EU NÃO SOU
SEU FILME
PORNÔ
D
esde criança sempre soube que havia algo de “errado” em mim. Seja por que aos 7 fingia que uma modelo da propaganda Dove era minha namorada ou por que aos 10 minha mãe me perguntou se eu era lésbica. Independente de qual fosse a evidência, sempre soube que eu não era a menina da propaganda de rosa e com uma boneca na mão (até por que odiava bonecas e jogava todas no telhado do vizinho).Cresci sem saber o que fazer com aquilo que sentia, perdida em meio a um turbilhão de sentimentos prometi a mim mesma que nunca ficaria com garotas, não importa o que acontecesse. Eu estava completamente enganada, refugiada na minha inocência infantil. A verdade é que não tem como controlar sentimentos tão arrebatadores e, na realidade, não existe nada de errado com eles. O que existe de errado é um pensamento homofóbico social, construído em cima de regras de gênero binário e heteronormatividade que tentaram naturalizar ao longo dos séculos, mas que não são naturais.
Por isso causam tanta dor a uma menina de 7 anos, a um menino de 15 anos, a qualquer um que sinta a verdade. Não se controla sentimentos, não se condiciona sentimentos, não se naturaliza sentimentos. A única coisa que podemos fazer é sentí-los.
PROMETI A MIM MESMA QUE NUNCA FICARIA COM GAROTAS, NÃO IMPORTA O QUE ACONTECESSE. Essas falsas verdades resultam em algumas ações coercitivas, como a tentativa de esconder homossexuais como se assim você fosse eliminá-los aos poucos, como se fosse uma anormalidade. Por isso, algumas ferramentas que temos hoje em dia são essenciais para quebrar essa ilusão de que ser hetero é normal e todo o resto não, pois você humaniza figuras que antes eram os “gays” e mostra que são muito mais além disso,
são pessoas como qualquer outra. Essas ferramentas são filmes, novelas, séries, qualquer forma de nos representar, nos mostrar ao mundo, deixar saber que estamos aqui, estamos bem e vamos ficar. Imagino que várias pessoas assim como eu ficaram extasiadas ao saber que a nova novela das nove, “Em família”, teria um casal lésbico. Feliz por finalmente poder estar se vendo representada em uma novela, uma representação da vida real, feliz por estar se vendo representado como uma cidadã verdadeira, que existe, vive e tem tantos problemas e felicidades como qualquer outra pessoa.
o casal é construído em cima da falta, como se sempre estivesse faltando um homem para completar as duas ,
Mas, pelo menos para mim, a felicidade durou pouco. Nas primeiras cenas em que vi Taina Müller, uma das atrizes que faz o uma das personagens do casal lésbico, estava sempre em uma cena construída visando encaixar cada peça nos estereótipos existentes, não na sua maneira mais óbvia que seria se usassem o corpo das atrizes, mas sim de uma forma sutil e muito mais perigosa. Essas cenas representavam a personagem sempre fotografando mulheres nuas, uma cena sensual, com uma trilha que endossava esse aspecto, enquanto a outra personagem lésbica que ainda não se descobriu, Clara, interpretada pela Giovanna Antonelli, estava sempre representada como a personificação da inocência caindo em uma armadilha. Vocês percebem o problema dessa construção? É como se as lésbicas vivessem inseridas em um mundo sórdido, vivendo para ser sensual. O problema dessa representação é que não nos mostra como pessoas, que amam, tem família, trabalham, estudam,
transam, brigam, choram, é você diminuir um ser humano a uma simples característica, a lesbianidade.
Mas sim como objetos de desejo, estando ali somente para alimentar o fetiche de outros.
Além dessa diminuição que é a fonte de vários argumentos homofóbicos, como não poder doar sangue por estar no grupo de risco, também existe o problema que o casal é construído em cima da falta, como se sempre estivesse faltando um homem para completar as duas, transformando assim esse casal em um simples objeto de fetiche.
Assim nos transformamos novamente em seres visíveis aos olhos, mas invisíveis à sociedade. Inseridos em um espaço mas sem realmente ocupar lugar algum. Estando ali como reles elementos figurativos de desejos alheios, e não como sujeitos de sua própria história, de sua própria luta, de sua própria vida.
Essa falta se mostra quando você não vê as duas agindo como um casal, é quase como se fossem amigas românticas (inclusive manchete já utilizada pelo site da Globo), o toque de ambas é de duas amigas, leve, suave, sempre evitando áreas de perigo que poderiam caracterizar um casal, basta comparar as cenas, como seria o comportamento dos personagens caso fosse um casal hetero? O principal problema nessas construções é a não representação das lésbicas como sujeitos sociais, que tem direitos, que são pessoas.
Então não, não me senti representada por essa novela, pois eu não sou somente lésbica, sou um alguém que chora, ri, ama, sofre, luta, estuda, trabalha, tem olhos e cabelos castanhos e que também gosta de mulheres. Por isso me recuso a ser diminuída a uma característica, pois sou muito mais, sou uma pessoa
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texto lila rafaela arte lana kantor