Amor de Cordel
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Andrea Marques
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…e o futuro é uma astronave que tentamos pilotar não tem tempo nem piedade nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda nossa vida E depois convida a rir ou chorar… “aquarela” (toquinho)
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Retrospectiva
Abri os olhos e demorei alguns segundos para lembrar onde estava.
À minha volta, havia caixas de papelão de diversos tamanhos, algumas fechadas, outras abertas, com objetos de casa, livros, roupas e sapatos. Então lembrei que havia passado a primeira noite em meu novo apartamento. Ainda podia sentir o cheiro de tinta fresca nas paredes e ouvir os ecos do quarto, que até então só contava com um colchão — o marceneiro contratado para fazer meus novos móveis estava atrasado em seu prazo de entrega. Permaneci deitada por mais algum tempo esperando que a vontade de arrumar minha nova casa viesse me encontrar e pensei que só mesmo alguém como eu, que nunca curtiu Carnaval, poderia fazer uma mudança no final de semana da maior festa popular do país. Tudo bem que eu morava em São Paulo, o túmulo do samba, como Caetano canta em sua música, mas, mesmo assim, desperdiçar meu feriado com a arrumação da casa não era o ideal de descanso para ninguém. De qualquer forma, agora eu era sozinha e não tinha que me preocupar com horários, pelo menos até a Quarta-Feira de Cinzas, quando retornaria ao trabalho. Assim, desfrutei do ócio e aproveitei para pensar nos acontecimentos da minha vida, que tinha mudado drasticamente. Tudo começara precisamente havia quatro meses, em outubro de 2009. Eu estava em meu antigo apartamento localizado no Jardim Anália Franco, zona leste da capital. Era uma sexta-feira à tarde e eu tinha acabado de sair do banho depois de ter ido à aula de Pilates na academia e fui até a cozinha dar uma olhada na dispensa para ver o que poderia preparar para o jantar, afinal Miguel, meu marido, logo
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chegaria e provavelmente não iria querer sair para comer fora. Ele andava meio desanimado nos últimos dias e, apesar de ter sido promovido recentemente no trabalho, sempre chegava cansado e muitas vezes sem nenhuma vontade para sair ou às vezes até para transar. Eu tentava entender, já que, depois de catorze anos juntos, nem sempre o sexo é algo empolgante como é no início do relacionamento. Mesmo sentindo falta de sua companhia, eu me esforçava para agradá-lo, e, naquele dia, eu pensei que seria ideal preparar o bolo de carne do qual ele tanto gostava. Assim, separei os ingredientes e, quando ia dar início à receita, escutei a porta da sala se abrindo. Olhei no relógio: eram seis e meia da tarde. Era cedo, pois nas últimas semanas ele estava voltando do trabalho após as nove da noite… sempre tinha alguma reunião extra, já que estava ocupando o cargo de engenheiro-chefe na multinacional em que trabalhava. Permaneci na cozinha e o escutei dizer meu nome. — Carol, onde você está? — Aqui na cozinha. — Após alguns segundos ele apareceu e eu falei com entusiasmo. — Ia começar a preparar a receita do bolo de carne que a sua mãe me passou, que tal me ajudar? Fui até ele e fiquei na ponta dos pés para lhe dar um beijo na boca, ele se esquivou para responder. — Acho melhor deixar para preparar o jantar depois, eu preciso conversar com você. Ele falou num tom sério, e, preocupada, perguntei se algo de ruim acontecera no trabalho. Ele se limitou a responder que não e me pediu para irmos até a sala. Não conseguia imaginar qual seria o assunto, mas senti um arrepio percorrer meu corpo. Ignorei a sensação, pois não deveria ser nada grave… nossas finanças estavam em ordem, os nossos pais estavam bem de saúde, ele tinha assumido um cargo importante e talvez nós tivéssemos condições de viajar para a Europa como sempre planejamos, embora nunca tenhamos tido chance de concretizar esse sonho, pois todas as nossas reservas tinham sido usadas para quitar o financiamento do nosso apartamento dois anos antes. Ele esperou eu me sentar no sofá, então se acomodou sobre a mesinha de centro à minha frente e me olhou por um minuto antes de começar a falar. — Carol, eu não sei bem como começar… fiquei adiando esse momento por muito tempo, mas agora não dá mais. Ele abaixou a cabeça e entrelaçou os dedos, depois voltou a me olhar. Percebi o receio em seus olhos e por um momento ele me encarou. Estendi minhas mãos em direção ao seu rosto, lhe afaguei a face, e o incentivei. — Pode falar, qual é o problema? — Eu conheci uma pessoa… no trabalho, logo após ser promovido. Então ele parou, novamente abaixou a cabeça e permaneceu calado por alguns segundos. Naquele instante eu percebi o que viria a seguir, mas esperei ele continuar. E as palavras saíram como um jato de sua boca: 8
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— Eu nunca me senti atraído por nenhuma outra mulher desde que nos casamos, mas eu conheci essa garota que mexeu comigo. Achei que fosse apenas atração física, que se eu me esforçasse conseguiria resistir, mas foi inútil. Eu… eu estou apaixonado e quero me separar de você. As palavras dele ficaram se repetindo na minha mente e mesmo assim eu não conseguia entender o que ele estava dizendo. Depois de catorze anos juntos ele estava falando que não me amava mais? Que estava apaixonado por outra mulher? Não consegui dizer nada, estava atônita. Senti minha cabeça rodar e uma náusea me invadir, por isso permaneci sentada esperando acordar e ver que tudo aquilo não passava de um sonho. Mas de repente a voz de Miguel me trouxe de novo para a realidade. Eu olhei para o seu rosto, porém não consegui enxergá-lo, tampouco escutar o que ele dizia. Era como se um barulho ensurdecedor me impedisse de ouvi-lo por mais que eu me esforçasse, e fiquei olhando para aquele homem com o qual eu vivia desde os meus vinte e seis anos e que agora parecia um completo estranho para mim. Eu tentei me concentrar nas minhas sensações, entender o que estava acontecendo, mas foi inútil, pois era como se estivesse presa num turbilhão de emoções, sem saber ao certo qual delas era a mais forte: a raiva, a decepção, a frustração ou o orgulho ferido. Instantes depois consegui perceber que isso não importava, mesmo que conseguisse distinguir qual dos sentimentos era o predominante naquele momento, nada mudaria o que acabara de saber. Depois de um tempo paralisada, alguns minutos, acho, finalmente voltei a escutar meu marido. Ele dizia que eu era uma mulher maravilhosa, que também merecia ser feliz, e mais uma porção de baboseiras que se falam nessas horas, mas eu não estava disposta a permanecer ali e me levantei. Ele tentou me segurar pelo braço, mas meu olhar o intimidou e ele se limitou a perguntar aonde eu ia. Eu o ignorei por completo, apenas peguei minha bolsa, averiguei se a chave do carro estava lá e saí. Dirigia pela cidade sem saber para onde ir ou o que fazer, até que estacionei o carro no meio-fio em frente a uma cafeteria, desci e entrei no lugar. Procurei uma mesa na parte menos iluminada do ambiente e lá permaneci. Uma garçonete veio me atender; pedi um café apenas e passei duas horas olhando para a xícara sem tocá-la, enquanto pensava no que fazer. Pensei se eu deveria ligar para minha mãe ou minha irmã, mas depois decidi que não era o melhor momento. Eu precisava de tempo para assimilar tudo o que estava acontecendo, e ouvir as exclamações de surpresa ou os conselhos de qualquer uma delas estava fora de cogitação. Então comecei a pensar em que momento meu casamento começou a desmoronar sem que eu percebesse, entretanto, não consegui chegar a nenhum acontecimento específico. Eu e Miguel sempre nos demos bem. É claro que às vezes discutíamos, mas nunca foi nada sério. Nada que justificasse a sua atitude. Por Amor de cordel
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que agora, depois de tantos anos juntos, ele queria se separar? Será que ele realmente estava apaixonado por outra como dissera? Ou será que tinha apenas enjoado de mim, da rotina do casamento, da repetição dos velhos hábitos? Será que eu já não lhe despertava o mesmo desejo de antes? Eu nunca fui muito vaidosa, mas sempre procurei cuidar do corpo, muito mais por uma questão de saúde do que pela estética, assim sempre me dediquei a atividades físicas, fazia musculação, ioga, Pilates e até tinha investido dinheiro numa lipoaspiração, o que me ajudou a chegar bem aos trinta e oito anos. Meu rosto é comum, olhos castanhos, nariz proporcional sem ser arrebitado demais e lábios bem definidos. A cor natural dos meus cabelos também é castanha, mas eu estava usando-os num tom mel, que combinava com minha pele clara. Não tinha rugas ou marcas de expressão que denunciassem minha idade e, na maioria das vezes, as pessoas se surpreendiam ao saber que logo eu entraria na casa dos quarenta. Geralmente diziam que eu não aparentava mais que trinta anos, por isso não podia acreditar que o motivo que levou meu marido a procurar outra fosse a idade, afinal ele era três anos mais velho que eu e nunca foi fútil para se apegar apenas a esse fato, ou pelo menos era o que eu pensava até então. Tentei imaginar quem seria a mulher que havia lhe despertado tanto interesse. Será que ela era muito mais nova que eu? Será que era linda, sexy e divertida? Se fosse, essas características poderiam ter contribuído para aguçar a paixão que ele dizia estar sentindo? Pois se alguma delas propiciou nossa separação, eu estaria perdida. Eu era o oposto disso, era comum, tímida e tinha dificuldade de externar meus sentimentos. Definitivamente eu não teria a menor chance de concorrer com alguém assim. Fui tirada dos meus pensamentos quando o celular tocou. Não precisei olhar o número para saber que era Miguel, ligando preocupado e querendo notícias minhas, mas eu ignorei o chamado, não queria falar com ele. Estava com raiva, meu orgulho estava ferido e tudo o que eu queria era ficar ali sentada, na esperança de acordar e perceber que tudo não passara de um pesadelo. Só percebi que já eram quase dez horas da noite, porque a garçonete, um tanto assustada com minha inércia, veio me informar que eu precisava ir embora, pois eles iriam fechar. Paguei a conta e voltei pra casa. Quando cheguei, meu marido estava ao telefone com alguém e, pelo que pude ouvir, era com outra mulher. Rapidamente ele desligou e me perguntou onde eu estava e por que não atendi as suas chamadas. Olhei para ele e respondi: — Miguel, eu preciso de tempo para pensar. Por favor, me deixe sozinha. Ele ainda tentou conversar, mas quando eu o encarei, ele desistiu rapidamente de qualquer diálogo. Passei praticamente a noite toda acordada, sentindo um buraco se abrir em meu peito. O que eu deveria fazer? Implorar para ele reconsiderar a situação? 10
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Dizer que ele estava enganado, que nós deveríamos tentar mais uma vez? Não, nada disso adiantaria. Miguel sempre foi o tipo de pessoa que nunca fez nada contra a sua vontade e se ele realmente estava apaixonado, isso serviria apenas para me humilhar. Eu não precisava passar por isso, pois, por mais que pensasse nessa possibilidade, seria perda de tempo. Fiquei imaginando como seria minha vida dali para a frente. Eu estava com trinta e oito anos e havia passado quatorze ao lado dele, contando os dois anos de namoro anteriores ao casamento. Juntos nós construímos um lar, conhecemos lugares, brigamos, nos reconciliamos, nos apoiamos mutuamente em nossas carreiras, comemoramos as conquistas um do outro, tentamos ter um filho, mas isso nunca se realizou. A certa altura da noite, comecei a pensar que talvez o motivo que o tivesse levado a procurar outra mulher fosse esse, minha incapacidade de gerar filhos, mas abandonei essa ideia, pois entre nós dois quem mais sentiu o impacto desse fato fui eu, chegamos até a cogitar a possibilidade de adotar, mas ambos éramos receosos com relação a esse aspecto e eu achei que tudo estava bem… até aquele dia. Eu simplesmente não sabia o que fazer, parte da minha família, meus pais e minha irmã com seu filho, estavam a quase quatrocentos quilômetros de mim; não tinha amigas, apenas algumas colegas no trabalho e outras na academia, mas ninguém em quem eu confiasse, meu porto seguro sempre foi meu marido, e agora ele queria a separação. Comecei a sentir um nó na garganta e quando dei por mim estava chorando compulsivamente. Não sei bem em que momento o cansaço me dominou, mas pouco a pouco fui perdendo a consciência e mergulhei num sono profundo. Acordei na manhã seguinte com batidas na porta do quarto, era Miguel querendo saber como eu estava. Mesmo com a revelação de seus sentimentos, ele ainda se preocupava comigo, o que me deixou momentaneamente esperançosa, e, por um breve instante, pensei em pedir a ele que reconsiderasse a situação, que nós ainda podíamos tentar, mas sua atitude não era mais por amor e sim por generosidade. Dessa forma, mesmo contrariada, rapidamente descartei tal possibilidade. Miguel disse que precisávamos conversar sobre os assuntos práticos da separação, assenti e pedi a ele que esperasse eu tomar um banho primeiro; ele concordou e saiu do quarto. Fui para o banheiro, abri o chuveiro e deixei a água cair no meu corpo. Aos poucos senti meus músculos relaxarem com a agradável temperatura da água e demorei mais que o necessário no banho, em parte para desfrutar dessa sensação e também para adiar um pouco mais o momento seguinte. Finalmente, depois de uns trinta minutos, eu estava pronta e fui para o quarto de hóspedes onde ele tinha dormido. Amor de cordel
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Ele me olhou por alguns instantes e voltou a repetir o mesmo discurso da noite anterior. Disse que me admirava muito e que os anos que passou ao meu lado foram ótimos, por isso queria me deixar numa situação confortável e sugeriu vendermos o apartamento, pois cada um de nós poderia comprar outro imóvel com a parte que lhe cabia e assim ambos estariam garantidos. Concordei prontamente e não me opus a colocar o apartamento à venda com tudo o que tinha, eletrodomésticos e móveis, afinal, para onde quer que eu fosse, seria inviável levar tudo e, já que ia começar uma nova etapa, nada melhor que iniciá-la sem muitos resquícios do passado. Também dividiríamos o dinheiro que estava aplicado em partes iguais, e como cada um tinha seu próprio carro eu não ficaria a pé. Não brigamos por bens materiais, o que foi um grande alívio para mim, pois eu já estava bastante abalada com a situação para ficar desperdiçando energia com isso. Depois de tudo acertado, Miguel avisou que iria embora e que voltaria para arrumar o restante das suas coisas durante a semana. Novamente senti o buraco se abrir em meu peito e respirei fundo procurando forças para continuar o dia. Achei que seria melhor não estar em casa quando ele saísse, então fui caminhar pelas ruas do bairro. Olhei as lojas e fiquei por um bom tempo numa livraria, folheando livros e revistas para esquecer tudo o que acontecera — mas volta e meia eu relembrava os acontecimentos. Depois de mais ou menos duas horas, voltei para o apartamento. Ele estava igual a antes, mas a sensação de vazio era imensa. Não consegui fazer nada durante o fim de semana… passei praticamente o tempo todo na cama e não comi nada que pudesse ser considerado uma refeição adequada — na realidade, passei os dois dias com um pacote de bolachas. Quando o domingo chegou ao fim, eu dei graças a Deus por ter que acordar cedo na manhã seguinte para ir trabalhar, afinal, quanto mais ocupada estivesse, menos tempo teria para pensar no que estava acontecendo. Nos dias que se seguiram, a sensação de abandono só aumentou e eu me esforcei ao máximo para me manter entretida com o trabalho e com as tarefas da casa. Também passei a frequentar todas as aulas possíveis na academia de ginástica. Como não tinha nenhuma amiga de confiança, não contei a ninguém o que estava acontecendo. À noite, eu chorava, sozinha em casa, até conseguir dormir. Pensei em ligar para Miguel para conversar na terça-feira quando cheguei do trabalho, mas desisti. O que eu diria? Iria implorar para ele dar mais uma chance para mim? Não, não valia a pena… eu conhecia meu marido muito bem para saber que essa atitude só traria desconforto para nós dois. Assim tentei seguir com minha rotina, até que na quinta-feira, cinco dias depois de ter saído de casa, ele voltou e quis conversar comigo. 12
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Como uma tola, achei que ele estava arrependido e tive esperança de que ele me pediria para esquecer tudo o que dissera e aceitá-lo de volta, mas, para aumentar meu sofrimento, a sua fala foi o oposto disso. Ele foi até lá para me contar que já havia posto o apartamento à venda, e que, segundo o corretor, não deveria demorar muito para conseguir um comprador, pois tanto o prédio quanto o bairro eram muito procurados. Me avisou que estaria fora da cidade por dez dias devido ao trabalho, mas quando voltasse daria entrada nos papéis do divórcio. Naquela noite me senti extremamente só e resolvi que viajaria no final de semana para Ribeirão Preto, para dar a notícia da separação a minha família. Na sexta-feira à tarde, após sair do trabalho, peguei a estrada. Eu sempre gostei de dirigir, e, apesar do trajeto para o interior durar mais de quatro horas, a viagem me ajudou a relaxar e eu até me esqueci do motivo pelo qual havia decidido visitar os meus pais. Assim, quando cheguei no final do dia em Ribeirão, fui dominada pela agradável sensação de acolhimento que sempre sentia quando retornava a minha cidade natal. Estacionei o carro na frente da casa dos meus pais e olhei a sua fachada. O imóvel havia passado por uma reforma recentemente; estava pintado num tom creme claro e a janela do quarto dos meus pais tinha recebido uma nova demão de verniz. O jardim estava repleto de margaridas e gérberas e o seu colorido era um convite para permanecer na varanda num final de tarde escutando os pássaros cantarem. Eu vivi quase vinte anos nessa casa, só saí quando fui fazer faculdade em São Carlos, e tinha ótimas lembranças da minha infância, como as brincadeiras na rua com minha irmã Camila, o cheiro do café com leite e do bolo de fubá que minha mãe preparava nas tardes de sábado e as inúmeras vezes em que acompanhei meu pai em seu passatempo preferido, a marcenaria. Hoje em dia, devido à artrite, meu pai já não tem mais condições de se dedicar ao seu hobby e minha irmã ainda mora aqui, só que agora tem um filho de dois anos, o Tiago. Apenas minha mãe continua a preparar o bolo de fubá e o café com leite todas as tardes de sábado. Depois de alguns minutos, vi meu pai aparecer na porta da sala. Ele estava com sessenta e oito anos e o pouco cabelo que lhe restava era totalmente branco, seu rosto enrugado ainda conservava a familiaridade com as minhas memórias de infância e isso me trouxe conforto. Ele veio ao meu encontro sorrindo e de braços abertos. Logo me aproximei dele e o envolvi pela cintura com uma urgência absurda para me sentir segura. Não escutava o que ele dizia e, quando dei por mim, estava chorando. Então vi minha mãe de mãos dadas com meu sobrinho, me olhando preocupada. Me desvencilhei do meu pai e fui ao seu encontro. Ela me Amor de cordel
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encarou, passou a mão em meu rosto e disse que não importava o que eu iria falar, primeiro deveria sentar e comer o maravilhoso pão de queijo que ela acabara de tirar do forno. Sorri de forma triste, passei a mão no rosto para secar as lágrimas e vi meu sobrinho puxando minha calça exigindo atenção. Me abaixei e o peguei no colo, lhe dando um beijo e um abraço apertados. Olhei mais uma vez para minha mãe e, apesar da expressão preocupada que se formara no seu rosto ao me ver, assim como meu pai, ela ainda conservava a mesma familiaridade de antes, só que os cabelos brancos estavam tingidos de um tom louro-escuro e ao redor dos olhos as rugas denunciavam a sua idade, sessenta e seis anos. Entrei na minha casa de infância levando meu sobrinho no colo. Ele era uma criança adorável e muito esperta. Perguntou-me se eu havia trazido chocolates e disse que iria me mostrar o carrinho que sua mãe havia lhe dado. Eu sorri com sua espontaneidade e me senti mais acolhida. Fui com meus pais e com o Tiago para a cozinha e, ao passar pela sala, vi o novo jogo de sofás de couro marrom que minha irmã havia dado de presente a minha mãe no seu aniversário. Na estante, havia fotos da família, dos avós que eu nunca cheguei a conhecer, do casamento dos meus pais, retratos meus e da minha irmã caçula, de quando éramos crianças, com nosso cachorro Banditi e, depois, das nossas formaturas e uma do meu casamento. Essa em especial me deixou triste e imediatamente desviei os olhos para uma foto do meu sobrinho ainda bebê. Ao chegarmos na cozinha, senti o cheiro do pão de queijo e do café passado na hora e, mais uma vez, me senti acolhida. Coloquei meu sobrinho no chão e fui lavar as mãos, sentei com meus pais para comer e, após terminarmos o lanche, contei tudo o que acontecera na última semana. Vi a perplexidade estampada nas suas feições, mas, passada a surpresa, minha mãe falou: — Carolina, você não pode aceitar isso assim! Precisa lutar pelo seu marido, não pode deixar qualquer uma tomar o seu lugar. — Mãe, é inútil. Ele está apaixonado, não vai deixar essa mulher por minha causa. Vi minha mãe me censurar com os olhos e me preparei para o sermão que estava por vir. Com certeza ela tentaria me convencer a tomar uma atitude, afinal ela sempre foi uma pessoa muito determinada e quando se decidia a fazer algo, ninguém era capaz de fazê-la mudar de opinião. Nesse aspecto eu era o seu oposto. Ainda assim tentei explicar a minha mãe que não havia chance de Miguel voltar atrás na sua decisão, mas antes de eu expor todos os meus argumentos, ela falou que meu problema era esse, aceitar tudo passivamente e não lutar pelo que eu queria. Vi meu pai olhar para ela censurando sua fala e logo ela se desculpou, mas voltou a insistir na ideia da reconciliação, chegou até a cogitar a possibilidade de conversar com Miguel sobre isso, mas, perante a minha recusa absoluta e a contestação do meu pai, ela acabou desistindo. 14
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Depois do café, fui para o quarto de Tiago para ver sua coleção de carrinhos e permaneci com ele até a hora do jantar. Sempre gostei de crianças e, como não tivera filhos, aproveitava ao máximo a companhia do meu sobrinho. Naquele dia em especial suas brincadeiras me distraíram e me fizeram esquecer a dor dos últimos acontecimentos e, por volta das oito e meia da noite, meu pai foi nos chamar para jantarmos. Ainda permaneci com eles conversando sobre a saúde de cada um e me inteirando dos últimos acontecimentos, ajudei minha mãe com a arrumação da cozinha e depois fui me deitar. Só acordei na manhã seguinte e, ao ver minha irmã na cozinha, não precisei repetir toda a história da separação, porque minha mãe já havia contado tudo assim que ela chegou do plantão médico. Ao me ver, Camila veio em minha direção, me abraçou e disse: — Carol, eu sinto muito, mas quero que saiba que eu respeito a sua decisão. Se você quiser pode voltar para Ribeirão, eu posso tentar arranjar uma vaga pra você no hospital, o que você acha? Olhei para ela e, sem muito ânimo, respondi: — Agradeço a sua preocupação, mas eu não vou me mudar para cá. Eu tenho os meus empregos em São Paulo, lá é minha casa e é lá que eu quero ficar. — Eu entendo, mas ainda assim você deveria pensar nessa possibilidade, afinal, não tem muitos amigos, vai acabar se sentindo sozinha. Suspirei antes de argumentar: — Camila, de agora em diante é assim que vai ser. Eu vou ter que aprender a lidar com a situação. Ela me encarou por um minuto e a cumplicidade que nos unia se manifestou nas suas palavras: — Certo, mas você sabe que pode contar comigo sempre. — Sim, eu sei, muito obrigada. Nos abraçamos novamente, e, apesar de toda a tristeza dos últimos dias, consegui ficar um pouco mais animada com a sua presença. Minha irmã e eu sempre fomos muito próximas e eu sentia um amor imenso por ela. Dessa forma o fim de semana passou tranquilamente, e estar na casa dos meus pais me fez esquecer um pouco a dor que estava sentindo. Aproveitei o sábado para sair com Camila e levar Tiago ao parque, e no restante do dia permaneci com minha mãe em casa ouvindo suas histórias sobre a vizinhança e suas amigas do grupo da terceira idade. No domingo de manhã fui até o quartinho que tinha no quintal da casa que servia para muitas coisas, inclusive para os trabalhos de marcenaria do meu pai. Apesar de ter muitos objetos guardados, tudo estava arrumado de acordo com a organização metódica da minha mãe. Assim, numa parte do armário, havia utensílios de casa que já não eram mais usados, mas que permaneciam lá para o caso Amor de cordel
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de alguém um dia achar que uma tranqueira esquecida pudesse servir para alguma coisa. As ferramentas do meu pai estavam guardadas num armário separado, e num baú colocado no canto do quarto havia brinquedos e bonecas minhas e da Camila. Abri a tampa do móvel e o vasculhei, até que encontrei uma peteca velha que usei muito quando criança. Sua base em couro marrom apoiava as penas coloridas e brinquei um pouco com ela. De repente escutei a voz do meu pai. Virei-me e ele se aproximou de mim. Olhou para a peteca e falou: — Você brincou muito com isso quando era criança. — Sim, eu me lembro! Eu adorava ficar em casa à noite brincando antes do jantar enquanto o senhor assistia à tevê. Às vezes o senhor até achava ruim, porque eu acabava atrapalhando, e me mandava ir brincar no quarto. Eu guardei a peteca porque achei que no dia que tivesse um filho poderia brincar com ele. Apontei para o brinquedo ao mesmo tempo em que sacudi os ombros, então senti minha garganta se fechar e as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Meu pai pôs a mão no meu ombro um pouco sem jeito, pois as manifestações de afeto não eram o seu forte. — Carol, você sabe que eu nunca fui de dar palpite na sua vida ou na da sua irmã, mas desta vez acho que sua mãe está certa quando diz que você deve tentar se reconciliar com o seu marido, afinal vocês estão juntos há muito tempo e talvez a paixão que ele afirma sentir por essa mulher que conheceu seja passageira. Suspirei, abaixei a cabeça por um instante e depois voltei a olhar meu pai. — Não, pai. Eu namorei Miguel por dois anos antes de passar doze ao lado dele e posso te garantir que nesse tempo todo nunca consegui fazê-lo voltar atrás numa decisão quando achava que estava certo, portanto não vou ficar implorando para ele reconsiderar a situação. Acho que ele pensou muito bem quando decidiu pedir o divórcio, afinal ele sempre foi cauteloso antes de tomar uma atitude. — Mas, minha filha, você não gosta dele? — É claro que gosto, afinal não se esquece alguém com quem se passou tantos anos da noite para o dia, mas o que quero dizer é que se ficar correndo atrás dele vou sofrer mais ainda e eu não quero isso. Eu quero seguir em frente, tentar ser feliz mesmo sem estar com ele. Meu pai me olhou por alguns instantes e finalmente falou: — Certo. Se você acha que assim é melhor, eu não vou ficar mais te importunando. Só vim conversar porque achei que não deveria me omitir desta vez. — Eu sei, obrigada. Guardei a peteca no baú e o abracei. Para não cair num choro compulsivo, me afastei e fui mexer em seu armário de ferramentas. E assim começamos a conversar sobre seus trabalhos de marcenaria. Depois do almoço retornei a São Paulo com minha mãe. Ela fez questão de vir comigo e disse que passaria toda a semana na minha casa. Apesar de gostar 16
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da ideia, no início fiquei apreensiva com a possibilidade de ela procurar Miguel enquanto eu estivesse trabalhando. No entanto, me lembrei que ele estaria fora da cidade e assim fiquei mais tranquila. Era bom chegar do trabalho e encontrar minha mãe. Ela sempre preparava algum prato especial para o jantar, também cuidava da casa e chegou até a implicar com a faxineira, que ia duas vezes lá para fazer o serviço mais pesado do qual eu não tinha como dar conta apenas nos finais de semana. Eu não me importei muito com os seus palpites em relação à empregada, afinal logo eu me mudaria dali e com certeza não iria precisar de uma pessoa para fazer a limpeza — provavelmente estando sozinha eu daria conta das tarefas domésticas facilmente. A única coisa que realmente me incomodou nos dias em que minha mãe esteve comigo foi a sua insistência em tentar me convencer que eu tinha que batalhar para ficar com meu marido. Por mais que eu falasse que isso não adiantaria nada, volta e meia ela retornava ao assunto. Na terceira vez consecutiva em que tentei explicar as minhas razões para não correr atrás de Miguel, percebi que seria inútil e desisti. Deixava minha mãe falar o que quisesse enquanto abstraía os seus comentários e me concentrava em outra coisa. Mesmo assim, nos dias em que minha mãe esteve em São Paulo, eu me senti mais amparada. Sua capacidade de comunicação tornou a casa mais barulhenta do que era normalmente. Também tentei convencê-la a me ajudar a procurar um novo apartamento, mas desisti quando ela voltou com a história da reconciliação. Aproveitei a companhia dela para irmos ao shopping, ao cinema e até ao teatro, e esses programas ajudaram a me distrair. Depois de uma semana comigo, minha mãe foi embora, e percebi que, se pudesse, ficaria mais tempo. Ela chegou até a me sugerir que voltasse a morar em Ribeirão e, naquele momento, entendi que o convite de Camila tinha sido ideia dela. Apesar dos seus palpites sobre minha vida, eu não me incomodava com isso, afinal cresci sempre escutando os seus conselhos e suas tentativas para me convencer a agir de acordo com as suas ideias. Dessa forma, sabia como lidar com a situação e cheguei até a sentir falta disso quando ela partiu, não sem antes me ouvir prometer que passaria as festas de final de ano em Ribeirão e que, se possível, ficaria até meu aniversário, que aconteceria em janeiro. Acho que com a proximidade dessas datas, ela receava que eu fizesse alguma bobagem. Não falei nada a respeito, porque, com minha mãe em alguns momentos, o silêncio valia ouro. Assim nos despedimos na rodoviária, mas ao vê-la partir, senti meu coração apertar, pois estaria novamente sozinha. Mas não tive muito tempo para curtir a solidão, pois quando estava voltando para minha casa, depois de sair da rodoviária, recebi a ligação do corretor responsável pela venda do apartamento, e ele me perguntou se poderia levar um casal Amor de cordel
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para conhecer o imóvel naquela semana. Pega de surpresa, eu demorei alguns segundos para dizer que sim. Em uma sexta-feira à tarde recebi a primeira visita dos possíveis compradores e, naquele momento, percebi que realmente as coisas eram para valer. Fiquei incomodada quando o casal na faixa dos trinta anos começou a falar do que gostava e do que mudaria em meu apartamento. Eu mesma havia decorado o imóvel com tanto carinho, e, mesmo cedendo a alguns caprichos de Miguel, eu adorava tudo que havia lá e não achava necessário fazer mudança alguma. Felizmente não foi esse casal que comprou o apartamento. Quando eles já estavam no hall esperando pelo elevador, eu chamei o corretor de lado e pedi para que as próximas visitas fossem feitas na minha ausência. Ele concordou e me pediu para eu deixar uma cópia da chave na portaria. Assenti e depois entrei. Naquela noite, me senti péssima. Peguei o álbum de casamento e também revi várias fotos minhas com Miguel desde a época do namoro até o seu último aniversário comemorado em abril. No dia nós fizemos um almoço para alguns amigos dele do trabalho e só naquele momento, em que estava revendo as fotos, eu notei que havia uma jovem sozinha ao lado do meu marido. Todos os outros convidados eram casais e apenas aquela moça de cabelos pretos na faixa dos trinta anos tinha sido convidada por ele. Comecei a examinar a foto detalhadamente, eu não aparecia, pois eu mesma a havia tirado, mas o que me chamou a atenção foi a proximidade física de Miguel com a moça. O seu sorriso feliz, a descontração do seu corpo… e, apesar de não conhecer a jovem, era possível dizer o mesmo dela. Naquele instante meu coração bateu aceleradamente e eu me senti uma idiota. Aquela era a mulher com quem Miguel estava, eu não me lembrava do nome dela, tampouco sabia o que ela fazia, nem ao menos se eles estavam juntos desde aquela época, mas mesmo assim podia afirmar que era ela a amante do meu marido. Senti a indignação crescer dentro de mim, joguei as fotos que estavam no meu colo no chão e me levantei abruptamente da cama. Comecei a andar de um lado para outro no quarto e, por mais que tentasse esquecer o que acabara de descobrir e conter a raiva, não suportei: me ajoelhei e procurei a foto que havia se misturado com as outras no chão e, quando a achei, comecei a rasgá-la freneticamente como se com isso eu fosse destruir a relação do meu marido com a sua amante. Procurei por outras fotos dos dois juntos… achei mais uma e fiz o mesmo, depois peguei várias fotos minhas com Miguel e as destruí da mesma maneira. Cheguei até a pegar o álbum de casamento e quando ia rasgar a primeira folha, parei e me vi vestida de noiva. Eu estava com vinte e seis anos, talvez dois ou três quilos mais magra que agora, mas o que importava não era meu peso, e 18
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sim minha expressão de felicidade. Passei a mão pela foto e me lembrei daquele dia, da emoção que senti ao me ver vestida de véu e grinalda, do momento em que escutei a marcha nupcial na porta da igreja e do meu pai me conduzindo pelo braço, do instante em que eu respondi sim a Miguel, quando prometi amá-lo e ser fiel por toda minha vida e quando ele fez o mesmo. Fechei os olhos e me concentrei em seu rosto naquele instante e depois, quando voltei a abri-los, estava de novo no quarto do meu apartamento. Olhei tudo ao redor e, sem conseguir me conter, caí num choro compulsivo que durou muito tempo. Após ter passado horas acordada chorando, na manhã seguinte eu estava me sentindo melhor e resolvi que era hora de encarar tudo o que estava por vir com coragem, afinal três semanas já haviam se passado desde que Miguel fora embora e eu não podia ficar eternamente me lamentando pela separação. Assim decidi que já era tempo de começar a fazer o que fosse necessário para iniciar uma nova etapa e, de forma prática, fui até um dos quartos que era utilizado como escritório, peguei um bloco de anotações e uma caneta para listar tudo o que eu tinha que providenciar. Primeiro precisava achar uma casa, pois quando o apartamento em que morava fosse vendido eu teria um prazo de quarenta dias para me mudar. Pensei em procurar um imóvel na zona leste mesmo, afinal, desde que me mudara para São Paulo, sempre morei na região. No entanto, eu trabalhava na zona sul e todos os dias enfrentava trânsito para ir e voltar do trabalho. Decidi me desapegar do lugar e dei início à procura de imobiliárias localizadas perto do hospital em que eu atendia na Vila Clementino. Selecionei alguns telefones pela internet e os anotei numa folha à parte. A segunda providência a tomar era começar a rever tudo o que eu tinha, o que eu queria levar comigo quando me mudasse e o que não queria mais. Assim comecei pelas roupas e sapatos e passei o final de semana arrumando meu closet. No final, havia três sacos grandes de plástico só de vestuário e mais dois de calçados que seriam destinados à doação. O terceiro item da minha lista era procurar locais que fizessem a mudança e me organizar para eu mesma cuidar das coisas que eram importantes e que eu não queria que quebrassem ou sumissem, pois quando me mudei da edícula em que morei com Miguel nos três primeiros anos de casamento para o apartamento atual, deixei tudo sob a responsabilidade de uma empresa especializada e me arrependi amargamente disso, pois perdi alguns presentes de casamento que eles simplesmente não puderam repor com o dinheiro dado, afinal, o que torna as coisas materiais importantes não é o valor que elas têm em moeda corrente e sim o afeto que trazem consigo. Amor de cordel
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Pensei em mais alguns itens para acrescentar à lista, mas não me lembrei de nada, então comecei a me dedicar às minhas tarefas e, nas semanas seguintes, fui ver vários apartamentos à venda na zona sul. Quase desisti da ideia de morar perto do trabalho quando me dei conta do preço do metro quadrado na região, mas depois de duas semanas visitando os imóveis, encontrei um apartamento no Brooklin de um dormitório, minúsculo comparado ao que eu morava, mas que era perfeito para minhas necessidades, sendo a primeira o preço. Nesse aspecto tive muita sorte, pois dois dias depois de achar o apartamento, o corretor responsável pela venda do meu imóvel ligou e disse que um senhor que havia visto minha casa queria fechar negócio o mais rápido possível com recursos próprios, o que significava que a transação não seria empacada por financiamento bancário. Dessa forma, a venda do apartamento do Jardim Anália Franco foi efetivada ao final de novembro e, com minha parte do dinheiro, eu pude comprar o apartamento do Brooklin. Isso me fez acrescentar mais um item na minha lista de tarefas: realizar uma pequena reforma antes de me mudar. É claro que esse item gerou outros, como a ida às lojas de materiais de construção para comprar pisos e revestimentos para a cozinha e o banheiro, além da escolha dos móveis e da aquisição de revistas de decoração para me inspirar. Também tive que procurar com uma lupa por profissionais da construção civil para fazer a reforma e, depois que o primeiro pedreiro me deixou na mão após eu pagar adiantado uma parte do seu serviço, eu quase contratei um arquiteto para cuidar da reforma. Cheguei a ver os nomes de alguns escritórios de arquitetura numa revista e um deles em especial me chamou atenção, talvez porque o anúncio fosse de página inteira, mas o fato é que quando vi a fachada do sobrado que alojava o escritório fui tomada por uma vontade de ir lá conhecer o lugar. Antes resolvi ligar para obter maiores informações e uma simpática recepcionista falou: — Boa tarde, escritório de Arquitetura e Design Bastos, em que posso ajudar? De forma tímida, eu quis saber os valores cobrados pelos projetos, e a funcionária chamada Elaine me informou que apenas os arquitetos poderiam me informar os preços, pois eles dependiam do que eu queria desenvolver. Curiosa, insisti um pouco e a mulher me pediu um minuto e tentou transferir a ligação para um dos sócios, um tal de Alexandre. Aguardei na linha, mas depois de alguns instantes a ligação voltou para a recepcionista e atenciosamente ela me disse que o arquiteto não poderia conversar comigo naquele momento, mas estaria a minha inteira disposição se eu tivesse interesse em falar com ele dali a duas horas e me perguntou se eu não queria marcar um horário. Eu agradeci sua gentileza e disse que tornaria a ligar mais tarde, mas no fim acabei esquecendo e não entrei mais em contato com o lugar — eu mesma supervisionei toda a reforma. Também mandei fazer armários e cama sob medida numa marcenaria e eu mesma desenhei os móveis, após olhar os modelos de que mais gostava em lojas 20
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ou nas revistas. Ainda consegui guardar um pouco do dinheiro da venda do apartamento e, com o que eu já tinha da antiga aplicação com Miguel, não teria muitas preocupações com relação a minha situação financeira. No entanto, depois de quinze dias reformando o novo apartamento, me dei conta de que ele não estaria pronto no prazo que eu tinha para deixar a casa onde residia, então fui obrigada a alugar um depósito para guardar algumas coisas e fiquei morando por mais de um mês num apart-hotel. Durante todo esse tempo, me encontrei com Miguel duas vezes, uma para concretizar a venda do nosso antigo apartamento e outra para assinar os papéis do divórcio. Nas duas ocasiões, tinha tantas coisas para resolver que não me abalei com os encontros. Na segunda vez em que nos vimos, conversamos um pouco, ele me contou que estava morando sozinho, mas não perguntei se tinha intenções de viver com sua namorada, e percebi que não o questionei não por receio da resposta, mas porque realmente não estava interessada em saber quais eram seus planos. Naquele momento, comecei a notar que eu poderia seguir em frente sem tê-lo ao meu lado. Talvez ainda sofresse um pouco, mas com certeza a ferida já não doía como antes.
* * * Finalmente, quatro meses após a separação, consegui me mudar para minha nova residência. O apartamento ainda não estava todo mobiliado, mas tinha o suficiente para me acomodar e eu estava pronta para iniciar uma nova etapa na minha vida.
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