ANTES QUE A NOITE VENHA
Título: Antes que a Noite Venha © Eduarda Dionísio e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1992 1.a edição: Março de 1992 2.a edição: Outubro de 2005 Concepção gráfica de João Botelho ISBN 972-9013-94-2
Eduarda DionĂsio
Antes que a Noite Venha
Cotovia
Índice
Flagrante Delito
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Elenco da Estreia
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ANTES QUE A NOITE VENHA
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Falas de Julieta 1. Fala à ama grande e gorda 2. Fala à lua redonda 3. Fala a Romeu
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Falas de Antígona 1. Fala à irmã resignada 2. Fala ao amante (não) esquecido 3. Fala ao irmão morto
35 39 41
Falas da Castro 1. Fala ao espelho (1) 2. Fala ao espelho (2) 3. Fala ao espelho (3)
45 49 53
Falas de Medeia 1. Fala a Jasão 2. Fala a si própria 3. Fala ao público
59 63 65
Flagrante Delito
1 O título deste livro não tem nada a ver com o que vai escrito dentro dele. É o título do espectáculo para o qual as falas que aqui se publicam foram feitas. A noite não é nenhuma metáfora literária. É o tempo concreto (e também mítico, concedo) que as quatro personagens, que transformarão o que aqui fica dito, vão habitar, assim que o tempo do espectáculo se esgotar. Os textos que se seguem não têm sequer a ordem nem o tom do espectáculo para que foram construídos. Escrevi-os para baralhar, cortar e voltar a dar. Era o contrato.
2 E foi assim, como acontece a quem, com gosto, «aceita encomendas para fora»: Alguém chegou (mais precisamente o Adriano Luz), há talvez quatro anos já, com uma ideia que nunca me teria passado a mim 9
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pela cabeça. À partida, metia noite (pouco ou mal dormida), copos e talvez ressaca; prostituta e marinheiro; amor e morte; música muito provavelmente de acordeão. Portanto: aquele quase lugar-comum da verdade que se diz a mentir; da realidade mascarada pelo sonho, constantemente abalada pelos desejos sem tempo para serem de alguém; dos reflexos que os espelhos não podem deixar de criar. Os gestos teriam de ser os do vestir o próprio corpo para seduzir de novo, os do acordar mais uma vez para um dia que começa tarde, semelhante ao que passou. Haveria quartos de pensão e um homem de mil portos, que até podia não ser marinheiro, mas era como se fosse, ou como a gente julga que um marinheiro é. E ouvi uma cassette antiga do Loio que tive uns dias em casa. Terá sido mais ou menos assim a encomenda. Em suma: fingimentos muitos, teatro por todo o lado.
3 A mim, à «autora», cabiam-me as histórias que aqui se contam e que também eram, claro está, parte do desafio que a encomenda trazia. Criariam mais incoincidências ainda: neste bas-fond não se falaria calão e, se podia haver bebedeira, não era do brandy nem da droga dura que a tontura teria de nascer. O mal acordado da noite, acabada e quase a começar, seria tão literário e tão cru como isto: porque é que Julieta, Antígona, a Castro, Medeia, saídas quase em directo das suas tragédias mais ou menos antigas, não haveriam de passar por aqui, pelo menos com a banalidade que lhes deu a contínua passagem de boca em boca, de cabeça em cabeça, de coração em coração? Porque é que no kitsh dum toucador barato não se havia de pendurar as cabeleiras das heroínas e os diademas das princesas? Porque é que as gavetas com cheiro a perfume espanhol não haviam de esconder românticos diários de trágicas paixões? Porque é que o amor e a morte de uma mulher sem nome hão-de ser tão 10
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diferentes como isso do amor e da morte dos monstros sagrados que a literatura foi reduzindo a frases? Era uma aposta na inverosimilhança total para que uma qualquer verdade nascesse.
4 O meu trabalho: alinhavar palavras mentirosas e alheias para personagens que só depois haviam de existir, entre uma noite e outra noite, palavras que só depois de cosidas por elas seriam suas e verdadeiras. Ou vice-versa, num texto que, no fundo, podia ser este ou outro. Dentro do espectáculo a vir, cabia-me ainda assim uma grande parte da incomodidade: ficava responsável por aquilo que não colava com os néons das entradas dos bares e com a indiferença dum marinheiro que no dia seguinte está a milhas do porto onde o conhecemos. Era fatal: quatro anos depois, dei por mim em ferros-velhos e adelos, a riscar papéis com lápis de cera, a procurar tecidos e chapéus, preocupada com o nascimento de umas criaturas a quem um texto nunca poderia bastar.
5 Se continuarmos a pensar que é preciso um qualquer conflito para que teatro exista, o conflito aqui (e porque assim era a proposta que me empurrou para o delito destes remakes) não está no interior dos textos, mas deverá nascer da luta entre o texto e a encenação. Dito de outro modo: não é suposto que estes escritos acrescentem nada ao nosso conhecimento do mundo, nem às «questões fundamentais da vida». Contam histórias que toda a gente mais ou menos conhece. É o espectáculo para o qual foram reescritas que terá de fazê-lo. 11
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O texto é um material, entre muitos outros — os objectos de cena, os actores, os projectores, a música, os sons… É um conjunto de palavras úteis, utilizáveis, que valerão na medida em que servirem o espectáculo. Não se trata aqui de um texto de teatro, mas de textos para teatro, aquele teatro que o encenador entendeu fazer com os actores, não a partir dos textos, mas com os textos. Não estão contaminados por qualquer convenção de escrita teatral. Só pela identificação dos sujeitos dos discursos, supostamente atribuídos a personagens de tragédias clássicas, se arriscam a entrar na família dos «textos dramáticos». Mas até estas talvez abusivas nomeações desaparecerão no espectáculo. Perdida a convicção de que a «mensagem» dum espectáculo é a «mensagem» do texto do espectáculo e perdida a ilusão de que a «mensagem» do texto é o que se diz no texto, fica-nos a «maneira de dizer». E essa, ao espectáculo pertence.
6 Sempre acreditei que se pode fazer teatro com qualquer tipo de texto, mas acredito cada vez menos que alguém possa «escrever teatro» (se é que o teatro se «escreve»…) sem conhecer o «peso dos projectores», como me parece que Camus disse um dia. Não é possível escrever «uma peça» sem ir encenando dentro da cabeça o que se vai escrevendo e encenar no vazio da cabeça, da folha de papel, da secretária, do gabinete, no desconhecimento do «peso dos projectores» (que é como quem diz: dos códigos teatrais vividos na pele, e é bem de pele, de corpo, nosso e dos outros, que se trata) é coisa que me parece cada vez mais abstrusa. A linguagem da escrita não é a linguagem do espectáculo. E lembro-me sempre que esses «dramaturgos» que foram ficando, feitos e refeitos pelos tempos fora, alguns dos quais «ascenderam» às histórias da literatura, eram, antes de mais, gente de teatro. Nos anfiteatros, nos adros das igrejas, nos salões dos palá12
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cios, nas salas de espectáculo, nos palcos das sociedades recreativas, nas ruas, eram eles que metiam a mão na massa, e a massa não era uma seara alheia. Escreviam porque precisavam dos (seus) textos para fazer teatro. Antes da escrita, depois da escrita, o trabalho teatral existia com os actores, com a música, com o espaço. A especialização traçou os limites: os escritores são aqueles que escrevem, sem muitas vezes terem sequer uma prática de espectadores; os encenadores são os que «conhecem o peso dos projectores» — não têm tempo, ou paciência, ou atrevimento para essa tarefa árida que é alinhar palavras silenciosas numa folha de papel. Por tudo isto, muito dificilmente me atreveria a escrever uma «peça de teatro», por mais estimulante, compensador ou lucrativo que possa ser uma pessoa ouvir-se, sentada na primeira fila da plateia, furando assim a barreira de solidão que é o destino dos escritores. Antes que a Noite Venha não é uma peça de teatro.
7 Confesso que foi com a impressão de trair um pouco que concordei em entregar este texto ao editor para que ele fosse posto à disposição dos espectadores e, eventualmente, dos não espectadores. Se continuarmos a acreditar que há «magia» no teatro, mesmo que o golpe mágico esteja no estender uma enorme rede de «distanciações», a eficácia do espectáculo está também no saber fazer surpresas e guardar muitos segredos. Um espectáculo é um conjunto de truques. Um dos truques é o texto e, como material que é, será ele também objecto de truques. Publicá-lo, a seco, é mostrar de mais e mostrar de menos. Abrir o jogo por este lado servirá o teatro? Publicar um texto escrito para teatro, e ainda por cima para uma encenação determinada, para actrizes concretas, não será simplesmente exibir uma amputação? E não será desviar a atenção do público para o que não é essencial num espectáculo? 13
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Não será acreditar naquela hierarquia das artes tão cara aos poderes (sempre aflitos porque não conseguem transformar uma representação em «património») — a literatura à frente do teatro; o compositor à frente do pianista; o texto à frente da encenação e o encenador à frente do actor; o solista à frente do coro? Ou seja: o produto com duração à frente daquilo que desaparece enquanto se faz; o trabalho individual à frente do trabalho colectivo.
8 Transformar em livro (um objecto que fica; que se pode conservar, arquivar; um texto que se pode reler, reutilizar) as folhas A4 que se vão enchendo de marcas de lápis, de café, de bâton enquanto os actores as manuseiam até as saberem de cor, com as modificações que lhes fazem sempre, é no entanto uma tentação. Nem sempre nos conseguimos barricar no fascínio do efémero. Mas fazer um livro dessas folhas usadas não é publicar literatura. É um trabalho muito mais incoerente ainda: fixar um material transformável, uma plasticina que, todos os dias, durante um tempo curto (dependendo das pessoas, dos dinheiros, dos compromissos) é diferente na voz de quem fala, no corpo de quem se mexe, despe e veste, no olhar de quem vê, no ouvido de quem ouve. Normalmente, depois que a noite vem. Mais do que nunca, em casos assim, os livros são sobretudo «papéis pintados com tinta». Mas também não é por isso que deixamos de gostar deles. E. D.
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Elenco da Estreia de ANTES QUE A NOITE VENHA Espectáculo do Teatro da Cornucópia no Teatro do Bairro Alto em 13 de Março de 1992
ACTORES Luísa Cruz Rita Blanco Maria João Luís Márcia Breia
A C O R D E O N I S TA Pedro Soares Encenação Música
Adriano Luz João Loio
Antes que a Noite Venha
FALAS DE JULIETA
1. FALA À AMA GRANDE E GORDA
Traz-me o teu colo de antigamente para eu derramar nele a alegria que sobeja das palavras que ouvi. É prazer que não cabe em nenhum coração de pessoa. Caberá no teu colo quente e fundo uma parte pequenina. Vai-me buscar o copo de leite que antigamente me trazias e dá-me dois anos da tua vida grande, branca já. Com eles adivinharei a verdade toda nos olhos de cada homem e acreditarei nas palavras que ouvi e nas palavras que disse até ao fim dos dias. Ama adormece-me o respirar no teu colo de antigamente onde se abafa e esquece de mansinho. Eras grande e gorda quando nas noites te via. Assim te verei hoje na insónia que vou ter. Chega aqui o teu calor, mais pertinho ainda, para que o formigueiro que me enche o corpo, este segredo que me rói, não caia no chão não se quebre na pedra não se espalhe nos ladrilhos frios não se perca em estilhaços por aí. O mundo todo sabe o instante único do meu contentamento. Só eu não o pude ver por não ter água ou metal onde me espelhasse. 21
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Aprendi o olhar. Ele mo ensinou. Havia uma grande lua branca do outro lado. Estava claro de geada o campo. Desentrança os teus cabelos cinzentos que nunca vi soltar mergulha-os em óleos e azeites primeiro e eu ensoparei nesse teu mar os medos que espreitam e os ódios que há até os afogar. Afasta-me os sonhos bons para eu não sufocar na paixão que arde e transborda de mim. Ama, não te posso explicar, por mais que queira e te queira muito, ama. A beleza que tenho é tão nova. Nunca foi vista por homem nem por mulher. Se não por ele há meia hora. Gosto de mim. Gosto que ele goste. É de mim que ele gosta, ama. Antes mesmo de alguma vez me ver ou me saber, disse-me ele, e eu digo-te a ti. Fechado na mão esquerda tenho um coração pintado a sangue fresco. Até da espera gosto. Será curta. Acaba à hora exacta em que o sino claro há-de tocar. Então, na palma da mão aberta terei uma flor encarnada. Disse-me ele e eu digo-te a ti. Secou a chuva que me alagava o viver antes de lhe conhecer a voz e os passos. Guarda-me de pai e mãe que me querem casar. Não quero tornar a vê-los. Nem hoje nem nunca mais. Estás agora com o olhar preso à paisagem. O teu ouvido tenta encontrar-me os passos. 22
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Não me viste nem ouviste chegar da noite espessa. Tens medo que eu não volte mais. É disso que eu gosto, sabes. Faço medo a quem me ama, do muito gostar. Ama, sossega o teu amor. Cheguei. E vejo-te outra vez grande e gorda à luz da candeia. Voltei para logo regressar ao gosto de onde venho. Estou aqui só para te contar. Nunca tinha sentido o chão húmido da noite na pele que sempre lavaste com os teus cuidados de leites e rosas desmaiadas. Agora trago o cheiro das estevas. Cheira os meus braços, ama e abre os teus para receberes este meu regresso todo que te dou até metade. O relógio do universo começou a funcionar. Alguém lhe deu corda sem eu reparar. Vês a lua, ama, no campo de geada? Não tenho medo, sabes. Não afastes a noite de mim quando me olhares. Hoje sou dona de mim e daqueles em quem tocar. Não quero perder a memória de nenhum gesto. Tens tu de me ajudar.
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