Uma noite na biblioteca

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Jean-Christophe Bailly

Uma noite na biblioteca Tradução Christine Zurbach e Luís Varela

Cotovia


Título original: Une nuit à la bibliothèque © Christian Bourgois éditeur, 2005 © Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2009 Concepção gráfica de João Botelho ISBN 978-972-795-288-5


Índice

Elenco da estreia UMA NOITE NA BIBLIOTECA

p. 7 9



Esta tradução estreou na Sala de São Pedro Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, pelo Teatro da Rainha, a 5 de Março de 2009

encenação tradução e colaboração dramatúrgica figurinos e colaboração plástica música iluminação

Luís Varela Christine Zurbach José Carlos Faria Anne Fischer Luís Varela e Carina Galante

Interpretação: Bertoli Ragionello Alegoria Fantolin

José Carlos Faria Victor Santos Isabel Lopes Miguel Araújo

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JEAN-CHRISTOPHE BAILLY

UMA NOITE NA BIBLIOTECA



Noite. Os espectadores são conduzidos para dentro da sala da biblioteca onde se instalam às mesas de leitura, iluminadas pelos seus candeeiros. Entra um homem duns cinquenta anos que vai instalar-se a uma mesa ligeiramente elevada, de frente para os espectadores, como um conferencista. Chamar-lhe-emos Bertoli.

CENA 1 BERTOLI Encontramo-nos na sala de leitura, onde são trazidos os livros àqueles que os pedem e que os consultam em silêncio nas mesas que estão a ver. Tudo parece morto e como que extinto e não podemos deixar de considerar poeirento este lugar que no entanto é encerado e varrido com todo o cuidado. Mas esta poeira que repugna, para nós que trabalhamos aqui, é sagrada. A poeira é tempo visível e nesta sala, como em outras, é possível abrir o tempo. Não como um corpo que se disseca, mas como um fluxo que se sonda. Sempre subindo o seu curso, porque não é possível precedê-lo ou andar mais depressa que ele. Aqui, estão a ver, banhamo-nos no rio do tempo e de cada vez recolhemos um pouco da sua água, sempre a mesma e sempre diferente. Uma sala como esta não é nem um “lugar de memória” (em boa verdade, o que é que não é um lugar de memória?), nem um mero entreposto, é, como eu gosto de dizer, o serviço de peças sol11


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tas do saber humano, é a memória desse mesmo saber: inscrita em pegadas legíveis, folhas volantes atadas em maços, livros arrumados em prateleiras, labirinto. Sabem que outrora, quando as origens de Roma se confundiam com as práticas etruscas, o templum começou por designar a parte do céu que se delimitava para nela se ler os augúrios, quer dizer, os sinais anunciadores do destino escritos pelos pássaros, nomeadamente os abutres. Depois, o templum desceu do céu à terra e designou aquilo que nós hoje entendemos por templo, ou seja, o edifício onde os deuses são venerados e onde talvez estejam presentes. Que a biblioteca seja o templo nesse sentido, não iria tão longe, mesmo tendo dito que a nossa poeira é sagrada. Mas que cada livro seja à sua maneira um oráculo, uma possibilidade de oráculo, nisso sim, acredito — e acredito mesmo sabendo que lugares semelhantes a este foram em parte concebidos contra os oráculos, na época da Razão ou pelo menos no seu rasto. De qualquer modo, a ideia de juntar num único lugar o conjunto dos saberes, das narrativas e dos cantos é antiga e oscilou sempre, em qualquer época, entre razão e magia, entre algo de solar e geométrico e algo de nocturno e refulgente. Junto de Fausto, o leitor assíduo, está evidentemente a Melancolia. O que Fausto não sabe — e desse ponto de vista pode dizer-se que ele não consultou bem os áugures — é que a Melancolia, na verdade, vela por ele, protege-o. A Melancolia, gostaríamos que a sua figura, mais do que qualquer outra, estivesse presente aqui na 12


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forma de estátua ou de emblema, porque ela é a verdadeira divindade destes lugares, porque é ela que habita estas prateleiras, estas salas, estes corredores, este reino. Aquilo que uma biblioteca deseja, não o pode alcançar. Seja ela imensa ou restrita, real ou provincial, antiga ou moderna, nunca atingirá a imensidão que a alimenta, nunca o que contém terá a evidência dum simples cabelo, duma pedra, dum alguidar, nunca será como aquele mapa famoso e lendário que se confunde com o território em cada um dos seus pontos porque ele é o território. Cada biblioteca, por muito que tenha havido colecção, arrumação, intenção, estende-se em torno daquilo que lhe escapa. Não a palavra final da história ou a soma exaustiva mas o silêncio em que a palavra se aboliria, aceite pela indolência dum sentido mais antigo. É por isso que, como se nada fosse e numa brandura aparente, reina aqui a Melancolia, é por isso que aqui existe vazio, desamparo, o sentimento de resto tão fácil de que tudo é ilusão. Mas é também por isso que cada leitor é como um alpinista amarrado a um cordão de homens escalando lentamente uma montanha cujo cume se afasta cada vez mais, e é por isso que gostamos da poeira que vemos dançar aqui nos dias de sol, porque ela é como o pó dos trilhos dessa montanha. Labirinto de gargantas e de ravinas em que cada um avança sozinho ao jeito dum mineiro que segue um veio na terra ou ainda ao jeito dum caçador que segue o rasto e as pegadas de presas que se esquivam, reconhecendo nas paredes fios de baba e no chão bolas de penas regurgitadas. Porque é de pouco, com 13


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pouco de cada vez, que a coisa se faz, digo-vos eu: pólen em vez de flores, gramas em vez de toneladas. É verdade que aqui temos muitos gritos, exclamações, declamações, mas hoje são como cascas, como detritos que juncam o chão da caverna. O drama, o nosso drama, está escrito em todas as folhas, e a velha história da presa e da sombra, já aqui a consultámos, a revolvemos. A sua moral é simples: quanto mais difíceis eram as presas, mais belas são as sombras. Bertoli é interrompido em pleno discurso por um homem que entrou silenciosamente na sala. Esse homem não é um homem, mas sim um livro, o fantasma dum livro. Veste à moda de 1830, mas sobriamente. Chamar-lhe-emos Ragionello.

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CENA 2 RAGIONELLO (dirigindo-se a Bertoli) És tu, dizes, quem recolhe o maná. Os frutos, as bagas… Ao redistribuí-los, não te esqueças de nós, os filhos da matéria. Sabes, eu caminhava ao longo duma falésia e vocês, os ratos, não estavam lá para me darem coragem. Quando escorreguei na erva húmida, não gritei, não, mas ao ver o mar bravio vinte metros abaixo a bater nas rochas e revoltear cheio de rancor entre dois assaltos, tive medo, é como te digo, tão súbito como o sangue nas veias. O que tu queres saber, podes aprendê-lo mas não podes prendê-lo. A nós, só nos resta o esquecimento, quer dizer um perfurar lento e fundo. E os que nos vêm ler mal nos conseguem acordar. No momento em que Bertoli se prepara para responder (pode ser que ele seja também um fantasma), é interrompido por uma mulher que se lhe dirige das alturas da biblioteca (escada ou galeria, pouco importa), e que, ela, está vestida como em 1900, chamar-lhe-emos Alegoria. ALEGORIA (para Bertoli) Não lhe dêem ouvidos. Está sempre a queixar-se. Nas prateleiras a vida corre tranquila. Quando cheguei, puseram-me no depósito, ao lado de Aristóteles, dum 15


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romance de que me esqueci e dum manual de artilharia. Depois viajei e agora moro lá em cima ao lado dum poeta russo que não faz barulho. Saio raramente, mas o meu sono é sossegado, os meus sonhos preenchem-me. Não é nem a eternidade nem o tempo, qualquer coisa ao lado, estão a ver. Uma sequência de instantes que formam uma curva, como uma cama de rede por cima da cabeça. Desce para a sala cantando. (Com ironia:) Estas boas velhas mesas. Estes bons velhos candeeiros. Este cheiro… Volta a cantarolar. (Para Ragionello:) E as raquetas. Pensaste nisso? RAGIONELLO Sim, tenho-as aqui. Mas há tanto tempo que não jogamos. Diria três anos, pelo menos. ALEGORIA Três anos, quatro anos, que importância tem? Ragionello procura em vão as raquetas no canto da biblioteca onde pensava que as tinha posto, depois dirige-se ameaçador a Bertoli suspeitando que ele as escondeu. 16


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RAGIONELLO (para Bertoli) Espécie de livro de conferências carregado de tédio, mal encadernado e ainda mais mal impresso, dá-me imediatamente as raquetas! Bertoli retira de má vontade as raquetas e os volantes duma gaveta e dá-os a Ragionello. Depois Ragionello dá uma raqueta a Alegoria e põem-se os dois em posição para jogar. ALEGORIA Sei pronto? RAGIONELLO Si. Começam a jogar.

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