Ensaios sobre Aristofanes

Page 1

ENSAIOS SOBRE ARISTÓFANES


Título: Ensaios sobre Aristófanes © Maria de Fátima Sousa e Silva e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2007 ISBN 978-972-795-187-1


Maria de F谩tima Sousa e Silva

Ensaios sobre Arist贸fanes

Cotovia



Índice

Nota introdutória

p. 9

Aristófanes como testemunho da teorização literária contemporânea

11

Crítica à retórica na comédia de Aristófanes

29

Aristófanes crítico da poesia

95

Nomos e sexo na comédia de Aristófanes

119

Ser ateniense: uma honra em risco? O testemunho de Acarnenses de Aristófanes

137

Os Cavaleiros de Aristófanes. Um padrão de caricatura biográfica do político Um deus em busca de identidade. Dioniso em Rãs

153 167

O escravo na comédia de Aristófanes. Potencialidades de um tipo popular

183

O soldado fanfarrão. Potencial cómico de um modelo épico

197

O estrangeiro na comédia grega antiga

229

A porta na comédia de Aristófanes. Uma entrada para a utopia

257

Execução dramática do tema ‘viagem’ na comédia de Aristófanes

275

Mulheres na Assembleia. Embrião de uma nova fase na evolução do género cómico

297

Índice de autores e passos citados

319

Bibliografia

339



NOTA INTRODUTÓRIA

Aristófanes foi, sem dúvida, um dos nomes mais sonantes da época gloriosa da comédia grega antiga – o séc. V a.C. ateniense. Dotado de qualidades de excelência, e de uma acuidade atenta sobre o mundo que o cercava, tornou-se um testemunho precioso de uma Atenas que somava, dia a dia, as suas maiores conquistas: a estruturação de um modelo democrático de vida social, a supremacia de uma cidade que se desejava cabeça de um império, o seu estabelecimento como sede de um espírito novo, onde intelectuais e artistas encontravam terreno propício ao engenho e à criação. Não sem que, por trás do brilho do sucesso, as nuvens negras do declínio se fossem adensando, à medida que a guerra e a corrupção se infiltravam, como vírus destruidores, num sonho de progresso que a muitos animara. Mais do que testemunho de uma experiência histórica, Aristófanes foi também o homem de teatro completo; alguém que começou na senda de uma tradição que vinha de há muito, seguindo modelos de antecessores que pisaram, galardoados pelo aplauso da cidade, a cena de Dioniso. Com o tempo – curto para tanto talento e determinação – , o poeta emancipou-se; enveredou então por uma linha de crescente independência artística e por um projecto de reforma e valorização da comédia. À criação, foi acrescentando a teorização, fazendo do teatro um estímulo permanente à reflexão e à prática. Como todos os que sabem pôr a vitalidade criativa que possuem ao serviço de uma causa e, por ela, correr riscos, o poeta de Egina recebeu, do público a que se dirigia, aplausos e apupos – de ambos é feita a contingência humana. Acolhido com simpatia, como uma novidade promissora, sofreu com Nuvens, a peça da reforma e da ousadia, a decepção de um terceiro prémio. Nada de mais penoso para o jovem Aristófanes, quando dava o passo – na


10

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

sua opinião decisivo – em direcção à maturidade artística. Da recusa do público, sempre recordada com amargura, Aristófanes tirou, porém, uma lição construtiva: a de que um auditório se educa pouco a pouco, se vicia, com passos curtos, na qualidade, para desabrochar, por obra dos verdadeiros génios, na excelência de um juízo crítico esclarecido. Aplicada a fórmula, a partir de agora com mais prudência, o caminho que se seguiu, na festa teatral, foi de sucesso, coroado com o prémio estrondoso de Rãs, na plenitude da idade e da profissão. Sobreveio a decadência, em consonância com a derrocada de uma Atenas que, também ela, depois de anos de ascendente e de pujança, vivia a crise sofrida do pós-guerra. Ao desencanto e cepticismo que a derrota foi instalando, postos em causa os alicerces em que assentou o brilho do século que terminava, correspondeu, no mundo do teatro, igual declínio. Sem resistências, a tragédia cedia, após a morte das suas duas últimas glórias, Sófocles e Eurípides. E a comédia, se resistia ainda, refugiava-se na mudança, de que Aristófanes continua a ser, para nós modernos, o testemunho fidedigno. Mas apesar do esforço, o poeta sentiu que os tempos eram outros, que esmorecia a energia do passado, e rendeu-se, com um lamento tristonho, a outros gostos que agora campeavam. Baixou os braços da resistência, abdicou da luta pela reforma que o tinha animado a vida inteira, quando, por entre os últimos aplausos, saudava ainda um público rebelde: Que a gente séria me dê o prémio pelo que, nesta peça, há de sério; e os que gostam de uma boa risada mo concedam pelo que nela há de risonho. É portanto a todos, por assim dizer, que eu peço a vitória. (…) Tratem de julgar os coros com imparcialidade, sempre. Não façam como essas marafonas de má raça, que só recordam o amante da véspera, sempre. Mulheres na assembleia 1155-1162 Maria de Fátima Silva


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA

Foi por acção dos Sofistas que a literatura grega, já com uma expressão de três séculos de sucesso, conheceu uma fase inovadora na sua evolução ao longo do séc. V a.C.: a reflexão teórica sobre a sua natureza, estratégias e gostos incrementou-se e constituiu, mais do que uma fonte de reflexões esporádicas como até então acontecera, um objectivo bem determinado de ponderação. Não se pretende, pois, afirmar que a reflexão sobre a origem e essência da poesia, numa sociedade onde o fenómeno poético tinha tão grande relevo, fosse uma atitude sem precedentes. Apenas encontrava agora, no próprio incremento intelectual a que o séc. V assistiu, um quadro propício de desenvolvimento. Por força do êxito de que então gozava, a literatura dramática tornou-se o alvo mais claro dessa análise, a motivar conclusões de natureza muito concreta sobre a execução da arte, a par de reflexões mais amplas sobre os grandes princípios que lhe estão subjacentes. A popularidade e a natureza agonística dos festivais impunha a discussão e convidava ao cotejo, numa procura de critérios para definir méritos relativos e para atingir uma doutrina segura sobre o drama. Esta acção fundamental dos sofistas no capítulo da teorização literária, de que existem vestígios significativos, espelha-se menos nos textos do seu próprio punho do que através de inúmeros testemunhos contemporâneos. Fruto de registos diversos e de sensibilidades ou objectivos múltiplos, as referências a uma nova maneira de encarar a produção literária não deixam dúvidas acerca da popularidade de que gozou junto de um público amplo, nem do tipo de questões que então foi oportuno valorizar. Nascia, como uma verdadeira disciplina, a crítica literária entre um povo que, por ter já produzido obra de génio em extensão, variedade e quantidade, atingia a fase de uma consciência do que é a técnica e o sentido social da criação literária.


12

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

Entre os testemunhos relevantes a propósito deste processo cultural e artístico contam-se os comediógrafos, em particular, dentro das restrições da sobrevivência dos textos, as peças conservadas de Aristófanes1. Mais do que um criador bem sucedido, Aristófanes foi também um técnico consciente das regras da arte que cultivava e, em certa medida, talvez lhe caiba por direito o primeiro lugar entre os teóricos da literatura na antiguidade grega. Desta faceta da sua actividade de homem do teatro nos dá conta a própria produção dramática conservada. E se a preocupação prioritária de divertir um público heterogéneo pode justificar o tom lúdico, exagerado e de rigor condicionado que é o dos seus depoimentos críticos, é igualmente correcto afirmar que, se abatidos os excessos caricaturais, a informação é de uma enorme importância dada a qualificação de excelência de quem a produz: um poeta de sucesso e um teórico competente na sua própria arte. Sem procedermos aqui a uma análise de pormenor do que é a realização técnica das diversas componentes formais da arte dramática, o que está para além dos propósitos deste texto, limitamo-nos a observar as reflexões que Aristófanes multiplica sobre as questões fundamentais da criação poética: a mimese como condição da criação dramática e como nível de relação entre ficção e realidade; a apate como a capacidade que uma peça tem de atingir e de influenciar o público; a relação íntima entre a natureza do poeta e a obra criada2; a finalidade prática da produção teatral; e, por fim, a condição do êxito, que advém de um equilíbrio entre as três pontas de um triângulo de sucesso: o poeta criador, a obra produzida e o público alvo. Parece claro que o progresso de Aristófanes como crítico literário, a par da sua evolução como poeta dramático, seguiu etapas visíveis de uma crescente maturidade. Desde as peças mais antigas que, de uma forma constante e cada vez mais profunda, a preocupação artística está evidente e as considerações técnicas se patenteiam, ainda que na ausência de uma formulação teorizante. 1 Sobre a difusão do tema da crítica literária entre os autores da comédia grega antiga, vide M.F. Silva, Crítica do Teatro na Comédia Antiga (Lisboa 21997). 2 Neste sentido, o3 i mimoúmenoi, como acontece em Poética 1448a 1, pode referir-se aos poetas criadores da ficção, como aos actores que dão corpo às personagens.


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA…

13

A paródia, ou seja, a recriação de uma situação que denuncie os traços a caricaturar, mostrou-se uma forma concreta de exprimir a crítica, menos madura talvez mas inegavelmente expressiva. Foi esta a via adoptada para uma maior expressividade e concretismo na transmissão de um saber muito técnico, de forma a torná-lo acessível a uma maioria dentro de um público por natureza disperso. Com o progresso do poeta e do próprio auditório, a reflexão foi adquirindo uma feição mais profunda e teorética, que atingiu no agôn de Rãs o auge do que está ao alcance de um poeta cómico conseguir em matéria de crítica literária. Já em 425 a.C., quando, em Acarnenses, Aristófanes punha em cena Eurípides pela primeira vez, a paródia literária ganhava o seu espaço de direito mesmo numa comédia cujo tema principal era a governação. Diceópolis, o cidadão preocupado em alertar os seus conterrâneos para uma política mais correcta na gestão do conflito armado com Esparta, pensava em Eurípides como um mestre na arte de criar piedade3 e de vencer pela persuasão. Ao vestir a pele de um novo Télefo4, como aquele que, para melhor convencer um auditório adverso, veste uma imagem comovedora antes de fazer um discurso convincente, Diceópolis tinha a noção de que a essa arte subjaz uma técnica de que os bons poetas são mestres consumados. Para suscitar piedade à maneira de Eurípides, o supremo artista nesse saber, o herói dos Acarnenses (vv. 383-384) pensa, antes de mais, na necessidade de vestir um trajo susceptível de potenciar o efeito mais comovedor possível. Nesta pretensão de Diceópolis vai latente uma crítica à espectacularidade por que a tragédia, pela mão decidida de Eurípides, enveredava. Com essa preferência, o poeta do Télefo privilegiava, acima da emoção a retirar do poder das palavras, a mais eficaz do ponto de vista técnico, a estratégia visual, apesar de mais superficial e sobretudo dependente de meros recursos materiais (Poética 1453b 1-8). Com 3 A ideia de que a tragédia possui uma capacidade efectiva de criar piedade é um conceito saliente e por demais assinalado, na expressão que Aristóteles lhe deu na Poética. Vide, a propósito desta noção, D.M. Lucas, Aristotle. Poetics (Oxford reimpr. 1972) 273-290. 4 Sobre o tema do Télefo e a sua utilização entre os autores de tragédia, vide M.F. Silva, Crítica do teatro na comédia antiga (Lisboa 21997) 112-114.


14

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

ousadias sensacionalistas deste teor ofendia-se definitivamente a dignidade dos velhos modelos, reconhecidos como potentes, mesmo se em termos de cena muito sóbrios. Muecke5 vai mais longe e entende que, para além de um visualismo exagerado mesmo se poderoso de efeito, Aristófanes está a criticar a insistência demasiada num processo, que acaba por se converter em cliché 6. Com a expressividade da visão exterior da personagem, que lhe acentua a decadência e a miséria, tem de conferir a linguagem, que há-de ser persuasiva, insistente, pedincha e, por todas essas características, ganhadora (vv. 416-417). A partir destes condimentos de base, o criador estabelece a dosagem mais a seu gosto; e, quando se trata de um poeta paradigmático deste tipo de excessos cénicos, a graduação tende a progredir até ao insustentável. Se o teatro de Eurípides, representado no guarda-roupa que a cena de Acarnenses nos retrata, se encheu de mendigos palavrosos, é particularmente interessante verificar como o poeta vai incrementando experiências sucessivas de um modelo de efeito. Os trapos de Eneu — é assim que Aristófanes estabelece um gráfico dos monarcas decadentes do trágico — são os de “um velho sofredor” (vv. 418-419), tão simplesmente; mas há-os “mais miseráveis” do que esses, os de Fénix por exemplo, que além de “velho miserável” era “cego” (vv. 420-421). “Mais miseráveis ainda” são os andrajos de Filoctetes, que, além de “velho sofredor”, era “mendigo” (vv. 422-424); “mais mendigos são os trapos imundos de Belerofonte”, que além do mais era também “coxo” (vv. 425-427). Mas mais sofredor e mais miserável do que todos os outros era sem dúvida Télefo, o modelo superlativo de toda a galeria (åqli≤tatoç, v. 436). O próprio Télefo se reconhece como o clímax do processo euripidiano da criação de mendigos, por todas as qualidades que acumula (vv. 471-472): a criatura mais inoportuna, a vítima mais falsa, o pedincha mais fastidioso, o infeliz mais pobretana, um tipo capaz de despertar emoções e raivas, fora de cena como dentro dela.

5

“I know you by your rags. Costume and disguise in fifth-century drama”, Antichthon 16 (1982) 22. 6 Cf. Rãs 841-842, que abona esta perspectiva.


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA…

15

Para além de mestre em apelar à piedade, Eurípides é também um artista da mimese como reprodução em cena, pela imagem e pela palavra, de figuras ou de situações sugestivas do real. Ainda que o termo específico de mimese esteja ausente deste contexto em Acarnenses, cabe às cambiantes progressivas de ‘parecer’ e de ‘ser’ a expressão do conceito. Para que o efeito mimético se torne mais e mais perfeito, o artista vai acrescentando ao seu quadro pinceladas de pormenor, que se adequem à tonalidade principal que cabe aos farrapos estabelecer. À ideia de “imitar” ou de “copiar” vai-se sobrepondo a conotação mais rica de “dar expressão”. A harmonia é fundamental à eficácia dos acessórios (kåkeîná moi dòç tåkólouqa tõn r‘ akõn, “dá-me também o resto dos acessórios destes farrapos” v. 438), mas o resultado final depende da dosagem dos pormenores. Reproduzindo palavras de Eurípides no Télefo (fr. 698 N2), Aristófanes (Acarnenses vv. 440-441) repete, em uníssono com o trágico, uma filosofia comum: “Porque é necessário, hoje, que eu pareça ser um mendigo, ser realmente quem sou e não simplesmente parecê-lo”. A questão em que esta teoria se apoia é a mimese, também ela graduada pelas ideias de “parecer” e de “ser”. O esforço de composição de uma imagem que pareça o modelo que a inspira — um mendigo —, se sucessivamente retocada e melhorada, acabará numa ficção realista, onde a réplica se sobrepõe ao próprio modelo que duplica. Este é o processo natural numa arte que se esforça por ser realista na concepção e nos contornos exteriores, dentro do qual quanto mais bem sucedida for a mimesis, mais eficaz resultará o produto final que é a apate ou “ilusão”. Para além de enriquecer o quadro visual estimulador dos olhos, Eurípides zela também por um tom de linguagem a condizer, de forma a que uma outra harmonia, entre o que se vê e o que se ouve, colabore num processo criativo coerente. Vestido de trapos e de barrete mísio na cabeça, Diceópolis respira ele próprio o poder mimético da imagem que reveste e começa a sentir a língua pronta para “um palavreado fiado” (v. 447; cf. vv. 451-452). Está consumado no essencial um bom modelo do que é o teatro tendencialmente realista de Eurípides, feito de estímulos visuais que se assumem como prioritários e parecem determinantes para todos os outros componentes vitais, a linguagem ela também desde logo


16

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

ao seu serviço. O poeta, na versão cómica de Acarnenses, reconhece, aflito, que emprestar os farrapos e acessórios da sua cena é entregar “a tragédia completa” (vv. 464, 470). Quando mais tarde, em 411 a.C., Aristófanes regressava à crítica a Eurípides em Tesmofórias — desta vez reservando-lhe um maior espaço e uma exploração mais profunda a que o pormenor técnico não escapava —, a mesma teoria essencial de que é o trajo que, em primeira mão, decide da natureza e do comportamento da personagem euripidiana, construída assim de uma superficialidade exterior para o interior, regressava. Prisioneiro das mulheres, depois de ter penetrado no reduto feminino das Tesmofórias sob a protecção de um disfarce, Mnesíloco via na ficção teatral a única forma possível de atrair em seu socorro o autor da sua desgraça, o próprio Eurípides. Ao construir a personagem mais a contento com vista ao efeito desejado, o Parente do poeta reflecte (Tesmofórias 850-851): “Vou representar (mimƒsomai) a Helena que ele compôs recentemente. Em todo o caso roupa de mulher já eu tenho”. Raciocínio semelhante é aquele que se impõe fazer, quando executado sem êxito o estratagema da heroína de Esparta Mnesíloco acciona outro, inspirado ele também numa criação recente, a de Andrómeda. Desta vez mais um pormenor realista vem acrescentar-se ao mero trajo feminino (vv. 1012-1013): “Em todo o caso, cadeias já eu tenho”. Só depois de verificar a verosimilhança da caracterização exterior, o Parente avança com as palavras, numa réplica capaz de sugerir criações frescas em todas as memórias. Esta mesma questão, que a visibilidade e o inconvencionalismo flagrante punham nas prioridades de um crítico como nas atenções do público, merece uma reflexão teórica conclusiva no agôn que defronta, no Hades de Rãs, os dois candidatos em disputa pelo trono da tragédia, Ésquilo e Eurípides. Ambos partilham um princípio basilar, que é o da construção da coerência dramática através da articulação harmoniosa de diversas componentes. Como a voz de um padrão antigo de arte, equilibrado e isento de exageros, Ésquilo defende a mimesis que suporta a criação poética em termos de uma cooperação bem doseada (vv. 1058-1061): “Força é, quando estão em causa grandes sentenças e pensamentos elevados, forjar palavras ao mesmo nível. Além de que é natural que semideuses se sirvam de uma linguagem mais elevada. Por-


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA…

17

que também os trajos que usam são bem mais imponentes do que os que nós usamos”. Não é indiferente a ordem pela qual o velho poeta enumera as suas ferramentas; na concepção que defende, a arquitectura do drama parte do assunto e logo das palavras que lhe dão expressão. Só no fim, como componente meramente exterior, os trajos se vêm ajustar, para as servir, às traves mestras do conjunto. O todo resulta consistente e sólido, cabendo ao que é profundo alicerçar toda a criação e ao que é superficial um simples contributo secundário. Este era o bom modelo que Eurípides veio deturpar e destruir. Com toda a autoridade de um verdadeiro especialista, Ésquilo diagnostica mesmo a táctica responsável por esse fatal desequilíbrio (vv. 1063-1064): “Logo para começar, as figuras reinantes vestiste-as de trapos, para as fazer parecer, aos olhos de todos, dignas de piedade”. Os reis mendigos constituem, portanto, um bom exemplo do desajuste infeliz da proposta euripidiana. Em nome da prioridade de outros objectivos, como a emoção e a piedade gratuita e intuitiva, o poeta dos Télefos alterou a dosagem. Em vez da sobriedade e harmonia entre os diversos traços do conjunto, deu às velhas personagens do mito, os soberanos da tradição, uma aparência e uma linguagem essencialmente incompatíveis com o seu estatuto (vv. 1063-1064, 1069); vestiu-os de andrajos, cobriu-os de acessórios banais e fez deles tagarelas inveterados. A partir deste exterior sugestivo tornou-os agentes activos de questiúnculas domésticas e convincentes figuras do quotidiano. Com a perda da sobriedade aristocrática da velha tragédia, a discrição da cena baqueava também. O décor passou a estar ao serviço do exagero sentimental e da banalidade das circunstâncias, imitando a experiência de vida do cidadão comum. A comédia por seu lado, mutatis mutandis, não divergia do mesmo ponto de vista da coerência desejável dos vários componentes dramáticos e sobre ele construía alguns dos seus triunfos mais permanentes. O Xântias de Rãs, inspirado pela competência poética do seu patrão, permite-se também ele avaliar, em termos equivalentes, a eficácia cómica (vv. 1-20). Trata-se, no caso da comédia, como absoluta prioridade no diálogo com o público, de despertar em vez da piedade o riso. O objectivo é portanto inverso nos efeitos, mas paralelo nos meios. A personagem agora central é não o “rei infeliz”, mas o “escravo carregado” de bagagens. Xân-


18

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

tias valoriza-lhe a linguagem, “aquelas piadas do costume”, os usuais palavrões de resultado seguro junto do público, com que o escravo compensa o seu infeliz destino. Mas o criado que desfia essas pérolas da retórica do mercado tem também uma inevitável e prioritária caracterização exterior: traz as bagagens às costas, suspensas de uma vara; repete gestos, como o de mudar a vara de ombro numa exibição de cansaço, o que anuncia, para um espectador avisado, a iminência dos mimos de linguagem. Impedi-lo de disparar o seu vocabulário de reclamação, apesar de se lhe ter esmagado o cos-tado com os pacotes, é decepar a personagem de metade da sua natureza e mesmo sujeitá-la a um acto de injustiça perante todos os seus iguais. Como é também, sem dúvida, defraudar a inevitável expectativa do público familiarizado com o processo. Trajo e linguagem harmonizam-se também neste caso padrão, em memorável equilíbrio, para explicar o êxito de um velho tipo convencional da comédia: o escravo. Mas mimese tem, na leitura de Aristófanes e no reflexo que ele espelha de um conceito contemporâneo, um outro alcance que não apenas aquele que resulta da verosimilhança entre a cena e o espaço onde se situa o público, ou seja, a própria vida. Mimese traduz também a adequação inevitável que terá de existir entre a psicologia do criador e a obra produzida, assim constituindo um triângulo de coesão indispensável. O que, no passado, tinha sido considerado dádiva dos deuses como dote concedido aos cantores, a inspiração poética, era agora entendido como produto da própria natureza humana. Há, antes de mais, uma chancela que o indivíduo terá de exibir para que se lhe reconheça, já do exterior, a marca do génio; mais não fosse do que por uma longa cabeleira, de que os talentos genuínos não precisam, o artista verdadeiro exibe, como personagem de um certo cenário social, o toque da diferença (Nuvens v. 545). Mas para além de uma aliança com o germe da arte que o inspira, o poeta precisa de uma confluência essencial com a obra criada, que espelha a imagem da alma do seu autor. Eurípides e Ágaton, dois poetas de sucesso colhidos pela comédia no reduto da sua privacidade, rodeados dos equipamentos de trabalho e apanhados em pleno acto produtivo, são o exemplo dessa conivência, que ou é espontânea ou tem de ser forjada com recurso à mimese. Aquele Eurípides que Diceópolis procura


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA…

19

em sua casa, nos Acarnenses, compõe de pés no ar (vv. 399-400, 410-411), como convém a um artista que cria coxos, cercado de um guarda-roupa de farrapos inspirador dos mendigos que produz (vv. 412-413). Mas se Eurípides, nos comportamentos com que opera, deixa apenas implícitas as regras a que obedece, Ágaton, quando por sua vez visitado pelo próprio Eurípides em Tesmofórias, tece sobre a teoria em causa eloquentes considerações7. No espaço que separa as duas comédias, Aristófanes progredira como artista e como teorizador, e por isso podia acrescentar agora, ao que antes se limitara a exibir, uma justificação técnica. Em companhia do poeta visitante, é Mnesíloco quem primeiro traduz todo o espanto que lhe causa a produção lírica que Ágaton compunha no momento. Se o Eurípides criador se rodeava dos acessórios cénicos da sua produção, Ágaton dedicava-se à composição de algo mais abstracto em questão de meios, os cantos líricos. O tom que deles se destaca é, na versão atenta do Parente, doce, a tresandar a mulher, erótico e sensual (Tesmofórias vv. 130-132). Este é o suspiro autêntico de um génio que habita uma criatura híbrida, um poeta em quem o masculino e o feminino coexistem em estranha combinação (vv. 136-143). Seguro de que entre o poeta e a sua poesia existe um cordão umbilical8, Mnesíloco, em desespero de causa, incapaz de encontrar para o seu questionário sobre a identidade de Ágaton uma explicação satisfatória, é ao canto que pretende recorrer, como um espelho que projecte a verdadeira imagem do seu autor (vv. 144-145): “Será que é ao teu canto que tenho de recorrer, já que tu próprio te não queres explicar?” Aí o anfitrião esclarece-o; como qualquer personagem de teatro, Ágaton usa um trajo de acordo com a sua natureza (v. 148), sob cujo efeito inspirador articula um canto a condizer. G.F. Else9 salienta a afinidade da noção de mimese em Aristófanes com a área do mimo. O esforço que Ágaton pressagia, para criar uma deter7

Não há unanimidade na interpretação de mimesis, neste passo, como um termo técnico. Sobre o caso veja-se a informação dada por F. Muecke, “A portrait of the artist as a young woman”, CQ 32 (1982) 54-55. 8 A mesma teoria é referida em Rãs, quando Eurípides explica a ausência de mulheres apaixonadas no teatro de Ésquilo por uma falta total de afinidade entre o poeta e Afrodite (vv. 1043-1045). 9 “Imitation in the fifth century”, CPh 53 (1958) 81.


20

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

minada personagem masculina ou feminina, tem que ver sobretudo com uma conformação externa, em termos de trajo e de atitudes. Seria assim uma imitação viva, ao estilo do mimo. Mas nada há em comum entre este conceito de mimese e a ideia de um súmfuton toîç ånqr≤poiç æk paídwn, “uma atitude natural no ser humano, desde a infância”, na definição de Aristóteles, Poética 1448b 5-9. Pelo contrário, na versão do comediógrafo a mimese subsidia o artista onde a fúsiç se mostrou incapaz de o fazer. Mas alheando-se dos limites do seu caso particular, a celebridade parte à avaliação da experiência geral do criador de poesia (vv. 149-152, 154-155): entre o poeta e a sua produção tem de haver um relacionamento estreito, natural (v. 167) ou artificiosamente forjado; para compor dramas de tónica masculina ou feminina, o poeta necessita de lhes adaptar a sua personalidade; as carências, a que a natureza não responda, terão de ser compensadas pela imitação (vv. 155-156). A mimesis é portanto, sob este ponto de vista, um apoio da natureza, e por isso um artifício que permite a simulação de um efeito genuíno. Noção semelhante resulta do Livro III da República de Platão. Os exemplos a citar dessa realidade são múltiplos. Ocorrem a Ágaton os casos que sente próximos do seu próprio, os de outros efeminados célebres que deram à poesia o requebro e sofisticação iónicos, como Íbico, Anacreonte e Alceu, ou a beleza de que eles mesmos eram dotados, como Frínico (vv. 160-166). A Mnesíloco vêm à memória sobretudo os maus (vv. 168-170): “Fílocles, que é feio, compõe coisas feias; Xénocles, que não presta, faz coisas que não prestam; e Teógnis, que é frio, torna frio também aquilo que faz.” Aparência, gestos e palavras concorrem, portanto, para recriar uma imagem real que é o ponto de contacto entre o criador e o público. Se o poeta consegue perfeição no seu objectivo, o de uma aproximação a um retrato convincente da realidade, a apate será completa e a conivência que a ficção teatral exige conseguida. Aí, nas palavras de Górgias (Encómio de Helena 8, Fr. B 23), o poeta conseguiu a excelência na arte de criar ilusão e o público, depois de mobilizadas as suas emoções, na de se deixar envolver pela mesma ilusão. Inspirado pelo Télefo de Eurípides, Diceópolis, já vestido de mendigo, avalia a sua capacidade de “enganar” ou de “iludir” um auditório. Rei mendigo e perito de oratória numa feliz


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA…

21

combinação, o protagonista de Acarnenses conta nesse momento com dois auditórios, um imediato e interno à ficção cómica, o coro, destinatário primeiro da rhesis que vai pronunciar, o outro exterior à ilusão cénica, o público de Aristófanes (vv. 442-444). Não é este último que está nos seus intentos persuadir, mas aquele de quem depende a sua sorte dramática, que o coro da peça corporiza. Sem usar o termo próprio apate, o herói disfarçado fala de deixar os car-voeiros de Acarnas imóveis de pasmo (ˇliqíouç parestánai, v. 443) e prontos a morder o isco de um bom discurso. Com uma linguagem pejorativa sobre a capacidade de reacção de um grupo adverso, o falso Télefo vaticina a adesão e empatia de um auditório difícil. A mesma capacidade de produzir apate é, no caso do agôn de Rãs, um talento de que os dois poetas em litígio documentam a importância, embora seja a ambos patente que se bateram por esse objectivo com meios opostos. É Eurípides quem primeiro, a título de denunciar a pompa altaneira do adversário, traz à discussão o famoso assunto e, desta vez, a palavra técnica que lhe corresponde10. Desde o primeiro momento das suas produções que o velho poeta tudo empenhava para “iludir” os espectadores ingénuos ainda, que tinha herdado dos seus antecessores (cf. æxhpáta, Rãs 909-910). Esta empatia conseguia-a Ésquilo por processos a carácter com o tom grandioso natural no seu teatro. E o exemplo mais sugestivo no que respeita à abertura das peças encontra-o o seu detractor nos famosos silêncios dramáticos. Refinados como momentos de enorme suspense, magnificência e ambiguidade sugestivas, estes episódios são pérolas daquela harmonia de elementos que o seu autor propagandeava como fundamental11. O isolamento da personagem em cena faz conjunto com a imobilidade e o silêncio; um véu que lhe oculta, sem quebras, o rosto dá ao mutismo e quietude uma vaga justificação, como sinal que é de luto ou de sofrimento; por fim, o todo resulta num produto de uma tragicidade limite, tanto mais eficaz quanto extensa e por isso 10 A palavra apate, registada em relação a Górgias no Encómio de Helena 8 e no Fr. B 23 (Plutarco, Moralia 348c), é vulgar em Platão, mas estranhamente ausente da Poética. Contudo um conceito próximo parece aflorar em 1460a 13, 1461b 11. 11 Vide supra, 16


22

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

mesmo desafiadora (vv. 911-915), para que concorrem a atitude, os acessórios de trajo, como a ausência de movimento ou de palavras. Táctica semelhante de explorar a personagem solitária no início de uma peça foi usada também pela comédia, com um efeito reconhecido. Três das peças conservadas de Aristófanes — Acarnenses, Lisístrata e Mulheres na Assembleia — abrem com a apresentação de uma personagem sozinha e impaciente com a demora das restantes. Diceópolis (Acarnenses vv. 28-32) faz mesmo desta estratégia dramática um comentário, que lhe salienta os processos e que, em traço inverso, não deixa de ser o reflexo de um modelo trágico. A solidão e a imobilidade inicial da personagem são paralelas; comenta Diceópolis (vv. 28-29): “Sou sempre eu o primeiro a chegar à assembleia e a sentar-me”. Mas porque se trata de uma cena de comédia, o herói embora sentado e solitário não consegue manter-se imóvel e mudo, antes se entrega por gestos visíveis à impaciência e agitação: “suspiro, bocejo, espreguiço-me, mando uns traques, chateio-me, faço rabiscos, arranco pêlos, deito contas à vida e lanço os olhos lá para o meu campo”. Activo na sua imobilidade, o lavrador cómico é também expedito nas palavras e nos queixumes, já que foi o protesto contra a ordem geral da vida da cidade que o trouxe tão cedo à assembleia. A reacção do público a estes estratagemas é testemunhada, em Rãs, pelo mais qualificado de todos os espectadores, o deus do teatro e patrocinador da festa em pessoa. O seu envolvimento e o prazer estético que este processo lhe causava, o deus tradu-lo de uma forma essencialmente activa. Mais do que deixar-se iludir, Dioniso “vibra e rejubila” (ëcairon… ëterpen, v. 916), num gesto consciente de empatia de um verdadeiro expert. Mas o restante público — o próprio Eurípides não pode deixar de o reconhecer —, se não tinha a mesma capacidade activa de aderir, nem por isso deixava de colher do efeito alguma emoção, mesmo se sobretudo aquele pasmo contagiante que se sente perante algo superior, ainda que não totalmente inteligível. “O espectador <comum> ficava sentado à espera”, tomado da mesma imobilidade, mas presa irresistível de um suspense que o curso da acção tardava em quebrar (v. 919). Cedia assim à sedução que o artista lhe preparara, dobrado ao logro da arte sem resistência, mas com aquela ingenuidade de alma que é a do bom espectador (v. 921).


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA…

23

À mobilização da emoção conseguida pelo espectáculo seguia-se a exploração da palavra, num movimento paralelo ao que Eurípides realizava com a imagem dos reis mendigos seguida da invariável rhesis. Apenas Ésquilo apostava mais nos enigmas, estimulava a apate através do paradoxo. Quando enfim falava, depois de atrair uma curiosidade envolvente, a personagem esquiliana deixava os ouvintes embasbacados; as palavras saíam-lhe longas e pesadas, ameaçadoras e ambíguas, impenetráveis e distantes (vv. 923-926). E o fascínio nascia desse mesmo distanciamento que prende e arrebata os sentidos, mas a que a razão mal tem acesso. Eurípides encontrou também um charme próprio junto do público, conquistou-o por um outro tipo de apate, em que a clareza se afirmou como a arma principal (v. 927). Para que a oposição frontal dos participantes num agôn se torne evidente, a assimetria é denunciada num contexto comum, o do arranque das produções euripidianas (vv. 946-950). À personagem solitária substitui-se um elenco de figuras, que contrastam em sexo, estatuto social e sensibilidade. O imobilismo é afastado pelo movimento da entrada da figura que aparece em cena (o†xi≤n, v. 946) e se mantém permanentemente activa (o†dèn… årgón, v. 948). Mais ainda, o silêncio cede desde logo lugar à palavra, usada por todos, numa tagarelice voluntária e reveladora que não deixa margem a ambiguidades. É também evidente que o mundo onde tantas personagens agora fervilham — a mulher, o escravo, o patrão, a moça, a velha — tem um sentido mais doméstico, como caseiras são as intrigas em que os novos agentes se vêem envolvidos (vv. 959-960). Toda a estratégia dramática é oposta nos objectivos e nos processos, mas nem por isso o efeito conseguido é menos empático. Eurípides produzia apate “sem tirar o seu público do sério nem o deixar aparvalhado” (v. 962), antes conquistando-lhe a compreensão e a participação activa. Depois de ouvir os dois adversários, Dioniso pode constatar a forma oposta que usam na mobilização do público e os resultados obtidos (vv. 980-991): activo de movimentos, sonoro de voz, curioso de perguntas sobre realidades comezinhas o de Eurípides; estupidificado, boca aberta, atónito e imóvel o de Ésquilo. Assim, para a apate não existe uma única medida ou um só modelo; o tom marca-o sempre o poeta e,


24

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

se talentoso, não deixará de projectar no público a marca da sua própria personalidade. Estabelecida uma ordem de relações entre o poeta e a obra criada e de ambos com o público, uma palavra cabe ainda a propósito daquela que é a real capacidade de interferência do artista sobre o auditório, razão do seu mérito e garantia do almejado prémio. O Aristófanes que, nos Acarnenses de 425 a.C., se afirmava ainda como um novato na sua arte, alardeia em alta voz aquele que a comédia assume como seu objectivo principal: afirmar o que é justo, mesmo com risco de ser desagradável (vv. 499-501). E logo a parábase da mesma peça se convertia num hino à qualidade e função didáctica do género cómico. Perante o seu público (vv. 633-635, 641), o poeta reclama os bons serviços prestados, na denúncia dos perigos e das seduções falsas que achacavam os Atenienses e nos elogios com que assinala os verdadeiros valores cívicos de uma democracia (v. 642). A prestação de um tal serviço público comporta riscos e exige desassombro (vv. 645-646) — o próprio Aristófanes o sentira na pele pela experiência ainda recente da perseguição de Cléon —, mas é o traço genuíno do mérito de um poeta. A carácter com a própria natureza da comédia, a mensagem didáctica é veiculada pela maledicência (v. 649); mas deve reconhecer-se que superior é aquela sociedade que tiver um poeta que a não poupe aos seus ataques. Mais uma vez a empatia aflora quando a firmeza de um poeta e a sua qualidade ecoam nos espíritos do público que, por obra sua, se vão tornando também eles firmes e superiores. E a rematar as considerações sobre o verdadeiro mérito de um poeta, o coro de Acarnenses (vv. 656-658) começa por falar dos muitos ensinamentos de que um poeta é a origem, para concluir que a dureza, a frontalidade, a censura, dotadas do poder de uma verdadeira terapia, podem superlativar um pollà didáxein ågaqá (“ensinar muitas coisas boas”) num tà béltista didáskwn (“ensinar onde está o bem”). Esta preocupação prioritária na definição da arte cómica como rival das criações mais elevadas, por mérito da função social que desempenha, Aristófanes repetiu-a sem cessar, como a recapitulação necessária e permanente de um princípio de que a legitimidade de uma verdadeira carreira dramática dependia (cf. Cavaleiros vv. 509-510, Vespas vv. 1030, 1036, 1043, Paz vv. 754-764).


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA…

25

À defesa da ética e dos valores sociais, um bom poeta alia um outro objectivo pedagógico não menos relevante: o de educar a sensibilidade estética do público, de se empenhar na qualidade da sua produção, de a explicar aos espectadores e fazer valer os próprios méritos mesmo quando humilhado e dorido pela incompreensão do público. Da sua experiência, o poeta de Nuvens retira um exemplo modelar: uma peça que era de real qualidade não envolveu o público (cf. Vespas vv. 1044-1050), que lhe virou as costas para aplaudir rivais de pouca categoria. Atingido por esta ingratidão, o poeta não esmoreceu; explicou aos espectadores onde estavam as qualidades autênticas da peça (Nuvens vv. 537-544); aplicou-se, de futuro, a usar a dose certa dos condimentos da arte, apenas salpicados de algumas cedências à tradição e à expectativa menos refinada do grande público (Vespas vv. 56-66), num esforço sem quebras em nome da depuração progressiva da arte (cf. Paz vv. 748-750). Prosseguia o poeta na certeza de estar a conduzir a arte pelo caminho certo, dentro do mesmo comportamento que Ésquilo e Eurípides, duas glórias da arte trágica, reconheciam como revelador de excelência. Quando se tratava, para os dois poetas de Rãs, de avaliar o paradigma de uma verdadeira arte, o benefício do seu papel didáctico sobressaía desde logo na capacidade que os espectadores agora evidenciavam como críticos. Longe iam os dias em que o público se limitava a embasbacar perante os desafios que lhe eram lançados da cena. O efeito de apate, de ilusão, encontrava neles agora o eco de verdadeiros críticos, depois que um Eurípides, como representante de todo um movimento iluminista de que os sofistas tinham sido os impulsionadores, os havia industriado nos segredos de uma avaliação consciente da arte (Rãs vv. 954-958): “E mais, a estes aqui fui eu que os ensinei a parlapatar e lhes enfiei na cabeça as bases das regras subtis e a esquadria das palavras, e a pensar, a ver, a compreender, a gostar de tornear, a maquinar, a suspeitar do mal, a avaliar tudo e mais alguma coisa”. Com este esforço pedagógico que o poeta soube desempenhar junto do público, duas capacidades passaram a integrar o espírito colectivo e a exercer sobre a arte um indispensável controle, na hora de aplaudir ou de premiar: logismóç e skéyiç (vv. 973-974), “o raciocínio e a observação” atenta e qualificada.


26

MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA

Preparava-se o terreno, com este acumular de reflexões sobre uma questão prioritária — a da verdadeira missão do poeta, o mesmo é dizer, qual o seu papel ou utilidade junto do público —, para a pergunta de fundo que Rãs formulou com uma clareza única nos textos que conservamos sobre o assunto (vv. 1008-1010): “Diz-me lá, em que reside o mérito de um poeta?” Para permitir agora uma resposta amadurecida: “No talento e no conselho, porque tornamos melhores os homens em sociedade”. Na resposta, projectam-se antes de mais as qualidades objectivas: a excelência e o toque de génio que garante a superioridade do pensamento e da expressão, de que só o verdadeiro artista é capaz, acompanhados da intervenção didáctica que é a finalidade última da criação literária. Fica reconhecida a vantagem do didacticismo como a razão de ser do processo criativo, o para quê pragmático da criação, até porque ao didacticismo é reconhecido o mérito de moldar o talento criativo e a competência crítica. Com a mesma preocupação — a de ser útil — cada poeta conforma o seu talento dentro de um gosto e de uma capacidade artística que lhe é própria. Ésquilo e Eurípides foram dessa regra também modelos opostos, sempre em nome de um dever que nenhum deles renegou, o de ensinar. Ésquilo quis levar o seu público a erguer os olhos para paradigmas superiores, colhidos na tradição épica, distantes da experiência do imediato, e por isso mesmo referências absolutas e já clássicas (vv. 1019 sqq.). Com tais paradigmas, o poeta estimulava sobretudo a imaginação que dita o desejo de elevar o espírito acima do comum e de almejar uma verdadeira aretê. Por isso, Aristóteles (Poética 1448a) o reconheceu como exemplar na opção que fez de “retratar os homens melhores do que eles são”. A missão de cativar o público para a mensagem das suas produções desempenhou-a Eurípides dentro de outros critérios. O seu projecto persegue uma perspectiva realista de criação (vv. 1052-1053), uma mimese decalcada sobre a realidade da vida de onde o intuito moralizante foi irradiado. Não deixou por isso Eurípides de exercer uma função didáctica junto do público; mas aquilo que lhe ensinou a avaliar contribuiu para lhe degradar a alma; a exibição das fraquezas humanas e dos crimes que fazem parte do quotidiano formou personalidades, naturalmente, mas dentro de um mundo que respirava decadência e crise (vv. 1078-


ARISTÓFANES COMO TESTEMUNHO DA TEORIZAÇÃO LITERÁRIA…

27

-1088). Quando cotejados os dois modelos nos seus métodos e resultados, o prémio terá de caber àquele que acompanhou anos prósperos e contribuiu para a grandeza de Atenas (vv. 1482-1499). Não é portanto a qualidade técnica que em fim de contas se impõe, mas o resultado pedagógico produzido pela criação literária. Com a consciência artística que um verdadeiro talento natural proporciona, afinado pela experiência e pela reflexão, Aristófanes traduzia o sucesso pleno da criação literária num triângulo de equilíbrio, desenhado em torno de uma sofía artística, que é a da competência. Ligados por traços firmes de uma coesão indispensável, poeta, público e peça ocupam cada ponta deste traçado geométrico, cada um deles sofóç em consonância com os restantes (Nuvens vv. 520-524). Só de um ajuste correcto dos três vértices pode sair a glória, que torna imortais os poetas e as suas criações, como superiores e realizados os espíritos daqueles que, ao som dos aplausos, os colocam no pedestal dos bem-aventurados.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.