A formosa pintura do mundo

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A FORMOSA PINTURA DO MUNDO


Título: A formosa pintura do mundo © Frederico Lourenço e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2005 ISBN 972-795-129-5


Frederico Lourenço

A formosa pintura do mundo ficções

Cotovia



Índice

A Medula da Alma Monte Santo Il Mangia Fagioli Os Signos Porto, Campo Alegre I Nada Menos que Voltaire Amor a Três Arcádia Precária Diário Romano Os Centauros Eça em São Carlos Porto, Campo Alegre II Actéon em Sintra O Retrato de Camões

p. 13 27 51 73 97 105 121 129 141 167 183 189 199 213



Por amor s’orna a terra d’ água e de verdura; às árvores dá folhas, cor às flores. Em doce paz, a guerra; a dureza, em brandura; e mil ódios converte em mil amores. Quantas vidas a dura morte desfaz, renova; a formosa pintura do mundo, amor a tem inteira e nova. ANTÓNIO FERREIRA, Castro



para Richard de Luchi



A Medula da Alma



Para poder encontrar-me a mim mesmo, tive primeiro de me perder. Tive de chegar ao pleno vazio de mim. Não foi um vazio imóvel, um compasso de espera na dança do ser: o meu vazio foi um rodopiar imparável de dinâmica negativa, de tal forma que desistir surgiu, por fim, como premente solução lógica para acabar de vez com o tormento daquele excesso giratório. Tinha dezanove anos. A minha vida, para todos os efeitos, mal começara. Mas antes mesmo de ter podido pisar-lhe o palco, parecia ter chegado já o momento de fechar o pano. A tragédia grega ensina que “o amor não deve atingir a própria medula da alma”. Mas na vida de alguns de nós, de preferência uma única e irrepetível vez, a medula da alma é atingida pelo amor. Felizes os que sobrevivem. O mais insólito no amor de caixão à cova é a percepção alterada que proporciona de nós mesmos. Se os primeiros dias são de felicidade com a qual nada há que se compare — os ouvidos a zunir, 15


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a sensação de que o coração no peito duplicou de tamanho, a visão deslumbrada a dotar tudo o que há de mais corriqueiro de indefiníveis segundos e terceiros sentidos —, chega depois o momento em que nos apercebemos do preço que tivemos de pagar. No lugar daquilo a que sempre chamara “eu”, estava agora a imagem reflectida de outro ser, em função do qual eu vivia. Já nada dizia respeito a mim — muito menos a mais ninguém da minha família ou relações (pois a todos eu teria traído ou rejeitado de bom grado, se tivesse tido de escolher entre eles e o objecto daquele amor). Passou a haver só uma realidade no mundo: ele. Esse “ele” não deixava, porém, de ser uma projecção fantasiosa da minha própria psicologia. Se assim não fosse — se o meu amor louco tivesse respeitado à pessoa em si —, decerto me teria apaixonado logo da primeira vez que nos conhecemos, num jantar em Cascais, no Verão de 1981, do qual guardo recordações de confrangente inépcia social da minha parte, pela simples razão de que as pessoas sentadas à mesa me eram, na altura, quase todas desconhecidas. Ora isto já teria representado abundante motivo de constrangimento, mesmo que não se tivesse vindo juntar outro facto, mais constrangedor ainda, o de os outros convivas se conhecerem bem entre si. Aliás, a julgar pelo teor das conversas, concluir-se-ia que pertenciam a famílias já habituadas a 16


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conviver e casar em círculo fechado muito antes de o rei as ter levado a passear até Alcácer-Quibir. Isto operava à partida um efeito de exclusão para quem não tinha possibilidade de seguir e comentar as coscuvilhices atinentes a outras pessoas do círculo, pessoas essas referidas (para confusão dos não iniciados) por meio de alcunhas de som cómico ou títulos nobiliárquicos à guisa de apelidos. Socialmente, nunca me senti tão fora de pé. Dessa vez pude olhar para ele com severa objectividade. Vi nele alguém que, com toda a franqueza, não me dizia nada. Se algum efeito produzia em mim, era o de me irritar. Ouvira falar dele, claro; conhecia o apelido, que era famoso. Parecia-me ter todos os defeitos da classe a que pertencia — sobretudo a capacidade de sugerir, sem precisar sequer de recorrer a coisas tão toscas como palavras ou gestos, a automática não-existência a que estava votado quem não tinha nascido no meio dele. Sendo eu próprio filho de pais socialmente ambiciosos, não foi aquele o meu primeiro contacto com altas fidalguias. Mas o tão apregoado charme, as maneiras principescas? O sorriso não era antipático; sobrepunha-se-lhe, contudo, um sorrateiro, mas persistente, desdém. Irritado e inseguro, dei por mim a fazer aquilo que, justamente, nunca deveria ter feito naquele contexto: armar-me. Os sorrisos dele eram agora abertamente sardónicos; o desdém, total. 17


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* O amigo que nos reuniu nesse jantar voltou a tentar aproximar-nos no ano seguinte. Desta vez, estranhas alterações de circunstâncias operaram um resultado diametralmente oposto. Em vez da confusão do ano anterior, potenciada por serem demasiadas pessoas sentadas à mesa, éramos agora só os três. Mas se isso constituiu motivo de alívio, é certo que três, por outro lado, é o número por excelência fracturante. E como sucede frequentemente quando se juntam três pessoas, sendo uma delas o elo entre as outras duas, as que se conhecem menos bem apercebem-se depressa de que a melhor maneira de quebrarem o gelo é virarem-se contra a terceira, sobretudo se ambas têm com a terceira confiança em grau suficiente para poderem pô-la na berlinda sem perigo de ofensa mortal. Encandeado por, nessa noite, não ser eu o destinatário do sarcasmo de G., mas antes receptor de ofuscantes olhares azuis incitando-me ao ataque concertado contra o nosso amigo comum, fui desfazendo (talvez demasiado rapidamente) os preconceitos que restavam do jantar do ano passado. Seria G. a mesma pessoa? Teria eu mudado assim tanto? Pois do mesmo modo como, sem precisar de dizer ou fazer nada, G. conseguira antes 18


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comunicar-me a irreversibilidade da minha exclusão do seu horizonte, agora, sem razão aparente, transmitia a mensagem contrária — lisonjeadora, claro, por tão inesperada. Experimentei de súbito um júbilo boçal ao sentir-me “incluído”; ao ver-me tratado por G. como se fôssemos amigos de longa data. Era como se os dados da história tivessem sido lançados de novo e eu tivesse agora aterrado, por milagre, do lado certo da divisória. Tal facto ter-me-á subido logo à cabeça, porque na mesa ao lado, naquele (hoje extinto) restaurante do Bairro Alto, estava um colega que, como eu, andava em Belas Artes. A meio do jantar, houve um momento em que me dei conta de já não olhar para ele como o vira e cumprimentara ao entrarmos no restaurante, quando G. e o nosso amigo comum me pareciam aureolados Dioscuros na inatingível outra margem da divisória social, oposta àquela onde tanto eu como esse meu colega estávamos condenados a situar-nos. Só que eu fora agraciado com uma suspensão moratória, ou mesmo revogação, da sentença! Estava a ser alvo dos sorrisos cúmplices e dos feixes cor de safira disparados pelos olhos de G. E tal era o servilismo da minha gratidão, que não podia senão ofertar todo o meu ser como desvanecido reflector daqueles olhos, “claros e serenos”, olhos azuis, tão azuis (não pude coibir-me de pensar) como o próprio sangue de G. Olhei, cheio 19


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de repugnância, para o meu colega. Dirigi interiormente palavras de perdão a G. pelos olhares sardónicos que eu lhe provocara no ano anterior. Se eu lhe surgira aos olhos como aquela pobre criatura agora surgia aos meus, como é que G. não havia de me ter desprezado? Foi o primeiro sintoma da doença que estava prestes a instalar-se, da qual eu levaria uma duração chocante de tempo a curar-me. A doença em si não tem um nome específico, mas como é costume chamar-se “snobe” a quem dela padece, vale a pena perceber que, contrariamente ao que afirma o Dicionário da Academia das Ciências, snobe não designa uma “pessoa que se vangloria exageradamente da sua posição social”, mas antes uma pessoa exageradamente atenta à posição social dos outros, sendo que o verdadeiro snobe — não queira escamotear-se a procedência do latim sine nobilitate —, por não ter posição social própria, compensa-se dessa carência arrogando-se as atitudes e maneiras da classe a que gostaria de ter pertencido. Tudo isto seria apenas um pouco patético, sem nada de especialmente censurável, se o snobismo não tivesse como correlato o desprezo militante do snobe por todos os que não nasceram na fidalguia das suas aspirações, com o requinte sobremaneira desprezível de nenhuma classe causar mais asco ao snobe do que a própria classe média donde ele mesmo proveio. 20


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O primeiro passo, portanto, para a perda de mim deu-se nesse jantar, sensivelmente a meio do bacalhau à brás. Admito que o nível geral de alcoolização tivesse ajudado. É que, por razões familiares, totalmente alheias à enologia, G. recusava-se a beber outro líquido que não uma marca famosa de vinho verde, o que instaurou cumplicidade redobrada entre ele e mim contra o nosso amigo comum (que queria beber cerveja), pois raras são as pessoas que, sem ascendência nortenha ou outro motivo de força maior, gostam genuinamente de vinho verde. No meu caso, a predilecção por vinho verde branco advinha da paixão adolescente pelo herói da Ilustre Casa de Ramires, que, como os leitores de Eça sabem, recusava qualquer outra bebida; paixão literária essa, além do mais, que coincidira com outra, platónica e não correspondida, por um jovem amigo dos meus pais, que me parecia a reencarnação, em finais dos anos 70, do Gonçalo Mendes Ramires da Ilustre Casa — amigo esse a quem nem sequer faltava o solar minhoto. G., por seu lado, contemplado comparativamente, parecia-me agora suprir os defeitos de caracterização física que tinham impedido esse meu primeiro Gonçalo de ser um Mendes Ramires plenamente queirosiano. Por um lado, só a G. era possível aplicar sem reserva os atributos “esbelto e loiro”, 21


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aplicados por Eça ao seu Gonçalo; por outro, pesquisas de teor genealógico empreendidas mais tarde sobre a família e apelido de G. revelaram que, além de ser descendente da rainha escocesa Maria Stuart e do próprio Rei Sol, também a sua família, não menos que os Mendes Ramires, podia “traçar a sua ascendência até aos vagos senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do Borguinhão”. Fidalguia portuguesa, antes de haver Portugal. O apelo romântico, para o queirosiano que eu era, só pôde mesmo ser irresistível. E digo isto sem querer perdoar-me a mim próprio, porque perdão é coisa que não mereço. * Quando saímos do restaurante, o diapasão anímico da nossa pequena tróica subira na contagem dos megahertz emocionais. Gonçalo — como passarei doravante a referir-me a G., não por ser o seu nome, mas por designar o que eu via nele — mostrava na maneira de se me dirigir que não fora só eu que ficara com o coração a borboletear. O amigo comum estava a perceber tudo e, sob a sua (quase) inexpugnável carapaça de charme, não deixava de patentear visível mal-estar. 22


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Eu e Gonçalo, cada um à sua maneira, fôramos até àquela noite os seus grandes amigos. E, se é natural desejarmos que os nossos grandes amigos se tornem, entre eles, grandes amigos, mais natural ainda é querermos impedir que essa amizade adquira asas próprias em pouco mais de uma hora e se transforme logo ali no amor que todos procuram e poucos encontram. Gonçalo tinha vinte e nove anos na altura: por tudo o que eu já ouvira dizer (e muitas histórias se contavam sobre ele), a sua experiência no tocante às “rosas de Vénus” deixava a perder de vista a minha dieta frugal de paixões não correspondidas, neurótica dieta essa a que, aos dezanove anos de idade, eu podia apenas juntar deslavadas experiências de amor carnal, para a contagem das quais os dedos de uma mão se teriam revelado demasiado numerosos. Além de que não se podia dizer, de forma alguma, que as minhas experiências sexuais anteriores me tivessem ajudado a conquistar um mínimo de desenvoltura ou à vontade no plano erótico, pois a ejaculação como desfecho lógico do prazer manifestara-se, em todas elas, de modo estritamente unilateral, dada a minha paralisante incapacidade, por timidez ou inibição, de me deixar ir até ao orgasmo na companhia de outrem. Seria desta vez que eu ultrapassaria finalmente essa barreira, esse derradeiro Rubicão que dá acesso à idade adulta? 23


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Mas o meu problema naquele momento era que estávamos prestes a despedir-nos. E eu estava desejoso de tomar alguma “iniciativa”. Só que a minha inexperiência causava-me aquele engulho torturante de não saber por onde começar. Lá fomos atravessando o Príncipe Real, cambaleando, aos encontrões. Gonçalo e eu estávamos esfuziantes como só os que estão bêbedos de vinho verde podem estar: três garrafas e mais meia — para três comensais! Ríamo-nos como bestas alarves, por tudo e por nada. O nosso amigo, pelo contrário, mal abria a boca, depois de eu ter sido chamado a dirimir uma contenda acrimoniosa entre eles os dois, sobre se era ou não ridículo que Gonçalo estivesse ainda a tirar a carta com aquela idade. Dei razão a Gonçalo, claro. Depois olhei para o nosso amigo e vi um laivo de ódio, que me perturbou, no seu olhar. Entretanto, a distância física entre mim e Gonçalo ia-se reduzindo a quase nada: os braços estavam sempre a tocar-se; surgiam do nada absurdos pretextos para darmos muitas pancadas nas costas um do outro. Finalmente, o braço dele aterrou no meu ombro e ouvi a sua voz a murmurar, de boca encostada ao meu ouvido, que o melhor era abandonarmos ali o nosso amigo no meio da Rua da Escola Politécnica e apanharmos um táxi para Cascais. Habituado, como eu estava, ao platonismo das minhas paixões anteriores, declinei o convite, apesar 24


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de estar em atordoado êxtase por ter sido finalmente alvo de bem-vindo assédio da parte de alguém que me agradava. Tremiam-me as mãos, as pernas, o corpo todo; os dentes tiritavam-me na boca. O coração martelava como nunca até aí acontecera e senti movimentações alvoroçadas dentro das calças. No entanto, apesar da dimensão já incontrolável dos meus sentimentos, alguma intuição primária me dizia que, se eu consentisse em que começássemos directamente pelo fim, intrometer-se-ia logo ali a transitoriedade de um engate, correndo-se assim o risco de tudo acabar antes mesmo de ter começado. Eu estava bêbedo de amor, megalómano de amor, e colocara a fasquia o mais alto que era capaz de sonhar. Tudo ou nada. Mas após ter-me metido sozinho no táxi para casa, arrependi-me amargamente da minha decisão. Estúpido, estúpido, estúpido. Recusara ir para a cama com o Gonçalo Mendes Ramires?! E se fora oportunidade única? Jamais perdoaria a mim mesmo a minha própria tolice.

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