Letra Livre (e-book)

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LETRA LIVRE CONTEÚDO: CRÔNICAS E CONTOS

WWW.LIVREPAUTA.COM CAMPINA GRANDE - PB, 2012


O trabalho Letra Livre do Blog Livre Pauta foi licenciado com Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada. Com base no trabalho disponível em www.livrepauta.com. Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença em www.livrepauta.com. É permitida a reprodução total ou parcial desta edição do e-book Letra Livre; Os textos ou fragmentos de textos, quando reproduzidos, devem ter suas referências (autoria e lugar de origem da obra) devidamente citadas, conforme preconiza a legislação vigente no Brasil acerca dos direitos autorais (Lei 9.610/98); As opiniões emitidas nos textos são de responsabilidade exclusiva dos autores. É vedado o direito de qualquer cobrança pela reprodução desta edição. Capa: Flaw Mendes (flawmendes@gmail.com) www.flawmendes.blogspot.com Diagramação: Dupla Ilustrações Organizador: Sidney Andrade sidneyandrade23@hotmail.com Editores do Livre Pauta: Marcos Moraes marcosmoraesjornalista@gmail.com Samantha Pimentel samanthapimentel@hotmail.com

Letra Livre: conteúdo: crônicas e contos, Org. Sidney Andrade. Editores: Marcos Moraes e Samantha Pimentel. Campina Grande, 2012. 1. Literatura. 2. Literatura – Crônica. 3. Literatura Contos. 4. I. Título.

Blog: www.livrepauta.com Twitter: @livpauta Outros contatos: pautalivrecontato@gmail.com

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SOBRE OS AUTORES

Marcos Moraes Jornalista formado pela Universidade Estadual da Paraíba; Mestrando em Literatura e Interculturalidade (UEPB). Multiplicador do Teatro do Oprimido formado através do projeto Teatro do Oprimido de Ponto a Ponto, promovido pelo CTO-Rio com financiamento do Minc. E-mail: marcosmoraesjornalista@gmail.com Twitter: @marcosreimaster Samantha Pimentel Graduada em Comunicação Social (UEPB). Estudante de Arte e Mídia (UFCG). Mestranda em Literatura e Interculturalidade (UEPB). Jornalista, atriz, e ser humano. Multiplicadora do Teatro do Oprimido, método sistematizado por Augusto Boal. Gosta de observar. Escreve quando é preciso e/ou quando tem vontade. E-mail: samanthapimentel@hotmail.com Twitter: @smthpimentel Sidney Andrade Sidney Vicente de Andrade, mora em Campina Grande e é formado em Comunicação Social pela UEPB. Apaixonado por Literatura e, por isso, aspirante a escritor. Enche a blogosfera com crônicas e contos. E- mail : sidneyandrade23@hotmail.com Twitter: @sidneyandrade23 www.livrepauta.com

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Lígia Coeli Jornalista, graduada em Comunicação Social pela UEPB e aluna do mestrado em Literatura e Interculturalidade pela mesma instituição. Repórter do jornal Correio da Paraíba e do portal de notícias Grande Campina. Pesquisa e pratica o Jornalismo Gonzo. Twitter: @ligiacoeli E-mail: coelisilva.ligia@gmail.com William Dias Graduado em História e em Comunicação Social pela UEPB. Vez por outra experimenta o exercício da escrita. E-mail: willmar@bol.com.br

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APRESENTAÇÃO Nas próximas páginas, uma pequena mostra do que a liberdade é capaz. Uma geração inteira está fervilhando de ideias e impressões sobre o que vive, vê e sente. A internet, ao que parece, acabou mostrando-se como o nosso primeiro jeito para experimentar. Nem inimiga, nem aliada, a grande rede é mais ambiente do que ferramenta. Ou seja, escrever online não significa lançar mão da globalidade e da instantaneidade, mas sim se envolver nesse outro universo de significados, e nele se estabelecer. Na contramão do every man for himself, no entanto, divulgar o pensamento através de Literatura virtual é, agora, um exercício de coletividade. Como se a pós-modernidade estivesse nos dizendo que, para sermos verdadeiramente livres, a questão é mais estar junto do que ficar solto. Os textos a seguir são expressões despretensiosas que figuram na seção “Letra Livre” do Blog Cultural livrepauta.com, dedicada justamente à exercitar as potencialidades de quem muito lê e, por alguma razão (desconhecida ou não), achou que dentro de si havia algo tão forte, que merecia ganhar forma, traço e contorno nas curvas da palavra escrita. Talvez numa reprodução literária daquela sensação que temos quando apanhamos, a muito custo, um pássaro solto, só para libertá-lo depois, e achar que aquela liberdade, de algum modo, a partir de então, é também por nossa culpa. É claro que, com esse “agora todo mundo pode”, a www.livrepauta.com

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Literatura e seu conceito talvez entrem em crise. Mas não esqueçamos que é preciso ver de fora para enxergarmos a totalidade. A Literatura filha das mídias digitais está acontecendo hoje. Talvez só iremos entendê-la bem daqui a algum tempo. Eis a chave. Na era da pressa, o tempo ainda é (e sempre será) a melhor companhia para apreciar o que for bom e largar mão do que restar. Sidney Andrade

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LETRA LIVRE PARTE 1

Ele sempre sabe, Samantha Pimentel A vingança é um prato que se come frio, William Dias O menino albino, Sidney Andrade Aglomerado condutor de mundos, Samantha Pimentel O esquecido, Marcos Moraes PARTE 2 Do Dia Sem Globo e outras obviedades, Ligia Coeli O mundo quando você nasceu, Sidney Andrade Meu signo é pornô, Ligia Coeli Calçada de pedra, histórias de aço, Ligia Coeli O peso das asas, Sidney Andrade www.livrepauta.com

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PARTE 1 Quando nascemos, anjos tortos, desses bem ignorantes, arrancam as próprias asas e nos entrega; dizendo: Vai e te vira na vida, mermão. Então, de asas na mão, o que fazemos? Sem saber ao certo, deduzimos: é voar. Então imaginamos.

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Ele sempre sabe Samantha Pimentel Decidida, você estava de malas prontas, mas não tinha impulsos reais de sair por aquela porta. Dificilmente você sairia... Na realidade você esperava a coragem ir embora, esperava algo acontecer, qualquer coisa que pudesse justificar o fato de você continuar ali. Você não queria ir, no fundo o que mais queria era se jogar nos braços daquele homem, queria que ele a envolvesse em seu abraço da forma brusca e magnetizante que só ele sabia fazer, puxando-a para junto de si e olhando-a com aqueles olhos... Aqueles olhos, eles sim eram os culpados de tudo! Se não fossem aqueles olhos talvez você pudesse resistir, quem sabe já tivesse batido a porta atrás de si, já tivesse o deixado por motivos menores que este, já tivesse assumido as rédeas daquela relação turbulenta, já tivesse exigido as suas condições, afinal você não pode aceitar tudo... Ele tem que saber que existem limites, que você não vai aceitar mais isso, não pode aceitar! Seria demais se aceitasse. Dessa vez você tem que ir embora, precisa deixá-lo, afinal ele não pode exercer um magnetismo assim tão forte sobre você a ponto de te tornar incapaz de girar aquela maçaneta, sair e bater a porta, deixando aquilo tudo pra trás. Ou pode? Você não precisava se perguntar isso... Você sabe que ele pode. A quem quer enganar? Ele sempre pode, ele sempre sabe como te prender naquele magnetismo do www.livrepauta.com

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qual você nunca conseguiu sair. É impossível que consiga. Mas precisa, sabe que precisa sair dali, é questão de honra! Ele feriu seu amor-próprio, isso é demais. É até justificável aceitar todos os fatos passados, mas isso é demais pra você. Quem ele pensa que é? Você é uma mulher madura, dona de si, ele não tinha o direito de fazer isso. O que todo mundo vai pensar de você? Agora você precisa ser decidida! Você vai sair! Mas tem que sair logo antes que ele apareça por aquela porta, com aquele sorriso cínico de quem sabe muito bem que você não vai sair... aquele andar decidido que faz você tremer por dentro, que mexe com você de forma forte, intensa e as vezes até assustadora, e aquele olhar que parece que tem o poder de penetrar no fundo do seu ser, de revelar seus sentimentos mais íntimos... Deve ser por isso que ele consegue te domar dessa forma, ele sabe o que você sente! É como se você fosse transparente aos olhos dele. Ele sempre sabe... ele sabe que você não resiste àquele olhar. Pode resistir a tudo, mas àquele olhar... É impossível! Aquele cretino! Você tem que sair antes que seja tarde, antes que ele chegue com aqueles olhos... E você não tenha mais coragem. Na verdade você nunca teve coragem. Você teve raiva, raiva de saber que você não tem coragem de sair! Você está esperando que ele chegue há todo esse tempo, envolta em seus pensamentos. Você não vê a hora de ele chegar... Você não vê a hora de acabar em seus braços. Na verdade nada que ele fez importa... Você vai ficar, não importa o que aconteça. E você tem muita raiva de você por isso...

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você mesma não entende como alguém pode continuar aí, depois de tudo que aconteceu. Você sabe que já devia ter ido embora! Isso seria o que qualquer mulher no seu lugar faria, qualquer mulher que não tivesse conhecido aqueles olhos... Mas você sabe que não é tão fácil! Não é nada fácil! Você até pode fazer as malas e dizer pra você mesma que agora chega, que você vai embora, você até pode se enganar. Você até pode ir até a porta, mas você não tem coragem de abri-la, e o pior, você sabe que ele sabe disso... Ele sempre sabe... Como das outras vezes ele vai entrar por aquela porta e vai te encontrar no sofá, rodeada pelas malas que você já fez e refez incontáveis vezes durante o curto período em que estão juntos. Ele vai ficar um tempo ali, parado em frente à porta aberta, te olhando com aqueles olhos... Mas você tem que se fingir de forte, você não pode ceder assim tão fácil. De jeito nenhum! Você olha pra baixo sem dizer uma palavra, você não pode encarar aqueles olhos... Ele tem que saber que você está decidida a ir embora. Você se levanta, mas ainda sem encará-lo nos olhos, e sem dizer nada você pega as malas e vai em direção a porta. Mas a quem você quer enganar? Você não vai sair e ele sabe disso. Ele sabe que por dentro as batidas do seu coração se aceleram só de estar perto dele... Ele sabe que você não resiste a esse turbilhão de desejo e sentimentos que ele provoca em você... Ele sabe... Ele te espera na frente da porta, com aqueles olhos, aqueles braços que vão te envolver... Mas você é decidida, www.livrepauta.com

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vai resistir tentando se livrar deles, mas quando encarar aqueles olhos você não será capaz. Na verdade você nunca foi capaz! Você nem quer de verdade ser capaz. O que você queria mesmo era estar aí, nos braços dele, sempre foi isso que você quis. Foi por isso que você esperou até agora. É por isso que você espera sempre. Pra que fingir? Cretino! Ele é um cretino! Olha só esse sorriso cínico! Esses olhos... Ele sempre sabe. Você vai deixar de fingir que resiste, ele vai fechar a porta atrás dele, você vai deixar as malas lá, largadas na sala, elas serão desfeitas depois, agora você tem coisa melhor pra fazer. Passam um turbilhão de sensações pelo seu corpo, você não sabe explicar o que sente, só sabe que você precisa disso, seu corpo todo deseja isso. Você já esperou demais por isso, você esperou até agora por isso, você não consegue mais fingir que resiste a ele, você não vê a hora. Os olhos... Você finalmente vai se entregar àqueles olhos...

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A vingança é um prato que se come frio William Dias Danilo tinha apenas 16 anos quando se mudou com os pais para a cidade de Campina Grande. Não era um menino extrovertido, e por isso talvez não tenha feito muitos amigos. Também não tinha irmãos. Tinha a pele muito branca e a sua aparência franzina ficava ainda pior por causa do nariz com aquele osso protuberante que chamava a atenção por onde passava. Como se não fosse o bastante, ele ainda era portador de um tique que o fazia tremer todo o corpo, quem não o conhecia pensava que pudesse estar iniciando um ataque epilético. Seu andar era desengonçado, parecia que ia a qualquer momento se desmontar. Todas essas características físicas faziam dele um garoto solitário e motivo de piada por onde passava, principalmente na escola. Tinha tantos apelidos que poucas pessoas sabiam seu verdadeiro nome. Lingüiça saco de ossos, nariz de tucano, CDF, morto vivo, eram apenas algumas das suas alcunhas. Pelos professores, Danilo era visto como uma promessa, um aluno verdadeiramente especial, não pela sua aparência fora dos padrões estéticos de beleza, mas por seu alto nível intelectual. Um colecionador de notas 10. Toda aquela violência verbal dispensada contra o jovem Danilo nunca chegou ao conhecimento de seus pais e nem dos professores ou qualquer outro funcionário das escolas por onde passou. Ao contrário do que acontece com a www.livrepauta.com

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maioria dos que silenciam, que parecem não se importar com tantas agressões, no caso dele o silêncio significava a preparação para o momento em que se vingaria de todos os seus algozes. Sem que ninguém imaginasse, ele começou a arquitetar sua vingança há anos esperada. Quase toda semana ele chegava em casa com potes de um pó escuro, cor de chocolate e vidros com líquidos de cores variadas. Até uma barra de ferro ele comprou. Ainda durante as férias, foi internado em uma clínica. Os pais estavam preocupados, o comportamento de Danilo havia mudado, ele estava agitado e nem de longe parecia aquele menino calado que eles conheciam. No primeiro dia de aula após as férias, Danilo acordou mais cedo que de costume, havia chegado o grande dia. Preparou a mochila com alguns potes menores, que enchera na noite anterior com o pó, pôs também algumas garrafas cheias de um daqueles líquidos que vinha comprando. Todos já esperavam por sua chegada para começar com as piadas, quando um fato curioso chamou atenção dos garotos. Um novo aluno havia chegado. As meninas ficaram todas enlouquecidas, o que despertou o ciúme dos meninos. O rapaz tinha o corpo bronzeado e os músculos ficavam aparentes, já que ele vestia uma regata branca que contrastava com a pele dourada. Tinha o sorriso de comercial de creme dental, um nariz afilado que lhe dava um ar de autoconfiança. No intervalo, o bonitão sentou-se à mesa da cantina. Tinha em sua volta todos aqueles que um dia fo-

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ram seus agressores. E entre uma tremida e outra, abriu a mochila e tirou de lĂĄ um dos potes com seu complemento alimentar e a garrafa com o energĂŠtico que mais gostava.

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O menino albino Sidney Andrade Era uma vez, um menino albino que vivia num bairro muito humilde de Campina Grande. Sua mamãe, de escolaridade pouca, mas de muita dedicação, gostava de levar o pequeno pra passear de ônibus todos os domingos, quando os veículos estão menos cheios e a cidade é mais calma. A mãe do menino albino não sabia que o fato de ele ter a pele muito branca e precisar de óculos escuros tem esse nome. Para ela, seu filho era apenas claro, de olhos sensíveis. Também o menino albino não sabia que lhe atribuem uma raça diferente. Para ele, ele era igualzinho a qualquer outra criança. Tanto é que, ao subir no ônibus com seus primos, era o menino albino quem tomava a liderança: – Vamos todo mundo sentar lá na trás! Na frente não, é chato. Vamos sentar lá na trás! Só que o garoto também se entediava. Então, abandonou os primos lá na trás, e veio mais pra frente, pra sentar-se junto da mãe. É que a rota do ônibus passava por muitos lugares, e o pequeno precisava saber de tudo. Sua mamãe era a pessoa mais sabida que ele conhece. Afinal de contas, foi ela quem comprou seus óculos escuros, pois os olhos claros do menino doíam ao sol forte das tardes campinenses, e só alguém muito sagaz poderia ter essa ideia. Então, por suposto, ela seria sempre a melhor guia nas viagens.

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Nessa altura, eles passavam pelo Terminal de Integração e, aguardando o sinal esverdear-se, muito interessado, olhando para a paisagem afundada, as árvores lá em baixo, pessoas andando, algumas barraquinhas, o garoto perguntou: – Mãe, o que é isso? – Isso aí é o Açude Novo. Empenhadíssimo, o menino albino vasculhou cada canto, levantou a cabeça, pôs o rosto pra fora da janela, olhou pra esquerda e pra direita. Como não vendo o que esperava, voltou pro assento, procurou do outro lado do ônibus, através das janelas opostas. Será que ele estava perdendo algum detalhe? Meio angustiado: – Mas cadê o açude? Sua mãe não se abalou – o que ele, por sinal, já esperava. Bem tranquila, explicou: – Não, meu filho. Açude Novo é o nome. Não é porque o lugar é um açude. É assim que se chama, e ponto. Entendendo muito, o menino albino gritou pros primos que estavam lá na trás: – Ei, eu vi o Açude Novo! Enquanto isso, o ônibus seguia o caminho do domingo, e o pequeno curioso percebeu, com seus olhos agredidos, porém rápidos, a Igreja Matriz da cidade, muito parada na sua existência, passando ligeira pelas janelas. Como não havendo pausas no caminho ali em frente, e como quem precisasse demais de uma comprovação, o menino albino recorreu: – Eita, mãe, aquela era a Catedral? – Era, sim. www.livrepauta.com

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– Eu vi a Catedral, mãe! Muito orgulhoso de si ou de algo que recebera, numa satisfação de quem se dedicou anos em uma empreitada que finalmente compensasse, o menino albino encheu o ônibus, pra que seus primos ouvissem lá na trás. – EU VI A CATEDRAL, LÁ, LÁ, LÁ! EU VI A CATEDRAL, LÁ, LÁ, LÁ! Ei, eu vi a Catedral. Tu viu também? – sem esperar a resposta do primo, de novo: – EU VI A CATEDRAL, LÁ, LÁ, LÁ! O alvoroço não afogueou a mãe do menino albino. Pelo contrário, ela como que se sentia realizada com a felicidade simples dele. Porque talvez também fosse uma felicidade simples ser mãe de alguém que destoava, mas parecia pertencer tão bem e encaixar-se muito no lugar em que se encontrava. Só que ela não sabia disso, pelo menos não com essas palavras. O que ela sabia mesmo era que seu filho fazia muitas perguntas. E seu melhor prazer de mãe era respondê-las da maneira mais sensata que conseguisse. Como agora, que eles iam passando em frente ao Açude Velho, e o menino albino só podia se impressionar muito vendo aquilo: – Mãe, que lagoa grande! Que lagoa é essa? – Não é lagoa, meu filho. É o Açude Velho. E dessa vez havia açude no Açude Velho, o que, portanto, levou à única questão que se poderia fazer, seguindo uma linha de raciocínio minimamente lógica: – E quem encheu o Açude Velho? A mãe pensou direito, levou alguns segundos. Como não

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pudesse ser leviana, fez o que qualquer gente sensata faz, admitiu não ter certeza: – Ah, meu filho, eu não sei bem. Mas, ou foi Deus ou foi o esgoto. – O esgoto? – sem assombro, muito compenetrado. – Sim, essa água aí é muito suja. Quer dar um mergulho? – ela brincou porque, afinal, nem tudo precisava ser sério pra sempre. – Eu não. O menino albino fez um gesto de nojo. Depois recompôs-se, encheu os pulmões. Virando-se para os primos lá na trás, como quem há muito tempo sabia o seu lugar no mundo, como quem tem certeza do seu papel, decretou: – Ei! Não pode tomar banho no Açude Velho, tá bem?

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Aglomerado condutor de mundos Samantha Pimentel No terminal integrado de passageiros o ônibus continua parado enquanto as pessoas sobem as escadas da entrada traseira.Continuam entrando, enquanto o motorista ameaça ir embora de quando em quando, na esperança de que as pessoas percebam que não cabe mais nenhum corpo naquele espaço. Está lotado! Ignorando-o, as pessoas continuam a entrar, apertando-se como podem para não perder o horário do trabalho, da aula, da consulta médica, do encontro com os amigos ou com o namorado, ou simplesmente ir para casa... As opções são muitas, cada um que entra no ônibus traz consigo um propósito, um destino, um algo a fazer, idéias, crenças, medos, um mundo, o seu mundo de pensamentos. Afinal se cada cabeça é um mundo, no ônibus se encontram uma variedade deles. O ônibus fecha suas portas, com um pouco de dificuldade, porque alguns desses mundos, não encontrando mais espaço vago, se acomodaram de pé nas escadas do veículo. O condutor segue sua rota que, no trajeto terrestre, é igual à de todos que se encontram em seu interior. Mas no caminhar das ações e pensamentos há uma feira de variedades... Uma das pessoas aproveita o trajeto para conversar com uma amiga sobre a ex-namorada de seu atual namorado,

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que não tem noção e continua mandando recados no Facebook dele. – Ela acha o quê? Se eu encontrar com ela, eu já disse a ele... Eu quebro a cara daquela cachorra. – E ele não faz nada, não, é? Tu devia mandar ele excluir ela e pronto, menina sem noção... Do mesmo lado da condução, mas algumas cadeiras atrás, três rapazes, um em pé e dois sentados, que seguram o caderno do que está em pé, conversam sobre um novo game, usando expressões como “muito foda” e coisas do gênero. Ao lado deles, um homem segura no corrimão do ônibus, buscando se equilibrar a cada curva, e nas ruas retilíneas ele vai batendo e pé e balançando a cabeça ao som da trilha sonora que só ele escuta, através dos fones de ouvido que leva nas orelhas, ao mesmo tempo em que contempla a paisagem que se vê da janela, onde outros mundos exteriores podem ser vistos rapidamente a executar atividades diversas. Na parte da frente do ônibus, bem ao lado da cadeira do cobrador que cochila com o sacolejar do veículo e acorda a cada parada, duas senhoras conversam amigavelmente. – Oi querida! Há quanto tempo. Você está boa? – Estou ótima! E teu rapaz está gostando da vida de casado? Quando é que vai te dar um netinho? Durante o caminho, a cada parada do ônibus alguns mundos se vão e outros diferentes entram no veículo. Numa delas sobe um senhor com uma bíblia debaixo do braço que aproveita o ônibus agora mais vago e se posiciona de pé www.livrepauta.com

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no meio do corredor e começa a falar em boa oratória para todos os mundos que, imersos neles mesmos ou em outros mundos mais interessantes, não parecem dar muita atenção ao que ele diz, exceto por um ou outro que às vezes levanta a cabeça e parece escutá-lo. – Bom dia meus irmãos e minhas irmãs, eu estou aqui para dizer a vocês que o Senhor Jesus ama a todos os seus filhos, ama a cada um de nós. Não importa qual o problema que você esteja passando, confiei no poder de Deus que ele pode todas as coisas... Não contagiados pelo amor de Deus, mas pelos problemas que os seus próprios amores lhe causam, um casal no fundo do ônibus discute a relação, intercalando declarações de ciúmes com queixas de falta de atenção, que são expressas em bom som a todos os passageiros do veículo. Enquanto isso, mais ou menos no meio do ônibus, quase ao lado do homem com a bíblia, um menino chora por motivo ignorado, ao passo que sua mãe solta frases como “fique quieto”, em tom repreensivo e meio abafado. Uma senhora com um bebê no colo deixa o ônibus na parada seguinte e um senhor idoso de chapéu entra com dificuldade de subir as escadas. Uma porção de estudantes tratam de assuntos diversos que vão da prova de ontem a discussões sobre a prática pedagógica, o fim do mundo, a balada do fim de semana ou o novo vídeo que está “bombando” na internet. Uma mulher, alheia a tudo isto, lê concentrada um livro de capa amarela. Um homem passa pelo ônibus pedindo ajuda para com-

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prar remédios para a filha que tem uma doença grave e precisa de medicamentos que custam caro, alguns contribuem com dinheiro, outros com a atenção ao escutá-lo, outros com nada contribuem. Um homem cochila e derruba um capacete que segurava em seu colo, chamando por um momento a atenção de todos para si. Uma mulher sobe com várias sacolas de compras e derruba laranjas que rolam pelo ônibus, sendo detidas pelos pés de alguns passageiros. Uma criança chora. Um menino anda pelo ônibus oferecendo pastilhas de sabores diversos, que poucos compram. Alguns descem. Um homem joga pela janela do veículo o saquinho da pipoca que acabou de comer. Na parada seguinte, uma mulher compra milho cozido que lhe é vendido através da janela, num intercâmbio entre o mundo interior e o exterior. Uma senhora se irrita com o motorista que passou do ponto onde ela iria desembarcar, e todos os passageiros, ou melhor quase todos, solidários a sua situação falam quase em uníssono: – Vai descer, motorista! Ou “motô”, para os íntimos...

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O esquecido Marcos Moraes Terminei o jantar e, como fazia muito calor, resolvi dar um passeio pelo bairro onde moro. Pensei em visitar alguns amigos, que não via há algum tempo, embora morássemos a poucas casas de distância. Saí caminhando e uma sensação de estranhamento foi tomando conta de mim... Por algum motivo, não conseguia reconhecer aquele lugar... Resolvi parar e respirar um pouco, talvez aquela sensação fosse fruto do calor. Respirei fundo e voltei a caminhar, mas novamente aquela sensação tomou conta do meu corpo... Pra onde é mesmo que eu vou? Naquele momento, o mundo começou a girar e eu não conseguia ordenar os meus pensamentos, minha respiração ficou descontrolada e comecei a transpirar muito... Saí andando a passos trôpegos, como se estivesse bêbado... Encostei-me em uma parede e, de repente, como um flash, uma imagem se formou na minha cabeça. Eram crianças brincando de pega-pega e uma delas se parecia comigo... Sim, era eu! Eu já estive nesse lugar, mas que lugar é esse? Preciso ficar calmo! Já vi coisas desse tipo... Mentira! A quem estou querendo enganar? Coisas assim só acontecem em filmes ou em livros, mas preciso me acalmar! Pois o pânico só vai piorar a situação. Respirei fundo, encostei-me em um muro de uma casa e olhei pro céu em busca de ajuda. Lá de cima a lua cheia olhou para mim como um grande olho que espreita pela fe-

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chadura de uma porta ou por um buraco qualquer. Nesse momento, um vento frio bateu sobre o meu rosto e eu quase chorei de desespero... A tentativa de ficar calmo não estava funcionando. Como se não bastasse, a luz do poste que iluminava a rua começou a piscar e terminou apagando-se por completo, deixando a iluminação da rua por conta do “grande olho divino” que me espreitava lá do céu. Voltei a caminhar... Foi quando comecei a ouvir um canto estranho, meio desafinado, que vinha de uma casa a poucos metros dali. Caminhei até lá, era uma novena! Ao chegar em frente àquela casa e ver as senhoras rezando o terço e cantando os seus louvores, novamente um flash de imagem veio a minha cabeça, e eu tive a certeza de que já estivera ali e que conhecia aquelas pessoas. Algumas senhoras, ao perceberem que eu as olhava rezando, sorriram para mim e fizeram um gesto para que eu entrasse. Acenei que estava só de passagem e recomecei a caminhar. Já pensou se eu entro... e se realmente as conheço? Vão achar que estou louco, se descobrirem que não lembro sequer desse lugar. Mas será que não estou realmente louco? Enquanto questionava a minha sanidade, uma ideia me veio à cabeça: “E se eu fizesse o caminho de volta!?” Gritei a ideia tão alto que chamei a atenção de algumas pessoas que abriram a janela para ver o que estava acontecendo. Antes que alguém falasse comigo, comecei a pô-la em prática e iniciei a minha caminhada em sentido contrário, na esperança de que, em algum momento, chegaria ao lugar de onde saíra, seja lá onde isso for. www.livrepauta.com

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A euforia tomou conta do meu corpo e comecei a caminhar cada vez mais rápido. Caminhei... Caminhei... Mas aquilo não estava dando certo! Já fazia horas que eu estava caminhando e até então não conseguia lembrar nada. Novamente me bateu o desespero e comecei a chorar como um bebê abandonado. Mas alguma coisa estranha começou a tomar conta de mim. Repentinamente comecei a tomar consciência e lembrar onde eu estava. Nesse momento a rua pareceu até ficar mais iluminada e percebi que estava a poucos metros de casa... Saí em disparada como uma criança que vai ao encontro da mãe depois de ficar perdida no meio da multidão. Cheguei em casa, as luzes estavam apagadas. Puxei o trinco para ver se a porta estava aberta, mas claro que não estavam, pois já era bem tarde e minha mãe era bem preocupada com segurança. Procurei a minha chave, mas não consegui encontrá-la em meu bolso. Daí lembrei que sempre escondíamos uma chave extra em baixo de um vaso de plantas que ficava próximo da porta... Procurei, mas não estava lá. Esgotada essas possibilidades, o único jeito era bater e esperar que alguém acordasse e viesse abrir para mim. Foi o que fiz! Depois de alguns minutos, escuto passos e uma voz familiar me pergunta: “Quem é?” Sou eu mãe! “Eu quem?” Ora eu quem, sou eu, o... Por algum motivo não conseguia lembrar o meu nome.

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PARTE 2 Só que o tempo vai mostrando que voar não é bem imaginar. Ou não é apenas isso. Daí precisamos de muita queda pra descobrir que as asas dos anjos tortos, na verdade, nos foram dadas para termos com o que escrever. E deixamos de imaginar? Não, mas passamos a escrever a duras penas sobre o que vivemos com os pés no chão.

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Do Dia Sem Globo e outras obviedades Ligia Coeli Circulava então na internet, através do Twitter, mais uma mobilização revolucionária que seria esquecida nos próximos cinco minutos – “O Dia sem Globo”, marcado para acontecer no dia 25 de junho. Não parecia patético desligar a TV e fingir que a emissora Globo não existe? Depois da luta pela legalização da maconha, as famigeradas discussões em torno da derrubada do diploma dos jornalistas e a causa gay, essa seria, de longe, a manifestação mais óbvia que ocupava o juízo dos estudantes universitários. Como a cantiga que repete o mesmo refrão, o Leitmotiv1 presente nas discussões dos jovens era o mesmo: um tiro no pé, repetecos de situações que pareciam tornar-se mais visíveis à medida em que eles próprios conferiam valores à elas (talvez até mais do que elas merecem). Não se trata de calar, lógico – mas tentar puxar o freio de mão e estancar a insistência, oferecer um caminho novo, porque o erro já foi apontado: e apontá-lo duas vezes não fará diferença. Certas coisas não precisam de consentimento para existir – deixar que ocupem um lugar no mundo, sem, no entanto oferecer a elas o prestígio de serem únicas, é o que fará a diferença. Talvez seja esse o jeito, entre tantos mil outros

1 Termo alemão que designa o uso de um ou mais temas que se repetem sempre que se encena uma passagem da ópera relacionada a uma personagem ou a um assunto.

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mais bonitos, de manter o respeito sem precisar espernear pela diferença. Homens não precisam reafirmar que são, nem mulheres, nem as emissoras de TV, ou os Jornais salpicados de manchetes tensas em si mesmas, nem o pé de maconha singelo balançando sob o vento ou cultivado carinhosamente em um quintal – tudo isso existe, e tem nome, como tantas outras infinitas coisas no mundo. E daí? Era o mesmo que dizer que o céu existe: e existe mesmo, até que um pássaro voe diante dos nossos olhos e mude o foco da situação. Não adianta o desespero histérico em cutucar botões do controle remoto e driblar temporariamente uma situação – era preciso uma mosca na tela para simplesmente fazer com que levantássemos da cadeira e fôssemos até lá, cegar diante da luz incandescente saída do quadrado televisivo e perceber que às vezes o que importa não é o cenário, mas o incômodo de mosca inocente nos informando secretamente que não adiantava mudar de canal para tanger inseto.

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O mundo quando você nasceu Sidney Andrade Para o recém-chegado Pedro Luiz Campina Grande, 19 de setembro de 2011 Querido Pedrinho,

Você teve talvez a sorte de nascer em um tempo de começos. Estamos no primeiro ano da segunda década de um novíssimo milênio. Escrevo pra você estas palavras, a propósito, muito próximo do meu aniversário. Temos 25 anos de diferença entre nós, e pode-se dizer que, da minha infância para a sua, o mundo terá tornado-se outro mundo várias vezes. Por exemplo, eu disse que você nasceu em um ano de inícios, mas está na moda a gente querer adivinhar o fim dos tempos. Só em 2011, o mundo já acabou umas três vezes. Sempre tem uma profecia nova nos ameaçando. A mais grave é a que prevê o apocalipse para o finalzinho de 2012. Espero que não, do contrário, você teria tido muito pouco tempo pra experimentar o que a Terra oferece. Apesar de tudo, viver aqui ainda pode valer a pena. Como em um filme de catástrofe: se você está lendo esta mensagem, significa que sobrevivemos. Temos aprendido. Meio à força, é verdade – muitas catástrofes têm levado vidas em massa, terremotos, furacões... Todo mundo hoje sabe do Aquecimento Global, que é um jeito inteligente de www.livrepauta.com

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dizer que o mundo está se deteriorando. A culpa disso é muito nossa. A solução, também. Tanto é que, mesmo não sendo presente de forma unânime, o pensamento ecologicamente correto está em alta. Só acho que ainda não descobrimos muito bem como pôr em prática esse pensamento. Mas já é um começo, sim? Sua mamãe me pediu que eu escrevesse sobre como o mundo andava no ano em que você chegou. Anda rápido. Todo dia tem uma tecnologia nova. A vida está cada vez mais instantânea. Instantâneo é você poder fazer um macarrão de sabor muito ruim e pouco saudável em três minutos. Instantâneo é eu poder escrever pra você agora e todo o mundo, na mesma hora, poder ler pela internet. TODO O MUNDO MESMO. Em qualquer lugar do planeta, alguém pode ver essa mensagem, porque eu a publiquei em um blog. Aliás, a internet só cresce desde a década de 1990, porque ela foi o jeito mais eficiente e simples que o homem moderno encontrou para complicar a vida. E o homem de 2011 adora complicar a vida, pra ter a impressão de que está fazendo justamente o contrário. Dá pra entender, Pedrinho? Tentando solucionar problemas que não são urgentes, criamos aparelhos tão interessantes que chegamos a acreditar que realmente precisamos deles. Temos o GPS, aprendemos todos os comandos e a ler mapas muito confusos, que é pra evitar o constrangimento de pedir informações às pessoas na rua. Temos os celulares, juntando mil funções que temos de memorizar, só pra nos sentirmos acompanhados quando saímos de casa. E com tantas op-

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ções, nos conectamos muito mais com os aparelhos do que com as pessoas. Falando assim, parece que estou reclamando, né? Mas eu acho que tudo é natural. Quando eu era criança, meus pais reclamavam que eu jogava vídeo-game demais, que isso não podia ser saudável, ao contrário deles, que tiveram brinquedos de madeira e eram mais felizes. Eu nunca senti falta de um boneco de madeira, e tive uma infância muito boa com o que meu tempo me proporcionava. Espero que seja assim pra você também, Pedrinho. Curioso é ver como as coisas se transformam. Nos anos 1990, quando assistir TV ainda era mais hábito do que necessidade fictícia, os ídolos infantis eram pessoas adultas que se comportavam e vestiam-se como crianças – a Xuxa, a Angélica, a Eliana... Hoje, os grandes artistas venerados pela geração atual são crianças que querem parecer muito adultas. Eu cito algumas aqui só porque quero que você me diga que fim levaram. Por exemplo, mundialmente famoso, temos o Justin Bieber, moleque americano de 16 anos que já tem fama e fortuna de gente grande, só porque postou uns vídeos no Youtube. As meninas o desejam, os meninos o copiam. Mas as músicas dele têm letras tão adultas quanto as da Beyoncé – ser adulto, no entanto, não significa ser maduro. No Brasil, por sua vez, a criança mais famosa é a Maisa, que só levou fama de artista porque se vestiu de couro, com 4 anos de idade, e imitou a Ivete Sangalo – maior nome da música pop brasileira. Outra coisa que também se transformou foram os persowww.livrepauta.com

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nagens que fazem sucesso. Em 2011 tudo se inverte. Monstros, que antes eram criaturas horríveis e sanguinárias, tornaram-se cidadãos-modelo. A saga Crepúsculo (série de livros que virou série de filmes, o que é outra forte tendência hoje em dia também) apareceu pra mostrar que a imaginação humana não tem limites. A história romântica entre uma humana, um vampiro e um lobisomem fez com que a adolescência, que é mais precoce hoje do que quando eu era adolescente, se inspirasse em criaturas que antes eram evocadas para assustar as criancinhas mal educadas. Nessa mesma lógica, mas um pouco mais infantil – ou menos romântico – que esses monstros, apareceu o Harry Potter, outra série de livros que foi para o cinema e arrebatou as emoções não só das crianças. Trata-se de uma história na qual bruxaria é legal. Depois de séculos queimando nas fogueiras da inquisição, lá na Idade Média, as bruxas viraram protagonistas mundiais, em uma febre que começou em 1997 (quando o primeiro dos sete livros que contariam essa aventura enorme foi lançado) até 2011, poucos meses depois que você nasceu (quando o último filme chegou aos cinemas). Agora, ser chamado de Bruxa, Pedrinho, é elogio. No geral, eu até acho que essa inversão é um sinal de desenvolvimento, porque mostra um nível de tolerância ao que é diferente de nós que antes não existia muito. Mas vai saber, né... Parece-me que ser criança dura cada vez menos tempo. Ou isso, ou o conceito de infância é que se transforma.

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Não sei com quantos anos você vai ler esta mensagem, mas imagino que seu entendimento chegue bem antes do que chegou para a minha geração. O que é muito bonito. Prova que, apesar da aparente estupidez, a raça humana evolui, de fato. Falei muita coisa, mas o mundo é sempre maior do que se fala. O que eu gostaria mesmo é que você pudesse aproveitar o seu tempo da melhor maneira possível. Teu presente será meu futuro, e eu espero que, nessa época de começos, você consiga experimentar o que lhe for oferecido, sem ser acusado por um passado que, mesmo também sendo seu, não lhe pertence. Teu passado foi meu presente, eu que leve a culpa. Mas vivemos juntos, mesmo separados pelas gerações. Viver junto é o que ainda vale. Beijo do seu “Tio Leão”, Sidney Andrade.

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Meu signo é pornô Ligia Coeli Em geral, os cinemas são lugares vistosos. Muitas luzes, pôsteres e cores vibrantes são utilizados para sinalizar que ali estão guardados os filmes-lançamentos, as grandes produções e todas aquelas conversas enfadonhas de fotografias, diretores e detalhes técnicos que são discutidos por gente de óculos com armação pesada, que fala difícil, ou aqueles estudantes que insistem em se dizer cinéfilos, resumindo: um saco. Se for dia de promoção e entrada mais barata, um inferno. Poltronas lotadas, molhadas de refrigerantes e uns cinco ou seis casais se atracando no final da sala, aproveitando os R$ 4,00 pagos num motel improvisado. Mas existem cinemas diferentes, aliás, nos últimos dias nem vi se ainda funciona. Mas há alguns anos paquero com ele, que fica ali espremido por entre lojas do comércio da Rua João Pessoa: o Cine Sex Aquariu’s. Com sua fachada timidamente azul, tem cartazes de mulheres seminuas com suas genitálias cobertas por pequenas folhas, para evitar que olhares de crianças desavisadas se assustem. Os pais, do contrário, conhecem muy bien. Ao lado, uma pequena lanchonete onde se vende bebidas, lanches e os ingressos. Mas a curiosidade começa mesmo com o nome: Aquariu’s. O signo do zodíaco do proprietário (que é o mesmo do meu) deu nome ao único cinema pornô de Campina Grande. E a intenção de um estabelecimento

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como esse não é escandalizar, mas vender um serviço como outro qualquer, explica a gerente Maria Ferreira. Ela vê com muita naturalidade a idéia do pai, dono do cinema, em trazer esse tipo de entretenimento para a cidade. Eu tentei um bocado, mas poucas vezes vi as mãos tímidas entregando o dinheiro na bilheteria. E só se podem ver as mãos, porque a identidade dos clientes é preservada. Mas há aqueles clientes mais ousados, que não se importam com essas coisas. Durante o tempo que se passa lá, não são muitas as vezes que a porta se abre para dar passagem aos apreciadores da arte. Como explicar tanta timidez? “Muitos dizem que é uma cachorrada, uma palhaçada, mas são loucos para assistir.” Está aí uma frase bem convincente. Eu mesma queria ir, mas fico com as bochechas coradas ao imaginar minha reação ao sair de lá. Sabe vergonha que vem de dentro mesmo? Idiota. É idiota porque ao assistir um filme de comédia, o natural é rir das situações que se passam. Se for um filme de ação, é bom que percamos o fôlego e saiamos surdos, tamanha a quantidade de tiros disparados, sangue-Kill-Bill e coisa e tal. E nada como algumas lágrimas derramadas diante de um filme água-com-açúcar, com um casal que depois de muito sofrimento e penar, terminam juntos e felizes para sempre. E diante das inúmeras sensações que são causadas por um filme, porque não sentir prazer e excitação com uma história que tem justamente esse propósito? www.livrepauta.com

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Nas outras cidades em que o cinema pornô atua, as sessões recebem grande número de telespectadores, “estão sempre lotadas, e o público vê o cinema como um ponto de encontro”, diz Maria. Mas o Cine Aquariu’s sofreu um bocado com a demanda escassa de público, e não por falta de esforços: o horário de funcionamento acontece de segunda à sábado das 11 às 21h, e nos domingos das 13 às 19h. Para garantir a variedade, são exibidos quatro filmes durante a semana, dois nacionais e dois internacionais, todos de sexo explícito. Com preços populares (que variam de R$ 3 a R$ 5), o cinema conta com cabines reservadas (no caso de alguns parceiros que não conseguem segurar as pontas durante a exibição do filme), setenta e cinco cadeiras e salas voltadas para o público gay. O chato disso tudo é que cito tudo isso porque filha do dono do cinema me disse, e não porque eu vi – sabe aquela sensação de covardia? De quem não fez o serviço completo? Foi difícil pra o cinema sobreviver, o dono até pensou em promover shows de streeper, mas a timidez das moçoilas da cidade vem complicando a contratação de serviços desse tipo, e acaba impedindo as alternativas de diversificar a programação do Cine Aquariu’s. No final, talvez o que chame a atenção das pessoas ao passar frente ao Aquariu’s não seja unicamente os cartazes de mulheres com bundas protuberantes, ou com seios tesos de silicone à mostra. O que prende o nosso olhar mesmo é um cartaz pequenino, um pouco sujo e amassado, colado na parede da lanchonete: “Só quem conhece a beleza do perdão pode julgar seus

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semelhantes”. Uma frase do filósofo Sócrates foi colocada ali para aliviar a consciência de quem, por um motivo ou outro, culpa-se por sentir prazer.

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Calçada de pedra, histórias de aço Ligia Coeli É apenas um corredor abarrotado de gente que se esbarra, mas não se conhece. Gente que parece não sair dali nunca, gente que ganha dinheiro, que perde, que deve, empresta. O Calçadão da Cardoso Vieira, espremido por entre prédios e lojas do centro de Campina Grande, é considerado como um dos locais mais movimentados da região. É ali onde os principais burburinhos políticos e culturais nascem e se espalham por entre as bocas banguelas que lotam os bancos, que engraxam os sapatos, que bebericam café, que mastigam. A cidade até que se esforça para parecer grande até no nome, também é miúda tal qual aldeia, e basta dar uns passos por entre aquela gente que fica fácil descobrir porque o lugar ainda guarda as tradições das pequenas cidades do interior. Em um dos principais pontos de encontro da região, o cenário é de deixar qualquer um vesgo. Em meio aos bancos do Calçadão as clássicas reuniões de velhos amigos e os bate-papos nos bancos de praça ainda são comuns, e dividem espaço com o trabalho dos engraxates, sentados sobre as suas caixas de madeira abarrotadas de cera de sapato, ou com os vendedores de celulares, a maioria roubada perto dali. O aposentado Hiran Macedo Lyra, de 78 anos, diz que visita o calçadão diariamente, desde a época da adoles-

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cência: pra espantar o tédio, reencontrar amigos, recontar histórias que, quanto mais caducas, mais engraçadas ficam. Com uma cadeira dobrável em punho e vestindo um casaco de lã, ele passa parte do dia ali, enfeitando o que o pessoal chama de “o banco dos velhos”. Também ficam espalhados por ali os artistas de rua, que no pingo do meio-dia, mesmo com o sol rachando os quengos de quem passa, conseguem reunir pequenas multidões em torno de algum assunto curioso: seja um mágico, as ciganas ou algum grupo de estrangeiros que se juntam para vender CD’s ou desfilar con roupas curiosas. Palpiteiros de esporte também não faltam no local, e não por menos: é ali onde estão as lojas dos dois principais times da cidade: Treze e Campinense, uma encangada na outra, de tão rivais que são, permaneceram juntas até para escolher o lugar onde funcionaria a loja. A disputa dos campos é deslocada para aquele pequeno corredor abarrotado de gente. Em meio a um lanche e a barganha pelos objetos vendidos no local, eles fazem apostas, xingam o técnico, batem boca. Resultado: o torcedor que passa um dia fora do Calçadão corre o risco de ficar sem as noticias mais recentes do time. Por esse fuzuê todo, não é raro a presença de jornalistas no local, entre um café e outro, conversam com os comerciantes, observam, tentam achar inspirações nas conversas dos ambulantes, intelectuais e artistas espalhados pela praça improvisada. Essas pessoas se reúnem em uma espécie de consulta popular a céu aberto, e o que é dito lá facilmente repercute nos principais jornais da cidade, renwww.livrepauta.com

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de um furo, uma nota, ou qualquer outra coisa que apareça como inedita. “Aqui a notícia chega primeiro porque é onde acontece a maior concentração de pessoas em todo o centro da cidade”, essa é a explicação que o comerciante Wellington Barros do Nascimento, de 51 anos, encontrou, depois de passar mais de 25 trabalhando no local, observando as conversas do povo que passa pela sua barraca de leite e queijos – um lugar miúdo, mas bem aconchegante, com cheiro e cor de manteiga. Ele diz que o calçadão é a sala de visitas da cidade, discordo: pra mim aquilo é sala de televisão. Gosto de sentar no sofá de pedra e ver aquela gente passar, existindo em si mesmas e deixando um bocado delas em mim, sem vontade alguma de trocar de canal.

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O peso das asas Sidney Andrade Quando o colega Marcos Moraes, editor do Livre Pauta, me convidou para assinar uma coluna aqui no blog – convite que, aliás, aceitei lisonjeado e pelo qual agradeço-lhe aqui –, minha primeira preocupação foi com o que e como eu poderia escrever no meu mais novo espaço alheio. Ao que Marcos me respondeu que, para todos os efeitos, eu teria plena liberdade de postar aquilo que quisesse, da forma como achasse mais conveniente. Eu escrevo por inquietação. A primeira desta coluna, então, vai ser justamente por isso: e com tanta liberdade, como lidar? Os paraibanos têm ouvido ultimamente o quanto todo excesso molesta. Quem sempre se preocupara com a seca, agora também estremece de temor com as chuvas. Famílias perdendo seus lares, que desmancham-se nas enchentes. O que teria a liberdade a ver com a tragédia? Sempre achei que ser livre não se trata de poder ir à vontade, mas ter para onde voltar entre uma ida e outra. Também a natureza nos aprisiona, ou será que somos aprisionados por natureza? Assim como a enchente, outra violência tem chocado os paraibanos. Lembremos com reverência do professor Valderi, esquecido em um quarto qualquer do centro de Campina Grande. Também ser livre pressupõe uma ousadia, e esse professor, que não quis se submeter às algemas de um segredo sobre sua sexualidade, pagou com a vida o preço www.livrepauta.com

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de suas asas. Crime de ódio. Por que ainda nos sentimos tão ameaçados com a liberdade do outro? Falando nisso, houve ainda o caso do pai que perdeu a orelha por abraçar o filho, no interior do estado de São Paulo. Os agressores pensaram que se tratava de um casal gay. Esse texto, por mais que esteja a parecer, não é sobre homofobia – em outra ocasião, talvez. O caso é que os dois foram abordados por causa da aclamada legalização das uniões civis homoafetivas no Brasil, encarada pelo grupo violento como provocação. Por medo da diferença, feriram seus iguais. De novo a ameaça das asas alheias. De novo, crime de ódio. Os agressores não entendiam ainda que a liberdade de uns não precisa subjugar a liberdade de outros. O que me está impressionando é eu poder usar duas vezes no mesmo texto o termo “crime de ódio”. E mais impressionado ainda quando relaciono os crimes e o ódio aos seguintes números: Dois Mil e Onze; Terceiro Milênio; Segunda Década do Vigésimo Primeiro Século do Calendário Gregoriano. Quantos calendários mais o homem precisará inventar até entender que ser livre, ao invés de independência, significa codependência? De repente, quando eu estava já acabando esse texto, percebi uma curiosa coincidência. Eu, que prezo tanto pelas minhas asas, moro justamente num lugar chamado Liberdade. Engraçado como precisei ser alertado daquilo que nunca me esqueço, meu endereço, o bairro sempre na ponta da língua. Entro e saio da Liberdade sem pedir licença, quantas vezes fui capaz de apreciar isso? Querer voar é tão

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banal. Me encanto mesmo ao encontrar quem realmente saiba como e quando aterrissar.

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