Judaismo - dispersão e unidade

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JUDAÍSMO DISPERSÃO E UNIDADE


Título: Judaísmo — Dispersão e unidade © Moacyr Scliar © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2010 Publicado pela 1.a vez no Brasil, pela Editora Ática, São Paulo, 2001 ISBN 978-972-795-316-5


Moacyr Scliar

Judaísmo Dispersão e unidade

Cotovia



Para Miguel e Miriam Para Nelson, Nancy e os amigos da Brown University



Índice

Introdução

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Capítulo 1 MITO E HISTÓRIA O começo Canaã O monoteísmo Moisés e sua lei

17 17 22 24 31

Capítulo 2 TEMPOS BÍBLICOS Unidade nacional

37 37 9


A voz dos profetas Sob o domínio de grandes potências Surgimento das seitas O cristianismo

41 44 51 57

Capítulo 3 RUMO À IDADE MÉDIA Rebelião e derrota A dispersão O Talmude Os judeus medievais

60 60 63 66 71

Capítulo 4 BRILHO E MISTÉRIO Esplendor judaico entre os árabes Os judeus e o declínio da Idade Média A Cabala Os falsos Messias

75 75 80 84 87

Capítulo 5 EM BUSCA DA MODERNIDADE A transição para novos tempos Liberalismo e iluminismo O judaísmo na Europa oriental Humor e chassidismo

91 91 94 98 102

Capítulo 6 GUETOS E PERSEGUIÇÕES A contestação Os judeus na União Soviética A volta a Sion O nazismo 10

109 109 116 118 121


Capítulo 7 A PÁTRIA E AS PÁTRIAS O surgimento do Estado judeu Fazendo a América Judeus no Brasil

125 125 128 132

Bibliografia

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INTRODUÇÃO

Parece óbvio que, independentemente dos aspectos metafísicos, espirituais, a religião é um fenômeno indissoluvelmente ligado à História. O surgimento e as modificações do judaísmo como religião foram condicionados por inflexões históricas. Das areias do deserto emergiu o monoteísmo; da necessidade de coesão grupal surgiu o código de ética mosaica. O Templo aparece como a resposta religiosa à necessidade de união nacional; o cristianismo 13


e as seitas messiânicas correspondem às expectativas apocalípticas de um povo subjugado e em intenso conflito interno. O surgimento da Cabala coincide com o do chassidismo. Quando os judeus se entrosam na sociedade ocidental, é no reformismo que encontram uma forma mais adequada, menos conspícua, de praticar sua religião. E o fundamentalismo em Israel apresenta pontos em comum com os de outras correntes religiosas da região. Mas o judaísmo não é apenas uma resposta a determinadas condições históricas, como queria Marx — ou Sartre, para quem o judeu é uma criação do antisemita. O Judaísmo foi o ponto de partida para uma filosofia de vida e sobretudo para uma pujante cultura, cujos resultados ainda podemos admirar. Não é o “fóssil da História” ao qual o historiador Toynbee se referia com aristocrático e equivocado desprezo; é uma surpreendente manifestação do espírito humano, produto de um grupo que não é nem melhor nem pior do que outros grupos, mas que é diferente, e que fez da diferença um instrumento de sobrevivência. Nas parábolas bíblicas, nos textos chassídicos, nas anedotas do gueto, é a 14


diferença que nos surpreende, encanta e emociona. Filho e neto de imigrantes, nasci em Porto Alegre, no bairro do Bom Fim. Ali me criei, ouvindo as histórias que meus pais e nossos vizinhos contavam, sentados em cadeiras na calçada nas noites de verão ou ao redor da mesa de chá no inverno. Histórias que incendiavam minha imaginação e que muito cedo me levaram a colocar no papel minhas próprias narrativas — no que era ajudado por minha mãe, ela própria uma grande contadora de histórias e professora na escola judaica do bairro. Grande parte do meu trabalho de ficção resulta de vivências da infância ou da juventude e também de episódios históricos. Como escritor, sinto-me herdeiro de uma pesada carga de sofrimentos e de uma rica tradição cultural, da qual é parte a reverência pela palavra escrita. Livros foram parte de minha vida, e não sei de melhor maneira para falar do judaísmo do que um livro, mesmo modesto como é o caso deste que agora se inicia.

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CAPÍTULO 1

MITO E HISTÓRIA O começo “E disse o Senhor a Abrão: sai de tua terra, e da terra de teus parentes, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. Para ti farei uma grande nação, e te abençoarei e engrandecerei o teu nome…” (Gênesis, 12. 1,2). Com estas palavras, tem início a trajetória de um singular grupo hu17


mano que ao longo dos milênios tem sido exaltado e perseguido, sobretudo perseguido: o holocausto nazista não foi senão a culminância de um processo que, em vários momentos da História, se traduziu em humilhação, em castigo, em extermínio. Claro que os judeus não são as únicas vítimas de genocídio: negros, ciganos, armênios, sem falar nos índios, pagaram pesado tributo ao preconceito e à intolerância. No caso dos judeus, contudo, esta penosa trajetória é excepcionalmente longa. E é documentada, graças a um admirável apego à palavra escrita, primeiramente expresso num texto que marcou a nossa civilização: a Bíblia, de onde foram tiradas as palavras acima. O que é mesmo a Bíblia? O termo vem do grego e significa “livros”. Porque não se trata de um livro só, mas de uma coleção deles. Em hebraico, tal coletânea chama-se Tanach (este ch final é aspirado). O hebraico gosta muito de siglas, e esta é uma delas, formada à base de três letras: o T de Tora (que, por sua vez, é a reunião dos cinco livros de Moisés — o Pentateuco), o N de Neviim (Profetas) e o CH de Chetubim (Escritos). A Bíblia é muito antiga — 18


começou a ser escrita entre os anos 950 e 850 antes da era cristã — e, como era de esperar, não tem um só autor. As análises dos especialistas mostram que o texto foi escrito em diferentes momentos e estilos — ou tradições: a mais antiga é a tradição Yavista ou Jeovista (simbolizada pela letra J), que dava a Deus o nome de Yaveh ou Jeová. Na verdade, não sabemos exatamente como se escreve, ou se pronuncia, o nome de Deus em hebraico. Como o texto bíblico não tinha vogais, tal nome era expresso pelo tetragrama, quatro letras hebraicas correspondentes a YHVH, e pronunciado apenas uma vez ao ano pelo Sumo Sacerdote no Templo de Jerusalém. Não havendo gravadores à época, fica a incógnita: Yaveh ou Jeová são duas possibilidades. Nas preces e no quotidiano, usava-se a forma Adonai ou Eloim, que surgiu depois: a segunda tradição chama-se justamente Eloísta e é simbolizada pela letra E. Depois vêm a tradição do Deuteronômio (D) e a Sacerdotal (P, do inglês Priestly). Nem tudo que a Bíblia conta refere-se à história do povo judeu. Como outros relatos da Antigüidade, ela contém mitos. O mito é uma tentativa de explicar, por 19


Bíblia de 1525, que seria modelo para Bíblias rabínicas posteriores. Notar comentários anotados às margens.

meio de uma narrativa que tem caráter sagrado, o mundo em que vivemos. Como surgiu o homem? A ciência tem uma expli20


cação, ou várias, a Bíblia, uma só: Deus o criou a partir do barro (daí o nome Adão, que vem do hebraico adamá, terra). Já a mulher surge depois, de acordo com a tradição patriarcal; muitos historiadores relacionam Eva com a deusa hitita Heba, filha do deus da tempestade, que cavalgava nua um leão. No Gênesis, não há referência à primeira mulher de Adão, Lilith, mencionada em lendas judaicas posteriores e lembrada pelo profeta Isaías; a perversa e sedutora Lilith seria uma versão hebraica de Lilitu, espírito maligno babilônico. O culto a uma deusa poderosa (por exemplo, Ishtar ou Astarté) era muito disseminado no Oriente Médio, mas não seria adotado por um pequeno grupo que, comprimido entre potências como Egito e Assíria, queria manter a sua independência, inclusive em termos de religião. Assim, os rituais canaanitas foram sendo banidos, ainda que lembranças míticas pudessem ter sido preservadas: o dilúvio é um destes mitos compartilhados pelos judeus com vários povos da Antigüidade. A primeira parte do Gênesis é, portanto, mitológica. 21


Na segunda parte, que fala de lendários patriarcas, começamos a pisar terreno mais firme.

Canaã De que terreno, de que terra, se trata? Denominações e limites aí caracterizam-se pela imprecisão. Em tempos remotos, a região que serve de cenário para a nossa história era conhecida como Canaã, e este nome tem uma aura mágica: não por outra razão, Graça Aranha usou-o como título de um romance que narra a saga de um emigrante alemão no Brasil. A denominação Palestina, terra dos filisteus, é muito mais tardia e data da época do domínio romano. Comparada a países como o Brasil, trata-se de um lugar muito pequeno, com uma superfície aproximada de 20 000 km2, menor que Sergipe. Não tem riquezas naturais importantes, e, embora a Bíblia fale de “uma terra de leite e mel“, a área fértil restringe-se à costa do Mediterrâneo e às margens do rio Jordão, que, comparado a qualquer rio brasileiro, parece mais um 22


riacho. As terras cultiváveis são parte do “Crescente Fértil”, que tanta importância tem no árido Oriente Médio. Mas a importância de Canaã era outra e derivava de sua localização estratégica, que fez dela uma encruzilhada do mundo, a meio caminho entre África e Ásia. Por ali, passavam não apenas os exércitos das grandes potências da Antiguidade — Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma, que, cada uma a seu tempo, dominaram a antiga Palestina — como sobretudo as rotas comerciais. Um lugar densamente ocupado por povos — tribos, mais exatamente — aos quais a Bíblia dá nomes estranhos: jebuseus, amorreus, girgaseus, heveus, arqueus, sineus, arvadeus, zemareus, hamateus (Gênesis, 10). Entre eles aparecem os habiru, ou hebreus. Aparentemente, eram um grupo nómada, ou seminómada, como muitos da região, e como o são até hoje os beduínos. Abrão (que, depois de receber a missão divina, passa a se chamar Abraão: nomes são importantes na Bíblia, e a mudança de nome no caso significa uma mudança de destino) migrou de Ur, na Caldeia, até Canaã. Ele tomou posse da margem direita do Jordão e aí se instalou com sua 23


gente. É então que ocorre um dos episódios mais dramáticos da narrativa bíblica, quando Deus diz ao velho patriarca: “Toma o teu filho, o teu único filho Isaac, a quem amas e vai à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto…” (Gênesis, 22.2). Abraão dispõe-se a cumprir a ordem, é impedido por um anjo, e Deus celebra com ele o famoso pacto, prometendo que a descendência do patriarca se multiplicará “como as estrelas do céu e os grãos de areia da praia do mar”, que esta descendência vencerá os inimigos, mas que “em tua semente serão benditas todas as nações da terra” (Gênesis, 22.17, 18).

O monoteísmo Um Deus único, com o qual o patriarca faz um pacto: eis a diferença principal entre os habiru e os demais povos da região, cujos deuses, numerosos, nasciam, cresciam, casavam, guerreavam, morriam; ou seja, tinham muito em comum com o ser humano. 24


Jeová é diferente. Para começar, não sabemos qual a sua aparência. Outros povos faziam imagens das divindades, mas isto é expressamente proibido pela lei mosaica. Aliás, a tradição relata um significativo incidente: o pai de Abraão, Tera, fabricava ídolos — cujas cabeças um dia o filho resolveu arrancar. Tera chegou na oficina, viu as imagens sem as cabeças e ficou espantado: teriam os ídolos brigado entre si? Impossível, tratando-se de figuras inanimadas. Abraão então observou: “se não acreditas que os deuses sejam capazes de movimento, por que os cultuas?” O monoteísmo nasce assim de uma ruptura, uma ruptura material — ídolos destroçados — e simbólica: Abraão briga com o pai e com o politeísmo que ele representa. É interessante que o faz de acordo com o que veio a ser caracterizado como o “modo judaico” de discutir: a uma pergunta, ele responde com outra pergunta. O judaísmo não admitia imagens, mas, ao longo dos séculos, Deus tem sido retratado; por exemplo, por Michelangelo, na Capela Sistina, em Roma: a famosa cena da criação do primeiro homem. Deus é, nesta 25


representação, um senhor de idade, longas barbas brancas e expressão severa. Esta provavelmente era também a representação que os hebreus faziam de Jeová. Uma representação que correspondia à necessidade histórica. Nela, Deus é homem. Podia ser mulher: como foi visto, vários povos da Antigüidade tinham uma Grande Deusa, que simbolizava a fertilidade. Mas um Deus masculino é mais compatível com uma sociedade patriarcal. Mais: por ser único, ele favorece a unidade, a identidade grupal. E por último, corresponde a uma projeção psicológica do patriarca tribal. Há também algo que podemos chamar de ecologia das divindades. Segundo alguns estudiosos, o território da antiga Palestina seria propício ao politeísmo: a paisagem diversificada e as mudanças meteorológicas encorajariam a crença de divindades vivendo em cada montanha ou cada curso d’água, gerando o vento, a chuva, o trovão. O monoteísmo teria sido inspirado aos hebreus pela árida, monótona e severa visão do deserto, e esta concepção religiosa eles trouxeram para a região ao se transformarem de pastores 26


nómadas em agricultores. O seu Deus não é apenas um criador; ele interfere na História e pode decidir, por exemplo, a vitória ou a derrota numa batalha. Tratava-se, portanto, de um aliado precioso numa região onde os conflitos tribais eram uma constante. De modo que, se abstrairmos o aspecto religioso, podemos considerar o monoteísmo uma inovação transcendente na história da humanidade. A maior prova de sua transcendência é o fato de que sobreviveu aos milênios. O Deus judaico é um deus severo. Não ri, embora não lhe falte um certo espírito lúdico; propõe a seu povo enigmas, desafios. Seus desígnios são misteriosos, insondáveis e surpreendentes, mesmo quando misericordiosos. Depois de esperar muito tempo por um filho, a idosa Sara engravida; não quer acreditar que Deus lhe deu tal prêmio; “Deus me fez sorrir”, ela diz. Por causa disto, dá ao menino o nome de Isaac — derivado de uma palavra hebraica que significa rir: “Todo aquele que ouvir este nome rirá comigo” (Gênesis, 21.6). No caso do sacrifício de Isaac, este elemento de desafio adquire um caráter dramático, terrível; tão terrível que 27


Woody Allen escreveu uma versão mais amena: numa voz grave, solene, Deus ordena a Abraão que leve seu filho ao local de sacrifício, e ele obedece; numa voz grave, solene, manda que suspenda o sacrifício — e ele obedece. Conclusão: as pessoas cumprem qualquer ordem, desde que dada numa voz grave, solene. Abraão não discute, mas há outros que batem boca com Jeová. Jonas é um exemplo. Deus o designa para profetizar contra a cidade de Nínive. Jonas, que não quer confusão com os ninivitas, foge, embarcando num navio. A mão do Senhor o atinge em pleno mar: sobrevém uma tempestade, os marinheiros decidem, lançando a sorte, que o culpado é Jonas e o atiram às águas. Um peixe enorme o engole, e é neste inusitado meio de transporte que ele acaba chegando, contra a vontade, a Nínive. Resignado, decide cumprir o mandato divino. A esta altura, os habitantes da cidade, assustados, optaram pela penitência: todos, inclusive os animais, vestem sacos. A visão comove o Senhor, que muda de idéia: o castigo está suspenso. Aí, é Jonas quem fica furioso: então, a ameaça não era para valer! Em sinal de protesto, 28


retira-se para os arredores da cidade, onde fica aguardando, sob um sol inclemente. Deus faz crescer uma trepadeira, que lhe dá sombra; mal Jonas se alegra com esta providência, e já Deus envia uma praga qualquer, que destrói a planta. A esta altura, Jonas está literalmente pedindo para morrer: não agüenta mais a imprevisibilidade do Senhor, que não poupa nem o reino vegetal. Mas Deus lhe diz: “da planta tiveste pena; como queres que eu não tenha pena dos ninivitas?” E com tal interrogação termina o livro de Jonas. Vem de longe esta dialética relação que o judaísmo mantém com a divindade. E que, no fundo, é uma defesa contra a adversidade. Se Deus é imprevisível, tudo pode acontecer, tudo deve ser aceito, com aquela paciência que Jó tornou famosa: “O Senhor deu, o Senhor tirou, abençoado seja o Seu nome”. Aliás, é curioso notar que os sofrimentos do pobre homem nascem de um desafio lançado a Deus por Satanás: “Estende a mão e toca em seus bens; garanto que lançará maldições”. O diabo antecipa assim aquela assertiva segundo a qual o ponto mais vulnerável de um homem é seu bolso. Mas Deus faz ainda 29


melhor, ou pior: não apenas destrói a riqueza do infeliz Jó, como faz com que seus filhos e servos sejam mortos e, como arremate final, providencia-lhe “chagas malignas desde a planta dos pés até o alto da cabeça”, uma situação que Jó enfrenta coçando-se resignadamente com um caco de telha. Um Deus assim mantém o seu povo ocupado em regime de tempo integral e dedicação exclusiva. Satanás e outros diabos aparecem, mas são figuras secundárias. O céu e o inferno também não representam muito: é na terra que as coisas se decidem, que as pessoas recebem recompensa ou castigo. Santos não existem; anjos, sim, mas são emissários do Senhor. Jacó, por exemplo, sonha com uma escada que vai da terra ao céu, e pela qual anjos sobem e descem; depois, é com um ser sobrenatural (talvez o próprio Deus) que ele luta durante uma noite inteira. É uma peleja decisiva; Jacó sai dela coxo, mas triunfante; e, como Abraão, ele muda de nome — agora, será Israel, nome que significa “aquele que prevaleceu sobre Deus”.

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