“O silêncio é o mais acertado.” Era desta forma que Mark Rothko, um dos artistas mais importantes do século XX, respondia quando lhe pediam para falar das suas pinturas. Temia que as palavras paralisassem a mente e a imaginação do espectador. Acreditava que uma imagem abstracta representa directamente a natureza fundamental do drama humano. Daí que seja de uma inequívoca importância histórica, além de teórica, a publicação deste A Realidade do Artista, de Mark Rothko. Nascido Marcus Rothkowitz na Rússia, em 25 de Setembro de 1903, emigra com a família para os Estados Unidos da América dez anos depois. Cedo convive e estuda com artistas; cedo percebe que a arte, enquanto expressão da tragédia da condição humana, terá que encontrar uma linguagem nova. Aos poucos, Rothko vai experimentando, utiliza novas linguagens de que depois se liberta até, por fim, abandonar quaisquer elementos figurativos, concentrando-se nos elementos pictóricos puros, convicto de que, só por si, revelariam uma elevada verdade filosófica. Quando se suicidou, já doente, em 25 de Fevereiro de 1970, Rothko era reconhecido nos EUA e na Europa pelo seu papel crucial no desenvolvimento da arte não-representativa. Empenhado na sua visão artística única, celebrou o poder quase mítico da arte junto da imaginação criativa e manteve a sua crença na capacidade que a arte abstracta tem para ser fruída em termos puramente emocionais. Este livro resulta da descoberta muito recente de um manuscrito de Mark Rothko, no qual o pintor reflecte sobre temas que vão do Renascimento à arte contemporânea, do mito ao belo, passando pela verdadeira natureza da arte ou pelo papel da arte, da crítica e dos artistas na sociedade. A par da exposição do seu pensamento, Rothko transmite claramente ao leitor a intensidade da sua demanda artística, o esforço doloroso e constante para aprofundar questões que, para ele, seriam do domínio do inefável.
A REALIDADE DO ARTISTA
Título original: The artist’s reality. Philosophies of art. Copyright: Escritos de Mark Rothko/Writings by Mark Rothko © 2004 Kate Rothko Prizel and Christopher Rothko. Pinturas/Paintings by Mark Rothko © 1998 Kate Rothko Prizel and Christopher Rothko. Obras sobre papel/Works on paper by Mark Rothko © 2004. Tradução © Edições Cotovia, Lda. e Fernanda Mira Barros, Lisboa, 2007 ISBN 978-972-795-169-7
Mark Rothko
A realidade do artista Filosofias da arte Tradução de Fernanda Mira Barros
Cotovia
Índice
Agradecimentos
p. 10
Introdução, por Christopher Rothko
11
O dilema do artista
48
A arte como função biológica natural
56
A arte como forma de acção Escapismo Decadência
60 63
A integridade do processo plástico
69
Arte, realidade e sensualidade
77
Particularização e generalização
82
A generalização desde o Renascimento
96
Impressionismo emocional e dramático
102
Impressionismo objectivo
108
Plasticidade Diferentes tipos Plasticidade e espaço
117 127
O Espaço Diferentes tipos Base filosófica
140 146
O Belo Definição e avaliação O belo: plástico e ilusório O belo e a sua criação O belo e a sua apercepção
151 156 161 166 7
Naturalismo
170
Assunto e conteúdo Assunto Conteúdo. O conteúdo e a realidade do artista Conteúdo e mito Conteúdo e antiguidade Antiguidade e continuidade plástica
175 181 186 193 197
O mito O mito do Renascimento O mito desde o Renascimento. Introdução O mito e a sua representação na linguagem plástica Sensualidade e mito
202 202 210 212 215
O mito tentado de hoje
221
A influência das civilizações primitivas na arte moderna
226
Arte moderna A arte moderna como reavaliação da experiência artística 233 A arte moderna e a sua relação com o escapismo 236 Primitivismo Os primitivistas populares Os primitivistas e a arte popular
241 246
Arte indígena A procura de uma arte norte-americana Regionalismo Tradicionalismo norte-americano Educação e tradição indígena Arte popular
249 250 251 259 262
8
Para a Kate, sem a qual nada teria havido.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer às seguintes pessoas a sua ajuda e apoio: Marion Kahan pela descoberta fundamental; Janet Saines pelos conselhos excelentes; Melissa Locker, Lauren Fardig e Amy Lucas pela pesquisa que fizeram; Ilya Prizel; e William e Sally Scharf pelos muitos anos de sabedoria e cuidados. Gostaria também de agradecer ao pessoal da Yale University Press, em especial a Patricia Fidler pelo seu entusiasmo e pela sua visão, a Michelle Komie pela forma como me conduziu e pelo incansável trabalho de transcrição, a Jeffrey Schier pela sensibilidade da sua forma de editar, a John Long pelo manuseamento das fotografias, a Mary Mayer pelo trabalho de produção, a Daphne Geismar pelo seu óptimo design moderno, e a Julia Derish pelo seu faro excepcional para factos omissos. Agradeço especialmente à minha mulher, Lori Cohen, e aos meus filhos Mischa, Aaron e Isabel, por serem uma permanente inspiração. Christopher Rothko
10
INTRODUÇÃO
O LIVRO. O livro era de certa maneira uma lenda para mim, que repousava mesmo na periferia da minha consciência. Tinha uma importância e uma dignidade que provavelmente excediam o seu conteúdo e que eram sem dúvida alimentadas pela sua própria insubstancialidade. Não há nada como o mistério para dilatar as dimensões do desconhecido ou do indistintamente vislumbrado, e, nas águas sombrias e turbulentas deixadas pela morte do meu pai, pouco havia, com efeito, que eu estivesse certo de ter entendido. As lendas, é claro, são frequentemente baseadas em factos, mas dado que eu nunca vira o livro, nunca poderia saber onde acabavam as histórias e a verdade começava. Parte da aura do livro veio, sem dúvida, embora muito indirectamente, do meu pai. Pode ser que tenha sido filtrada pela minha mãe, que apareceu em cena não muito depois de ele ter desistido de medir forças com o livro. Falavam dele com amigos e colegas, ainda que poucas vezes, mas nunca o fizeram com a minha irmã ou comigo. A sensação de mistério em torno do livro foi muito reforçada durante a batalha pelos papéis do meu pai, que se seguiu logo à sua morte em 1970. Naquelas circunstâncias, a importância deste manuscrito, que até então ninguém vira, assumiu proporções hercúleas. 11
Isto fazia parte do legado que nos deixou, à minha irmã e a mim, a morte súbita e inesperada dos nossos pais. Foram precisas quase duas décadas para acrescentar voz aos sussurros que inicialmente nos informaram acerca do livro. E demorou trinta e quatro anos inteiros a desenredar e, depois, a explorar toda a dimensão do manuscrito. Agora que se transformou num documento editado e impecavelmente passado à máquina, numa coisa publicada, é bastante fácil perder de vista o seu estado anterior. Mas, na maior parte da minha vida, as teias de aranha foram mais visíveis do que a substância subjacente. Toda esta história de sombras e boatos tem uma certa ironia no contexto da obra artística do meu pai. As suas pinturas mais conhecidas são grandes e vibrantes e decididamente icónicas. Exigem uma atenção imediata e física, que este pequeno, deteriorado e desordenado acervo de folhas impressas não poderia ter a esperança de reproduzir. As suas obras comunicam a um nível que é explicitamente pré-verbal. De facto, seria difícil encontrar uma pintura menos narrativa. Como a música, a obra artística do meu pai procura exprimir o inexprimível — estamos bastante aquém do domínio das palavras. Da falta de figuras e espaços identificáveis à falta de títulos, as pinturas do meu pai esclarecem que as referências a coisas exteriores à própria pintura são supérfluas. A palavra escrita iria apenas perturbar a experiência destas pinturas; não pode entrar no seu universo. E, no entanto, estes escritos compelem-nos e fascinam-nos de uma forma que o meu pai teria certamente desejado. Longe de rejeitar este livro que nunca concluiu — e que escreveu antes do nascimento do seu estilo fortemente abstracto, que havia de o tornar famoso — o meu pai conservou-o e, consciente ou inconscientemente, inflamou o interesse em todos aqueles a quem che12
garam rumores acerca da sua existência. As palavras dele podem permanecer fora da obra artística, mas exprimem filosofias que ele continuou a acalentar mesmo quando a pintura se tornou no seu único veículo de expressão. Uma razão pela qual este livro nos fascina tanto é Rothko ter sido claramente um pintor de ideias. Foi ele mesmo que o disse, vezes sem conta, e uma pessoa pode bem senti-las impregnando a superfície das suas — de outro modo, algo amorfas — abstracções. Com efeito, podemos perguntar: se aqui não existem ideias, o que há aqui? E, o que podem essas ideias ser, ao certo? Em si mesmas, as pinturas conservam somente pistas muito gerais, e não é pequeno o número de observadores que deram por si estimulados sensualmente mas profundamente frustrados pela própria abstracção das obras. Com pouco de concreto a apreender, muitas pessoas afastaram-se das obras — comovidas ou revoltadas —, na suposição de que, de facto, eram vazias. Assim, ter na mão um livro escrito por Rothko — e não um livro qualquer, mas o que apresenta a sua filosofia da arte — é, na verdade, um presente para quem ficou cativado pela sua obra. É como se nos dessem a chave de uma cidade mística que até agora pudemos apenas contemplar de longe. Mas será esse realmente o caso? Como com tudo o que se relaciona com o meu pai, a verdade é uma coisa mais esquiva, até mesmo dialéctica. Em primeiro lugar, em A Realidade do Artista ele não fala directamente, uma vez sequer, das suas obras. Na verdade, não lhes faz qualquer alusão, nem ao facto de ser pintor. Em segundo lugar, o livro foi escrito muitos anos antes de a sua obra se tornar completamente abstracta e, assim, se fornece pistas para os segredos das suas flutuantes formas rectangulares, elas são oblíquas e, de facto, pres13
cientes. Em qualquer caso, o livro não fala sobre o significado das pinturas, nem sobre como se pode encontrar esse significado. Os seus ensaios falam-nos acerca daquilo que o artista faz, acerca da sua relação com as ideias, e acerca da forma como as expressa. Estas razões muito concretas explicam por que motivo A Realidade do Artista não fornece um roteiro para a obra de Rothko, mas, muito francamente, não vêm ao caso. Desocultar o significado de uma pintura não é uma coisa tão simples que possa ser codificada num livro e Rothko não quereria por certo um guia desse tipo para a sua obra. Compreendê-la é uma experiência muito pessoal e depende muito do processo de entrarmos nela. É como “a viagem plástica” que ele descreve no capítulo “Plasticidade” — para conhecermos uma pintura é preciso empreender numa aventura sensível por dentro do seu mundo. Rothko não nos pode dizer o que significam as suas pinturas ou as dos outros. Temos de as experimentar. Ao cabo, se ele tivesse sido capaz de expressar a verdade — a essência destas obras — através de palavras, provavelmente não teria perdido tempo a pintá-las. Como a sua obra exemplifica, escrever e pintar são actividades que envolvem tipos diferentes de conhecimento. O que disse até aqui poderá ajudar-nos a perceber as razões pelas quais, em vida, Rothko nunca tornou este livro público. Não é o caso que ele tenha abandonado estas ideias ou que estivesse envergonhado acerca do que escrevera. Se assim fosse, ele teria, muito provavelmente, destruído o manuscrito, e decerto que o não teria prometido ao seu biógrafo de eleição, como a minha irmã e eu acreditamos que ele tenha feito. Não, julgo que ele guardou o livro para si por recear que, se oferecesse às pessoas o princípio de uma resposta ou a ilusão de uma resposta para a sua obra artística, elas nunca encontrariam outra que fosse mais 14
completa e talvez nunca chegassem a fazer as perguntas necessárias. A respeito da sua própria obra, pelo menos, preocupá-lo-ia não levar as pessoas a percorrer caminhos errados, avançando às cegas com os seus pedacinhos de conhecimento, quando, no fim de contas, se cuidadosamente encarada, a sua pintura falava por si mesma. Ele estava consciente deste perigo e, por isso, foi cauteloso quanto a discutir a sua obra, tendo concluído repetidamente que, quanto mais dizia, maiores os mal-entendidos que gerava. Não era seu desejo sabotar o processo pelo qual as pessoas viriam a conhecer a sua obra, e julgo que ele percebeu quão complicado poderia isso ser — isto é, percebeu que as pessoas se afastariam depressa para o evitar. Pelo mesmo motivo, penso que ele sabia quão gratificante pode o processo ser, se nele nos envolvermos completamente. Foi, por conseguinte, com muitos sentimentos contraditórios e com uma grande dose de introspecção que, tendo consultado a minha irmã, Kate, decidi trazer à luz A Realidade do Artista. Apresentar o livro ao público é como desembainhar uma perfeita espada de dois gumes. Por um lado, é um tesouro para académicos e uma fonte de grande interesse para os admiradores de Rothko. Por outro lado, como o livro data de relativamente cedo na carreira do meu pai, está inacabado e não se reporta directamente à sua pintura, é potencialmente enganador. Para além disso, o estado incompleto do livro e o facto de a preparação do meu pai não ser nem a de filósofo, nem a de historiador de arte, faz dele um alvo fácil para ataques, pois aos argumentos que apresenta falta por vezes polidez, rigor, ou ambas as coisas. Por fim, decidimos, a minha irmã e eu, que estas preocupações pouco importavam. Rothko é hoje tão célebre que a maioria dos apreciadores de arte terão, no mínimo, passado pelos seus 15
quadros, e poucos serão os que pegarão neste livro sem uma maior familiaridade com a obra e com o modo como ela funciona. Mesmo que algumas pessoas estejam interessadas em encontrar aqui um guia rápido para as obras ainda misteriosas do meu pai, o livro é excessivamente denso para que esse tipo de explicação fácil esteja à mão. Assim, para saírem do livro mais instruídos, só lhes resta, a esses leitores, debaterem-se com a filosofia de Rothko, tanto como com as suas pinturas. As preocupações da família acerca da maneira como o manuscrito incompleto apresenta o nosso pai como escritor ou pensador talvez sejam legítimas — a prosa não faz justiça ao nível que ele atingiu nas suas poucas declarações publicadas, e a clareza do seu raciocínio nem sempre é a ideal. No entanto, acredito que não será com um espírito crítico em relação a estes aspectos que o livro será (ou deveria ser) lido. Não será por esperarem as declarações mais poderosas e recentes na filosofia da arte que os leitores o lerão atentamente (embora, talvez, as suas conquistas nessa área excedam o âmbito dos meus conhecimentos); em vez disso, os leitores estão interessados nos pontos de vista dele por se sentirem compelidos pela maneira como o viram expressá-los através da pintura. O verdadeiro valor de A Realidade do Artista não está no rigor dos argumentos de Rothko, nem na maneira, consistente ou não, como procura vencer os seus debates; pelo contrário, o tesouro aqui é ser-nos oferecido um vislumbre raro da maneira como um artista vê o mundo, expresso pela palavra escrita e em considerável detalhe. Em última análise, acreditamos, a minha irmã e eu, que o público — tanto o académico, como o entusiasta — tem o direito de ver este livro. Se o meu pai o tivesse destruído ou suprimido, a nossa conclusão talvez fosse outra mas, muito à semelhança de 16
como tratou as pinturas do começo da sua carreira, ele não pareceu desaprovar o livro ou dar qualquer indicação de que, à luz das direcções que depois tomou e das suas conquistas tardias, a sua validade ou importância estivesse comprometida. Ele guardou o manuscrito como parte do seu legado, e eu tentei fazer o mesmo, ao trazê-lo a público numa edição o mais completa e fiel possível. Impõe-se, portanto, uma breve história do manuscrito. Em geral, o meu pai não discutia a obra com a família, e eu não tenho razões para acreditar que o seu comportamento fosse diferente com A Realidade do Artista. Mas se foi, a Kate (que tinha dezanove anos à data da sua morte) e eu (que tinha seis anos) não temos quaisquer lembranças disso. Visto que a nossa mãe, Mary Alice (Mell) Rothko, morreu seis meses depois dele, o que quer que ela pudesse dizer a esse respeito não foi revelado, pelo menos não a nós. O manuscrito veio pela primeira vez à superfície no contexto das feias disputas legais que se seguiram à morte do meu pai. Em pouco tempo, os processos legais confrontaram-nos, à minha irmã e a mim, com os executores do património do meu pai e com a Marlborough Gallery, que o representara durante a década precedente (na verdade, apenas a minha irmã foi confrontada, visto que eu era muito novo). Durante os primeiros meses do conflito, começaram a chegar a Kate rumores segundo os quais o meu pai escrevera um livro, e o alegado manuscrito depressa se tornou num dos eixos do conflito entre os executores e Robert Goldwater, que concordara, no ano antes de o meu pai morrer, escrever uma avaliação académica, biográfica e, acima de tudo crítica, da sua vida e obra. Tanto quanto a Kate sabe, nem Goldwater nem os executores tinham alguma vez visto o livro e, como Goldwater 17
faleceu cerca de um ano após a morte do meu pai, o assunto passou a ser contestado talvez menos hostilmente. No fim, o manuscrito parece ter repousado durante quase duas décadas numa pasta de fole com a inócua etiqueta: “Papéis Avulsos”. Como pudemos, a minha irmã e eu, deixar um documento tão importante ao abandono tanto tempo (de facto, quase três décadas e meia, à data da publicação deste livro)? Para compreender é preciso saber uma coisa sobre a relação ambivalente que a Kate e eu tivemos com o património e o legado do meu pai. Para começar, passámos os primeiros quinze anos a seguir o imbróglio da sua morte em complicações legais relacionadas com o património. Durante esse período, eu estava na escola e a minha irmã concluiu o curso de medicina, ingressou numa pósgraduação, casou, teve os primeiros dois dos seus três filhos, e tornou-se na nova executora do património, depois dos primeiros três terem sido destituídos pelo tribunal. Nenhum de nós estava numa posição que lhe permitisse ir à procura, avaliar, ou até mesmo pensar no manuscrito. No desfecho dessa experiência, a minha irmã estava não apenas exausta como, para dizer com franqueza, particularmente magoada com o mundo da arte. E a minha própria associação com a obra do meu pai — ainda não pendurara qualquer quadro seu quando, a meio da década de 1980, o caso do património ficou encerrado — resumia-se a assinar uma data de formulários e a tentar perceber dossiers aparentemente intermináveis, nos quais o número de sub-cláusulas ultrapassava em muito a quantidade de informação à partida inteligível. Embrenharmo-nos nas incontáveis caixas de papelada legal à procura do Livro não nos parecia uma tarefa particularmente apelativa. 18
Foi só em 1988 que Marion Kahan, que trabalhava como nossa guarda-livros e nos ajudou a gerir as obras do meu pai durante mais de dezassete anos, encontrou o manuscrito numa velha pasta de cartão no meio dos papéis guardados (imagem 1). Ela não fora especificamente incumbida por nós de ir à sua procura, mas encontrou-a por acaso durante o trabalho de inventário. Imediatamente fotocopiou as páginas deterioradas e amareladas e informou-nos que julgava ter encontrado O Livro. Não me lembro de grandes certezas ou festejos vindos da parte de Marion nessa altura — ela garante-me que se lembra do contrário. Como quer que seja, eu ainda não estava preparado psicologicamente para ouvir esta notícia. Estava na faculdade e tinha recentemente assumido a administração quotidiana dos assuntos relacionados com Rothko, de que antes se encarregava a minha irmã. Naquela altura, era uma tarefa bastante ingrata e aborrecida. Lembro-me de estudar o manuscrito e outros papéis que lhe estavam relacionados, durante algum tempo no ano em que a Marion mos enviou. Não dediquei muito tempo ao processo e concluí que ali não havia nada de realmente especial. Foi uma conclusão impensada. Estou certo de que não queria encontrar nada de substancial — teria sido um aborrecimento, mais uma tarefa para me ocupar, mais uma distracção que me afastaria dos meus estudos. O manuscrito facilitou-me chegar a essa ideia. Estava batido à máquina desajeitadamente, com muitas emendas acrescentadas à mão — e ainda mais gralhas — e não oferecia qualquer ordem ou direcção narrativa evidente (imagem 2). Se havia ali alguma coisa de interesse — e, à primeira vista, de facto não havia — fazer daquilo alguma coisa teria sido um aborrecimento. 19
E, assim, o manuscrito permaneceu imperturbado. Por vezes ponderámos disponibilizá-lo a académicos. Por mais de uma ocasião, chegámos a ir à procura de um historiador de arte que fizesse a avaliação crítica abrangente da obra do nosso pai, que Robert Goldwater não teve a oportunidade de escrever. O acesso ao livro teria feito parte desse processo. Contudo, todas estas diligências acabaram por abortar e o livro permaneceu em boa medida na sombra — para nós, assim como para o resto do mundo. Houve várias razões pelas quais não nos esforçámos mais por avaliar o manuscrito e torná-lo público. Uma delas, não menos importante, foi, como indiquei, a fadiga, mas existia outra razão, que vai mais fundo: penso que simplesmente não estávamos preparados para ceder o controlo. Tanto as pinturas — o legado do nosso pai — como nós os dois, tínhamos acabado de passar por um longo e tumultuoso período de incertezas a seguir à sua morte, de modo que ainda nos estávamos a restabelecer e a assegurar de que o chão sob os nossos pés era firme. É muito difícil abdicar de uma coisa pela qual se lutou com tanta determinação, e é natural que tais batalhas nos tornem cautelosos. É apenas agora, com o interesse em Rothko numa fase alta sem precedentes, como testemunham os louvores do público e da crítica e as exposições quase mais frequentes do que somos capazes de gerir, é apenas agora que podemos relaxar um pouco. Mas só um pouco. Aliás, repare-se em quem está a editar este volume (coisa que, depois de examinar pela primeira vez este manuscrito intimidante, eu jurei que nunca faria). Isto, é claro, leva-nos precisamente à questão de porquê ser eu a editar este volume, e porquê publicá-lo agora? A primeira razão é de que eu sou idóneo (isto é, para a minha irmã e para mim). Se defendo uma posição pessoal acerca de como fazer isto, essa é uma posição 20
familiar. Uma fonte exterior, por muito bem informada e bem-intencionada que fosse, não traria a mesma espécie de cuidado a este projecto que traz uma pessoa da família. Isto não quer dizer que a atenção que essa pessoa traria seria de uma espécie pior — seria simplesmente diferente. Todavia, isto é o mesmo que dizer que, tendo por base a nossa própria experiência com a obra do meu pai, confiar em alguém exterior à família teria resultados desastrosos. Além disso, tendo por esta altura trabalhado de perto com a obra artística do meu pai durante uma década, conheço a sua produção ao pormenor e sinto ter aprendido o suficiente acerca dela para poder executar o projecto com cuidado, com profundidade crítica. Foi, por conseguinte, no contexto de pedidos recentes por parte de académicos, assim como do interesse independente por parte de uma editora, que decidi voltar a olhar para o manuscrito. E, vejam só, reparei numa coisa diferente desta vez. Sem dúvida, a obra que encontrei estava incompleta e, em certas partes, era frustrantemente obscura, mas era um livro, e um livro substancial. Foi claramente escrito para ser um volume, o seu conteúdo dirigia-se a um público, e não consistia em meras divagações de um artista. Chegara o momento de ver a luz do dia e, embora eu tenha respirado fundo antes de mergulhar nele, eu sabia ser a pessoa indicada para o trazer a público.
ROTHKO NO COMEÇO DOS ANOS 1940 Rothko pintava desde o começo dos anos 20, quando desistiu do Yale College e descobriu o caminho para a cidade de Nova Iorque. Enquanto gastava a maior parte do tempo em vários 21
empregos e a ensinar desenho a crianças da escola, produziu um volume consistente de trabalho, desde o fim dos anos 1920 e durante os anos 1930, tanto em tela como em papel. Até 1939, a sua pintura era figurativa; cores mortas retratavam cenas urbanas, retratos, nus e dramas estranhos, psicologicamente tingidos. Em 1940-41, no entanto, por volta da altura em que, em nossa opinião, Rothko escreveu o grosso deste livro, a sua obra modificou-se conspicuamente. Abrangendo aspectos do surrealismo, que nessa altura era em grande medida a vanguarda da pintura europeia moderna, começou a pintar paisagens imaginárias e figuras loucamente distorcidas, com múltiplas cabeças e membros desagregados e depois reconstituídos em seres sintéticos inquietantes e perturbadores. Como Rothko esclarece neste volume, ele não defendia todas as ideias filosóficas deste movimento, mas é certo que adoptou algumas das suas características estilísticas, a par daquele fascínio artístico por mundos míticos e pelos conteúdos do inconsciente colectivo. O que se segue a isto está um pouco coberto de mistério. James Breslin, o biógrafo de Rothko, observa a afirmação do artista segundo a qual, por volta de 1940, ele terá parado de pintar durante a maior parte do ano para ler filosofia e literatura mítica. Ele diz também que Rothko sofreu uma depressão em 1940 ou 1941 e parou de pintar durante uma margem de tempo significativa (James Breslin, Mark Rothko: A Biography, 1993). Apesar de eu não ter ouvido esta história a mais ninguém, Breslin é geralmente preciso em relação aos factos da vida do meu pai, de modo que estou inclinado a aceitar que alguma espécie de interrupção na sua pintura ocorreu de facto. Embora não seja claro se a viragem para uma pintura surrealista e baseada em mitos ocorreu antes, durante ou depois da escrita do livro, pode22
mos inferir que o corpo principal do livro foi escrito durante essa interrupção. Vou demorar um instante a explicar o que sabemos acerca da datação do livro. A única evidência concreta de que dispomos está no verso de uma página do manuscrito, no qual Rothko dactilografou o rascunho de uma carta datada de 23 de Março de 1941. No entanto, o seu mentor artístico, Milton Avery, menciona numa carta que Rothko está a trabalhar num livro desde pelo menos 1936 (ver Breslin). Embora não possamos saber se se trata do mesmo livro, é improvável que tinha escrito duas grandes obras perdidas. Contudo, não estou tentado a acreditar que a maior parte do livro tivesse sido escrita tão cedo. Em primeiro lugar, uma outra carta de Avery (também citada por Breslin), datada de Setembro de 1941, menciona que Rothko “abrandou com o livro”, o que sugere um período de actividade intensa imediatamente anterior a essa altura. Além disso, Rothko faz no manuscrito várias referências a acontecimentos posteriores, de entre os quais se destaca a Feira Mundial de 1939 e os “guerreiros” da Alemanha (presumivelmente envolvidos na Segunda Guerra Mundial). Por fim, temos de seguir uma pista dada pelo texto de Rothko e pelas próprias pinturas. Ele passa grandes trechos do livro a discutir o papel dos processos inconscientes na produção da arte, e um bom quarto do livro a falar do mito na arte e na sociedade. Não pode ser uma coincidência que estes sejam precisamente os temas que surgiram nas suas pinturas do começo dos anos 1940. Apesar de alguns ensaios incluídos em A Realidade do Artista poderem ter sido começados mais cedo, as pinturas de Rothko dizem-nos que este livro, mais ou menos como o conhecemos, estava a ser escrito 23
na altura em que as suas transformações artísticas estavam a começar. Foi assim o progresso do Rothko artista e pensador. Entretanto, o Rohtko homem tinha estado a lutar pela vida durante a época da Depressão, mal conseguindo sustentar-se. Não vendera quase nenhum trabalho, fizera poucas exposições e estivera empregado, nos vários anos precedentes, como artista da Works Progress Administration (WPA). O seu primeiro casamento, que foi sempre conturbado, estava na pior fase. Houve uma separação prolongada em 1940 ou 1941, provável origem da depressão de que Breslin fala. Antes destes acontecimentos, a sua mulher, Edith Sachar, que durante esse tempo se tornara bem sucedida como desenhadora de jóias, deu-lhe trabalho no seu estúdio e parece que o desencorajou de continuar a pintar. O casamento acabaria por terminar em 1943. Esbocei este fundo porque ele oferece um contexto no qual podemos compreender os textos mais polémicos de A Realidade do Artista. O tom desses capítulos é revoltado, ressentido e por vezes lamurioso. Conseguimos sentir a frustração de um homem que sente que tem muita coisa a dizer e que quer desesperadamente ser ouvido. Aqui está um artista que tenta captar a sua noção de real, a sua ideia de verdade, em todas as pinturas, mas não consegue que ninguém repare nele. É com isto em mente que devemos ler as suas diatribes repetidas contra Maxfield Parrish, o seu libelo contra os cartoonistas, a sua derisão dos pseudo-primitivos. Rothko não tinha paciência para o quer que fosse que não aspirasse aos mais altos ideais. O caso não era somente que estes “artistas” estivessem a produzir coisas derivativas e desprovidas de alma; o caso é que eles estavam a fazê-lo e a conseguir a atenção do público. Entretanto, Rothko ficava sentado no seu monte 24
proverbial de lixo, amaldiçoando o destino que o prendia ali. “Popular” é portanto uma palavra duplamente dúbia, porque denota tanto a superficialidade como o reconhecimento do qual Rothko estava excluído. Isto não é negar que muito daquilo que Rothko reprova seja tão obtuso como ele sugere. Aquilo a que me refiro é o seu tom. A sua própria experiência de privação acrescenta mordacidade às suas palavras. Se ele fosse bem sucedido, e se essa experiência de privação fosse menos imediata para ele, talvez ele nem sentisse a necessidade de falar destas artes inferiores. Podemos assumir a mesma perspectiva na discussão de Rothko, no capítulo sobre arte indígena, acerca de diferentes métodos para avaliar arte. A sua análise é suficientemente sofisticada e, com efeito, chega a ser convincente, mesmo que lhe falte a polidez que uma revisão subsequente traria. O que nos surpreende, no entanto, é a veemência com que ele ataca os populistas. Este socialista confesso exprime repetidamente uma profunda desconfiança dos seus pares — especialmente quando congregados — vendo-os não como uma força para a justiça social, mas como uma populaça perigosa. Para Rothko, eleger a grande arte pelo número de pessoas que a adjudicam é uma fórmula de canonização do denominador comum mais baixo. Esta atitude em relação ao público perpassa o livro, desde as repetidas citações de arte histórica destruída por multidões, até à maneira como diz arrancar os cabelos quando vê as pinturas em redor das quais o público típico se apinha. Rothko sente a ferroada da negligência destes e, talvez duvidando do seu próprio trabalho, ataca-os. Há, por fim, uma maneira mais caridosa de ver a posição do artista em relação ao público de arte — e não para simplesmente 25
perceber que a história deu a Rothko razão. Para percebê-lo completamente é importante recordar que o meu pai manteve esta atitude de profunda desconfiança e de cautela em relação ao espectador muito depois do seu impressionante sucesso. E, no entanto, apesar de recear o público, ele precisava desesperadamente que o público trouxesse sentido às suas pinturas. Esta ambivalência está resumida na sua famosa afirmação de 1947, na revista Tiger’s Eye: “Uma pintura vive da companhia que lhe é feita, expandindo-se e precipitando-se aos olhos do observador sensível. E morre pelo mesmo motivo. Atirá-la para o mundo é por isso um acto arriscado e desprovido de sentimento.” Apesar de esta afirmação ser anterior à sua ascensão à fama, é o típico comentário que mais tarde na sua carreira ele faria em privado, particularmente no contexto de exposições. Mesmo depois de ter sido o alvo de uma adulação significativa, Rothko continuou a temer constantemente que a sua pintura fosse mal interpretada e, em última análise, violada por um público desatento. Assim, embora um azedume colorisse sem dúvida o que escreveu nestes capítulos, talvez o seu tom reflicta com clareza quão profundamente pessoal era aquilo que exprimia nos seus trabalhos. Rothko investe tanto de si mesmo naquilo que faz, e a noção de real que exprime é tão vital e interior, que colocar as suas pinturas no mundo, e deixá-las à mercê de olhos públicos, é uma empresa verdadeiramente arriscada. O seu rancor brota portanto de um sentimento de vulnerabilidade, que é exacerbado por uma negatividade externa, mas que existe independentemente de qualquer reacção exterior. Uma distinção relacionada com isso, na qual Rothko insiste repetidamente, é a distinção entre a capacidade técnica do artista e a sua capacidade de comunicar algo profundo de uma forma 26
imediata e comovedora. Ele traça uma divisão muito nítida entre a ilustração, ou o design, ou a decoração, e a produção das belas artes. Apesar de Rothko não ser o único artista a fazer esta distinção, e poucos discordariam dele, há que voltar a perguntar por que razão precisou ele de enfatizar este ponto em particular. Acredito que há duas razões primárias, uma que emana da natureza da sua arte, e outra que tem origem na sua vida. A primeira razão que leva Rothko a desconsiderar tanto a técnica é a de o seu próprio trabalho do período realista parecer, à primeira vista, falho nesse aspecto. As figuras desenhadas de um modo grosseiro e algo desastrado, as perspectivas demasiado planas, que oferecem pouca ilusão de espaço, e uma típica falta de detalhe, podem dar a impressão de um artista incapaz de produzir obras convincentes (imagem 3). Mas, como A Realidade do Artista esclarece, o estilo de Rothko nessa altura reflecte as suas próprias preocupações filosóficas e “plásticas”. Ele não estava interessado em pintar semelhanças; queria, em vez disso, conferir às suas pinturas um sentido de substância real e de peso sensível. As pinturas devem possuir a sua própria realidade — não são uma imitação do mundo visualmente perceptível que nos rodeia. Todavia, como muitos modernistas, Rothko foi atacado por ser incapaz de produzir essas semelhanças e, não importa quão fortes fossem os fundamentos filosóficos da sua pintura, os ataques tornaram-no sem dúvida defensivo. Como se pode comprovar por alguns dos seus primeiros desenhos e ilustrações, Rothko era, de facto, um desenhador capaz. O seu trabalho surrealista viria em breve a demonstrar uma verdadeira fluência com a caneta e o pincel (imagem 4), e mais tarde ele veio a mostrar-se um verdadeiro virtuoso no domínio da cor, do espaço, da luminosidade e da reflexividade nas suas abstracções clássicas. 27