Interacções português Fátima Azóia Fátima Santos
12.º ano
Revisão Científica e Pedagógica Conceição Coelho Editor Texto Editores, Lda. Design gráfico Lisa Hartje Moura Pré-impressão, impressão e acabamentos LHM Editores, Lda.
Interacções
Português 12.º Ano Fátima Azóia Fátima Santos
Texto Editores
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Textos épicos e épico-líricos Os Lusíadas, Luís de Camões Mensagem, Fernando Pessoa D’Os Lusíadas à Mensagem
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Os Lusíadas, Luís de Camões A epopeia do valor português Renascimento e Classicismo Cem anos de ventos favoráveis Camões, poeta pelo mundo em pedaços repartido Camões e Copérnico Organização dos Lusíadas Síntese dos Cantos Estrutura formal dos Lusíadas Excertos Em Síntese
4 | Os Lusíadas, Luís de Camões
A epopeia do valor português
A ideia de realizar um poema heróico sobre a expansão portuguesa manifesta-se já desde o século XV, dentro e fora de Portugal. O humorista italiano Ângelo Policiano ofereceu-se a D. João II para cantar em verso latino os seus feitos, e Luís Vives exaltou os Descobrimentos numa dedicatória a D. João III. No prólogo do Cancioneiro Geral, Garcia de Resende lamenta que os feitos dos Portugueses não estejam condignamente cantados. António Ferreira, apesar da sua aversão - várias vezes manifestada - pela vida guerreira e marítima, encorajou mais de um confrade a escrever epopeia, e ele mesmo ensaiou o estilo heróico em mais de uma ode. Este projecto dos Humanistas relaciona-se com a ambição de ressuscitar um dos mais nobres géneros greco-romanos. As viagens dos Portugueses prestavam-se a uma comparação vantajosa com as de Ulisses, dos Argonautas e de Eneias, assim como os seus feitos guerreiros com os dos Gregos e Troianos, o que ia ao encontro do ideal humanista de emulação com os autores antigos, e satisfazia a ideologia oficial da expansão. Ressuscitar a epopeia homérica na época do Renascimento - quando o espírito abastractor de um mundo já muito mercantil pouco se prestava à admiração de heróis semidivinos; e quando a mitologia clássica característica do género, era uma expressão irrecuperável a não ser para um certo naturalismo de insinuação estética - constituía um nobilitante repto ao engenho dos poetas. Historicamente, constituía uma impossibilidade. Foi precisamente o problema da ressurreição da epopeia clássica segundo o padrão homérico que Camões procurou resolver, levando a cabo esse desiderato característico dos escritores humanistas. O ambiente marítimo do assunto central filia o poema sobretudo na linhagem da Odisseia, da primeira metade da Eneida e dos poemas sobre os Argonautas escritos pelo grego Apolonio Rodio e pelo romano Valério Flaco. Em anos recentes, a investigação salientou algum débito de Camões no poema “Argonáutica” (“Feitos dos Argonautas”) deste último. À ideia de epopeia pátria andava associada certa ideologia oficial forjada pela expansão, e cujas raízes encontramos já em Zurara. Segundo essa ideologia, os Portugueses cumpriam uma missão providencial, dilatando tanto o Império como a Fé: eram os Cruzados por excelência. As lutas internas entre Cristãos (Católicos e Reformados, Casa de França e Casa da Áustria), coincidindo com o avanço turco nos Balcãs, que chegara até Viena (1529) dois anos Os Lusíadas, Luís de Camões - Contextos | 5
depois do saque de Roma por tropas luteranas do católico Carlos V, vinham tornar mais actual esta missão divina atribuída ao Reino Lusitano, exemplo que envergonharia o resto da Cristandade. O tema geral escolhido por Camões para o seu poema foi toda a história de Portugal, como se vê pelo próprio título: Os Lusíadas. Esta palavra (neologismo inventado por André de Resende) designa os Portugueses, que a erudição humanística assim nobiliza como descendentes de Luso, filho ou companheiro de Baco. O próprio autor explicita o seu propósito, ao afirmar que canta “o peito ilustre lusitano”. António José Saraiva e Óscar Lopes in História da Literatura Portuguesa
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Canto I 1 Homens ilustres e esforçados
Proposição
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As armas e os Barões1 assinalados Que da Ocidental praia Lusitana2 Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana3, Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram;
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E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando4, Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
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Cessem do sábio Grego e do Troiano5 As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano6 A fama das vitórias que tiveram; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram. Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta.
2 De Portugal. O uso de ocidental reforça a situação geográfica de praia lusitana. Camões chama aos Portugueses Lusitanos (e, frequentemente, os de Luso) 3 Identificada com a ilha de Ceilão
4 Da lei do esquecimento
5 O sábio Grego é Ulisses, o herói da Odisseia. O Troiano é Eneias, o herói da Eneida de Virgílio 6 Alexandre Magno, rei da Macedónia (356-323 a. C.). Trajano, imperador romano (52-117).
Análise Enunciação do assunto. Comparação entre o canto antigo e o novo. Confronto dos exemplos grandiosos da Antiguidade Clássica e dos Portugueses. Variação dos planos da narrativa.
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Apresentação do herói colectivo - Portugueses do passado, do presente e do futuro, desde que evidenciem as qualidades necessárias para ser herói.
Invocação
1 Ninfas ou filhas do Tejo, a quem o Poeta solicita a inspiração.
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E vós, Tágides1 minhas, pois criado Tendes em mi um novo engenho ardente, Se sempre em verso humilde celebrado Foi de mi vosso rio alegremente, Dai-me agora um som alto e sublimado2, Um estilo grandíloco e corrente3, Por que de vossas águas Febo ordene Que não tenham inveja às de Hipocrene4.
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Dai-me ũa fúria grande e sonorosa5, E não de agreste avena ou frauta ruda6, Mas de tuba canora e belicosa7, Que o peito acende e a cor ao gesto muda8; Dai-me igual canto aos feitos da famosa Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; Que se espalhe e se cante no universo, Se tão sublime preço cabe em verso.
2 Dai-me uma voz que atinja o sublime. 3 Um estilo elevado mas fluente.
4 Uma das nascentes que brotam na grande e divina montanha, o Hélicon (Hesíodo). 5 Dai-me um entusiasmo criador e ressonante. 6 Avena e frauta ruda (flauta rústica) - estilo humilde e simples. 7 Tuba: trombeta; canora: harmoniosa, melodiosa; belicosa: guerreira. 8 Peito: valor, coragem; gesto: muito frequente em Camões, no sentido geral de fisionomia, feições e, às vezes, modo.
Análise Invocação (apelo) das “entidades” dos poetas. Tágides em vez de ninfas/musas dos Clássicos, sublinhando o carácter nacionalista do poema. Relação do pedido de auxílio com a grandiosidade do assunto. Discurso persuasivo evidenciado pela linguagem apelativa e pela repetição anafórica, remetendo para o carácter reiterativo do pe-
dido; argumentos implícitos ou explícitos que sustentam o pedido. Expressões referentes à poesia lírica (e.g. flauta) e à poesia épica (e.g. sonoridade guerreira da tuba) Destaque da consagração do povo nos dois últimos versos.
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Dedicatória
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império O Sol, logo em nascendo, vê primeiro, Vê-o também no meio do Hemisfério, E quando dece o deixa derradeiro; Vós, que esperamos jugo e vitupério1 Do torpe Ismaelita cavaleiro, Do Turco Oriental e do Gentio Que inda bebe o licor do santo Rio2: [...] 10 Vereis amor da pátria, não movido De prémio vil, mas alto e quási eterno; Que não é prémio vil ser conhecido Por um pregão do ninho meu paterno. Ouvi: vereis o nome engrandecido Daqueles de quem sois senhor superno3, E julgareis qual é mais excelente, Se ser do mundo Rei, se de tal gente. 8
D. Sebastião (por Cristovão Morais) 1 Domínio sobre os territórios dos descendentes de Ismael (Árabes).
2 Aqui, licor significa água - a água do rio Ganges (Índia). É um rio sagrado, onde se banham os peregrinos.
3 Superior, colocado no alto (latinismo).
4 Rodamonte, Rugeiro e Orlando: personagens de Orlando Furioso, de Ariosto.
11 Ouvi, que não vereis com vãs façanhas, Fantásticas, fingidas, mentirosas, Louvar os vossos, como nas estranhas Musas, de engrandecer-se desejosas: As verdadeiras vossas são tamanhas Que excedem as sonhadas, fabulosas, Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro E Orlando, inda que fora verdadeiro.4 Análise Dedicatória ao rei da altura, D. Sebastião. Exaltação do povo e conselhos do Poeta ao Rei, para honrar povo tão nobre.
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[...] 15 E, enquanto eu estes canto - e a vós não posso, Sublime Rei, que não me atrevo a tanto -, Tomai as rédeas vós do Reino vosso: Dareis matéria a nunca ouvido canto. Comecem a sentir o peso grosso (Que polo mundo todo faça espanto) De exércitos e feitos singulares, De África as terras e do Oriente os mares.
Narração
1 Princípio da narração da viagem.
2 Proteu é, na Odisseia, um deus do mar, que tem o encargo de levar a pastar os rebanhos dos animais marinhos de Posídon. Proteu podia metamorfosear-se no que desejasse. O acento em Próteu é exigência métrica.
[...] 19 Já no largo Oceano navegavam,1 As inquietas ondas apartando; Os ventos brandamente respiravam, Das naus as velas côncavas inchando; Da branca escuma os mares se mostravam Cobertos, onde as proas vão cortando As marítimas águas consagradas, Que do gado de Próteu são cortadas2,
Leitura interactiva 1. (Dedicatória) Descreva a atitude e os sentimentos do sujeito relativamente ao destinatário, à pátria e à obra que apresenta 2. (Narração) Localize o texto na acção da obra.
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Fernando Pessoa Ortónimo Heterónimos Alberto Caeiro Ricardo Reis Álvaro de Campos
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A vida de Fernando Pessoa
13 Junho 1888 1893 1895 1896 1905 1906 1907 1908 1912 1914 1915 1916\27 1934 1935
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Nasce Fernando António Nogueira Pessoa no Largo de S. Carlos, em Lisboa. Sofre a morte do pai, Joaquim de Seabra Pessoa, perda que marca a sua infância. A mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira Pessoa, casa-se com João Miguel Rosa, cônsul em Durban, na África do Sul. Parte com a mãe para a África do Sul, onde realiza os seus estudos. Regressa a Portugal. Matricula-se no Curso Superior de Letras, em Lisboa. Abandona o Curso. Abre a “Tipografia Íbis”, em Lisboa, um projecto que fracassa. Começa a trabalhar como correspondente estrangeiro. Participa na revista A Águia e esboça o perfil do seu heterónimo Ricardo Reis. Publica “Pauis” e “O sino da minha aldeia” em A Renascença. Publica “O marinheiro”, “Opiário” e “Ode Triunfal”, na revista Orpheu. Colabora em inúmeras revistas da época: Contemporânea, Athena, Revista de Comércio e de Contabilidade e Presença. Publica Mensagem. Morre, vítima de uma cólica hepática, no Hospital de S. Luís dos Franceses.
Modernismo: literatura e artes plásticas
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2.º número da revista Orpheu, 1915 Mário de Sá-Carneiro, 1912 José de Almada Negreiros
Entende-se aqui por “Modernismo” um movimento estético, em que a literatura surge associada às artes plásticas e por elas influenciada, empreendido pela geração de Fernando Pessoa, Mário Sá-Carneiro (n. 1890) e Almada Negreiros (n. 1893), em uníssono com a arte e a literatura mais avançadas na Europa, sem prejuízo, porém, da sua originalidade nacional. [...] O modernismo [...] implica uma nova concepção da literatura como linguagem, põe em causa as relações tradicionais entre autor e obra, suscita uma exploração mais ampla dos poderes e limites do Homem, no momento em que defronta um mundo em crise, ou a crise de uma imagem congruente do Homem e do mundo. Foi por 1913, em Lisboa, que se constituiu o núcleo do grupo modernista. Ao invés dos movimentos literários anteriores (Simbolismo, Saudosismo), o Modernismo seria basicamente lisboeta [...] Pessoa e Sá-Carneiro haviam colaborado n’A Águia, órgão do Saudosismo, mas iam agora realizar-se em oposição a este, desejosos como estavam de imprimir ao ambiente literário português o tom europeu, audaz e requintado, que faltava à poesia saudosista. Nesse ano de 1913, escreveu Sá-Carneiro, aplaudido pelo seu amigo F. Pessoa, os poemas de Dispersão; ambos nutriam o sonho de uma revista, significativamente intitulada Europa; F. Pessoa dava início a uma escola efémera compondo o poema “Pauis” (publicado em Renascença, Fevereiro de 1914); Pessoa e Almada travam relações, graças à primeira exposição por este efectuada, e criticada por aquele nas colunas d’A Águia [...]. Em 1914 os nossos jovens modernistas, estimulados pela aragem da actualidade vinda de Paris com Sá-Carneiro e Santa-Rita Pintor, adepto do futurismo, faziam seu o projecto que Luís da Silva Ramos (Luís de Montalvor) acabava de trazer do Brasil: o lançamento duma revista luso-brasileira, Orpheu. Dessa revista saíram com efeito dois números (os únicos publicados) em 1915; incluíam colaboração de Montalvor, Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, Cortes-Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado e Raul Leal; dos brasileiros Ronald de Carvalho (que, regressado ao Brasil, serviria de traço de união entre o modernismo brasileiro e o português) e Eduardo Guimarães; de Ângelo de Lima, internado no manicómio; de Álvaro de Campos, heterónimo de Pessoa. Feitos, em parte, para irritar o burguês, para escandalizar, estes dois números alcançaram o fim proposto, tornando-se alvo das troças dos jornais; mas a empresa não pôde prosseguir por falta de dinheiro. Em Abril de 1916, o suicídio de Sá-Carneiro privou o grupo dum dos seus grandes valores. Fernando Pessoa - Contextos | 123
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Ultimatum Futurista redigido por Almada Negreiros (1917) Capa do primeiro número da revista Presença
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Entretanto, a geração modernista continuou a manifestar-se, quer em publicações individuais, quer através de outras revistas: Exílio (1916), com um só número, onde Fernando Pessoa deu a lume “Hora Absurda” e um artigo sobre o “movimento sensacionista”; Centauro (1916), com textos de Montalvor (“Tentativa de um ensaio sobre a decadência”), Camilo Pessanha, A. Osório de Castro, F. Pessoa (série de sonetos “Passos da Cruz”) e Raul Leal; Portugal Futurista (1917), com reproduções de quadros de Santa-Rita Pintor e Sousa Cardoso, um manifesto de Marinetti, versos de Apollinaire e Blaise Cendrars, prosa e versos de Almada - os mais acintosamente futuristas -, poemas de Sá-Carneiro e Pessoa (“Ficções do Interlúdio”), o “Ultimatum” de Álvaro de Campos. Foi também em 1917 que Almada-Negreiros, “poeta do Orpheu, sensacionista e Narciso do Egipto”, organizou no Teatro República (hoje São Luís) uma escandalosa sessão sessão futurista, cujos textos aquela revista exara. Dentro ainda da corrente modernista (dum modernismo já serenado ou atenuado) cumpre citar a Contemporânea (1922-26) [...] e Athena (1924-25) [...]. A revista Presença, aparecida em 1927, não só deu a conhecer e valorizou criticamente as obras dos homens do Orpheu, como lhes herdou o espírito por intermédio de alguns dos presencistas, pertencentes já a uma segunda geração modernista. [...] No Centauro, Montalvor proclama: “Somos os decadentes do Século da decadência. [...] Só a beleza nos interessa.” O próprio paulismo (termo que deriva do poema que começa “Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em oiro”, atrás aludido) é uma invenção de Pessoa que consiste num refinamento dos processos simbolistas. Como observou Gaspar Simões, “Pauis” ilustra, bem melhor que a poesia saudosista, os caracteres que Pessoa atribuíra a esta num artigo d’A Águia: o vago, o complexo, o subtil; e foi Sá-Carneiro, com o seu dramático e opulento simbolismo, o poeta que encontrou no estilo paúlico expressão adequada - o mais sincero paúlico do grupo. [...] O estilo paúlico define-se pela voluntária confusão do subjectivo e do objectivo, pela “associação de ideias desconexas”, pelas frases nominais, exclamativas, pelas aberrações da sintaxe (“transparente de Foi, oco de ter-se”), pelo vocabulário expressivo de tédio, do vazio da alma, do anseio de “outra coisa”, um vago “além” (“ouro”, “azul”, “Mistério”), pelo uso de maiúsculas que traduzem a profundidade espiritual de certas palavras (“Outros Sinos”, “Hora”). Ávido de inovar, Pessoa depressa quis ultrapassar o paulismo: não apenas depurá-lo (o que fará conseguindo a forma densa e cristalina, de certo modo clássica, mais adequada a um dos seus modos de ser literariamente sincero), mas, por algum tempo, substituí-lo por outros ismos de vanguarda: o interseccionismo, o sensacionismo - ainda, principalmente, produtos engenhosos, de “palhaço” (o termo é do próprio escri-
tor), de malabarista, para épater. Principalmente, que não exclusivamente, pois também há lirismo sincero de mistura com o, aliás admirável, virtuosismo de “Chuva Oblíqua”, poema interseccionista típico inserto no Orpheu, n.º 2, onde se cruzam e justapõem paisagens diferentes, experiências diferentes (o campo arborizado - um porto; o quintal da casa do poeta, na infância - o teatro onde há música). O sensacionismo, com a sua “exuberância abstracto-concreta das imagens”, complica-se de futurismo, afastando-se da poesia simbolista-decadente. Da sua adesão ao novo ismo encarrega Pessoa um heterónimo “nascido” em 1914, o engenheiro Álvaro de Campos. No Orpheu, são futuristas a “Ode Triunfal” e a “Ode Marítima” (dependentes aliás de Whitman, mais que de Marinetti) de Álvaro de Campos, e o poema “Manucure”, com que Sá-Carneiro pagou um tributo de circunstância a essa escola. Futuristas, porque não voltam costas à vida moderna refugiando-se, ressentidos e desistentes, no mundo interior; pelo contrário, cantam os grandes frémitos, as euforias da civilização mecânica, “Gritos de actual e Comércio e Indústria / Em trânsito cosmopolita”; e Sá-Carneiro, mais “palhaço” ainda, lança palavras e números “em liberdade”, introduz no poema sinais de vários alfabetos, tabuletas de firmas comerciais, onomatopeias exóticas em vários corpos tipográficos, segundo uma técnica publicitária. Mesmo assim, algo ficou na “Manucure” da verdadeira personalidade de Sá Carneiro, do seu estilo (“Começam-me a lembrar anéis de jade / De certas mãos que um dia possuí”); e as Odes de Campos, de esplêndida força verbal e composição perfeita, até hoje só aumentaram de prestígio. Com o futurismo se relacionam, além do “Ultimatum”, com a sua forla demolidora, [...] os “Apontamentos para uma estética não-aristotélica”; aqui, porém, Campos renega o futurismo de escola, proclamando que da arte não-aristotélica - a que visa não a beleza, mas a força, o dinamismo, o domínio sobre os outros - só houve “três verdadeiras manifestações”: os poemas de Whitman; os poemas de Caeiro (outro heterónimo de Pessoa), por igual “assombrosos”; e as Odes “Triunfal” e “Marítima”, da autoria dele, Campos. Almada também se libertou do futurismo de escola. De facto, aproximados por um espírito, digamos, de geração (desejo de renovação atrevida, europeísmo, gosto do paradoxo e da blague, da verde ironia e do sarcasmo), os três grandes modernistas portugueses realizaram-se com independência, por isso mesmo que senhores de personalidades vincadas. Mais ainda: ao tentarmos compreender esse espírito de geração, não devemos parar nos aspectos mais aparentes: a mistificação, a excentricidade; ou devemos procurar descobrir o sentido gravemente irónico que a própria simulação, o próprio jogo literário podiam ter, em Portugal, como nos outros países.
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O momento era de crise aguda, de dissolução dum mundo de valores - dissolução que, aliás, continua a processar-se. Os artistas reagiam ao cepticismo total pela agressão, pelo sarcasmo, pelo exercício gratuito das energias individuais, pela sondagem, a um tempo lúcida e inquieta, das regiões virgens e indefinidas do inconsciente, ou então pela entrega à vertigem das sensações, à grandeza inumana das máquinas, das técnicas, da vida gregária nsa cidades. [...] Num artigo intitulado “Da Geração Modernista” (in Presença, n.º3), José Régio caracterizou em conjunto a literatura “moderna” portuguesa pela tendência para a dispersão ou multiplicidade da personalidade, por um misto de irracionalismo (abandono ao inconsciente, primitivismo, infantilidade) e intelectualismo (voluntariedade, lucidez crítica), e finalmente pela tendência para a transposição, “isto é, para a expressão paradoxal das emoções e dos sentimentos”. Com efeito, o problema da unidade do eu (logo da sinceridade profunda, da compatibilidade entre ser sincero e exprimir-se), a busca duma personalidade radical que se escapa ou diversifica apresentam-se (de modo inteiramente novo, e com dramática acuidade) no Sá-Carneiro poeta e autor da Confissão de Lúcio; na obra de Fernando Pessoa, desdobrada em heterónimos, incluindo vários passos reflexivos; na obra de José Régio, em particular no Jogo da Cabra-Cega; no Elói de João Gaspar Simões. É ainda, embora sob prisma diferente, o problema de Nome de Guerra de Almada Negreiros onde o eu autêntico do protagonista consegue libertar-se do eu social, de convenção. O Modernismo encerra, pois, um humanismo; assume até um tom pedagógico de expressão aforística, [...] incita à plenitude individual. Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura
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Ort贸nimo Poemas A Sinceridade e o Fingimento Eu nunca fiz sen茫o sonhar
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Autopsicografia
Fingir (do latim fingere) - modelar, esculpir, imaginar; o sujeito poético modela, transfigura a dor sentida.
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O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas da roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama o coração.
Leitura interactiva
Análise
1. Este poema é uma das “artes poéticas por excelência de Pessoa. De que modo pode ajudar a perceber a ideia de poesia que preside à criação da heteronímia?
Autopsicografia é uma descrição da própria alma, apresentada em três estrofes. 1.ª estrofe: sendo “um fingidor”, o poeta não finge a dor que não sentiu, mas aquela de que teve experiência directa. Para Pessoa a poesia não se trata da passagem imediata da experiência à arte, opondo-se a toda a espontaneidade, criando antes uma dor fingida sobre a dor experimental. O poeta finge a dor real e fá-lo tão perfeitamente que o fingimento se lhe apresenta mais real que a dor fingida. 2.ª estrofe: os leitores de um poema não te-
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rão acesso a qualquer das dores: a dor real ficou com o poeta; a dor imaginária não é já sentida pelo leitor como dor, tendo apenas acesso à representação de uma dor intelectualizada, que não lhes pertence. 3.ª estrofe: sendo a poesia uma representação mental, o coração não passa de um entretenimento da razão, girando mecanicamente nas “calhas” (símbolos de fixidez e impossibilidade de mudança de rumo).
A sinceridade e o fingimento
Pessoa trouxe à poesia portuguesa a dialéctica, como movimento pela unidade dos opostos, da sinceridade-fingimento, ligando-a estreitamente aliás à da consciência-inconsciência e à do sentir-pensar. A apreensão poética das contradições reais tem, evidentemente, uma longa história, de Safo1 aos trovadores provençais, destes a Petrarca, aos engenhosos barrocos e aos conflitos, já não apenas psíquicos ou, mais restritamente, sentimentais, mas também éticos, de certos românticos como entre nós Garrett. [...] A influência dos poemas dramáticos de Browning2 na génese da heteronímia de Pessoa está confirmada por diversas alusões contidas nas Páginas Íntimas [...]. Regressando ao caminho que leva à teoria do fingimento, parece-nos dever-se distinguir entre os traços precursores apontados, a auto-explicação “patológica” do fenómeno da heteronímia, por um lado, e o modo como ele efectivamente se processa em Pessoa. Ora, como veremos, uma das características comuns às diversas máscaras deste poeta é a dúvida quanto à identidade e permanência de um eu pessoal. Todas as principais rubricas usadas por Pessoa como poeta põem em questão a identidade entre quem se sentem ser e aquele de que, exteriormente, e apenas exteriormente, se recordam de ter sido na infância. Sim, Pessoa ganhou consciência de que “o poeta é fingidor”; a própria aptidão de exprimir “a dor que deveras sente” só se torna possível graças a uma esmerada arte de fingimento, conforme assevera a quadra inicial da Autopsicografia. Surge então a questão ontológica de confrontar e hierarquizar estas duas realidades: a psíquica ou civil - e a literária; de facto, “ não se sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é mais real, ou real de verdade”. A questão nada tem, efectivamente, de ocioso: serve, no fundo, [...] de objecto a toda a obra de Pessoa. E condensa-se na “Autopsicografia” de um modo que lembra As seis personagens em busca de autor, de Pirandello3. Óscar Lopes in Literatura Portuguesa - III - Época Contemporânea, 1973
Luís Badosa, Fernando Pessoa (pormenor) 1997
1. Poetisa grega (séc. VII-VI a.C.). 2. Poeta inglês (1812-1889). 3. Dramaturgo e novelista italiano. A representação desta obra, em 1921, levou a que fosse o autor mais discutido e celebrado em Itália.
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Ceifeira...
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Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões p’ra cantar que a vida. Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente stá pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai!
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Leitura interactiva 1. Explique os efeitos produzidos, no sujeito poético, pelo canto da ceifeira. 2. Delineie, ao longo do poema, de que modos se opõem o pensar e o sentir.
Charles-François Daubigny, Colheita (pormenor) 1851
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Liberdade
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O rio corre, bem ou mal, Sem edição original. E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como tem tempo, não tem pressa... Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma. Quanto é melhor, quanto há bruma, Esperar por D. Sebastião, Quer venha ou não!
Leitura interactiva 1. Relacione os títulos com os conteúdos de cada um dos poemas. 2. Sintetize a ideia principal transmitida pelo sujeito poético em cada um dos
Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não o fazer! Ler é maçada, Estudar é nada. O sol doira Sem literatura.
Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando em vez de criar, seca. O mais do que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca...
Conselho
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Cerca de grandes muros quem te sonhas. Depois, onde é visível o jardim Através do portão de grade dada, Põe quantas flores são as mais risonhas, Para que te conheçam só assim. Onde ninguém o vir não ponhas nada. Faze canteiros como os que outros têm, Onde os olhares possam entrever O teu jardim como lho vais mostrar. Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém, Deixa as flores que vêm do chão crescer E deixa as ervas naturais medrar. Faze de ti um duplo ser guardado; E que ninguém, que veja e fite, possa Saber mais que um jardim de quem tu és Um jardim ostensivo e reservado, Por trás do qual a flor nativa roça A erva tão pobre que nem tu a vês...
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Ó sino da minha aldeia...
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Ó sino da minha aldeia, Dolente na tarde calma, Cada tua badalada Soa dentro da minh’alma.
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E é tão lento o teu soar, Tão como triste da vida, Que já a primeira pancada Tem o som de repetida. Por mais que me tanjas perto Quando passo triste e errante, És para mim como um sonho Soas-me sempre distante... A cada pancada tua, Vibrante no céu aberto, Sinto mais longe o passado, Sinto a saudade mais perto.
Leitura interactiva
Análise
1. Qual é a diferença de sentido que decorre do jogo entre o uso do termo “aldeia” e do facto de se referir à cidade de Lisboa? 2. A que é atribuída a nostalgia sentida no soar do sino? Como se
Este poema diz muito dos sentimentos do poeta relativamente à sua infância. Em 1913 (data em que o poema é escrito), Pessoa tem 25 anos, mas o que o perturba são ainda as memórias de uma infância feliz, se bem que muito breve, face aos problemas que o assolavam na sua adulta juventude, nomeadamente a instabilidade das emoções, a investigação de temas maiores do que ele próprio, a sua obra e principalmente a sua missão. O sino da sua aldeia é na verdade o sino da Igreja dos Mártires em Lisboa e a sua vida de aldeia é uma vida de idílio despreocupado,
manifesta ela?
134 | Fernando Pessoa - Ortónimo
em marcado contraste com a vida citadina que o esmaga e preocupa, quando já não mais uma criança, luta contra se tornar um adulto. Como em outros poemas, Pessoa mostra o cansaço, a abulia, a monotonia dos seus dias (“Que já a primeira pancada / Tem o som de repetida”), à semelhança da última fase do seu heterónimo Álvaro de Campos.
Gato que brincas na rua...
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Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tem instintos gerais E sentes só o que sentes. És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me triste e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.
Oh, o passado morto... Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena casa de campo e que nunca existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal, da quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses que passaram... tudo isto, que nunca passou de um sonho, está guardado em minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade, saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida real morta que fito, solene, no seu caixão. Bernardo Soares, Livro do Desassossego
Fernando Pessoa - Ortónimo | 135
Em síntese Ortónimo
Heterónimos Alberto Caeiro
Características temáticas/estéticas
- Poesia marcada por várias tendências: simbolismo de “Hora Absurda”, interseccionismo impressionista de “Chuva Oblíqua”, paulismo de “Impressões do Crepúsculo”. - Poesia do Cancioneiro, título que ele destinava ao conjunto da obra lírica subscrita com o seu nome. - Expressão musical e subtil do frio, do tédio e dos anseios da alma. - Nostalgia de um bem perdido.
-
Pastor por metáfora. Lírico espontâneo, pouco instruído. Bucolismo; Deambulismo. Estados de semiconsciência. Realismo ingénuo, indiferente ao social. Panteísmo sensual. Vive de impressões, sobretudo visuais. Recusa o pensamento, privilegiando as sensações.
- Gosto garrettiano pelo popular - mundo fantástico da infância, reminiscências de contos de fadas, cantigas de embalar e toadas. - Melancolia; Cepticismo; Egotismo exacerbado. - Sensação de tédio, angústia existencial. - Anti-sentimentalismo. - Vive pela inteligência, intuitiva ou discursiva, pela sensibilidade e pela imaginação. - Obsessão da análise.
Extasiado pela eterna novidade do mundo. Aceitação calma do mundo, tal como é. Recusa da metafísica; valorização da realidade. Para ele não há passado (recordar é atraiçoar a Natureza), nem futuro (o futuro é campo de miragens). Vive o presente, gozando cada impressão - como se fosse única e original (Epicurismo). -
- Epicurista e estoicista, à maneira de Horácio. - Defende a ataraxia (ausência de perturbação) e aponia (ausência de dor). - Sofre com as ameaças inelutáveis do fatum, da velhice e da morte. - Consciente da irreversibilidade do tempo. - Prefere o presente precário ao futuro desconhecido.
Ricardo Reis
- Formação literária clássica. - Monárquico, educado num colégio de jesuítas, latinista e semi-helenista. - Tom moralista: convida a aceitar calmamente a ordem das coisas. - Elogia a vida campestre. - Sente-se estrangeiro no mundo, incomunicável, recolhendo-se ao seu mundo interior. - Pagão.
Álvaro de Campos
- Engenheiro naval. uma estética baseada na ideia de força; de- Fase Decadentista - poema Opiário (nostallírio da Energia, do Progresso e da civilização industrial. gia de além, estilo confessional divagativo, embriaguez do ópio, cansaço da civilização.) - Fase Intimista/Abúlica - a partir de 1916 é - Fase Futurista/Sensacionista - poeta da vero poeta do abatimento, da atonia, da aridez interior, cosmopolita, decaído, melancólico, tigem, das sensações modernas, da volúpia da imaginação, da energia explosiva; influenirmão de Pessoa ortónimo, na dor de pensar ciado por Whitman e Marinetti; defensor de e nas saudades da infância.
194 | Fernando Pessoa - Síntese
Características formais/estilísticas
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Eufonia dos versos. Uso do símbolo. Desenho estrófico - quadra, quintilha. Métrica tradicional: verso de sete sílabas (redondilha maior). - Linguagem simples, íntima, mas nobre. - Ritmo aliciante, musicalidade.
Discípulo de Caeiro
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Simplicidade quase infantil do estilo. Séries paratácticas. Familiaridade da linguagem. Recurso a imagens e comparações. Vocabulário reduzido, predominantemente abstracto. - Versilibrismo. - Uso do nome em detrimento do adjectivo.
Mestre
- Preferência pela ode de tipo horaciano. - Estilo laborioso, grave, medido, ansioso de perfeição. - Vocabulário e sintaxe latinizantes, linguagem erudita. - Amante do exacto. - Uso frequente do imperativo e do gerúndio.
Discípulo de Caeiro
- Verso livre, estilo esfuziante, vertiginoso e torrencial. - Exclamações, interjeições, apóstrofes, enumerações, onomatopeias...
Discípulo de Caeiro
Fernando Pessoa - Síntese | 195
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Texto Dramático Felizmente Há Luar!, Luís de Sttau Monteiro Vida e Obra de Sttau Monteiro Felizmente Houve Sttau! Teatro Épico
Excertos Biografias de referência
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Vida e obra de Sttau Monteiro
Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro nasceu no dia 3 de Abril de 1926, em Lisboa. Filho do embaixador Armindo Monteiro, cedo se familiarizou com a vida em Londres, cidade onde o pai desempenhou funções diplomáticas, entre 1936 e 1943. O contacto com a vida londrina permitiu-lhe estar próximo de autores e estéticas literárias que influenciaram a sua personalidade, embora nunca tenha estado directamente ligado a nenhuma escola literária. Teve também a decepção do flagelo da II Guerra Mundial, o que contribuiu para que apurasse o sentido de justiça que perpassa a sua obra. Por imposição de Salazar, o pai foi demitido da função de embaixador, motivo que levou a que a família regressasse a Portugal, em 1943. O jovem Sttau ingressou no Colégio de Santo Tirso, não se adaptando à disciplina e matriculando-se posteriormente no Liceu Pedro Nunes. Licenciou-se em Direito, pela Universidade de Lisboa, em 1951, mas não exerceu a profissão de advogado durante muito tempo. O seu inconformismo perante a ausência de liberdade que se viveu durante o período Salazarista, o seu espírito lutador e insatisfeito e a sua atitude crítica perante o regime foram factores que levaram à sua prisão (em Aljube). Em 1961, foi preso pela PIDE, acusado de participação no golpe militar de Beja numa tentativa de revolta fracassada, que terá sido apoiada pelo General Humberto Delgado. Desenvolveu uma intensa actividade jornalística em jornais como O Diário de Lisboa, O Jornal e o Expresso e em revistas como Almanaque e A Mosca, suplemento de O Diário de Lisboa. O autor iniciou a sua carreira literária em 1960, com o romance Um Homem não Chora. Em 1961 publicou a peça Felizmente Há Luar!, galardoada com o “Grande Prémio de Teatro”, pela Associação Portuguesa de Escritores, no ano seguinte. Contudo, a censura, percebendo as intenções subjacentes ao texto, não permitiu a sua representação. A peça foi representada pela primeira vez em 1969, em França, onde existia uma grande comunidade de emigrantes e de exilados portugueses. Em Portugal, o texto só foi apresentado ao público no Teatro Nacional, numa encenação do próprio autor, em 1978, após a queda do regime ditatorial, continuando mais tarde a publicar livros e peças de teatro. Luís de Sttau Monteiro acaba por falecer no Hospital de S. Francisco Xavier, em Lisboa, no dia 23 de Julho de 1993.
198 | Felizmente Há Luar!, Luís de Sttau Monteiro - Contextos
Felizmente houve Sttau!
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Livro Um Homem não Chora (capa de Paulo Magalhães) Revista A Mosca Revista Almanaque (Abril de 1960)
O convívio que mantive com Luís de Sttau Monteiro permite-me falar dele como uma prodigiosa personagem de ficção, que ele próprio inventava e reinventava de cada vez que temperava episódios da sua e de outras vidas que fazia questão de contar. (...) Sttau Monteiro, que era um prodigioso comunicador, tinha uma capacidade única de tornar credíveis, através da veemente oralidade e da criativa gestualidade, as suas interpretações da verdade. Recordo-o sentado na secretária da redacção do suplemento humorístico A Mosca, de o Diário de Lisboa, que ele coordenava e de que eu era redactor, por volta de 1970, escrevendo de enfiada as suas “redacções da Guidinha”, uma menina inquiridora e irreverente que tinha o hábito de escrever sem pontuação, mesmo sem ter, com esse expediente, a intenção de criar um estilo que depois lhe assegurasse projecção nacional ou internacional. A Guidinha era um “alter ego” desse lisboeta profundamente trabalhador e ao mesmo tempo rebelde e indisciplinado que, sem nunca se assumir plenamente como escritor, deixou a marca do seu enorme e tantas vezes desgovernado talento nos seus romances. Era incomensurável a sua capacidade de engendrar enredos e personagens, ao ponto de se sentir habilitado a contar de fio a pavio obras que ainda nem sequer começara a escrever e que, em alguns casos, não chegou mesmo a escrever. Essa criatividade torrencial e desnorteante permitiu-lhe ser, também, um inspirado publicitário e um cronista de grande talento, indo a sua preferência para textos de gastronomia, arte de que era um imbatível cultor. (...) A sua maior, a sua imensa riqueza era ele próprio, com o seu modo de enfeitar, de ser amável e sedutor, de ser amigo, de ser conspirador de revoluções inventadas, de ser livre até ao limite da imaginação. Ainda falta muito para que lhe seja feita justiça plena, não como dramaturgo, não como ficcionista, embora seja credor dessa absoluta justiça, mas sim como figura total, multímoda e inimitável, como criador de um imaginário que não conhecia fronteiras nem limites. (...) Foi desse Sttau que eu fui amigo e de quem continuo a ser incondicional admirador, neste país que ele nunca quis ver transformado na feira cabisbaixa de que falava Alexandre O’Neill, porque ele era imenso como tudo com que sonhava. Felizmente houve Sttau! José Jorge Letria (texto inédito), Lisboa, Setembro de 2004
Felizmente Há Luar!, Luís de Sttau Monteiro - Contextos | 199
Acto I
Ao abrir o pano, a cena está às escuras, encontrando-se uma única personagem intensamente iluminada, ao centro e à frente do palco. Esta personagem está andrajosamente vestida.
Manuel
Que posso eu fazer? Sim: que posso eu fazer? A pergunta é acompanhada dum gesto que revela a impotência da personagem perante a problema em causa. Este gesto é francamente “representado”. O público tem de entender, logo de entrada, que tudo o que se vai passar no palco tem um significado preciso. Mais: que os gestos, as palavras e o cenário são apenas elementos duma linguagem a que tem de adaptar-se. Ao dizer isto, a personagem está quase de costas para os espectadores. Esta posição é deliberada. Pretende-se criar desde já, no público, a consciência de que ninguém, no decorrer desta peça, vai esboçar um gesto para o cativar ou para acamaradar com ele. (O réu não se senta ao lado dos juízes.)
Muda de tom à voz. Está a imitar, com sarcasmo, alguém que não sabe quem seja. Entende-se todavia, que a personagem se refere ao ambiente político da época.
Volta ao seu tom de voz habitual.
(Dá dois passos em direcção ao fundo do palco, detém-se, e continua)
Vê-se a gente livre dos franceses, e zás!, cai na mão dos ingleses! E agora? Se acabarmos com os Ingleses, ficamos na mão dos reis do Rossio... Entre os três o diabo que escolha... (Pausa) Deus todo-poderoso para a frente... Deus todo-poderoso para trás... Sua Majestade para a esquerda... Sua Majestade para a direita... (Pausa) E enquanto eles andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita, nós não passamos do mesmo sítio! Ilumina-se, subitamente, o fundo do palco. De pé e sentadas, várias figuras populares conversam. Algumas dormem estendidas no chão. Uma velha, sentada num caixote, cata piolhos a uma rapariga nova. (Avança e detém-se junto duma mulher ainda nova que dorme, no chão, coberta por uma saca)
200 | Felizmente Há Luar! (Acto I), Luís de Sttau Monteiro
A pergunta não é dirigida a ninguém.
A Rita dorme. A que horas chegou ela?
1.º Popular O gesto é lento, deliberadamente sarcástico.
(Levantando-se dum salto e macaqueando as maneiras de um fidalgo, finge tirar um relógio do bolso dum colete inexistente) Saiba, meu senhor, que a Senhora D. Rita chegou tarde. Eram quase cinco horas pelo meu relógio de ouro. (Finge levantar o relógio para ver o melhor. Desfaz o gesto com violência e continua em tom raivoso) Alguém aqui tem relógio? (Como ninguém responde, volta a dirigir-se a Manuel)
O tom é irónico.
Esqueceram-se dos relógios em casa...
Manuel
Está bem. Está bem. O primeiro popular volta a sentar-se.
Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído de tambores.
(Dá um safanão na rapariga, que se levanta com lentidão) São horas de nos irmos indo, mulher.
Leitura interactiva
Análise do Acto I
1. Interprete os gestos e as atitudes das personagens, inferindo do seu carácter e da sua condição social. 2. Reflicta sobre a importância do texto didascálico segundo a intenção do autor.
O Acto I, bem como o Acto II, é iniciado pelas falas de Manuel, o mais consciente dos populares. O 1º núcleo de personagens do povo – de que fazem parte Manuel, Rita, Antigo Soldado e vários outros populares sem nome – vê no General Gomes Freire de Andrade o seu herói, o único homem que será capaz de os libertar da opressão, da miséria e do terror em que vivem. O 2º núcleo de personagens do povo – constituído por Vicente, Andrade Corvo e Morais
Sarmento e os dois polícias – vai contribuir, através da denúncia, da traição e da força das armas, para a prisão de Gomes Freire de Andrade e para a sua ulterior execução. Neste primeiro acto é feita a apresentação da situação, mostrando-se o modo maquiavélico como o poder funciona, não olhando a meios para conseguir os seus objectivos.
Felizmente Há Luar! (Acto !), Luís de Sttau Monteiro| 201
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Texto Narrativo e Descritivo Memorial do Convento, José Saramago Levantado da ficção O discurso perante a Real Academia Sueca A Inquisição: um Estado dentro do Estado ‘Memorial do Convento’- José Saramago Excertos Categorias do texto narrativo Personagens
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Levantado da ficção
Nascido a 16 de Novembro de 1922 na Azinhaga, zona da Golegá,numa família de camponeses, José Saramago seguiu o percurso dos migrados pobre de então. Com menos de dois anos, acompanha os pais que vão trabalhar para a capital. “Saramago não era apelido de família, mas sim alcunha; indo o meu pai”, conta, “a declarar no registo civil o nascimento do filho, aconteceu que o empregado estava bêbado; por sua própria iniciativa, e sem que meu pai se apercebesse da fraude, acrescentou Saramago ao simples nome que eu devia levar, que era José de Sousa; desta maneira, graças a um desígnio dos fados, se preparou o nome com que assino.” Os livros na escola e os mais velhos no bairro sensibilizam-no desde muito cedo, abrindo-o ao mundo envolvente. Ganha conhecimentos vastos sobre os problemas que vê, aprende a ver. Torna-se num autodidacta impaciente, tudo aprendendo, diversificando, questionando, acrescentando. Sente que não cabe na vida que a vida lhe reserva. O universo é mais vasto do que o da cidade que conhece. “Embora eu não tenha sido contemplado com uma biblioteca à nascença, ler foi uma coisa que começou cedo em mim. O meu pai comprava, ou melhor, davam-lhe, o Diário de Notícias, que eu lia. o meu primeiro livro devo tê-lo tido aos 12 anos. (...) Depois, li muito na bilblioteca das Galveias, à noite, quando já estava a trabalhar”. Depois de ofícios avulsos (serralheiro, mecânico, administrativo) e de leituras diversificadas, entra para uma editora. Em 1947, publica o seu primeiro romance, Terra do Pecado, que renega - só meio século depois o assumirá. “O livro resulta do seguimento de leituras mal arrumadas e mal organizadas. Há quem diga que, apesar de tudo, não é assim tão mau e que está escorreitamente escrito.” O círculo dos jornais absorve-o, a seguir, como crítico, cronista e editorialista. Seara Nova, A Capital, Diário de Lisboa popularizam, antes do 25 de Abril, o seu nome, o seu estilo, o seu comprometimento político. Opositor do Estado Novo, dedica-se com grande intensidade às questões sociais, tornando-se numa figura de referência na Esquerda. Percorre o país dando conferências, animando encontros de reflexão política, participando em sessões de solidariedade cultural. Provavelmente Alegria (1970), Deste Mundo e do Outro (1971), A Bagagem do Viajante (1973) traduzem esse período de luta contra a censura e contra a PIDE. 228 | Memorial do Convento, José Saramago - Contextos
Manual de Pintura e Caligrafia será o seu primeiro destaque como romancista. “Um dia, na Biblioteca Nacional de Paris, li numa carta do embaixador da França em Lisboa, no tempo de D. João V, alusões a uma mulher que, em jejum, via através dos corpos. Isso deu-me a ideia para a Blimunda”. Aluga um quarto defronte do Convento de Mafra. “Para o tipo de literatura que faço, considero fundamental esse contacto, esse pôr a mão sobre os locais que vou tratar”. Meses depois, Memorial do Convento tornar-se-á um dos maiores fenómenos da nossa literatura. (...) A sua escrita (sem pontuação nem discurso directo regulares), o seu imaginário (dominado pelo realismo fantástico), as suas personagens (Blimunda e Madalena são apaixonantes), a sua ironia (quase sempre acerada), as suas histórias (irrecusáveis), os seus títulos (inesquecíveis), fizeram-se marcas individualizadoras do escritor. O Ano da Morte de Ricardo Reis (um Ricardo Reis que sobrevive, na ficção, a Pessoa), Jangada de Pedra, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Ensaio Sobre a Cegueira somam, multiplicam traduções, edições, galardões. “(...) O êxito e o não êxito são coisas que dependem em parte de mim, mas desconfio que dependem de muitas outras coisas em que não tenho acção. A escrita vem com o acto de escrever. Não tem nada a ver com inspiração. (...) Costumava dizer que escrevo porque almocei e janto porque já escrevi. (...) A primeira condição para escrever é sentar-me.”
a.
b. a. b.
Livro Ensaio sobre a Cegueira (1995) Livro História do Cerco de Lisboa (1989)
Vive com Pilar del Rio, na ilha de Lanzarote, terra natal da mulher. “As circunstâncias quiseram que viéssemos para cá. Não estava nada planeado. Decidimos e pronto. (...) A vida é diferente da que inevitavelmente se tem numa grande cidade”. Para a crónica do Ensaio da Visão “Não procuro os temas: fico tranquilamente à espera daquilo que venha. Escrever é dilatar o espaço da vida, é fazer recuar a morte.” Fernando Dacosta, Levantado da Ficção, in Visão, “Especial Nobel” (1999)
Memorial do Convento, José Saramago - Contextos | 229
Capítulo I
Era uma vez um rei
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Gravura de D. João V (por Gaspare Sennari, 1730)
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Quase tão grande como Deus é a Basílica de S. Pedro de Roma que el-rei está a levantar. É uma construção sem caboucos nem alicerces, assenta em tampo de mesa que não precisaria ser tão sólido para a carga que suporta, miniatura de basílica dispersa em pedaços de encaixar, segundo o antigo sistema de macho e fêmea, que, à mão reverente, vão sendo colhidos pelos quatro camaristas de serviço. [...] Agora só falta colocar a cúpula de Miguel Ângelo, aquele arrebatamento de pedra aqui em fingimento, que, por suas excessivas dimensões, está guardada em área à parte, e sendo esse o remate da construção lhe será dado diferente aparato, que é o de ajudarem todos ao rei, e com um ruído retumbante ajustam-se os ditos machos e fêmeas nos mútuos encaixes, e a obra fica pronta. Se o poderoso som, que ecoará por toda a capela, pode chegar, por salas e estensos corredores, ao quarto ou câmara onde a rainha espera, fique ela sabendo que seu marido vem aí. Que espere. Por enquanto, ainda el-rei está a preparar-se para a noite. Despiram-no os camaristas, vestiram-no com o trajo da função e do estilo, passadas as roupas de mão em mão tão reverentemente como relíquias de santas que tivessem trespassado donzelas, e isto se passa na presença de outros criados e pajens, este que abre o gavetão, aquele que afasta a cortina, um que levanta a luz, outro que lhe modera o brilho, dois que não se movem, dois que imitam estes, mais uns tantos que não se sabe o que fazem nem por que estão. Enfim, de tanto se esforçarem todos ficou preparado el-rei, um dos fidalgos rectifica a prega final, outro ajusta o cabeção bordado, já não tarde um minuto que D. João V se encaminhe ao quarto da rainha. O cântaro está à espera da fonte. Mas vem agora entrando D. Nuno da Cunha, que é o bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. [...] Retiram-se a uma parte D. João V e o inquisidor, e este diz, Aquele que além está é frei António de S. José, a quem falando-lhe eu sobre
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a tristeza de vossa majestade por lhe não dar filhos a rainha nossa senhora, pedi que encomendasse vossa majestade a Deus para que lhe desse sucessão, e ele me respondeu que vossa majestade terá filhos se quiser, e então perguntei-lhe que queria ele significar com tão obscuras palavras, porquanto é sabido que filhos quer vossa majestade ter, e ele respondeu-me, palavras enfim muito claras, que se vossa majestade prometesse levantar um convento na vila de Mafra, Deus lhe daria sucessão, e tendo declarado isto, calouse D. Nuno e fez um aceno ao arrábido. Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá. [...] Então D. João, o quinto do seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo, pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra, se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos.
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Resumo do Capítulo I
1. Caracterize o modo como o rei se faz anunciar à rainha. 2. Com base no excerto, reflicta sobre a influência da Igreja na época de D. João V.
Anúncio da ida de D. João V ao quarto da rainha; “preparativos reais”. Desejo de D. Maria Ana: satisfazer o desejo do rei de ter um herdeiro para o reino. Passatempo do rei: construção de um puzzle da Basílica de S. Pedro de Roma. Premonição de um franciscano: o rei terá um filho se erguer um convento franciscano em Mafra. Promessa do rei: mandar construir um con-
vento se a rainha lhe der um filho no prazo de um ano. Chegada do Rei ao quarto da rainha, decidido a ver cumprida a promessa feita a Frei António de S. José.
Memorial do Convento (Cap. I) José Saramago | 231
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Glossário Termos Linguísticos Mitos e Símbolos (Simbologias)
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