PAULA REGO E O PODER DA VISテグ A minha pintura テゥ como uma histテウria interior
Apoios: Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian Fundação para a Ciência e a Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
Título: Paula Rego e o poder da visão. “A minha pintura é como uma história interior” © imagens das pinturas: Paula Rego. As fotografias das imagens são cortesia da Marlborough Fine Art (London), Ltd. Restantes fotografias in “Alberto de Lacerda. O mundo de um poeta”, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, CAM, Lisboa, Maio 1987. © do texto: Ana Gabriela Macedo e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2010 Capa: FBA — Ferrand, Bicker & Associados
ISBN 978-972-795-312-7
Ana Gabriela Macedo
Paula Rego e o poder da visĂŁo A minha pintura ĂŠ como uma histĂłria interior
Cotovia
Índice
Agradecimentos
p. 11
Introdução: Da arte de contar histórias
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I.
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O meu tema é a minha história… 1.a Entrevista. A propósito de Santas, Aranhas e Avestruzes… ou, da arte de contar histórias 2.a Entrevista. A Casa de Celestina 3.a Entrevista. Jane Eyre, uma “estória” entre histórias de mulheres 4.a Entrevista. “Proibições Inevitáveis” ou o dever do contador de estórias: a propósito da série “The Pillowman”
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II. Re-visões: A arte não é neutra 1. Paula Rego: o “drama visual” que as histórias encenam 2. Da “Mulher-Cão” à “Mulher-Anjo”. Identidade, Desejo e Mito. Re-visitando Eça 3. Da “Mulher-Cão” à “Mulher-Anjo”. 4. Revisitando Jane Eyre: do abjecto e da raiva contida 5. O “Poder da Visão” ou Em Busca de Mrs. Rochester
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III. Intertextualidades e entrelaçamentos ou the art of storytelling 1. A partir do interior: Storytelling, Mito e Representação. A obra de Paula Rego e de Angela Carter
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Paula Rego e o poder da visão
2. Pra Lá e Pra Cá: Paula Rego e Angela Carter revisitadas (máscaras, travestismo, transgressão) 3. Paula Rego e a sabotagem da tradição: visões da feminilidade 4. The Pillowman: Martin McDonagh, Paula Rego e Tiago Guedes em diálogo. A “arte do contador de histórias” e o “dever do contador de histórias” 5. Os afectos portugueses na obra de Paula Rego. Os casos de Alberto de Lacerda e Menez
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Conclusão Paula Rego e a Casa das Histórias
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Bibliografia
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Aos meus pais, João Macedo e Maria Helena À memória do Jó
Agradecimentos Alguns dos textos que incorporam os três capítulos deste livro foram previamente publicados em versões anteriores. Apesar de essas versões, quer em português, quer em inglês, estarem devidamente assinaladas em nota de rodapé, pretendo deixar aqui expresso o meu agradecimento aos editores das respectivas publicações pela sua gentileza. De igual modo, pretendo aqui deixar uma palavra de reconhecimento ao profissionalismo e sensibilidade literária de duas tradutoras, Ana Maria Chaves e Helena Ruão, responsáveis pelas traduções dos textos assinalados no capítulo III. Aproveito a oportunidade para referir que, salvo referência em contrário, todas as outras traduções incluídas neste livro são da minha inteira responsabilidade. O meu agradecimento também à Marlborough Fine Art Gallery em Londres, na pessoa de Mary Miller, pela cordialidade no envio das imagens reproduzidas neste livro e os catálogos que me foram oferecidos. Por último, o meu profundo reconhecimento à artista Paula Rego, a quem devo toda a inspiração para este trabalho, pela generosa amizade que sempre me demonstrou, pela incondicional cedência e autorização de reprodução da sua pintura e pelo incentivo dado a este projecto de entrelaçamentos visuais e literários, desde o nosso primeiro encontro, num já distante mês de Fevereiro, no seu mágico atelier londrino. À Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e à Fundação Calouste Gulbenkian o meu agradecimento pelo apoio dado à edição deste livro.
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Imagens Capa: “O Quarto de Shakespeare” 2005 Rimas de Berço — “A Mãe Gansa”; “Mé, mé, ovelha preta” 1989 “Salazar vomita a pátria” 1960 “No Atelier”; 1990 “O Sonho de José” 1990 “O Jardim de Crivelli” (1 e 2) 1990-1991 “Cão Mau” 1994 “Sem Título” — Tríptico (Figs. 1, 2 e 3) 1998 “Amaro entre as Mulheres” 1997 “A Casa de Celestina” 2000-2001 “Jane Eyre” (tríptico) 2002 “A Primeira Missa no Brasil” 1993 “Guerra” 2003 “Mutilação Genital Feminina” 2008 “Pillowman” (tríptico) 2004 “A Vida de Maria” 2002 “A Dança” 1988 “Partida” 1988 “Retrato de Paula Rego por Vic Willing” 18-07-1975 FOTOS A PRETO E BRANCO: Paula Rego e Lacerda (1983); Paula Rego e Menez (1990) Quatro estudos para um retrato de Alberto de Lacerda por Paula Rego (24-04-1986) ANEXO: facsimile de capa e texto de Alberto de Lacerda para a exposição de Paula Rego na SNBA (1965)
Introdução Da arte de contar histórias A minha pintura é como uma história interior 1
Este livro tem vindo a ser construído ao longo de uma década, desde o dia em que entrevistei Paula Rego pela primeira vez em Londres, em Fevereiro de 1999, no seu atelier de Camden Town, após uma mensagem enviada à sua secretária que, gentilmente, me enviou (em gloriosos tempos antes da tirania do email!), numa folha fotocopiada, um mapa desenhado manualmente com as necessárias instruções para chegar ao atelier de Paula. Meti-me a caminho, deslumbrada com a expectativa da entrevista. Primeiro de metro, depois calcorreando as ruas do Norte de Londres; o percurso era sinuoso e eu, fraca leitora de mapas, por várias vezes tive de pedir instruções pelo caminho. Acresce a tudo isso o nervosismo da minha nova condição de “entrevistadora” para a qual me considerava parcamente qualificada: o gravador recém-adquirido, a entrevista previamente redigida com as questões a colocar à pintora, tudo isso várias vezes ensaiado em Portugal, não eram garantia de que tudo funcionaria de facto. E assim foi. Durante mais de uma hora Paula Rego amavelmente respondeu a todas as minhas perguntas, contou histórias suas, riu-se, quis saber de mim e dos meus trabalhos de investigadora, perguntou sobre Portugal e a vida nas universidades, deixou-se fotografar com um livro de um projecto nosso nas mãos. Eu
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Paula Rego em entrevista com Alberto Lacerda. Diário de Notícias, Lisboa, 25 de Dezembro de 1965, (p. 4).
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estava nas nuvens. Despedi-me para a deixar trabalhar, profundamente reconhecida pela sua simplicidade. Chegada à rua, não contive a minha ansiedade e premi o botão do “play” para escutar um pouco da gravação. Nada… nem o mais remoto vestígio da nossa longa conversa! Sentei-me no chão e já não recordo se me pus a chorar, sei que impetuosamente desatei a correr para trás, voltei a bater à porta do atelier e, pálida, disse simplesmente à pintora: “Não ficou nada gravado! Podemos repetir a entrevista?” Pacientemente, Paula Rego abriu-me a porta do atelier. As entrevistas foram-se sucedendo e eu fui-me tornando mais hábil a manusear o gravador, se bem que nunca mestre nas tecnologias. Ao longo desta década sucederam-se inúmeras exposições de novos trabalhos da pintora, Paula Rego tornou-se numa das pintoras mais aclamadas da cena artística contemporânea. Fui acompanhando o seu trabalho, através de visitas às sucessivas inaugurações no país (Inglaterra) e no estrangeiro, visitando-a regularmente no atelier ou encontrando-a na Galeria Marlborough, que a representa, escutando-a comentar as suas imagens, apercebendo-me cada vez mais da sua perspicácia, da sua curiosidade por tudo o que diz respeito a Portugal, do seu interesse pela literatura e do seu estar completamente em dia com a cena cultural londrina. Seguiram-se as grandes retrospectivas da sua obra: no Museu de Arte Contemporânea de Serralves em Outubro de 2004, no Museu Reina Sofia em Madrid, em Setembro de 2007, bem assim como outras recentes exposições individuais que importa destacar, nomeadamente, “Paula Rego in Focus” (Tate Britain, Londres), em 2004, “Paula Rego: O Ciclo de Vida da Virgem Maria” (Capela do Palácio de Belém, Museu da Presidência da República, Lisboa), em 2006, em Nova York, “Paula Rego: Works on Paper” (Marlborough, Chelsea) e “Human Cargo” (Marlborough Gallery N. Y.), simultaneamente a retrospectiva em Washington (National Museum of Women in the Arts) e ainda a exposição da colecção “Paula Rego no CAMB” (Palácio Anjos, Algés), todas em 2008, até à inauguração da sua Casa das Histórias em Cascais, em Setembro de 2009.
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Seria assim estranho se este projecto, que se cumpre agora em livro, não desse conta da fluidez de temas e filiações que o caracteriza, um certo hibridismo na sua própria estrutura e composição — entrevistas em primeira mão, textos críticos, muitos dos quais resultantes de comunicações em congressos — e uma assumida porosidade de fronteiras entre as artes, nomeadamente a pintura e a literatura, a qual por um lado se radica na visão crítica da relação entre as artes e sua hermenêutica por parte da autora deste projecto, e por outro espelha a vontade da própria pintora e os jogos de “entrelaçamento” que ela própria tece na sua obra: “É assim que eu trabalho sempre — tendo por base a minha vida, os meus sonhos e emoções (…) Os entrelaçamentos são uma espécie de tricô”.2 Esta afirmação da pintora é, a meu ver, fulcral para o entendimento da sua obra num contexto hermenêutico lato que cruza as questões da intertextualidade e da reescrita, fundamentais no paradigma da pós-modernidade e prementes na sua obra, com o conceito de re-visão, axial aos estudos feministas, e a própria questão do “olhar” no feminino. Sem nos querermos adensar demasiado pelos labirínticos, se bem que sedutores, caminhos da teoria crítica — já que esse não é o objectivo primeiro deste trabalho —, uma leitura atenta da frase de Rego revela de imediato a sua profunda carga polissémica e metafórica — isto é, a importância do entrelaçamento de sonhos, vivências e emoções como um jogo intertextual ou diálogo de textos, vozes e imagens refractadas e, simultaneamente, a deliberada aproximação ou vinculação deste gesto performativo da artista ao universo feminino, nomeadamente através da metáfora da criatividade como o acto de “tecer” ou mesmo “tricotar”. Se, claramente, toda uma genealogia de teóricos, críticos estruturalistas e pós-estruturalistas estão por detrás desta afirmação de modo nenhum ingénua de Rego (evocações de Bakhtin, Barthes, Foucault, Kristeva ou Derrida) sobre o conceito de texto enquanto e sempre inter-texto, isto é, rede, travessia, teia de produção de sentidos e significações, “mosaico de citações; absor-
2 “This is how I always work — drawing on my own life and dreams and feelings (…) Interweaving is like knitting.” Rego (apud McEwen, Paula Rego, 1997, p. 125).
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ção e transformação de um outro texto”,3 não resistimos à tentação de a aproximar de uma outra voz crítica que a contextualiza na perspectiva do feminino. Refiro-me a Nancy Miller que, num ensaio fundamental no âmbito da crítica feminista, intitulado “Aracnologias: a mulher, o texto e a crítica” (1986),4 partindo do famoso ensaio de Roland Barthes, “O Prazer do Texto” (1973)5 e da noção de texto como “textura” ou “tessitura”, desenvolve uma retórica da textualidade feminina articulando a criatividade no feminino com a actividade tradicional empírica e o saber cultural das mulheres, estendendo-a depois ao conceito de “ginocrítica” (gynocriticism), proposto por Elaine Showalter (1979; 1981), ou de “ginese” (gynesis), sugerido por Alice Jardine (1985).6 Segundo Showalter, o objecto da ginocrítica é “a mulher enquanto produtora de significado textual”;7 o objecto de estudo da ginocrítica será assim “a história, o estilo, os temas, os géneros e as estruturas da escrita produzidas por mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajectória da carreira feminina, individual ou colectiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária feminina”.8 Por sua vez, o conceito de ginese para Jardine traduz a valorização do feminino e do seu espaço, historicamente assu-
3 Julia Kristeva in “Le mot, le dialogue et le roman”, texto publicado em Semeiotiké, Recherches pur une Sémanalyse (Paris, Seuil, 1969, p.85) e traduzido para inglês, por Stephen Heath, como “Word, Dialogue and Novel”, in Desire in Language, (ed. Léon Roudiez), Blackwell, 1981 (p. 66). 4 Nancy Miller, “Arachnologies: The Woman, the Text, the Critic”, in The Poetics of Gender, Nancy Miller ed., Columbia U. P., New York, 1986, (270-295). Neste texto, ironicamente, Miller escreve: “if Barthes had been less fond of neologisms, and a feminist, he might have named his theory of text production an “arachnology” (p. 271). 5
Roland Barthes, Le Plaisir du Texte, Paris, Seuil, 1973.
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Veja-se, de Elaine Showalter, “Toward a Feminst Poetics” (1979) e “Feminist Criticism in the Wilderness” (1981), ambos publicados de novo em The New Feminist Criticism, ed. Elaine Showalter, Virago, London, 1989; Alice Jardine, Gynesis: Configurations of Woman and Modernity, Ithaca: Cornell U.P., (1985). Em 1982, Jardine publicara já, na revista Diacritics (Verão de 1982), um ensaio intitulado “Gynesis”. Ainda neste âmbito, veja-se o ensaio de Gayatri Spivak, “Displacement and the Discourse of Woman”, in Displacement: Derrida and After, ed. Mark Krupnick, Indiana U. P., Bloomington, 1983. Para uma discussão do conceito em português, veja-se o verbete “Ginocrítica” no Dicionário da Crítica Feminista, Ana Gabriela Macedo e Ana Luísa Amaral (orgs.), Porto, Afrontamento, 2005 (pp. 88-9). 7
Showalter, E., “Toward a Feminst Poetics” (p. 128).
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Showalter, E., “Feminist Criticism in the Wilderness” (p. 248).
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mida, enquanto condição da modernidade; em suma, o agenciamento e empoderamento9 das mulheres a partir do interior das próprias narrativas de legitimação social e patriarcal — em inglês, master narratives, conotadas simbolicamente nesse duplo sentido.10 Assinale-se ainda como fundamental neste contexto o ensaio da poeta e crítica norte-americana Adrienne Rich, “Quando nós, os mortos, despertamos: a escrita como re-visão” (1979), ao reclamar a re-visão da história cultural não apenas enquanto gesto intelectual e político, mas como uma prioridade de sobrevivência para as próprias mulheres: Re-visão — o acto de olhar para trás, de ver com olhar renovado, de penetrar num texto antigo com uma nova perspectiva crítica — significa para a mulher mais do que um capítulo na história cultural: é um acto de sobrevivência.11
A poética visual de Rego, chamemos-lhe assim, assumindo a bi-dimensionalidade visual e narrativa da sua obra e o esbatimento de fronteiras e disciplinas que tal implica, é sempre marcadamente dialógica, quer pelo diálogo que estabelece com os grandes mestres da tradição clássica na arte, através do gesto duplo de apropriação transgressiva/ /subversão paródica (o “ruminar” da tradição, numa expressão da própria artista12) que a sua obra sempre frontalmente exibe (nomeadamente
9 O termo “empoderamento” (do inglês, empowerment) tem vindo a ser progressivamente assimilado pela língua portuguesa, traduzindo o crescente acesso das mulheres à vida pública e ao espaço social, bem assim como a assunção de uma cidadania plena. 10
Jardine, A., Gynesis: Configurations of Woman and Modernity (p. 25).
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“Re-vision — the act of looking back, of seeing with fresh eyes, of entering an old text from a new critical direction — is for women more than a chapter in cultural history: it is an act of survival”. Adrienne Rich, “When We Dead Awaken: Writing as Re-Vision”, in On Lies, Secrets and Silence. Selected Prose 1966-1978, W.W. Norton & Company, Nova Iorque e Londres [1971; 1979], 1995 (p. 35). 12 Rego em conversa com Colin Wiggins, a propósito da sua residência artística na National Gallery em Londres, durante o ano de 1990, em que lhe foi encomendado que criasse uma obra que “reflectisse sobre” e fosse um comentário à obra dos “Grandes Mestres” da Tradição Clássica aí exibida. A este propósito, afirmou a pintora: “Precisamos de achar o nosso próprio caminho… e eu descobri que o único modo de conseguir a entrada certa nas coisas é pela cave… que é precisamente o local onde o meu estúdio se encontra! Assim posso subir sorrateiramente aos andares de cima, agarrar as coisas que me interessam, trazendo-as para a minha cave, onde posso tranquilamente ruminá-las… Aqui sou assim uma espécie de caçador furtivo!” Wiggins, Collin (ed.), (1991), Tales from the National Gallery, Londres, National Gallery, (p. 21).
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Goya, os caricaturistas do séc. XIX, Hogarth, Dubuffet, Menez, James Ensor), quer pela sua afirmação desassombrada de fazer pintura tendo o feminino como epicentro crítico, reclamando que a arte tem género, isto é, não é neutra ou assexuada, porém dizendo/pintando o universo e a experiência das mulheres através do recurso à ironia e à ambivalência, ao distanciamento crítico e à re-visão pós-modernas. Rego des-naturaliza o feminino tal como tradicionalmente concebido, acentuando-lhe os paradigmas da ruptura e da potencial insurreição ou explosão de limites ou limiares13 e, fazendo convergir na sua arte a crítica pós-moderna da representação, re-configura e re-conceptualiza o feminino acentuando-lhe a capacidade de transgressão e de agenciamento. A obra de Rego pode assim ser interpretada, em sintonia com as palavras atrás citadas da poeta A. Rich, como inscrevendo-se num novo capítulo na história da pintura contemporânea, ao reescrever a história cultural das mulheres. A obra de Paula Rego é indubitavelmente marcada por um profundo cariz narrativo, reiteradamente expresso pela própria pintora em comentários sobre a génese e composição da sua obra, declaradamente inspirada em textos de distinta natureza e proveniência, sem qualquer hierarquização de géneros e afiliações culturais. E retomo aqui a minha epígrafe deste texto, reproduzindo as palavras da pintora numa entrevista ao amigo poeta Alberto de Lacerda (como ela londrino por adopção e cidadão do mundo por opção), aquando da primeira exposição da pintora na SNBA em Lisboa, em Dezembro de 1965. À pergunta de Lacerda sobre a relação da sua pintura com a vida, responde-lhe Rego: “A minha pintura é como uma história interior. (…) É uma maneira de encarar, de destruir a realidade. (…) Não me vejo integrada em qualquer movimento. A razão para isso é talvez o facto de eu me inspirar em coisas que não têm a ver com a pintura: caricatura, notícias de jornal, aconteci-
13 O antropólogo Victor Turner refere a importância da “insubordinação” feminina como o “potencial subversivo do princípio feminino carnavalesco”. Victor Turner, “Frame, Flow and Reflection: Ritual and Drama as Public Liminality”, in Michael Benamou and Charles Caramello, eds, Performance in Postmodern Culture, Madison: Coda Press, 1977 (pp. 41-2).
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mentos de rua, provérbios, cantigas infantis, danças de roda, pesadelos, desejos, medos”.14 No eixo deste diálogo de influências, “entrelaçamentos” e cumplicidades várias, não posso desde já deixar de destacar uma figura tutelar na obra de Rego, se bem que raras vezes referida pela crítica — a presença da pintora Menez (Maria Inês Ribeiro da Fonseca).15 Dessa relação privilegiada diz Rego (em entrevista que me concedeu e que será transcrita no próximo capítulo): (…) a Menez, de quem fui sempre muito amiga, tinha imensa admiração por ela, de cada vez que ia a Lisboa ficava muito tempo com ela, tudo o que ela fazia eu trazia para Londres comigo e “copiava”. Só que nós somos diferentes. As figuras da Menez não são as minhas figuras. Ela dizia-me: “Tu vens cá, vês as minhas coisas, depois levas para Londres e fazes melhor.”
Acrescentarei a este mapeamento de territórios de pesquisa e cartografias artísticas, que, sendo eu própria de formação literária, cheguei ao conhecimento da obra de Paula Rego pela via literária, e pelo estudo da teoria e crítica feministas, a qual se define mais pelas estratégias hermenêuticas que aplica do que pelos limites territoriais do seu campo de análise, permitindo assim que essa tal porosidade e fluidez crítica a que me referi acima se consubstanciem num modo de “olhar” criticamente a realidade, reclamando a noção de texto de um modo amplo e não aurático, quer tratando-se de textos literários, quer de textos visuais, enquanto produtos culturais existindo e circulando em contextos específicos. É justo dizer que o papel de uma escritora britânica em tudo isto foi à altura crucial, estando eu, no início deste projecto, dedicada ao estudo da sua, a todos os títulos, irreverente obra — refiro-me a Angela Carter, essa outra contadora de estórias, simultaneamente mitógrafa e
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In Diário de Notícias, 25 de Dezembro de 1965, (pp. 3-4).
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Menez foi Prémio Pessoa em 1990, teve em 1990 (Novembro-Dezembro) a sua última grande exposição retrospectiva na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa; a pintora morre em 1995. Só em Abril de 2006, por ocasião da abertura do Palácio dos Anjos/Colecção Manuel de Brito, em Algés, presentemente Centro de Arte Manuel de Brito, lhe foi dedicada uma nova e belíssima exposição antológica.
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incansável desconstrutora de mitos. Assim, é lícito dizer que o primeiro texto crítico que escrevi sobre Rego foi um estudo comparativo com a obra de Carter, explorando a imaginação visual e a natureza transgressiva da estética de ambas, que continuo hoje ainda a ver como almas gémeas. E transcrevo a este propósito as palavras, como sempre vibrantes, de Rego, em entrevista com John McEwen, que precisamente a interroga a este respeito. Afirmando ter-se apenas encontrado com Carter uma vez, diz a pintora: “Conversámos sobre os gatos de Veneza — desde as coisas repugnantes que fazem até à pequenez das suas cabeças. Fiquei encantada com a vivacidade da sua conversa”.16 Importa ainda dizer que as entrevistas com a pintora são parte integrante e crucial deste projecto e constituem, a meu ver, material crítico, e não apenas meta-crítico. Nelas se escuta directamente a voz da artista ora comentando directamente o seu trabalho, ora contextualizando-o em função dos diálogos e “entrelaçamentos” estabelecidos com outros criadores, outras obras, e também com a polis social. Sem nunca perder a noção da História, por um lado, como pano de fundo e catalisadora da obra artística, Paula Rego fala desassombradamente sobre as suas fontes de inspiração, sejam elas, tal como se disse acima, pintores e escritores clássicos e da cultura dita erudita, sejam as canções de embalar, os papões e os pesadelos infantis, ou ainda as crónicas do quotidiano e os ecos das guerras no mundo. As entrevistas com Paula Rego têm uma peculiaridade, nelas a pintora se mostra abertamente, comentando o seu mundo e o da sua arte, mas também frequentemente questiona o próprio entrevistador, com a candura e a ironia mordaz que simultaneamente a caracterizam. Os papéis de entrevistador e entrevistado invertem-se assim frequentemente, de observador se passa a observado, num abrir e fechar de olhos! São textos fundamentais para a perspectivação crítica
16 “We talked about the cats in Venice — the disgusting things they get up to and the smallness of their heads. I was thrilled by the vividness of her conversation.” John McEwen. Paula Rego. London: Phaidon. [1992] 1997, (p. 274).
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da sua obra e um precioso auxílio para a pesquisa. Elas constituem o Capítulo I, que intitulei “O meu tema é a minha história…”. No Capítulo II, intitulado “Re-visões: A arte não é neutra”, pretendo pôr em foco um elemento fulcral na estética de Rego que diz respeito à mulher enquanto sujeito actuante na obra da pintora e à questão do agenciamento e empoderamento femininos. Isto é, pretende-se evidenciar, nos ensaios que compõem este capítulo, o significado na arte de um olhar feminista sobre o mundo e do compromisso traduzido a nível da retórica visual, a re-visão dos temas, dos agentes representados e das estratégias da representação, a ruptura com a tradição hegemónica patriarcal da História da Arte, o desvendar dos silêncios ancestrais e a liminar recusa da vitimização do feminino — irrompendo subversivamente do mundo laico para a esfera do mítico e do religioso. Questões estas que se prendem com vivências e convicções pessoais e até geracionais, mas também com posturas teóricas, assumidas em pleno pela pintora. E cito como exemplo a afirmação da artista que empresta o título a este capítulo: As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra? Isso não faz sentido, pois não? (…) Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com tudo aquilo em que jamais se ousou tocar — a experiência das mulheres.17
O Capítulo III, a que chamei “Intertextualidades e entrelaçamentos ou the art of storytelling”, o qual reúne textos críticos escritos originalmente em inglês e aqui apresentados em tradução, com origem em contextos diversos, centra-se essencialmente no diálogo com a literatura (as “Nursery Rhymes” da tradição oral inglesa, a obra de Angela Carter, Jean Rhys, Charlotte Brontë, Martin McDonagh, ou Eça de Queiroz). A lógica observada nunca é diacrónica, mas antes se pretende articular e
17 Rego em entrevista com Melanie Roberts, “Eight British Artists. Cross Generational Talk”, in Fran Lloyd, From the Interior. Female Perspectives on Figuration, Kingston, Kingston University Press, 1997, (p. 85).
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reflectir sobre diferentes vertentes da obra de Rego e deixar que ela própria nos interrogue e nos desassossegue. Em nenhum dos três capítulos que compõem este livro será possível ou sequer desejável separar a re-visão do cânone artístico, da reescrita e do agenciamento no feminino, do diálogo com a Literatura e com a História da Arte. Importa sim pensar caleidoscopicamente a arte do “contador de histórias”…
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