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HERO E LEANDRO leituras de um mito

OVÍDIO, MUSEU MARLOWE, BEN JONSON

seguidos de uma

Antologia de Autores de Língua Portuguesa

Coordenação de Maria Cristina Pimentel

Cotovia


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Título: Hero e Leandro, leituras de um mito © dos Autores e de Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2012 ISBN 978-972-795-333-2


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Índice Introdução geral

p. 9

Introdução a Ovídio, de Marina da Costa Castanho Ovídio, Heróides (18 e 19), trad. do latim de Marina da Costa Castanho Introdução a Museu, de Madalena Simões Museu, Hero e Leandro, trad. do grego de Madalena Simões Introdução a Marlowe e Ben Jonson, de Rui Carvalho Homem Marlowe, Hero e Leandro, trad. do inglês de Rui Carvalho Homem Ben Jonson, A Feira de São Bartolomeu (excertos), trad. do inglês de Rui Carvalho Homem

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Antologia de Autores Portugueses ou de Língua Portuguesa

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A la muerte de Leandro, Francisco Sá de Miranda Leandro en amoroso fuego ardía, Jorge de Montemayor Quatro epigramas ‘De Leandro a Hero’, Pêro de Andrade Caminha Soneto 61, Luís de Camões Soneto 151, Luís de Camões ABC em Motos, Luís de Camões Soneto LXXXVII, Diogo Bernardes Soltava a noite escura, Manuel Quintano de Vasconcelos Romance a la muerte de Leandro, Francisco Rodrigues Lobo Otro, al mismo, Francisco Rodrigues Lobo Lo notorio de Leandro e Ero, Manuel de Faria e Sousa Leandro y Hero, fábula entretenida, D. Francisco Manuel de Melo Inundando o Mondego, Jerónimo Baía Era uma vez um lugar, Frei Lucas de Santa Catarina Soneto XX, António Dinis da Cruz e Silva Lira XIII, Parte I, Tomás António Gonzaga À morte de Leandro (três sonetos), Elpino Duriense À morte de Leandro, Marquesa de Alorna Francélio a Marília, Carta 3.ª, Francisco Joaquim Bingre Cantata “À morte de Leandro e Hero”, Bocage Excerto do conto “Promessa Cumprida”, Camilo Castelo Branco Leandro e Hero, Laurindo Rabêlo Leandro, e Hero, Maria Adelaide Fernandes Prata Bibliografia

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Introdução Geral O mito de Hero e Leandro em Ovídio, Museu, Marlowe e Jonson

O mito de Hero e Leandro é uma história de amor e de morte. Os protagonistas são Hero, sacerdotisa de Afrodite (Vénus para os Romanos), que habitava numa torre em Sesto, e Leandro, um jovem de grande beleza, natural de Abido. Habitavam em margens opostas do Helesponto (hoje, estreito de Dardanelos) e o seu amor não colhia a aprovação dos pais dela, nem a sua condição de consagrada ao culto lhe permitia o casamento. Mas, como o amor encontra sempre uma via para unir os que se querem, todas as noites Leandro atravessava a nado o estreito para estar com a amada. Na travessia, era guiado por uma luz que Hero acendia no alto da torre em que morava. Numa noite de tempestade, porém, a luz apagou-se e ele não encontrou o caminho: as vagas arrojaram-no de encontro aos rochedos. No dia seguinte, quando o mar devolveu o corpo, Hero, incapaz de sobreviver sem o amado, precipitou-se do alto do penhasco onde à noite o esperava. Ao longo dos séculos, este mito, na sua beleza trágica, tem seduzido inúmeros escritores, músicos e artistas plásticos, provando que o binómio eros / thanatos (amor / mors) toca as emoções e traduz o que há de mais autêntico, de mais intrínseco na condição humana. A presente publicação pretende dar a conhecer, em tradução, a história de Hero e Leandro tal como a contaram três autores de épocas e línguas bem distintas — Ovídio (em latim, no século I a.C.), Museu (em grego, na transição do século V para o século VI da nossa era), e Christopher Marlowe (em inglês, no século XVI). A estes três autores junta-se um quarto, Ben Jonson, que documenta, em tom paródico, uma outra forma de ver o mito, modo jocoso que teve também, ao longo dos séculos, uma tradição significativa. Consideramos que estas quatro versões representam momentos fundamentais da história da criação e pervivência do


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INTRODUÇÃO GERAL

mito e que, nessa medida, permitem ler, com outros olhos, as múltiplas reescritas ou actualizações que ele tem conhecido na literatura, na música, na pintura. A nossa escolha restringiu-se ao campo da literatura. Mas poderá e deverá abrir caminho para outros olhares, outras escutas, que a leitura destes quatro textos ilumine. Pintores como Axel Anderson (Axel Acke), Bernard Picart, David Teniers, o Jovem, Domenico Feti, Duncan Grant, Edward Coley Burne-Jones, Evelyn de Morgan, Ferdinand Keller, Francis Clein, Frederic Leighton, Jan van den Hoecke, Jean-Joseph Taillasson, Nicholas Regnier, Rubens, Theodor von Holst, Théodore Chasseriau, J. M. W. Turner, William Etty, ou, já em finais do século XX, o americano Cy Twombly1, escultores como Anna M. Valentien, Carl Steinehauser, Edward G. Bramwell, Henri Chapu, Henry Hugh Armstead, Margaret M. Gile, William Henry Rinehart ou William Wetmore dão-nos o seu olhar sobre o mito e fazem-nos ver que motivos do episódio, que sentimentos e emoções do par de jovens amantes mais os moveram. O mesmo se diga de músicos como Giovani Bottesini, Handel, Liszt, Luigi Mancinelli, Schumann, ou, num registo contemporâneo, a grega Evanthia Reboutsika ou, ainda, Adam Guettel que, no ciclo de canções de um musical estreado em 19992, na sua maioria de ressonâncias clássicas, dedicou um dos momentos a Hero and Leander, com palavras em que respira o amor, ainda e sempre mais forte do que a morte. No campo da literatura, todavia, também a nossa escolha pretende ir mais longe do que a leitura dos quatro autores traduzidos. Um longo e fértil diálogo se estabeleceu, da Antiguidade clássica aos nossos dias3, entre os poetas e prosadores das mais variadas

1 Em 1984-5 pintou quatro telas a que deu o nome de Hero and Leander. A painting in four parts. 2 O concerto inicial intitulou-se Saturn Returns. Publicado em CD em 2005 com o nome de Myths and Hymns, conheceu depois, com esse nome, grande sucesso em Londres, em 2007. Há poucos meses (Fevereiro de 2012), foi de novo apresentado em Londres. 3 Documente a pertinência desta observação o romance Unutrašnja strana vetra ili roman o Heri i Leandru [O lado íntimo do vento ou O romance de Hero e Leandro], do sérvio Milorad Pavic, publicado em 1991, o da alemã Irmtraud Morgner, Das heroische Testament. Ein Roman in Fragmenten [O testamento heróico. Romance em fragmentos], editado postumamente, em 1998, ou, ainda, o soneto ‘Leandro’, de Ernesto Filardi, incluído na colectânea Penúltimo momento (Madrid, 2005).


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literaturas que deram voz aos amantes de Abido e Sesto. Trabalho impossível seria o nosso se quiséssemos documentar todas as versões literárias do mito e, mais ainda, se pretendêssemos discernir a intertextualidade que os une. Cientes, porém, de que o mito continua a seduzir os leitores de hoje4, entendemos frutuoso fazer uma antologia de textos de autores portugueses ou de língua portuguesa, que, do século XVI até ao séc. XX, se inspiraram no mito, adoptando as mais variadas formas e géneros literários, escolhendo o registo sério ou o paródico, mas por isso mesmo documentando a perenidade do mito. Não pretendemos, de forma alguma, ser exaustivos nessa colectânea. São textos que conhecemos ou nos deram a conhecer5, tendo nós a consciência de que outros poderão vir juntar-se-lhes na sequência de outras leituras. A tarefa a que metemos ombros foi feita em estreita colaboração de quatro estudiosos do mito. Se as áreas específicas de formação são diversas, une-nos o amor pela literatura, pela mitologia, pelos clássicos de todas as épocas. Possa o leitor apreciar esta viagem, não arriscada como a de Leandro, mas serena e agradada, na descoberta destes textos em que o destino, o amor e a morte são, como em todos os tempos e em todos os corações, as forças que nos guiam e umas vezes nos perdem, outras vezes nos redimem. MARINA DA COSTA CASTANHO MADALENA SIMÕES RUI CARVALHO HOMEM MARIA CRISTINA PIMENTEL

4 E a crítica especializada. Chamamos a atenção para dois estudos de relevo, complementares e recentes, de José Cândido Oliveira Martins (vide Bibliografia, no anexo), sobre o mito de Hero e Leandro, com especial incidência na literatura em língua portuguesa, mas indo bem mais além na análise e referência a outras literaturas e outras artes. Aí colherá o leitor informação que aqui não cabe fornecer. 5 Um agradecimento muito especial é devido ao Mestre Ricardo Nobre, não apenas por nos ter dado a conhecer o poema de Maria Adelaide Fernandes Prata, mas também pela preciosa ajuda na verificação dos textos nas edições de referência.


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Ovídio Heróides (18 e 19)


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MARINA DA COSTA CASTANHO frequentou a licenciatura e o mestrado em Estudos Clássicos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde apresentou a dissertação Desencontros no Amor: Hero e Leandro nas Heróides de Ovídio. É membro do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, colabora no projecto Santos e Milagres na Idade Média Portuguesa e é bolseira do projecto Corpus Lusitanorum De Pace.


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Introdução de MARINA DA COSTA CASTANHO

Públio Ovídio Nasão, ou “Sulmonense Ovídio”, como o designa Luís de Camões numa das suas elegias, nasceu em Sulmo (a actual Sulmona), em 20 de Março de 43 a. C. e faleceu por volta de 17 d.C. em Tomos (actual Constanza, na Roménia), uma cidade longínqua situada nas margens do Mar Negro, para onde tinha sido banido, no ano 8, por decreto de Augusto, no momento em que gozava da maior fama. Ainda hoje constituem matéria de discussão as razões que levaram a um tão intempestivo desfavor que, em sentença fulminante, o afastou de Roma, da família, dos amigos e dos ambientes requintados que frequentava e onde era, entre todos os poetas, talvez o mais apreciado de então. Ovídio deixou um acervo literário de relevo. Embora algumas composições não tenham sobrevivido à passagem do tempo, delas chegaram até nós, todavia, uma ou outra memorável citação (recordemos o caso da tragédia Medeia e da tradução integral dos Fenómenos de Arato). Muitas outras houve, no entanto, que se conservaram, algumas das quais sobrevivendo à censura a que foram votadas por Augusto, que as mandou banir das bibliotecas públicas. Assim perduraram obras que, ao longo dos tempos, vêm cativando os leitores e têm exercido notável influência em muitos escritores e artistas plásticos. Referimo-nos a obras tão imortais como os Amores, a Arte de Amar, os Remédios do Amor, as Metamorfoses, os Fastos, os Tristia (Tristezas), as Epístolas do Ponto e, indiscutivelmente, as Heróides1. Os dois textos que apresentamos pertencem a esta última obra, isto é, a uma colectânea de epístolas, em dísticos elegíacos,

1 O leitor dispõe de boas traduções, recentes, de algumas destas obras: Amores e Arte de Amar (ambas de Carlos Ascenso André, ed. Cotovia); Metamorfoses (duas traduções, uma de Paulo Farmhouse Alberto, Cotovia; outra de Domingos Lucas Dias, Vega).


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HERÓIDES

de figuras da mitologia e da literatura greco-romana, a qual se divide em duas partes. A primeira consiste em quinze cartas escritas por mulheres aos maridos ou amantes ausentes2; a segunda é composta por três pares de cartas que permitem explorar, de forma mais intensa, os conflitos emocionais vividos quer por personagens do sexo masculino quer por figuras do sexo feminino3. A correspondência trocada entre Hero e Leandro situa-se, precisamente, nesta última secção da colectânea. Ovídio parte do momento em que o Helesponto não se encontra em condições favoráveis para se atravessar e deixa as próprias personagens relatarem uma à outra, por carta, o que sentem perante esta situação. Assim, Leandro informa Hero das razões pelas quais não pode cruzar o estreito, manifesta as suas inquietações, recorda com saudade a primeira travessia e a primeira noite que passaram juntos e promete-lhe, numa primeira fase, atravessar o mar, mesmo com mau tempo; mas, no final, afirma que só o fará quando a tempestade lho permitir. Entretanto, aconselha a jovem a manter a luz de modo que ele a possa ver. A epístola, substituta do amante, cumpre a sua função de ultrapassar todas as barreiras, para apaziguar o desassossego causado pela demora. Por sua vez, a resposta de Hero não deixa de exprimir o tratamento tipicamente ovidiano da psicologia feminina, com as suas dúvidas, receios e mudanças súbitas de opinião, atitudes e sentimentos suscitados por um único desejo que controla o seu pensamento: estar com Leandro. De facto, Hero nunca deixa de realçar, ao longo do seu discurso, o motivo pelo qual a sua vida tem sentido (19. 39-40): “Perguntas-me de que falo entretanto, num tempo tão longo? / Em meus lábios nada há senão o nome de Leandro”.

2 Segue-se a disposição epistolar que compõe a primeira parte: 1) Penélope a Ulisses; 2) Fílis a Demofonte; 3) Briseida a Aquiles; 4) Fedra a Hipólito; 5) Enone a Páris; 6) Hipsípile a Jasão; 7) Dido a Eneias; 8) Hermíone a Orestes; 9) Dejanira a Hércules; 10) Ariadne a Teseu; 11) Cânace a Macareu; 12) Medeia a Jasão; 13) Laodamia a Protesilau; 14) Hipermnestra a Linceu; 15) Safo a Fáon. Com o decorrer dos anos, têm sido publicados alguns comentários a determinadas cartas. V., por exemplo: KNOX, Peter E., Ovid, Heroides: Select Epistles, Cambridge, Cambridge University Press, 1995. 3 As duas outras epístolas que a segunda parte contempla têm como remetente e/ou destinatário Páris e Helena (Her. 16-17) e Acôncio e Cidipe (Her. 20-21). Em 1996, Kenney publicou um comentário sobre as cartas duplas, bem como a respectiva edição crítica que utilizámos para realizar a tradução.


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INTRODUÇÃO

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Em ambas as epístolas, podemos ainda encontrar interpelações dos protagonistas a outras figuras mitológicas: Leandro dirige-se a Bóreas, para que este, consciente do seu amor por Oritia, acalme a tormenta (18. 37-48); Hero, a Neptuno, com o mesmo intuito: lembrar ao deus do mar as suas aventuras amorosas, a fim de que este se mostre favorável à união dos dois amantes (19. 129-150). Convém também salientar a prece à Lua, que Leandro recorda, ao descrever o seu primeiro trajecto até Sesto. Nesta apóstrofe (18. 61-74), a personagem alude à paixão da deusa por Endímion, mais uma vez como forma de chamar a atenção para a sua própria experiência. Mas não fica por aqui. Leandro aproveita este momento para exaltar e elogiar a beleza divinal de Hero, superior à de qualquer mulher, mesmo as que pertencem ao mundo dos deuses (18. 71-74): “Tanto ela é mais formosa do que todas as formosas / quanto todos os astros cedem a primazia ao teu esplendor / quando refulges, argêntea, com teus límpidos raios; / se duvidas, ó Cíntia, é porque as trevas te envolvem o olhar.” Um dos elementos do mito que também tem um papel predominante nas duas Heróides é a luz (em latim lumen). Leandro refere a sua função e importância várias vezes, porque ela era a sua única guia durante a travessia (18. 106, 149-170). Sem ela, andaria errante e correria os maiores riscos. Por isso, no final, Leandro pede a Hero que mantenha sempre a luz de modo que possa vê-la. A jovem cumpre o pedido, como podemos verificar (19. 151-152): “Vê, crepitou a chama (é que escrevo perto dela), / a chama crepitou, dando auspiciosos sinais.” No entanto, com a chegada da aurora, a candeia já se encontra a toscanejar (19. 195). Terá sido por esta altura que Leandro cumpriu a sua promessa? Ao longo das cartas, por meio de presságios e indícios trágicos, o leitor fica ao corrente do final que está destinado a Leandro. Na verdade, tal pode descortinar-se, por exemplo, na alusão ao mito de Dédalo e Ícaro (18. 49-52), quando o protagonista deseja voar até Sesto com as asas que Dédalo fabricou, mesmo consciente das consequências deste empreendimento (a morte de Ícaro); ao mito de Alcíone e Céix (18. 81-82), cujo amor foi impossível (em vida), pois ambas as personagens morreram, ele no mar, ela a lançar-se de um molhe, e transformaram-se ambas em pássaros; ao mito de


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Hele, cujo nome veio a designar o estreito que Leandro cruza, pelo facto de a donzela ter caído nele (18. 137-148); e ao sonho de Hero (19. 193-206), em que um golfinho vem parar à praia já sem vida. Neste último passo, é interessante verificar como a jovem de Sesto, embora não medite sobre o assunto, reconhece que algo de errado poderá acontecer se Leandro atravessar o Helesponto durante a tempestade. Por este motivo, na tentativa de travar o que já estava estipulado pelo destino, adverte o amado, ainda que ele julgue que o seu sonho não tem qualquer fundamento. Existe outro passo que nos remete para o cenário em que se dará a morte de Leandro, depois da sua opção de atravessar o Helesponto, mesmo apesar do mau tempo (18. 193-200): “Que o mar continue encapelado ainda mais algumas noites: / eu tentarei atravessar as águas contra a vontade delas. / Ou a minha audácia será bem-sucedida e acabarei por salvar-me, / ou a morte será o termo para um amor solícito. / Escolherei todavia ser arremessado para aquela região / e que os náufragos membros atinjam o teu porto. / Chorarás certamente, e dignar-te-ás tocar o meu corpo. / E hás-de dizer: ‘Eu é que fui a causa da sua morte’.” Como podemos observar, não há qualquer referência à morte de Hero nem neste passo nem em nenhum outro das cartas: assim sendo, podemos apenas conjecturar o que teria acontecido à personagem a partir da alusão ao mito de Alcíone e Céix, que mencionámos anteriormente. Em suma, mediante o complexo tratamento de géneros e subgéneros, tendo sempre como pano de fundo a elegia amorosa, e o avivar de um fluxo de imagens (qual cineasta!), Ovídio consegue transportar-nos para a realidade do mito e da fantasia, dando voz a Hero e a Leandro para que sirvam como testemunhas do poder do Eros4. Marionetas nas mãos do destino, eles contam o que lhes vai na alma, esperançosos de que haja o encontro tão esperado. Porém, nós, leitores, sabemos o que lhes está reservado em vida: um desencontro no Amor.

4 Há outros passos na obra de Ovídio que aludem ao mito de Hero e Leandro. V. Arte de Amar 2. 249-250; Amores 2. 16. 31-32; Tristia 3. 10. 41-42; Ibis 589-590.


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Bibliografia

Edição usada KENNEY, E. J. (ed. e com.), Ovid, Heroides XVI-XXI, Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

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HERÓIDES

ROSATI, Gianpiero (ed. e com.), Heroidum Epistulae XVIII-XIX: Leander Heroni, Hero Leandro, Firenze, Felice Le Monnier, 1996. SHOWERMAN, Grant (trad.), Ovid, Heroides and Amores, London, William Heinemann Ltd, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1963, pp. 245-274. VEGA, Ana Pérez (trad.), Cartas de las Heroínas, Ibis, Madrid, Editorial Gredos, 1994, pp. 160-178.

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BIBLIOGRAFIA

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