Os anjos nus

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Título: Os anjos nus © A.M. Pires Cabral e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2012 Todos os direitos reservados ISBN: 978-972-795-331-8


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A.M. Pires Cabral

Os anjos nus

Cotovia


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Índice

Memória justificativa

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Os anjos nus

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Uma cruz na testa, outra nas costas da mão

26

Acender o cigarro no lampadário da igreja

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Uma carta ao Menino Jesus

59

O salvo-conduto

70

Para além das águas

97

Vilar Frio

127

O Diário de C*

173 173 194

II Parte — A Agenda Grandella II Parte — Uma história de amor


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Memória justificativa

Dos oito contos que constituem este volume, apenas dois (“Os anjos nus” e “Uma cruz na testa, outra nas costas da mão”) aparecem pela primeira vez. Os contos “O salvo-conduto” e “Vilar Frio” foram publicados no volume Três histórias trasmontanas (1998), que mal chegou a ser distribuído: tenho num armazém dois ou três caixotes deles! “Vilar Frio” tinha aparecido anteriormente, em edição bilingue, a ilustrar Terra Fria Portugal (Marval, Paris, 1997), álbum de fotografias de Georges Dussaud. “O Diário de C*” constituiu um volume com o mesmo título (1995), que terá circulado ainda menos do que as Três histórias trasmontanas. “Para além das águas” fez parte de uma antologia de contos de diversos autores trasmontanos, intitulada Histórias da terra (1999), que seguramente circulou ainda menos, muito menos, do que os anteriores. Em relação à versão original, todos eles sofreram retoques, por vezes de certa monta. Finalmente, “Acender o cigarro no lampadário da igreja” e “Uma carta ao Menino Jesus” apareceram no suplemento de Natal do Jornal do Fundão (de 2010 e 2011, respectivamente), que tem uma circulação bastante mais alargada, mas foram entretanto reescritos e tão substancialmente alterados que me pareceu justo dar-lhes a oportunidade de virem segunda vez a público.


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Alguns destes contos foram vagamente inspirados em acontecimentos verĂ­dicos, que todavia o autor tratou com a maior das liberdades, nĂŁo devendo pois ninguĂŠm considerar-se retratado neles.


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SABIA-SE NA TERRA que a Menina Florinda falava com as imagens da igreja. Havia muito quem tivesse ouvido. Nem ela se escondia de ninguém para o fazer: fazia-o com a maior das naturalidades. E o que dizia? Coisas geralmente amistosas, do género “ora vamos lá então acender esta velinha” ou “passaste bem a noite, Santa Catarina?” Já isto, por si só, era caso para estranhezas. Mas alguns asseveravam que, quando estava mal-disposta, a Menina Florinda não se limitava a falar com elas, também ralhava. E era ainda fama que não só falava e ralhava, como, umas vezes por outras, em momentos de impaciência extrema, exacerbada pelas instabilidades da menopausa, lhes dava estaladas exactamente como fazia na catequese aos meninos mal comportados ou distraídos ou incapazes de papaguear a salve-rainha de fio a pavio. Mas isso já era claramente do domínio da fábula e não merecia crédito, nem de resto interessa muito a esta história verídica. Nunca ninguém viu. Vamos por partes.

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Ao tempo em que estes sucessos se deram, a Menina Florinda tinha cinquenta e dois anos de idade e era solteira, e por isso é que todos lhe chamavam ‘menina’. As mulheres solteiras, no Norte, são meninas até à morte. E, daquelas que morrem virgens, diz-se que no outro mundo vão levar com a moca de Santo Hilário, confluindo na palavra ‘moca’ óbvias sugestões lascivas. Seria esse o caso, seguramente, da Menina Florinda, quando morresse, pois que virgindade mais arreigada e virtude mais inabalável não se conheciam por aqueles sítios onde o pecado era regra. A Menina Florinda era a catequista número um, espécie de superiora hierárquica de mais duas ou três catequistas subalternas que, ao contrário dela, faziam catequese a tempo parcial. Ela fazia catequese a tempo inteiro. E mais: o que ela dizia era o que se fazia. Era ela que definia o programa anual da catequese. O próprio pároco, Padre Raimundo, dava-lhe rédea larga, porque sabia que ela decidia sempre a favor da Santa Madre Igreja e também porque ter alguém de confiança a gerir aqueles assuntos mais ou menos acessórios sempre era tirar um encargo de cima dos seus ombros já cansados. Mas não se pense que, fora disso, o Padre Raimundo deixava a Menina Florinda pôr o pé em ramo verde. Deixava-a superintender na catequese e no asseio da igreja; daí para cima, não abria mão da sua própria autoridade. Quando um ano ela come14


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çou a querer meter o bedelho no programa das festas ao Mártir São Sebastião, orago do lugar, o Padre Raimundo cortou-lhe cerce as veleidades. — Ne sutor ultra crepidam — disse ele, e traduziu: — Não vá o sapateiro acima da chinela. A Menina Florinda sentiu-se ofendida por o padre lhe ter chamado ‘sapateiro’. Viu no uso do masculino uma piada ao seu celibato. Como quem diz: ‘Não casaste porque és machorra.’ Ainda se lhe tivesse chamado ‘sapateira’. Mas depois filosofou que isso seria ainda pior, pois sabia vagamente que sapateira era o nome de uma criatura marinha, vermelhusca, com carapaça, cheia de picos e antenas — uma como que representação do diabo, para pior —, e deu-se por feliz por não ter sido sapateira que lhe chamou. E por fim a sua devoção pela igreja e pelas funções de catequista e zeladora número um falou mais alto, e a Menina Florinda perdoou ao padre e desistiu de ir acima da chinela. Era a Menina Florinda, como se disse, a catequista número um. Essa honra conquistara-a por mérito próprio, porque não havia outra mais dedicada à igreja e suas precisões. A Menina Florinda não tinha encargos familiares. Era solteira e vivia debaixo do mesmo tecto com um irmão casado, mais novo que ela, a quem prometera deixar todos os seus bens em morrendo, por isso estava liberta de tarefas caseiras e podia empregar todo o seu tempo em actividades pias. A cunhada facilitava-lhe este 15


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modus vivendi com o olho na herança, que não era coisa pouca. Assim, mal se levantava e desjejuava, a Menina Florinda metia-se na igreja, onde tinha sempre coisas para fazer ou, se não tinha, inventava. Por lá entretinha o tempo. Vinha a casa só para comer e dormir. — Só falta mandar pôr uma cama na sacristia e passar também a dormir lá — aventavam as más-línguas da terra, a quem tão fervorosa dedicação pela igreja causava a sua aquela. — E comer? — Hóstias. De tantas horas passadas debaixo da telha da igreja e de tanto conviver com os santos é que terá nascido, pensa-se, uma certa intimidade, que se traduzia naquela balda de falar com eles. (Quanto ao ralhar e ao esbofetear, ninguém podia jurar que acontecesse.) Falava com eles afectuosamente (disso havia muitas testemunhas) quando alisava o manto às imagens de roca ou, às mais antigas, espanava o pó acumulado na madeira ancestral de que eram feitas. Falava também com elas quando mudava as flores nas jarras respectivas. — Estes crisântemos já precisavam de ser mudados. Já tinham cheiro — dizia, enquanto executava. É tempo de dizer que a maledicência local não falava só de ralhos e bofetadas, mas também de carícias equívocas à imagem do padroeiro, São Sebastião, que, mesmo crivado de setas, não deixava de 16


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exibir uma formosa sensualidade na sua nudez. Para ele — murmurava-se — as palavras eram sempre mais doces do que para os outros bem-aventurados que se veneravam na igreja. Mas, uma vez mais, tudo isso era do foro da fábula: ninguém podia jurar a pés juntos ter jamais visto semelhante desacato portas adentro da igreja. Uma mulher solteira em tal idade é que é sempre uma vítima fácil destas murmurações. E ainda que fosse verdade. São Sebastião não era o orago do lugar? Havia pois que tratá-lo com mais deferências. O que não era simples murmuração, antes estava provada e era do conhecimento geral, era a embirração da Menina Florinda pelos piriléus dos anjinhos de talha dourada dos altares. Também aqui a maledicência local tinha uma palavra a dizer: — O que ela precisava era de um piriléu, mas daqueles a sério, como deve ser. Não era o dos anjinhos. Parecia-lhe que aquelas miudezas anatómicas não quadravam bem com a austeridade dos altares. A Menina Florinda trazia mesmo uma pendência com o Padre Raimundo sobre os inocentes órgãos genitais que a seus olhos eram culposos como tudo o que entendia com o mecanismo de reprodução humana. Que era um escândalo, portas adentro da igreja, aqueles meninos com as vergonhas à mostra. 17


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— E que quer a Menina Florinda que se faça? Queimam-se os anjinhos? — Não seria mal. Pelo menos acabava-se com aquela nudez tão perniciosa às almas. — E juntamente com os anjinhos, lá se iam as volutas, as folhas de acanto, as uvas e os pássaros que bicam nelas… Ora tenha mas é juízo. Aquilo é arte, e como arte tem de ser respeitado. A Menina Florinda calava-se, vencida mas não convencida. Arte, aquela desvergonha? Bonita arte, não havia dúvida… À noite, como era atreita a insónias, pensava no escuro que o Padre Raimundo era um casmurro e não se preocupava verdadeiramente com o efeito que a genitália dos anjos podia acender na imaginação da juventude. Matutava em busca de uma solução para o escândalo. No dia seguinte, lá estava a serrazinar outra vez o Padre Raimundo. — Ó Menina Florinda, então não vê que até no Vaticano, que é a sede da nossa santa religião, são às pazadas as figuras bíblicas com as partes à mostra? E olhe que não são só os anjinhos inocentes, não. São também os nossos primeiros pais, que foram grandes pecadores e lá estão escarrapachados com o que Deus lhes deu à mostra. — O que se não vê não se sente. Quero lá saber o que vai no Vaticano. Aqui, na nossa santa terrinha, é que me dói aquele desaforo. São trinta e seis, já os contei, os anjinhos despidos. Bastava que hou18


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vesse um só para o escândalo já ser grande. Agora trinta e seis… — Tenha mas é juízo — rematava o padre e voltava-lhe as costas. Mas à medida que o tempo passava mais se encarniçava contra a nudez angélica e se lhe encasquetava cada vez mais fundo na cabeça a ideia de que havia que expurgar da igreja aquele permanente motivo de desassossego das consciências. Uma noite, na insone consumição do costume, entreluziu-lhe uma solução: amputar os apêndices vergonhosos dos anjinhos. O Padre Raimundo não queria? Pois queria ela! Se era tudo pela santa religião! Sentia-se uma Judite varonil e ardilosa, disposta a livrar do general Holofernes a sua cidade de Betúlia. Gostou da comparação bíblica e glosou-a durante algum tempo, até que o sono veio. O Padre Raimundo tinha-lhe dito que ia à caça na manhã seguinte. Por isso, depois do mata-bicho, muniu-se de uma navalha da poda e meteu direita à igreja, muito resolvida a sanear de uma vez por todas o estado de coisas. Preparava-se para atacar o primeiro dos trinta e seis réus de alta traição, quando o Padre Raimundo entrou na igreja. Nessa manhã acordara com uma pontinha de ácido úrico no pé esquerdo e não fora à caça, como anunciara e a Menina Florinda esperava. Calhou passar pela igreja. 19


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— Que diabo julga a Menina Florinda que vai fazer? — perguntou o padre, vendo-a de navalha em punho. — Aquilo que o senhor Padre Raimundo não tem coragem de fazer. Se os governantes de Betúlia não rechaçam Holofernes, tem de haver uma Judite que o faça! — Qual Betúnia, qual carapuça! Estamos em Vilar de Moucos! Nem pense! Ou pousa imediatamente a navalha, ou nunca mais entra nesta igreja enquanto eu vivo for! Ainda dessa vez se fez segundo a vontade do Padre Raimundo. Ser removida da igreja, a sua casa verdadeira — credo! A Menina Florinda meteu a navalha na patrona e pôs-se a cuidar dos santos. Mas não sem resmungar baixinho entre dentes: “Este estafermo deste padre nunca mais morre, que Deus me perdoe.” E não sabia bem se era o padre, se as pilinhas dos anjos, o verdadeiro Holofernes que urgia rechaçar.

INFELIZMENTE PARA O PADRE RAIMUNDO o resmungo da Menina Florinda cedo se mostrou precipitado: morreu passados quinze dias. O coração já lhe tinha mandado diversos avisos, o último dos quais deixara marcas visíveis: a boca ligeiramente torta e uma 20


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