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NOVOS ENSAIOS HELÉNICOS E ALEMÃES
Título: Novos Ensaios Helénicos e Alemães © Frederico Lourenço e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2008 ISBN 978-972-795-253-3
Frederico Lourenço
Novos Ensaios Helénicos e Alemães
Cotovia
Índice
Nota de Abertura
p. 7
1. ENSAIOS HELÉNICOS 1.1. Dois Poemas de autor anónimo: a Ilíada e a Odisseia 1.2. A Ilíada como poema trágico 1.3. Helena na epopeia homérica 1.4. A Palmeira de Delos: Nausícaa na Odisseia 1.5. Onde fica a Ítaca de Homero? 1.6. Sobre o Prólogo de Ifigénia em Áulis 1.7. Os Poemas de Estratão de Sardes 1.8. Reflexões sobre a cultura de Bizâncio
11 27 43 55 77 81 113 133
2. ENSAIOS ALEMÃES 2.1. Sobre a Ifigénia na Táurida de Goethe 2.2. Notas sobre o “amor grego” em Goethe e Schiller 2.3. Camões em Viena: Um Poema de Johann Mayrhofer 2.4. Templo(s) na audição? Problemas no primeiro Soneto a Orfeu de Rainer Maria Rilke 2.5. A Morte em Veneza de Thomas Mann, novela homérica 2.6. Hofmannsthal, Schwarzkopf e a primeira frase da Marschallin no Cavaleiro da Rosa
173 183 193 203 211 243
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2.7. Beton e Der Untergeher de Thomas Bernhard: retrospecto e prospecto 263 2.8. Der Cembalist 277 Proveniência dos ensaios
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Índice Onomástico
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NOTA DE ABERTURA
O presente livro reúne, numa primeira parte, os ensaios sobre temática grega que escrevi depois da publicação de Grécia Revisitada (Cotovia, 2004; 2.ª edição 2004; 3.ª edição 2006). Desses ensaios, os mais extensos (sobre a Ifigénia de Eurípides e sobre Bizâncio) são inéditos. A segunda parte (inteiramente inédita) resulta do facto de as minhas leituras se estarem a centrar cada vez mais na literatura de língua alemã; quase diria que me estou a tornar, como Richard Strauss disse de si próprio, um germanischer Grieche (“grego germânico”)1 . Os temas escolhidos são variados e têm em comum, antes de mais, o facto de me apaixonarem. Não significa isso que o leitor não possa encontrar (e inventar) toda uma série de interligações. Vários colegas e amigos contribuíram com a sua ajuda para a concretização destes textos. Gerhard Doderer e Cremilde Rosado Fernandes foram os primeiros leitores de Der Cembalist (“O Cravista”). Ao Gerhard agradeço a generosidade enorme com que reviu o texto (quaisquer solecismos ou agramaticalidades remanescentes são fruto da minha teimosia e, portanto, da minha 1 Richard Strauss, Betrachtungen und Erinnerungen, herausgegeben von Willi Schuh, München, 1989, p. 129.
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inteira responsabilidade) e à Cremilde peço desculpa por ter insistido na “cadência interrompida”, característica, afinal de contas, de toda a minha ficção. Agradeço ainda a Maria do Céu Fialho, Maria de Fátima Sousa e Silva, Carlos Mendes de Sousa e Luis Miguel Cintra pelo apoio amigo, tantas vezes manifestado. Por fim, direi ainda que, para quem se dedica hoje, em Portugal, à escrita de ensaios, é reconfortante pensar que, a despeito de todas as dificuldades que a edição atravessa actualmente no nosso país, temos não só ensaístas exímios de diferentes gerações para nos desafiar e inspirar, como uma editora — a Cotovia — que celebra em 2008 vinte anos de actividade, e em cuja colecção de ensaio é para mim a maior das honras ver-me novamente incluído. F.L.
Ensaios HelĂŠnicos
DOIS POEMAS DE AUTOR ANÓNIMO: A ILÍADA E A ODISSEIA
Entre finais do séc. VIII a.C. e inícios do séc. VII, um poeta conhecedor da técnica e linguagem próprias da composição épica oral (já tradicionalmente cultivada, na Grécia, havia vários séculos) motivou ou aproveitou a utilização do alfabeto fenício adaptado à língua grega para escrever ou ditar um poema — de proporções inimagináveis antes do advento da escrita — sobre a cólera de Aquiles e a morte de Heitor, poema esse que ficou conhecido como Ilíada não só devido ao tema, mas também devido à circunstância de o poeta que o compôs ter talvez vivido na zona de Ílion (a Tróia de outrora), de cuja geografia ele revela seguros conhecimentos e onde, no séc. VIII, ainda se podiam ver as monumentais muralhas de Tróia, com uma altura de seis metros acima do solo. O texto da Ilíada foi registado em rolos de papiro (alternativamente em rolos de pele animal1). Não continha o trecho a que hoje chamamos o Canto X (“Dolonia”), nem estava ainda dividido em vinte e quatro rapsódias ou “cantos”. Essa divisão foi feita mais tarde, quando (1) a Ilíada já comportava a “Dolonia” e (2) o inicialmente flutuante alfabeto grego se estabilizou nas
1 A possibilidade do suporte em pele é defendida por Walter Burkert, Kleine Schriften I: Homerica, Göttingen, 2001, p. 199.
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vinte e quatro letras (o Canto I passou a ser conhecido como “A”; o Canto II como “B” e por aí fora). É que o alfabeto utilizado para registar a Ilíada, o alfabeto jónico oriental, tinha vinte e cinco caracteres. Após a morte do poeta da Ilíada, os rolos com o texto terão sido cuidadosamente preservados: só assim se compreende que o poema não se tenha perdido. Talvez os rolos tenham sido depositados num templo (à semelhança do livro do filósofo Heraclito), ou legados a outro poeta, quiçá o autor da Odisseia (ou parte dela), atento ouvinte/leitor do poema sobre a guerra de Tróia. Certo é que estes rolos (ou rolos a partir deles copiados) acabaram por se tornar propriedade artística de uma corporação de rapsodos, os Homéridas, que, embora se intitulassem descendentes de um cantor chamado “Homero”, eram suficientemente abertos para deixarem entrar estranhos no seu “sindicato de poesia”. Um deles foi o influente Cineto de Quios, de quem adiante falaremos. A estranheza tanto morfológica como semântica do nome “Homero” já levou à conclusão de que, em vez de terem sido os Homéridas a derivar o seu nome colectivo de um poeta chamado Homero, foram eles que inventaram esse nome a partir da nomenclatura colectiva por meio da qual eram conhecidos, que significaria simplesmente “cantores harmoniosos” ou derivaria então do santuário de Zeus Homário (Homério, no dialecto jónico), onde possivelmente tinham lugar as suas recitações de poesia épica. De qualquer forma, “não há dúvida de que, independentemente do modo como os Homéridas adquiriram o seu nome, Homero obteve o seu a partir deles, e não vice-versa. [...] Se Homero tivesse sido
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uma pessoa real, não haveria explicação para os Homéridas, dado que eles não eram de uma só família. A existência deles refuta a dele”2. À figura mítica de Homero — que começava a ser muito badalada e, até, criticada, no séc. VI — os Homéridas adscreviam a autoria da Ilíada e de outros poemas já sob a sua alçada, como a própria Odisseia e os mais modestos Hinos Homéricos (que eram prelúdios utilizados nas recitações). Os Homéridas diziam que Homero fora originário de Quios (como muitos deles eram). Diziam também que ele fora cego, talvez por se terem inspirado no Demódoco da Odisseia. Graças a um escólio a Píndaro a que adiante aludirei, sabemos que os Homéridas acrescentavam versos aos poemas de “Homero” conforme lhes aprazia (facto fundamental para a compreensão das muitas oscilações de qualidade poética visíveis na Odisseia). Houve um homérida em particular, Cineto de seu nome, que compôs o Hino Homérico a Apolo e apresentou-o como sendo obra do grande poeta cego de Quios (= “Homero”) num grandioso festival na ilha de Delos, organizado por Polícrates de Samos, poderoso político e esclarecido patrocinador da poesia e dos poetas. Na Antiguidade não recaía opróbrio sobre os falsários de poemas, a não ser que fossem apanhados em flagrante delito, como aconteceu a Onomácrito, que, segundo o testemunho de Heródoto3, foi expulso de Atenas por ter sido apanhado a forjar supostos poemas de Museu (outro cantor mítico, como 2 M. L. West, “The Invention of Homer”, Classical Quarterly 49 (1999), p. 376. 3 Heródoto, Histórias, Livro VII. 6,3.
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Orfeu). Terá sido porventura para salvaguardar a “autenticidade” do Hino Homérico a Apolo que se forjou, sob o nome de Hesíodo, versos em que “Hesíodo” falava da ocasião em que ele e Homero coseram cantos novos na ilha de Delos em honra de Apolo4. Já antes se tinha inventado um ultra-fictício duelo poético entre os dois aedos, o anónimo Certame entre Homero e Hesíodo, no qual é referida uma viagem imaginária de Homero à ilha de Delos. Ora o referido festival de Polícrates teve lugar em Delos no último quartel do séc. VI, em 523 a.C. À recitação do recém forjado Hino Homérico a Apolo ter-se-ão seguido as apresentações de outros poemas de “Homero”, provavelmente a Ilíada e a Odisseia. No ano seguinte, Polícrates morre. O ateniense Hiparco, que poderá ter estado presente no festival de Delos, assume o lugar deixado vago por Polícrates de protector dos poetas, convidando Anacreonte (especial protegido do “mecenas” falecido) a estabelecer-se em Atenas, cidade que começava a impor-se como centro cultural do mundo grego, graças ao teatro e à tragédia; além do mais, com os Persas a ocuparem a Jónia, Atenas constituía obviamente destino aliciante para figuras jónicas ligadas à poesia, como Anacreonte e os próprios Homéridas. Mais tarde Atenas atrairá ainda o historiador Heródoto, o filósofo Anaxágoras e toda uma plêiade de sofistas, entre eles o celebérrimo Protágoras. É provável que Hiparco tenha aproveitado a coincidência de ter estado presente no festival de Delos (opor4
Hesíodo, fragmento dúbio n.° 357 na edição de Merkelbach-West.
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tunidade imperdível!) para convidar os Homéridas a participarem no grande festival ateniense das Panateneias, talvez até marcando a primeira actuação deles para o ano seguinte, para o festival que teve início a 19 de Agosto de 522. O êxito retumbante da apresentação da Ilíada e da Odisseia em Atenas foi de tal ordem que Hiparco instituiu, como acontecimento regular em todas as Panateneias futuras, a recitação integral desses dois poemas, mandando pôr por escrito um texto oficial ateniense a que os rapsodos eram obrigados a ater-se. Este texto é o antepassado directo do texto homérico que lemos hoje. Já continha a “Dolonia” da Ilíada, assim como outros acrescentos com que os Homéridas procuravam agradar ao público ateniense: o célebre e controverso passo do Catálogo das Naus que inventa um contigente ateniense na guerra de Tróia (Ilíada, Canto II); o final do Canto XXIII e todo o Canto XXIV da Odisseia; a “Telemaquia” do mesmo poema, que dá especial relevância a Pisístrato, amigo de Telémaco, antepassado de Hiparco 5 ; e um passo do Canto VII em que, sem a mínima justificação narrativa, se descreve a deusa Atena a entrar “na robusta casa de Erecteu”, na Acrópole de Atenas. Deste texto patrocinado por Hiparco (ou por Pisístrato, seu pai) provêm, como já se disse, todos os papiros e manuscritos que hoje conhecemos da Ilíada e da Odisseia. E é em função dele que devemos enquadrar a ideia de que a Odisseia, que nós hoje lemos e amamos, não é um poema do séc. VIII nem do séc. VII, mas sim um poema do séc. VI6. 5 6
Segundo Heródoto, Histórias, Livro V. 65, 3-4. M. L. West, Hesiod: Works and Days, Oxford, 1978, p. 61.
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* Este é, em traços largos, o estado actual da questão7. Aprofundemos agora alguns aspectos já apontados. O nome “Homero” está indelevelmente associado, no nosso imaginário, à Ilíada e à Odisseia. No entanto, são vários os problemas que se colocam ao debruçarmo-nos, de cabeça fria, sobre os fundamentos em que assenta a crença de que existiu um poeta desse nome, autor das epopeias que tradicionalmente lhe foram atribuídas. O problema principal é que continua a não existir base científica segura para se afirmar que a Ilíada e a Odisseia foram compostas pelo mesmo poeta — a sensacional descoberta, divulgada por Robert Bittlestone, James Diggle e John Underhill, da verdadeira (?) localização da Ítaca da Odisseia vem complicar ainda mais a questão, pois era dado assente que o poeta da Ilíada conhecia a Tróade, ao passo que o poeta da Odisseia não conhecia Ítaca; se se vier a provar que a Odisseia revela, de facto, conhecimentos exactos da geografia da nova Ítaca, a península de Paliki na ilha de Cefalénia, a probabilidade de ter sido o mesmo poeta a compor ambas as epopeias reduz-se drasticamente. Donde se extrai a ilação evidente de que, mesmo que aceitássemos “Homero” como autor de uma das epopeias, a outra seria necessariamente obra de autor anónimo. Vou mais longe: em rigor, são ambas anónimas, na medida em que em nenhuma delas o poeta explicita o seu nome, contra7 Cf. W. Burkert, op. cit., pp. 198-217, 189-197, 138-49; M. L. West, art. citado pp. 364-82; e West, Studies in the Text and Transmission of the Iliad, München & Leipzig, 2001, pp. 3-32.
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riamente ao que farão importantes poetas da fase seguinte da poesia grega, como Hesíodo, Álcman, Safo, Alceu, Teógnis e Sólon; todos eles arranjaram maneira de incrustar os seus nomes nos respectivos poemas. Ao afirmarem a sua autoria, impediam que outros se apropriassem dos seus textos e garantiam a fama póstuma, como escreveu Teógnis (vv. 19-20 West). É dado assente que a Ilíada e a Odisseia destilam e preservam o melhor de uma magnífica tradição oral, tradição essa em cujo âmbito o conceito de autoria era irrelevante, porque se aceitava a convenção de serem as Musas a inspirar o texto. Não fazia parte dos códigos da poesia oral saber-se o nome do autor, nem o autor tinha interesse em explicitá-lo: o seu canto era simplesmente o canto das Musas. Mas a partir do momento em que a Ilíada e a Odisseia são escritas, deixam de ser poesia oral e tornam-se Literatura. E, como é sabido, a Literatura é avessa a textos anónimos. Aliás, à comunidade de leitores e ouvintes da Literatura na Grécia repugnava de tal forma a existência de um texto anónimo que muitos poemas foram sendo atribuídos a poetas que nunca os poderiam ter composto, tão-somente para se evitar o horror do vácuo causado pelo anonimato. Estou a pensar em poetas como Hesíodo, Safo e Teógnis, a cujos poemas autênticos se foram juntando poemas de autores anónimos, poemas esses que só sobreviveram devido à semelhança superficial com as obras dos nomes consagrados. Do mesmo modo se pode dizer que a tragédia anónima Prometeu Agrilhoado sobreviveu à custa do nome de Ésquilo; ou a tragédia Reso, à custa do nome de Eurípides. Também alguns diálogos anónimos, que integram o
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corpus platónico, não teriam sobrevivido às vicissitudes da transmissão dos textos antigos, se não fosse a “boleia” concedida pelo nome de Platão. E se Anacreonte tivesse composto todos os poemas que lhe são atribuídos, teria de ter vivido mais de mil anos, de tal maneira divergentes são as marcas cronológicas que se nos deparam, ao nível estritamente linguístico, no conjunto dos poemas anacreônticos. Como é que se chamaram os homens de carne e osso que escreveram as Odes Anacreônticas traduzidas por António Ferreira e, mais tarde, por Castilho? Nunca saberemos, pois convencionou-se chamar-se-lhes simplesmente “Anacreonte”. Tudo isto serve para dizer que as semelhanças — neste caso tudo menos superficiais — entre a Ilíada e a Odisseia seriam o suficiente para que a epopeia, que das duas fosse anónima, se colasse ao nome do autor da outra epopeia, se ela fosse conhecida sob o nome de Homero. De resto, a tendência para colocar todo e qualquer texto épico arcaico sob a alçada de Homero foi por demais evidente na Grécia. Não só a colectânea dos Hinos Homéricos (alguns deles contemporâneos dos pré-socráticos Parménides e Empédocles) foi atribuída na íntegra a Homero, como também lhe foi assacada a autoria de outras epopeias (hoje perdidas ou fragmentárias), entre elas os Cantos Cípricos, o Margites e a Tebaida. Aliás, é esta mesma Tebaida (e não a Ilíada ou a Odisseia) o primeiro texto a ser referido como sendo de Homero, segundo o testemunho de um poeta elegíaco do séc. VII a.C. chamado Calino8. 8
Cf. Pausânias, Descrição da Grécia, IX.9, 5.
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No século seguinte, temos referências a Homero em fragmentos do filósofo pré-socrático Xenófanes, mas os fragmentos são curtos e não é possível depreender deles que obras, em concreto, Xenófanes atribuía a Homero: Uma vez que desde início todos aprenderam por Homero... (fr. 10 Diels-Kranz) Quanto há de vergonhoso e censurável, tudo isso atribuíram aos deuses Homero e Hesíodo: roubos, adultérios, mentiras. (fr. 11 Diels-Kranz)9
Destes fragmentos de Xenófanes extraímos pelo menos três ideias: (1) a popularidade de Homero no séc. VI; (2) Homero era considerado um poeta com existência real, como Hesíodo; (3) aos olhos dos filósofos, a poesia homérica tinha o seu quê de censurável, ideia essa que voltará a aparecer em Heraclito e Platão. Quando Heraclito diz que Homero devia ser chicoteado e expulso dos concursos (fr. Diels-Kranz 22 B 42), está involuntariamente a informar-nos sobre o contexto em que se ouvia a poesia homérica: certames poéticos, em que diferentes rapsodos competiam uns contra os outros. O facto de haver um texto escrito de Homero não impediu que a sua poesia continuasse a ser muito mais ouvida do que lida. Em inícios do séc. V, Homero é referido por Píndaro e imitado por Simónides, que oferece uma bela glosa ao
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Traduções de Maria Helena da Rocha Pereira (Hélade).
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passo em que, no Canto VI da Ilíada, as gerações dos mortais são comparadas às folhas das árvores10. Será desta mesma altura a primeira referência a apontar Homero como autor da Ilíada e da Odisseia e a negar-lhe explicitamente a paternidade das outras epopeias. Trata-se de um passo do historiador Heródoto (Livro II, 116.2.4; cf. também Livro IV, 29). Todavia, a crença de que Homero era (quase) exclusivamente autor da Ilíada e da Odisseia deve provir do último quartel do séc. VI, altura em que Hiparco, filho de Pisístrato, instituiu a recitação integral dos dois poemas como parte integrante da celebração da grande festa pública de Atenas, as chamadas Panateneias. (Diga-se de passagem que não deixa de ser curiosa a circunstância de esta informação nos ter sido legada por um texto anónimo, atribuído a Platão: o diálogo Hiparco, 228b.) Foi também nesta altura que se fez uma versão escrita oficial do texto das duas epopeias, de uso obrigatório nas Panateneias. Segundo o já mencionado Pausânias, o responsável desta iniciativa não foi Hiparco, mas seu pai: “dizem que Pisístrato, quando reuniu os poemas de Homero, que andavam dispersos e eram lembrados pela tradição, uns nuns lugares, outros noutros...”11 É desta versão ateniense que descende o texto homérico que foi preservado por papiros e manuscritos bizantinos, como lapidarmente afirmou Bethe: “para a transmissão da Ilíada só contou um único manuscrito do tempo de 10 Trata-se do fragmento 19 West, erroneamente atribuído a Semónides. Cf. Burkert, op. cit., p. 217. 11 Descrição da Grécia, VII.26,13. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira (Hélade).
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Pisístrato. O mesmo vale para a Odisseia. [...] Nunca é demais insistir neste ponto. [...] Este texto ático de Homero do séc. VI é o único objecto da investigação homérica. Representa obrigatoriamente Homero de forma exclusiva, pois não existe outro Homero que não este”12. Voltando a Píndaro, é no início da sua Ode Nemeia II que encontramos uma informação da máxima importância para compreendermos a difusão de Homero. Nos versos iniciais dessa ode, Píndaro refere os Homéridas como “aedos de versos cosidos”, ou seja, aproximando-os dos rapsodos, sendo estes últimos profissionais que, como o Íon do diálogo homónimo de Platão, ganhavam a vida recitando em público a poesia homérica. Note-se que “rapsódia” ou “rapsodo” são, em grego, palavras do campo semântico da costura. Mas quem eram, então, estes aedos de versos cosidos? Lembremos a definição da Doutora Rocha Pereira: “Os Homéridas eram uma espécie de corporação de poetas da ilha de Quios, que se consideravam descendentes de Homero e detentores de autoridade máxima sobre os seus poemas”13. Sobre eles temos ainda um testemunho precioso, proveniente de um escólio ao passo referido de Píndaro (mas que se pode consultar de forma mais acessível na colectânea de F. Jacoby, Die Fragmente der griechischen Historiker [Berlin, 1923], onde tem a referência 568 F 5): Eram antigamente chamados Homéridas os descendentes de Homero, que cantavam a sua poesia de geração em geração. Mas mais
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E. Bethe, Homer: Dichtung und Sage I, Leipzig, 1914, pp. 52-3. M. H. da Rocha Pereira, Platão, República, Lisboa, 20019, p. 458, n. 12.
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tarde também os rapsodos foram assim denominados, ainda que não fossem da família de Homero. Destacaram-se Cineto e os seus seguidores, os quais, segundo se diz, compuseram muitos versos e os introduziram na poesia de Homero. Este Cineto era de uma família de Quios e, dentre os poemas que são indicados como sendo de Homero, foi ele que escreveu o Hino a Apolo, mas atribuiu a Homero a respectiva autoria. Este Cineto foi o primeiro a recitar os poemas de Homero em Siracusa, na sexagésima nona Olimpíada [504-1 a.C.]
O testemunho que acabei de citar reveste-se da mais fulcral importância, pois indica-nos que os Homéridas não se sentiam condicionados por qualquer tipo de reverência pudibunda face aos textos poéticos de que eram depositários, mas acrescentavam-lhes versos conforme entendiam. Este facto será fundamental para a compreensão da urdidura da Odisseia. Podemos aceitar, sem cepticismo, a ideia de que Cineto, originário de Quios, escreveu o mais conhecido e mais belo dos Hinos Homéricos, o Hino a Apolo? Pela minha parte, concordo com West, que afirma ser Cineto “uma realidade mais palpável que Homero”14. Curiosamente, Cineto fez tudo, por seu lado, para se tornar o menos palpável possível. Atentemos no auto-retrato que o poeta do Hino a Apolo oferece, nos vv. 169-73 do seu poema: “Donzelas, para vós qual é o mais doce dos aedos, dos que andam por aqui, e com o qual é que mais vos deleitais?” E vós todas, sem faltar uma, respondereis a meu respeito: “É um homem cego, que mora na alcantilada Quios, aquele cujos cantos terão, de futuro, toda a primazia.”15 14 15
West, art. citado, p. 371. Tradução de M. H. da Rocha Pereira (Hélade).
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Com o tema do poeta cego, voltamos de novo ao nome “Homero”: desta feita à explicação que para a palavra foi dada por Éforo, historiador de Cime. Dizia ele que, na sua terra, hómeros significava “cego”16. Mais tarde, a palavra encontra-se atestada com esse mesmo sentido no poema Alexandra (v. 422) do poeta helenístico Lícofron. Mas já foi observado mais de uma vez que, se o poeta do Hino a Apolo era cego, como lhe teriam ocorrido os vv. 146-55? Mas é em Delos, ó Febo, que mais deleitas o teu espírito. É aí que se reúnem os Iónios de túnica a arrastar, com seus filhos e suas castas esposas. Pensando em ti é que se deleitam no pugilato, na dança e no canto, quando organizam competições. Diria que não hão-de conhecer nunca a velhice nem a morte quem encontrasse os Iónios, quando estão reunidos. Veria a graça de todos, encantaria o seu espírito, olhando para os homens e para as mulheres de bela cintura, para as naus velozes e para os seus muitos haveres.17
A insistência no acto de ver é, no mínimo, estranha para quem, logo a seguir, se declara cego. A explicação de que o texto foi escrito em nome de “Homero, o aedo cego” por Cineto, rapsodo homérida em plena posse das suas faculdades visuais, é evidentemente atractiva. A cegueira de Homero era, para os Antigos, dado assente. O historiador Tucídides cita, de resto, o passo
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Fragmente der griechischen Historiker 70 F 1. Tradução de M. H. da Rocha Pereira (Hélade).
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do Hino em que o poeta se declara cego como o único momento em toda a sua poesia em que Homero fala de si próprio18. Outra explicação possível para Hómeros associava o nome à palavra hómera (neutro do plural de hómeron) que significa “refém”. Contudo, como observa West19, a derivação morfológica do masculino a partir do neutro é filologicamente insegura, além de que “é inverosímil que se desse a alguém o nome de Refém”. Mas aliciante é a ligação possível do nome “Homero” ao verbo homereîn, utilizado por Hesíodo na Teogonia (v. 39) para designar a actividade canora das Musas. Exaurir do campo semântico da música um nome para “baptizar” o Músico arquetípico parece fazer pleno sentido. Segundo Gregory Nagy, o nome significaria neste caso algo como “aquele que afina o canto”20. À semelhança de West, também Nagy duvida que alguma vez tenha existido um poeta chamado “Homero”. O nome revestiu-se, mais intensamente a partir do séc. VI, de uma aura mítica, como o de Orfeu — mencionado pela primeira vez na literatura grega no mesmo séc. VI, num fragmento de Íbico — cujos “poemas” foram na verdade escritos por Pitágoras 21 , tal como o Hino a Apolo de “Homero” terá sido escrito por Cineto. Já vimos que, no Livro VII das suas Histórias (6.3), Heródoto conta como Onomácrito foi apa-
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História da Guerra do Peloponeso, III.104.5-6. West, art. citado, p. 367. 20 G. Nagy, Poetry as Performance, Cambridge, 1996, pp. 74-5. 21 Cf. M. L. West, The Orphic Poems, Oxford, 1983, pp. 7-20. 19
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nhado a forjar supostos poemas de outro poeta míticoarquetípico, Museu. Não é difícil pensarmos que os Homéridas e seus congéneres tenham feito o mesmo para Homero.