatotoxicidade restaurando as reservas de glutationa hepática, através do fornecimento de cisteína, sendo deste modo o tratamento primordial na intoxicação por paracetamol, devendo ser administrada nas primeiras oito horas após a ingestão. Deste modo foi estabelecido um protocolo, chamado Protocolo de Prescott, em que a dose de acetilcisteína a ser administrada é ajustada ao peso corporal do doente (Tabela 3)13 O solvente mais utilizado na preparação deste fármaco é a dextrose a 5%, mas o mesmo também é compatível com água para preparações injectáveis e com NaCl 0.45%13

Na intoxicação por paracetamol, por este se tratar de um fármaco com efeito hipotensor, pode existir a necessidade de recuperação do estado circulatório, sendo por isso necessária a administração de fluidoterapia, devendo dar-se preferência a soros isotónicos e cristaloides e em algumas situações, quando não há resposta positiva à fluidoterapia pode ser necessária a adminsitração de fármacos vasopressores, sendo a opção mais utilizada a noradrenalina, devendo ter-se em conta os riscos desta perfusão num vaso periférico13,14

TAKE-HOME MESSAGES

• O consumo elevado de paracetamol é um problema de saúde pública, devido ao facto de ser um fármaco de venda livre e de fácil acesso;

• Apresenta elevada hepatoxicidade podendo causar necrose e falência hepática ;

• A atuação pré-hospitalar deve respeitar a abordagem ABCDE;

• O tratamento pré-hospitalar passa por lavagem gástrica e administração de carvão ativado;

• A acetilcesteína, embora não faça parte da carga de fármacos existente na VMER, demostrou benefícios na prevenção de hepatotoxicidade associada à intoxicação por Paracetamol quando administrada precocemente

Bibliografia

1. Toussaint, K., Yang X., Zielinski, M., Reigle, K., Sacavage, S., Nagar, S. & Raffaet, R. (2010). What do we (not) know about how paracetamol (acetaminophen) works? Journal of Clinical and Pharmacy Therapeutics. 35(6), 617-638. https:// doi.org/10.1111/j.1365-2710.2009.01143.x

2. INFARMED. Resumo das características do medicamento – Paracetamol. 2023 (Online) Disponível em: https://extranet.infarmed.pt/ INFOMED-fo/pesquisa-avancada.xhtml [Acedido a 22 de Fevereiro de 2023]

3. Jóźwiak-Bebenista, M., Nowak J. (2014). Paracetamol: mechanism of action, applications, and safety concern. Acta Poloniae Pharmaceutica. 71(1),11-23. https://www.ptfarm. pl/pub/File/Acta_Poloniae/2014/1/011.pdf

4. Chiew, A., Gluud. C., Jesper, B., Buckley, N. (2018). Interventions for paracetamol (acetaminophen) overdose. Cochrane Database Systematic Review. 2(2), 1-71. https://doi.org/10.1002/14651858. CD003328.pub3

5. Bachur, T., Freitas, J., Fonteles, M., Lima, M. & Carvalho, T. (2017). Medicamentos isentos de prescrição: perfil de consumo e os riscos tóxicos do paracetamol. Revinter. 10(3). 134-154 https:// doi.org/10.22280/revintervol10ed3.337

6. National Library of Medicine National Center for Biotechnology Information. Acetaminophen (2023)Disponível em: https://pubchem.ncbi.nlm. nih.gov/compound/1983 [Acedido a 22/02/2023]

7. Saccomano, S. (2019). Acute acetaminophen toxicity in adults. Nurse Practitioner. 44(11), 42-47. https://doi.org/10.1097/01. NPR.0000586020.15798.c6

8. Valente, M, Catarino, R, Ribeiro, H, Martins, A. (2012). Emergências Médicas - Manual de TAS. Versão 2.0. (INEM). Disponível em: https://www. inem.pt/wp-content/uploads/2017/06/ Emerg%C3%AAncias-M%C3%A9dicas.pdf10.

9. Bezerra, A., Gomes, C., Macêdo, L., Diniz, M., Caldas. R., Silva, T., Oliveira, T., Mariz, S. (2020). Utilização da lavagem gástrica e do carvão ativado como medidas de intervenção terapêutica na intoxicação exógena. Electronic Journal Collection Health. 12(12), 1-10. https://doi. org/10.25248/reas.e4990.2020

10. Comissão de Farmácia e Terapêutica da Secretaria Municipal da Saúde de Ribeirão Preto (2008). Carvão atividado pó para intoxicação. Boletim Farmacoterapêutico Número 14. https:// www.ribeiraopreto.sp.gov.br/files/ssaude/pdf/ inftec-14carvao-ativado.pdf

11. Chiew, A., Reith, D., Pomerleau, A., Wong, A., Isoardi, K., Soderstrom, J. & Bucley, N. (2020). Uptade guidelines for the management of paracetamol poisoning in Australia and New Zealand. The Medical Journal of Australia. 22(4): 175-183. https://doi.org/10.5694/mja2.50428

12. Marks, D., Dargan, P., Archer, J., Davies, C., Dines, A., Wood, D. & Greene, S. /2016). Outcomes from massive paracetamol overdose: a retrospective observational study. British Journal of Clinical Pharmacology. 83(6), 1263-1272. https://doi. org/10.1111/bcp.13214

13. Bateman, D. (2015). - Changing the Management of Paracetamol Poisoning. Clinical Therapeutics. 37(9), 2135–2141. https://doi.org/10.1016/j. clinthera.2015.07.012

14. Fernandes, R. (2020). ABORDAGEM PRÉHOSPITALAR DAS INTOXICAÇÕES NO ADULTO. LifeSaving 7(18), 11-23. https://sapientia.ualg.pt/ bitstream/10400.1/18058/1/R%20Life%20

18_1-11-23.pdf

Minuto Vmer Paliar Em Emerg Ncia

São comuns as ocorrências em que a Viatura Médica de Emergência e Ressuscitação (VMER) e outros meios de emergência pré-hospitalar são acionados para prestar assistência a vítimas em fase terminal e, como tal, o alívio do sofrimento faz parte das competências das equipas. Uma vez tendo acesso á história clínica da vítima e após avaliação primária e secundária da mesma, é importante reconhecer a prática da sedação paliativa como uma opção terapêutica viável, se assim se justificar.

A administração de terapêutica sedativa adequada para alívio de sofrimento pode ser tão importante quanto a administração de terapêutica curativa.

A sedação paliativa é uma medida terapêutica de último recurso para tratamento de sintomas refratários, que consiste no uso monitorizado de medicação sedativa com o intuito de induzir um estado de diminuição de consciência. O objetivo é aliviar sofrimento, de outro modo intratável, e de forma eticamente aceitável pelo doente, família e equipa de saúde. Sintomas refratários são aqueles que não se conseguem controlar adequadamente, com os tratamentos disponíveis, administrados, num período de tempo razoável.

Os sintomas refratários mais comuns são a dor, a dispneia, as convulsões, o delirium e a agitação psico-motora.

A sedação paliativa pode ser classificada conforme o grau, em leve ou consciente, quando a consciência é mantida de forma a permitir a comunicação com o doente, este tipo de sedação deve ser instituído inicialmente, e profunda, quando o doente permanece semiconsciente ou inconsciente. Este tipo de sedação deve seguir-se à sedação leve quando esta foi ineficaz. Pode ser continua ou intermitente.

A maioria das guidelines recomendam que as doses de fármacos administrados devem ser proporcionais, e como tal, o nível de sedação deve ser o mais leve possível desde que permita atingir o alívio de sintomas. A sedação profunda deve ser considerada e administrada em situações em que a esperança de vida de é de horas/dias.

É o grau do controlo sintomático e não a diminuição do nível de consciência que determina a dose e as combinações de sedativos. O termo “sedação terminal” pode ser utilizado como sinónimo de “sedação paliativa” apesar de não ter como propósito/objetivo terminar a vida e, a “sedação paliativa” deve ser distinguida da “eutanásia”. Não existe evidência de que a sedação paliativa administrada apropriadamente encurte a vida.

Existem estruturas que reconhecem a sedação paliativa como uma prática importante e eticamente aceitável como último recurso, nos doentes terminais em sofrimento com sintomas refratários.

A sedação paliativa pode ser efetuada em vários cenários, por exemplo: em casa da vítima, no hospital, em unidades de saúde não hospitalares ou até em estruturas residenciais para pessoas idosas (ERPI), por equipas especializadas.

A sedação emergente aplica-se em situações clínicas irreversíveis em doentes terminais que necessitam de alívio emergente.

Situações clínicas a considerar:

Hemorragia maciça (hemoptise); asfixia e sufocação (tumores da cabeça e pescoço, ELA), Dor ou dispneia incontroláveis, delirium com agitação psicomotora intensa. Medidas sem recurso a fármacos:

• Na hemorragia maciça, posicionar em posição de segurança e aplicar pressão sobre o local de hemorragia, aspiração do sangue, mascarar as perdas de sangue com roupas e toalhas vermelhas.1

• Na asfixia/sufocação considerar a elevação da cabeceira, colocação de oxigénio e aspiração de secreções.1

Midazolam é o fármaco de primeira linha na sedação paliativa, dado ter uma semi-vida curta. Nos casos em que o midazolam falha, deve ser administrado um neuroléptico (preferencialmente a levopromazina), como 2º passo.2

A Levopromazina tem sido recomendada como tratamento de 1ª linha nos caso de delirium refratário, história de etilismo e/ou toxicodependência.2

FÁRMACO DOSE

1ª linha

Midazolam

Se o efeito de ambos os fármacos não for eficaz, devem ser descontinuados.2 Propofol é o fármaco de 3ª linha. O uso de fenobarbital como 3ª fármaco não é consensual.2 Outras benzodiazepinas e outros neurolépticos já foram considerados como alternativas ao midazolam e á levomepromazina.

A utilização de morfina como sedativa é considerada má prática. A morfina deve ser administrada concomitantemente com os fármacos sedativos para alívio de dor e/ou de dispneia.

A analgesia não deve ser interrompida mesmo após a sedação eficaz.

A aplicação de sedação paliativa, quando a situação mostra essa necessidade, é considerada boa prática e estratégia clínica correta

Bibliografia

1. Freire, Elga - Guia Sintomático de Controlo Sintomático, 2ª edição

2. Surges, Séverine M.; Garralda, Eduardo; Jaspers, Brigit; Brunsch, Holger; Rijpstra, Maaike; Hasselaar, Jeroen; Elst, Michael Van der; Menten, Johan; Csikós, Agnes; Mercadante, Sebastiano; Mosoiu, Daniela; Payne, Sheila; Centeno, Carlos; Radbruch, Lukas- Review of European Guidelines on Palliative Sedation: A Foundation for the Updating of the European Association for Palliative Care Framework. Journal of Palliative MedicineVol. 25, No. 11. (27 Oct 2022) https://doi.org/10.1089/ jpm.2021.0646. Disponivel em https://www. liebertpub.com/doi/10.1089/jpm.2021.0646

3. https://www.palliativesedation.eu/workpackage-1/

Medidas farmacológicas:

Bólus: 5mg SC ou EV até 5/5min para atingir nível de consciência RASS-Pal-2

Perfusão: se necessário, para manter o mesmo nível de consciência, 0,5-1mg/h EV ou SC (com titulação da dose em 50% após 4h, se efeito insuficiente, sempre com bolus 5mg em SOS até 1/1h).

2ª linha

Levomepromazina Bólus inicial: 12,5-25mg EV, SC ou IM seguido de perfusão a 2-3mg. 12,5mg SOS 1/1h se necessário

Diazepam 10-20mg retal ou 5mg EV, a cada minuto, se necessário

Cloropromazina Bólus: 12,5mg-25mg EV ou IM a cada 4-12h

Perfusão a 3-5mg/h

Propofol Bólus: 0,5-1,5mg/kg seguido de perfusão EV 0,3 -3mg/ Kg/h (a titular)

Fenobarbital Bólus: 1-3mg/kg SC ou EV seguido de perfusão a 0,5mg/ Kg/h

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