Sherlock Holmes em: A casa vazia Por Sir Arthur Conan Doyle
PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
O assassinato do honorável Ronald Adair, ocorrido na primavera de 1894, em estranhas e inexplicáveis circunstâncias, despertou o interesse de toda a cidade de Londres, deixando consternados os meios elegantes. O público conhece os pormenores que vieram à luz nas investigações policiais, mas muita coisa ficou oculta naquela época, pois as acusações eram tão graves e evidentes que era pouco aconselhável divulgar todos os fatos. Somente agora, quase dez anos mais tarde, é que me é permitido apresentar os elos que faltaram e que completam a extraordinária cadeia. O crime em si era interessante, mas esse interesse nada significava para mim, comparado com a sua inconcebível seqüência, que me causou o maior choque e a maior surpresa de toda a minha vida aventurosa. Mesmo agora, após tão longo intervalo, vibro ao pensar nisso e me sinto de novo invadido por uma torrente de alegria, espanto e incredulidade. Ao público que se interessou pelas informações que de vez em quando eu dava a respeito dos pensamentos e ações daquele homem extraordinário, quero dizer que não deve me censurar por não ter compartilhado tudo com ele. Teria sido esse o meu primeiro dever, se não houvesse expressa proibição, formulada pelos lábios daquele homem — proibição que foi levantada no dia 3 do mês passado. É fácil imaginar que a minha intimidade com Sherlock Holmes me fizesse tomar grande interesse pelo crime em geral e que, após o desaparecimento do meu amigo, eu nunca deixasse de ler com cuidado os vários problemas levados a público. Mais de uma vez, para meu gozo pessoal, tentei empregar os métodos de Holmes e solucionar tais problemas, embora sem resultado. Nenhum me atraiu tanto como a tragédia de Ronald Adair. Ao ler no inquérito os depoimentos que levaram ao veredicto: "assassinato cometido por pessoa ou pessoas desconhecidas", compreendi mais do que nunca que perda fora para a sociedade a morte de Sherlock Holmes. Havia, no estranho caso, pontos que certamente o teriam atraído — e o trabalho da polícia teria sido auxiliado, ou mais provavelmente, antecipado, pela experiente observação e a inteligência desperta do maior criminalista da Europa. Nesse dia, enquanto fazia as minhas visitas, pensei demoradamente no caso, não encontrando explicação adequada. Embora corra o risco de contar uma história pela segunda vez, vou recapitular os fatos que se tornaram do domínio público no final do inquérito. O honorável Ronald Adair era o segundo filho do conde de Maynooth, na ocasião governador de uma das colônias australianas. A mãe de Adair viera da Austrália para ser operada de catarata. Ela e seus filhos Ronald e Hilda moravam no número 427 da Park Lane. Os dois jovens freqüentavam a melhor sociedade; ao que constava, não tinham inimigos, nem vícios. Ele estivera noivo da srta. Edith Woodiey, de Carstairs, mas o noivado fora desfeito meses antes, de comum acordo, e não havia motivo para se supor que existisse ressentimento. Quanto ao resto, o rapaz freqüentara um círculo estreito e convencional, pois tinha hábitos moderados e temperamento calmo. Apesar disso, a morte apresentou-se a esse jovem aristocrata de maneira estranha e inesperada, entre as dez e as onze e vinte, na noite de 30 de março de 1894.
Ronald Adair era aficionado pelas cartas e jogava com freqüência, mas não de maneira que pudesse prejudicá-lo. Era sócio dos clubes Baldwin, Cavendish e Bagatelle. Ficou provado que no dia da sua morte jogara whist no Bagatelle, depois do jantar. Também jogara ali à tarde. Soube-se, pelo depoimento do sr. Murray, de Sir John Harday e do coronel Moran, que o jogo fora whist e que houvera certo equilíbrio na sorte. Adair perdera mais ou menos cinco libras. Possuidor de enorme fortuna, esse prejuízo em nada poderia afetá-lo. Tinha jogado todos os dias, num ou noutro clube, mas era cauteloso e em geral saía com lucro. Ficou provado que, como parceiro do coronel Moran, chegara a ganhar quatrocentas e vinte libras numa sessão, algumas semanas antes, de Godfrey Milner e Lorde Balmoral. Esses fatos eram recentes, pelo que se soube no inquérito. Na noite do crime, ele voltou do clube exatamente às dez horas. Sua mãe e sua irmã tinham ido visitar uns parentes. A criada declarou que o ouvira entrar na sala da frente, no segundo andar. Ela acendera o fogo nessa sala, e, devido à fumaça, abrira a janela. Não fora ouvido o menor ruído até as onze e vinte, hora a que voltaram a dona da casa e sua filha. Desejando dizer boa-noite ao filho, Lady Maynooth tentara entrar no seu quarto. Estava fechado por dentro, e não houve resposta quando bateram e chamaram. Pediram socorro, e a porta foi arrombada. O infeliz rapaz estava caído perto da mesa. Fora horrivelmente mutilado por uma bala explosiva, mas não se encontrou arma alguma no aposento. Na mesa estavam duas notas de dez libras, assim como dezessete libras e dez xelins em moedas de prata e de ouro, dispostas em pequenas pilhas. Havia também algarismos numa folha de papel, com os nomes de alguns amigos do clube, donde se deduziu que estivera, antes de morrer, tentando verificar seus lucros ou prejuízos no jogo. Um exame minucioso do caso tornou-o ainda mais complexo. Em primeiro lugar, não havia razão para o rapaz ter fechado a porta por dentro. Havia a possibilidade de ela ter sido fechada pelo assassino, que poderia ter fugido pela janela. Mas era uma queda de sete metros, e embaixo havia um canteiro de açafroes em pleno florescimento. Nem as flores nem a terra pareciam ter sido pisadas, e não havia marcas na estreita faixa de relva que separava a casa da rua. A julgar pelas aparências, fora o próprio rapaz que fechara a porta. Mas como fora ele morto? Ninguém poderia ter galgado aquela janela sem deixar vestígios. Mesmo supondo-se que alguém tivesse feito pontaria pela janela, era necessário que se tratasse de um ótimo atirador para causar tal ferimento. Além disso, a Park Lane é muito freqüentada, e havia um estacionamento de carros a cem metros da casa. Ninguém ouvira o tiro. E, no entanto, lá estava o morto, bem como a bala, achatada como todas as balas de ponta macia, provocando um ferimento que devia ter causado morte instantânea. Eram essas as circunstâncias do mistério da Park Lane, complicadas pela total ausência de motivo, já que, como dissemos, o jovem Adair não parecia ter inimigos e não houvera tentativa de roubo de dinheiro, ou de objetos de valor. Durante o dia todo, pensei nesses fatos, procurando encontrar uma teoria que os explicasse, ou descobrir a linha de menor resistência, que, na opinião
do meu pobre amigo Holmes, era o ponto de partida de qualquer investigação. Confesso que fiz poucos progressos. À tarde, caminhei pelo parque, e, às seis horas, vi-me na extremidade da Park Lane que dá para a Oxford Street. Um grupo de curiosos na calçada, todos olhando para uma determinada janela, indicou-me a casa que eu havia ido ver. Um homem alto e magro, de óculos escuros, que desconfiei fosse um policial à paisana, expunha uma teoria de sua autoria às pessoas que se agrupavam para ouvi-lo. Cheguei o mais perto possível, mas as observações me pareceram absurdas, de modo que me afastei, aborrecido. Ao fazê-lo, esbarrei num homem velho e disforme, que estava atrás de mim, e derrubei vários livros que ele levava. Lembro-me de que, ao erguê-los, notei o título de um deles, The origin of tree worship, e ocorreume que o sujeito devia ser um pobre bibliófilo, que, por profissão ou mania, colecionava volumes obscuros. Procurei desculpar-me, mas era evidente que aqueles livros, que eu tivera a infelicidade de derrubar, eram preciosos aos olhos do dono. Ele se virou com um rosnar de desprezo, e a corcunda e as suíças brancas desapareceram no meio da multidão. Minhas observações sobre o número 427 da Park Lane não me ajudaram a elucidar o problema que me interessava. A casa era separada da rua por um muro baixo, com grade, não tendo o conjunto mais do que um metro e meio de altura. Seria portanto muito fácil a qualquer pessoa entrar no jardim. Mas a janela era inacessível, uma vez que não havia condutor de água ou qualquer outra coisa que pudesse ajudar o mais ágil dos homens a galgá-la. Cada vez mais perplexo, voltei para Kensington. Não havia ainda cinco minutos que entrara no meu escritório, quando a criada veio me avisar que alguém queria me ver. Notei, com surpresa, que era o estranho colecionador de livros, de rosto enrugado sob os cabelos brancos, carregando os preciosos volumes, no mínimo doze, sob o braço direito. — Está admirado de me ver aqui, senhor? — perguntou ele com um grasnar estranho. Respondi que realmente estava. — Pois bem, mas é que eu tenho consciência, e, ao vê-lo entrar nesta casa, quando vinha atrás do senhor, disse a mim mesmo que ia entrar e dizer-lhe que, se me mostrei um tanto brusco, foi sem querer e que lhe estou grato por ter apanhado os meus livros.
— Está dando muita importância ao incidente — disse eu. — Posso perguntar como soube quem eu era? — Pois bem, senhor, se acha que estou tomando excessiva liberdade, dir-lheei que sou seu vizinho; minha livrariazinha fica na esquina da Church Street,
onde terei muito prazer em vê-lo, pode ficar certo. Talvez o senhor também seja colecionador, e tenho aqui Pássaros britânicos, Catulo e A Guerra Santa — cada um deles uma pechincha! Com cinco volumes o senhor poderia preencher aquele espaço, na segunda prateleira. Dá um ar de desordem, não é verdade, senhor? Virei a cabeça e olhei para a estante atrás de mim. Quando tornei a me virar, Sherlock Holmes me encarava sorrindo, do outro lado da escrivaninha. Ergui-me de um salto, olhei-o durante alguns segundos, completamente atônito, e parece que desmaiei pela primeira e última vez na minha vida. Não há dúvida de que uma nuvem cinzenta dançou diante dos meus olhos, e, quando recuperei os sentidos, vi que meu colarinho fora desabotoado e senti na boca um gosto de conhaque. Holmes estava inclinado sobre a minha cadeira, de frasco na mão. — Caro Watson, peço-lhe mil perdões — disse a tão conhecida voz. — Não imaginei que ficasse tão abalado. Agarrei-o pelo braço. — Holmes! — exclamei. — É você mesmo? Será possível que esteja vivo? É verdade que conseguiu sair daquele pavoroso abismo? — Espere um momento! — disse ele. — Tem certeza de que está em estado de discutir os fatos? Causei-lhe um choque sério com a minha aparição desnecessariamente dramática. — Estou bem, mas, francamente, Holmes, mal posso acreditar nos meus olhos. Deus do céu, pensar que você, você, dentre todos os homens, está aqui no meu escritório! — Agarrei-o de novo pela manga e senti-lhe o braço fino e nervoso. — Bom, em todo caso, não é espírito. Caro amigo, estou radiante por revê-Io. Sente-se e conte-me como saiu vivo do horrível precipício. Ele se sentou diante de mim e acendeu um cigarro, com aquele seu jeito despreocupado. Vestia o mesmo terno velho do vendedor de livros, mas as outras características daquele indivíduo estavam em cima da mesa, juntamente com a cabeleira branca e a pilha de livros. Holmes parecia mais magro e mais astuto do que antigamente, mas havia no rosto aquilino uma palidez que indicava não ter levado vida sadia ultimamente. — Estou satisfeito por poder me esticar novamente, Watson — disse ele. — Não é brincadeira, para um homem alto, ter de diminuir sua estatura trinta centímetros durante horas a fio. Agora, caro a migo, quanto às explicações: se
quiser me dar a sua cooperação, temos uma noite dura e perigosa à nossa frente. Talvez seja melhor eu lhe relatar os fatos depois desse trabalho terminado. — Estou curiosíssimo. Prefiro ouvi-lo agora. — Vai me acompanhar hoje à noite? — Quando quiser e aonde quiser. — Como antigamente, então. Temos tempo para um jantarzinho, antes de partir. Pois bem, quanto ao abismo... não tive dificuldade em sair dele pela simples razão de nunca ter estado lá. — Nunca ter estado lá? — É verdade, Watson, a pura verdade. O bilhete que lhe escrevi foi sincero. Não duvidei que tivesse chegado ao fim da minha carreira, quando vi o vulto sinistro do falecido professor Moriarty, de pé, na estreita vereda que o levava para junto de mim. Li nos seus olhos cinzentos uma resolução inexorável. Troquei com ele algumas palavras e obtive a sua amável permissão para lhe escrever, Watson, o bilhete que você mais tarde recebeu. Deixei-o juntamente com minha cigarreira e minha bengala e segui pela vereda, com Moriarty no meu encalço. Quando cheguei ao fim, ambos paramos. Ele não sacou arma alguma, mas correu para mim e rodeou-me com os seus longos braços. Sabia que para ele não havia esperança e queria se vingar. Lutamos à beira do precipício. Mas conheço um pouco de baritsu, um tipo de luta japonesa que mais de uma vez tem me valido. Consegui me libertar. Com um grito horrível, ele esperneou durante alguns segundos, como se procurasse agarrar o ar com ambas as mãos, mas, por mais que se esforçasse, não recuperou o equilíbrio e caiu no precipício. Vi-o durante muito tempo. Depois bateu numa rocha e desapareceu na água. Ouvi com espanto essa explicação, que Holmes me deu enquanto fumava. — Mas, e as marcas! — exclamei. — Vi, com os meus próprios olhos, pegadas de duas pessoas indo e nenhuma de regresso. — Vou lhe contar. No momento em que o professor desapareceu, ocorreu-me que eu tinha tido uma sorte extraordinária. Sabia que Moriarty não era o único que jurara me matar. Havia pelo menos mais três cujo desejo de vingança se acentuaria com a morte do chefe. Eram todos homens perigosíssimos. Um deles acabaria por me apanhar. Por outro lado, se o mundo inteiro estivesse convencido de que eu morrera, aqueles homens ficariam à vontade, e, cedo ou tarde, eu teria oportunidade de destruí-los. Seria, então, hora de anunciar que eu ainda pertencia ao mundo dos vivos. A mente raciocina com tal rapidez, que tudo isso me ocorreu antes mesmo de o professor Moriarty ter chegado ao fundo das quedas de Reichenbach.
"Levantei-me e examinei o rochedo atrás de mim. Na sua pitoresca descrição do incidente, que li meses mais tarde, você assegura que a rocha era escarpada. Não é bem verdade. Havia alguns pontos de apoio para os pés e a ligeira indicação de uma saliência. O rochedo era tão alto que parecia impossível galgá-lo todo, mas seria também impossível voltar pela vereda sem deixar sinais. Eu poderia, é claro, virar os sapatos, como já tenho feito noutras ocasiões, mas a impressão de três grupos de pegadas na mesma direção certamente despertaria suspeitas. Em suma, era preferível arriscar-me a subir. Não foi agradável, Watson. A catarata rugia a meus pés. Não sou pessoa imaginosa, mas garanto-lhe que tinha a impressão de ouvir a voz de Moriarty gritando do fundo do abismo. Um erro teria sido fatal. Mais de uma vez, quando um tufo de relva me ficou nas mãos, ou o pé me escorregou nas fendas úmidas da rocha, pensei que chegara ao fim. Mas continuei o esforço da subida e finalmente alcancei uma plataforma de alguns metros de profundidade, coberta por relva úmida, onde pude descansar sem ser visto, com todo o conforto. Estava estendido ali quando você, caro Watson, e todos os seus acompanhantes investigaram minha morte da maneira mais amiga e eficiente que se poderia imaginar. "Finalmente, depois de terem chegado às inevitáveis e completamente errôneas conclusões, você voltou para o hotel, e eu me vi de novo só. Pensei que tivesse chegado ao fim das minhas aventuras, mas uma ocorrência extraordinária me provou que ainda me esperavam surpresas. Uma pedra enorme, vinda de cima, passou por mim e foi cair no precipício. Pensei por um momento que fosse acidente, mas, segundos depois, olhando para cima, vi a cabeça de um homem contra o céu sombrio, e outra pedra bateu na própria saliência onde eu me achava, bem perto da minha cabeça. Não havia dúvida quanto à intenção. Moriarty não estava só. Um cúmplice — e aquele olhar de relance me provou o quanto ele era perigoso — ficara de atalaia enquanto o professor me atacava. De longe, sem que eu o visse, presenciara a morte do amigo e a minha fuga. Esperava então, e, dirigindo-se ao cume do rochedo, procurava vencer onde o chefe fora derrotado. "Não levei muito tempo para tirar minhas conclusões, Watson. Vi novamente o rosto sinistro lá em cima e percebi que viria outra pedra. Comecei a descer para a vereda. Não creio que o tivesse conseguido a sangue-frio. Era cem vezes mais difícil descer do que subir. Mas não tive tempo para pensar nas dificuldades, pois outra pedra passou por mim quando me dependurei, agarrando-me com as duas mãos à beira da saliência. A meio caminho, escorreguei, mas, com a ajuda de Deus, consegui chegar à vereda, ensangüentado e rasgado. Tratei de fugir. Caminhei dezesseis quilômetros pelas montanhas, no escuro, e uma semana mais tarde estava em Florença, certo de que ninguém no mundo poderia saber qual fora o meu fim. "Tive apenas um confidente: meu irmão Mycroft. Devo-lhe mil desculpas, caro Watson, mas era absolutamente necessário que me considerassem morto, e tenho a certeza de que você não descreveria a minha morte de maneira tão convincente se nela não acreditasse. Muitas vezes, nos últimos três anos, peguei na pena para lhe escrever, mas temia sempre que a sua
afeição por mim o levasse a qualquer ato indiscreto que traísse o meu segredo. Por esse motivo, afastei-me de você hoje, quando derrubou meus livros, pois no momento eu corria perigo, e qualquer sinal de emoção de sua parte poderia chamar a atenção para a minha pessoa e provocar as mais desastrosas conseqüências. Quanto a Mycroft, tive de confiar nele para obter o dinheiro de que necessitava. O curso dos acontecimentos, em Londres, não foi o que eu esperava, pois o julgamento do bando de Moriarty deixou em liberdade dois dos seus mais perigosos membros e meus maiores inimigos. Viajei durante dois anos pelo Tibete, diverti-me visitando Lassa e passando uns dias com o dalai-lama. Você deve ter ouvido falar das notáveis explorações de um norueguês chamado Sigerson, mas aposto que nunca lhe ocorreu que estava tendo notícias deste seu amigo. Passei depois pela Pérsia, dei uma olhada em Meca, fiz uma visita interessante ao califa de Cartum, e comuniquei os resultados ao Ministério do Exterior. Ao voltar para a França, empreguei alguns meses na busca de derivados do alcatrão, num laboratório de Montpeilier, no sul da França. Tendo concluído satisfatoriamente o meu trabalho e sabendo que somente um dos meus inimigos ficara em Londres, dispus-me a voltar, mas resolvi me apressar, ao ouvir as notícias deste extraordinário mistério da Park Lane, que me atraiu não só pelos seus próprios méritos como ainda porque pareceu me oferecer algumas peculiares oportunidades pessoais. Vim imediatamente para Londres, apresentei-me em pessoa na Baker Street, provoquei histeria na sra. Hudson e verifiquei que Mycroft conservara meus aposentos e meus papéis exatamente como eu os deixara. E foi assim, caro Watson, que hoje, às duas horas, vi-me sentado na minha poltrona, no meu antigo quarto, desejando apenas poder ver o meu velho amigo Watson na outra cadeira, que ele tantas vezes ocupara." Foi essa a extraordinária história que ouvi naquela noite de abril — narrativa que teria sido inacreditável se não fosse confirmada pela presença do homem alto e magro que eu pensara nunca mais tornar a ver. Ele soubera do meu desgosto e manifestou sua solidariedade, mais pela atitude de que por palavras. — O trabalho é um antídoto para a tristeza, caro Watson — disse ele. — Tenho para nós dois, hoje à noite, um trabalho que, se for realizado com êxito, por si só justificaria a vida de um homem neste planeta. Supliquei-lhe que me contasse mais alguma coisa. — Você ficará sabendo o suficiente ainda antes do amanhecer — continuou Holmes. — Temos três anos do passado para discutir. Que isto baste até as nove e meia, hora em que daremos início à notável aventura da casa vazia. Pareceu-me realmente que voltara ao tempo antigo, quando, àquela hora, vime sentado num carro ao lado dele, com um revólver no bolso e o entusiasmo da aventura no coração. Holmes estava frio, severo e silencioso. Quando a luz dos lampiões brilhava no seu rosto austero, eu notava que tinha as sobrancelhas contraídas e os lábios cerrados. Não sabia que fera selvagem íamos perseguir na floresta do crime, mas, pela atitude do meu mestre, percebi que era um caso grave — e o sorriso sardônico, que de vez em quando surgia
em seu rosto de asceta, augurava mal para o seu inimigo. Pensei que nos dirigíssemos para a Baker Street, mas Holmes parou na esquina da Cavendish Square. Vi-o, ao descer, olhar cautelosamente de um lado para o outro; a cada esquina, dali por diante, tomou o mesmo cuidado, para ter certeza de que não estávamos sendo seguidos. Não há dúvida de que nosso itinerário era singular. Holmes tinha um extraordinário conhecimento dos atalhos de Londres, e eu o via agora enveredar com segurança por uma rede de terrenos e estrebarias de cuja existência eu jamais suspeitara. Finalmente entramos numa rua ladeada por casas velhas e sombrias, que nos levou à Manchester Street e depois à Blandford Street. Ali, enfiou-se rapidamente por uma viela estreita, passou por um portão de madeira e entrou num quintal deserto, abrindo a porta traseira de uma casa. Entramos, e ele fechou a porta. Estava escuro como breu, e era evidente que nos achávamos numa casa vazia. Nossos passos faziam ranger o soalho nu, e minha mão tocou uma parede onde o papel caía em tiras. Os dedos frios de Holmes se fecharam sobre o meu pulso, e ele me conduziu por um longo corredor, até que vi vagamente a luz dúbia que se filtrava pela bandeira da porta. Holmes virou subitamente para a direita, nos encontramos num aposento vazio, grande e quadrado, com sombras profundas nos cantos, mas vagamente iluminado no centro pela luz da rua. Não havia lâmpada perto, e a vidraça estava coberta de pó, de modo que mal nos víamos. Meu amigo me pôs a mão no ombro e os lábios perto do meu ouvido. — Sabe onde estamos? — murmurou. — Não há dúvida de que ali é a Baker Street — respondi, olhando através da janela. — Exatamente. Estamos na Camden House, que fica defronte da minha casa. — Mas por que estamos aqui? — Porque temos uma ótima vista do pitoresco edifício. Peco-lhe que se aproxime da janela, caro Watson, tomando todas as precauções para não ser visto. Olhe depois para nossos antigos aposentos — ponto de partida de tantas aventuras. Veremos se três anos de ausência anularam ou não o meu dom de surpreendê-lo. Avancei cautelosamente e olhei para a conhecida janela. Quando meus olhos caíram sobre ela, mal pude conter uma exclamação de espanto. A cortina estava descida e uma luz forte brilhava no aposento. A silhueta de um homem sentado numa cadeira se desenhava fortemente no quadrado luminoso da janela. Não se podia deixar de reconhecer o equilíbrio da cabeça, a força dos ombros quadrados, a agudez dos traços. O rosto estava meio virado, e o efeito era o de uma daquelas silhuetas negras que nossos avós gostavam de
emoldurar. Era uma perfeita reprodução de Holmes. Tão admirado fiquei, que estendi a mão para ter certeza de que meu amigo estava ao meu lado. Ele ria silenciosamente. — Então? — perguntou. — Deus do céu, é maravilhoso! — exclamei. — Espero que nem a idade, nem o hábito façam com que desapareça o meu dom de infinita variedade — disse ele. Reconheci na sua voz o orgulho e o prazer que sente o artista com a própria criação. — Parece-se bastante comigo, não é verdade? — Poderia jurar que é você. — O mérito da execução pertence a M. Oscar Meunier, de Grenoble, que levou alguns dias fazendo o molde. É um busto de cera. O resto arranjei eu mesmo durante minha visita à Baker Street, hoje à tarde. — Mas por quê? — Caro Watson, tenho as mais fortes razões para desejar que certas pessoas pensem que estou lá, quando na realidade me encontro noutro lugar. — Acha que a sua residência está sendo vigiada? — Tenho certeza de que está sendo vigiada. — Por quem? — Pelos meus antigos inimigos da encantadora sociedade cujo chefe repousa nas quedas de Rcichenbach. Lembre-se de que eles, e somente eles, sabiam que eu estava vivo. Devem ter calculado que, cedo ou tarde, eu voltaria para casa. Observaram-na constantemente, e hoje de manhã viram-me chegar. — Como sabe disso? — Porque reconheci a sentinela, quando olhei de relance pela janela. Era um sujeito mais ou menos inofensivo, chamado Parker, extraordiná ;rio tocador de gaita, magarefe de profissão. Pouca importância lhe dou, mas dou muita à pessoa que está por trás dele, o amigo íntimo de Moriarty, aquele que atirou as pedras do alto do rochedo, o mais perigoso e mais astuto criminoso de Londres. É ele o homem que anda atrás de mim hoje à noite, Watson, o homem que nem de .longe desconfia que estamos atrás dele. Os planos de meu amigo iam sendo revelados pouco a pouco. Daquele nosso cômodo retiro, os observadores estavam sendo observados e os perseguidores, perseguidos. A sombra angulosa lá adiante valia como isca, e
nós éramos os caçadores. Ficamos em silêncio, juntos, no escuro, observando os vultos apressados que passavam e repassavam diante de nós. Holmes estava imóvel e silencioso, mas eu sentia que estava alerta, que os seus olhos se fixavam atentamente nos homens que passavam. Era uma noite feia e tempestuosa e o vento assobiava na rua. Muitas pessoas iam de um lado para outro, quase todas com capotes e echarpes. Uma ou duas vezes tive a impressão de ter visto a mesma pessoa, e notei particularmente dois homens que pareciam se abrigar do vento no vão de uma porta, a pequena distância. Procurei chamar para eles a atenção do meu companheiro, mas Holmes soltou uma exclamação de impaciência e continuou olhando para a rua. Mais de uma vez moveu nervosamente os pés, batendo rapidamente com os dedos na parede. Evidentemente começava a ficar inquieto, e seus planos pareciam não sair a contento. Finalmente, quando era quase meia-noite e a rua ia gradualmente ficando deserta, ele começou a passear pelo quarto, parecendo muito agitado. Eu ia fazer uma observação, quando ergui os olhos para a janela iluminada e de novo senti a mesma surpresa de há pouco. Agarrei o braço de Holmes e apontei para cima. — A sombra se moveu! — exclamei. Na realidade não era o perfil e sim as costas que víamos agora. Três anos não tinham amenizado o gênio de Holmes, nem lhe tinham dado mais paciência para com pessoas de inteligência menos viva que a dele. — Claro que se moveu — replicou. — Julgava-me por acaso um desastrado, Watson, a ponto de colocar ali um boneco e esperar iludir um dos homens mais perspicazes da Europa? Há duas horas que estamos neste quarto, e a sra. Hudson mudou a posição do manequim oito vezes, uma a cada quinze minutos. Ela mexe nele pela frente, de modo que sua sombra nunca é vista. Ah! ... — Aqui, Holmes teve uma exclamação excitada. Â luz dúbia, vi sua cabeça se inclinar para a frente e ficar em atitude de rígida atenção. Aqueles dois homens ainda poderiam estar no vão da porta, mas agora eu não os via. Estava tudo escuro e silencioso, a não ser no quadrado iluminado à nossa frente, com a silhueta negra ao centro. Ouvi de novo o som sibilante e fino que em Holmes significava excitação reprimida. Um momento depois, ele me puxou para o canto mais escuro do quarto, e senti sobre os meus lábios a mão que pedia silêncio. Os dedos que me seguravam tremiam. Nunca vira meu amigo tão emocionado, embora a rua continuasse deserta e silenciosa à nossa frente. Mas logo percebi o que os seus sentidos mais aguçados já haviam pressentido. A meus ouvidos chegou um som baixo, furtivo, vindo não da direção da Baker Street, mas da parte de trás da própria casa onde nos abrigávamos. Uma porta abriu-se e depois fechou-se. Minutos depois, passos no corredor — passos que queriam ser silenciosos, mas que ressoavam asperamente na casa vazia. Holmes se agachou contra a parede e eu fiz o mesmo, com a mão na coronha do revólver. Procurando perscrutar a
escuridão, distingui o contorno de um homem, um vulto um pouco mais escuro do que o negrume da porta. Ele ficou parado por um instante; depois, adiantouse, agachado, ameaçador. Estava a três passos de nós, e eu me preparava para receber o ataque quando percebi que ele não fazia a menor ideia da nossa presença. Passou rente a nós, foi até a janela de mansinho e ergueu ligeiramente a vidraça. Ao se ajoelhar para ficar ao nível dessa pequena abertura, a luz da rua, livre agora do vidro embaciado, iluminou-lhe o rosto. O homem parecia fora de si de excitação. Seus olhos brilhavam como estrelas e suas feições estavam convulsas. Era um homem idoso, de nariz fino e proeminente, testa alta, com grandes entradas, e enorme bigode grisalho. Usava um chapéu alto, colocado atrás; a camisa, de peito duro, brilhava por entre o sobretudo desabotoado. O rosto era esquálido e moreno, com rugas profundas. Trazia na mão um objeto que parecia uma bengala, mas, quando o colocou no chão, ouviu-se um ruído metálico. Do bolso do sobretudo, tirou um objeto volumoso e empenhou-se numa tarefa que terminou com um dique forte, seco, como se uma mola ou um trinco tivessem sido acionados. Ainda ajoelhado, inclinou-se para a frente e atirou todo o seu peso como que sobre uma alavanca, ouvindo-se um ruído longo, triturante e rotativo, que acabou de novo num forte estalido. Endireitou-se então, e vi que o que tinha na mão era uma espécie de espingarda, com uma coronha curiosamente deformada. Abriu a culatra, colocou nela qualquer coisa e engatilhou a arma. Depois, agachando-se, descansou a ponta do cano no peitoril da janela aberta. Vi o longo bigode cair sobre a coronha e os olhos brilharem, quando ele espreitou pela mira. Ouvi um suspiro de satisfação quando encostou o cano no ombro e viu aquele estranho alvo, a silhueta negra no quadrado amarelo, bem nítida na linha de tiro. Por um momento ficou rígido, imóvel. Depois, seu aedo comprimiu o gatilho. Ouviu-se um silvo alto, estranho, e um ruído de vidro partido. Nesse momento, Holmes pulou como um tigre sobre o homem, derrubando-o de bruços, no chão. O miserável ergueu-se imediatamente e, com força convulsa, agarrou Holmes pelo pescoço, mas eu bati em sua cabeça com a coronha do meu revólver e ele caiu de novo no chão. Atirei-me sobre ele e, enquanto o segurava, meu amigo fez soar um apito estridente. Ouvimos um ruído de pés sobre a calçada, e dois policiais fardados, com um detetive à paisana, passaram pela porta de entrada e irromperam no quarto. — É você, Lestrade? — perguntou Holmes. — Sim, sr. Holmes, eu próprio me encarreguei do caso. É um prazer vê-lo de novo em Londres. — Creio que você precisa de um auxiliozinho extra-oficial. Três assassinatos sem solução num ano, Lestrade... é muita coisa! Mas você solucionou o
mistério de Molesey com um pouco mais de habilidade do que de costume... isto é, você o solucionou com bastante habilidade. Tínhamos nos erguido todos, o prisioneiro respirando ofegante, com um avantajado policial de cada lado. Alguns curiosos tinham se reunido na rua. Holmes foi até a janela e fechou-a. Lestrade apareceu com duas velas, e os policiais pegaram as suas lanternas. Finalmente pude ver bem o prisioneiro. O rosto que nos encarava era extraordinariamente viril e sinistro. Testa de filósofo sobre uma boca sensual, o homem devia ter tido capacidade para o bem e para o mal. Mas ninguém poderia olhar para seus cruéis olhos azuis, de pálpebras cínicas e caídas, ou para o nariz agressivo, ou para a fronte ameaçadora, sem neles notar os mais nítidos sinais de um caráter perigoso. Não olhou para nenhum de nós. Tinha os olhos fixos em Holmes, com uma expressão de ódio e de espanto ao mesmo tempo. — Demônio! — murmurou várias vezes. — Demônio de uma habilidade infernal! — Ah, coronel! — exclamou Holmes, arrumando o colarinho. — "Termina a jornada com o encontro dos namorados", conforme se dizia na peça antiga. Não creio que tenha tido o prazer de vê-lo desde que me obsequiou com sua atenção nas quedas de Reichenbach, quando eu me ocultava na saliência da rocha. O coronel continuava a olhá-lo, como que em transe. — Demônio de uma habilidade infernal! — Era só o que sabia dizer. — Ainda não o apresentei — disse Holmes. — Este cavalheiro, senhores, é o coronel Sebastian Moran, do exército de Sua Majestade e o melhor caçador do império oriental. Creio que não me engano, coronel, ao afirmar que o número de tigres que abateu ainda não foi igualado, não? O feroz velho nada dizia, continuando a fulminar o meu companheiro com o olhar. Com os olhos selvagens e o bigode eriçado, ele próprio parecia um tigre. — Admiro-me que tão simples estratagema tenha iludido um shikari tão sabido — observou Holmes. — Devia ser seu conhecido. Será que nunca pôs um boneco sob uma árvore, ficando em cima dela com a espingarda, esperando que a isca atraísse o tigre? Esta casa vazia é a minha árvore e o coronel, o meu tigre. Naturalmente o senhor tinha outras armas de reserva, caso viessem vários tigres, ou na hipótese pouco provável de errar a pontaria. Estes aqui — continuou Holmes, com um gesto circular — são as minhas outras armas. O paralelo é perfeito.
O coronel Moran pulou com um rosnar de cólera, mas os dois policiais o puxaram de novo para trás. A fúria em seu rosto era terrível. — Confesso que tive uma pequena surpresa — continuou Holmes. — Não pensei que o senhor se servisse desta casa vazia e desta cômoda janela da frente. Pensei que agisse da rua, onde Lestrade e seus companheiros o esperavam. A não ser por isso, tudo ocorreu conforme eu supusera. O coronel Moran voltou-se para o detetive oficial. — O senhor pode ou não ter motivos para me prender — disse ele. — Mas, pelo menos, não há razão para que eu me submeta às ironias desta criatura. Se é que estou nas mãos da lei, que tudo se faça legalmente. — Pois bem, é razoável — concordou Lestrade. — Tem alguma coisa a acrescentar, sr. Holmes, antes de nos retirarmos? Holmes apanhara do chão a poderosa espingarda de ar comprimido e examinava-lhe o mecanismo. — Arma única e admirável — disse ele. — Silenciosa e muito poderosa. Conheci Von Herder, o mecânico alemão, cego, que a construiu por ordem do falecido professor Moriarty. Há anos que sei da sua existência, embora jamais tenha tido oportunidade de manejá-la. Chamo sua atenção para ela, Lestrade, assim como para suas balas. — Pode ficar certo de que cuidaremos disso, sr. Holmes — disse Lestrade, dirigindo-se com os outros para a porta. — Mais alguma coisa? — Queria lhe perguntar apenas qual vai ser a acusação. — A acusação? Mas, naturalmente, tentativa de morte contra o sr. Sherlock Holmes — respondeu o detetive. — Nada disso, Lestrade. Não quero figurar no caso. A você, e somente a você, pertence a glória da extraordinária prisão que efetuou. Sim, Lestrade, dou-lhe os parabéns! Com a sua habitual mistura de audácia e sagacidade, apanhou-o. — Apanhei-o! Apanhei quem, sr. Holmes? — O homem que toda a polícia em vão procurou: o coronel Sebastian Moran, que matou o honorável Ronald Adair, servindo-se de uma espingarda de pressão, usando bala explosiva, que varou a janela da frente, no segundo andar do número 427 da Park Lane, no dia 30 do mês passado. É essa a acusação, Lestrade. E agora, Watson, se estiver disposto a suportar a corrente de ar devido à janela quebrada do meu escritório, creio que meia hora de
prosa, fumando um charuto, vai diverti-lo. Nossos antigos aposentos não tinham sido modificados, graças à supervisão de Mycroft e aos cuidados da sra. Hudson. Quando entrei, é verdade que vi uma ordem fora do comum, mas as velhas marcas estavam nos seus antigos lugares. A mancha de ácido, na mesa. Numa estante, uma fileira de formidáveis cadernos de apontamentos e livros de referências que muitos cidadãos teriam tido prazer em queimar. Os diagramas, a caixa do violino, a prateleira dos cachimbos, até a mesma bolsa persa de tabaco feriram o meu olhar, quando examinei a sala. Havia dois ocupantes: a sra. Hudson, toda sorridente, e o estranho boneco que tivera parte tão importante nos acontecimentos da noite. Era um modelo em cera colorida, réplica perfeita do meu amigo. Estava numa mesinha, vestido com um velho roupão de Holmes, arranjado com tal arte que da rua a ilusão fora completa. — Espero que tenha tomado todas as precauções, sra. Hudson — disse Holmes. — Fui de joelhos, exatamente como o senhor me recomendou. — Ótimo. Deu muito bem conta do recado. Viu onde entrou a bala? — Sim, senhor. Receio que tenha estragado o seu belo busto, pois perfurou a cabeça, indo bater na parede. Apanhei-a no tapete. Aqui está! Holmes mostrou-me a bala. — Bala de ponta mole, como vê, Watson. Idéia genial... pois quem iria pensar que saíra de uma espingarda de ar comprimido? Muito bem, sra. Hudson, ficolhe muito grato. E agora, Watson, quero vê-lo na sua antiga poltrona mais uma vez, pois há vários pontos que desejaria discutir com você. Ele despira o casaco velho, voltando a ser o Holmes de outros tempos, metido no roupão cinzento que tirara do boneco. — O velho shikari continua de nervos sólidos e os olhos não perderam a agudeza — disse ele, rindo, enquanto examinava a testa da efígie. Continuou: — Bem no meio da nuca. Ele era o melhor atirador da Índia, e creio que há poucos que se igualem a ele em Londres. Conhecia-o de nome? — Não, não o conhecia.
— Bom, bom, é assim a fama! Mas, se bem me lembro, você também desconhecia o professor Moriarty, uma das maiores cabeças do século. Faça o favor de me dar meu índice de biografias, aí nessa prateleira. Virou as páginas preguiçosamente, recostado na poltrona e tirando baforadas do charuto. — Minha coleção, no M, é extraordinária — disse ele. — Moriarty sozinho bastaria para tornar essa letra ilustre, e aqui temos Morgan, o envenenador; e Merridew, de triste memória; e Mathews, que me quebrou o canino esquerdo na sala de espera de Charing Cross; e, finalmente, nosso amigo de hoje à noite. Entregou-me o livro, e eu li: "Moran, Sebastian, coronel. Desempregado. Pertenceu ao l. Bengalore Pioneers. Nascido em Londres, em 1840. Filho de Sir Augustus Moran, C. B., antigo ministro britânico na Pérsia. Educado em Eton e Oxford. Serviu na Campanha de Jowaki, na Campanha do Afeganistão, em Charasiab (despachos), em Sherpur e em Cabul. Autor de Jogo pesado no Himalaia ocidental, 1881; Três meses na selva, 1884. Endereço: Conduit Street. Clubes: Anglo-Indiano, Tankerville e Bagatelle". Na margem estava escrito, com a letra clara de Holmes: "Em segundo lugar, entre os homens mais perigosos de Londres". — Extraordinário — observei, devolvendo-lhe o livro. — Carreira de um honrado militar. — É verdade — respondeu Holmes. — Até certo ponto, portou-se bem. Sempre teve nervos de aço, e, na Índia, ainda contam como se arrastou por um escoadouro, atrás de um tigre perigoso. Há árvores, Watson, que crescem normalmente até certo ponto e, depois, apresentam uma anomalia. O mesmo acontece com as criaturas. Tenho uma teoria pela qual o indivíduo representa, no seu desenvolvimento, toda a procissão de antepassados, e a inclinação para o bem ou para o mal significa qualquer forte influência que vem da sua linhagem. Dessa forma, essa pessoa se torna o resumo da história da família. — É de fato interessante. — Bom, não garanto nada. Seja qual for a causa, o coronel Moran começou a agir mal. Embora não se metesse em nenhum escândalo, tornou-se indesejável na Índia. Aposentou-se e veio para Londres, onde também adquiriu mau nome. Foi então procurado pelo professor Moriarty, tornando-se seu ajudante-deordens. Moriarty dava-lhe bastante dinheiro e servia-se dele apenas num ou noutro trabalho de responsabilidade, que não confiaria a um criminoso vulgar. Talvez você se lembre da morte da sra. Stewart, de Lauder, em 1887. Não? Pois bem, tenho certeza de que Moran estava metido nisso, mas nada ficou
provado. Ele agiu com tanta esperteza que, mesmo quando o bando foi preso, nada se provou contra ele. Lembra-se daquela ocasião em que fui visitá-lo, Watson, e em que fechei as venezianas, com medo de espingardas de ar comprimido? Com certeza achou que eu tinha excesso de imaginação. Pois eu sabia exatamente o que estava fazendo, já que tinha conhecimento da existência dessa arma extraordinária e também de que um dos maiores atiradores do mundo estaria atrás dela. Quando estivemos na Suíça, ele nos seguiu, com Moriarty, e não há dúvida de que foi Moran quem me fez passar aquele mau quarto de hora nas quedas de Reichenbach. "Deve calcular como li com atenção os jornais, durante a minha estada na França, na esperança de uma oportunidade de apanhá-lo. Enquanto ele estivesse livre, em Londres, minha vida não valeria grande coisa. Noite e dia a sua sombra estaria atrás de mim, e, cedo ou tarde, teria a sua oportunidade. Que poderia eu fazer? Não podia matá-lo sem provocação, pois nesse caso eu é que me veria no tribunal. Não adiantava apelar para a polícia. Ela só age quando há forte suspeita. Sendo assim, eu nada poderia fazer. Mas continuava a acompanhar as notícias de crimes, sabendo que cedo ou tarde o apanharia. Veio então a morte de Ronald Adair. Finalmente tinha a minha oportunidade! Sabendo o que sabia, poderia duvidar de que o culpado fosse o coronel Moran? Ele jogara com o rapaz; seguira-o, ao sair do clube; alvejara-o pela janela aberta. Não havia dúvida. As balas bastarão para levá-lo à forca. Vim para Londres imediatamente. Fui visto, ao entrar em casa, pela sentinela, que daria parte da minha presença ao coronel, disso eu tinha certeza. Ele não deixaria de ligar a minha súbita volta ao seu crime e ficaria grandemente alarmado. Fiquei certo de que ele procuraria me eliminar imediatamente, e que traria sua perigosa arma. Preparei-lhe um bom alvo, na janela, e, avisando a polícia da provável necessidade de interferência (a propósito, Watson, você notou a presença dos dois detetives com grande perspicácia), vim para o que considerei um bom posto de observação, nem de longe suspeitando de que também ele escolheria esse local. Meu caro Watson, precisa de mais explicações?" — Preciso — respondi. — Você não explicou o motivo que Moran tinha para assassinar Ronald Adair. — Ah, caro Watson, chegamos agora ao reino das conjecturas, onde a mente mais lógica pode falhar. Cada qual poderá formar a sua hipótese, de acordo com as provas, e a sua poderá ser tão correta como a minha. — Você tem uma opinião formada, então? — Creio que não é difícil explicar os fatos. Ficou provado, no inquérito, que Adair e Moran ganharam grande quantia no jogo. Agora, com certeza Moran trapaceou, como sei que várias vezes tem feito. Creio que, no dia do crime, Adair descobriu que o outro andava roubando no jogo. Provavelmente falou com ele em particular e ameaçou denunciá-lo, a não ser que pedisse demissão do clube e prometesse não jogar mais. Seria improvável que uma pessoa tão jovem como Adair provocasse imediatamente um escândalo expondo um homem muito conhecido e muito mais velho do que ele. Certamente agiu como
imaginei. A expulsão de um clube significaria a ruína para Moran, que vivia de jogo desonesto. Portanto, matou Adair, que na ocasião tentava calcular quanto deveria devolver, já que não queria lucrar com a desonestidade do parceiro. Ele fechou a porta, para que a mãe e a irmã não o surpreendessem e quisessem saber o que significavam aqueles nomes e algarismos. Acha viável a teoria? — Não duvido de que seja essa a verdade. — No julgamento será esclarecido. Entretanto, o coronel Moran não mais nos importunará, a famosa espingarda de Von Herder irá embelezar o Museu da Scotland Yard e Sherlock Holmes está de novo livre, para dedicar seu tempo ao exame dos interessantes problemazinhos que a vida complexa de Londres tão freqüentemente apresenta.
Sherlock Holmes em: O construtor de Norwood Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
— Sob o ponto de vista do perito criminal, Londres tornou-se singularmente sem interesse, desde a morte do professor Moriarty — observou Sherlock Holmes. — Duvido que encontre muitos cidadãos respeitáveis que concordem com você — repliquei. — Bom, bom, não devo ser egoísta — disse ele com um sorriso, levantando-se da mesa após o café da manha. — Indubitavelmente, a comunidade lucrou e ninguém perdeu, a não ser o pobre perito em assuntos criminais, que se vê sem ocupação. Com aquele homem em campo, o jornal da manhã oferecia inúmeras possibilidades. O mais leve indício, o menor rasto, bastavam geralmente para me dizer que o cérebro maligno lá estava... assim como o leve estremecer da teia nos faz lembrar a aranha que espreita no centro. Pequenos roubos, assaltos monstruosos, ultrajes propositados, tudo isso, para o homem que tinha a chave, podia ser reunido num todo. Para o estudioso do alto mundo do crime, nenhuma capital da Europa oferecia as vantagens de Londres, naquele tempo. Mas agora... — Holmes encolheu os ombros maliciosamente, criticando um estado de coisas que ele próprio ajudara a criar. Já havia algum tempo que Holmes voltara, e, a seu pedido, eu vendera o meu consultório médico e voltara a residir com ele na Baker Street. Um jovem médico chamado Verner fora o comprador, dando-me, sem regatear, o preço mais alto que eu ousara pedir — fato que só mais tarde foi explicado, quando eu soube que Verner era parente afastado de Holmes e que fora o meu amigo quem lhe emprestara o dinheiro. Aqueles meses de parceria não tinham sido tão monótonos como Holmes dizia, pois, ao rever as minhas notas, encontro nessa época o caso dos documentos do ex-presidente Murillo e também o caso dramático do navio holandês Friesland, onde ambos quase perdemos a vida. A natureza fria e orgulhosa de Holmes era, no entanto, avessa a qualquer coisa que se assemelhasse a publicidade, e ele me fez jurar que não diria uma palavra
sobre a sua pessoa, seus métodos e sucessos — proibição que, como já expliquei, somente agora foi levantada. Holmes estava reclinado na sua poltrona, após a irônica queixa, e abria o jornal de maneira despreocupada, quando nos sobressaltou um tremendo toque de campainha, seguido de sons ocos, como se alguém batesse com o punho na porta. Dali a pouco esta foi aberta e ouvimos um ruído de passos na escada. Logo depois irrompeu na sala um rapaz pálido, com expressão de desespero no rosto e cabelos em desalinho. Olhounos de um para o outro e, ante nosso ar interrogador, achou que devia desculpar-se de sua entrada pouco cerimoniosa. — Perdoe-me, sr. Holmes — disse ele. — o senhor não deve me censurar. Estou quase louco. Sr. Holmes, sou o infeliz John Hector McFarlane. Falou como se isso bastasse para explicar a sua visita e a sua atitude, mas pude ver pelo rosto do meu amigo que o nome significava tão pouco para ele como para mim. — Aceite um cigarro, Sr. McFarlane — disse Holmes, oferecendo-lhe a cigarreira. — Tenho certeza de que, com esses sintomas, meu amigo dr. Watson vai lhe receitar um sedativo. A temperatura tem estado muito quente, nos últimos dias. Agora, se estiver mais calmo, gostaria que se sentasse naquela cadeira e nos contasse lentamente quem é o senhor e o que deseja. Disse o seu nome como se eu devesse conhecê-lo, mas garanto-lhe que, além de notar que é solteiro, advogado, franco-maçom e asmático, nada sei a seu respeito. Habituado como estava aos métodos de meu amigo, não me foi difícil acompanhar seu raciocínio e observar, no visitante, o descuido no traje, o monte de documentos legais, o amuleto e a respiração ofegante que tinham provocado tais deduções. Nosso cliente, no entanto, pareceu atônito. — Sim, sou tudo isso, Sr. Holmes, e principalmente sou o homem mais infeliz de Londres. Pelo amor de Deus, não me abandone, Sr. Holmes! Se vierem me prender, antes de eu acabar a minha história, faça com que me dêem tempo, para que possa lhe contar toda a verdade. Eu irei feliz para a prisão, se souber que o senhor fica trabalhando para mim, aqui fora. — Para a prisão? — disse Holmes. — Isso é realmente encant... muito
interessante. De que espera ser acusado? — Do assassinato do Sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood. O rosto expressivo de meu amigo mostrou um interesse não destituído de satisfação. — Meu Deus! Justamente hoje, no café, eu dizia ao meu amigo Dr. Watson que os casos sensacionais tinham desaparecido dos jornais. Nosso visitante estendeu a mão trêmula e pegou o Daily Telegraph que ainda estava sobre os joelhos de Holmes. — Se já tivesse lido o jornal, senhor, saberia por que motivo vim procurá-lo. Parece-me que meu nome e minha desgraça andam na boca de todo mundo. — O rapaz abriu o jornal na página central e continuou: — Aqui está, e, se me dá licença, vou ler alto. Ouça isto aqui, sr. Holmes. Eis os cabeçalhos: "Caso misterioso em Lower Norwood. Desaparecimento de um conhecido construtor. Suspeita-se de assassinato e incêndio propositado". Tenho certeza de que a pista os conduzirá à minha pessoa, Sr. Holmes. Fui seguido desde a estação, e tenho certeza de que esperam apenas pelo mandado de prisão para me levar. Isso vai matar minha mãe, vai matar minha mãe! — O rapaz comprimia as mãos, desesperado, balançando-se na cadeira para a frente e para trás. Olhei com interesse para aquele homem, acusado de um crime de morte. Tinha cabelos claros e era bonito mas dava má impressão, com amedrontados olhos azuis, rosto barbeado e boca fraca e sensível. Parecia ter mais ou menos vinte e sete anos; suas roupas e maneiras eram as de um cavalheiro. Do bolso do sobretudo leve, tirou um maço de documentos que indicavam sua profissão. — Temos de aproveitar o tempo de que dispomos — disse Holmes. — Watson, quer ter a bondade de pegar o jornal e ler a notícia que nos interessa? Sob os sensacionais cabeçalhos que nosso cliente lera, vinha a seguinte narrativa: "A noite passada, ou hoje de madrugada, ocorreu em Lower Norwood um incidente que, ao que parece, indica um crime muito grave. O Sr. Jonas Oldacre é solteiro, tem cinqüenta e dois anos de idade e mora em Deep Dene House, do lado Sydenham da rua daquele nome. Tem a reputação de ser homem excêntrico, misterioso e reservado. Parece estar, há alguns anos, afastado da profissão que, ao que tudo indica, lhe trouxe grande fortuna. Mas ainda existe um depósito de madeira no quintal, e ontem, mais ou menos à meia-noite, foi dado o alarme de que ali começara um incêndio. Os bombeiros apareceram, mas a madeira seca ardia furiosamente e foi impossível deter o fogo, enquanto aquela determinada pilha não ardeu toda. Até aqui, parece um incidente sem importância, mas há indícios de que se trata de crime. Causou surpresa a ausência do dono da casa no local do incêndio, e verificou-se, em seguida, que desaparecera de casa. O exame do quarto indicou que ele não dormira ali. O cofre estava aberto. Havia grande número de documentos
espalhados pelo chão. Finalmente, havia sinais de luta e manchas de sangue; numa bengala de carvalho ali encontrada, também se viam manchas de sangue. Parece que o Sr. Oldacre recebera um visitante no quarto, à noite, e a bengala foi identificada como pertencendo a um jovem advogado de Londres, John Hector McFarlane, sócio de Graham & McFarlane, com escritórios nos Gresham Buildings, E. C., 426. A polícia acredita ter provas que fornecem um convincente motivo para o crime, e não se pode duvidar de que o desenvolvimento do caso seja algo de sensacional. ÚLTIMA HORA: Acabamos de saber que o sr. John Hector McFarlane foi detido sob a acusação de ter assassinado o sr. Jonas Oídacre. É pelo menos certo que já existe um mandado de prisão. Foram descobertos novos e sinistros indícios, na investigação do crime de Norwood. Além dos sinais de luta no quarto do infeliz construtor, sabe-se agora que as portas-janelas do seu quarto (que fica no andar térreo) foram encontradas abertas, e há, no batente, marcas que indicam que algum objeto pesado foi por ali arrastado. Finalmente, encontraram-se restos humanos queimados, no meio das cinzas do incêndio. A polícia julga que foi cometido um crime sensacional, que a vítima foi brutalmente atacada no seu próprio quarto, os documentos do cofre, remexidos e o corpo, arrastado até a pilha de madeira, à qual atearam fogo para encobrir o crime. O caso foi entregue ao experiente inspetor Lestrade, da Scotland Yard, que está seguindo a pista com a energia e a sagacidade habituais." Sherlock Holmes ouviu a estranha narrativa de olhos fechados e dedos entrelaçados. — O caso tem, indubitavelmente, pontos interessantes — observou ele com voz lânguida. — Posso perguntar-lhe em primeiro lugar, Sr, McFarlane, como é que se encontra ainda em liberdade, uma vez que há indícios que justificam a sua prisão? — Moro em Torrington Lodge, Blackheath, com meus pais, sr. Holmes. Mas a noite passada, tendo de tratar de negócios até tarde com o Sr. Oldacre, fiquei num hotel, em Norwood, e vim para o escritório diretamente de lá. Não sabia de nada até entrar no escritório, onde li a extraordinária notícia de que o senhor acaba de ter conhecimento. Percebi imediatamente como era horrível a minha situação e vim correndo pedir-lhe que se encarregue do caso. Tenho certeza de que teria sido preso no escritório, ou em minha casa. Um homem me seguiu desde a estação, não duvido... Deus do céu, que é isso? Ouviu-se um toque de campainha, seguido pelo ressoar de passos pesados na escada. Momentos depois nosso velho amigo Lestrade apareceu à porta. Por cima dos seus ombros, distingui o vulto de um ou dois policiais fardados. — Sr. John Hector McFarlane — disse Lestrade. Nosso infeliz cliente ergueu-se, lívido. — Considere-se preso, sob a acusação de ter assassinado o Sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood.
McFarlane voltou-se para nós com um gesto de desespero e caiu de novo na poltrona, como que aniquilado. — Um momento, Lestrade — disse Holmes. — Meia hora a mais ou a menos não lhe fará diferença. Este cavalheiro ia contar-me a sua versão do extraordinário caso, e talvez isso nos ajude a decifrá-lo. — Creio que não haverá dificuldade em decifrá-lo — replicou Lestrade, com ar sombrio. — Mesmo assim, se me dá licença, gostaria de ouvir o que ele tem a dizer. — Está bem. É difícil para mim recusar-lhe qualquer coisa, Sr. Holmes, pois o senhor ajudou a polícia uma ou duas vezes, no passado, e devemos-lhe alguns favores, na Scotland Yard — disse Lestrade. — No entanto, tenho de ficar ao lado do preso, e sou obrigado a preveni-lo de que qualquer coisa que ele disser poderá ser usada contra ele no processo. — Não me importa — disse o rapaz. — Peço apenas que me ouçam e acreditem que estou dizendo a pura verdade. Lestrade olhou para o relógio. — Dou-lhe meia hora — disse ele. — Em primeiro lugar, tenho de explicar que não conhecia o Sr. Oldacre — declarou o rapaz. — Conhecia-o de nome, pois meus pais tinham tido relações com ele, mas depois afastaram-se. Fiquei, portanto, muito admirado quando ontem, às três horas da tarde, ele apareceu no meu escritório, na City. Mais admirado ainda fiquei quando me contou o fim de sua visita. Trazia na mão várias folhas de papel cobertas de rabiscos. Colocou-as sobre a mesa, dizendo: "— Aqui está meu testamento. Quero que o ponha em termos legais, Sr. McFarlane. Esperarei aqui sentado, enquanto o senhor estiver trabalhando. "Comecei a copiá-lo", continuou McFarlane. "Os senhores podem imaginar meu espanto quando vi que, com pequenas reservas, ele me legava todos os seus bens. Era um homem estranho, baixo, de ar astuto, com pestanas quase brancas. Quando ergui os olhos, vi que me fitava com uma expressão divertida nos olhos cinzentos. Eu mal podia acreditar no que lia no rascunho do testamento, mas ele me explicou que era solteiro, não tinha parentes vivos, conhecera meus pais na mocidade e ouvira dizer que eu era um rapaz honesto e que, acima de tudo, tinha certeza de que o dinheiro não poderia estar em melhores mãos. Balbuciei os meus agradecimentos. O testamento foi devidamente terminado e assinado, tendo o meu auxiliar assinado também, como testemunha. Aqui está ele, neste papel azul, e aqui está o rascunho. O Sr. Jonas Oldacre me informou depois que havia muitos documentos — contratos de aluguel, certificados de propriedade, hipotecas e outras coisas — que eu precisaria ver. Acrescentou que não ficaria tranqüilo enquanto não
estivesse tudo resolvido, e pediu-me que fosse até sua casa, em Norwood, naquela noite, e que levasse o testamento para que déssemos combinar tudo. "— Lembre-se, rapaz, nem uma palavra a seus pais até estar tudo terminado. Quero que seja uma surpresa para eles. — Insistiu nesse ponto e me fez prometer que nada contaria. "O senhor deve calcular, Sr. Holmes, que eu não estava em condições de lhe recusar fosse o que fosse. Era o meu benfeitor, e meu desejo era satisfazer-lhe as vontades. Mandei, portanto, um telegrama para casa, dizendo que tinha de tratar de um negócio importante e que era impossível saber até que horas ficaria ocupado. O Sr. Oldacre disse que gostaria que eu ceasse com ele às nove, pois talvez não conseguisse chegar a casa antes disso. Tive certa dificuldade em descobrir a casa, e eram quase nove e meia quando lá cheguei. Encontrei-o..." — Um momento! — exclamou Holmes. — Quem abriu a porta? — Uma mulher de meia-idade, suponho que sua governanta. — E foi ela, suponho, que levou o seu nome ao dono da casa... — Exatamente — respondeu McFarlane. — Pode continuar. McFarlane enxugou a testa e continuou a narrativa: — A mulher me introduziu numa sala onde estava preparada uma ceia ligeira. Mais tarde, Oldacre me levou para o quarto de dormir, onde havia um pesado cofre. Abriu-o e dali tirou um maço de documentos que examinamos juntos. Acabamos entre as onze e a meia-noite. Ele disse que não devíamos incomodar a governanta. Fez-me passar pela porta-janela, que ficara aberta o tempo todo. — A cortina estava baixada? — Não tenho certeza, mas creio que estava até o meio. Sim, lembro-me agora de que ele a ergueu para abrir a porta. Não consegui encontrar minha bengala, mas ele disse: "Não tem importância, rapaz; vamos nos ver bastante, agora, e guardarei sua bengala até você vir buscá-la". Deixei-o ali, com o cofre aberto e os papéis em pacotes sobre a mesa. Era tão tarde que não pude voltar para Blackheath, de modo que passei a noite no Anerley Arms e não soube de mais nada, até ler a horrível notícia no jornal, hoje de manhã. — Deseja saber mais alguma coisa, sr. Holmes? — perguntou Lestrade, que erguera as sobrancelhas uma ou duas vezes durante a extraordinária narrativa. — Não, até ter ido a Blackheath.
— Quer dizer a Norwood — corrigiu Lestrade. — Oh, sim, era com certeza o que eu queria dizer — respondeu Holmes, com um sorriso enigmático. Lestrade aprendera por experiência própria que aquele cérebro brilhante podia ver claramente em lugares onde ele nada enxergava. Notei que olhava com curiosidade para o meu amigo. — Creio que gostaria de trocar uma palavrinha com o senhor, Sr. Holmes — disse ele. — Agora, Sr. McFarlane, dois dos meus guardas estão à porta e uma carruagem de quatro rodas o espera na rua. O infeliz rapaz ergueu-se e, com um último olhar suplicante para o nosso lado, saiu da sala. Os policiais levaram-no para o carro, mas Lestrade ficou. Holmes apanhara as páginas que formavam o rascunho do testamento e examinava-as com atenção. — Há alguns pontos interessantes neste documento, não é verdade, Lestrade? O detetive examinou os papéis, com ar perplexo. — Só consigo ler as primeiras linhas, as que estão no meio da segunda página e uma ou duas no fim. Essas são claras, mas as linhas intermediárias estão em letra ruim, havendo lugares onde não se pode ler coisa alguma. — Que diz a isto? — perguntou Holmes. — Que diz o senhor a isto? — Que foi escrito num trem — observou Holmes. — Os trechos legíveis representam as estações; os mal-escritos, o trem em movimento; e os ilegíveis, os entroncamentos. Um perito veria logo que isso foi escrito num trem de subúrbio, já que somente nas imediações de uma grande cidade pode haver tal número de agulhas. Supondo-se que o homem tenha levado toda a viagem para fazer o rascunho do testamento, o trem devia ser expresso, parando uma vez apenas entre Norwood e a Ponte de Londres. Lestrade começou a rir. — O senhor é forte demais para mim, quando começa com as suas teorias, Sr. Holmes — disse ele. — Que tem isso a ver com o caso?
— Pois bem, corrobora a história do rapaz, deixando-nos supor que o testamento foi feito por Jonas Oldacre na sua viagem, ontem. Curioso que um homem redija tão importante documento de maneira tão casual, não? Dá a impressão de que ele achava que não iria ter grande valor prático. Assim faria quem redigisse um testamento que não pretendesse levar a efeito. — Pois bem, ele redigiu simultaneamente sua sentença de morte — observou Lestrade. — Oh, acha que sim? — O senhor não acha? — Bem, é possível, mas o caso ainda não está claro para mim. — Não está claro? Ora, se isso não estiver claro, o que poderia estar? Temos um rapaz que fica sabendo de repente que, se um determinado velho morrer, ficará rico. Que é que faz, então? Não diz nada a ninguém, mas arranja um pretexto para ir ver o cliente, à noite; espera até que a outra única pessoa que se encontra em casa vá para a cama e, depois, na solidão do quarto do homem, mata-o, queima-lhe o corpo na pilha de madeira do quintal e vai para um hotel. As manchas de sangue no quarto e na bengala são muito leves. E provável que ele não tenha visto o sangue e que achasse que, queimado o corpo, não ficariam vestígios do método por que fora morto o homem... vestígios que, por qualquer razão, o incriminariam. Não está claro? — Não me parece muito claro, não, meu caro Lestrade — observou Holmes. — Você pode acrescentar a imaginação às outras grandes qualidades. Mas, se se colocasse por um momento no lugar do rapaz, teria escolhido justamente a noite do testamento para cometer o crime? Não lhe pareceria perigosa a relação entre os dois incidentes? Ainda mais, teria escolhido uma ocasião em que era conhecida sua presença na casa, visto a criada tê-lo mandado entrar? E, finalmente, depois do enorme trabalho para esconder o corpo, deixaria a bengala como prova de que cometera o crime? Confesso, meu caro Lestrade, que tudo isso é improvável. — Quando à bengala, Sr. Holmes, o senhor sabe, tanto como eu, que muitas vezes um criminoso fica excitado e faz coisas que não faria uma pessoa a sangue-frio. Com certeza teve medo de voltar ao quarto. Apresente outra teoria que se adapte aos fatos. — Poderia perfeitamente apresentar uma dúzia — disse Holmes, — Aqui está uma, por exemplo, bem possível e mesmo provável. Pode ficar com ela de presente. O velho mostra documentos de evidente interesse. Um vagabundo que passa no momento vê tudo pela janela, cuja cortina está erguida até o meio. Sai o advogado; entra o vagabundo! Agarra a bengala que ali encontra, mata Oldacre e parte, após ter queimado o corpo. — Por que iria um vagabundo queimar o corpo?
— E por que o faria McFarlane? — Para esconder os vestígios. — Provavelmente o vagabundo quereria que não se soubesse que houvera crime. — E por que não levaria nada? — Porque eram documentos que ele não poderia negociar. Lestrade sacudiu a cabeça, embora me parecesse que não estava tão seguro de si como antes. — Muito bem, Sr. Sherlock Holmes, o senhor pode procurar o seu vagabundo, e, enquanto o procura, nós ficaremos com o nosso homem. O futuro dirá quem tem razão. Note apenas este ponto, Sr. Holmes: até agora, não nos consta que tenha sido roubado documento algum, e o prisioneiro é o único homem do mundo que não tinha motivo para roubá-los, pois, sendo herdeiro, logo entraria na posse de tudo. Holmes pareceu impressionado com a observação. — Não nego que há muita coisa a favor da sua teoria — declarou ele. — Quero apenas dizer que há outras, também admissíveis. Como muito bem observou, o futuro o dirá. Passe bem! Creio que, durante o dia, irei até Norwood, para ver como vai o seu caso. Depois que o detetive partiu, meu amigo levantou-se e preparou-se para o trabalho do dia, com o ar vivo do homem que tem à sua frente uma tarefa a seu gosto. Enquanto escovava o casaco, disse: — O primeiro passo que vou dar, Watson, será na direção de Blackheath, como já disse. — Por que não Norwood? — Porque temos neste caso um incidente singular, ao lado de outro incidente singular. A polícia está cometendo o erro de concentrar sua atenção no segundo, porque parece ser esse o incidente criminoso. Mas, na minha opinião, o meio lógico de nos aproximarmos do caso é procurar
esclarecer o primeiro incidente — o estranho testamento, feito tão repentinamente, e a escolha inesperada do herdeiro. Pode ser que isso me auxilie a perceber o que se seguiu. Não, caro amigo, não creio que você possa me ajudar. Não há indicação de perigo, pois do contrário não iria sem você. Creio que, quando de novo nos encontrarmos, à noite, poderei lhe dizer que consegui fazer alguma coisa por aquele infeliz rapaz que se colocou sob a minha proteção. Era tarde quando meu amigo voltou; pelo seu rosto ansioso e abatido vi que suas esperanças não se tinham realizado. Durante uma hora tocou violino, procurando acalmar os nervos. Finalmente, pôs de lado o instrumento e contou-me pormenorizadamente os seus contratempos. — Vai tudo mal, Watson, o pior possível. Fiz cara alegre diante de Lestrade, mas creio que, pela primeira vez, ele está na pista certa e nós na errada. O instinto me puxa para um lado e os fatos, para outro, e receio que o júri britânico ainda não tenha atingido aquele grau superior de inteligência que faria com que dessem preferência às minhas teorias contra os fatos de Lestrade. — Foi a Blackheath? — Sim, Watson, fui e não tardei em descobrir que o falecido Oldacre era um requintado patife. O pai de McFarlane estava fora, à procura do filho. A mãe, mulherzinha baixa, inquieta, de olhos azuis, estava trêmula de medo e indignação. Nem de longe admitiu a possibilidade de ser o filho o culpado, mas também não mostrou surpresa, nem pena, em relação à morte de Oldacre. Pelo contrário, falou dele com tal amargura, que, inconscientemente, reforça a opinião da polícia — pois, se o filho a ouviu exprimir-se daquela maneira, ficou predisposto ao ódio e à violência. "Ele mais parecia um gorila maldoso e astuto do que um ser humano", disse ela. "E sempre foi assim, desde jovem." "— A senhora o conheceu nesse tempo? — perguntei. "— Sim, conheci-o muito bem. Para ser exata, foi meu pretendente. Graças a Deus tive o bom senso de recusá-lo e de casar com um homem melhor, embora mais pobre. Estive noiva dele, Sr. Holmes, mas, quando soube que soltara um gato num aviário, fiquei tão horrorizada com a sua crueldade que não quis mais saber dele. — A mãe de McFarlane remexeu numa gaveta e tirou dali uma fotografia que fora vergonhosamente deformada e mutilada a facadas. — É o meu retraio — disse. — Oldacre devolveu-o, neste estado e com a sua maldição, no dia do meu casamento.
"— Pois bem, pelo menos ele lhe perdoou, uma vez que deixou toda a fortuna ao seu filho — observei. "— Nem o meu filho nem eu queremos coisa alguma de Jonas Oldacre — replicou ela, com muito brio. — Há um Deus no céu, sr. Holmes, e esse mesmo Deus, que puniu aquele homem mau, provará que as mãos de meu filho não estão manchadas de sangue." Holmes fez uma causa e continuou: — Pois bem, tentei mais uma ou duas coisas. Mas nada descobri que pudesse favorecer nossa hipótese. Desisti, finalmente, e fui para Norwood. Deep Dene House é uma moradia moderna, de tijolos, no meio de um bom jardim, com um grande relvado à frente. À direita, ao fundo, a certa distância da rua, fica o pátio onde se guardava madeira e onde se deu o incêndio. Aqui está uma planta, feita rapidamente no meu caderno de apontamentos. A janela à esquerda é a do quarto de Oldacre. Pode ser vista da rua, como você vê. Foi a consolação que tive hoje. "Lestrade não estava lá, mas um dos policiais fez as honras da casa. Tinham acabado de fazer uma grande descoberta. Passaram a manhã remexendo nas cinzas e, ao lado 'dos restos orgânicos, descobriram vários discos de metal. Examinei-os com cuidado, e não há dúvida de que eram botões de calças. Cheguei mesmo a ver que num deles estava escrito 'Hyams', que era o alfaiate de Oldacre. Examinei depois o gramado, cuidadosamente, à procura de marcas e vestígios, mas o calor tornou o chão tão duro como ferro. Nada se podia ver, a não ser que alguém ou alguma coisa fora arrastada através de uma sebe baixa, que fica ao lado da pilha de madeira. Tudo isso, naturalmente, se adapta à teoria da polícia. Arrastei-me pelo gramado, com o sol de agosto nas costas. Mas me levantei uma hora depois, sem saber mais do que já sabia. "Pois bem, depois do fiasco, fui para o quarto e examinei-o também. As manchas de sangue eram muito leves, meras nódoas descoloridas, mas indubitavelmente recentes. A bengala fora levada, mas sei que também ali as manchas eram leves. Não há dúvida de que pertence ao rapaz. Ele confessa que é sua. Vi marcas de sapatos de dois homens no tapete, e nenhum indício de uma terceira pessoa, o que também é um ponto favorável à teoria da polícia. Para ela, as provas iam se amontoando, ao passo que eu não progredia. "Tive somente um raio de esperança, mas, mesmo assim, não é grande coisa. Examinei o conteúdo do cofre, embora quase tudo tivesse sido retirado e deixado sobre a mesa. Os documentos estavam num envelope lacrado e um ou dois tinham sido abertos pela polícia. Não eram, ao que me pareceu, de grande valor, nem a caderneta do banco indica que o Sr. Oldacre estivesse em grande prosperidade. Mas pareceu-me que não estavam lá todos os documentos. Havia referências a certas escrituras — provavelmente as mais valiosas — que não consegui encontrar. Se pudéssemos provar isso,
naturalmente faríamos com que o argumento de Lestrade se voltasse contra si próprio, pois quem iria roubar um documento sabendo que depois o receberia como herança? "Finalmente, tendo tentado tudo e não conseguindo pista alguma, tentei a sorte com a governanta. Chama-se Sra. Lexington, é baixa, morena, silenciosa, de olhos estranhos e furtivos. Poderia nos contar alguma coisa, se quisesse, disso tenho certeza. Mas é fechada como uma ostra. Sim, ela abrira a porta a um tal Sr. McFarlane, às nove e meia. Desejaria que a sua mão tivesse secado antes disso. Fora para a cama às dez e meia. Seu quarto fica do outro lado da casa e ela nada podia ouvir do que se passava do lado de cá. O Sr. McFarlane deixara o chapéu no vestíbulo e parece que também a bengala. Ela acordara com o alarme do incêndio. Seu pobre, querido patrão certamente fora assassinado. Se tinha inimigos? Ora, todos os homens têm inimigos, mas o Sr. Oldacre era muito reservado e só se encontrava com outras pessoas a negócios. Ela vira os botões e tinha a certeza de que pertenciam à roupa que ele usara na véspera. A pilha de madeira estava muito seca, pois havia um mês que não chovia. Ardera como uma mecha, e, quando a governanta chegara ao local, nada se via além das chamas. Ela e os bombeiros tinham sentido o cheiro de carne queimada. Nada sabia quanto aos documentos ou negócios particulares do Sr. Oldacre. "Aqui tem, caro Watson, o relatório de um fracasso. E no entanto... no entanto... " Holmes comprimiu as mãos, mostrando-se convencido. "Sei que está tudo errado. Sinto-o no meu íntimo. Alguma coisa não transpirou, e a governanta sabe o que é. Havia uma espécie de sombrio desafio nos seus olhos que indicava um conhecimento culposo. Em todo caso, não adianta falar nisso, Watson; mas, a não ser que tenhamos um golpe de sorte, creio que o caso do desaparecimento de Norwood não irá figurar na crônica dos nossos êxitos, que o público paciente cedo ou tarde terá de ler." — Sem dúvida a aparência do rapaz impressionará bem o júri, não? — Argumento perigoso, caro Watson. Lembra-se daquele terrível assassino, Bert Stevens, que queria que o defendêssemos em 87? Terá existido criatura mais suave? — É verdade. — A não ser que consigamos estabelecer uma teoria diferente da apresentada pela polícia, o rapaz está perdido. Não se pôde encontrar uma falha no caso, de início, e as investigações subsequentes só serviram para reforçá-lo. Por falar nisso, há algo curioso nestes documentos que talvez sirva como ponto de partida de uma investigação. Examinando o livro de cheques, vi que a baixa na conta de Oldacre era devida, em grande parte, a avultados cheques emitidos para um tal Sr. Cornelius, no último ano. Confesso que estou curioso por saber quem é esse tal Sr. Cornelius, com quem um construtor aposentado pudesse ter tantos negócios. Será que está metido no caso? Cornelius pode ser um corretor, mas não encontramos nenhum documento que corresponda a esses grandes pagamentos. Não havendo outra pista, tenho de ir ao banco, indagar a
respeito do homem que levantou esse dinheiro. Mas receio que nosso caso vá terminar ingloriamente com o enforcamento do nosso amigo, por diligência de Lestrade, o que será um triunfo para a Scotland Yard. Não sei quantas horas Sherlock Holmes dormiu naquela noite, mas, quando desci para o café da manhã, encontrei-o pálido e abatido, e seus olhos pareciam ainda mais brilhantes por causa dos círculos negros em volta. O tapete perto de sua poltrona estava cheio de pontas de cigarro. Vi também as edições dos jornais da manhã. Notei um telegrama aberto, sobre a mesa. Vinha de Norwood e dizia: "Novo e importante vestígio descoberto. McFarlane indubitavelmente culpado. Aconselho-o a abandonar o caso. Lestrade" — Parece sério — disse eu. — É o grito de triunfo de Lestrade — observou Holmes, com um sorriso amargo. — Mas seria prematuro abandonar o caso. Afinal de contas, um vestígio novo é faca de dois gumes e pode apontar numa direção muito diferente da que imagina Lestrade. Tome o seu café, Watson, e vamos juntos ver o que se pode fazer. Sinto que preciso da sua companhia e do seu apoio moral. Meu amigo não toma café, pois uma das suas peculiaridades é não comer nada quando está excitado, e já o vi descuidar tanto de suas forças, que chegou a desmaiar de inanição. "No momento presente, não posso desperdiçar energias com a digestão", tem-me dito, ante as minhas admoestações médicas. Não fiquei portanto admirado, quando vi que deixava a refeição intacta. Dirigimo-nos para Norwood. Um grupo de curiosos mórbidos ainda estava em volta da Deep Dene House, que não passava de um chalé suburbano, como eu previra. Lestrade recebeu-nos no jardim, com o rosto corado de satisfação, todo ele em atitude triunfante. — Então, Sr. Holmes, já provou que estamos enganados? Já encontrou o seu vagabundo? — perguntou. — Ainda não tirei nenhuma conclusão — respondeu meu amigo. — Mas tiramos nós a nossa, ontem, e agora ficou provado que era certa. Desta vez tem de concordar que lhe passamos à frente, Sr. Holmes. — Você está sem dúvida com um ar de alguém a quem aconteceu algo de extraordinário — replicou Holmes. Lestrade riu alto.
— Tanto como qualquer outro, o senhor não gosta de ser derrotado — disse ele. — Ninguém pode esperar conseguir sempre o que quer... não é verdade, Dr. Watson? Entrem por aqui, cavalheiros, que espero poder convencê-los de uma vez por todas de que foi John McFarlane quem cometeu o crime. Levou-nos pelo corredor até um vestíbulo escuro. — McFarlane deve ter vindo aqui buscar o chapéu, depois de cometido o crime — disse ele. — Agora, olhem aqui. — Com um gesto dramático, acendeu um fósforo, e vimos uma mancha de sangue na parede branca. Quando ele aproximou a luz, vi que era mais do que uma mancha. Era a impressão bem nítida de um polegar. — Olhe com a sua lente, Sr. Holmes. — É o que estou fazendo. — Sabe que não existem dois polegares iguais? — Ouvi falar nisso. — Pois bem, quer fazer o favor de comparar esta mancha com a impressão em cera do polegar direito de McFarlane, feita por minha ordem, hoje de manhã? Colocou a impressão cm cera ao lado da mancha da parede, e não foi preciso lente para vermos que eram idênticas. Tive certeza de que nosso pobre cliente estava perdido. — Isso é o ponto final — observou Lestrade. — É, sim — concordei. — É o ponto final — disse Holmes. Estranhei o tom de voz e virei-me para olhar meu amigo. Sua expressão mudara por completo. Seus olhos brilhavam, e ele mal podia conter o riso. — Meu Deus, meu Deus! — exclamou finalmente. — Ora, quem iria pensar nisso? E como são enganadoras as aparências! Um rapaz tão distinto! É uma lição para não acreditarmos no nosso próprio raciocínio, não é verdade, Lestrade? — É, sim; algumas pessoas costumam ter excessiva confiança em si, sr.
Holmes — disse Lestrade. Sua insolência era irritante, mas nada podíamos dizer. — Que providência o rapaz ter comprimido o polegar na parede, ao tirar o chapéu do cabide! Gesto muito natural, pensando bem — disse Holmes. Aparentemente meu amigo estava calmo, mas notava-se que, no íntimo, estava excitado. — E agora, Lestrade, quem fez essa extraordinária descoberta? — Foi a governanta, Sra. Lexington, que chamou a atenção do guarda. — Onde estava o guarda que passou a noite aqui? — Ficou no quarto onde foi cometido o crime, para que ninguém mexesse em nada. — Mas por que a polícia não viu isso ontem? — Pois bem, não havia razão para examinarmos especialmente este vestíbulo. Além disso, não é lugar muito em evidência, como o senhor pode ver. — Não, claro que não. Creio que não há dúvidas de que a impressão já estava aí ontem, não? Lestrade olhou para Holmes como se o julgasse louco. Confesso que também fiquei admirado, tanto com sua expressão risonha como com a absurda observação. — Não sei como pode achar que McFarlane tenha saído da prisão, no meio da noite, para vir aumentar as provas de sua culpabilidade — observou Lestrade. — Desafio qualquer perito do mundo a dizer que esta impressão digital não é dele. — Não há dúvida de que é a impressão do polegar de McFarlane. — Então, é mais do que o suficiente. Sou um homem prático, Sr. Holmes, e, quando tenho provas, tiro minhas conclusões. Se quiser falar comigo, poderá me encontrar na sala, escrevendo meu relatório. Holmes recuperara a calma, embora eu ainda notasse um brilho divertido no seu olhar. — Meu Deus, é uma novidade desagradável, não é, Watson? — disse ele. — Apesar disso, há aqui pontos singulares que me fazem ter esperanças para o nosso cliente. — Fico muito satisfeito por ouvir isso — repliquei com muita sinceridade. —
Tive medo de que ele estivesse perdido. — Eu não iria tão longe, caro amigo. A verdade é que há uma falha muito grande nesse indício a que Lestrade dá tanta importância. — Não diga, Holmes?! Qual é? — Apenas isto: sei que a impressão digital não estava ali, quando examinei a parede ontem. Agora, Watson, vamos passear um pouco lá fora. Com as idéias muito confusas, mas muito mais esperançado, acompanhei meu amigo num passeio pelo jardim. Holmes examinou com cuidado todos os lados do prédio. Depois tornamos a entrar, e ele examinou a casa, desde o résdo-chão até o sótão. Muitos dos quartos não estavam mobiliados, mas, apesar disso, Holmes examinou-os cuidadosamente. Finalmente, no corredor de cima, para onde davam três quartos desocupados, teve novo acesso de riso. — Há aspectos extraordinários neste caso, caro Watson — disse ele. — Creio que chegou a hora de fazermos confidências a Lestrade. Ele já riu à nossa custa, e agora chegou nossa vez de rir à custa dele, se a solução do problema for a que imagino. Sim, creio que sei como agir. O inspetor da Scotland Yard ainda escrevia, na saleta, quando Holmes foi procurá-lo. — Parece-me que está escrevendo o relatório — disse Holmes. — Estou, sim — respondeu Lestrade. — Não acha um tanto prematuro? Não posso deixar de crer que as provas não são suficientes. Lestrade conhecia demais meu amigo para não dar atenção às suas palavras. Largou a pena e fitou Holmes com curiosidade. — Que quer dizer, Sr. Holmes? — Apenas que há uma testemunha importante que o senhor ainda não viu. — Pode apresentá-la? — Creio que posso. — Então, apresente-a. — Farei o possível. Quantos guardas há aqui? — Há três, bem à mão. — Ótimo — respondeu Holmes. — Posso perguntar se são homens grandes,
sadios, com vozes fortes? — Não tenho a menor dúvida, embora não veja em que as vozes possam influir. — Talvez eu possa ajudá-lo a ver isso e mais duas ou três outras coisas — disse Holmes. — Faça o favor de chamar os seus homens, que eu vou tentar. Cinco minutos mais tarde, havia três policiais na sala. — Vocês encontrarão, no telheiro, uma grande quantidade de palha — disse Holmes. — Peco-lhes que me tragam duas braçadas. Creio que isso me ajudará a forçar o comparecimento da testemunha de que preciso. Muito obrigado. Creio que você tem fósforos no bolso, Watson. Agora, Sr. Lestrade, peco-lhe que me acompanhe, com os outros, até o andar de cima. Como já disse, havia ali um corredor largo para onde davam três quartos, que estavam desocupados. Holmes levou-nos até o final. Os policiais estavam sorridentes, mas no rosto de Lestrade havia espanto, expectativa e desdém ao mesmo tempo. Holmes parecia um prestidigitador prestes a exibir um truque. — Quer fazer o favor de mandar um dos guardas buscar dois baldes de água? Ponham a palha aqui no centro, longe das duas paredes. Agora, creio que estamos prontos. Lestrade estava vermelho de cólera. — Não sei se está brincando conosco, Sr. Holmes — disse ele. — Se é que sabe alguma coisa, pode nos contar o que é, sem toda esta palhaçada. — Asseguro-lhe, caro Lestrade, que tenho ótimas razões para o que estou fazendo. Lembre-se de que troçou um pouco de mim, há algumas horas, quando o vento soprava do seu lado, de modo que não pode me negar agora um pouco de pompa e cerimonial. Quer abrir a janela, Watson, e depois atear fogo à palha? Obedeci. O vento que entrou pela janela aberta fez subir uma nuvem de fumaça, enquanto a palha se inflamava, crepitando. — Vamos agora ver se encontramos a testemunha de que precisa, Lestrade — disse Holmes. — Peço que se juntem todos para gritar: "Fogo!" Agora: Um, dois, três... — Fogo! — berramos em uníssono. — Obrigado. Mais uma vez. — Fogo! — Mais uma vez, cavalheiros, todos juntos.
— Fogo! O grito deve ter ecoado por todo o bairro. Nisso aconteceu algo de extraordinário. Abriu-se uma porta naquilo que até então parecera uma parede sólida e dali surgiu um homenzinho murcho, como um coelho que sai da toca. — Ótimo! — disse Holmes, calmamente. — Watson, um balde de água em cima da palha. Basta! Lestrade, permita-me que lhe apresente a sua principal testemunha, o sr. Jonas Oldacre. O detetive olhou para o recémchegado com expressão de espanto. O velho piscava os olhos, no corredor muito claro, olhando-nos e olhando o fogo que morria. Era um rosto odioso, astuto, mau; olhos furtivos, de um cinzento claro, com pestanas brancas. — Que significa tudo isso, então? — perguntou Lestrade. — Que esteve fazendo aí dentro, durante todo esse tempo? Oldacre teve um riso constrangido, recuando ante o rosto colérico de Lestrade. — Não fiz mal nenhum. — Não fez mal? Fez o possível para mandar para a forca um inocente. Se não fosse o Sr. Sherlock Holmes, não sei se não teria sido bem-sucedido no seu infernal intento. O miserável começou a choramingar. — Garanto, senhor, que não passou de brincadeira. — Ah, então foi de brincadeira, hem? Pode ficar certo de que não a achará nada engraçada. Levem-no para baixo e esperem-me na saleta. Depois que os guardas se retiraram com o homem, Lestrade virou-se para Holmes.
— Não quis falar diante dos guardas, mas não me importo de dizer, na presença do Sr. Watson, que foi o feito. mais brilhante da sua carreira, embora até agora eu não tenha percebido como foi que o senhor o conseguiu. Salvou a vida de um inocente e evitou um escândalo tremendo, que teria arruinado minha reputação na polícia. Holmes sorriu e bateu no ombro de Lestrade. — Em vez de ficar arruinada, caro senhor, sua reputação poderá ser exaltada. Faça apenas algumas modificações naquele relatório, e todos verão como é difícil enganar o inspetor Lestrade. — E não quer que seu nome apareça? — De forma nenhuma. Meu trabalho é a minha recompensa. Talvez eu também receba parte da glória, mais tarde, quando permitir ao meu diligente biógrafo que se coloque diante das folhas de papel almaço, hein, Watson? Bom, vamos agora ver onde aquele rato esteve escondido. Uma divisão de madeira estucada fora colocada no corredor, a dois metros da extremidade, com uma porta habilmente disfarçada. O compartimento era iluminado por fendas sob o beiral. Havia ali algumas peças de mobília, água e comida, assim como livros e papéis. — É esta a vantagem do construtor — disse Holmes quando saímos de lá. — Ele pode fazer seu esconderijo sem ajuda de cúmplice — a" não ser, é claro, daquela preciosa governanta, que você também deve prender, Lestrade. — Seguirei seu conselho. Mas como soube desse esconderijo, Sr. Holmes? — Calculei que o homem estava escondido aqui nesta casa. Quando andei pelo corredor e vi que era dois metros mais curto que o de baixo, percebi onde ele devia estar. Achei que não teria coragem de ficar escondido ante um alarme de incêndio. Poderíamos, é claro, ter entrado no compartimento para prendê-lo, mas achei que seria divertido fazer com que ele aparecesse. Além disso, eu lhe devia qualquer coisa, Lestrade, pela sua zombaria de hoje de manhã. — Pois bem, não há dúvida de que estamos quites. Mas como soube que ele estava aqui nesta casa? — A impressão do polegar, Lestrade. Você disse que era o ponto final, e era
mesmo, mas o sentido era outro. Eu sabia que a parede não tinha aquela mancha na véspera. Dou muita importância a pormenores, como você deve ter observado, e examinei a parede, tendo certeza de que não havia ali mancha alguma. Sabia, portanto, que a marca fora feita durante a noite. — Mas como? — Muito simples. Quando aqueles pacotes foram lacrados, Oldacre fez com que McFarlane lacrasse um deles, pondo o polegar na massa mole. Deve ter sido feito tão depressa, e com tal naturalidade, que o rapaz não pensou mais nisso. Com certeza foi de fato o que se deu, e nem o próprio Oldacre sabia que isso ia lhe ser útil. Mais tarde, refletindo sobre o caso naquele seu cubículo, lembrou-se de que seria uma prova terrível contra McFarlane. Nada mais fácil do que tirar o lacre do pacote, manchá-lo com o sangue conseguido com uma picada de alfinete e imprimir a marca na parede, durante a noite. Se você examinar os documentos que ele levou para o seu retiro, tenho certeza de que encontrará um com a impressão do polegar no lacre. — Formidável! — exclamou Lestrade. — Formidável! Tudo claro como água, explicado por si. Mas qual a vantagem dessa dissimulação, Sr. Holmes? Achei divertido ver como a atitude do detetive mudara de repente, parecendo agora um colegial fazendo perguntas ao professor. — Bom, não creio que seja difícil explicar. O homem que nos espera lá embaixo é muito mau e vingativo. Sabe que foi pretendente da mãe de McFarlane e que ela o desprezou? Não sabe?... Mas eu lhe disse que fosse primeiro a Blackheath, Lestrade, e depois a Norwood. Pois bem, esse insulto, como Oldacre o considerava, deve tê-lo roído por dentro, e toda a vida suspirou por vingança, sem nunca ver chegar sua oportunidade. Nos últimos dois anos, os negócios não lhe correram bem — especulações infelizes, suponho. Resolveu lesar os credores e começou a passar cheques avultados a um tal Sr. Cornelius, que não é outro senão o próprio Sr. Oldacre usando nome falso. Ainda não procurei os cheques, mas garanto que foram depositados em algum banco de uma cidadezinha do interior, onde Oldacre deve ter vivido durante algum tempo, com outro nome. Ele pretendia mudar de nome definitivamente, retirar o dinheiro e fugir, começando a vida noutro lugar. — É bem provável. — Achou que, dando a impressão de que fora assassinado, ninguém o perseguiria e assim também conseguiria se vingar da antiga namorada, fazendo com que seu único filho fosse acusado do crime. Era uma obra-prima de vilania, e ele a executou com maestria. A idéia do testamento, que forneceria o móvel do crime, a visita que o rapaz lhe fez, sem que os pais soubessem disso, a bengala que Oldacre guardou, o sangue, os restos de um animal queimado e os botões encontrados na pilha de madeira, tudo muito engenhoso. Foi uma rede de onde, há algumas horas, eu próprio achava que ninguém poderia escapar. Mas ele não tinha aquele supremo dom do artista, que é saber parar. Quis aperfeiçoar o que já era perfeito, apertar mais ainda a
corda à volta do pescoço da pobre vítima, e, com isso, estragou tudo. Vamos descer, Lestrade. Quero lhe fazer uma ou duas perguntas. O miserável Oldacre estava sentado na sala da sua própria casa, com um policial de cada lado. — Foi uma brincadeira, meu bom senhor — choramingava ele sem cessar. — Garanto-lhe que me escondi para ver o efeito do meu desaparecimento, e tenho certeza de que o senhor não será injusto a ponto de imaginar que eu permitiria que acontecesse algum mal ao pobre Sr. McFarlane. — Isso compete ao júri decidir — disse Lestrade. — De qualquer maneira, o senhor será julgado por crime de calúnia, se não for por tentativa de assassinato. — E provavelmente verá seus credores impedirem a transferência dos seus depósitos para a conta do Sr. Cornelius — disse Holmes. O homenzinho se virou para o meu amigo, com olhar venenoso. — Tenho que lhe agradecer muita coisa — disse ele. — Talvez um dia pague a minha dívida. Holmes sorriu com indulgência. — Creio que o senhor vai ter durante alguns anos todo o seu tempo ocupado — replicou. — Por falar nisso, que é que pôs no fogo, ao lado das suas calças? Um cão morto, ou coelhos, ou o quê? Não quer dizer? Bem, bem, acho que uns dois coelhos poderiam ser responsáveis pelo sangue e pelos restos carbonizados. Se algum dia descrever este caso, Watson, pode optar por dois coelhos.
Arthur Conan Doyle Os Danรงarinos
Título original: The ancing Men Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1903 Este texto digital reproduz a tradução de The Dancing Men publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume IV, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Lígia Junqueiro
Havia tempo que Holmes estava sentado, em silêncio, debruçado sobre um tubo de ensaio, investigando um produto malcheiroso. Assim, com a cabeça caída para o peito, lembrava um pássaro estranho, magro, de plumagem cinzenta, opaca, e penacho negro. - Então, Watson, não vai comprar as ações sul-africanas? - perguntou ele. Tive um sobressalto. Por mais habituado que estivesse às estranhas faculdades de Holmes, aquela súbita intrusão nos meus íntimos pensamentos era inexplicável. - Como é que sabe disso? - perguntei. Ele deu uma reviravolta na banqueta, com um tubo fumegante na mão e um brilho divertido no olhar fixo. - Confesse, Watson, que está admirado - disse ele. - Estou mesmo. - Devia fazê-lo assinar uma declaração a esse respeito. - Porquê? - Porque daqui a cinco minutos vai dizer que é absurdamente simples. - Tenho certeza de que não direi nada nesse estilo. Largando o tubo e com um ar de professor que se dirige à classe, começou: - Sabe, caro Watson, não é difícil fazer uma série de deduções, cada qual dependendo da sua antecedente e cada qual simples em si mesma. Feito isso, se a gente derrubar as deduções centrais e apresentar à audiência um ponto de partida e a conclusão, pode produzir um efeito assustador, embora possivelmente falso. Agora, não foi difícil, olhando o vão entre o seu indicador e o polegar da mão esquerda, perceber que você não pretende empregar seu pequeno capital em ações de mina de ouro. - Não vejo a relação. - Provavelmente não vê mesmo, mas posso lhe mostrar uma íntima ligação. Aqui estão os elos que faltam à simples cadeia, l. Você tinha giz entre o indicador e o polegar da mão esquerda, a noite passada, quando voltou do clube; 2. Costuma pôr giz ali, quando joga bilhar, para firmar o taco; 3. Nunca joga bilhar a não ser com Thurston; 4. Você me contou, há quatro semanas, que Thurston tinha a opção, por um mês, de uma propriedade na África do Sul, e que queria comprá-la em sociedade com você; 5. Seu talão de cheques está fechado na minha gaveta e você não me pediu a chave; 6. Portanto, não tenciona aplicar nesse negócio o seu dinheiro. - Absurdamente simples! - exclamei.
- De fato! - disse Holmes, um pouco irritado. - Todos os problemas se tornam infantis, depois de explicados. Veja se resolve este aqui, amigo Watson. Holmes me atirou uma folha de papel e voltou às suas experiências químicas. Olhei com espanto para os absurdos hieróglifos à minha frente. - Mas, Holmes, isto é um desenho de criança! - exclamei. - Oh, acha? - Que mais poderia ser? - É o que o sr. Hilton Cubitt, de Ridiing Thorpe, Norfolk, deseja saber. Essa charada me chegou pelo correio da manhã, e o sr. Cubitt me preveniu que ele próprio viria no trem seguinte. Estão tocando a campainha, Watson. Não me admiraria se fosse ele. Ouviram-se passos pesados na escada. Momentos depois, entrou um homem alto, bem-barbeado, de olhos claros e rosto corado, indicando que morava bem longe da neblina da Baker Street. Pareceu trazer consigo uma golfada do ar puro e revígorante da costa leste. Depois de nos ter cumprimentado, ia sentar-se, quando seu olhar caiu sobre o estranho desenho que eu acabara de examinar e depositara em cima da mesa. - Então, sr. Holmes, que me diz disso? - perguntou. - Disseram-me que o senhor gosta de mistérios, e não creio que possa encontrar um maior do que esse. Mandei o papel primeiro, para que tivesse tempo de estudá-lo, antes de eu chegar. - Não há dúvida de que é estranho - disse Holmes. - A princípio, pode parecer brincadeira, de criança. Consta de uma porção de absurdas figurinhas de dançarinos. Por que o senhor dá importância a uma coisa tão grotesca? - Eu não daria, sr. Holmes. Mas minha mulher dá. Está muito amedrontada. Não diz nada, mas vejo o terror nos seus olhos. É por isso que quero investigar o caso. Holmes levantou o papel, para que a luz do sol incidisse sobre ele. Era uma página arrancada de um caderno de apontamentos. As figuras eram desenhadas a lápis, do seguinte modo:
Holmes examinou o papel durante algum tempo e depois, dobrando-o cuidadosamente, colocou-o dentro do seu caderno de apontamentos. - Promete ser um caso pouco comum e muito interessante - disse ele. - O senhor me deu alguns pormenores, na sua carta, sr. Hilton Cubitt, mas eu
ficaria muito agradecido se contasse tudo de novo para meu amigo, o dr. Watson, ouvir. - Não sou grande narrador de histórias - começou o nosso visitante, nervosamente, abrindo e fechando as mãos fortes. - Pecam-me explicações, quando eu não for muito claro. Vou começar pela época do meu casamento, o ano passado. Mas primeiro quero dizer que não sou rico, que a minha gente mora em Ridiing Thorpe há cinco séculos e que não há família mais conhecida em Norfolk. O ano passado vim a Londres para o Jubileu e hospedei-me numa pensão, na Russel Square, pois o vigário da nossa paróquia também estava lá. Travei conhecimento, na pensão, com uma jovem americana chamada Elsie Patrick. Tornamo-nos amigos, mas, antes que acabasse o meu mês de férias, vi que estava loucamente apaixonado por ela. Casamo-nos sem alarde, num cartório, e fomos para Norfolk. O senhor achará loucura, sr. Holmes, um homem de boa família casar-se dessa forma, sem nada saber a respeito de sua mulher ou da família dela. Mas, se a visse e a conhecesse, compreenderia melhor o que se passou. “Elsie foi muito correia. Deu-me todas as oportunidades de desfazer o noivado, se eu assim o desejasse. ‘Tenho passado por coisas muito desagradáveis na minha vida’, disse ela. ‘Se se casar comigo, Hilton, aceitará uma mulher que nada tem de que se envergonhar, mas terá de se contentar com a minha palavra e permitir que eu guarde silêncio a respeito de minha vida, até o momento em que o conheci. Se estas condições forem muito severas, volte para Norfolk e deixe-me continuar sozinha, como quando me conheceu.’ Respondi que aceitava as suas condições e cumpri a minha palavra. “Estamos casados há um ano e temos sido muito felizes. Mas há um mês, em fins de junho, vi pela primeira vez sinais de complicações. Um dia, minha mulher recebeu uma carta da América. Vi o selo. Ela ficou mortalmente pálida, leu a carta e atirou-a ao fogo. Não fez qualquer alusão a isso, mais tarde, e não lhe perguntei coisa alguma, pois promessa é dívida, mas desde aquele momento ela nunca mais teve um instante de sossego. Há sempre uma expressão de medo em seu rosto: expressão de quem está à espera de alguma coisa. Seria melhor que ela confiasse em mim. Veria que sou seu melhor amigo. Mas, até que fale, nada posso fazer. Saiba que é uma mulher franca, sr. Holmes, e, seja qual for a complicação existente no seu passado, tenho certeza de que não foi por culpa dela. Sou apenas um proprietário rural, mas não há na Inglaterra homem que preze mais a honra da sua família do que eu. Ela sabe e sabia disso, antes de se casar comigo. Jamais faria com que meu nome ficasse manchado, tenho certeza.
“Chego agora à parte estranha da história. Há uma semana, terça-feira da semana passada, encontrei no peitoril da janela uma porção de figurinhas de dançarinos, semelhantes a estes aqui. Tinham sido desenhados com giz. Pensei que tivessem sido feitos pelo moço da estrebaria, mas o rapazinho jurou que nada sabia a esse respeito. Seja como for, foram feitos durante a noite. Mandei lavar o peitoril, e somente mais tarde contei isso a minha mulher. Vi, com surpresa, que ela levou o caso a sério. Suplicou-me que, se os desenhos voltassem a aparecer, eu a chamasse para vê-los. Nada aconteceu durante uma semana, mas ontem encontrei este papel no relógio de sol, no jardim. Mostrei-o a Elsie, e ela caiu desmaiada. Desde então, parece um fantasma, sempre com expressão aterrorizada no olhar. Foi por isso que lhe escrevi, mandando-lhe o desenho, sr. Holmes. Não era coisa que eu pudesse levar à polícia, pois teriam rido de mim, mas o senhor me dirá o que devo fazer. Não sou rico, mas se minha mulher estiver em perigo, estou pronto a gastar todo o meu dinheiro para protegê-la.” O sr. Hilton Cubitt calou-se. Parecia um homem muito correio, simples, sincero e bom, com grandes olhos azuis num rosto largo e simpático. Seu amor pela esposa e a confiança que nela depositava estavam estampados em seu rosto. Holmes ouvira a história com grande atenção e ficou durante algum tempo pensativo e em silêncio. Finalmente, disse: - Não acha, sr. Cubitt, que o melhor seria apelar diretamente para sua esposa e pedir-lhe que lhe confessasse seu segredo? Hilton Cubitt sacudiu a cabeça. - Promessa é dívida, sr. Holmes. Se quisesse me contar, Elsie teria me procurado. Já que não o fez, não quero forçá-la. Mas tenho o direito de agir a meu modo, e é o que farei. - Então, estou pronto a ajudá-lo, de todo o coração. Em primeiro lugar, ouviu falar de algum estranho na vizinhança? - Não. - Com certeza é um lugar sossegado. Qualquer pessoa estranha que aparecesse provocaria comentários, não? - Na vizinhança próxima, sim. Mas existem várias estâncias de águas, pequenas, não muito distantes de nós. E os fazendeiros aceitam pensionistas. - Esses hieróglifos têm, evidentemente, um sentido. Se forem arbitrários, talvez nos seja impossível decifrá-los. Se, por outro lado, forem sistemáticos, tenho certeza de que acharemos uma solução. Mas esta amostra é tão curta que nada posso fazer; e os fatos que me contou são tão vagos que não tenho base para uma investigação. Sugiro que volte para Norfolk, fique alerta e tire uma cópia exata de quaisquer bailarinos que apareçam. É uma grande pena eu não
poder ver a reprodução dos que foram desenhados com giz, na janela. Indague discretamente, também, a respeito de qualquer estranho que apareça na região. Depois de ter conseguido novas informações, torne a procurar-me. É o melhor conselho que lhe posso dar, sr. Cubitt. Se houver alguma novidade séria, sempre arranjarei tempo de dar um pulo até Norfolk. A entrevista deixou Holmes muito pensativo. Durante os dias seguintes, vi-o muitas vezes tirar o papelzinho de dentro do caderno de apontamentos e examinar com atenção as figuras ali desenhadas. Mas não fez alusão alguma ao assunto, até quinze dias mais tarde. Eu ia sair, quando ele me chamou. - É melhor ficar em casa, Watson. - Por quê? - Porque recebi hoje de manhã um telegrama de Milton Cubitt. Lembra-se dele e dos dançarinos? Ele deve chegar aqui a qualquer momento. Pelo telegrama, deduzi que há novidades. Não tivemos muito que esperar, pois o homem de Norfolk veio diretamente da estação para nossa casa. Parecia aborrecido e deprimido, com olhos cansados e a testa enrugada. - Este assunto está acabando com os meus nervos, sr. Holmes - disse ele, caindo, como que exausto, numa poltrona. - Já é mau estarmos cercados por pessoas invisíveis e desconhecidas, que têm más intenções a nosso respeito... Mas ver minha mulher definhar dia a dia é mais do que posso suportar. Ela pode acabar morrendo. - Ainda não lhe contou nada? - Não, sr. Holmes, nada. Há ocasiões em que a pobre parece querer falar, mas não tem coragem. Tenho tentado ajudá-la, mas com certeza fui desajeitado, pois nada consegui. Ela fala da minha família tradicionalista, da nossa reputação no condado, do orgulho que temos da nossa honra; sinto que pretende atingir um ponto, porém nunca chega lá. - Mas o senhor, de seu lado, descobriu alguma coisa? - Muita coisa, sr. Holmes. Trouxe vários dançarinos novos para o senhor examinar, e, o que é mais importante, vi o sujeito. - Quem? O homem que faz os desenhos? - Sim, vi-o trabalhar. Mas vou lhe contar tudo por ordem. Ao voltar para casa, depois de tê-lo procurado, sr. Holmes, a primeira coisa que vi, no dia seguinte, foi uma nova série de dançarinos. Tinham sido desenhados com giz, na porta de madeira preta da casa das ferramentas, que fica ao lado do relvado, bem à vista das janelas da frente. Tirei uma cópia exata, e aqui a tem. O sr. Cubitt desdobrou um papel e colocou-o sobre a mesa. Eis uma cópia exata dos hieróglifos:
- Ótimo! - exclamou Holmes. - Ótimo. Continue, por favor. - Depois de fazer a cópia, apaguei o desenho, mas, dois dias mais tarde, havia nova inscrição. Aqui está a cópia:
Holmes esfregou as mãos de contente. - Nosso material se acumula rapidamente - disse ele. - Três dias mais tarde, uma mensagem foi escrita em papel e colocada sob uma pedra, no relógio de sol. Aqui está. Os caracteres são, como o senhor vê, exatamente iguais aos últimos. Depois disso, resolvi ficar à espreita. Peguei meu revólver e fiquei sentado no escritório, quedá para o jardim. Mais ou menos às duas da manhã, eu estava diante da janela - tudo escuro, apenas o luar, no jardim - quando ouvi passos atrás de mim. Era minha mulher, de roupão. Suplicou-me que fosse para a cama. Respondi, francamente, que queria ver quem é que fazia aqueles desenhos. Ela disse que devia ser uma brincadeira sem importância, a que eu não devia ligar. “- Se isso o contraria realmente, Hilton, podemos ir viajar, para fugir a esse aborrecimento. “- Oh, sermos expulsos da nossa própria casa por um gaiato? - repliquei. O condado inteiro riria de nós! “- Bom, venha para a cama, e discutiremos o assunto de manhã. “De repente vi que o rosto de minha mulher se tornava mais pálido; sua mão se contraiu sobre meu ombro. Alguma coisa se movia nas sombras da casa das ferramentas. Vi um vulto escuro, arrastando-se pelo canto da casa e indo se agachar diante da porta. Agarrei meu revólver e ia correr para fora, quando minha mulher me segurou com toda a força. Procurei soltar-me, mas ela agarrava-se a mim, desesperadamente. Finalmente consegui me desvencilhar, mas, quando cheguei ao local, o homem já desaparecera. Porém, deixara um vestígio de sua presença, pois na porta estavam os desenhos. Aqui tenho a cópia. Não voltei a ver o sujeito, embora tivesse examinado todo o jardim. O mais estranho é que ele devia ter estado ali todo o tempo, pois, quando examinei a porta de manhã, vi que ele desenhara outras figuras sob a fileira que eu já vira. - Trouxe esse novo desenho?
- Trouxe. É muito curto, mas copiei-o. Aqui está. Tirou um papel do bolso. Os novos dançarinos estavam na seguinte ordem:
Vi, pelo olhar de Holmes, que ele estava muito excitado. Perguntou ao sr. Cubitt: - Diga-me uma coisa: esses desenhos eram apenas um acréscimo aos outros, ou pareciam estar completamente separados? - Estavam noutra parte da porta. - Ótimo! É o mais importante para nós. Isso me dá esperanças. Agora, sr. Cubitt, faça o favor de continuar sua história tão interessante. - Nada mais tenho a dizer, sr. Holmes, a não ser que fiquei zangado com minha mulher por ter me segurado, quando eu podia ter apanhado o miserável. Ela disse que tivera receio de que me acontecesse qualquer coisa. Por um momento, pensei que ela tivera medo de que acontecesse alguma coisa a ele, pois eu não duvidava que ela conhecesse aquele homem e soubesse o que ele queria dizer com tão estranhos sinais. Mas havia uma nota na voz de minha mulher, sr. Holmes, e uma expressão em seus olhos, que não permitiam dúvidas, e sei que foi realmente por mim que ela receou. Aí tem a história toda, e quero que me aconselhe quanto ao que devo fazer agora. Minha ideia seria colocar meia dúzia de empregados nas moitas, para que, se o sujeito aparecesse, lhe dessem tão grande surra que ele nunca mais se lembrasse de nos aborrecer. - Acho que a causa é muito profunda para remédio tão simples - replicou Holmes. - Quanto tempo vai ficar em Londres? - Tenho de voltar hoje. Não deixaria minha mulher sozinha à noite por nada deste mundo. Ela está muito nervosa e me suplicou que voltasse hoje. - Acho que tem razão. Mas, se pudesse ficar, talvez eu voltasse com o senhor dentro de um dia ou dois. De qualquer maneira, deixe-me esses desenhos. É muito provável que eu lhe faça uma visita, e espero poder esclarecer o assunto. Sherlock Holmes manteve sua calma profissional até o visitante sair, embora eu, que o conhecia tão bem, pudesse ver que estava profundamente excitado. No momento em que Cubitt desapareceu, meu amigo correu para a mesa, colocou à sua frente todos os dançarinos e começou a fazer cálculos complicados. Vi-o durante duas horas encher folhas e folhas com figurinhas e letras, tão absorto na tarefa, que parecia ignorar minha presença. Às vezes, fazia
progressos, e assobiava e cantarolava; outras, ficava perplexo, sentado durante muito tempo, de testa franzida e olhar vago. Finalmente, pulou da cadeira com um grito de satisfação e pôs-se a passear de um lado para outro da sala, esfregando as mãos. Depois, pegou uma fórmula telegráfica e escreveu uma longa mensagem. - Se minha resposta a este problema estiver certa, como espero, Watson, você terá um caso muito importante para acrescentar à sua coleção - disse Holmes. - Acho que poderemos ir amanhã a Norfolk, levar ao nosso amigo notícias definidas sobre o mistério que tanto o apoquenta. Confesso que estava intrigadíssimo, mas sabia que Holmes gostava de fazer revelações à sua maneira. Esperei, portanto, até que ele se dispusesse a me fazer confidências. Mas houve atraso na resposta ao telegrama. Seguiram-se dois dias de impaciência, durante os quais Holmes ficava em suspense todas as vezes que ouvia a campainha. Na tarde do segundo dia, chegou uma carta de Hilton Cubitt. Ia tudo bem em casa, a não ser uma nova série de dançarinos que aparecera naquela manhã, no pedestal do relógio de sol. Mandou uma cópia, que vai aqui reproduzida: Holmes inclinou-se sobre a grotesca mensagem, examinando-a durante alguns segundos. Depois, levantou-se de um salto, com uma exclamação de surpresa e consternação. Estava pálido de angústia. - Deixamos este caso ir longe demais - disse ele. - Há algum trem para Norfolk, hoje à noite? Consultei o horário dos trens. O último devia ter acabado de partir. - Então teremos de nos levantar cedo e tomar o primeiro trem amanhã disse Holmes. - Nossa presença ali é absolutamente necessária. Ah, eis a resposta ao nosso telegrama. Um momento, sra. Hudson, pode ser que tenha resposta. Não, é exatamente o que eu esperava. O telegrama prova que ainda é mais urgente a nossa viagem. Não podemos perder uma hora para ir avisar Hilton Cubitt do que se passa, pois é singular e perigosa a teia que envolve nosso amigo. E realmente assim era. Ao chegar à sombria conclusão da história, que a princípio me parecera apenas infantil e bizarra, experimento novamente o horror e a consternação que então senti. Gostaria de ter um fim mais alegre para comunicar aos meus leitores, mas registro aqui a crônica dos fatos, e sou obrigado a seguir, até o final, a cadeia dos acontecimentos que durante alguns dias fizeram com que a Mansão Ridiing Thorpe fosse comentada em toda a Inglaterra. Mal tínhamos descido do trem, o chefe da estação correu para nós. - Creio que são os detetives de Londres, não? - perguntou.
No rosto de Holmes vi uma expressão inquieta. - Por que julga isso? - Porque o inspetor Martin, de Norwich, acabou de passar por aqui. Mas talvez os senhores sejam os médicos. Ela não morreu... ou não tinha morrido, segundo as últimas notícias. É possível que os senhores tenham tempo de salvála... embora, talvez, para a forca. Holmes estava muito preocupado. - Vamos para a Mansão Ridiing Thorpe - declarou ele. - Mas nada sabemos do que lá se passou. - Um caso terrível - disse o chefe da estação. - Tanto o sr. Cubitt como sua esposa estão feridos. Ela atirou nele e depois contra si mesma... pelo que dizem os criaos. Ele morreu, e parece que não há esperanças quanto a ela. Meu Deus, meu Deus, uma das mais antigas famílias, e das mais honradas! Sem dizer palavra, Holmes correu para a carruagem, não abrindo a boca durante o trajeto de onze longos quilômetros. Raras vezes eu o vira tão deprimido. Estivera preocupado durante toda a viagem, e eu o vira examinar com atenção os jornais da manha, mas a realização dos seus receios tornava-o melancólico. Estava agora reclinado no banco, perdido em sombrias conjecturas. E, no entanto, havia muita coisa interessante para ser vista, pois atravessávamos uma região singular, onde algumas casas esparsas representavam a população de hoje, ao passo que igrejas enormes, de torres quadradas, ralavam da glória e da prosperidade da velha Inglaterra. Finalmente, vimos a verde faixa da costa de Norfolk e o cocheiro apontou com o chicote para dois campanários de tijolo que surgiam acima do arvoredo. - Lá está a Mansão Ridling Thorpe - disse ele. Quando nos dirigimos para o grande portão de entrada, vi, ao lado da quadra de ténis, a negra casa das ferramentas e o relógio de sol, de que tanto tínhamos ouvido falar. Um homenzinho vivo, de bigode aparado, acabara de descer de uma charrete. Apresentou-se como sendo o inspetor Martin, da polícia de Norfolk, e ficou muito admirado quando ouviu o nome de meu amigo. - Mas, sr. Holmes, o crime foi cometido hoje às três horas da manhã! Como é que pôde saber disso em Londres e chegar aqui ao mesmo tempo que eu? - Previ o crime. Vim na esperança de poder evitá-lo. - Então o senhor deve ter provas que desconhecemos, pois ouvimos dizer que era um casal muito unido. - Tenho apenas o indício dos dançarinos - disse Holmes. - Mais tarde eu lhe explicarei o caso. Entretanto, já que é tarde demais para impedir a tragédia, estou ansioso por utilizar o conhecimento que tenho do caso, para que seja feita
justiça. Quer que o ajude na investigação, ou prefere que eu atue independentemente? - Teria orgulho em vê-lo trabalhar comigo, sr. Holmes - disse o inspetor com sinceridade. - Nesse caso, gostaria de ouvir o que se passou e ir examinar o local, sem mais delongas. O inspetor Martin teve o bom senso de deixar que Holmes agisse à sua maneira, contentando-se em tomar notas, cuidadosamente. O médico da localidade, um velho de cabelos brancos, acabara de sair do quarto da dona da casa. Disse que seu estado era grave, mas não desesperador. Como o ferimento era na cabeça, talvez levasse tempo a voltar a si. Não podia dizer por enquanto se fora ferida ou tentara se suicidar. Não havia dúvida de que a bala fora disparada de muito perto. Apenas um revólver fora encontrado no quarto, com falta de duas balas. O sr. Hilton Cubitt fora alvejado no coração. Tanto se podia julgar que ele a ferira, matando-se em seguida, como supor que era ela a criminosa, pois a arma fora encontrada entre ambos. - Mudaram a posição do cadáver? - perguntou Holmes. - Não tocamos em nada; apenas tiramos dali a sra.Cubitt, pois não podíamos deixá-la ferida no chão. - Desde quando está aqui, doutor? - Desde as quatro horas. - Mais alguém?... - Sim, um policial. - E não tocaram em nada? - Em nada. - Agiram muito bem. Quem mandou chamá-lo? - Saunders, a criada. - Foi ela quem deu o alarme? - Ela e a cozinheira, a sra. King. - Onde estão agora? - Na cozinha, creio eu. - Então é melhor ouvirmos o que elas têm a dizer. O velho vestíbulo, com lambris de carvalho e janelas altas, fora transformado em sala de interrogatório. Holmes estava sentado numa cadeira alta e antiga, com os olhos inexoráveis no rosto abatido. Eu lia neles a firme resolução de dedicar sua vida àquela investigação, até que o cliente que ele não conseguira salvar fosse, pelo menos, vingado. O alinhado inspetor Martin, o médico de província, um policial e eu completávamos o estranho grupo.
As duas criadas contaram a história com suficiente clareza. Tinham acordado com o ruído de uma detonação, seguida quase que imediatamente por outra. Dormiam em quartos contíguos, e a sra. King correra a chamar Saunders. Juntas, tinham descido a escada. A porta do escritório estava aberta, e uma vela ardia sobre a mesa. O dono da casa estava caído, de bruços, no chão. Morto. Sua mulher estava agachada perto da janela, com a cabeça contra a parede. Estava gravemente ferida, e tinha a face rubra de sangue. Respirava ofegantemente, mas não pudera dizer coisa alguma. Tanto o escritório como o corredor estavam cheios de fumaça e cheiravam a pólvora. A janela estava fechada e trancada por dentro. As duas mulheres afirmavam isso com segurança. Tinham mandado imediatamente chamar o médico e a polícia. Depois, com o auxílio de dois empregados, tinham levado a patroa para o quarto. Tanto ela como o marido já haviam ido se deitar. Ela estava de camisola e ele, de roupão sobre o pijama. As empregadas não tinham tocado em nada, na sala. Pelo que sabiam, nunca houvera discussão entre marido e mulher. Sempre os tinham achado muito unidos. Eram estes os pontos principais das declarações das empregadas. A uma pergunta do inspetor Martin, responderam que tinham certeza de que todas as portas estavam fechadas por dentro e que ninguém poderia ter fugido de casa. A uma pergunta de Holmes, responderam que tinham sentido cheiro de pólvora desde o momento em que saíram do quarto, no andar de cima. - Chamo a sua atenção para esse ponto - disse Holmes ao inspetor. - E, agora, creio que está na hora de examinarmos a sala. O escritório era um aposento pequeno, com estantes em três paredes, e a escrivaninha de frente para uma janela comum, que dava para o jardim. Nossa atenção fixou-se no corpo do infeliz proprietário, estendido no chão. A desordem das roupas indicava que ele se levantara apressadamente. A bala fora disparada de frente e ficara alojada no coração. Sem dúvida a sua morte fora instantânea e sem dor. Não havia sinais de pólvora no roupão nem nas mãos do morto. Pelo que dissera o médico, a sra. Cubitt tinha marcas no rosto, mas nenhuma nas mãos. - A ausência destas últimas marcas nada significa, embora sua presença pudesse significar muita coisa - disse Holmes. - A não ser que a pólvora de uma bala mal encaixada volte para trás, uma pessoa pode disparar várias vezes, sem que nela fique sinal. Sugiro que o corpo seja retirado agora. Creio que ainda não extraiu a bala do corpo da sra. Cubitt, não, doutor? - Para isso é preciso uma operação delicada. Mas ainda há quatro balas no revólver. Duas foram disparadas e há dois ferimentos, de modo que estão explicadas as duas balas que faltam.
- Assim parece - disse Holmes. - E podem explicar também a bala que tão claramente bateu na janela? Holmes virara-se repentinamente, e seu dedo longo, fino, apontava para um buraco que havia no caixilho da janela. - Por Deus! - exclamou o inspetor. - Como é que o senhor viu essa marca? - Porque estava à procura dela. - Maravilhoso! - disse o médico. - Tem toda a razão, sr. Holmes. Então houve um terceiro tiro, e, portanto, uma terceira pessoa esteve presente. Mas quem poderia ter sido, e como poderia ter fugido? - É esse o problema que estamos prestes a solucionar - disse Sherlock Holmes. - Está lembrado, inspetor Martin, de que as empregadas declararam que sentiram cheiro de pólvora no momento em que saíram do quarto, e que eu lhe disse que era um ponto importante? - Lembro-me, mas confesso que não entendi. - Na minha opinião, quando a primeira bala foi disparada, tanto a porta como a janela estavam abertas. Do contrário, o cheiro da pólvora não poderia ter se espalhado tão rapidamente pela casa. Para isso era preciso que houvesse corrente de ar. Mas tanto a porta como a janela estiveram abertas apenas alguns minutos. - Como é que pode provar isso? - Porque a vela não gotejou. - Extraordinário! - exclamou o inspetor. - Tenho certeza de que a janela estava aberta na ocasião da tragédia, e calculo que deve ter havido uma terceira pessoa, que atirou do lado de fora. Uma bala dirigida contra essa pessoa rasparia o caixilho. Investiguei, e lá estava a marca! - O primeiro instinto da mulher seria fechar a janela. Epa! Que é isso? Era uma bolsa de mulher sobre a escrivaninha: bolsinha bonita, de crocodilo e prata. Holmes abriu-a e espalhou sobre a mesa o conteúdo. Havia ali vinte e cinco libras, em notas presas por um elástico. Nada mais. - Isto terá de figurar no julgamento - disse Holmes, entregando a bolsa e o conteúdo ao inspetor Martin. - Precisamos agora descobrir alguma coisa a respeito da terceira bala, que indubitavelmente foi disparada de dentro, como se deduz pelo estilhaço da madeira. Gostaria de ver novamente a sra. King, a cozinheira... A senhora disse, sra. King, que acordou com uma explosão forte. Quer dizer que lhe pareceu mais alta do que a segunda? - Foi ela que me acordou, senhor, e, portanto, é difícil dizer. Mas me pareceu muito forte. - Não acha que podem ter sido duas balas disparadas ao mesmo tempo?
- Infelizmente, não sei dizer. - Creio que foi isso. Agora, inspetor Martin, creio que esta sala nada mais nos tem a contar. Se quiser fazer o favor de me acompanhar, poderemos ver o que o jardim nos vai oferecer. Um canteiro vinha até a janela do escritório, e todos nós soltamos exclamações de espanto quando lá chegamos. As flores tinham sido pisadas, e a terra macia estava cheia de pegadas, feitas por pés de homem, grandes, com dedos estranhamente longos. Holmes procurou no meio das folhas e da relva como cão de caça atrás de uma ave abatida. Depois, com um grito de satisfação, inclinou-se e apanhou uma cápsula de latão. - Foi o que pensei - disse ele. - O revólver tinha um extrator, aqui está a terceira cápsula. Creio que nosso caso está quase completo, inspetor Martin. O inspetor mostrara grande espanto ao ver os rápidos progressos da magistral investigação de Holmes. A princípio dera mostras de querer se impor, mas agora estava possuído de admiração e pronto a seguir Holmes aonde este o quisesse levar. - De quem suspeita? - perguntou. - Mais tarde trataremos disso. Há, neste problema, vários pontos que ainda não lhe pude explicar. Agora, que já fui tão longe, é melhor continuar à minha maneira e depois esclarecer tudo de uma vez. - Como quiser, sr. Holmes, contanto que tenhamos o nosso homem. - Não quero ser misterioso, mas é impossível, no momento de agir, entrar em longas e complexas explicações. Tenho o fio da meada na mão. Mesmo que a sra. Cubitt não se salve, poderemos reconstituir os fatos da noite passada e conseguir que se faça justiça. Em primeiro lugar, quero saber se há alguma hospedaria na vizinhança chamada Elrige’s. Perguntaram aos empregados, mas nenhum soube informar. O moço da estrebaria lembrou-se de que havia uma fazenda com esse nome, na direção de East Ruston. - É uma fazenda isolada? - Muito isolada, senhor. - Talvez ainda não tenha chegado lá a notícia do que se passou aqui hoje à noite, não é verdade? - Talvez não, senhor. Holmes ficou pensativo por alguns momentos; depois, um sorriso iluminou-lhe o rosto. - Sele um cavalo, rapaz - disse ele. - Quero que leve um bilhete à fazenda. Tirou do bolso os papéis com os desenhos dos dançarinos, levou-os para a sua escrivaninha e ali ficou trabalhando durante algum tempo. Finalmente entregou o bilhete ao rapaz, recomendando que o entregasse à pessoa a quem
era dirigido e que não respondesse a pergunta alguma que lhe fosse feita. Vi no envelope uma letra irregular, muito diferente da de Holmes. Estava endereçado ao sr. Abe Sianey, Fazenda Eirige, East Ruston, Norfolk. - Creio que deve telegrafar, pedindo uma escolta - disse Holmes ao inspetor. - Se meus cálculos forem exatos, terá de levar um prisioneiro muito perigoso para a cadeia. O rapaz que for levar este bilhete poderá tratar do telegrama. Se houver um trem à tarde, Watson, creio que poderemos voltar para casa, pois tenho que fazer umas experiências químicas interessantes, e este caso está quase terminado. Depois que o rapaz partiu com o bilhete, Holmes deu instruções aos criados. Se alguém viesse procurar a sra. Cubitt, não deviam de forma alguma falar do seu estado, mas sim introduzir o visitante imediatamente na sala de visitas. Insistiu nesse ponto. Finalmente, conduziu-nos para a sala dizendo que o caso agora estava nas nossas mãos e que devíamos procurar passar o tempo da melhor maneira possível, até ver o que ia acontecer. O médico tinha partido, e somente o inspetor e eu fazíamos companhia a Holmes. - Creio que posso ajudá-los a passar o tempo de maneira interessante disse meu amigo, puxando a cadeira para perto da mesa e ali espalhando os papéis onde estavam os dançarinos. A você, amigo Watson, tenho de pedir perdão, por ter permitido que a sua natural curiosidade ficasse insatisfeita durante tanto tempo. Ao senhor, inspetor Martin, o incidente poderá atrair como um magnífico estudo profissional. Primeiro tenho de lhe falar das interessantes circunstâncias que se relacionam com a consulta que me fez o sr. Hilton Cubitt em Londres. Holmes contou ao inspetor os fatos que já foram narrados. - Tenho à minha frente os desenhos, que poderiam provocar sorrisos, se não tivessem sido eles os arautos da tragédia. Conheço bem todos os códigos secretos, e sou mesmo autor de uma monografia sobre o assunto, onde analiso cento e sessenta códigos diferentes, mas confesso que este me deixou perplexo. A intenção da pessoa que inventou este sistema foi, naturalmente, dar a impressão de que se tratava de desenhos de criança. Holmes fez uma pausa e continuou: - Tendo-me convencido de que os símbolos substituíam letras e aplicandolhes as regras que me guiaram no estudo de todas as fórmulas secretas, não me foi difícil encontrar a solução. A primeira mensagem era tão curta que só consegui descobrir o símbolo que substituía a letra E. “Como sabem, a letra E é a mais comum na língua inglesa, e predomina de tal forma que, mesmo numa mensagem curta, é encontrada várias vezes. Dos quinze símbolos do primeiro bilhete, quatro eram iguais, de modo que os
considerei como sendo a letra E. É verdade que em alguns casos o dançarino empunhava uma bandeira, e noutros, não, mas, pela maneira como eram distribuídos, achei que os da bandeira eram usados para terminar uma frase. Tomei isso como hipótese e considerei como E o símbolo
“Chegamos ao ponto mais difícil. A ordem das letras mais comuns, depois do E, não é bem definida, e qualquer preponderância que se faça sentir numa folha impressa normal poderá desaparecer, quando se tratar de uma frase curta, tomada isoladamente. Falando por alto, as letras T, A, O, I, N, S, H, R, D e a letra L estão na ordem numérica em que mais aparecem; mas as letras T, A, O e I estão quase no mesmo plano, de modo que seria tarefa infindável tentar todas as combinações, até chegar a um resultado. Fiquei, portanto, à espera de novo material. Na minha segunda entrevista com o sr. Hilton Cubitt, ele me deu mais duas frases curtas e uma mensagem que me pareceu - já que não havia a bandeira - uma palavra só. Aqui estão os símbolos.
“Agora, numa só palavra de cinco letras, encontrei dois EE, no primeiro e no quarto lugares. Poderia ser sever, ou lever, ou never. Não há dúvida de que esta ultima é a mais provável, como resposta a um apelo - e as circunstâncias indicavam ser uma resposta escrita pela dona da casa. Aceitando isto como verdadeiro, podemos agora dizer que os símbolos
correspondem, respectivamente, a N, V, R. “Mesmo assim, eu estava em posição difícil, mas uma ideia feliz me fez descobrir várias outras letras. Ocorreu-me que, se esses apelos viessem, como me parecia, de uma pessoa que fora antigamente íntima da sra. Cubitt, uma palavra que contivesse duas letras E, com três letras intercaladas, poderia significar “Elsie”. Examinando os papéis, vi que essa palavra terminava a mensagem que se repetia três vezes. Não havia dúvida de que era um apelo a Elsie. Assim, eu já conseguira as letras L, S e I, Mas, que apelo poderia ser? Havia apenas quatro letras na palavra que precedia “Elsie” e que terminava
com E. Com toda a certeza devia ser come. Tentei todas as outras palavras com a terminação E, mas não encontrei uma combinação que servisse. Portanto, eu estava de posse de C, O, M, e apto a atacar a primeira mensagem mais uma vez, dividindo-a em palavras e pondo pontinhos para cada símbolo ainda desconhecido. Consegui o seguinte: .M .ERE ..E SL.NE. “Agora, a primeira letra só pode ser A, o que é uma útil descoberta, já que ocorre três vezes nesta frase curta, e aparentemente existe o H, na segunda palavra. Sendo assim, temos: AM HERE A. E SLANE. “E, completando o nome próprio, temos:AM HERE ABE SLANEY. “Eu estava de posse de tantas letras, que agora podia seguramente atacar a segunda mensagem. Consegui: A. ELRI.ES. “Aqui, só podia conseguir um sentido pondo T ou G onde faltavam letras, supondo que fosse o nome de alguma casa ou hospedaria onde estivesse alojada a pessoa que escrevia.” O inspetor Martin e eu tínhamos ouvido com a maior atenção o sistema que permitira ao meu amigo conseguir os resultados que lhe tinham dado o comando da situação. - Que fez então, sr. Holmes? - perguntou o inspetor. - Eu tinha todas as razões para acreditar que esse Abe Sianey era americano, pois Abe é o diminutivo americano de Abel, e também porque uma carta chegada da América fora o início de toda a complicação. Tinha também razões para acreditar que havia algum segredo criminoso no caso. A alusão feita pela dama ao seu passado, a recusa em fazer confidências ao marido, tudo apontava nessa direção. Portanto, telegrafei ao meu amigo Wilson Hargreave, da polícia de Nova York, que mais de uma vez tem recorrido aos meus conhecimentos do mundo do crime de Londres. Perguntei-lhe se o nome de Abe Sianey era conhecido dele. Eis a resposta: “O mais perigoso bandido de Chicago”. Na tarde em que recebi essa resposta, Hilton Cubitt me mandou a última mensagem de Sianey. Servindo-me das letras que já conhecia, cheguei a este resultado: ELSIE .RE .ARE TO MEET THY GO. “Acrescentando P e D, tive a mensagem completa: ELSIE PREPARE TO MEET THY GOD, e fiquei sabendo que o miserável tinha passado da persuasão à ameaça. Pelo que conhecia dos criminosos de Chicago, achei que ele agiria
sem demora. Vim imediatamente para Norfolk com meu amigo e colega, dr. Watson, mas infelizmente vi que já se dera a tragédia. - É um privilégio trabalhar com o senhor - disse o inspetor com entusiasmo. - Mas, desculpe-me falar-lhe com franqueza. O senhor não tem de prestar contas a ninguém, mas eu tenho de responder aos meus superiores. Se esse Abe Slaney, que está em Elrige’s, é de fato o assassino, e se conseguir fugir, eu me verei em maus lençóis. - Não se preocupe. Ele não tentará fugir. - Como é que sabe? - A fuga seria confissão de culpa. - Então vamos prendê-lo. - Espero vê-lo chegar aqui a qualquer minuto. - Mas por que haveria de vir aqui? - perguntou o inspetor. - Porque lhe escrevi, convidando-o. - Mas isso é incrível, sr. Holmes! Por que haveria de vir, a seu convite? Tal pedido não iria antes despertar-lhe as suspeitas e incitá-lo a fugir? - Creio que eu soube redigir o bilhete - disse Holmes. - E, se não me engano, lá vem o cavalheiro, subindo a alameda. Um homem vinha pelo caminho que conduzia à porta. Era um sujeito alto, bonito, moreno, de barba preta, nariz grande e agressivo; vestia um terno de flanela cinzenta, usava chapéu panamá e trazia uma bengala, que balançava ao andar. Dirigiu-se para a porta de entrada como se a casa fosse sua. Ouvimos um toque firme de campainha. - Creio, senhores, que será melhor tomarmos posição atrás da porta - disse Holmes. - Todas as precauções são poucas, quando se lida com gente dessa espécie. Vai precisar das suas algemas, inspetor. Deixe a conversa por minha conta. Esperamos em silêncio por um minuto - e foi um minuto que jamais esqueceremos. A porta se abriu e o homem entrou. Imediatamente, Holmes apontou o revólver para sua cabeça e Martin colocou-lhe logo as algemas. Foi tudo feito tão rapidamente que o homem não pôde esboçar um gesto de defesa. Fulminou-nos com o olhar, depois rompeu numa gargalhada. - Muito bem, senhores, desta vez me apanharam. Parece que bati com a cabeça na parede. Mas vim aqui em resposta a uma carta da sra. Hilton Cubitt. Não me digam que ela está metida nisso! Será que os ajudou a me preparar esta armadilha? - A sra. Cubitt foi gravemente ferida e está às portas da morte. O homem soltou um grito de dor.
- Está louco! - exclamou ferozmente. - Ele é que foi ferido, não ela. Quem iria fazer mal a Elsie? Posso tê-la ameaçado, que Deus me perdoe, mas nunca teria tocado num cabelo da sua linda cabeça. Desminta isso já, senhor! Diga-me que ela não está ferida! - Foi encontrada mortalmente ferida, ao lado do cadáver do marido. O homem caiu com um gemido na cadeira e escondeu o rosto nas mãos algemadas. Assim ficou durante alguns minutos, em silêncio. Depois ergueu de novo o rosto e falou com a calma do desespero: - Nada tenho a lhes ocultar, senhores - disse. - Se atirei contra o homem, ele atirou primeiro contra mim, e não posso ser considerado assassino. Mas, se acham que eu seria capaz de fazer algum mal àquela mulher, é porque não me conhecem nem a ela. Garanto-lhes que nunca homem algum amou mais uma mulher do que eu a amo. Tinha direito a ela. Estávamos comprometidos havia muitos anos. Por que havia esse inglês de se colocar entre nós? Digo-lhes que tinha direito de primazia, e que estava apenas reclamando o que era meu. - Ela fugiu à sua influência, quando descobriu que espécie de homem você era - disse Holmes severamente. - Fugiu da América para evitá-lo e se casou com um honrado cavalheiro inglês. Você a perseguiu e a atormentou, procurando induzi-la a abandonar o marido, que ela amava e respeitava, para fugir com você, que ela temia e odiava. Você provocou a morte de um homem nobre e levou sua mulher a tentar o suicídio. É essa a sua parte de responsabilidade, sr. Abe Sianey, e terá de prestar contas à lei. - Se Elsie morrer, nada mais terá valor para mim - disse o americano, abrindo a mão e olhando para o bilhete amarrotado. Com um brilho de suspeita no olhar, exclamou: - Olhe, cavalheiro, não estará pretendendo me assustar? Se Elsie está ferida, como disse, quem então escreveu este bilhete? - Eu, para atraí-lo aqui. - O senhor? Não havia ninguém no mundo, além do bando, que conhecesse o segredo dos dançarinos. Como é que pôde escrever o bilhete? - O que um homem pôde inventar, outro pode descobrir - replicou Holmes, - Daqui a pouco deve chegar um carro para conduzi-lo a Norwich, sr. Sianey. Nesse meio tempo, pode procurar reparar, até certo ponto, o mal que fez. Sabe que a sra. Cubitt esteve sob suspeita de ter assassinado o marido e que somente a minha presença aqui e o conhecimento que eu tinha do caso a salvaram da acusação? O mínimo que o senhor deve fazer é declarar que ela não teve, direta ou indiretamente, responsabilidade na tragédia. - Não desejo outra coisa - disse o americano. - Creio que, mesmo para mim, o melhor é contar a verdade.
- É meu dever preveni-lo de que tudo o que disser será usado contra o senhor - disse o inspetor, com a magnífica lealdade prevista pela lei inglesa. Sianey encolheu os ombros. - Estou disposto a me arriscar. Em primeiro lugar, senhores, quero lhes dizer que conheço essa senhora desde garota. Éramos sete, num bando em Chicago, e o pai de Elsie era o nosso chefe. Homem inteligente, o velho Patrick. Foi quem inventou o código que devia passar por brincadeira de crianças, a não ser para quem conhecesse a chave. Pois bem, Elsie sabia do que se passava, mas não concordava com aquilo, e fugiu para Londres, com um dinheirinho que tinha ganho honestamente. Estávamos noivos, e tenho certeza de que ela teria se casado comigo, se eu tivesse abraçado outra profissão, pois ela não queria saber de negócios escusos. Somente depois de seu casamento com esse inglês é que descobri seu paradeiro. Escrevi-lhe, mas não obtive resposta. Depois, vim para cá, e, como as cartas de nada servissem, pus as mensagens onde ela pudesse vê-las. “Pois bem, há um mês que estou aqui. Hospedei-me naquela fazenda. Meu quarto era no rés-do-chão, e eu podia sair e voltar sem que o notassem. Fiz tudo para persuadir Elsie a fugir comigo. Sei que lia as mensagens, pois uma vez respondeu a uma delas, deixando-a por baixo da outra. Depois, perdi a paciência e comecei a ameaçá-la. Ela me mandou então uma carta, implorandome que partisse, dizendo que morreria se algum escândalo manchasse o nome do marido. Disse que desceria às três da manhã, quando o marido estivesse dormindo, e que falaria comigo pela janela, se eu prometesse nunca mais importuná-la. Desceu, trazendo dinheiro para me comprar. Isso me enfureceu, e tentei puxá-la pela janela. Nesse momento, surgiu o marido, de revólver em punho. Elsie caíra no chão, e estávamos os dois frente a frente. Ergui o revólver, para assustá-lo e poder fugir. Ele atirou e errou. Atirei quase no mesmo momento, e ele caiu. Fugi pelo jardim e ouvi fecharem a janela, atrás de mim. É a pura verdade, senhores, palavra por palavra, e não ouvi falar mais nisso até o rapazinho me entregar o bilhete que me fez vir até aqui, e cair nas suas mãos.” Chegara um carro, enquanto o americano falava. Dois policiais estavam sentados dentro dele. O inspetor Martin ergueu-se e tocou no ombro do prisioneiro. - Está na hora. - Posso vê-la, primeiro? - Não; ela está inconsciente. Sr. Sherlock Holmes, só desejo que, se eu alguma vez tiver novamente que resolver um caso importante, o senhor esteja a meu lado. Ficamos na janela, vendo o carro se afastar. Ao me voltar, vi a bola de
papel que o prisioneiro atirara para cima da mesa. Era o bilhete com que Holmes o atraíra à armadilha. - Veja se entende, Watson - disse -ele, com um sorriso. Não havia nenhuma palavra escrita. Apenas uma fileira de dançarinos.
- Se se servir do código que lhe expliquei, poderá entender o bilhete - disse Molmes. - Verá que está escrito: “Venha aqui imediatamente”. Eu estava certo de que ele não recusaria tal convite, já que nunca imaginaria que pudesse vir de outra pessoa além da sra. Cubitt. E assim, caro Watson, fizemos com que os dançarinos servissem para alguma coisa boa, embora tivessem sido tantas vezes agentes do mal, e penso ter cumprido minha promessa de lhe oferecer algo de interessante para publicar no seu livro. Nosso trem sai às três e quarenta, e creio que chegaremos à Baker Street a tempo para o jantar. Uma palavrinha, como epílogo: O americano Abe Sianey, foi condenado à morte, em Norwich, mas a pena foi comutada para prisão perpétua, devido às circunstâncias atenuantes e à certeza de que Hilton Cubitt atirara em primeiro lugar. Da sra. Cubitt, só sei que ficou completamente boa e que continua viúva, dedicando sua vida aos pobres e cuidando da propriedade que herdou do marido.
Sherlock Holmes em: A ciclista solitรกria Por Sir Arthur Conan Doyle
PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
No intervalo compreendido entre os anos de 1894 e 1901 inclusive, o sr. Sherlock Holmes andou muito ocupado. Pode-se afirmar que não houve nenhum caso público difícil em que ele não fosse consultado, nesses oito anos, e houve centenas de casos particulares, alguns complicados e extraordinários, nos quais representou papel importante. Inúmeros grandes sucessos e alguns fracassos inevitáveis encheram esse período de trabalho contínuo. Como guardei notas completas sobre esses casos, e cheguei mesmo a tomar parte em alguns, devem compreenderque não me será fácil saber quais apresentar ao público. Ficarei, no entanto, fiel à minha antiga norma, que é dar preferência àqueles que apresentam interesse, não pela brutalidade do crime, mas pelo engenho e pela finalidade surpreendente da solução. Por esse motivo, vou contar agora o caso da srta. Violet Smith, a ciclista solitária de Charlington, e a curiosa sequência de nossas investigações, que culminaram em inesperada tragédia. É verdade que as circunstâncias não permitiram nenhuma demonstração extraordinária dos dons que tornaram meu amigo famoso, mas há, no caso, pontos que o colocaram em destaque, em meio à coleção de crimes onde me inspiro para tais narrativas. Consultando o meu caderno de 1895, vejo que foi num sábado, dia 23 de abril, que pela primeira vez ouvimos falar da srta. Violei Smith. Lembro-me de que sua visita desagradou a Holmes, que estava nessa altura interessado num problema relacionado com a estranha perseguição de que fora vítima John Vincent Harden, o conhecido rei do tabaco. Meu amigo, que acima de tudo gostava de precisão e de concentração, aborrecia-se com qualquer coisa que desviasse sua atenção do assunto em que se ocupava no momento. Mas, sem rudeza (estranha, aliás, ao seu temperamento), consentiu em ouvir a história daquela mulher jovem e bela, alta, graciosa e imponente, que se apresentou na Baker Street já muito tarde, implorando a assistência de Holmes e seus conselhos. Inútil dizer que ele estava sobrecarregado. A jovem viera disposta a contar sua história, e era evidente que nada, a não ser a força, faria com que dali saísse antes de realizar seu intento. Com ar de resignação e um sorriso cansado, Holmes convidou a bela intrusa a se sentar e nos contar o que a preocupava. — Pelo menos, não é questão de saúde — disse ele, examinando-a com o olhar. — Uma ciclista tão entusiasta deve ter muita energia. A jovem relanceou os olhos para os sapatos, e notei uma aspereza do lado da sola, causada pela fricção dos pedais. — Sim, ando muito de bicicleta, sr. Holmes, e isso tem relação com minha visita de hoje. Meu amigo segurou a mão da jovem e examinou-a com a grande atenção e
o pouco sentimento que um cientista demonstra por um espécime. — Peço-lhe que me desculpe. Faz parte do trabalho — disse ele, largando-lhe a mão. — Quase caí no erro de supor que era datilógrafa. Não há dúvida de que se dedica à música. Veja as pontas dos dedos, espatuladas, Watson, consequência de ambas as profissões. Há, no entanto, uma espiritualidade no rosto... — e virou de leve o rosto da jovem para a luz — que não se espera numa datilógrafa. Esta moça é uma artista. — É verdade, sr. Holmes, sou professora de música. — No campo, suponho eu, pelo seu tom de pele. — Sim, senhor, perto de Farnham, nos limites de Surrey. — Lindo lugar, cheio de interessantes recordações. Lembra-se, Watson, que foi lá que apanhamos Archie Stamford, o falsificador? Agora, srta. Violet, que foi que lhe aconteceu em Farnham? Com grande clareza e calma, a jovem começou sua narrativa: — Meu pai já morreu, sr. Holmes. Era James Smith, regente da orquestra do velho Teatro Imperial. Minha mãe e eu ficamos sem nenhum parente, a não ser um tio, Ralph Smith, que partira para a África vinte e cinco anos antes, e de quem jamais tivéramos notícias. Ficamos pobres, depois da morte de meu pai, mas um dia nos disseram que havia no Times um anúncio, indagando do nosso paradeiro. Pode calcular como ficamos excitadas, pois imaginamos que alguém nos deixara uma fortuna. Fomos imediatamente ao escritório do advogado, cujo nome viera no jornal. Ali conhecemos dois senhores, o sr. Carruthers e o sr. Woodiey, que tinham chegado da África do Sul. Disseram que eram amigos de meu tio, que ele morrera meses antes, pobre, em Johannesburg, e que lhes suplicara, à hora da morte, que nos procurassem e não permitissem que nos faltasse nada. Pareceu-nos estranho que o tio Ralph, que nunca se preocupara conosco em vida, se interessasse por nós na hora da morte, mas o sr. Carruthers explicou que meu tio acabara de ter notícia da morte de meu pai e que, portanto, se sentia responsável por nós. — Desculpe-me — interrompeu Holmes. — Quando teve lugar essa conversa? — Em dezembro último, há quatro meses. — Pode continuar. — O sr. Woodley me pareceu uma criatura odiosa. Ficava sempre olhando para mim de maneira desagradável, e tinha um rosto grosseiro e balofo, um bigode ruivo e cabelos empastados de cada lado da testa. Achei-o detestável, e tive a certeza de que Cyril não gostaria que eu conhecesse aquele sujeito. — Oh, ele se chama Cyril! — disse Holmes, sorrindo.
A jovem corou e riu. — Sim, sr. Holmes! Cyril Morton, engenheiro eletrônico, e esperamos nos casar no fim do verão. Deus do céu, como é que fui falar nele? O que eu queria dizer é que o sr. Woodiey era profundamente antipático e que o sr. Carruthers, embora muito mais velho, me deixou melhor impressão. Homem moreno, pálido, bem-barbeado, silencioso, mas de boas maneiras e um sorriso simpático. Perguntou-nos como estávamos de finanças, e, ao saber que éramos muito pobres, sugeriu que eu desse lições de música a sua filha, de dez anos de idade. Respondi que não gostaria de deixar minha mãe, e ele disse que eu poderia ir passar com ela todos os fins de semana, e ofereceu-me cem libras por ano, o que achei ótima remuneração. Acabei por aceitar, e fui para Chiltern Grange, a dez quilómetros de Farnham. O sr. Carruthers disse que era viúvo, mas arranjara uma governanta, senhora muito respeitável, já de idade, a sra. Dixon, para tomar conta da casa. A menina era muito boazinha, e tudo corria bem. O sr. Carruthers era amável e apreciava bastante a música, de modo que passávamos noites agradáveis. Eu, todos os fins de semana, ia visitar minha mãe. "O primeiro aborrecimento foi a chegada do sr. Woodley. Veio por uma semana, mas me pareceram três meses! Era muito antipático e queria mandar em todos, porém comigo foi pior ainda. Declarou-me amor de maneira odiosa, gabou-se da sua fortuna, disse que, se eu me casasse com ele, teria os mais belos brilhantes de Londres. Finalmente, certo dia, após o jantar, como eu não quisesse saber dele, agarrou-me com força, dizendo que não me largaria enquanto não o beijasse. O sr. Carruthers apareceu e afastou-o para longe de mim, mas o homem se virou contra ele e deu-lhe um murro, derrubando-o e ferindo-o no rosto. Foi o fim da visita, como o senhor deve calcular. O sr. Carruthers me pediu desculpas no dia seguinte, dizendo que eu nunca mais ficaria sujeita a tais insultos. Nunca mais vi o sr. Woodiey. "E agora, sr. Holmes, chego ao acontecimento que me fez vir procurá-lo, para pedir conselho. Vou todos os sábados de bicicleta à estação de Farnham, para apanhar o trem de meio-dia e vinte e dois. A estrada é deserta e isolada, e há um trecho mais deserto ainda, de cerca de um quilómetro, que corre entre a charneca de Charlington, de um lado, e a mata que rodeia a Mansão Charlington, do outro. Não seria possível encontrar estrada mais solitária, e é raro se encontrar ali uma carroça, ou um camponês, até chegar à estrada real, perto de Crooksbury Hill. Há duas semanas, quando passava por lá, olhei por acaso para trás c vi um homem, também de bicicleta. Parecia de meia-idade, de barba curta e preta. Olhei de novo, antes de chegar a Farnham, porém o homem desaparecera, de modo que não pensei mais nisso. Mas o senhor vai ficar admirado, sr. Holmes, quando lhe contar que, ao voltar, na segunda-feira, vi o mesmo homem, no mesmo trecho da estrada. Meu espanto aumentou, quando isso se repetiu no sábado e na segunda-feira seguintes. Ele ficava sempre longe, não me incomodando de maneira alguma, mas o fato não deixava de ser estranho! Falei sobre isso com o sr. Carruthers, que pareceu interessado. Disse-me que encomendara uma charrete e um cavalo, para que, dali em diante, eu não passasse sozinha por aquele lugar.
"Tanto o cavalo como a charrete deviam ser entregues naquela semana, mas não chegaram, de modo que tive de ir de novo de bicicleta para a estação. Foi hoje de manhã. É claro que olhei para trás, quando cheguei àquele lugar; lá estava o homem, exatamente como duas semanas antes. Ficava sempre tão distante, que eu não podia ver seu rosto, mas tenho certeza de que não é pessoa que eu conheça. Sempre de escuro, com boné de pano. A única coisa que eu podia lhe distinguir no rosto era a barba preta. Hoje não fiquei alarmada, mas curiosa, decidida a ver quem era e o que queria. Diminuí a marcha, mas também ele diminuiu a sua. Parei, e ele parou. Preparei-lhe então uma armadilha. Há uma curva grande na estrada. Pedalei rapidamente até lá e parei, depois da curva, esperando vê-lo passar por mim, sem poder parar. Mas ele não apareceu. Voltei e olhei do outro lado da curva. Podia ver um quilómetro e meio de estrada, mas o homem sumira. O mais extraordinário é que não havia atalho por onde ele pudesse ter se metido. Holmes esfregou as mãos, estalando a língua. — O caso tem as suas particularidades — disse ele. — Quanto tempo se passou entre o momento em que virou a curva e aquele em que voltou, para olhar a estrada? — Dois ou três minutos. — Então, ele não poderia ter desaparecido na estrada, já que a senhora diz que não há atalho, não? — Nenhum. — Com certeza entrou em alguma vereda, de um lado ou de outro. — Não podia ser do lado das urzes, pois eu o teria visto. — Então, por exclusão, chegamos à conclusão de que se dirigiu para a Mansão Charlington, que, pelo que me consta, fica no meio de um parque, de um lado da estrada. Mais alguma coisa? — Nada mais, sr. Holmes, a não ser que fiquei tão perplexa, que não sosseguei enquanto não vim procurá-lo. Holmes ficou em silêncio por algum tempo. — Onde está seu noivo? — perguntou por fim. — Trabalha na Midiand Electry Company, em Coventry.
— Não iria ele lhe fazer uma visi tinha de surpresa? — Oh, sr. Holmes, como se eu não o conhecesse! — Tem tido outros admiradores? — Tive muitos, antes de conhecer Cyril. — E depois? — Há aquele odioso sr. Woodiey, se é que se pode chamar de admirador. — Ninguém mais? A nossa bela cliente pareceu confusa. — Quem é ele? — perguntou Holmes. — Oh, talvez seja imaginação minha, mas às vezes me parece que meu patrão, o sr. Carruthers, se interessa muito por mim. Estamos sempre juntos. Acompanho-o ao piano, à noite. Ele nunca disse coisa alguma. É um perfeito cavalheiro. Mas uma mulher sente essas coisas. — Ah! — disse Holmes, gravemente. — Como ele ganha a vida? — É rico. — Tem cavalos, ou carruagens? — Oh, não, em todo caso está bem de finanças. Mas vai à cidade duas ou três vezes por semana. Interessa-se bastante por ações de minas de ouro, da África do Sul. — Ponha-me a par de qualquer novidade, srta. Smith. Estou muito ocupado atualmente, mas arranjarei tempo para investigar seu caso. De qualquer maneira, não aja sem me consultar. Adeus. Espero receber boas notícias a seu respeito. A jovem saiu. — É a coisa mais natural uma jovem como essa ter admiradores — disse Holmes, puxando o cachimbo, com ar pensativo. — Mas não namorados de bicicleta, em estradas desertas. Algum apaixonado secreto, com certeza. Mas há, nesse caso, pormenores curiosos e sugestivos, Watson. — O homem aparecer só naquele lugar? — Exatamente. Nosso primeiro passo será descobrir quem mora na Mansão Charlington. Depois, qual a relação entre Carruthers e Woodiey, já que parecem tipos tão diferentes. Por que estão ambos interessados em procurar a
sobrinha de Ralph Smith? Mais uma coisa. Que espécie de casa é aquela onde se paga por uma governanta o dobro do preço habitual, mas onde não existe um cavalo, embora a casa fique a dez quilómetros da estação? Estranho, Watson, muito estranho. — Vai até lá? — Não, caro Watson, vá você. Talvez seja uma intrigazinha insignificante, e não posso largar casos mais sérios, assim na dúvida. Segunda-feira, você chegará cedo a Farnham; ficará escondido perto da charneca de Charlington; observará os fatos e agirá conforme achar acertado. Depois de ter indagado quais os moradores da mansão, voltará para me fazer seu relatório. E agora, caro Watson, nem mais uma palavra sobre o assunto até termos alguns pontos de apoio sólidos, com os quais possamos alcançar a verdade. Tínhamos sabido, pela jovem, que ela costumava apanhar o trem que parte de Waterloo às nove e cinquenta, de modo que saí mais cedo e apanhei o das nove e treze. Ao chegar à estação de Farnham, não foi difícil saber onde ficava a charneca de Charlington. Era impossível me enganar quanto ao cenário descrito pela jovem, pois a estrada corre entre a charneca aberta, de um lado, e uma velha sebe de teixos, do outro, circundando um parque cheio de árvores magníficas. Havia um portão principal, de pedra coberta de líquen, com pilares sustentando os emblemas heráldicos, mas, além dessa entrada, notei diversos vãos na sebe, de onde saíam veredas. Não se via a casa, da estrada, mas tudo lembrava tristeza e decadência. A charneca estava coberta por douradas manchas de urzes, brilhando à luz do sol primaveril. Tomei posição atrás de uma dessas moitas, de maneira a poder ver tanto o portão da mansão como um longo trecho de estrada de cada lado. Estava deserta, quando eu a deixei, mas então vi um ciclista se dirigindo para o lado de onde eu viera. Estava de roupa escura e tinha barba preta. Ao chegar ao fim dos terrenos da Mansão Charlington, desceu da bicicleta e se enfiou com ela por um dos vãos, na sebe, desaparecendo de minha vista. Um quarto de hora depois, surgiu novo ciclista. Dessa vez era a jovem, que vinha da estação. Vi-a olhar em volta, quando chegou àquele ponto. Segundos depois, o homem saiu do esconderijo, pulou para a bicicleta e seguiu a jovem. No largo cenário, apenas as figuras se moviam, a jovem graciosa, muito ereta na bicicleta, e o homem, inclinado sobre o guidão, com ar furtivo. Ela olhou para trás e diminuiu a marcha. Também ele diminuiu a sua. Ela parou. Ele parou imediatamente, ficando a duzentos metros do ponto onde se encontrava a srta. Smith. O próximo movimento da jovem foi tão inesperado quanto enérgico. De repente, virou-se e pedalou com vigor para o lado dele. Mas o homem foi igualmente rápido, fugindo num ápice. Então ela retomou seu caminho, olhando para a frente, não se dignando preocupar-se mais com seu silencioso acompanhante. Ele também se virara, guardando a distância, até que a curva da estrada o escondeu da minha vista. Fiquei no meu esconderijo. Ainda bem, pois o ciclista voltou lentamente dali a pouco. Ao chegar aos portões da mansão, desceu da bicicleta. Vi-o por
alguns minutos, no meio das árvores. Erguera as mãos e parecia ajeitar a gravata. Depois subiu de novo na bicicleta e se afastou pela alameda, na direção da mansão. Corri pelas urzes e espiei por entre as árvores. Distingui, ao longe, a velha casa cinzenta, com suas chaminés, mas a alameda corria no meio de árvores cercadas, e não vi mais nosso homem. Pareceu-me que meu trabalho da manhã fora rendoso, e voltei, satisfeito, para Farnham. O corretor de imóveis da localidade nada pôde me dizer sobre a Mansão Charlington e mandou-me procurar uma conhecida firma, em Pall Mall. Dirigi-me para ali, ao voltar a casa, e fui recebido com cortesia. Não, não podiam me alugar a Mansão Charlington durante o verão, pois acabara de ser alugada, um mês antes. Sr. Williamson, chamava-se o inquilino.. Era um senhor de idade, respeitável. Infelizmente nada mais podia informar, disse ele, pois a vida dos clientes não era assunto que pudesse discutir. Sherlock Holmes ouviu com atenção o longo relatório que lhe apresentei naquela noite, mas não recebi a palavra de elogio que esperava e à qual teria dado tanto valor. Pelo contrário, seu rosto austero ainda mais severo se tornou, quando ele comentou as coisas que eu fizera e as que deixara de fazer. — Seu esconderijo, caro Watson, deixou muito a desejar. Devia ter-se escondido atrás da sebe; dali, sim, teria podido ver de perto aquela interessante pessoa. Mas, ficando a centenas de metros de distância, pôde me contar menos ainda do que a srta. Smith. Ela julga que não conhece o homem; eu acho que ela o conhece. Do contrário, por que haveria ele de evitar a todo custo que a jovem se aproximasse e lhe visse as feições? Você diz que ele se inclinava sobre o guidão. Pois trabalhou inuito mal. Quando o homem voltou para casa, procurou saber quem ele era e, para isso, foi procurar uma firma de corretores de imóveis, em Londres! — O que devia ter feito então? — perguntei acaloradamente. — Devia ter ido à taverna mais próxima. É o centro dos falatórios. Lá lhe diriam os nomes de todos, desde o do patrão até o da criada. Williamson! Não me diz nada. Se for um senhor idoso, não pode ser o enérgico ciclista, que consegue escapar à atlética perseguição daquela jovem. Que ganhamos com nossa excursão? A certeza de que a história da jovem é verídica? Nunca duvidei dela. Que há uma relação entre o ciclista e a mansão? Também nunca duvidei disso. Que o atual morador da mansão se chama Williamson? Que adianta saber disso? Bom, bom, caro amigo, não fique tão deprimido. Pouco podemos fazer até o próximo sábado, e, nesse meio tempo, procurarei investigar, eu mesmo, um ou dois pontos. Na manhã seguinte, recebemos um bilhete da srta. Smith, contando, brevemente e com exatidão, os incidentes por mim presenciados. Mas o mais importante estava no pós-escrito: "Tenho certeza de que respeitará a minha confidência, sr. Holmes, quando lhe contar que minha posição aqui se tornou delicada, pelo fato de o meu patrão ter me pedido em casamento. Estou convencida de que seus
sentimentos são sinceros e suas intenções, as mais dignas. Por outro lado, estou noiva. Ele aceitou a minha recusa com ar muito sério, mas delicadamente. O senhor deve, no entanto, compreender que a situação é constrangedora". — Nossa amiga parece estar navegando em águas profundas — observou Holmes, pensativo, ao terminar a carta. — O caso apresenta pontos interessantes e mais possibilidades de desenvolvimento do que a princípio me pareceu. Um dia tranquilo, mi campo, não me faria mal, e estou com vontade de ir até lá hoje ã tarde, para 'experimentar uma ou duas teorias que elaborei. O calmo dia de Holmes no campo teve um fim singular, pois ele chegou tarde à Baker Street, com um lábio cortado e um galo na testa, além de estar com tal aspecto que poderia ter sido objeto de investigação da Scotiand Yard. Estava muito animado com a aventura, e riu gostosamente ao contá-la. — Faço tão pouco exercício que é sempre um prazer praticar um pouco — disse ele. — Você não ignora que sou perito no velho esporte inglês chamado boxe. De vez em quando, ajuda. Hoje, por exemplo, teria feito um triste papel e sofrido desagradáveis consequências, se não fosse o boxe. Pedi-lhe que me contasse o que acontecera. — Encontrei a taberna de que lhe falei e ali fiz perguntas discretas. Fiquei ao balcão, e o dono da taverna, sujeito loquaz, deu-me todas as informações que eu queria. Williamson é um homem de barba branca e mora na mansão, com poucos empregados. Murmura-se que é ou foi padre, mas um ou dois pormenores de sua estada na mansão me pareceram pouco eclesiásticos. Já indaguei a esse respeito no lugar competente e fiquei sabendo que houve um padre com esse nome, cuja carreira foi singularmente negra. O dono da taverna me contou que o homem sempre recebe visitas nos fins de semana (gente do barulho, senhor, disse ele), principalmente um homem de bigode ruivo, chamado Woodiey, que nunca deixa de vir. Tínhamos chegado a esse ponto, quando entra na sala. . . imagine quem?... o próprio sujeito, que estivera bebendo cerveja na saleta e ouvira a conversa toda. Quem eu era? O que queria? Que significavam aquelas perguntas? Falava fluentemente, e seus adjetivos eram vigorosos. Acabou por me dar um soco, ao qual não pude me esquivar completamente. Os minutos seguintes foram deliciosos. Mandei-lhe um direto com a esquerda. Saí no estado que vê, mas o sr. Woodiey teve de ir para casa de carro. Acabou desse modo o meu dia no campo, e devo confessar que, por mais agradável que tenha sido, não foi muito mais proveitoso do que o seu. Na quinta-feira, recebemos outra carta da srta. Smith: "Vai ficar admirado, sr. Holmes, por saber que vou deixar a casa do sr.
Carruthers. Nem mesmo o alto salário poderá compensar o constrangimento gerado pela situação. No sábado, irei para a cidade e não voltarei mais para cá. O sr. Carruthers tem agora uma charrete, de modo que o perigo na estrada, se é que houve perigo, deixou de existir. Quanto ao motivo que me leva a partir, não é tanto o pedido de casamento feito pelo sr. Carruthers, como o reaparecimento do odioso sr. Woodiev. Ele sempre foi detestável, mas agora está pior, pois parece que sofreu um acidente e está desfigurado. Vi-o pela janela, mas felizmente não nos encontramos. Ele teve uma longa conversa com o sr. Carruthers, e este depois me pareceu muito excitado. Woodiey deve estar hospedado nas redondezas, pois não ficou aqui. Apesar disso, vi-o de relance novamente, hoje de manhã, correndo furtivamente pelas moitas. Eu preferia ver um animal selvagem, solto por aí, a encontrar esse homem. Detesto-o e temo-o mais do que gostaria de confessar. Como é que o sr. Carruthers pode suportar tal criatura, por um momento que seja? Felizmente meus aborrecimentos terminarão no sábado." — Assim espero, Watson, assim espero — disse Holmes gravemente. — Há uma intriga em volta daquela jovem, e é nosso dever evitar que a incomodem nessa última viagem. Acho que devemos ir ambos para lá no sábado, para que esta curiosa investigação não tenha um fim desagradável. Confesso que, até então, eu não levara o caso a sério, pois me parecera mais bizarro e grotesco do que perigoso. Que um homem espere uma bela donzela e a siga, não é novidade em parte alguma, mas o fato de nunca procurá-la e mesmo fugir à sua aproximação indicava que não era adversário muito perigoso. Quanto a Woodiey, o caso era diferente, mas, a não ser numa ocasião, não importunara a nossa cliente, e agora visitava Carruthers sem impor à jovem a sua presença. O homem de bicicleta era, sem dúvida, um dos membros das reuniões dos fins de semana de que falara o taverneiro. Mas é impossível saber quem era ou o que desejava. Somente a seriedade de Holmes e o fato de meter um revólver no bolso me indicaram que o caso poderia terminar em tragédia. Uma noite de chuva fora seguida por uma bela manhã, e os campos de urzes pareciam ainda mais belos aos olhos de quem estava habituado aos tons cinzentos da velha Londres. Holmes e eu caminhamos pela estrada larga, respirando o ar fresco da manhã e ouvindo o chilrear dos pássaros. De uma elevação da estrada, vimos a mansão no meio de velhos carvalhos, os quais, por mais velhos que fossem, eram mais novos do que a casa que circundavam. Holmes mostrou-me a grande extensão da estrada. Ao longe, vimos uma mancha preta, parecendo um veículo que vinha na nossa direção. Holmes soltou uma exclamação de impaciência. — Eu tinha dado uma margem de meia hora — disse ele. — Se for a charrete da jovem, é porque vai apanhar o trem mais cedo. Receio, caro Watson, que ela passe por Charlington antes que possamos apanhá-la. Depois de termos passado a elevação, não vimos mais o veículo, mas caminhamos com tal rapidez, que comecei a notar os efeitos da minha vida sedentária e tive de ficar para trás. Mas Holmes estava sempre treinado e tinha
uma reserva inesgotável de energia. Seu passo vivo não se abrandou. De repente, quando se encontrava cem metros à minha frente, parou, erguendo a mão num gesto de desespero. No mesmo momento, uma charrete vazia, com o cavalo a meio galope, de rédeas soltas, apareceu na curva, vindo na nossa direção. — Tarde demais, Watson, tarde demais! — disse Holmes, enquanto eu corria, ofegante, para o seu lado. — Idiota que fui, em não ter pensado num trem mais cedo! Houve um rapto! Assassinato, Deus sabe o quê! Bloqueie a estrada, pare o cavalo! Isso mesmo. Agora pule, e vamos ver se consigo reparar o meu erro. Pulamos para a charrete. Depois de fazer o cavalo virar, Holmes chicoteou-o, e continuamos pela estrada. Quando fizemos a curva, vimos à nossa frente a vasta extensão de estrada entre a mansão e a charneca. Segurei o braço de Holmes. — Lá está o homem! — exclamei. Um ciclista solitário vinha na nossa direção. Estava de cabeça baixa, com os ombros para a frente, pondo nos pedais toda a força que possuía. Voava como um corredor. De repente, ergueu o rosto de barba cerrada e parou, saltando da bicicleta. A barba negra contrastava singularmente com a palidez do rosto, e os olhos brilhavam como se tivesse febre. — Ei, parem! — gritou, obstruindo a estrada com a bicicleta. — Onde arranjaram essa charrete? Pare, homem! — berrou, tirando um revólver do bolso. — Pare, ou, por Deus, meto uma bala no cavalo! Holmes atirou-me as rédeas e desceu. — Você é o homem que desejamos ver. Onde está a srta. Violet Smith? — perguntou, com sua voz clara, incisiva. — É o que lhe pergunto. Estão na charrete dela. Devem saber onde ela está. — Encontramos a charrete na estrada, vazia. Estava tentando salvá-la. — Deus do céu, Deus do céu! Que fazer? — exclamou o homem, desesperado. — Agarraram-na. O miserável Woodiey e o pseudo padre. Venha, venha, se realmente é amigo dela. Fique comigo, e nós a salvaremos, mesmo que meu cadáver fique no parque de Charlington. Correu como um desesperado, de revólver em punho. Holmes seguiu-o. Deixando o cavalo pastando do lado da estrada, acompanhei meu amigo. — Foi por aqui que entraram — disse ele, mostrando as pegadas no caminho enlameado. — Ei! Pare um minuto. Que é isto aqui na moita?
Vimos um rapaz de polainas, de dezessete anos, mais ou menos. Estava de costas, com os joelhos para cima, com um ferimento na cabeça. Inconsciente, mas vivo. Ao examinar o corte, vi que o osso não fora atingido. — É Peter, o empregado — disse o desconhecido. — Era quem guiava a charrete. Os miseráveis o puxaram para fora, ferindo-o. Vamos deixá-lo aqui. Por enquanto, nada podemos fazer por ele, mas talvez tenhamos tempo de salvá-la da pior sorte que pode ter uma mulher! Corremos desesperadamente pela vereda, que se insinuava por entre as árvores. Chegamos às moitas que circundavam a casa. Holmes parou. — Não foram para casa. Aqui estão as marcas, à esquerda, ao lado dos loureiros. Ah, eu bem disse! Nisso ouvimos um agudo grito de mulher, grito horrorizado, saindo da moita à nossa frente. Mas cessou subitamente, como se a pessoa se engasgasse. — Por aqui, por aqui!... Estão na clareira — disse o desconhecido, metendo-se pelas moitas. — Ah, os covardes! Sigam-me, senhores. Tarde demais, tarde demais, por todos os deuses! Entramos de repente num belo gramado, cercado por árvores velhas. Na extremidade, à sombra de um grande carvalho, havia um singular grupo de três pessoas. Uma mulher, a nossa cliente, pálida e a ponto de desmaiar, amordaçada. Â sua frente, um rapaz de aparência selvagem, bigode ruivo, pernas entreabertas, um braço erguido, segurando um chicote com a outra mão, numa atitude de triunfante desafio. Entre eles, um homem idoso, de barba grisalha, com uma sobrepeliz sobre um terno leve de casimira, acabara evidentemente de celebrar um casamento, pois enfiava no bolso o livro de orações quando surgimos, e bateu nas costas do sinistro noivo, felicitando-o jovialmente. — Estão casados! — murmurei. — Venham — disse nosso guia. — Venham! Correu pelo gramado, com Holmes e eu no seu encalço. Quando nos aproximamos, a jovem cambaleou, procurando apoiar-se no tronco da árvore. Williamson, o ex-padre, inclinou-se diante de nós com irónica cortesia, e o brutal Woodiey avançou com um grito de selvagem alegria. — Pode tirar a barba, Bob — disse ele, — Reconheço-o muito bem. Você e seus amigos chegaram a tempo de me permitir que os apresente à sra.
Woodiey. A resposta de nosso guia foi singular. Arrancou a barba que lhe servira de disfarce e atirou-a ao chão, deixando-nos ver um rosto comprido, pálido e bembarbeado. Ergueu o revólver, apontando-o para o miserável Woodiey, que avançava agitando o perigoso chicote. — Sim, sou Bob Carruthers e farei com que esta mulher obtenha justiça, nem que eu vá para a forca. Eu lhe disse o que faria se a incomodasse, e, por Deus, cumprirei minha palavra. — Chegou tarde demais. Ela é minha esposa! — Não, é sua viúva. O revólver estalou, e vi sair sangue do peito de Woodley, que soltou um grito, deu uma reviravolta e caiu de costas, com o rosto terrivelmente pálido. O velho, ainda de sobrepeliz, rompeu numa torrente de maldições como jamais ouvi, e puxou um revólver. Mas, antes que pudesse erguê-lo, viu o revólver de Holmes apontado para ele. — Basta! — disse Holmes. — Largue essa arma! Watson, apanhe-a! Aponte-a para a cabeça do sujeito. Você, Carruthers, dême esse revólver. Basta de violência. Vamos, dê-me!... — Quem é o senhor, então? — Chamo-me Sherlock Holmes. — Deus de piedade! — Vejo que me conhece de nome. Representarei a polícia oficial, até que ela chegue. Aqui, você! — gritou para o assustado empregado que aparecia à beira do gramado. — Leve este bilhete o mais depressa possível a Farnham. Holmes rabiscou umas palavras no caderno de notas. — Entregue isto ao superintendente, na delegacia. Até que ele venha, vejo-me obrigado a mante-los presos. A personalidade forte de Holmes dominava a trágica cena. Éramos todos como bonecos nas suas mãos. Williamson e Carruthers levaram para dentro de casa o ferido, e eu dei o braço à assustada jovem. O ferido foi colocado na cama. A pedido de Holmes, examinei-o. Fui depois contar a meu amigo o resultado, na velha sala de jantar cheia de tapeçarias, onde o encontrei com os dois prisioneiros à sua frente.
— O homem viverá — disse eu. — O quê! — exclamou Carruthers, pulando da cadeira. — Vou lá em cima acabar com ele. Quer dizer que aquela jovem, aquele anjo, vai ficar amarrada ao turbulento Jack Woodiey para o resto da vida? — Não precisa se preocupar com isso — disse Holmes. — Há duas razões que a impedem de ser esposa daquele miserável. Em primeiro lugar, creio que podemos contestar o direito do sr. Williamson de celebrar o casamento. — Recebi ordens sacras — disse o canalha. — E foi, depois, expulso — declarou Holmes. — Uma vez padre, continua-se padre. — Creio que não. E que me diz da licença? — Tínhamos tirado uma licença de casamento. Está aqui no meu bolso. — Então, conseguiu-a por fraude. De qualquer maneira, um casamento onde houve coação não é válido: é, sim, um crime sério, como você não tardará em descobrir. Terá tempo de refletir sobre isso nos próximos dez anos, se não me engano. Quanto a você, Carruthers, teria sido melhor se tivesse conservado o revólver no bolso. — Começo a achar que tem razão, sr. Holmes, mas, quando pensei no cuidado que tivera para proteger a jovem (pois eu a amava, sr. Holmes, e pela primeira vez soube o que era amor), fiquei louco, lembrando-me de que ela estava à mercê do maior bruto e canalha da África do Sul, homem cujo nome inspira terror de Kimberley a Johannesburg. O senhor talvez não acredite, sr. Holmes, mas desde que a jovem veio trabalhar em minha casa, nunca a deixei passar por aqui, onde sabia que esses bandidos a espreitavam, sem a seguir na minha bicicleta, para protegê-la. Usando barba postiça, ficava longe, para que não me reconhecesse, pois ela é uma moça decidida e não teria ficado no emprego se soubesse que eu a seguia pelas estradas. — Por que não lhe falou do perigo? — Porque ela me abandonaria, e eu não podia suportar tal ideia. Mesmo que não me amasse, era-me um prazer ver aquela figurinha bonita pela casa e ouvir o som de sua voz. — Pois bem, o senhor chama a isso amor, mas eu o considero egoísmo, sr. Carruthers — observei. — Talvez as duas coisas. De qualquer maneira, não pude deixá-la partir. Além do mais, com esses homens por aqui, era preciso que alguém velasse por ela. Depois, quando chegou o cabograma, tive certeza de que agiriam.
— Que cabograma? Carruthers tirou um papel do bolso. — Aqui está! O velho morreu. — Hum!... — disse Holmes. — Creio que agora vejo claramente a situação, e compreendo que essa mensagem tenha feito com que agissem, como você disse. Mas, enquanto esperamos, pode me contar o que sucedeu. O velho de sobrepeliz rompeu de novo numa torrente de palavras. — Com os diabos, Carruthers, se nos acusar, farei com você o que você fez a Woodiey! Pode se babar pela moça à vontade, isso é lá com você, mas, se acusar seus companheiros, fará a maior asneira de sua vida. — Vossa Reverendíssima não precisa ficar excitado — disse Holmes, acendendo um cigarro. — O caso é claro, e só peço explicações para satisfazer a minha curiosidade. Em todo caso, se não quiserem me contar, fica o discurso por minha conta, e verão que probabilidades tê.m de me ocultar os seus segredos. Em primeiro lugar, os três chegaram da África: você, Williamson; você, Carruthers; e Woodiey. — Primeira mentira — vociferou o velho. — Eu não conhecia esses sujeitos, há dois meses, e nunca estive na África, de modo que pode engolir essa, seu intrometido! — Ele está dizendo a verdade — declarou Carruthers. — Bom, bom, então vieram só dois. O reverendo é artigo nacional. Vocês tinham conhecido Ralph Smith na África. Sabiam que não viveria muito. Descobriram que sua sobrinha lhe herdaria a fortuna. Que tal, hein?... Carruthers inclinou afirmativamente a cabeça, e o velho blasfemou. — Ela era o parente mais próximo, e vocês sabiam que ele não faria testamento — continuou Holmes. — Não sabia ler nem escrever — informou Carruthers. — Então, vocês dois vieram para cá e procuraram a jovem. Â ideia era que um de vocês casasse com ela e o outro teria parte do dinheiro. Por um motivo qualquer, Woodiey foi escolhido para noivo. Que tal? — Isso mesmo. Jogamos a bordo, e ele ganhou. — Compreendo. Você tomou a jovem á seu serviço, e Woodiey devia cortejá-la em sua casa. A srta. Smith viu que bêbado brutal ele era, e não quis saber de nada. Nesse meio tempo, seus planos foram por água abaixo, pelo fato de
você se apaixonar por ela. Não lhe foi mais possível suportar a ideia de vê-la nas mãos daquele canalha. — Por todos os santos, foi isso mesmo! — Brigaram. Ele saiu, furioso, e fez seus próprios planos. — Parece-me, Williamson, que não temos muito que contar a esse cavalheiro — disse Carruthers, com um riso amargo. — Sim, brigamos, e ele me derrubou. Estamos quites, nesse ponto. Depois, perdi-o de vista. Foi quando ele se ligou a esse padre decaído. Descobri que moravam juntos nesta casa, na estrada por onde ela devia passar para ir para a estação. Comecei a zelar pela jovem, pois sabia que eles preparavam algum ato diabólico. Visitava-os de vez em quando, pois estava ansioso por saber quais eram seus planos. Há dois dias, Woodiey me apareceu em casa com este cabograma, onde se lia que Ralph Smith falecera. Quis saber se eu estava disposto a continuar com o nosso antigo plano. Respondi que não. Perguntou-me se eu queria me casar com a jovem e darlhe uma parte do dinheiro. Respondi que o faria com prazer, mas que ela não me aceitaria. Ele replicou: "Vamos fazer com que se case primeiro, e, depois de uma semana, ela verá as coisas sob outro prisma". Respondi que não queria saber de violências. Ele saiu blasfemando, como homem sem moral que é, jurando que a possuiria. A srta. Smith ia me deixar esta semana definitivamente. Eu tinha uma charrete para levá-la à estação, mas estava tão preocupado que a acompanhei de bicicleta. Contudo, a jovem saíra mais cedo, e, antes que eu pudesse alcançála, o mal estava feito. O primeiro aviso foi ver os senhores aparecerem na charrete. Holmes ergueu-se, atirando a ponta do cigarro na lareira. — Fui muito obtuso, Watson — disse ele. — Quando você me disse que viu o ciclista arrumar a gravata, ao entrar na moita, só esse pormenor devia ter-me esclarecido tudo. De qualquer maneira, devemos nos congratular por este caso curioso e, sob certos aspectos, único. Vejo três policiais na alameda, e estou satisfeito por ver que o rapazinho consegue acompanhar-lhes o passo, de modo que parece que nem ele nem o suposto noivo ficarão permanentemente prejudicados pela aventura desta manhã. Creio que, como médico, Watson, você poderá procurar a srta. Smith e dizer-lhe que, se se sentir bem, estamos prontos a levá-la para a casa de sua mãe. Se achar que ela não está bem, poderá lhe dizer que pretendemos telegrafar para certo engenheiro eletrônico nas Middiands, e isso provavelmente completará a sua cura. Quanto ao senhor, sr. Carruthers, creio que fez o possível para se reabilitar de sua participação num plano diabólico. Aqui está o meu cartão, cavalheiro, e, se
meu depoimento puder ajudá-lo, no tribunal, estarei à sua disposição. No torvelinho das nossas atividades, muitas vezes tem sido difícil para mim, como o leitor provavelmente já observou, terminar minhas narrativas e apresentar os pormenores finais que os curiosos poderiam desejar. Cada caso tem sido o prelúdio de outro, e, uma vez passada a crise, os atores desaparecem para sempre da nossa vida. Apesar disso, encontro uma pequena anotação, no fim do manuscrito deste caso, onde leio que a srta. Violet Smith herdou uma grande fortuna e é agora esposa de Cyril Morton, o maior sócio da firma Morton and Kennedy, famosos eletricistas. Williamson e Woodiey foram julgados por rapto e assalto, o primeiro tendo sido condenado a sete anos e o último, a dez. Quanto ao destino do sr. Carruthers, nada sei, mas tenho certeza de que a sua participação no caso não foi vista com grande severidade pelo tribunal, uma vez que Woodiey tinha a reputação de ser um perigoso bandido. Creio que alguns meses bastaram para satisfazer a justiça.
Sherlock Holmes em: A escola do priorado Por Sir Arthur Conan Doyle
PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
Em nosso pequeno palco, na Baker Street, temos tido dramáticas entradas e saídas, mas não posso me lembrar de nada mais súbito e surpreendente do que a primeira aparição do dr. Thorneycroft Huxtable, M. A., Ph. D., etc. O cartão, que parecia pequeno demais para conter a lista de seus diplomas, precedeu-o de alguns segundos. Depois, entrou o homem: tão grande, tão pomposo, tão digno, que era a personificação da solidez. Apesar disso, seu primeiro gesto, depois de fechar a porta, foi apoiar-se à mesa, cambaleante. No minuto seguinte, escorregou para o chão, e lá ficou a majestosa figura, estendida, inconsciente, no nosso tapete de pele de urso. Tínhamo-nos levantado de um salto e, por segundos, ficamos olhando, em silencioso espanto, para aquele náufrago, que nos falava de alguma tempestade fatal no mar da vida. Depois, Holmes correu com uma almofada, que colocou sob a cabeça do homem, e eu com um cálice de conhaque, para reanimá-lo. O rosto pálido tinha rugas causadas pela preocupação, sob os olhos havia círculos escuros, a boca descaía dolorosamente nos cantos, o rosto estava de barba por fazer. A camisa e o colarinho apresentavam vestígios de uma longa viagem, e os cabelos estavam em desalinho, na cabeça bemfeita. O homem a nossos pés era uma criatura ferida pelo destino. — Que me diz, Watson? — perguntou-me Holmes. — Completa exaustão... talvez apenas fome e cansaço — respondi, segurando o pulso, onde a vida se fazia sentir debilmente. — Passagem de regresso para Mackleton, no norte da Inglaterra — disse Holmes, tirando-lhe o bilhete do bolso do colete. — Ainda não é meio-dia. Não há dúvida de que partiu cedo. As pálpebras inchadas tinham começado a estremecer, e agora uns olhos cinzentos, de expressão vazia, fitavam-nos. No momento seguinte, o homem pôs-se de pé, rubro de vergonha. — Perdoe-me a fraqueza, sr. Holmes; ando esgotado. Muito obrigado. Se me derem um copo de leite e um biscoito, creio que me sentirei melhor. Vim pessoalmente, sr. Holmes, para lhe pedir que volte comigo. Receei que um telegrama, por mais insistente que fosse, não o convencesse da urgência do caso. — Depois que estiver melhor. — Estou bem. Não sei como pude sentir tal fraqueza. Desejo que me acompanhe a Mackleton no próximo trem, sr. Holmes.
Meu amigo sacudiu a cabeça. — Meu colega, o dr. Watson, poderá dizer-lhe que estamos muito ocupados presentemente. Estou trabalhando no caso dos Documentos Ferrers e no assassinato de Abergavenny, que em breve irá a julgamento. Somente um assunto muito grave me afastaria de Londres nesta altura. — Grave! — exclamou nosso visitante, atirando as mãos para o ar. — Não ouviu falar do rapto do único filho do duque de Holdernesse? — O quê? O ministro? — Exatamente. Procuramos manter o fato fora dos jornais, mas houve uma alusão no Globe, ontem à noite. Pensei que talvez tivesse chegado aos seus ouvidos. Holmes estendeu o braço longo e magro e apanhou o volume "H" de sua enciclopédia particular. — "Holdernesse, sexto duque, K. G., P. C." Quase metade do alfabeto...! “Barão Beverley, conde de Garston”... Deus do céu, que lista! "Lorde-tenente de Hallamshire desde 1900. Casou-se com Edith, filha de Sir Charles Appiedore, em 1888. Tem um único filho e herdeiro, Lorde Saltire. Dono de duzentos e cinquenta acres. Minas em Lancashire e Gales. Endereço: Carlton Terrace; Holdernesse Hall, em Hallamshire; Castelo Carston, em Bangor, Gales. Lorde do Almirantado, 1872; secretário-chefe de...” Bom, bom, não há dúvida de que este homem é um dos maiores súditos da coroa! — O maior e talvez o mais rico. Sei, sr. Holmes, que o senhor é muito digno, quando se trata da profissão, e que está sempre pronto a trabalhar por amor ao trabalho. Mas quero dizer-lhe que Sua Graça já declarou que um cheque de cinco mil libras será entregue à pessoa que lhe disser onde está seu filho, e mais um de mil, para aquele que indicar o nome ou os nomes das pessoas que o raptaram. — Oferta principesca — declarou Holmes. — Watson, creio que acompanharemos o dr. Huxtable ao norte da Inglaterra. E agora, dr. Huxtable, depois de ter tomado o seu leite, peço-lhe que me conte o que aconteceu, quando e como, e o que tem o senhor, dr. Thorneycroft Huxtable, da Escola do Priorado, perto de Mackleton, a ver com o caso, e por que vem, três dias após o acontecimento (percebo-o pelo estado da sua barba), pedir a minha humilde colaboração. Nosso visitante tinha tomado o leite e os biscoitos. Voltara-lhe o brilho aos olhos e a cor às faces, e começou a explicar a situação, com vigor e lucidez. — Quero informá-los, senhores, de que a Escola do Priorado é uma escola preparatória, da qual sou fundador e diretor. Meu livro Huxtable's sidelights on Horace talvez faça com que se lembre do meu nome. A escola é, sem dúvida, a melhor e a mais seleta escola preparatória da Inglaterra. Lorde Leverstoke, o
conde de Blackwater, Sir Cathcart Soames — todos eles me confiaram os seus filhos. Mas achei que minha escola chegara ao apogeu quando, há três semanas, o duque de Holdernesse mandou seu secretário, sr. James Wilder, avisar-me que Lorde Saltire, de dez anos de idade, seu filho e herdeiro, me seria confiado. Mal sabia eu que isto seria o prelúdio do maior infortúnio de minha vida. "O menino chegou no dia 1.° de maio, começo das aulas de verão. Era um menino encantador, que logo se habituou às normas do internato. Creio poder dizer-lhes (espero não estar sendo indiscreto, mas num caso como este é necessário falar com absoluta franqueza) que o menino não era muito feliz em casa. Ninguém ignora que a vida matrimonial do duque não foi das mais venturosas, pois terminou em separação, por consentimento mútuo, tendo a duquesa ido residir no sul da França. Havia pouco tempo que isso acontecera, e era sabido que o menino se inclinava para o lado da mãe. Parece que ficou triste, após sua partida de Holdernesse Hall, e foi por esse motivo que o pai resolveu mandá-lo para minha escola. Depois de quinze dias, o menino já se sentia completamente à vontade, parecendo muito feliz em nossa companhia. "Foi visto pela última vez na noite de 13 de maio, isto é, na última segundafeira. Seu quarto ficava no segundo andar, ao qual se tinha acesso por outro quarto maior, onde dormiam dois meninos. Estes nada viram ou ouviram, de modo que calculamos que o jovem Saltire não tenha saído por lá. Sua ausência foi notada às sete da manhã, na terça-feira. A cama estava desfeita e a janela aberta; pelas paredes da casa cresce hera, desde o chão até esta altura. Não vimos vestígio algum, mas não há outra saída. Ele se vestira completamente, e saíra com sua jaqueta preta de Eton e calças cinza. Não havia sinais de alguém ter entrado no quarto, e não há dúvida de que gritos ou luta teriam sido ouvidos, uma vez que Caunter, o menino mais velho, que dorme no quarto contíguo, tem um sono muito leve. "Quando verifiquei que Lorde Saltire havia desaparecido, chamei todo o estabelecimento, alunos, professores e criados. Foi então que verificamos que Lorde Saltire não era o único desaparecido. Sentimos a falta de Heidegger, professor de alemão. O quarto dele ficava no segundo andar, na extremidade oposta do prédio, e dava para o mesmo lado que o de Saltire. Também sua cama estava desfeita, mas aparentemente ele saíra meio vestido apenas, pois encontramos sua camisa e suas meias no chão. Deve ter descido pela hera, pois vimos as marcas de seus pés quando caiu na grama. Sua bicicleta desaparecera. "Trabalhava comigo há dois anos, tendo trazido as melhores referências, mas era um homem silencioso, soturno, não muito popular entre alunos e professores. Não encontramos sinal dos fugitivos, e hoje, quinta-feira, estamos na mesma ignorância de terça. Claro que mandamos imediatamente indagar em Holdernesse Hall, que fica apenas a alguns quilômetros de distância. Imaginamos que o menino, ao se sentir subitamente indisposto, tivesse ido procurar o pai, mas lá não sabiam de coisa alguma. O duque está muito preocupado. Quanto a mim, os senhores viram a que estado de nervosismo e prostração me vi reduzido pela expectativa, e pelo senso de responsabilidade.
Sr. Holmes, se algum dia usou ao máximo seus dons, suplico-lhe que o faça agora, pois dificilmente terá encontrado caso mais digno deles." Sherlock Holmes ouvira, com a máxima atenção, as palavras do infeliz mestre-escola. Sua expressão séria mostrava que não precisava que o incitassem a concentrar a atenção num problema que, além dos grandes interesses em jogo, devia apelar para seu amor ao complexo e ao incomum. Tirou o caderno de notas e tomou um ou dois apontamentos. — Fez muito mal em não me procurar mais cedo — disse severamente. — Faz-me começar a investigação com uma grande desvantagem. É incrível que a hera, por exemplo, não revelasse coisa alguma para um perito. — A culpa não é minha, sr. Holmes. Sua Graça desejava que não houvesse escândalo. Receava que a desventura da família fosse exposta ao público. Tem horror a essas coisas. — Mas houve investigação oficial? — Sim, senhor, e foi decepcionante. Foi obtido um indício, imediatamente, pois viram um menino e um homem apanharem o primeiro trem, numa estação vizinha. Ontem à noite, soubemos que os dois tinham sido procurados em Liverpool, mas ficou provado que nada tinham a ver com o caso. Foi aí que, desesperado, após uma noite de insônia, vim procurá-lo, pelo primeiro trem. — Com certeza a investigação local foi desprezada, enquanto seguiam a pista falsa. — Foi abandonada por completo. — Então temos três dias perdidos. O caso foi tratado de maneira deplorável. — Sinto isso e reconheço-o. — Apesar de tudo, é possível encontrar uma solução. Terei muito prazer em aceitar o caso. Conseguiu estabelecer relação entre o menino e o professor de alemão? — Nenhuma. — Era aluno desse professor? — Não, e nunca trocaram uma palavra, ao que sabemos. — É estranho... O menino tinha bicicleta? — Não. — Desapareceu mais alguma?
— Não. — Tem certeza? — perguntou Holmes. — Absoluta. — Mas o senhor não supõe que o alemão tenha saído no meio da noite, de bicicleta, com o menino nos braços, não? — Claro que não. — Então qual é sua teoria? — Talvez a bicicleta tenha sido usada como pista falsa. Talvez esteja em algum lugar, tendo eles partido a pé. — Exatamente. Mas teria sido uma artimanha absurda, não acha? Havia outras bicicletas guardadas? — Várias. — Não teriam escondido duas, se quisessem dar a impressão de que tinham partido de bicicleta? — Creio que sim. — Claro que sim. A teoria da pista falsa não serve. Mas o incidente é um admirável ponto de partida para a investigação. Afinal de contas, uma bicicleta não é coisa fácil de se ocultar ou destruir. Outra pergunta. Alguém veio visitar o menino, no dia do seu desaparecimento? — Não. — Recebeu cartas? — Recebeu uma. — De quem? — Do pai. — O senhor abre as cartas dos alunos? — Não. — Como sabe que era do pai? — Havia o brasão no envelope, e o endereço fora escrito na letra característica, dura, do duque. Além disso, o duque se lembra de lhe ter
escrito. — Quando recebera o menino outra carta, antes dessa? — Dias antes. — Chegou alguma da França? — Não; nunca. — Naturalmente o senhor sabe aonde quero chegar. Ou o menino foi levado à força, ou foi de livre vontade. Neste último caso, é de supor que seria preciso algum incitamento de fora, para fazer com que um menino dessa idade agisse assim. Se não recebeu nenhuma visita, esse incitamento deve ter vindo por carta. Por isso procuro saber quem lhe escreveu. — Creio que não posso ajudá-lo muito. Pelo que sei, somente o pai lhe escrevia. — E escreveu-lhe no dia do desaparecimento. As relações entre pai e filho eram afetuosas? — O duque não é afetuoso com ninguém. Está completamente submerso nos negócios públicos, e imune às emoções comuns. Mas, à sua maneira, sempre foi bom para o menino. — Mas este estava do lado da mãe? — Estava. — Ele disse isso? — Não. — Foi o duque então? — Santo Deus, não! — Então como é que sabe? — Tive uma conversa particular com o secretário, sr. James Wilder. Foi quem me deu as informações a respeito dos sentimentos de Lorde Saltire. — Está certo. Por falar nisso, a última carta do duque... foi encontrada no quarto do menino, depois que ele partiu? — Não. Deve tê-la levado consigo. Creio, sr. Holmes, que está na hora de partirmos para a estação. — Vou mandar chamar um carro. Dentro de um quarto de hora estaremos às
suas ordens. Se telegrafar para casa, sr. Huxtable, é bom que a vizinhança pense que as investigações continuam em Liverpool, ou onde estiverem seus homens. Nesse meio tempo, trabalharei tranqüilamente na escola. Talvez a pista não esteja tão fraca, a ponto de dois cães de caça, como Watson e eu, nada poderem farejar. Encontramo-nos nessa noite no clima frio e excitante de Peak, onde ficava a famosa escola. Estava escuro quando lá chegamos. Havia um cartão na mesa, e o mordomo murmurou qualquer coisa para o patrão, que se voltou para nós muito agitado. — O duque está aqui — disse ele. — O duque e o sr. Wilder estão no meu escritório. Venham, senhores, vou apresentá-los a eles. Eu, naturalmente, conhecia o grande estadista, de fotografia, mas o homem era diferente. Alto e imponente, vestido com esmero, de rosto fino e abatido, nariz grotescamente curvo e longo. Sua pele era extraordinariamente pálida, contrastando com a barba ruiva, que descia até o colete, por entre os fios do qual brilhava a corrente do relógio. Era essa a augusta personagem que nos olhava duramente, de pé, sobre o tapete do dr. Huxtable. A seu lado, um rapaz que tomei como sendo Wilder, o secretário particular. Era baixo, nervoso, alerta, com inteligentes olhos azuis. Foi ele quem, em tom positivo e claro, iniciou a conversa. — Vim vê-lo hoje de manhã, dr. Huxtable, tarde demais para impedir sua ida a Londres. Fiquei sabendo que sua intenção era convidar o sr. Sherlock Holmes para investigar o caso. Sua Graça ficou admirado, dr. Huxtable, pelo fato de o senhor ter tomado tal iniciativa sem consultá-lo. — Quando soube que a polícia fracassara... — Sua Graça não está de forma nenhuma convencido de que a polícia tenha fracassado. — Mas, enfim, sr. Wilder... — O senhor sabe perfeitamente que Sua Graça deseja evitar um escândalo. Prefere que o mínimo possível de pessoas tomem conhecimento do caso. — O remédio é fácil — disse o abatido professor. — O sr. Holmes poderá voltar para Londres, pelo trem da manhã. — Nada disso, doutor, nada disso — disse Holmes, no seu tom mais suave. — O ar do norte é revigorante e agradável, de modo que pretendo passar uns dias aqui, da melhor maneira possível. Se terei o abrigo da sua casa, ou da estalagem da vila, é coisa que o senhor decidirá.
Vi que o pobre professor estava no auge da indecisão, mas foi socorrido pela profunda e sonora voz do duque de barba ruiva, que soou como um gongo. — Concordo com o sr. Wilder, dr. Huxtable, quando diz que eu devia ter sido consultado. Mas, já que o sr. Holmes foi inteirado do caso, seria absurdo não utilizarmos seus serviços. Em vez de ir para a estalagem, sr. Holmes, eu teria prazer em hospedá-lo em Holdernesse Hall. — Agradeço a Vossa Graça. Mas, para o sucesso de minha investigação, acho que será acertado eu permanecer na cena do mistério. — Como quiser, sr. Holmes. Qualquer informação que desejar de mim ou do sr. Wilder estará, é claro, à sua disposição. — Será, provavelmente, necessário visitá-lo na mansão — disse Holmes. — Só desejo lhe perguntar agora se tem, pessoalmente, alguma teoria a respeito do misterioso desaparecimento de seu filho. — Não, senhor, não tenho. — Perdoe-me aludir a algo que lhe deve ser penoso, mas não tenho outra alternativa. Acha que a duquesa tem alguma relação com o caso? O ministro mostrou certa hesitação. — Não creio — respondeu finalmente. — Outra possibilidade é o menino ter sido raptado, para efeito de resgate. Não recebeu nenhum pedido nesse sentido? — Não, senhor. — Mais uma pergunta. Ouvi dizer que escreveu a seu filho, no dia do ocorrido. — Não; escrevi na véspera. — Exatamente. Mas ele recebeu a carta no dia, não? — Recebeu. — Havia em sua carta alguma coisa que pudesse perturbá-lo e levá-lo a dar tal passo? — Não, senhor, de forma nenhuma. — O senhor mesmo pôs a carta no correio? A resposta foi dada pelo secretário, que falou acaloradamente. — Sua Graça não tem o hábito de levar suas cartas ao correio — disse ele. —
A carta foi colocada junto com as outras, na mesa do escritório, e eu mesmo a coloquei na sacola do correio. — Tem certeza de que estava no meio das outras? — Sim. — Quantas cartas escreveu Sua Graça naquele dia? Desta vez foi o duque quem respondeu. — Vinte ou trinta." Mantenho vasta correspondência. Mas, certamente, isto é sem importância, não? — Não de todo — declarou Holmes. — De minha parte, aconselhei a polícia a dedicar sua atenção ao sul da França — informou o duque. — Já disse que não acredito que a duquesa tenha participação em ato tão monstruoso, mas o menino tem idéias errôneas, e é possível que tenha ido procurá-la, ajudado por esse alemão. Creio, sr. Huxtable, que vamos regressar à mansão. Vi que Holmes não tinha mais perguntas a formular, mas a atitude brusca do duque indicou que dava a entrevista por terminada. Não havia dúvida de que aquela conversa sobre assuntos de família desagradava sumamente à sua natureza aristocrática, e ele temia que novas perguntas lançassem luz sobre os pontos obscuros de sua história ducal. Depois que o duque e o secretário partiram, Holmes atirou-se ao trabalho, com o zelo habitual. O quarto do menino foi examinado cuidadosamente, mas nada nos revelou, a não ser que a fuga se dera pela janela. O quarto do alemão também nada nos esclareceu. Ali, um ramo de hera se quebrara sob o peso do homem, e vimos com uma lanterna a marca dos saltos onde ele caíra. Aquela marca na grama era a única prova material da inexplicável fuga noturna. Sherlock Holmes saiu de casa sozinho, e só voltou depois das onze horas. Conseguira um vasto mapa da região. Levou-o para o meu quarto e estendeu-o na cama. Equilibrando o candeeiro no centro, começou a examiná-lo, mostrando de vez em quando, com a boquilha do cachimbo pontos de interesse. — O caso me interessa, Watson — disse ele. — Há, sem dúvida, alguns pontos interessantes. Mesmo no início, quero que note a topografia, que poderá nos ser útil. Holmes fez uma pausa. — Olhe para este mapa. O quadrado escuro indica a escola. Ponho aqui um
alfinete. Esta linha indica a estrada. Veja que vai de leste para oeste, passando pela escola, e note que não há atalhos, numa extensão de um quilômetro e meio, nem de um lado nem de outro. Se os dois seguiram por alguma estrada, foi por esta aqui. — Exatamente.
— Por uma feliz e singular coincidência, podemos verificar o que se passou nesta estrada, na noite da fuga. Neste ponto, onde o meu cachimbo descansa, um policial esteve de guarda da meia-noite às seis da manhã. Como vê, é a primeira encruzilhada, a leste. O homem garante que não se afastou um instante de seu posto e tem certeza de não ter visto homem ou criança passar por ali. Conversei com ele e parece-me pessoa de absoluta confiança. Isso exclui este lado. Temos agora o outro. Há aqui uma estalagem, Touro Vermelho, e sua proprietária estava doente. Ela mandara alguém a Mackleton chamar um médico, mas este chegou de manhã, pois estava ocupado com outro caso. O pessoal da estalagem ficou acordado a noite toda à espera, e parece que esteve sempre uma ou outra pessoa vigiando a estrada. Declaram que não passou ninguém. Se pudermos acreditar nisso, temos a sorte de poder também excluir o lado oeste e dizer que os fugitivos não se serviram da estrada. — Mas, e a bicicleta? — perguntei. — Exatamente. Já chegaremos à bicicleta. Continuando o nosso raciocínio: se eles não foram pela estrada, devem ter atravessado o campo, ao norte ou ao sul da casa. Isso é certo. Vamos analisar as hipóteses. Ao sul da casa existe, como você vê, um grande trecho de terra de lavoura, dividida em pequenos campos, separados por muros de pedra. Aqui é impossível admitir-se a hipótese da bicicleta. Podemos abandonar a idéia. Voltemos nossa atenção
para o norte. Temos um bosque pequeno, assinalado "Ragged Shaw", e na extremidade há o pântano Lower Gill, estendendo-se por dezesseis quilômetros e subindo gradualmente. Deste lado, fica Holdernesse Hall, a dezesseis quilômetros da estrada, mas a apenas dez do pântano. Lugar estranhamente deserto. Há alguns pequenos fazendeiros, que criam bois e ovelhas. A não ser eles, os únicos habitantes são aves, até que se chegue à auto-estrada de Chesterfield. Ali há uma igreja, como vê, algumas casas e uma estalagem, a Galo de Briga. Adiante, os morros se tornam mais escarpados. Não há dúvida de que aqui, para o norte, é que devemos procurar. — Mas, e a bicicleta? — perguntei. — Ora, ora! — exclamou Holmes, impaciente. — Um bom ciclista não precisa de boa estrada. O pântano está cheio de veredas, e a lua brilhava no céu. Oh, que é isso? Ouviu-se bater agitadamente à porta. No momento seguinte, o dr. Huxtable entrava no quarto. Na mão trazia um boné azul, com uma divisa branca em cima. — Finalmente, um indício! — disse ele. — Graças a Deus, estamos na pista do querido menino! Eis o seu boné. — Onde foi encontrado? — Na carroça dos ciganos acampados no pântano. Eles saíram na terça-feira. Hoje a polícia os alcançou e examinou a caravana. O boné foi encontrado com eles. — Como os ciganos explicam isso? — Esquivaram-se às perguntas e mentiram, dizendo que o tinham encontrado no pântano, na manhã de terça-feira Sabem onde está o menino, os miseráveis! Felizmente estie todos na cadeia. O medo da lei, ou o dinheiro do duque, acabarão por fazer com que soltem a língua. — Até aqui, muito bem — disse Holmes, depois que o professor finalmente se retirou. — Pelo menos isso reforça a teoria de que é do lado do pântano que devemos esperar resultados. A polícia não fez realmente nada, a não ser prender esses ciganos. Veja isso, Watson! Passa um riacho através do pântano. Está aqui marcado no mapa. Em alguns lugares, abre-se num paul, principalmente na região entre Holdernesse Hall e a escola. É inútil procurar a pista em outro ponto, com esta seca, mas ali há a possibilidade de terem ficado marcas. Irei acordá-lo amanhã muito cedo, e juntos procuraremos desvendar o mistério. O dia começava a clarear, quando acordei e vi o vulto magro e alto de Holmes a meu lado. Ele estava completamente vestido e parecia já ter saído. — Examinei o gramado e o galpão das bicicletas — disse ele. — Estive no
bosque Ragged Shaw. Agora Watson, um chocolate o espera no quarto contíguo. Peço-lhe que se apresse, pois temos um dia cheio à nossa frente. Seus olhos brilhavam e seu rosto estava corado, com a alegria do artesão que sabe que o trabalho está à sua espera. Um Holmes muito diferente, esse homem alerta, ativo, do introspectivo e pálido sonhador da Baker Street. Ao olhar para a figura flexível, repleta de energia nervosa, compreendi que tínhamos, de fato, um dia atarefado à nossa espera. Mas começou com a maior das decepções. Atravessamos, esperançosos, o pântano cheio de veredas, até chegarmos à larga faixa verde do paul entre a escola e Holderness Hall. Se o menino se dirigira para casa, certamente passara por ali e não podia ter passado sem deixar vestígios. .Mas não havia sinal dele, e tampouco do alemão. Com expressão sombria, meu amigo andou pela margem, observando atentamente todos os sinais de lama na relva. Havia, em profusão, marcas de patas de ovelhas, e em certo ponto, a quilômetros de distância, via-se que também haviam passado bois por ali. Nada mais. — Decepção número um — disse Holmes, olhando melancolicamente a vasta extensão de pântano. — Há outro paul mais longe ainda. Ora, que é isto? Tínhamos chegado a uma vereda que formava um traço escuro no chão. No meio, viam-se claramente as marcas de uma bicicleta. — Viva! — exclamei. — Acertamos. Mas Holmes sacudiu a cabeça, com o rosto perplexo e expectante, mais do que alegre. — Uma bicicleta, sem dúvida, mas não a bicicleta. Conheço quarenta e duas impressões deixadas por pneumáticos. Estas aqui são, como pode ver, de pneus Dunlop, com um remendo do lado de fora. Os pneus do professor alemão, Heidegger, eram de marca Palmer, e deixavam riscos longitudinais. O professor de matemática, Aveling, foi categórico nesse ponto. Não é, portanto, a bicicleta de Heidegger. — Do menino, então. — Provavelmente, se pudermos provar que estava de posse de uma bicicleta. Mas não conseguimos apurar nada nesse sentido, como sabe. Essas marcas foram feitas por pessoa que vinha do lado da escola. — Ou que para lá se dirigia? — Não, não, caro Watson. A marca mais forte é, naturalmente, feita pela roda traseira, onde recai o peso. Você vê vários lugares por onde ela passou e apagou a marca mais fraca da roda da frente. A bicicleta, indubitavelmente, vinha do lado da escola. Isso pode ou não ter relação com o caso, mas vamos
seguir as marcas, para trás, antes de tentar qualquer outra coisa. Foi o que fizemos, mas dali a centenas de metros perdemos as marcas, ao sairmos da parte lamacenta do pântano. Voltando, encontramos um lugar onde havia uma nascente. Também ali se viam marcas de bicicleta, embora quase apagadas pelas patas dos bois. Depois disso, não havia mais nada, mas a vereda entrava no bosque Ragged Shaw, que ia quase até a escola. Dali devia ter saído o ciclista. Holmes sentou-se numa pedra e descansou o rosto nas mãos. Fumou dois cigarros, antes de se levantar. — Ora, ora — disse, afinal. — É possível, naturalmente, que um homem esperto trocasse os pneus da bicicleta, para deixar sinais diferentes. O criminoso capaz de pensar nisso é homem com quem eu sentiria prazer em lutar. Deixemos isso por enquanto e vamos voltar, pois ficou muita coisa por explorar. Continuamos a busca sistemática e logo nossa perseverança foi recompensada. Bem no meio da parte baixa do paul, havia um caminho lamacento. Holmes soltou um grito de prazer ao aproximar-se. Vimos uma marca, como que de fios telegráficos. — Aqui está Herr Heidegger, sem a menor dúvida! — exclamou Holmes, exultante. — Meu raciocínio estava certo, Watson. — Parabéns. — Mas temos muito o que fazer ainda. Faça o favor de sair do caminho. Vamos agora seguir a pista. Receio que ela não nos leve muito longe. À medida que avançávamos, víamos que aquele trecho do pântano estava cheio de marcas leves, e, embora muitas vezes perdêssemos a pista, logo adiante encontrávamos as marcas da bicicleta. — Percebe que aqui o ciclista começou a acelerar? — perguntou Holmes. — Veja esta impressão onde se notam claramente as marcas dos dois pneus, tanto do da frente como do de trás, pelo fato de o ciclista se inclinar para a frente com o esforço. Por Deus! Aqui ele caiu. Uma marca grande, irregular, cobria um trecho da vereda. Depois, havia pegadas e, logo adiante, surgiam de novo as marcas da bicicleta. — Uma escorregadela — disse eu. Holmes segurava um galho de urze em flor. Vi, com horror, que os botões
amarelos estavam manchados de vermelho. Também na vereda havia manchas escuras de sangue. — Mau, mau! — disse Holmes. — Fique de lado, Watson. Nem um passo desnecessário! Que vejo aqui? Ele caiu ferido, levantou-se, tornou a subir na bicicleta e continuou. Mas não há outras marcas. Passou gado por aqui. Teria ele sido atacado por um touro? Impossível! Mas não noto vestígios de pessoas em parte alguma. Temos de continuar, Watson. Não há dúvida de que, com as manchas de sangue a nos guiar, além da marca dos pneus, ele não poderá escapar. Nossa busca não foi demorada. As marcas dos pneus descreviam agora curvas fantásticas, no chão úmido. De repente, ao olhar para diante, um brilho de metal chamou-me a atenção, no meio das moitas de urzes. Dali tiramos uma bicicleta, com pneus Palmer. Um pedal estava torto, e a frente da bicicleta, toda manchada de sangue. Corremos para trás dela e lá encontramos o infeliz ciclista. Era um homem alto, de barba, óculos, com uma das lentes quebrada. A morte fora causada por uma terrível pancada na cabeça, que lhe esmagara o crânio. O fato de ter continuado, após ter recebido tão rude golpe, indicava que era homem de coragem e energia. Estava de sapatos, mas sem meias e, pelo casaco aberto, via-se que ainda vestia roupa de dormir. Era, sem dúvida, o professor alemão. Holmes virou respeitosamente o corpo e examinou-o com atenção. Sentouse, depois, ficando em profunda meditação. Vi, pela sua atitude, que aquela descoberta não o auxiliava no esclarecimento do caso. — É um pouco difícil saber o que se deve fazer, Watson — disse ele finalmente. — Meu desejo seria prosseguir, pois já perdemos tanto tempo, que não podemos desperdiçar uma hora sequer. Por outro lado, temos de informar a polícia sobre esta descoberta, para que venham retirar o corpo do pobre homem. — Eu podia ir avisar. — Mas preciso da sua companhia e do seu auxílio. Espere um pouco! Está ali um sujeito, cortando turfa. Traga-o aqui, e ele irá buscar a polícia. Fui chamar o assustado camponês, e Holmes despachou-o com um bilhete para o dr. Huxtable. — Agora, Watson, já conseguimos dois indícios, hoje de manhã. Um foi a bicicleta com pneus Palmer, e vimos ao que ela nos conduziu. O outro é a bicicleta com um pneu Dunlop remendado. Antes de começarmos a investigar, temos de verificar o que sabemos, para tirar o máximo proveito, e separar o
essencial do acidental. Em primeiro lugar, quero frisar que o menino fugiu de livre e espontânea vontade. Desceu pela janela e partiu, só ou acompanhado. Isso é certo. Concordei com as deduções. — Voltemo-nos agora para o infeliz professor. O menino estava completamente vestido quando partiu. Sabia, portanto, o que ia fazer. Mas o mestre estava sem meias. É evidente que saiu precipitadamente. — Não há dúvida. — Por que saiu? Porque viu a fuga do menino, pela janela do seu quarto. Porque desejava alcançá-lo e fazê-lo regressar. Pegou a bicicleta e seguiu o garoto, encontrando assim a morte. — É o que parece. — Chego agora à parte crítica da minha argumentação. O natural, para um homem que perseguisse um menino, seria correr atrás dele. Sabia que poderia alcançá-lo. Mas o alemão não o fez. Ouvi dizer que era ótimo ciclista. Apanhou a bicicleta, mas não o teria feito, a não ser que percebesse que o menino tinha um meio rápido de evasão. — A outra bicicleta. — Continuemos a reconstituição. Ele é morto a oito quilômetros da escola, não por uma bala, note bem, que até um menino poderia disparar, mas por um golpe forte, desferido por um homem. O menino tinha, portanto, um companheiro. E a fuga foi rápida, uma vez que um bom ciclista levou oito quilômetros para alcançá-lo. Já examinamos a cena da tragédia. Que encontramos? Sinais de gado, nada mais. Examinei o local, e não há caminho no espaço de cinqüenta metros. Outro ciclista não poderia ter tido relação com o crime. E não há pegadas. — Holmes, isso é impossível! — exclamei. — Admirável! Observação esclarecedora. É impossível da maneira como descrevi a situação, e, portanto, devo tê-la descrito erradamente. Você já o percebeu. Pode sugerir onde está a falha? — Não poderia ele ter quebrado a cabeça na queda? — Num paul, Watson? — Não sei o que pensar. — Calma, já resolvemos problemas mais duros. Temos, pelo menos, muito material, se soubermos usá-lo. Venha. Já que acabamos de examinar os pneus
Palmer, vamos ver o que os Dunlop poderão nos revelar. Pegamos a vereda e por ela seguimos durante algum tempo. Mas logo o pântano começou a subir, coberto de urzes, e deixamos para trás o riacho. Já não podíamos esperar encontrar sinais no chão. Do ponto onde vimos as últimas marcas dos pneus Dunlop, podia-se ir para Holdernesse Hall, cujas torres se erguiam à nossa esquerda, a alguns quilômetros de distância, ou então para a vila baixa, cinzenta, que estava à nossa frente e que indicava a posição da auto-estrada de Chesterfield. Quando nos aproximamos da estalagem sombria e abandonada, com um galo de briga em cima da porta, Holmes deixou escapar um gemido e agarrou-se ao meu ombro, para não cair. Torcera o tornozelo e teve de ir coxeando até a porta, onde vimos um homem atarracado, moreno, fumando um cachimbo. — Como vai, sr. Reuben Hayes? — perguntou Holmes. — Como vai o senhor, e como sabe o meu nome? — perguntou o homem, com um brilho suspeito nos olhos astutos. — Pois bem, está escrito na tabuleta acima da sua cabeça. É fácil reconhecer o dono da casa. Não tem uma carruagem na sua cocheira? — Não, não tenho. — Mal posso firmar o pé no chão. — Pois não o faça. — Mas não posso andar. — Então pule. O homem estava longe de se mostrar amável, mas Holmes aceitou-o com extraordinário bom humor. — Escute aqui, homem — disse ele. — Estou em maus lençóis. Pouco me importa a maneira como terei de continuar. — A mim também — respondeu o calmo estalajadeiro. — O caso é sério. Ofereço-lhe um soberano pelo empréstimo de uma bicicleta. — Aonde quer ir? — A Holdernesse Hall.
— Amigos do duque, com certeza? — perguntou ele, olhando com ironia para as nossas roupas enlameadas. Holmes soltou uma gargalhada. — Ele há de ficar satisfeito ao nos ver. — Por quê? — Porque levo boas notícias do filho desaparecido. O homem teve um sobressalto. — Estão no seu encalço? — Sei que tiveram notícias dele, em Liverpool. Esperam encontrá-lo a qualquer momento. Houve de novo uma mudança no rosto pesado, mal-barbeado, do estalajadeiro. O homem tornou-se subitamente alegre. — Não tenho motivos para querer bem ao duque, pois fui seu cocheiro e ele me tratou muito mal — declarou. — Despediu-me, sem referências, por ter dado ouvidos a um mentiroso negociante de trigo. Mas estou satisfeito por saber que o menino está em Liverpool, e vou ajudá-lo a levar a notícia à mansão. — Muito obrigado — disse Holmes. — Vamos comer qualquer coisa, primeiro, depois pode trazer sua bicicleta. — Não tenho bicicleta. Holmes mostrou-lhe o soberano. — Já disse, homem, que não tenho bicicleta — declarou o sujeito. — Posso emprestar-lhes dois cavalos. — Bom, bom, falaremos sobre isso depois de termos comido — disse Holmes. Quando nos vimos a sós, na sala de pedra, foi extraordinária a maneira como o tornozelo torcido ficou bom. Era quase noite, e nada tínhamos comido desde a manhã, de modo que nossa refeição foi longa. Holmes, perdido em seus pensamentos, foi uma ou duas vezes até a janela, e ficou olhando para fora. A janela dava para um pátio imundo. Na outra extremidade havia uma forja, onde trabalhava um garoto sujo. Do outro lado ficava a cocheira. Holmes sentara-se de novo, após uma das suas idas à janela, quando, de repente, se levantou de um salto, exclamando: — Diabos, Watson, creio que descobri! — exclamou ele. — Sim, sim, deve ter
sido isso, Watson; lembra-se de ter visto sinais de patas de gado? — Sim, muitos. — Onde? — Por toda parte. No paul, na vereda e perto do lugar onde Heidegger foi morto. — Exatamente. Agora, Watson, quantos bois você viu no pântano? — Não me lembro de ter visto um sequer. — Estranho, Watson, que tenhamos visto as marcas e nenhum boi, em todo o pântano. Muito estranho, hein, Watson? — Sim, de fato. — Agora, Watson, faça um esforço, procure lembrar-se! Vê essas marcas no caminho? — Vejo, sim. — Consegue lembrar-se de que eram marcas assim... — Holmes colocou sobre a mesa várias partículas de pão, da seguinte maneira : : : : :, e às vezes assim: • : • : • : • , e, de vez em quando assim: . • . • . • “Lembra-se?” — Não, não me lembro. — Mas eu me lembro. Podia jurar que é assim. Mas vamos voltar, com calma, para verificar. Que idiota fui, em não ter tirado minha conclusão. — Que conclusão? — Que somente um boi extraordinário poderia andar, trotar e galopar. Com mil diabos, Watson, não foi um camponês que pensou em semelhante dissimulação! Parece que o campo está livre, a não ser por aquele garoto, na forja. Vamos sair de mansinho e ver o que há por aí. Na cocheira havia dois cavalos maltratados. Holmes ergueu a pata traseira de um deles e soltou uma risada. — Ferraduras velhas, mas ferradas recentemente; ferraduras velhas, mas pregos novos. Este caso merece ser considerado clássico. Vamos até a forja. O garoto continuava trabalhando, sem olhar para nós. Vi Holmes olhar para a direita e para a esquerda, por entre os ferros e a madeira espalhada pelo chão. De repente, ouvimos passos atrás de nós e demos com o estalajadeiro,
de sobrancelhas contraídas sobre os olhos selvagens, o rosto convulsionado pela cólera. Tinha na mão uma curta barra de ferro e avançava tão ameaçadoramente que me senti feliz por ter o revólver no bolso. — Espiões do inferno! — exclamou ele. — Que estão fazendo aqui? — Ora, sr. Reuben Hayes, até parece que está com medo de que venhamos a descobrir alguma coisa — disse Holmes friamente. O homem dominou-se com um tremendo esforço e soltou uma risada falsa, que era mais ameaçadora do que a carranca. — A forja está às suas ordens — disse ele. — Mas fique sabendo, cavalheiro, que não gosto que andem revistando a casa sem minha licença, de modo que, quanto mais depressa pagarem a conta e desaparecerem, melhor. — Está bem, sr. Hayes, não houve má intenção — disse Holmes. — Estivemos examinando os seus cavalos, mas acho que prefiro ir a pé, afinal de contas. Creio que não é longe. — Não mais de três quilômetros, até os portões da mansão — respondeu o homem, olhando-nos com ar sombrio, quando nos afastamos. Não fomos muito longe, na estrada, pois Holmes parou no momento em que uma curva nos escondeu dos olhos do estalajadeiro. — Estava "quente", como dizem as crianças, lá na estalagem — disse ele. — E parece que vai ficando "frio", a cada passo que dou em direção contrária. Não, não posso sair daqui. — Estou convencido de que aquele homem sabe de tudo — observei. — Que sujeito mal-encarado! — Oh, achou? Lá estão os cavalos, a forja. Sim, é interessante essa Galo de Briga. Creio que vamos dar mais uma espreitadela, disfarçadamente. Atrás de nós erguia-se uma colinazinha, coberta por pedras cheias de limo. Deixamos a estrada e começamos a subir o morro, quando, olhando na direção de Holdernesse Hall, vimos um ciclista que de lá vinha apressadamente. — Deite-se, Watson! — exclamou Holmes, pondo a mão pesada no meu ombro. Mal nos escondêramos, o homem passou voando pela estrada. No meio de uma nuvem de poeira, vi um rosto pálido e agitado, com o horror estampado em todas as feições, a boca aberta, os olhos fixos na estrada à sua frente. Era uma caricatura do correio James Wilder que víramos na noite anterior.
— O secretário do duque! — exclamou Holmes. — Venha, Watson, vamos ver o que ele vai fazer. Andamos de pedra em pedra até chegar a um ponto de onde podíamos ver a entrada da estalagem. A bicicleta de Wilder estava à porta. Ninguém se movia dentro de casa, nem víamos pessoa alguma às janelas. Lentamente, descia a noite, à medida que o sol se ocultava atrás das altas torres de Holdernesse Hall. Vimos, então, acenderem-se duas luzes, numa carruagem que estava na cocheira. Logo em seguida ouvimos ruídos de patas de cavalos, quando o carro ganhou a estrada, dirigindo-se velozmente para Chesterfield. — Que me diz disso? — murmurou Holmes. — Parece uma fuga. — Apenas um homem nessa carruagem, ao que parece. Bom, não é o sr. Wilder, pois lá está ele, na porta.
Um retângulo de luz rubra se refletia da casa. No meio, vimos o vulto do secretário com a cabeça para a frente, perscrutando a escuridão. Não havia dúvida de que esperava alguém. Finalmente ouvimos passos na estrada, e logo outro vulto surgiu no retângulo de luz. Fechou-se a porta e de novo ficou tudo escuro. Cinco minutos mais tarde, acendeu-se uma luz no andar de cima. — Parece que a Galo de Briga tem fregueses estranhos — observou Holmes. — Mas a estalagem fica do outro lado. — De fato. Aqueles são os que poderíamos chamar de "hóspedes particulares". Agora, que diabo estará o sr. Wilder fazendo na estalagem, a estas horas, e quem é a pessoa que veio ao encontro dele? Vamos, Watson, temos de nos arriscar a investigar mais um pouco. Juntos, dirigimo-nos para a estalagem. A bicicleta ainda estava contra a porta. Meu amigo riscou um fósforo, e vi-o dar uma risadinha, quando a luz caiu sobre os pneus Dunlop. Lá em cima a luz brilhava, no primeiro andar. — Tenho de dar uma olhadela, Watson — disse Holmes. — Se você se abaixar, encostando-se à parede, creio que me arranjarei.
No momento seguinte, seus pés firmavam-se nos meus ombros. Mas ele desceu imediatamente. — Vamos, amigo, nosso dia de trabalho foi bastante longo. Temos uma boa caminhada até a escola, e quanto mais depressa partirmos, melhor. Mal abriu a boca enquanto atravessamos o pântano, e nem entrou na escola quando lá chegamos. Continuou até a estação de Mackleton, de onde expediu alguns telegramas. Já tarde da noite, ouvi-o consolar o dr. Huxtable, muito abalado com a morte do professor de alemão. Mais tarde ainda, entrou no meu quarto, parecendo tão vivo e alerta como nas primeiras horas do dia. — Tudo bem, amigo — disse ele. — Prometo-lhe que, antes que o dia de amanha termine, teremos a solução do mistério. Às onze da manhã do dia seguinte, meu amigo e eu entrávamos na alameda de teixos de Holdernesse Hall. Fizeram-nos passar pelo magnífico portal elisabetano, e entramos no escritório do duque. Ali encontramos o sr. Wilder, grave e cortês, mas ainda com vestígios do horror da noite anterior nos olhos furtivos e nas feições contraídas. — Vieram ver Sua Graça? Sinto muito, mas o caso é que o duque não está passando bem. Ficou abalado com a trágica notícia. Recebemos ontem um telegrama do dr. Huxtable contando-nos sua descoberta, sr. Holmes. — Preciso ver o duque, sr. Wilder. — Mas ele está no quarto. — Então tenho de ir ao quarto. — Creio que ainda está na cama. — Vê-lo-ei de qualquer maneira. A atitude fria e inexorável de Holmes mostrou ao secretário que não adiantava insistir na negativa. — Muito bem, sr. Holmes, dir-lhe-ei que estão aqui. Meia hora mais tarde, aparecia o nobre senhor. Seu rosto estava mais cadavérico do que nunca, os ombros, caídos para a frente, e pareceu-me muito mais velho do que na manhã anterior. Recebeu-nos com muita cortesia e sentou-se à escrivaninha, com a barba ruiva batendo na madeira. — Então, sr. Holmes? Os olhos de meu amigo estavam fixos no secretário, atrás da cadeira do patrão.
— Creio, senhor, que falarei mais livremente na ausência de seu secretário. O rapaz tornou-se mais pálido e lançou a Holmes um olhar malévolo. — Se Vossa Graça assim o desejar... — Sim, sim, é melhor sair. Agora, sr. Holmes, que tem a dizer? Meu amigo esperou até que a porta se fechasse, após a saída, do secretário. — O fato é, senhor duque, que meu amigo e eu ouvimos o dr. Huxtable dizer que há uma recompensa, neste caso. Gostaria de ouvir isso de seus próprios lábios. — Sem dúvida, sr. Holmes. — Parece-me que são cinco mil libras a quem lhe disser onde está seu filho. — Exatamente. — E mais mil para aquele que indicar a pessoa ou pessoas que o mantêm prisioneiro. — Exatamente. — Neste último caso, estão incluídas não só as pessoas que o levaram como também as que conspiram para mantê-lo preso? — Sim, sim — disse o duque com impaciência. — Se fizer bem seu trabalho, sr. Holmes, não poderá queixar-se de mesquinhez da minha parte. Meu amigo esfregou as mãos, mostrando uma avidez que me surpreendeu, pois conhecia-lhe os gostos simples. — Parece-me que vejo seu talão de cheques sobre a mesa — continuou Holmes. — Gostaria que me passasse um cheque de seis mil libras. O duque estava muito rígido, em sua cadeira, e olhou com frieza para meu amigo. — É algum gracejo, sr. Holmes? Parece-me que o caso não é para brincadeiras. — De forma nenhuma, senhor duque. Nunca estive mais sério em minha vida. — Que quer dizer, então? — Quero dizer que mereço a recompensa. Sei onde está seu filho e os nomes pelo menos de algumas das pessoas que o mantêm prisioneiro.
A barba do duque tornou-se agressivamente mais ruiva, contra o rosto horrivelmente pálido. — Onde está ele? — perguntou. — Está, ou estava, na noite passada, na Galo de Briga, a três quilômetros dos seus portões. O duque afundou-se na cadeira. — E a quem o senhor acusa? A resposta de Holmes foi surpreendente. Adiantou-se rapidamente e tocou no ombro do duque. — Acuso o senhor — disse ele. — E, agora, espero que me dê o cheque. Nunca me esquecerei da expressão do duque, ao levantar-se, agarrando-se à mesa como alguém que se afunda num abismo. Depois, com extraordinário esforço, dominou-se. Sentou-se e escondeu o rosto nas mãos. Só falou dali a minutos. — O que é que sabe? — perguntou finalmente, sem erguer a cabeça. — Vi-os juntos a noite passada, ao senhor e a ele. — Alguém mais, além de seu amigo, sabe disso? — Não falei com ninguém. O duque apanhou uma pena com dedos trêmulos e abriu o talão de cheques. — Cumprirei minha promessa, sr. Holmes. Vou passar o cheque, por mais desagradável que me seja a informação que o senhor conseguiu obter. Quando ofereci a recompensa, mal sabia do caminho que tomariam os acontecimentos. Mas o senhor e seu amigo são discretos, sr. Holmes? — Não compreendo o que quer dizer. — Falarei mais claramente, sr. Holmes. Se apenas os senhores souberem do incidente, não há por que se tornar mais conhecido. Creio que lhe devo doze mil libras, não? Holmes sorriu, sacudindo a cabeça. — Receio que o assunto não possa ser resolvido com essa facilidade. Temos de nos lembrar da morte do professor de alemão.
— Mas James não sabia disso. O senhor não pode responsabilizá-lo. Foi obra daquele selvagem que ele teve a infelicidade de tomar ao seu serviço. — Na minha opinião, senhor duque, quando um homem se lança a um crime, é moralmente responsável por qualquer crime que derive do primeiro. — Moralmente, sr. Holmes. Certamente tem razão. Mas não aos olhos da lei. Um homem não pode ser condenado por um assassinato ao qual não esteve presente e que abomina tanto como o senhor. No momento em que soube disso, James confessou-me tudo, tão grande era seu horror e seu remorso. Não se demorou em ir recriminar o assassino. Oh, sr. Holmes, precisa salvá-lo, precisa salvá-lo. O duque renunciara ao esforço de procurar dominar-se. Andava de um lado para outro, com expressão convulsa. Finalmente, acalmou-se e voltou para a escrivaninha. — Aprecio sua conduta, vindo procurar-me antes de falar com qualquer outra pessoa — disse ele. — Pelo menos podemos ponderar a melhor forma de abafar o escândalo. — Exatamente — disse Holmes. — Acho que isso só poderá ser feito se falarmos com absoluta franqueza. Estou pronto a ajudá-lo, da melhor maneira possível, mas, para isso, preciso de todos os pormenores. Parece-me que se referiu ao sr. Wilder e que ele não é o criminoso. — Não é; o criminoso fugiu. Sherlock Holmes sorriu. — Vossa Graça não deve conhecer a reputação que tenho, pois do contrário não acharia tão fácil uma pessoa me escapar. O sr. Reuben Hayes foi preso em Chesterfield, às onze horas da noite passada, graças às informações por num fornecidas. Recebi um telegrama do chefe da polícia antes de sair da escola, hoje de manhã, comunicando-me a sua prisão. O duque recostou-se na cadeira e olhou com espanto para meu amigo. — O senhor parece ter poderes sobre-humanos — disse ele. — Então Reuben Hayes foi preso? Estou satisfeito por ouvir isso, se o fato não prejudicar James. — Seu secretário? — Não, senhor, meu filho. Foi a vez de Holmes ficar admirado.
— Confesso que isso para mim é novidade. Peço-lhe que seja mais explícito. — Nada lhe ocultarei. Concordo com o senhor em que há necessidade de absoluta franqueza. Por mais penoso que me seja isso, é a melhor política, nesta situação desesperada a que nos reduziu a loucura e a inveja de James. Quando eu era jovem, sr. Holmes, amei como só se ama uma vez na vida. Quis me casar com a mulher dos meus sonhos, mas, alegando que isso me arruinaria a carreira, ela se recusou a aceitar meu pedido. Se ela não tivesse morrido, nunca teria me casado com mais ninguém. Morreu e deixou-me esse filho, que criei por amor a ela e a quem me afeiçoei. Não pude reconhecer a paternidade aos olhos do mundo, mas dei-lhe a melhor educação possível, e, quando cresceu, trouxe-o para minha companhia. Ele descobriu meu segredo, e desde então procurou fazer valer o que julga ser seu direito, ameaçando-me de escândalo, coisa que sabe que abomino. Sua presença foi, em parte, responsável pelo fracasso de meu casamento. Acima de tudo, ele odiava Lorde Saltire, meu filho legítimo e meu herdeiro. O senhor me perguntará por que o conservava aqui, nessas circunstâncias, mas posso lhe responder que é porque via em seu rosto os traços da mãe, e por amor a ela não queria afastálo. Todos os seus gestos me lembravam a mulher que amei outrora, e eu não podia mandá-lo embora. Mas receei que fizesse alguma coisa contra Arthur — isto é, Lorde Saltire —, e por isso mandei o menino para a escola do dr. Huxtable. "James conheceu aquele tal Hayes quando o sujeito era meu inquilino, e James, meu administrador. O homem foi sempre um canalha. É incrível que James se tornasse íntimo... mas sempre gostou da companhia de gente baixa. Quando James resolveu raptar Lorde Saltire, lembrou-se de tomar Hayes ao seu serviço. O senhor se recorda de que escrevi a meu filho, na véspera da fuga. Pois bem, James abriu o envelope e acrescentou um bilhete, pedindo a Arthur que fosse ao seu encontro, no bosque Ragged Shaw; perto da escola. Serviu-se do nome da duquesa e, assim, fez com que o menino fosse. Naquela noite, James foi para lá de bicicleta — estou lhe dizendo o que ele próprio me confessou — e disse a Arthur, com quem se encontrou no bosque, que sua mãe estava ansiosa por tornar a vê-lo, que o esperava no pântano e que, se ele voltasse para o bosque à meia-noite, ali encontraria um homem com um cavalo, e que o sujeito o levaria até a duquesa. O pobre menino caiu na armadilha. Foi à entrevista e encontrou Hayes, que lhe trazia um cavalo. Arthur montou, e os dois seguiram juntos. James só ontem soube que eles tinham sido seguidos, que Hayes atacou o professor com uma barra de metal, matando-o. Hayes levou meu filho para a Galo de Briga, prendendo-o num quarto do andar de cima, onde ficou aos cuidados da sra. Hayes, mulher bondosa, mas dominada pelo marido. "Pois bem, sr. Holmes, era esse o estado de coisas, quando o vi pela primeira vez, há dois dias. Não fazia a menor ideia da verdade. O senhor me perguntará que motivos teve James para agir dessa forma. Respondo que, de fato, há muito de loucura e fanatismo no ódio que ele tem ao meu herdeiro. Na sua opinião, ele é que deve ser o herdeiro de todas as minhas propriedades e não se conforma com as leis que tornam isso impossível. Por outro lado, tinha
também um motivo definido. Estava ansioso por que eu quebrasse o vínculo, achando que eu tinha o poder de fazê-lo. Pretendia propor-me um negócio: devolver-me Arthur se eu quebrasse o vínculo, fazendo assim com que fosse possível deixar-lhe as propriedades em testamento. Sabia perfeitamente que eu nunca chamaria de boa vontade a polícia. Creio que me faria tal proposta, mas não chegou a fazê-la, pois os acontecimentos se precipitaram e ele não teve tempo de pôr em prática sua idéia. "O maldoso plano foi frustrado quando o senhor descobriu o corpo de Heidegger. James ficou horrorizado. Soubemos disso ontem, quando estávamos sentados no escritório. O dr. Huxtable mandou um telegrama. James ficou tão transtornado, que minhas suspeitas, que já existiam, transformaram-se em certeza. Acusei-o. Ele fez uma confissão completa. Depois, suplicou-me que guardasse segredo por mais três dias, para dar tempo ao seu miserável cúmplice de fugir e se salvar. Acedi — como sempre — aos seus rogos, e logo James correu para a Galo de Briga, para prevenir Hayes e facilitar-lhe a fuga. Eu não podia ir lá de dia sem provocar comentários, mas, assim que caiu a noite, fui ver meu querido Arthur. Encontrei-o bem, mas horrorizado com o crime que presenciara. Por causa de minha promessa e contra a minha vontade, consenti em deixar o menino lá mais três dias, aos cuidados da sra. Hayes, já que parecia impossível informar a polícia do seu paradeiro sem contar quem era o assassino... e eu não via maneira de punir esse assassino sem que também James ficasse desgraçado. O senhor pediu franqueza, sr. Holmes, e concordei plenamente, pois contei-lhe tudo, sem a menor reserva. Seja, por sua vez, franco comigo." — Com certeza — disse Holmes. — Em primeiro lugar, sou obrigado a dizer que o senhor se colocou numa posição muito delicada aos olhos da lei. Tornouse conivente num crime e ajudou a fuga de um assassino, pois não duvido de que o dinheiro que James Wilder levou ao cúmplice tenha vindo dos cofres de Vossa Graça. O duque inclinou a cabeça. — É, de fato, um assunto muito sério. Mais repreensível ainda, na minha opinião, é a sua atitude em relação a seu filho mais novo. O senhor o deixa naquele antro por mais três dias... — Sob promessa formal... — Que adiantam as promessas dessa gente? O senhor não tem a menor garantia de que não o levem novamente. Para fazer a vontade de seu filho mais velho, culpado, o senhor expôs o mais novo, inocente, a um perigo desnecessário. Foi uma atitude injustificável. O orgulhoso senhor de Holdernesse não estava habituado a ser tratado dessa forma no seu salão ducal. O sangue subiu-lhe ao rosto, mas a consciência obrigou-o a ficar mudo. Holmes continuou: — Vou ajudá-lo, mas com uma condição. É que toque a campainha e permita
que eu dê ao lacaio as ordens que bem entender. Sem uma palavra, o duque apertou o botão da campainha. Entrou um lacaio. — Vai ficar satisfeito por saber que seu patrãozinho foi encontrado — disse Holmes. — O duque deseja que a carruagem vá imediatamente à Galo de Briga, para trazer Lorde Saltire para casa. Depois que o criado, muito feliz, desapareceu, Holmes continuou: — Agora, tendo tratado do futuro, procuremos ser condescendentes quanto ao passado. Não tenho cargo oficial, e não há motivo, contanto que se faça justiça, para eu revelar o que sei. Quanto a Hayes, nada tenho a dizer. Esperao a força, e nada farei para salvá-lo. Não sei o que ele poderá revelar, mas não duvido de que Vossa Graça possa fazê-lo compreender que é de seu interesse guardar silêncio. Do ponto de vista da polícia, ele raptou seu filho para efeito de resgate. Se não descobrirem mais nada, não vejo razão para lhes abrir os olhos. Gostaria, no entanto, de prevenir Vossa Graça de que a contínua presença do sr. James Wilder em sua casa só poderá causar-lhe desventura. — Estou de acordo, sr. Holmes, e já ficou combinado que ele me deixará para sempre e irá tentar a vida na Austrália. — Nesse caso, já que o senhor mesmo me disse que o fracasso de seu casamento teve por causa a presença dele aqui, aconselhá-lo-ei a desculparse perante a duquesa, procurando recomeçar a vida matrimonial, tão desastrosamente interrompida. — Também pensei nisso, sr. Holmes, e já escrevi à duquesa hoje de manhã. Holmes ergueu-se. — Nesse caso, acho que meu amigo e eu podemos congratular-nos quanto a alguns aspectos felizes de nossa visita aqui ao norte. Há ainda um ponto que desejo esclarecer. Aquele Hayes ferrou os cavalos com ferraduras que imitavam patas de gado. Foi com o sr. Wilder que aprendeu truque tão extraordinário? O duque ficou pensativo por um momento, com expressão de grande surpresa na fisionomia. Depois abriu uma porta e conduziu-nos a um salão que parecia um museu. Levou-nos até uma vitrina a um canto e apontou para uma inscrição. Lemos: "Estas ferraduras foram desenterradas dos fossos de Holdernesse Hall. São para cavalos, mas feitas com uma chapa de ferro partida ao meio, para despistar perseguidores. Acredita-se que tenham pertencido aos barões de Holdernesse, na Idade Média". Holmes abriu a vitrina, molhou os dedos e passou-os pelas ferraduras. Ainda havia nelas leves sinais de lama.
— Muito agradecido — disse ele, fechando a porta de vidro. — É a segunda coisa interessante que vi aqui no norte. — E a primeira?... Holmes dobrou o cheque e guardou-o cuidadosamente. — Não sou muito rico — respondeu. Bateu afetuosamente na carteira, pondo-a no bolso.
Arthur Conan Doyle
Pedro Negro Título original: Black Peter
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1904
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de Black Peter publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume IV, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Lígia Junqueiro.
Nunca vi meu amigo Holmes mais em forma, tanto física como mentalmente, como naquele ano de 95. A fama lhe trouxera inúmeros clientes — e eu seria considerado indiscreto, se chegasse a aludir aos nomes ilustres daqueles que atravessaram o umbral da nossa porta na Baker Street. Como todos os artistas, Holmes amava a arte pela arte, e, a não ser no caso do duque de Holdernesse, raras vezes o vi reclamar grande recompensa pêlos seus inestimáveis serviços. Tão desprendido — ou caprichoso — se mostrava, que muitas vezes se recusava a ajudar os ricos e poderosos, dedicando semanas aos interesses de um cliente humilde, que lhe trouxera um caso cheio de características curiosas e surpreendentes, que apelavam para a sua imaginação e lhe desafiavam a argúcia. No memorável ano de 95, uma incongruente e curiosa sucessão de casos lhe prenderam a atenção, desde a famosa investigação do assassinato do cardeal Tosca (a pedido do próprio papa) até a prisão de Wilson, o famoso criador de canários, prisão que acabou com a praga que assolava a parte leste de Londres. Logo após esses dois famosos casos, veio a tragédia de Woodman's Lee e as obscuras circunstâncias que rodearam a morte do capitão Peter Carey. Nenhum relatório dos feitos de Sherlock Holmes seria completo se não incluísse tão extraordinária história. Na primeira semana de julho, meu amigo ausentou-se tantas vezes de casa, que senti que alguma coisa se passava. O fato de vários homens de má aparência terem vindo perguntar, nessa semana, pelo capitão Basil, fez-me compreender que Holmes estava trabalhando sob algum dos inúmeros disfarces e nomes falsos que lhe ocultavam a identidade. Ele tinha pelo menos cinco refugiozinhos em Londres, onde poderia mudar de personalidade. Nada me dissera das suas atividades, e não era meu hábito forçar confidências. A primeira indicação que me deu do rumo que tomava sua investigação foi, de fato, extraordinária. Ele saíra antes da refeição da manha, e eu me sentara para dar início à minha, quando o vi entrar na sala, de chapéu na cabeça e com um enorme arpão debaixo do braço, à guisa de guarda-chuva. — Deus do céu, Holmes! Não me diga que andou por Londres carregando isso! — Fui até o açougue e voltei. — Açougue? — E vim com ótimo apetite. Não há dúvida, caro Watson, quanto ao valor do
exercício, antes do café da manhã. Mas garanto que não adivinha que tipo de exercício foi. — Nem vou tentar adivinhar. Holmes deu uma risadinha, servindo-se de café. — Se tivesse ido até os fundos do açougue de Allardyce, teria visto um porco morto, pendurado num gancho do teto, e um senhor em mangas de camisa golpeando-o furiosamente com esta arma. Essa enérgica pessoa era eu, e certifiquei-me de que, por mais que me esforce, não posso trespassar o porco de um só golpe. Talvez você queira experimentar... — Por nada deste mundo. Mas por que fez isso? — Porque me parece que tem relação indireta com o mistério de Woodman's Lee... Ah, Hopkins, recebi ontem seu telegrama e estava à sua espera. Venha nos fazer companhia. Nosso visitante era um homem muito vivo, de trinta anos mais ou menos, com um terno de tweed, mas mantendo-se teso como quem está habituado a envergar uniforme. Reconheci-o imediatamente como sendo Staniey Hopkins, jovem inspetor da polícia. Holmes nutria grandes esperanças a seu respeito, e ele, por sua vez, tinha viva admiração pelos métodos científicos de meu amigo. Hopkins sentou-se, com ar sombrio, parecendo muito desanimado. — Não, obrigado, tomei café antes de sair. Passei a noite aqui em Londres, pois cheguei ontem à noite, para fazer meu relatório. — E como foi ele? — Fracasso, absoluto fracasso. — Não fez o menor progresso? — Nenhum. — Deus do céu, então preciso dar uma olhadela no caso. — Não desejo outra coisa, sr. Holmes. É minha primeira grande oportunidade, e não sei o que fazer. Pelo amor de Deus, dê-me uma ajuda. — Bom, bom... Acontece que já li, com toda a atenção, o que se passou no inquérito. Por falar nisso, que me diz da bolsa de tabaco que foi encontrada na cena do crime? Algum indício aí? Hopkins pareceu admirado. — Pertencia à própria vítima. As iniciais estavam dentro. A bolsa era de pele de foca, e ele era um velho pescador de focas. — Mas não possuía cachimbo. — Não, senhor, de fato não encontramos nenhum cachimbo. Sabe-se, mesmo, que fumava muito pouco. Mas podia ter tabaco em casa, para os amigos. — Sem dúvida. Só falei nisso porque, se eu estivesse tratando do caso, seria esse meu ponto de partida na investigação. Mas meu amigo, o dr. Watson, nada sabe a respeito do assunto, e não lhe faria mal ficar sabendo dos acontecimentos. Dê-nos um resumo dos fatos essenciais. Stanley Hopkins tirou um papel do bolso.
— Tenho aqui umas notas que farão com que conheçam a carreira do morto, capitão Peter Carey. Nasceu em 45: estava, portanto, com cinqüenta anos de idade. Foi um ousado e bem-sucedido pescador de focas e baleias. Em 1883, comandou o baleeiro Sea Unicorn, de Dundee. Fez várias viagens sucessivas, e no ano seguinte, 1884, aposentou-se. Depois disso, viajou durante alguns anos e, finalmente, comprou uma pequena propriedade chamada Woodman's Lee, perto de Forest Row, em Sussex. Viveu ali durante seis anos e ali morreu há uma semana. "Havia vários pontos curiosos a respeito do homem. Na vida comum, era um puritano, sujeito sombrio, silencioso. Tinha mulher e uma filha de vinte anos. Em casa, havia duas empregadas, mas eram constantemente substituídas, pois o lugar não era alegre e chegava às vezes a tornar-se insuportável. O homem de vez em quando embebedava-se, e, quando isso acontecia, parecia um demônio. Sabe-se que chegou a expulsar de casa a mulher e a filha, no meio da noite, chicoteando-as no parque, até elas acordarem toda a vila com seus gritos." Stanley Hopkins continuou: — Certa vez, foi chamado à polícia por ter atacado o vigário, que fora procurá-lo para repreendê-lo e dar-lhe conselhos. Em suma, sr. Holmes, seria difícil encontrar homem mais perigoso do que Peter Carey, e ouvi dizer que, no tempo em que comandava seu navio, não era melhor. Chamavam-no Black Peter, e o nome lhe fora dado não pela tez escura, nem pela cor negra da enorme barba, mas sim pelas terríveis histórias que se contavam a seu respeito. Não preciso dizer que era odiado por todos os vizinhos e que não ouvi uma palavra de pesar por sua morte. Stanley Hopkins fez uma pausa e continuou: — O senhor deve ter lido, no processo, a descrição da cabana do homem, sr. Holmes, mas talvez seu amigo não a conheça. Ele construiu uma cabana de madeira, a cem metros da casa, e era ali que dormia todas as noites. Era uma cabana pequena, com um quarto só, de cinco metros por três. O homem guardava a chave no bolso, fazia a cama, cuidava ele próprio da limpeza e não permitia que pessoa alguma pusesse os pés ali. Há janelinhas de cada lado, cobertas por cortinas que nunca eram abertas. Uma dessas janelas dava para a auto-estrada, e, quando as luzes ali brilhavam de noite, o povo costumava apontá-la, imaginando o que estaria fazendo Black Peter. Foi essa janela, sr. Holmes, que nos forneceu um pequeno indício. "O senhor deve se lembrar de que um pedreiro chamado Salter, que vinha de Forest Row à uma da madrugada, dois dias antes do crime, parou, ao passar por ali, e viu o quadrado de luz brilhando por entre as árvores. Jura que a sombra da cabeça de um homem era visível atrás da cortina, e que não era a cabeça de Peter Carey, que ele conhecia muito bem. Era a cabeça de um homem de barba, sim, mas de barba curta, espetada para a frente, de formato diferente da barba do capitão. É o que diz o pedreiro, mas devemos ter em conta que ele passara duas horas na taverna e que há certa distância entre a casa e a estrada. Além do mais, isso foi na segunda-feira, e o crime foi cometido na quarta. "Na terça, Peter Carey estava num dos seus piores dias, completamente bêbado, e parecia um animal selvagem. Vagueou pela casa, e as mulheres fugiam todas as vezes que o viam aproximar-se. Já tarde da noite, foi para a cabana. Mais ou menos às duas da madrugada, sua filha — que dorme com a janela aberta — ouviu um grito medonho, vindo daquela direção, mas não era novidade ouvi-lo gritar quando estava bêbado, e ninguém deu importância ao fato. Às sete da manhã, uma das empregadas notou que a porta da cabana estava aberta, mas era tão grande o terror que o homem inspirava, que somente ao meio-dia alguém teve coragem de ir ver o que lhe acontecera. Espreitando pela porta aberta, viram um espetáculo que fez com que corressem, apavorados, para a vila. Uma hora depois, eu estava lá, pronto para investigar o caso. "Pois bem, tenho nervos fortes, como o senhor sabe, sr. Holmes, mas garanto-lhe que fiquei trêmulo quando espreitei dentro da cabana. Zumbiam moscas e varejeiras, e as paredes e o chão lembravam os de um açougue. A cabana parecia um camarote de navio.
Havia um catre, a um canto; uma arca, mapas e um retraio do Sea Unicorn, e também alguns diários de bordo, numa prateleira, exatamente o que a gente esperaria encontrar no camarote de um capitão de navio. E, no meio de tudo isso, vi o homem, com o rosto contorcido como o de uma criatura supliciada. Em seu peito, estava enfiado um arpão de aço, que se espetara na parede atrás dele. O homem estava preso como um escaravelho num papelão. Claro que estava morto, como morto estivera desde o momento em que soltara o último grito de dor." Hopkins continuou: — Conheço seus métodos, sr. Holmes, e apliquei-os. Antes de permitir que mexessem em qualquer coisa, examinei cuidadosamente o terreno, no exterior, e também o chão da casa. Não havia pegadas. — Quer dizer que não viu nenhuma? — Garanto que não havia nenhuma. — Meu caro Hopkins, tenho investigado muitos crimes, mas até hoje não vi um único que tivesse sido cometido por uma criatura voadora. Enquanto o criminoso se firmar em duas pernas, deve haver alguma marca que possa ser notada pelo investigador científico. É incrível que esse quarto todo manchado de sangue não nos possa fornecer um indício. Pelo que li, parece-me que havia alguns objetos que você não deixou de notar, não? O jovem inspetor contraiu-se, ante os irônicos comentários de meu amigo. — Fui tolo em não o chamar na ocasião, sr. Holmes, mas agora já não há remédio. Sim, havia no quarto vários objetos que me chamaram a atenção. Um foi o arpão, instrumento do crime. Fora arrancado de uma prateleira na parede. Restavam dois, e havia o lugar vago do terceiro. No cabo estava gravado "S. S. Sea Unicorn, Dundee". Isso parecia indicar que o crime fora cometido num momento de fúria, tendo o assassino agarrado a primeira arma que encontrara. O fato de o crime ter sido cometido às duas da manhã e de Peter Carey estar completamente vestido indica que ele tinha encontro marcado com o assassino — e isso parece confirmado pela presença de uma garrafa de rum e dois copos sobre a mesa. — Sim, creio que podemos admitir as duas hipóteses — disse Holmes. — Havia outras bebidas, além de rum, no quarto? — Sim, havia uma garrafa de conhaque e outra de uísque na arca. Mas isso não nos interessa, pois ambas as garrafas estavam cheias, e, portanto, ninguém se servira delas. — Mesmo assim, a presença dessas garrafas é significativa — disse Holmes. — Mas ouçamos mais alguma coisa a respeito dos objetos que lhe pareceram importantes. — Havia a bolsa de tabaco, em cima da mesa. — Em que lugar da mesa? — No centro. Era de pele de foca, comum, amarrada por uma tira de couro. Em cima, na parte interior, vimos as iniciais P. C. Havia dentro quinze gramas de tabaco forte. — Ótimo! Que mais? Stanley Hopkins tirou do bolso um caderno de apontamentos, já muito velho. Na primeira página estava escrito "J. H. N." e a data: "1883". Holmes colocou o caderno sobre a mesa e examinou-o cuidadosamente, enquanto Hopkins e eu olhávamos por cima do seu ombro. Na segunda página estavam as letras "C. P. R." e depois várias folhas de algarismos. Outras páginas tinham como títulos "Argentina", "Costa Rica" e "São Paulo", cada um deles seguido por páginas de sinais e algarismos. — Que me diz disso? — perguntou
Holmes. — Parece que são listas de ações da Bolsa. Pensei que "J. H. N." fossem as iniciais de um corretor e que "C. P. R." talvez tivesse sido cliente. — Experimente "Canadian Pacific Railway" — disse Sherlock Holmes. Stanley blasfemou por entre os dentes e bateu na perna com a mão fechada. — Que idiota fui! — exclamou. — Claro que é como o senhor diz. Portanto, as únicas iniciais que ainda temos que solucionar são "J. H. N.". Já examinei as velhas listas da Bolsa e não encontrei, em 1883, nenhum corretor cujas iniciais correspondam a essas. Mas sinto que é o melhor indício que tenho, até agora. O senhor há de admitir, sr. Holmes, que há ossibilidade de estas iniciais serem as da pessoa que estava presente... por outras palavras, o assassino. Posso também afirmar que o aparecimento de um documento relacionado com grande número de ações nos dá, pela primeira vez, idéia do motivo do crime. A expressão de Sherlock Holmes indicou que se surpreendia com a novidade. — Admito os seus dois pontos de vista — disse ele. — Confesso que o caderno de apontamentos, que não apareceu no inquérito, modifica qualquer hipótese que eu possa ter formado. Eu tinha uma teoria sobre o crime onde não há lugar para isso. Tentou investigar essas ações que mencionou? — Estamos tratando disso, mas creio que o registro dos nomes dos donos das ações sul-americanas esteja na América do Sul, e que seja necessário algum tempo, até recebermos qualquer notícia. Holmes examinava a capa do caderninho com uma lente. — Não há dúvida de que há aqui uma descoloração — disse ele. — Sim, senhor, é uma mancha de sangue. Eu lhe disse que o apanhei do chão. — A mancha estava em cima ou embaixo? — Embaixo, do lado virado para o chão. — Isso prova, naturalmente, que o caderno caiu depois que o crime foi cometido. — Exatamente, sr. Holmes. Concordo com esse ponto, e acho que o caderno foi jogado no chão pelo assassino, na sua fuga apressada. Estava perto da porta. — Creio que nenhuma dessas ações foi encontrada no meio dos objetos do morto, não? — Não, senhor. — Tem algum motivo para suspeitar de roubo? — Não. Parece que não tocaram em nada. — Meu Deus, o caso é interessante. Mas havia uma faca, não havia? — Sim, havia, ainda embainhada. Estava aos pés do morto. A sra. Carey identificou-a como sendo do marido.
Holmes ficou durante alguns momentos pensativo. Finalmente disse: — Bom, creio que tenho de ir até lá, para dar uma olhadela. Stanley Hopkins soltou uma exclamação de alegria. — Muito obrigado. O senhor me tira um peso da consciência. Holmes sacudiu o dedo para o inspetor. — Teria sido muito mais fácil há uma semana — admoestou ele. — Mas, mesmo agora, talvez minha viagem não seja inútil. Watson, se dispuser de tempo, teria muito prazer em que me acompanhasse. Se chamar um carro, Hopkins, estaremos prontos para partir dentro de quinze minutos. Descemos na estaçãozinha à beira da estrada e atravessamos quilômetros de uma região de matas esparsas, que antigamente tinham feito parte da grande floresta que, durante muito tempo, detivera os invasores saxões: a impenetrável floresta que durante sessenta anos foi o baluarte da Bretanha. Vastos trechos tinham sido devastados, pois ali fora o centro dos primeiros trabalhos em ferro, no país, e as árvores tinham sido derrubadas para se fundir o minério. Agora, os campos mais ricos do norte tinham absorvido essa indústria, e nada (a não ser aqueles pequenos bosques devastados e as grandes marcas na terra) indicava o trabalho do passado. Na parte limpa, na encosta de um morro, via-se uma casa de pedra baixa, à qual se chegava por um caminho curvo através dos campos. Perto da estrada, cercada em três dos lados por moitas, via-se uma cabana, com uma janela e uma porta para o nosso lado. Era a cena do crime. Stanley Hopkins nos levou primeiro até a casa, onde nos apresentou a uma mulher esquálida, de cabelos grisalhos: a viúva da vítima. O rosto enrugado, de olhos aterrorizados, indicava os anos de sofrimento e maus-tratos a que ela se vira exposta. A seu lado estava a filha, jovem, pálida e loura, de olhos que tiveram um brilho de desafio quando nos contou que estava satisfeita com a morte do pai e que abençoava a mão que o abatera. Terrível, o lar que Peter Carey formara — e foi com prazer e alívio que nos vimos de novo fora, ao ar livre e ao sol, tomando o caminho que tantas vezes o morto utilizara. A cabana era muito simples, com paredes de madeira, uma janela perto da porta e outra na extremidade oposta. Staniey Hopkins tirou a chave do bolso. Inclinara-se para abrir a porta, quando parou, com expressão atenta e admirada no rosto. — Alguém andou mexendo aqui — disse ele. Quanto a isso, não havia dúvida. A madeira estava lascada, e viam-se os frisos brancos sob a pintura, como se fosse coisa recentíssima. Holmes examinava a janela. — Alguém tentou forçar isto aqui sem resultado. Deve ter sido um ladrão muito primário! — É extraordinário — disse o inspetor. — Poderia jurar que estas marcas não estavam aqui ontem à noite. — Talvez qualquer pessoa curiosa, da vila — sugeri. — Pouco provável. Poucas pessoas ousariam pôr os pés aqui, e muito menos tentariam entrar à força na cabana. Que diz a isso, sr. Holmes?
— Acho que o destino foi muito bom para nós. — Quer dizer que a pessoa voltará? — Provavelmente. Veio, esperando encontrar a porta aberta. Tentou entrar, servindo-se de um canivete pequeno. Não o conseguiu. Que faria, então? — Voltaria na noite seguinte, com um instrumento mais útil. — É o que penso. Será culpa nossa, se não estivermos aqui para recebê-lo. Nesse meio tempo, deixe-me ver o interior da cabana. Tinham sido removidos os vestígios da tragédia, mas a mobília ainda continuava como estivera na noite do crime. Durante duas horas, com grande concentração, Holmes examinou todos os objetos, mas sua expressão indicava que não obtinha resultados. Somente uma vez parou, em sua paciente investigação. — Tirou alguma coisa desta prateleira, Hopkins? — Não, não mexi em nada. — Alguma coisa foi tirada. Há menos pó, aqui, do que nas outras. Pode ter sido a marca de um livro, posto de lado. Ou de uma caixa. Bom, nada mais posso fazer aqui. Vamos passear por essas lindas matas, Watson, e dedicar nossa atenção aos pássaros e às flores. Nós o encontraremos mais tarde, Hopkins, para tentar ver mais de perto o cavalheiro que aqui veio fazer uma visita durante a noite. Eram onze horas e pouco, quando preparamos nossa emboscada. Hopkins queria que deixássemos a porta aberta, mas Holmes achou que isso iria despertar as suspeitas do estranho. A fechadura era muito simples, e bastaria uma lâmina forte para empurrá-la. Holmes sugeriu também que esperássemos não dentro da cabana, mas do lado de fora, no meio das moitas que cresciam perto da janela da outra extremidade. Desse modo, poderíamos ver nosso homem, se ele acendesse uma luz, e descobrir qual o objetivo de sua visita noturna. Foi uma vigília longa e melancólica, mas trouxe-nos a emoção do caçador que fica perto da poça de água, à espera do animal sedento. Que selvagem criatura apareceria diante de nós, saindo da escuridão? Seria um terrível tigre do crime, contra quem só se poderia lutar com garras afiadas, ou algum matreiro chacal, perigoso somente para os fracos e os desprevenidos? Em absoluto silêncio, ficamos acocorados no meio das moitas, esperando quem viesse. A princípio, os passos de alguns aldeões retardatários, ou o som de vozes da vila, perturbaram nossa vigília. Mas, uma a uma, essas interrupções foram desaparecendo. Rodeou-nos um silêncio profundo, quebrado de vez em quando pelo sino da igreja distante, que nos indicava o progresso da noite, e pelo murmúrio da chuva fina, caindo sobre a folhagem que nos cobria e envolvia. Ouvimos as duas badaladas que indicavam a hora mais escura que precede a madrugada, e, de repente, sobressaltamo-nos com um estalido seco, vindo do portão. Houve de novo um silêncio, e começávamos a pensar que se tratava de alarme falso, quando ouvimos passos furtivos do outro lado da cabana. Logo em seguida, um estalido metálico, indicando que alguém tentava forçar a porta. Dessa vez a habilidade foi maior, ou o instrumento mais adequado, pois de repente ouvimos o ranger de gonzos. Acenderam um fósforo, e no momento seguinte a luz de uma vela brilhou no interior da cabana. Através da cortina de gaze, nossos olhos procuraram divisar o que se passava lá dentro.
O visitante noturno era um rapaz jovem, magro e franzino, de bigode preto que lhe acentuava a palidez do rosto. Devia ter pouco mais de vinte anos. Nunca vi ser humano que parecesse mais amedrontado, pois seus dentes batiam e tremiam-lhe os membros. Estava vestido como um cavalheiro, de jaqueta Norfolk e calças de golfe; na cabeça, boné de pano. Olhou em volta, com ar amedrontado. Depois, colocou a vela na mesa e desapareceu da nossa vista, num dos cantos da sala. Voltou com um livro grande, um dos diários de bordo que estavam alinhados na prateleira. Encostando-se à mesa, virou rapidamente as páginas, até chegar ao ponto que procurava. Depois, com um gesto encolerizado, fechou o livro, tornou a colocá-lo na prateleira e apagou a luz. Mal se voltara para sair, a mão de Hopkins agarrou-o pela gola e ouvimos-lhe um grito de terror, quando compreendeu que fora apanhado. Acendemos de novo a luz e vimos o infeliz prisioneiro, trêmulo, nas mãos do detetive. Sentou-se pesadamente, olhando-nos com ar desamparado. — Agora, caro senhor, diga quem é e o que faz aqui — ordenou Hopkins. — São detetives, com certeza... E julgam que tenho alguma coisa a ver com a morte de Peter Carey? — perguntou o rapaz. — Garanto que estou inocente. — Veremos — replicou Hopkins. — Em primeiro lugar, como se chama? — John Hople Neligan. Vi Holmes e o detetive trocarem um rápido olhar. — Posso falar confidencialmente? — perguntou o rapaz. — Claro que não. — Então, por que haverei de contar-lhes?... — Se não quiser falar, isso poderá prejudicá-lo no julgamento. O rapaz contraiu-se. — Pois bem, vou falar. E por que não? — disse ele. — Mesmo assim, tenho horror a ver ressuscitado o antigo escândalo. Ouviram falar de Dawson & Neligan? Pela expressão de Hopkins, percebi que o nome nada lhe dizia, mas Holmes me pareceu vivamente interessado. — Refere-se aos banqueiros — disse meu amigo. — Falência de um milhão. Arruinaram metade das famílias do condado de Cornwail, e Neligan desapareceu. — Exatamente. Neligan era meu pai.
Finalmente, tínhamos algo de concreto, mas parecia haver muita distância entre um banqueiro falido e a morte do capitão Peter Carey, que fora espetado na parede com um dos seus próprios arpões. Ouvimos atentamente a história do rapaz. — O verdadeiro implicado era meu pai, pois Dawson estava aposentado. Eu só tinha dez anos, naquela altura, mas era uma idade suficiente para sentir horror e vergonha... Sempre julgaram que meu pai roubara as ações e os títulos e fugira. Não é verdade. Ele acreditava que, se lhe dessem tempo, poderia resolver o caso e pagar a todos os credores. Partiu para a Noruega, no seu iate, antes que fosse expedido um mandado de prisão contra ele. Lembro-me da noite em que se despediu de minha mãe. Deixou-nos uma lista dos títulos que levava e jurou que voltaria com o nome limpo, e que nenhum dos que tinham confiado nele sofreria prejuízos. Nunca mais tivemos notícias dele. Tanto meu pai como o iate desapareceram. Minha mãe e eu acreditamos que ele e os títulos estavam no fundo do mar. Mas temos um amigo, homem de negócios, que descobriu que há algum tempo certos títulos que foram levados por meu pai tinham aparecido no mercado de Londres. Levei meses à procura de uma pista, e, depois de grandes dificuldades, descobri que haviam sido vendidos por um tal capitão Peter Carey, o dono desta cabana. "Procurei, naturalmente, investigar a vida do homem. Descobri que comandara um baleeiro e que devia ter voltado do mar Ártico na mesma ocasião em que meu pai se dirigira para a Noruega. O tempo estivera tormentoso naquela época do ano, tendo havido grandes tufões. Era possível que o iate de meu pai tivesse sido levado para o norte e encontrado o navio do capitão Carey. Se fosse esse o caso, que fim levara meu pai? De qualquer maneira, eu poderia provar, por intermédio de Peter Carey, que meu pai não vendera tais ações e que não pretendera lucro quando as levara. "Vim a Sussex com intenção de visitar o capitão, quando se deu a tragédia. Li no processo a descrição desta cabana e fiquei sabendo da existência dos diários de bordo. Pareceu-me que, se eu conseguisse saber o que acontecera no mês de agosto, no ano de 1883, a bordo do Sea Unicorn, descobriria qual fora a sorte de meu pai. Tentei entrar aqui a noite passada, mas não consegui abrir a porta. Consegui-o hoje, mas vi que as páginas referentes àquela época haviam sido arrancadas. Foi então que os senhores me pegaram." — Só isso? — perguntou Hopkins. — Sim, só isso — respondeu o rapaz, desviando os olhos. — Nada mais tem a dizer? Ele hesitou. — Não, nada mais. — Não esteve aqui na noite de anteontem? — Não. — Como explica isto aqui? — perguntou Hopkins, mostrando o caderno de apontamentos, com a mancha de sangue e as iniciais do prisioneiro na capa. — Onde o encontraram? — gemeu o rapaz. — Eu não sabia. Pensei que o tivesse perdido no hotel. — Basta — disse Hopkins. — Seja o que for que tiver para dizer, será dito no julgamento. Agora, vamos para o posto da polícia. Muito bem, sr. Holmes, agradeço-lhe, e a seu amigo, o auxílio que me prestaram. Da forma como as coisas correram, a presença dos senhores era desnecessária, e eu teria resolvido o caso sozinho, mas, mesmo assim, fico-lhes grato. Reservei quartos para os senhores no Brambletye Hotel, e podemos ir juntos até a vila.
— Então, Watson, que me diz? — perguntou-me Holmes no dia seguinte, quando viajávamos para Londres. — Vejo que não está satisfeito. — Oh, estou, sim, perfeitamente satisfeito, caro Watson. Mas, ao mesmo tempo, não aprecio os métodos de Hopkins. Depositava nele maiores esperanças. Decepcionou-me. Devemos sempre prever duas hipóteses e tomar precauções contra elas. É a primeira regra, numa investigação. — Qual é, então, a segunda hipótese? — O rumo que eu próprio tomei. Pode ser que dê em nada, mas quero ir até o fim. Várias cartas esperavam por Holmes, na Baker Street. Ele pegou uma, abriu-a e soltou uma gargalhada triunfante. — Ótimo, caro Watson. A hipótese se desenvolve. Tem aí alguns impressos de telegrama? Faça o favor de escrever: "Agência de Navegação Summer, Ratcliff Highway. Mandem três homens aqui amanhã, às dez horas da manhã. Basil". Holmes explicou-me: — Basil é o nome que adotei lá. Mande outro telegrama: "Inspetor Staniey Hopkins, Lord Street, 46, Brixton. Venha tomar café conosco amanhã, às nove e meia. Importante. Telegrafe, se não puder vir. Sherlock Holmes". Pois bem, Watson, vou afastar agora do meu pensamento este maldito caso, que há dez dias anda me atormentando. Espero que amanhã seja o fim. Hopkins apareceu pontualmente à hora marcada. Sentamo-nos para apreciar a excelente refeição da manhã, preparada pela sra. Hudson. O jovem detetive estava satisfeito com seu sucesso. — Acha realmente que a solução é essa? — perguntou Holmes. — Não creio que possa haver caso mais completo. — Pois não me parece satisfatório. — O senhor me surpreende, sr. Holmes. Que mais se poderia esperar? — Acha que sua explicação resolve todos os pontos? — Sem dúvida — respondeu Hopkins. — Descobri que o jovem Neligan chegou ao Brambletye Hotel no dia do crime, sob o pretexto de ir jogar golfe, O quarto dele ficava no andar térreo, e portanto ele poderia sair quando bem entendesse. Nessa mesma noite, foi a Woodman's Lee, visitou o capitão Carey na sua cabana, brigaram, e Neligan matou-o com o arpão. Depois fugiu, horrorizado, deixando cair o caderno de apontamentos, que levara para mostrar a Carey e indagar a respeito das ações desaparecidas. O senhor bem sabe que algumas estavam marcadas — a maioria — e as outras, não. As marcadas são as que apareceram no mercado, mas as outras com certeza ainda estavam em poder do capitão. Pelo que Neligan nos disse, ele estava aflito por recuperá-las, para cumprir o desejo do pai. Depois do crime, durante algum tempo não teve coragem de voltar à cabana, mas finalmente criou coragem para procurar obter as informações desejadas. Não acha que é simples e óbvio? Holmes sorriu e sacudiu a cabeça. — Parece-me que há um obstáculo, Hopkins: é intrinsecamente impossível. Já tentou varar um corpo com um arpão? Não?...Ora, caro senhor, precisa dar atenção a esses pormenores. Meu amigo Watson poderá lhe dizer que dediquei uma manhã inteira a esse exercício... Não é fácil, e exige um braço forte e experiente. Mas o golpe foi dado com tal violência que o arpão entrou na parede. Acha aquele anêmico garoto capaz de tal feito?
Será ele o homem que se encheu de rum com água, em companhia de Peter Carey, no meio da noite? Era seu, o perfil que foi visto na janela? Não, não, Hopkins, devemos procurar outra pessoa, muito mais forte e decidida. A expressão do detetive fora se tornando cada vez mais sombria, à medida que Holmes falava. Esperanças e ambições caíam por terra. Mas não abandonaria sem luta a sua posição. — Não pode negar que Neligan tenha estado presente na noite do crime, sr. Holmes. O caderno de apontamentos serve de confirmação. Creio que temos provas suficientes para apresentá-lo ao júri; já agarrei o meu homem. Quanto a essa terrível pessoa a que se refere, onde está ela? — Parece-me que vem subindo a escada — respondeu Holmes, serenamente. — Creio, Watson, que seria bom guardar o revólver automático onde possa pegá-lo com facilidade. Holmes ergueu-se e estendeu na mesa um papel escrito. — Estamos prontos — acrescentou. A porta abriu-se e a sra. Hudson veio avisar que três homens perguntavam pelo capitão Basil. — Mande-os entrar, um de cada vez — disse Holmes. O primeiro era um homem franzino, de rosto corado e suíças grisalhas. Holmes tirara uma carta do bolso. — Nome? — perguntou. — James Lancaster. — Sinto muito, Lancaster, mas já não há vaga. Tome meio soberano, pelo incômodo. Faça o favor de entrar naquela sala e esperar um pouco. O segundo era um homem alto e seco, de cabelos ralos e rosto pálido. Chamava-se Hugh Pattins. Também ele foi despachado, com meio soberano e a ordem de ficar esperando. O terceiro era um sujeito de extraordinária aparência. Rosto feroz, de buldogue, no meio de uma barba e uma cabeleira emaranhada, dois olhos escuros e ousados brilhando sob sobrancelhas grossas e negras. Saudou à moda dos marinheiros e ficou revirando o boné nas mãos. — Nome? — perguntou Holmes. — Patrick Cairns. — Arpoador? — Sim, senhor. Vinte e seis viagens. — Dundee, creio eu? — Sim, senhor. — Pronto a partir nesta viagem de exploração? — Sim, senhor. — Quanto quer ganhar? — Oito libras por mês.
— Pode partir imediatamente? — Assim que for buscar minhas coisas. — Tem documentos? — Sim, senhor — respondeu ele, tirando do bolso uns papéis ensebados. Holmes examinou-os e devolveu-os ao sujeito. — É justamente o homem de quem preciso. Aqui está o contrato. Basta assinar e está tudo resolvido. O marinheiro aproximou-se da mesa e apanhou a pena. — Devo assinar inclinando-se.
aqui?
—
perguntou,
Holmes dobrou-se sobre o sujeito, passando-lhe as duas mãos por cima dos ombros. — Pronto — disse ele. Ouvi o ruído de algemas que se fechavam e um berro de touro enfurecido. No momento seguinte, Holmes e o marinheiro rolavam no chão. Era um homem de tão grande força que, mesmo algemado, teria vencido meu amigo, se Hopkins e eu não nos apressássemos em ir em seu auxílio. Só quando encostei o metal frio do revólver na testa do homem é que ele compreendeu que qualquer resistência seria inútil. Amarramos os tornozelos do gigante e erguemo-nos, ofegantes. — Devo pedir-lhe desculpas, Hopkins — disse Holmes. — Parece-me que os ovos mexidos esfriaram. Mas creio que apreciará o resto da refeição ainda mais, sabendo que levou o caso a um brilhante resultado. Hopkins estava mudo de espanto. — Não sei o que dizer, sr. Holmes — exclamou afinal, todo vermelho. — Parece-me que fiz papel de tolo desde o princípio. Compreendo agora o que nunca deveria ter esquecido: que sou o aluno e o senhor, o mestre. Vejo o que o senhor fez, mas não sei como o fez, nem o que tudo isso significa. — Bom, bom, todos nós aprendemos com a experiência — disse Holmes, bem-humorado. — E a lição, neste caso, é que nunca devemos nos esquecer da alternativa. Você estava tão obcecado por Neligan, que não pensou em Patrick Cairns, o verdadeiro assassino. A voz rouca do marinheiro interrompeu a conversa. — Escute aqui, cavalheiro, não me queixo de ter sido tratado desta forma, mas gostaria que chamasse as coisas pêlos seus verdadeiros nomes. O senhor disse que assassinei Peter Carey, mas eu digo que matei Peter Carey, e aí é que está toda a diferença. Talvez não acredite em mim. Talvez pense que estou dizendo besteira. — De maneira nenhuma — disse Holmes. — Ouçamos o que tem a dizer. — Quanto mais cedo, melhor, e, por Deus, juro que é tudo verdade. Conhecia muito bem Peter Carey, e, quando ele puxou a faca, agarrei o arpão, pois sabia que um de nós tinha
de desaparecer. Foi assim que ele morreu. Pode chamar a isto assassinato. De qualquer maneira, prefiro morrer com uma corda no pescoço a morrer com a faca de Peter Carey enfiada no coração. — Como apareceu por lá? — perguntou Holmes. — Vou contar do princípio. Deixe-me sentar, para descansar um pouco. Foi em agosto de 83. Peter Carey era capitão do Sea Unicorn, e eu, um dos arpoadores. Íamos saindo do meio dos gelos flutuantes, ao voltar para casa, com um vento forte, quando demos com uma embarcação que fora empurrada para o norte. Havia nela apenas um homem — que não era marinheiro. A tripulação pensara que o barco ia naufragar e fugira para a costa da Noruega, no bote salva-vidas. Creio que todos se afogaram. Pois bem, recolhemos o homem, e ele e o capitão tiveram longas conversas. Ao que me consta, nunca se soube o nome do homem; na segunda noite ele desapareceu, como se nunca tivesse existido. Disseram que se atirara ao mar, ou caíra, devido ao vento forte que soprava. Somente um homem sabia o que lhe acontecera, pois vi com os meus próprios olhos o capitão atirá-lo ao mar, naquela noite escura. "Pois bem, guardei o que sabia só para mim, esperando ver no que dariam as coisas. Quando voltamos para a Escócia, o caso foi abafado, e ninguém fez muitas perguntas. Um estranho morrera, por acidente, e isso a ninguém interessava. Logo depois, Peter Carey abandonou o mar, e levei tempo até descobrir onde morava. Julguei que tivesse feito aquilo pelo que havia na caixa de estanho, e que podia dar-me, portanto, para eu ficar de bico calado, uma boa quantia. "Descobri onde morava por intermédio de outro marinheiro, que o encontrara em Londres, e fui até lá, para sondar o terreno. Na primeira noite, mostrou-se cordato, dizendo estar disposto a me dar uma quantia que me permitiria deixar o mar para o resto da vida. Combinamos que resolveríamos tudo duas noites mais tarde. Quando fui lá, encontrei-o bêbado e de péssimo humor. Bebemos e conversamos sobre os velhos tempos, mas, quanto mais ele bebia, menos eu gostava da expressão do seu rosto. Vi o arpão na parede e pensei que talvez viesse a precisar dele, antes que acabasse a noite. Finalmente, Peter Carey não se conteve e começou a me ameaçar, com olhar assassino e a mão na faca. Não chegou a tirá-la da bainha, pois eu já o varara com o arpão. Céus, que berro soltou! Só de me lembrar, perco o sono. Ali fiquei, com todo aquele sangue à minha volta, esperando. Mas, como não ouvi ruído algum, criei coragem. Vi a caixa de estanho. Tinha tanto direito a ela como Peter Carey. Agarrei-a e saí da cabana. Como idiota que sou, deixei a bolsa de tabaco em cima da mesa. "Vou agora contar a parte mais estranha da história. Mal saíra, ouvi chegar alguém. Escondi-me no meio das moitas. Um homem entrou furtivamente, soltou um grito e saiu correndo, como se o Diabo o perseguisse. Quanto a mim, caminhei dezesseis quilômetros, apanhei um trem em Tunbridge Wells e cheguei a Londres sem que desconfiassem de coisa alguma. "Quando examinei a caixa, vi que não continha dinheiro; apenas títulos, que eu não tinha coragem de vender. Perdera o domínio sobre Peter Carey e estava em Londres sem um níquel. Restava a minha profissão. Vi o anúncio sobre arpoadores e o ordenado alto que ofereciam, de modo que procurei a companhia de navegação e de lá me mandaram aqui. É tudo o que sei, e repito que, se matei Peter Carey, a lei deve me agradecer, pois poupei ao país o dinheiro da corda que o enforcaria".
— Exposição muito clara — disse Holmes, erguendo-se e acendendo o cachimbo. — Acho, Hopkins, que não deve perder tempo em mandar seu prisioneiro para um lugar seguro. Esta sala não serve de cela, e o sr. Patrick Cairns ocupa muito espaço. — Não sei como lhe agradecer, sr. Holmes — disse Hopkins. — Mas ainda não percebi como chegou a esse resultado. — Simplesmente por ter tido a sorte de seguir a pista certa desde o início. É possível que, se soubesse da existência do caderno de apontamentos, me afastasse do caminho certo, como você. Mas tudo o que eu vira apontava numa direção. A força extraordinária, a habilidade no manejo do arpão, o rum com água, a bolsa de tabaco de couro de foca, tudo isso indicava um marinheiro que trabalhara num baleeiro. Eu estava convencido de que as iniciais P. C. na bolsa de tabaco eram uma coincidência, e não as iniciais de Peter Carey, pois ele raramente fumava, e não se encontrou nenhum cachimbo na cabana. Lembra-se de que lhe perguntei se tinham encontrado uísque e conhaque na cabana? Você respondeu que sim. Quantos homens, entre os que vivem em terra, beberiam rum podendo beber outra coisa? Sim, eu estava certo de que se tratava de um marinheiro. — E como o encontrou? — Caro amigo, o problema se tornava muito simples. Se fosse marinheiro, só poderia ser um marinheiro que estivera com Peter Carey no Sea Unicorn. Ao que me constava, ele não viajara noutro navio. Levei três dias mandando telegramas para Dundee, e fiquei sabendo quais os tripulantes do Sea Unicorn em 1883. Quando vi o nome de Patrick Cairns entre os arpoadores, percebi que chegava ao fim. Calculei que estivesse em Londres e que, naturalmente, quereria fugir o mais depressa possível. Passei alguns dias em East End, inventei uma expedição ao Ártico, publiquei anúncios tentadores para os arpoadores que quisessem partir com o capitão Basil... e veja o resultado. — Maravilhoso! — exclamou Hopkins. — Maravilhoso! — Precisa mandar soltar Neligan o mais depressa possível — disse Holmes. — Confesso que acho que você lhe deve desculpas. A caixa de metal tem que lhe ser devolvida, é claro, mas as ações vendidas por Peter Carey nunca mais serão recuperadas. Chegou o carro, Hopkins; pode levar seu homem. Se precisar de mim ou de Watson para o julgamento, nosso endereço será... um lugar qualquer, na Noruega. Depois mandarei explicações.
Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar
Sherlock Holmes em: Charles Augustus Milverton Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
Faz anos que aconteceram os fatos que vou narrar, mas, mesmo assim, é com certo constrangimento que os evoco. Durante muito tempo teria sido impossível torná-los públicos, mesmo discretamente, mas agora a principal personagem está fora do alcance da justiça humana, e, com a devida reserva, a história poderá ser relatada sem prejuízo de quem quer que seja. Foi uma experiência única na vida de Sherlock Holmes e na minha. O leitor me perdoará por ocultar datas ou quaisquer outros fatos que possam levá-lo a reconhecer pessoas ou lugares. Holmes e eu tínhamos saído para nosso passeio habitual, voltando mais ou menos às seis horas, numa tarde fria. Quando meu amigo acendeu a luz, vimos um cartão sobre a mesa. Holmes olhou-o e depois, num gesto de repulsa, atirou-o ao chão. Apanhei-o e li:
— Quem é ele? — perguntei. — O maior canalha de Londres — respondeu Holmes, sentando-se e esticando as pernas diante do fogo. — Há alguma coisa escrita no verso do cartão? Virei o cartão e li: — "Estarei aí às seis e meia — C. A. M." — Hum!... — resmungou Holmes. — Deve estar chegando. Você não tem uma sensação de nojo, Watson, quando vê as serpentes no Jardim Zoológico, aqueles animais viscosos, furtivos, venenosos, de olhos assassinos e cabeças chatas e repulsivas? Pois bem, é essa a impressão que me causa Milverton. Já lidei com cinquenta assassinos em minha carreira, mas o pior deles jamais me causou a sensação de repulsa que esse sujeito me inspira. Apesar de tudo, não posso deixar de negociar com ele, e, para ser franco, Milverton vem aqui a meu pedido. — Mas quem é ele? — Vou contar-lhe, Watson. É o rei dos chantagistas. Deus ajude o homem e, principalmente, a mulher cujo segredo caia nas mãos daquele homem! Com rosto sorridente e coração de pedra, ele os sugará, até deixá-los completamente exangues. O homem é um gênio, à sua moda, e teria alcançado sucesso num negócio menos sórdido. Seu método é o seguinte: faz com que se saiba que pagará um preço muito alto por cartas que comprometam pessoas de dinheiro e posição. A mercadoria lhe é entregue não somente por criadas e lacaios desleais, como também por malandros que
conseguiram conquistar a afeição de mulheres que confiam neles. Ele nada tem de mesquinho, quando paga. Sei que deu setecentas libras a um lacaio por um bilhete de duas linhas, e o resultado foi a ruína de uma família nobre. Tudo o que existe no mercado, nesse gênero, vai parar nas mãos de Milverton, e há nesta cidade centenas de pessoas que empalidecem ao ouvir seu nome. Ninguém sabe onde sua espada cairá, pois, sendo muito rico e astuto, não age precipitadamente. Às vezes guarda um bilhete durante anos, à espera do momento oportuno para ameaçar a vítima. Eu lhe disse, Watson, que ele é o maior canalha de Londres. O bandoleiro que mata o comparsa no calor de uma briga não pode ser comparado a esse miserável Milverton, que, com método e sem pressa, tortura a alma e dilacera os nervos das criaturas, para aumentar sua já considerável fortuna. Eu nunca ouvira meu amigo falar com semelhante excitação. — Mas esse homem não está ao alcance da lei? — perguntei. — Tecnicamente, sim, mas não na prática. De que adiantaria a uma mulher, por exemplo, fazer com que ele fosse passar uns meses na cadeia, se isso causasse sua própria ruína? As vítimas de Milverton não ousam reagir. Se algum dia ele tentasse chantagear uma pessoa inocente, aí sim nós poderíamos agarrá-lo. Mas o sujeito é esperto como o diabo. Não, não; temos de encontrar outros meios de lutar contra ele. — Mas por que ele vem aqui? — Porque uma ilustre cliente me confiou seu triste caso. Trata-se de Lady Eva Brackwell, a mais linda debutante do ano passado. Deve casar-se, daqui a quinze dias, com o conde de Dovercourt. Aquele bandido tem em seu poder algumas cartas levianas — levianas, apenas, Watson, nada mais — que foram escritas a um nobre sem fortuna, do interior. As cartas bastariam para fazer com que o noivado fosse desfeito. Milverton mandará as cartas para o conde, a não ser que lhe paguem uma grande quantia. Recebi uma procuração para tratar com ele e tentar o melhor entendimento possível. Nesse momento, ouvimos um ruído de patas de cavalo do lado de fora. Olhando pela janela, vi uma imponente carruagem, puxada por dois soberbos animais. Um lacaio abriu a porta e avistei um homem baixo, gordo, de casaco de astracã. Dali a segundos, ele entrava na sala. Milverton era um homem de cinqüenta anos, com uma cabeça grande, ar de intelectual, rosto barbeado, um sorriso gélido perpetuamente nos lábios e dois perspicazes olhos cinzentos, que brilhavam por trás de óculos de aros dourados. Havia nele um ar benevolente, prejudicado apenas pela hipocrisia do sorriso fixo e pelo brilho duro dos olhos inquietos e penetrantes. Sua voz era
macia e suave. Avançou para nós, estendendo a mão gorda, dizendo lamentar não nos ter encontrado quando de sua primeira visita. Holmes ignorou a mão estendida e olhou-o com expressão gélida. O sorriso de Milverton alargou-se. Encolheu os ombros, tirou o sobretudo, dobrou-o com ar deliberado sobre as costas da cadeira e sentou-se. Com um gesto em minha direção, disse: — Este cavalheiro... será discreto?... Não haverá problema? — O dr. Watson é meu amigo e sócio — declarou Holmes. — Muito bem, sr. Holmes. Falei apenas no interesse de sua cliente. O assunto é tão delicado... — O dr. Watson está a par da situação. — Então podemos tratar do negócio. O senhor diz que representa Lady Eva. Ela deu-lhe poderes para aceitar minhas condições? — Quais são elas? — Sete mil libras. — E a alternativa? — Caro senhor, é-me penoso discuti-la. Mas, se o dinheiro não me for entregue até o dia 14, certamente não haverá casamento no dia 18. O sorriso do homem pareceu-me mais complacente do que nunca. Holmes refletiu durante alguns segundos. — Parece-me que o senhor está muito seguro de si — disse finalmente. — Conheço, já se sabe, os termos das cartas. Minha cliente fará, sem a menor dúvida, o que eu lhe recomendar. Vou aconselhá-la a contar tudo ao noivo e apelar para sua generosidade. Milverton deu uma risadinha irônica: — Vê-se que não conhece o conde — disse ele. Pela expressão de Holmes percebi que o conhecia. — Que mal há naquelas cartas? — perguntou o meu amigo. — São expressivas, muito expressivas — respondeu Milverton. — A jovem era uma correspondente encantadora, mas posso garantir-lhe que o conde de Dovercourt não apreciaria tal qualidade. Enfim, já que sua opinião é outra, vamos deixar as coisas como estão. Se o senhor achar que Lady Eva não
ficará prejudicada, caso as cartas sejam entregues ao conde, então seria tolice pagar por elas uma tão elevada quantia. O homem ergueu-se e apanhou o sobretudo de astracã. Holmes estava pálido de cólera e humilhação. — Espere um pouco — disse ele. — Não tenha pressa. Claro que faríamos tudo para evitar um escândalo, tratando-se de assunto tão delicado. Milverton tornou a sentar-se. — Tinha a certeza de que compreenderia a situação — disse ele. — Ao mesmo tempo, Lady Eva não é rica — continuou Holmes. — Posso garantir-lhe que duas mil libras abririam um rombo em seus recursos, mas a soma que o senhor indicou está completamente fora de discussão. Peço-lhe, portanto, que modere suas exigências e devolva as cartas ao preço que estipulei, o mais alto que poderá obter. O sorriso de Milverton alargou-se, e os olhos assumiram um brilho divertido. — Sei que me diz a verdade, quanto aos recursos da nobre dama — disse ele. — Ao mesmo tempo, o senhor deve compreender que o casamento de uma jovem é ocasião propícia para parentes e amigos fazerem um esforço em sua honra. Pode ser que hesitem na escolha de um presente. Mas posso garantirlhe que aquele maço de cartas daria mais prazer à noiva do que todos os candelabros e manteigueiras de Londres. — É impossível — declarou Holmes. — Ora, ora — disse Milverton, tirando do bolso uma carteira. — Não posso deixar de achar que as mulheres agem mal, recusando-se a fazer um esforço. Veja isto aqui! Milverton mostrou um envelope onde havia um brasão, e continuou: — Isto pertence... pois bem, não acho justo dizer o nome até amanhã de manhã. A esta hora, já estará nas mãos do marido. E tudo porque uma ilustre dama não encontrou a miserável quantia que poderia obter numa hora, trocando seus brilhantes verdadeiros por falsos. É pena. Lembra-se do súbito rompimento do noivado da ilustre srta. Miles com o coronel Dorking? Apenas dois dias antes do casamento, saiu um parágrafo no Morning Post anunciando esse rompimento. E por quê? Parece incrível, mas a absurda soma de mil e duzentas libras teria resolvido o assunto. E aqui está o senhor, um homem sensato, regateando, quando o futuro e a honra de sua cliente estão em jogo. O senhor surpreende-me, sr. Holmes. — O que digo é verdade — declarou Holmes. — O dinheiro não pode ser arranjado. Certamente é preferível aceitar a substancial quantia que lhe ofereço
a arruinar a vida dessa mulher, o que nenhum proveito lhe traria. — Engana-se nesse ponto, sr. Holmes. Um escândalo me traria, indiretamente, grandes vantagens. Tenho oito ou dez casos em andamento. Se os interessados ficarem sabendo que não poupei Lady Eva, procurarão, sem dúvida, mostrar-se mais razoáveis. Compreende meu ponto de vista? Holmes levantou-se de um salto. — Ponha-se atrás dele, Watson. Não o deixe sair daqui! Agora, senhor, vamos ver o conteúdo dessa carteira. Ágil como um rato, Milverton escorregara para um canto da sala, e estava de costas para a parede. — Sr. Holmes, sr. Holmes! — disse, abrindo o casaco e mostrando o cano de um revólver, que se projetava de um bolso interno. — Estava à espera de que fizesse algo original. Já tentaram isso tantas vezes, e com que vantagem?... Asseguro-lhe que estou armado até os dentes e pronto a usar minha arma, pois sei que a lei estaria do meu lado. Além disso, está completamente enganado se pensa que eu iria trazer a carta. Nunca faria tal loucura. Agora, senhores, tenho mais uma ou duas entrevistas hoje à noite, e é uma longa viagem até Hampstead. O homem adiantou-se, apanhou o sobretudo, segurou o revólver e virou-se para a porta. Peguei uma cadeira, mas Holmes sacudiu a cabeça e larguei-a de novo. Com uma curvatura, um sorriso e um brilho no olhar, Milverton saiu da sala. Momentos depois, ouvimos o ruído da carruagem que se afastava. Holmes ficou imóvel perto do fogo, as mãos enfiadas nos bolsos das calças, o queixo sobre o peito, os olhos fixos nas cinzas. Por meia hora permaneceu imóvel e em silêncio. Depois, com o gesto de quem toma uma resolução, levantou-se de um salto e dirigiu-se para o quarto. Dali a pouco, vi sair dali um operário de ar insolente, barbicha e andar bamboleante, que acendeu o cachimbo de barro antes de sair para a rua. — Não sei a que horas voltarei, Watson — disse ele, desaparecendo no meio da noite. Compreendi que declarara guerra contra Charles Augustus Milverton, embora pouco soubesse do estranho rumo que tomariam os acontecimentos. Durante alguns dias, Holmes entrava e saía a qualquer hora vestido daquela forma; mas, excetuando-se a informação de que passava o tempo em Hampstead, eu nada sabia de seus movimentos. Finalmente, numa noite tempestuosa, voltou de sua última expedição. Depois de tirar o disfarce,
sentou-se diante do fogo e riu, à sua maneira silenciosa, para dentro. — Não me julga um galante, não é verdade, Watson? — Não, claro que não! — Creio que gostará de saber que estou noivo... — Caro amigo! Parabéns.... — ... da empregada de Milverton. — Deus do céu, Holmes! — Eu queria informações, Watson. — Mas não terá ido longe demais? — Era necessário. Sou um encanador, dirijo um negócio próspero, e meu nome é Scott. Tenho saído com ela todas as noites, e temos conversado muito. Santo Deus, aquelas conversas! Em todo caso, consegui o que queria. Conheço a casa de Milverton como a palma de minha mão. — Mas e a moça, Holmes? Meu amigo encolheu os ombros. — Não há remédio, Watson. Temos de lutar com as armas à nossa disposição, quando está em jogo um assunto tão importante. Mas folgo em dizer-lhe que tenho um temível rival que, sem a menor dúvida, me substituirá assim que eu virar as costas. Que linda noite!... — Gosta deste tempo? — Serve para meus desígnios, Watson. Pretendo invadir a casa de Milverton hoje à noite. Senti um frio na espinha ao ouvir tais palavras, pronunciadas lentamente e em tom de firme resolução. Assim como um relâmpago, à noite, mostra de relance todos os pormenores de uma paisagem, num segundo vi as conseqüências de tal aventura — prisão, a honrada carreira de meu amigo arruinada para sempre, e Holmes à mercê do detestável Milverton. — Pelo amor de Deus, Holmes, pense no que vai fazer! — exclamei. — Caro amigo, já pensei bastante. Não sou precipitado, e não teria tomado uma resolução tão enérgica e perigosa se houvesse alternativa. Vejamos as coisas com clareza e sangue-frio. Você há de reconhecer que o ato é moralmente justificável, embora tecnicamente criminoso. Invadir a casa de Milverton não é pior do que roubar-lhe a carteira... e, nisso, você estava
disposto a ajudar-me. Durante segundos, pesei o argumento. — Sim, moralmente justificável, contanto que nosso objetivo seja subtrair unicamente objetos que se pretenda usar para fins ilegais. — Exatamente. Já que é moralmente justificável, tenho apenas de considerar o risco pessoal. Não há dúvida de que um cavalheiro não deve pensar nisso, quando uma dama precisa desesperadamente de auxílio, não é verdade? — Você ficará em posição muito incômoda. — Bem, isso faz parte do risco. Não há outra maneira de conseguir as cartas. A pobre jovem não tem o dinheiro, e não pode abrir-se com ninguém da família. Amanhã é o último dia para o pagamento e, a não ser que recuperemos as cartas hoje à noite, aquele miserável cumprirá sua ameaça e fará a infelicidade de Lady Eva. Cá entre nós, Watson, é um duelo entre Milverton e este seu amigo. Como você viu, o chantagista teve vantagem no primeiro encontro, mas minha reputação e meu amor-próprio estão envolvidos na luta. — Bem, não gosto nada disso, mas, se tem de ser, paciência. A que horas vamos? — Você não vai — disse Holmes. — Então você também não vai — declarei. — Dou-lhe minha palavra de honra (e jamais a quebrei, durante toda a vida) que tomarei um carro até a polícia e lá o denunciarei, a não ser que queira levar-me em sua aventura noturna. — Você em nada poderá ajudar-me — disse Holmes. — Como sabe? Ninguém pode prever o que vai acontecer. De qualquer maneira, minha resolução está tomada. Há outras pessoas, além de você, que têm amor-próprio e reputação. Holmes parecera aborrecido, mas seu rosto desanuviou-se, e bateu no meu ombro. — Bem, bem, caro amigo, vá lá, então. Compartilhamos do mesmo quarto durante anos, e seria interessante se acabássemos compartilhando a mesma cela. Sabe, Watson, confesso que sempre achei que eu poderia ser um criminoso muito eficiente! É esta a oportunidade de minha vida, nesse setor. Holmes tirou uma pequena pasta de couro de uma gaveta, abriu-a e exibiu uma porção de instrumentos reluzentes. — Aqui está um estojo de arrombamento, de primeira classe, com as mais modernas ferramentas. Aqui está também minha lanterna. Tudo em ordem. Tem um par de sapatos que não façam barulho?
— Tenho tênis. — Ótimo. E máscara? — Posso fazer uma, com seda preta. — Vejo que tem vocação para a coisa. Muito bem: as máscaras ficam por sua conta. Faremos uma refeição fria antes de partir. São nove e trinta. Às onze iremos até a Church Row. É uma caminhada de um quarto de hora de lá até Appiedore Towers. Estaremos trabalhando antes da meia-noite. Milverton tem um sono muito pesado, e vai para a cama pontualmente às dez e meia. Com sorte, estaremos de volta às duas horas, com as cartas de Lady Eva no bolso. Holmes e eu nos vestimos de maneira a parecermos dois cavalheiros regressando do teatro. Na Oxford Street, apanhamos um carro e demos um endereço em Hampstead. Ali pagamos o carro e, de sobretudo abotoado, pois fazia muito frio e soprava um vento cortante, caminhamos ao longo da margem do Heath. — É um negócio que precisa ser tratado com delicadeza — disse Holmes. — Os documentos estão num cofre, no escritório do homem, e o escritório é uma antecâmara de seu quarto de dormir. Por outro lado, como todos esses homenzinhos que se tratam bem, ele tem um sono muito pesado. Agatha, minha noiva, diz que já é motivo de troça, entre os empregados, o fato de ser impossível acordar o patrão. Ele tem um secretário muito delicado, que não arreda pé do escritório durante o dia. É por isso que vamos à noite. Há também um cão terrível, que ronda por ali a noite toda. Encontrei-me com Agatha muito tarde, nestas duas últimas noites, e ela prende o animal para me dar liberdade. A casa é aquela, grande, no meio de um parque. Vamos atravessar o portão. Agora, à direita, por entre os loureiros. Creio que chegou o momento de pormos as máscaras. Veja, não há uma réstia de luz em nenhuma das janelas. Tudo corre às mil maravilhas. Com as máscaras de seda preta, que nos transformaram em dois temíveis bandidos, dirigimo-nos para a casa silenciosa. Uma espécie de varanda se estendia de um dos lados da casa e para ela davam duas portas e várias janelas. — É logo ali o quarto dele — murmurou Holmes. — Esta porta dá para o escritório. Seria melhor entrarmos por aqui, mas está trancada e faríamos muito barulho. Venha. Há uma estufa que dá para o salão. A estufa estava fechada, mas Holmes cortou um quadrado de vidro da porta, enfiou a mão pelo buraco e deu a volta à chave, lá dentro. Momentos depois, fechou a porta atrás de nós e, com isso, transformou-nos em infratores da lei. Sentimos o ar quente da estufa e o cheiro das plantas exóticas. Holmes segurou minha mão, no escuro, e conduziu-me rapidamente por entre as plantas que nos roçavam o rosto. Meu amigo tinha o extraordinário dom, cuidadosamente cultivado, de enxergar no escuro. Ainda segurando minha
mão, abriu uma porta, e tive a impressão de entrar num quarto grande, onde haviam fumado um charuto há pouco. Ele procurou orientar-se em meio à mobília, abriu outra porta e fechou-a. Estendendo a mão, percebi que havia vários casacos pendurados na parede, e compreendi que estávamos num corredor. Caminhamos por ele, e Holmes abriu de mansinho uma porta à direita. Alguma coisa passou por nós, e meu coração parou, mas quase deixei escapar uma risada ao concluir que fora apenas um gato. Nesse aposento a lareira estava acesa, e senti de novo o cheiro forte de tabaco. Holmes entrou nas pontas dos pés, esperou que eu o seguisse e fechou de mansinho a porta. Estávamos no escritório de Milverton. Uma cortina pesada, na outra extremidade, indicava a entrada do quarto. O fogo, forte, iluminava o aposento. Perto da porta, vi o brilho de um comutador, mas era desnecessário acender a luz, mesmo havendo algum perigo. De um lado da lareira, havia uma cortina pesada, que vedava a janela saliente que tínhamos visto de fora. Do outro lado, uma porta que se comunicava com a varanda. No centro havia uma escrivaninha, com cadeira giratória de cabedal vermelho. Do outro lado, uma estante, encimada por um busto de Atena. A um canto, entre a estante e a parede, vimos um alto cofre verde, em cujas maçanetas de bronze se refletia a luz da lareira. Holmes atravessou a sala e examinou o cofre. Foi depois até a porta do quarto e, a cabeça de lado, ficou atentamente à escuta. Nenhum som veio de lá. Nesse meio tempo, ocorreu-me que seria de bom alvitre preparar nossa retirada pela porta externa, de modo que fui examiná-la. Vi, com espanto, que não estava trancada nem fechada à chave. Bati de leve no braço de Holmes e ele olhou naquela direção. Teve um sobressalto, mostrando-se tão surpreendido como eu. — Não gosto nada disso — murmurou ao meu ouvido. — Não entendo. De qualquer maneira, não temos tempo a perder. — Quer que eu faça alguma coisa? — Sim, fique perto da porta. Se ouvir alguém chegar, tranque-a, e poderemos sair por onde entramos. Se vierem pelo outro lado, poderemos sair pela porta, se nossa missão estiver cumprida, ou esconder-nos atrás das cortinas da janela. Está bem? Concordei com a cabeça e fiquei perto da porta. Passado o primeiro receio, senti um prazer maior do que jamais sentira quando éramos os defensores da lei, em vez de infratores. O alto fim de nossa missão, a certeza de que era desinteressada e cavalheiresca, o caráter vil de nosso adversário, tudo isso se acrescentava ao interesse desportivo da aventura. Em vez de me sentir culpado, alegrei-me, exultando com o perigo. Cheio de admiração, vi Holmes abrir a pasta de ferramentas e escolher uma delas, com calma, com a perícia do cirurgião que vai fazer uma operação delicada. Eu conhecia sua habilidade
em abrir cofres, e imaginei o prazer que sentia ao defrontar-se com aquele monstro verde e dourado que encerrava, em sua goela voraz, a reputação de numerosas damas. Dobrando os punhos do casaco (ele tirara o sobretudo), Holmes dispôs a seu lado as ferramentas. Fiquei junto à porta central, vigiando com o olhar as outras duas, pronto a agir numa emergência, embora meus planos fossem vagos quanto à minha atuação, caso fôssemos interrompidos. Durante meia hora, Holmes trabalhou com empenho, largando uma ferramenta e apanhando outra, manejando todas elas com a força e a delicadeza de um perito. Finalmente ouvi um dique, a porta verde abriu-se e divisei dentro do cofre vários maços de papéis, cada um amarrado, lacrado e marcado com uma inscrição. Holmes pegou um deles, mas era difícil ler, à luz da lareira, de modo que tirou do bolso sua lanterninha, pois seria perigoso acender a luz com Milverton no quarto contíguo. De repente, vi-o parar e ficar à escuta. Imediatamente fechou o cofre, apanhou as ferramentas e o sobretudo e escondeu-se atrás das cortinas, fazendo-me sinal para que o imitasse. Somente quando me reuni a ele notei o som que haviam captado seus sentidos aguçados. Havia um ruído qualquer na casa. Uma porta bateu ao longe. Depois, houve um murmúrio confuso, que se definiu em passos que se aproximavam, soando no corredor. A porta abriu-se. Ouvimos o ruído do comutador. A porta fechou-se novamente, e sentimos um cheiro forte de charuto. Depois, passos que iam e vinham, iam e vinham, perto de nós. Finalmente, o ruído de uma cadeira. Os passos cessaram. Depois, um estalido de fechadura e um ranger de papéis. Até então, eu não ousara espreitar, mas nesse momento entreabri muito de leve as cortinas. Pela pressão do ombro de Holmes contra o meu, percebi que também ele estava observando. Bem em frente, quase a nosso alcance, estavam as costas largas de Milverton. Claro que tínhamos calculado mal seus movimentos, ele não tinha estado no quarto, e sim sentado em alguma sala do outro lado da casa, cujas janelas não tínhamos visto. Ele estava reclinado na cadeira vermelha, de pernas estendidas, um charuto longo e negro projetando-se do canto da boca. Usava uma jaqueta caseira, de gola de veludo. Tinha na mão um documento e lia-o com displicência, enquanto fumava. A maneira como se comportava e sua atitude tranquila indicavam que não tinha pressa em se retirar. Senti a mão de Holmes apertar a minha, animando-me, como que a garantirme que poderia dominar a situação e estava calmo. Eu não sabia se ele percebera que a porta do cofre estava mal fechada, e que a qualquer momento Milverton poderia aperceber-se disso. Em meu íntimo, resolvera que, se por um enrijecimento em suas feições eu percebesse que Milverton vira o cofre aberto, cobri-lo-ia com o sobretudo, prendendo-o e deixando o resto por conta de Holmes. Mas Milverton não ergueu os olhos. Estava languidamente interessado nos papéis que lia, página após página, como quem acompanha os argumentos de um advogado. Pensei que, quando acabasse de ler e fumar o charuto, iria para o quarto, mas antes que tal se desse houve um incidente que alterou o rumo de nossos pensamentos. Várias vezes Milverton olhara para o relógio, e uma vez chegou a levantar-
se, com gesto impaciente. Jamais me ocorrera a idéia de que tivesse marcado entrevista com alguém, em hora tão imprópria, até ouvir um leve ruído na varanda. Milverton largou os papéis e ficou rígido. Ouviu-se um novo ruído. Logo em seguida, um bater leve à porta. O homem levantou-se e foi abri-la. — Muito bem — disse ele. — Está com meia hora de atraso. Então era essa a explicação da vigília de Milverton e da porta que não fora trancada. Ouvi o farfalhar de um vestido de mulher. Eu fechara a cortina entreaberta, quando Milverton se virou para nosso lado, mas então aventurei-me a espreitar de novo. Ele voltou a sentar-se, de charuto na boca, numa atitude insolente. Diante dele, bem iluminada pela luz elétrica, estava uma mulher alta, magra, morena, com um véu sobre o rosto e uma capa nos ombros, à altura do queixo. Respirava ofegantemente, parecendo presa de grande emoção. — Muito bem — disse Milverton. — Fez-me perder horas de descanso, minha cara. Espero que me prove que valeu a pena. Não pôde vir mais cedo, hein? A mulher sacudiu a cabeça. — Bem, se não pôde, paciência. Se a condessa for uma patroa rigorosa, você terá oportunidade de se vingar dela. Ora, ora, menina, por que está tremendo tanto? Domine-se. Vamos ao que interessa. O homem tirou um bilhete da gaveta da escrivaninha e continuou: — Diz que tem cinco cartas comprometedoras da condessa d'Albert. Quer vendê-las? Quero comprá-las. Até aqui, muito bem. Basta combinarmos o preço. Claro que preciso examinar as cartas. Se forem realmente bons espécimes... Santo Deus, é você? A mulher erguera o véu sem uma palavra, e deixara cair a capa atirada sobre o ombro. Era uma mulher bonita, morena, de traços definidos, nariz curvo e lábios finos, onde havia um sorriso perigoso. — Sim, sou eu, a mulher cuja vida você desgraçou. Milverton riu, mas havia medo em seu riso. — Você foi tão teimosa — disse ele. — Por que me levou àquele extremo? Garanto-lhe que não faria mal a uma mosca propositadamente, mas cada homem tem seu negócio, e o que eu poderia fazer? Exigi um preço a seu alcance. Você não quis pagar.
— E então, mandou as cartas para meu marido, e ele... o homem mais nobre que jamais existiu, de quem eu não era digna nem mesmo de engraxar os sapatos... ficou desesperado e morreu. Você se lembra da última noite, quando passei por essa porta e lhe pedi piedade, e você riu, riu em minha cara, como está tentando fazer agora? Mas seu coração covarde não pode impedir seus lábios de tremerem. Sim, nunca pensou que tornaria a ver-me, mas aquela noite ensinou-me como poderia encontrá-lo frente a frente, e a sós. Então, Charles Milverton, o que tem a dizer? — Não pense que me assusta — disse ele, levantandose. — Basta que eu erga a voz para que acorram meus empregados e você seja presa. Mas vou dar um desconto à sua cólera. Saia imediatamente, e nada mais será dito. A mulher continuava com o mesmo sorriso ameaçador. — Não arruinará outras vidas como fez com a minha. Não torturará corações como torturou o meu. Livrarei o mundo de um ser venenoso. Tome, seu canalha, tome, tome! Ela apontara um revolverzinho e atirava agora no peito de Milverton, a uma distância de apenas sessenta centímetros. Ele recuou, depois caiu sobre a escrivaninha, tossindo e agarrando-se aos documentos. Ergueuse, cambaleando, levou outro tiro e caiu ao chão. — Você me liquidou — disse, e ficou imóvel. A mulher olhou-o atentamente; depois calcou-lhe o rosto com o salto do sapato. Olhou de novo, mas não houve som, ou movimento. Ouvi um rumor brusco quando o ar noturno entrou na sala aquecida, e percebi que a vingadora havia partido. Nenhuma interferência nossa teria salvo o homem de seu destino, mas, ao ver a mulher disparar tiro após tiro sobre Milverton, eu teria pulado se Holmes não me segurasse pelo braço. Compreendi o que queria dizer aquela pressão firme: que o assunto não nos dizia respeito; que a justiça apanhara um miserável; que tínhamos um dever a cumprir, e dele não nos podíamos esquecer. Mal a mulher saíra da sala, Holmes deixou o esconderijo a passos rápidos e silenciosos. Dirigiu-se para a porta e fechou-a à chave. No mesmo instante, ouvimos vozes e som de passos apressados. Os tiros tinham acordado a criadagem. Perfeitamente calmo, Holmes foi até o cofre, pegou uma braçada de documentos e atirou-os ao fogo. Fez isso várias vezes, até o cofre ficar vazio. Alguém virou a maçaneta e começou a bater na porta. Holmes olhou rapidamente à volta. A carta que fora a mensageira da morte para Milverton estava sobre a escrivaninha, toda manchada de sangue. Holmes lançou-a no meio das outras. Em seguida, tirou a chave da porta exterior e fechou-a por
fora depois que a atravessamos. — Por aqui, Watson — disse ele. — Podemos galgar o muro do jardim. Nunca pensei que um alarme se espalhasse tão depressa. Olhando para trás, vimos a imensa casa toda iluminada. A porta da frente estava aberta, e vinham vultos correndo pela alameda. O jardim estava cheio de gente. Um criado gritou quando saímos da varanda, e veio em nosso encalço. Holmes parecia conhecer perfeitamente o terreno, orientando-se sem dificuldade no meio das arvorezinhas, seguido por mim e, a pouca distância, por nosso perseguidor. Chegamos a um muro de um metro e oitenta de altura, mas Holmes pulou para o topo e passou para o outro lado. Quando tentei fazer o mesmo, senti a mão do criado agarrar-me o tornozelo, mas livrei-me dela com um pontapé e pulei. Caí de cara nuns arbustos, mas Holmes ajudou-me imediatamente a erguer-me, e juntos corremos pela vastidão de Hampstead Heath. Tínhamos corrido mais de três quilômetros, pelos meus cálculos, quando Holmes parou e ficou à escuta. Silêncio absoluto atrás de nós. Tínhamo-nos livrado dos perseguidores, e estávamos salvos. Terminada nossa refeição da manhã, estávamos fumando, no dia seguinte a essa memorável aventura, quando o inspetor Lestrade, da Scotland Yard, entrou em nossa sala, solene e sisudo. — Bom dia, sr. Holmes — disse ele. — Bom dia... Será que estão muito ocupados no momento? — Não para o senhor — disse Holmes. — Achei que, se não tivesse nada de especial a fazer, talvez quisesse ajudarme no caso mais extraordinário de minha carreira, ocorrido ontem, em Hampstead. — Ora, ora — exclamou Holmes —, o que houve? — Assassinato... o mais dramático e o mais estranho. Sei como o senhor se interessa por essas coisas, e ficaria agradecido se quisesse acompanhar-me ao local para me dar sua valiosa opinião. Não é um crime comum. Há tempo que estamos de olho nesse Milverton, cá entre nós, um canalha. Sabe-se que vivia de chantagem. Seus documentos foram todos queimados pelos assassinos. Não desapareceu nenhum objeto de valor, e é provável que os criminosos sejam homens de posição, cujo único objetivo tenha sido evitar um escândalo. — Criminosos? — disse Holmes. — No plural? — Sim, eram dois. Quase foram presos em flagrante. Temos suas pegadas, e a descrição deles; é quase certo que os apanharemos. O primeiro foi muito ágil, mas o segundo quase foi apanhado pelo jardineiro e escapou com dificuldade. Era um homem de estatura mediana, forte, queixo quadrado, pescoço grosso, bigode e máscara sobre os olhos.
— Um tanto vago — observou Holmes. — Olhe, podia ser a descrição de Watson! — É verdade — concordou Lestrade, com ar divertido. — Podia ser. — Bem, infelizmente creio que não estou em condições de auxiliá-lo, Lestrade — disse Holmes. — O fato é que conheci esse tal Milverton e considerava-o um dos mais perigosos homens de Londres. Sei que certos crimes não podem ser alcançados pela lei, e, nesse caso, justifica-se a vingança privada. Não adianta insistir; estou resolvido. Minha simpatia está do lado dos criminosos, não da vítima, e não aceito o caso. Holmes não dissera uma palavra sobre a tragédia que tínhamos presenciado, mas notei que toda a manhã ficou pensativo, dando-me a impressão, a julgar pelo ar vago, de que procurava recordar qualquer coisa. Estávamos no meio do almoço quando de repente ele se pôs de pé. — Com os diabos, Watson, lembrei-me! — exclamou. — Apanhe seu chapéu! Venha comigo! Corremos pela Baker Street e a Oxford Street, até chegar ao Regent Circus. À esquerda, havia uma vitrina com fotografias das celebridades do momento. O olhar de Holmes fixou-se numa delas. Vi o retrato de uma senhora imponente, em traje de gala, com uma tiara de diamantes na cabeça. Olhei para o nariz levemente curvo, para as sobrancelhas bem-feitas, a boca firme e o queixo decidido. Fiquei sem respiração quando li o nome nobre e honrado do grande aristocrata de quem ela fora esposa. Meus olhos encontraram os de Holmes, e ele pôs o dedo nos lábios quando nos viramos para regressar a casa.
Arthur Conan Doyle
Os seis bustos de Napoleão Título original: The Six Napoleons
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1904
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Six Napoleons publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.
Era comum que o inspetor Lestrade, da Scotland Yard, viesse ver-nos à tardinha, e Sherlock Holmes gostava de suas visitas, pois faziam com que ficasse a par de tudo o que se passava na Scotland Yard. Para pagar as notícias que Lestrade lhe trazia, Holmes estava sempre pronto a ouvir com atenção os pormenores dos casos que ocupavam o detetive no momento, podendo às vezes, sem interferência ativa, fazer alguma sugestão baseada em seus conhecimentos e em sua experiência. Naquela noite, Lestrade falou do tempo e das notícias publicadas nos jornais. Depois ficou em silêncio, fumando pensativamente. Holmes fitou-o com atenção. — Alguma coisa extraordinária, no momento? — perguntou. — Oh, não, sr. Holmes, nada especial. — Então, conte-me tudo. Lestrade riu. — Pois bem, sr. Holmes, não adianta negar que há alguma coisa. Mas é tão absurdo o que está acontecendo que hesitei em vir importuná-lo. Por outro lado, embora seja insignificante, é indubitavelmente estranho, e sei que o senhor aprecia tudo o que é fora do comum. Mas, em minha opinião, é mais assunto para o dr. Watson do que para o senhor. — Doença? — perguntei. — Loucura, no mínimo. E uma estranha espécie de loucura! Ninguém iria pensar que em nossa época pudesse existir uma pessoa com tal ódio a Napoleão I, a ponto de quebrar todas as imagens que dele encontra. Holmes afundou-se na cadeira e observou: — Isso não é assunto para mim. — Exatamente. Foi o que eu disse. Mas quando o homem invade uma propriedade para quebrar essas imagens, que não lhe pertencem, o caso passa da alçada do médico para a da polícia. Holmes empertigou-se novamente. — Roubo! É interessante. Ouçamos os pormenores. Lestrade tirou um livrinho do bolso, para avivar a memória. — A primeira queixa foi há quatro dias — disse ele.
— O fato deu-se na loja de Morse Hudson, que vende quadros e estatuetas na Kennington Road. O empregado saíra da loja por um instante quando ouviu um estardalhaço. Veio ver o que acontecera, e encontrou um busto de Napoleão, que estava em cima do balcão ao lado de outros objetos de arte, completamente espatifado, no chão. Correu para a rua, mas, embora muitos transeuntes dissessem ter visto um homem saindo às pressas da loja, não viu ninguém que pudesse identificar como o malandro. O fato foi tomado como um desses inexplicáveis atos de vandalismo que ocorrem de vez em quando, e a polícia foi notificada. O busto não valia mais que alguns xelins, e o assunto parecia muito infantil para merecer uma investigação. Lestrade fez uma pausa e continuou: — Mas o segundo caso foi mais extraordinário e também mais singular. Ocorreu ontem à noite. Na Kennington Road. A algumas centenas de metros da loja de Morse Hudson mora um médico conhecido, o dr. Barnicot, que tem uma das maiores clientelas daquele bairro. Mora e tem seu principal consultório na Kennington Road, mas tem também uma clínica cirúrgica e um dispensário na Lower Brixton Road, a três quilómetros de distância. Esse dr. Barnicot é um entusiástico admirador de Napoleão, e sua casa está cheia de livros, retratos e relíquias do imperador francês. Há algum tempo, comprou dois bustos de Napoleão na loja de Morse, numa reprodução do célebre trabalho do escultor Devine. Um deles foi colocado no vestíbulo de sua casa na Kennington Road, o outro sobre a lareira da clínica, na Lower Brixton. Pois bem, o dr. Barnicot ficou admirado, ao descer hoje de manhã, quando verificou que um ladrão entrara em sua casa durante a noite, mas nada levara a não ser o busto de Napoleão. Este foi carregado até o jardim e despedaçado contra o muro, perto do qual foram encontrados os fragmentos. Holmes esfregou as mãos. — Não há dúvida de que é uma novidade — disse ele. — Achei que o caso o interessaria. Mas isso ainda não é tudo. O dr. Barnicot devia chegar à clínica ao meio-dia, e o senhor pode imaginar seu espanto quando, ao entrar ali, viu que a janela fora quebrada durante a noite, e que as peças da outra estatueta de Napoleao estavam espalhadas pelo chão! Em nenhum dos casos havia indícios do criminoso, ou louco, que agira tão absurdamente. Agora, sr. Holmes, já conhece os fatos. — Singulares, para não dizer grotescos — declarou Holmes. — Posso perguntar-lhe se os dois bustos pertencentes ao dr. Barnicot eram duplicatas daquele que foi destruído na loja de Morse Hudson? — Tinham sido feitos a partir da mesma forma. — Isso depõe contra a teoria de que o homem agira impulsionado por um ódio a Napoleao. Levando-se em conta o número de estátuas do grande imperador que existem em Londres, é absurdo acreditarmos na coincidência de o iconoclasta ter começado por três bustos iguais. — Foi o que também pensei — disse Lestrade. — Por outro lado, o negociante de
estatuetas naquele bairro é Morse Hudson, e aquelas três eram as únicas que teve na loja durante anos. Sendo assim, embora haja, como o senhor diz, centenas de outras estátuas de Napoleao em Londres, aquelas eram as únicas no distrito. Um fanático começaria por elas. Que diz a isso, dr. Watson? — Não há limite para as possibilidades da monomania — respondi. — Existe o quadro clínico a que os modernos psicólogos franceses chamam de idée fixe, que pode ser acompanhada por absoluta sanidade em tudo o mais. Um homem que tivesse lido muito a respeito de Napoleao, ou tivesse sofrido alguma sequela naquela grande guerra, poderia vir a ter uma ideia fixa, tornando-se capaz dos atos mais disparatados. — Isso não serve, caro Watson — disse Holmes, sacudindo a cabeça. — Por maior que fosse a idée fixe, não permitiria a seu interessante monomaníaco saber onde se encontravam os bustos. — Então, como explica você o fato? — Não pretendo explicá-lo. Observo, apenas, que há método no excêntrico procedimento do sujeito. Por exemplo, no saguão do dr. Barnicot, onde o barulho poderia acordar a família, o busto não foi quebrado, e sim levado para fora, ao passo que na clínica, onde havia menos perigo de alarme, foi quebrado no local. Parece absurdamente trivial, mas eu não ousaria chamar qualquer coisa de trivial ao lembrar-me de que muitos de meus casos mais importantes tiveram um princípio insignificante. Você deve recordar-se, Watson, de que o terrível caso da família Abernetty me chamou a atenção quando notei como a salsa se enterrara profundamente na manteiga, num dia quente. Não posso, portanto, sorrir perante os três bustos quebrados, Lestrade, e ficarei muito agradecido se vier contar-me todas as novidades de tão singular cadeia de acontecimentos. As novidades vieram depressa, e eram mais trágicas do que Holmes poderia ter imaginado. Eu estava me vestindo, na manhã seguinte, quando ouvi bater à porta. Holmes entrou com um telegrama na mão. Leu-o em voz alta. — "Venha imediatamente à Pitt Street, 113, Kensington. Lestrade." — Que será? — perguntei. — Não sei. Pode ser... qualquer coisa. Mas creio que é a sequência do caso dos bustos. Se assim for, nosso amigo iconoclasta começou a operar em outro ponto de Londres. O café está na mesa, Watson, e há um carro à nossa espera. Dali a meia hora, estávamos na Pitt Street. O número 113 era uma casa entre uma fileira de outras residências retilíneas, respeitáveis e pouco românticas. Quando nos aproximamos, vimos um grupo de curiosos. Holmes assobiou. — Com os diabos, houve pelo menos uma tentativa de assassinato. Só isso deteria o transeunte londrino. Nos ombros redondos e no pescoço esticado daquele sujeito há uma sugestão de violência. Que é isso, Watson? Os degraus de cima estão úmidos, e os outros, secos. Pegadas, pelo menos. Bem, bem, lá está Lestrade à janela, e já saberemos do que se trata. O detetive recebeu-nos com expressão grave, fazendo-nos entrar numa saleta, onde um senhor idoso, muito agitado e em desalinho, metido num roupão de flanela, andava de um lado para outro. Foi-nos apresentado como o dono da casa, sr. Horace Harker, da Associação Central de Imprensa. — E o caso dos bustos novamente — avisou Lestrade. — Pareceu-me interessado ontem à noite, sr. Holmes, de modo que achei que gostaria de estar presente, agora que o caso tomou um rumo muito mais sério.
— Que rumo? — Assassinato. Sr. Harker, quer fazer o favor de contar a estes senhores o que aconteceu? O homem de roupão voltou-se para nós com ar profundamente melancólico. — É incrível que eu, que toda a vida procurei coligir notícias sobre os outros, me sinta confuso agora que há uma notícia sensacional à minha porta, a ponto de não conseguir escrever duas palavras. Se eu tivesse vindo aqui como jornalista, teria entrevistado o dono da casa e publicado duas colunas, em todos os jornais da tarde. Da forma como correm as coisas, estou desperdiçando uma notícia importante, relatando os acontecimentos a um sem-número de pessoas diferentes, sem saber tirar proveito disso. Mas conheço-o de nome, sr. Holmes, e, se puder explicar-me o que significa esse fato tão estranho, eu me sentirei pago pelo trabalho de lhe contar a história. Holmes sentou-se e ouviu. — Parece que tudo gira em torno do busto de Napoleão que comprei para esta sala, há quatro meses. Comprei-o muito barato na Harding Brothers, a dois passos da estação da High Street. Grande parte de meu trabalho de jornalista é feito à noite, e às vezes escrevo até de madrugada. Foi o que aconteceu hoje. Eu estava sentado em meu escritório, que fica nos fundos da casa, mais ou menos às três horas da manhã, quando tive a certeza de ter ouvido um ruído embaixo. Fiquei à escuta, mas o barulho não se repetiu, de modo que deduzi que provinha da rua. Então, cinco minutos mais tarde, ouvi um grito horrível, o mais pavoroso da minha vida, sr. Holmes. Dele não me esquecerei enquanto viver. Fiquei imóvel, horrorizado, durante alguns segundos. Depois, agarrei um atiçador e desci. Quando cheguei a esta sala, vi a janela aberta e reparei que o busto desaparecera de cima da lareira. Por que quereria um ladrão levar tal objeto é coisa que está acima de minha compreensão, pois não tinha o mínimo valor. O homem respirou fundo e continuou: — O senhor verificará que qualquer pessoa que sair pela janela aberta poderá alcançar o patamar da escada com um passo largo. Foi isso, sem dúvida, o que fez o ladrão, de modo que dei a volta e fui abrir a porta. Ao dar um passo para fora, no escuro, quase tropecei num corpo que ali estava. Entrei correndo para buscar uma lanterna, e vi um pobre homem, com a garganta aberta, numa poça de sangue. Estava de costas, os joelhos encolhidos, a boca horrivelmente aberta. Mal tive tempo de tocar um apito para chamar a polícia e devo ter desmaiado, pois não me lembro de mais nada, até ver um guarda debruçado sobre mim, no saguão. — Quem era a vítima? — perguntou Holmes. — Não há nada que indique sua identidade — disse Lestrade. — O senhor verá o corpo no necrotério, mas até agora nada descobrimos. Era um homem alto, moreno, muito forte, que não devia ter mais de trinta anos. Estava pobremente vestido, mas não parecia operário. Na poça de sangue a seu lado havia uma faca de cabo de osso. Não sei se pertencia ao morto ou ao assassino. Não havia marca alguma nas roupas, e nada nos bolsos, a não ser uma maçã, um pedaço de barbante, um mapa barato de Londres e uma fotografia. Aqui está ela. Era um instantâneo pequeno. Vimos um homem de expressão viva, traços definidos, grossas sobrancelhas, a parte de baixo do rosto projetando-se como a de um macaco. — E que fim levou o busto? — perguntou Holmes, após examinar cuidadosamente a fotografia.
— Tivemos notícias dele pouco antes de o senhor chegar. Foi encontrado no jardim de uma casa vazia, na Campden House Road. Estava quebrado. Vou agora examiná-lo. Quer ir? — Sem dúvida. Mas primeiro quero dar uma olhada por aqui. — Holmes examinou o tapete e a janela. — Ou o sujeito tinha pernas muito compridas, ou era muito ágil — observou meu amigo. — Com aquele espaço ali debaixo, não foi fácil alcançar o parapeito e abrir a janela. Depois disso, sair deve ter sido relativamente simples. Vem conosco ver os fragmentos do busto, sr. Harker? O inconsolável jornalista sentara-se à escrivaninha. — Tenho de tentar escrever alguma coisa — disse ele. — Mas garanto que as primeiras edições dos jornais da tarde já deram todos os pormenores. Que falta de sorte! Lembrase de quando caiu a plataforma em Doncaster? Pois bem, eu era o único jornalista presente, e meu jornal foi também o único a não publicar a notícia, pois fiquei abalado demais para poder escrever qualquer coisa! E agora, com um crime à minha porta, também vou chegar tarde demais. Quando saímos dali, ouvimos o ruído da pena correndo furiosamente sobre o papel. O local onde haviam sido encontrados os fragmentos do busto ficava a apenas alguns metros dali. Pela primeira vez, nossos olhos viram o busto do imperador, que parecia despertar o implacável ódio do destruidor desconhecido. Os pedaços estavam espalhados pelo chão. Holmes apanhou alguns e examinou-os cuidadosamente. Eu estava convencido, pela sua expressão concentrada, de que finalmente atinara com qualquer coisa. — Então? — perguntou Lestrade. Holmes encolheu os ombros. — Ainda temos muito o que caminhar — disse ele. — E no entanto. . . no entanto. . . Pois bem, temos alguns fatos muito sugestivos como ponto de partida. A posse desta ninharia valia mais, aos olhos do criminoso, do que uma vida humana. Temos aí uma constatação. Há depois o fato singular de ele ter quebrado o busto dentro da casa, ou imediatamente fora da casa, como faria se seu objetivo fosse apenas destruí-lo. — Ele ficou nervoso por ter encontrado outra pessoa. Mal sabia o que estava fazendo. — É provável. Mas quero chamar sua atenção particularmente para a posição da casa, no jardim onde o busto foi quebrado. Lestrade olhou à volta. — É uma casa vazia, de modo que ninguém o incomodaria no jardim — observou. — Sim, mas há outra casa desocupada, por onde ele deve ter passado antes de chegar a esta. Por que não quebrou o busto ali, já que cada passo que dava aumentava o risco que corria? — Desisto — confessou Lestrade. Holmes apontou para o lampião da rua sobre nossas cabeças. — Aqui, ele podia ver o que fazia, mais além, não. É esta a razão. — Por Deus, é verdade — concordou o detetive. — Agora que penso nisso, o busto do dr. Barnicot não foi quebrado muito longe de seu candeeiro vermelho. Pois bem, sr. Holmes, que fazemos com esta descoberta?
— Fica guardada para ser lembrada. Mais tarde, talvez encontremos alguma coisa que elucide esse ponto. Que pretende fazer agora, Lestrade? — O mais prático, na minha opinião, é identificar o morto. Não deve haver dificuldade. Depois de descobrir quem é ele e quais são seus comparsas, não será difícil saber o que estava fazendo na Pitt Street, a noite passada, quem se encontrou com ele e quem o matou na soleira da casa do st. Harker. Não acha? — Sem dúvida, mas não seria essa a minha maneira de iniciar a investigação. — Que faria o senhor? — Oh, não deve deixar que eu o influencie. Proponho que atue à sua maneira, e eu, à minha. Depois, poderemos comparar nossas notas — e as de um completarão as do outro. — Muito bem — disse Lestrade. — Se vai voltar para a Pitt Street, verá o sr. Harker. Diga-lhe que estou certo de que um louco invadiu sua casa a noite passada. Isso será útil para o artigo dele. Lestrade encarou Holmes. — Não acredita nisso seriamente? Homes sorriu. — Não?... Pois bem, talvez não. Mas tenho a certeza de que a notícia interessará o sr. Harker e os seus leitores. Agora, Watson, creio que temos um dia longo e complexo à nossa frente. Lestrade, peco-lhe que venha ver-nos na Baker Street, às seis da tarde. Até lá, gostaria de guardar o retraio do morto comigo. É possível que tenha de pedir sua companhia e sua assistência, Lestrade, numa pequena aventura hoje à noite, se meu raciocínio estiver certo. Até lá, passe muito bem e felicidades. Sherlock Holmes e eu fomos até a High Street, parando na loja Harding Brothers, onde o busto fora comprado. Um empregado informou-nos que o sr. Harding estava ausente e só voltaria à tarde, que era novo na casa e nada poderia nos informar. Holmes pareceu-me decepcionado e aborrecido. — Bem, bem, não podemos esperar que tudo corra às mil maravilhas, Watson — disse finalmente. — Voltaremos à tarde, então. Como você deve ter percebido, estou procurando descobrir a origem dos bustos, para ver se há algo peculiar que justifique sua destruição. Vamos entrevistar o sr. Morse Hudson, na Kennington Road, para ver se ele pode dar-nos esclarecimentos. Dali a uma hora, entrávamos na loja do sr. Hudson. Era um homem pequeno, atarracado, de rosto vermelho, muito vivaz. — Sim, senhor — disse ele. — Aqui no meu balcão. Não sei para que pagamos imposto, já que qualquer mandrião pode entrar em nossa casa e danificar nossos artigos. Sim, senhor, vendi as duas estatuetas ao dr. Barnicot. É uma vergonha! Algum plano niilista, sem a menor dúvida. Somente um anarquista sairia por aí quebrando estátuas. Republicanos vermelhos, é o que eu diria. De quem recebi as estatuetas? Não sei o que isso tem a ver com o caso. Pois bem, se realmente deseja saber, comprei-as à Gelder & Co., na Church Street, em Stepney. Firma muito conhecida, há vinte anos. Quantas eu tinha? Três — duas e uma são três —, duas do dr. Barnicot e uma quebrada, em pleno dia, no meu balcão. Se conheço o homem da fotografia? Não, não o conheço. Sim, sim, conheço... Oh, é Beppo. Era um artesão italiano que ajudava aqui na loja. Sabia entalhar e dourar uma moldura, e outras coisas mais. Saiu a semana passada, e não tive mais notícias suas. Não, não sei de
onde veio nem para onde ia. Nada tive contra ele enquanto esteve aqui. Saiu dois dias antes de ser quebrado o busto. Ao deixarmos a loja, Holmes disse: — Bem, é tudo o que poderíamos esperar de Morse. Temos Beppo como um fator comum, tanto na Kennington como em Kensington, e isso valeu a viagem de dezesseis quilômetros. Agora, Watson, vamos à Gelder ô; Co., de onde vieram as estatuetas. Vou ficar admirado se não conseguirmos alguma coisa lá. Em rápida sucessão, passamos pela Londres elegante, a Londres dos hotéis, dos teatros, da literatura e do comércio, até chegarmos a uma cidadezinha à beira do rio, de cem mil almas, com feias casas onde pululam os párias da Europa. Ali, numa rua larga onde antigamente residiam ricos comerciantes, encontramos a fábrica de objetos artísticos que procurávamos. Fora havia um imenso pátio, com estátuas monumentais. Dentro, uma sala grande, onde cinco operários entalhavam e modelavam. O gerente, um alemão louro, recebeu-nos cortesmente, respondendo com clareza a todas as perguntas de Holmes. Olhando livros, viu que tinham sido feitas, em gesso, centenas de cópias de um busto de Napoleão de mármore, por Devine. Mas as três que haviam sido enviadas a Morse Hudson, um ano antes, faziam parte de uma fornada de seis, sendo que as outras três haviam sido vendidas à Harding Brothers, em Kensington. Não havia razão para que essas seis fossem diferentes das outras. Não atinava com a causa de alguém querer destruí-las, e achava a ideia risível. O preço por atacado era de seis xelins, mas o revendedor poderia conseguir doze, ou mais. A estatueta era feita com dois moldes, tomados de cada lado do rosto, e depois juntados para fazer o busto. Trabalho geralmente feito por italianos, naquela sala onde estávamos. Depois de prontos, os bustos eram colocados no corredor para secar, sendo então armazenados. Era só o que nos podia dizer. Mas a fotografia teve extraordinário efeito sobre o gerente. Seu rosto ficou vermelho, o olhar, sombrio. — Ah, o bandido! — exclamou. — Sim, conheço-o muito bem. Isso aqui sempre foi uma casa respeitável, e a única vez que tivemos a polícia aqui dentro foi por causa desse sujeito. Há mais de um ano. Ele esfaqueou outro italiano na rua, depois veio trabalhar com a polícia em seu encalço, e foi preso. Chamava-se Beppo, mas não conheço o sobrenome. Levei uma lição por ter dado emprego a um sujeito com essa cara. Mas era um bom operário, um dos melhores. — Qual foi sua pena? — O sujeito que ele esfaqueou não morreu, de modo que a sentença foi de um ano. Tenho certeza de que já está livre, mas não ousou aparecer por aqui. Um primo dele trabalha conosco, e com certeza poderá informá-lo de seu paradeiro. — Não, não — protestou Holmes. — Nem uma palavra ao primo, por favor. O assunto é muito sério e, quanto mais avanço, mais sério me parece. Quando o senhor procurou a data da venda das estatuetas, vi que era 3 de junho, do ano passado. Pode dizer-me quando Beppo foi preso? — Posso saber, mais ou menos, pela folha de pagamento — respondeu o gerente. Virou umas páginas e informou. — O último salário foi pago no dia 20 de maio. — Muito obrigado — disse Holmes. — Creio que não preciso abusar mais de sua paciência e seu tempo.
Insistindo de novo em que o gerente nada dissesse ao primo de Beppo, Holmes levou-me dali. A tarde ia adiantada quando encomendamos um almoço rápido num restaurante. Num cartaz à entrada, lemos: "Assalto em Kensington. Assassinato cometido por um louco". A notícia provou-nos que o sr. Horace Harker conseguira escrever, afinal de contas. Duas colunas relatavam, em termos bombásticos, o sensacional incidente. Holmes leu enquanto comia. Uma ou duas vezes riu. — Ouça isto, Watson: "Felizmente, não há divergência de opinião neste caso, uma vez que o inspetor Lestrade, um dos mais competentes membros da Scotiand Yard, assim como o sr. Sherlock Holmes, o conhecido perito, chegaram à conclusão de que a grotesca série de incidentes, que terminou de maneira tão trágica, é obra de um louco e não de um criminoso deliberado. Nenhuma explicação pode existir, a não ser a aberração mental". Holmes olhou-me e continuou: — A imprensa, caro Watson, é uma valiosa instituição, quando a gente sabe usá-la. E agora, se tiver terminado seu almoço, vamos voltar para Kensington, a fim de ouvir o que o gerente da Harding Brothers tem a dizer. O fundador daquela grande casa era um homenzinho vivo, muito bem-vestido, de cérebro ágil e língua solta. — Sim, senhor, li o que dizem os jornais da tarde. O st. Horace Harker é nosso freguês. O busto foi-lhe vendido há alguns meses. Encomendamos três iguais à Gelder & Co., de Stepney. Foram todos vendidos. A quem... ? Creio que será fácil informá-lo, consultando nossos livros de vendas. Sim, aqui está. Um ao sr. Harker, um ao sr. Josiah Brown, de Laburnum Lodge, em Laburnum Vale, Chiswick, e o terceiro ao sr. Sandeford, da Lower Grove Road, Reading. Não, nunca vi o homem da fotografia. Não é rosto que se esqueça, não é verdade?. . . Nunca vi nada de mais feio. Se temos muitos italianos entre nossos empregados? Sim, senhor, temos muitos, entre operários e serventes. Sim, creio que poderiam olhar o livro de vendas, se o desejassem. Não há motivo para guardarmos o livro à chave. Sim, sim, é um caso estranho, e gostaria que o senhor me avisasse ao chegar a uma conclusão. Holmes tomara várias notas durante a entrevista, e percebi que estava satisfeito com o desenvolvimento do caso. Mas não fez observação alguma, a não ser que precisávamos nos apressar se quiséssemos chegar a tempo a nosso encontro com Lestrade. E de fato, quando chegamos à Baker Street, lá estava o detetive, andando de um lado para outro da sala, com impaciência. O ar de importância indicava que seu dia não fora perdido. — Então? Teve sorte, sr. Holmes? — perguntou. — Tivemos um dia muito ocupado e não de todo inútil — explicou meu amigo. — Entrevistamos os dois revendedores e também os fabricantes. Conheço, portanto, a origem dos bustos. — Ora, os bustos! — exclamou Lestrade. — Pois bem, o senhor tem seus métodos, sr. Holmes, e não sou eu que falarei mal deles, mas creio que tive um dia mais proveitoso do que o seu. Identifiquei o morto. — Não me diga! — E encontrei um motivo para o crime. — Ótimo! — Temos um inspetor que se especializou em Saffron Hill e nos bairros italianos. Pois bem,
o morto tinha uma medalha católica no pescoço, e isso, aliado à sua cor, fez-me pensar que era do sul da Europa. O inspetor Hill reconheceu-o no momento em que lhe mostrei o cadáver. Chamava-se Pietro Venucci, de Nápoles, e era um dos piores bandidos de Londres. Tinha relações com a Máfia, que, como o senhor sabe, é uma sociedade secreta que pune a desobediência com a morte. Vemos agora que o caso começa a ficar claro. Provavelmente, o outro também era membro da Máfia, e deve ter cometido alguma falta. Pietro foi mandado em seu encalço. Provavelmente, a fotografia que encontramos no bolso dele era a do homem que deveria matar, trazendo-a consigo para não sé enganar. Ele encontra o sujeito e, vendo-o entrar na casa, espera-o do lado de fora. Na briga, é ferido e morre. Que tal, sr. Sherlock Holmes? Holmes bateu palmas. — Magnífico, Lestrade, magnífico! Mas não percebi como explica a destruição dos bustos. — Os bustos! O senhor não consegue esquecê-los! Afinal de contas, é coisa insignificante, roubo miúdo, seis meses de cadeia, no máximo. O crime de morte, sim, é que nos interessa, e digo-lhe que estou achando o fio da meada. — E o próximo passo? — Muito simples. Irei com Hill ao bairro italiano, procurarei o homem da fotografia e acabarei por prendê-lo, sob acusação de assassinato. Quer vir conosco? — Creio que não. Penso que atingiremos nosso fim de maneira mais simples. Não posso dizer ao certo, porque tudo depende de um fator completamente fora de nossa alçada. Mas tenho grande esperança... Para falar a verdade, creio que a probabilidade é exatamente de dois contra um de prender o sujeito hoje à noite, se você nos acompanhar. — Ao bairro italiano? — Não. Creio que Chiswick é o endereço onde poderemos encontrá-lo. Se me acompanhar até lá hoje à noite. Lestrade, prometo que irei com você amanhã ao bairro italiano, e nada se perderá com a demora. Agora, acho que algumas horas de sono nos farão bem, pois não pretendo sair antes das onze horas, e é provável que não estejamos de volta antes da madrugada. Se jantar conosco, Lestrade, poderá dormir no sofá até a hora da partida. Nesse meio tempo, Watson, gostaria que você chamasse um mensageiro expresso, pois tenho de mandar uma carta, e é necessário que siga imediatamente. Holmes passou a noite remexendo no arquivo de jornais velhos, no sótão. Quando finalmente desceu, vinha com ar de triunfo, mas nada nos contou acerca do resultado de sua busca. Quanto a mim, que seguira todos os seus passos na investigação de caso tão complexo, embora não sabendo aonde queria chegar, compreendi que ele esperava que o criminoso fosse em busca dos dois bustos que faltavam. E, como muito bem sabíamos, um deles estava em Chiswick... Indubitavelmente, nosso objetivo seria apanhá-lo em flagrante. Não pude deixar de admirar a habilidade com que meu amigo fizera sair nos jornais uma notícia falsa, para que o criminoso pensasse que poderia continuar a agir impunemente. Não me admirei quando Holmes me sugeriu que levasse o revólver. Quanto a ele, apanhara um chicote, sua arma favorita. Às onze horas um carro estava à porta, à nossa espera. Levou-nos para o outro lado da ponte de Hammersmith, e uma vez ali, Holmes ordenou ao cocheiro que esperasse. Uma caminhada curta levou-nos a uma rua isolada, com casas agradáveis no meio de jardins. À luz de um lampião de rua, lemos "Laburnum Vilia" sobre o portão de entrada de uma delas. Evidentemente, o pessoal da casa já se retirara, pois estava tudo às escuras, a não ser por uma réstia de luz que se coava pela porta da frente e punha uma mancha redonda na alameda do jardim. A cerca de madeira que separava o jardim da rua lançava uma sombra negra na parte de dentro, e foi ali que nos escondemos. — Receio que tenhamos muito o que esperar — murmurou Holmes. — Devemos agradecer aos deuses por não estar chovendo. Infelizmente, nem fumar podemos. Mas espero que o sacrifício seja recompensado.
Nossa vigília não foi tão longa quanto receara Holmes, terminando de maneira súbita e singular. De repente, sem que o menor som anunciasse sua aproximação, um vulto escuro abriu o portão, e um homem ágil como um macaco correu pelo jardim. Vimo-lo passar pelo círculo de luz e desaparecer na sombra projetada pela casa. Houve uma longa pausa em que ficamos de respiração suspensa, depois ouvimos um rangido leve. A janela fora aberta. Houve de novo um longo silêncio. Vimos o brilho rápido de uma lanterna dentro de casa. O homem não encontrara o que procurava, pois vimos a luz brilhar em outra janela, e depois em outra. — Vamos até a janela aberta para agarrá-lo quando sair — murmurou Lestrade. Mas, antes que déssemos um passo, o homem surgira de novo. Quando passou pelo círculo de luz, vimos que carregava alguma coisa debaixo do braço. Olhou cautelosamente à volta. O silêncio da rua deserta tranqüilizou-o. Voltando-nos as costas, depositou o objeto no chão e, no momento seguinte, ouvimos uma pancada e o ruído de algo que se partia. O homem estava tão atento ao que fazia que não ouviu nossos passos, quando atravessamos furtivamente o relvado. Holmes pulou sobre ele como um tigre e, no momento seguinte, Lestrade e eu segurávamos seus pulsos, algemando-o sem demora. Vimos então um rosto pavoroso, lívido, com expressão furiosa, e percebi que era de fato o homem da fotografia. Mas não era ao prisioneiro que Holmes dava atenção. Agachado na soleira da porta, examinava cuidadosamente o objeto que o homem roubara. Era um busto de Napoleão, como o que tínhamos visto de manhã, e estava reduzido a pedaços. Holmes levou-os, um a um, para perto da luz, examinando-os com atenção. Quando terminou, uma luz acendeu-se no vestíbulo, a porta abriu-se e apareceu o dono da casa, em camisa e calças, com expressão jovial no rosto rotundo. — Sr. Josiah Brown, suponho — disse Holmes. — Em pessoa. Sem dúvida, estou falando com o sr. Sherlock Holmes. Recebi a carta que me mandou pelo mensageiro, e cumpri exatamente suas instruções. Fechamos todas as portas por dentro, e ficamos à espera dos acontecimentos. Estou muito satisfeito por ver que apanhou o bandido. Espero, senhores, que me dêem o prazer de entrar para tomar alguma coisa. Mas Lestrade estava ansioso por levar o homem para lugar seguro, de modo que mandamos chamar nosso carro e, dali a pouco, estávamos a caminho de Londres. Nosso prisioneiro não quis dizer uma palavra, mas olhava-nos- por sob os cabelos emaranhados e, em dado momento, quando minha mão apareceu ao seu alcance, pulou sobre ela como um lobo. Ficamos na polícia o tempo suficiente para saber que ele trazia apenas alguns xelins e um punhal na bainha, que tinha no cabo vestígios de sangue recente. — Muito bem — disse Lestrade. — Hill conhece toda essa gente e saberá o nome do sujeito. Os senhores
verão que minha teoria sobre a Maria estava certa. Mas sou-lhe muito grato, sr. Holmes, pela perícia com que conseguiu deitar as mãos ao homem. Ainda não sei como. — Creio que é muito tarde para explicações — disse Holmes. — Além disso, há um ou dois pormenores ainda por elucidar, e este caso é dos que merecem ser levados até o fim. Se vier de novo à minha casa amanhã às seis da tarde, creio que poderei provar-lhe que ainda não atinou com o significado deste caso, que apresenta aspectos inéditos na história do crime. Se algum dia eu lhe permitir que relate mais alguns de meus feitos, Watson, creio que suas páginas adquirirão mais vida se contar a singular aventura dos bustos de Napoleão. Quando tornamos a nos encontrar, no dia seguinte, Lestrade vinha cheio de informações a respeito do prisioneiro. Chamava-se Beppo, mas o sobrenome era desconhecido. Tornara-se tristemente famoso na colónia italiana. Fora hábil escultor, ganhando honestamente a vida, mas desviara-se do bom caminho e estivera na cadeia duas vezes, uma delas por ter esfaqueado um patrício. Falava perfeitamente o inglês. Ainda não sabíamos quais suas razões para destruir os bustos, e ele se recusava a responder, mas a polícia achava que os bustos provavelmente tinham sido feitos por ele, uma vez que fora empregado da firma Gelder & Co. Todas essas informações, muitas das quais já eram de nosso conhecimento, Holmes as ouviu com atenção cortês. Mas eu, que o conhecia, sabia que seus pensamentos estavam longe dali, e percebia um misto de inquietação e expectativa sob a máscara que apresentava. Finalmente, empertigou-se na cadeira, e seus olhos brilharam. Soara a campainha da rua. Minutos depois, ouvimos passos na escada. Surgiu na sala um homem idoso, de rosto rubicundo e suíças grisalhas. Trazia na mão uma sacola antiquada, que depositou sobre a mesa. — O sr. Sherlock Holmes está presente? — perguntou. Meu amigo inclinou-se e sorriu. — Sr. Sandeford, de Reading, suponho? — Sim, senhor. Creio estar um pouco atrasado, mas os trens são assim mesmo. O senhor escreveu-me a respeito de um busto que possuo. — Exatamente. — Tenho aqui sua carta. Diz: "Desejo possuir uma cópia do busto de Napoleao, de Devine, e estou pronto a pagar dez libras pela que o senhor possui". Não é isso? — Exatamente — respondeu Holmes. — Fiquei muito admirado com sua carta, pois não consegui perceber como soube que eu possuía tal objeto. — Claro que deve ter ficado admirado, mas a explicação é simples. O sr. Harding, da Harding Brothers, disse que lhe vendera o último exemplar, e deu-me seu endereço. — Ah, então foi assim? Ele disse quanto paguei pelo objeto? — Não, não disse. — Pois bem, sou um homem honesto, embora não seja rico. Paguei apenas quinze xelins pelo busto, e acho que devo dar-lhe essa informação antes de aceitar dez libras por ele. — O escrúpulo honra-o, sr. Sandeford, mas fiz minha oferta e sustento-a. — É muito gentil de sua parte, sr. Holmes. Trouxe o busto conforme me pediu. Aqui está. O homem abriu a sacola, e vimos
na mesa uma duplicata do busto que mais de uma vez víramos em pedaços. Holmes tirou um papel do bolso e colocou na mesa uma nota de dez libras. — Queira assinar este papel, sr. Sandeford, na presença destas testemunhas. Diz simplesmente que o senhor me transfere todos os direitos sobre este busto. Sou um homem metódico, e a gente nunca sabe o que pode acontecer. Muito agradecido, sr. Sandeford. Aqui está seu dinheiro. Passe muito bem. Depois que o homem partiu, os movimentos de Holmes chamaram-nos a atenção. Começou por tirar do armário uma toalha limpa, estendendo-a sobre a mesa. Colocou depois o busto ao centro, apanhou um bastão e com ele deu uma pancada seca no meio da cabeça de Napoleao. O busto quebrou-se, e Holmes inclinou-se avidamente por sobre os fragmentos. No momento seguinte, soltou uma exclamação de triunfo, erguendo um pedaço onde se via um objeto escuro, redondo, como ameixa em pudim. — Senhores, permitam que lhes apresente a ramosa pérola negra dos Bórgias! — disse ele. Lestrade e eu ficamos em silêncio durante alguns momentos; depois, impulsivamente, batemos palmas, como ao final de um espetáculo. O sangue subiu ao rosto de Holmes, e ele inclinou-se, como o ator dramático que recebe a homenagem da assistência. Era nesses momentos que ele deixava de ser uma máquina pensante e traía seu amor pela admiração e pelo aplauso. A mesma criatura orgulhosa e reservada, que detestava notoriedade, ficava emocionada ao receber o elogio dos amigos. — Sim, senhores, a pérola mais famosa do mundo, e foi sorte minha ter podido segui-la, por uma cadeia de raciocínio indutivo, desde o quarto de dormir do príncipe de Colonna, no Hotel Dacre, onde foi perdida, até o interior deste objeto, o último dos seis bustos de Napoleão feitos pela Gelder & Co. Você deve estar lembrado, Lestrade, da sensação que causou o desaparecimento desta jóia, e dos vãos esforços da polícia londrina para descobri-la. Eu próprio fui consultado, na ocasião, mas nada consegui averiguar. Suspeitaram da criada da princesa, que era italiana; ficou provado que ela tinha um irmão em Londres, mas não obtivemos provas contra nenhum deles. O nome da criada era Lucrécia Venucci, e não duvido que seu irmão seja o homem assassinado por Beppo. Estive relendo os jornais da época e verifiquei que a pérola desaparecera exatamente dois dias antes da prisão de Beppo por crime violento, sendo que ele foi preso na fábrica Gelder & Co. no momento em que os bustos estavam sendo feitos. Vocês vêem claramente a série de acontecimentos, embora os sigam, naturalmente, na ordem inversa da que a mim se apresentou. Beppo tinha a pérola. Pode ser que a tenha roubado de Pietro Venucci, e pode ser que fossem comparsas, ou talvez Beppo tenha sido apenas mensageiro entre o irmão e a irmã. Tanto se nos dá.
Holmes fez uma pausa. — O importante é que ele tinha a pérola, e naquele momento, quando a levava, foi perseguido pela polícia. Dirigiu-se para a fábrica onde trabalhava, sabendo que tinha apenas alguns segundos para esconder a valiosa jóia, que seria fatalmente encontrada quando o revistassem. Seis bustos de Napoleão estavam secando no corredor. Um deles ainda estava mole. Num minuto, Beppo, que era hábil artesão, fez um furo na massa, enfiou a pérola e, com alguns toques, cobriu de novo o vão. Era um admirável esconderijo. Ninguém a encontraria ali. Mas Beppo ficou um ano na cadeia e, nesse meio tempo, os bustos se espalharam por Londres. Ele não podia saber qual deles continha a pérola. Saberia somente se os quebrasse, pois sacudi-los não adiantaria, uma vez que a pérola devia ter aderido à massa, como de fato tinha. Beppo não se desesperou. Por intermédio de um primo, que trabalhava na fábrica, soube quais as firmas que tinham comprado os bustos. Conseguiu emprego com Morse Hudson, e assim ficou sabendo quais os donos de três bustos. Não encontrou a pérola. Depois, com o auxílio de um empregado italiano, soube onde se achavam os outros três. O primeiro estava em casa de Harker. Mas ali Beppo foi seguido pelo comparsa, que o responsabilizou pela perda da pérola. Brigaram, e Beppo matou o outro. — Se eram comparsas, por que Pietro estava com a fotografia de Beppo? — Era um meio de procurá-lo, se tivesse de perguntar por ele a outras pessoas. Não pode haver outra razão. Pois bem, depois do crime, achei que seria mais provável que Beppo se apressasse. Receava, certamente, que a polícia descobrisse seu segredo. Claro que eu não podia saber se ele encontrara, ou não, a pérola no busto de Harker. Nem mesmo chegara à conclusão de que era a pérola que ele procurava, mas evidentemente estava à procura de alguma coisa, uma vez que levava os bustos para um lugar onde houvesse luz. Sendo o busto de Harker um em três, as probabilidades eram as que lhes disse: uma chance contra duas de que a pérola estivesse dentro dele. Faltavam dois bustos, e evidentemente o homem iria procurar o de Londres em primeiro lugar. Avisei o pessoal da casa para evitar outra tragédia, e fomos para lá, com ótimo resultado. A essa altura eu tinha a certeza, claro, de que se tratava da pérola dos Bórgias. Restava um busto, em Reading, e a pérola devia estar nele. Comprei-o, na presença de vocês, do seu dono, e aqui está. Ficamos em silêncio por alguns momentos. — Pois bem, já o vi trabalhar em muitos casos, sr. Holmes — disse Lestrade. — Mas nunca com tal perícia. Não temos inveja do senhor, na Scotiand Yard. Não, senhor, temos mesmo muito orgulho e, se for até lá amanhã, não haverá um homem, desde o mais velho inspetor até o guarda mais novo, que não tenha prazer em apertar-lhe a mão. — Muito obrigado — disse Holmes. — Muito obrigado! Virou-se e, por um momento, tive a impressão de que estava profundamente emocionado. Dali a pouco, voltara a ser o homem frio e prático de sempre. — Ponha a pérola no cofre, Watson — disse ele. — E faça o favor de tirar dali os documentos do caso Conk Singleton. Adeus, Lestrade. Se lhe surgir algum problema no caminho, terei muito prazer em fazer uma ou duas sugestões quanto à solução.
Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar
Arthur Conan Doyle
Os Três Estudantes Título original: The Three Students
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1904
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Three Students publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VI, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.
No ano de 1895, Sherlock Holmes e eu tivemos de passar uns dias numa de nossas cidades universitárias por motivo que não é necessário esclarecer. Foi nessa ocasião que nos aconteceu a aventurazinha que pretendo narrar. Não há dúvida de que serão excluídos os pormenores que poderiam fazer com que o leitor identificasse a faculdade ou o criminoso, pois isso seria supérfluo e ofensivo. Escândalo tão penoso deve ficar esquecido. Mas, com a devida reserva, o incidente em si pode ser narrado, pois serve para ilustrar, mais uma vez, as extraordinárias qualidades de meu amigo Holmes. Procurarei evitar os termos que possam limitar os acontecimentos a determinado lugar, ou dar uma indicação das pessoas envolvidas. Estávamos, na ocasião, morando em quartos mobiliados, perto de uma biblioteca onde Sherlock Holmes fazia estudos sobre as antigas Constituições inglesas, busca que o levou a resultados tão extraordinários que talvez me sirvam de assunto para futuras narrativas. Foi ali que, certa noite, recebemos a visita de um conhecido, o sr. Hilton Soames, lente do College of St. Luke's. O sr. Soames era um homem magro, alto, de temperamento nervoso e excitável. Sempre o conhecera como homem inquieto, mas naquele momento estava em tal estado de agitação, que demonstrava claramente que algo estranho acontecera. — Espero, sr. Holmes, que possa dedicar-me algumas horas de seu precioso tempo. Tivemos um incidente desagradável no St. Luke's, e, se não fosse a feliz coincidência de sua presença em nossa cidade, eu ficaria sem saber o que fazer. — Estou muito ocupado atualmente, e não desejo desviar minha atenção do assunto que
me prende — disse Holmes. — Preferiria que o senhor pedisse o auxílio da polícia. — Não, não, caro senhor, isso é de todo impossível. Quando a lei é chamada, não pode depois ser afastada, e trata-se de um caso em que, pela honra da instituição, é necessário que se evite um escândalo. Sua discrição é tão afamada quanto sua competência, sr. Holmes, e o senhor é o único homem no mundo que poderá me ajudar. Suplico-lhe, pois, que faça o possível. O humor de meu amigo não melhorara, desde que se vira privado da atmosfera familiar da Baker Street. Sem seus produtos químicos e sua desordem, era um homem infeliz. Encolheu os ombros, concordando de má vontade, e nosso visitante começou a contar sua história, com palavras apressadas e gestos nervosos. — Preciso explicar-lhe, sr. Holmes, que amanhã é o primeiro dia do exame para a Bolsa de Estudos Fortescue. Sou um dos examinadores. Minha matéria é o grego, e um dos primeiros pontos é um grande trecho de tradução que os candidatos desconhecem. Esse trecho está impresso no papel do exame e, naturalmente, seria de grande vantagem para o aluno poder prepará-lo de antemão. Por esse motivo, são tomadas todas as providências para que o texto fique em segredo. "Hoje, mais ou menos às três horas, os papéis chegaram da tipografia. O exercício consta de meio capítulo de Tucídides. Tive de relê-lo cuidadosamente, pois o texto tem de estar absolutamente correio. Às quatro e trinta, meu trabalho ainda não estava terminado. Eu prometera ir tomar chá nos aposentos de um amigo, de modo que deixei as provas sobre a escrivaninha. Fiquei ausente mais de uma hora. O senhor sabe, sr. Holmes, que as portas de nosso colégio são duplas, uma leve, por dentro, e outra de pesado carvalho, por fora. Quando me aproximei da porta externa, fiquei admirado por ver uma chave na fechadura. Por um momento julguei ter deixado ali a minha, mas, ao procurar no bolso, vi que tal não se dera. A única duplicata que existia, ao que me constava, pertencia a meu criado Bannister, que há dez anos cuida de meus aposentos e é de uma honestidade acima de qualquer suspeita. Verifiquei que a chave era sua, que ele entrara no quarto para saber se eu queria chá e que, descuidadamente, deixara a chave na fechadura ao sair. Sua ida ao meu quarto deve ter sido logo após minha saída. O esquecimento teria tido pouca importância noutra ocasião, mas neste dia teve as mais deploráveis conseqüências. "No momento em que pus os olhos na escrivaninha, percebi que alguém andara remexendo meus papéis. As provas para o exame constavam de três longas folhas de papel. Eu as deixara todas juntas. Vi que uma delas estava no chão, outra na mesinha perto da janela e outra onde eu a deixara." Holmes moveu-se pela primeira vez. — A primeira no chão, a segunda perto da janela e a terceira onde o senhor a deixara — disse ele. — Espantoso, sr. Holmes. Como pôde saber a posição das folhas exatamente? — Faça o favor de continuar sua interessante exposição. — Por um momento, pensei que Bannister tivesse tomado a imperdoável liberdade de examinar meus papéis. Mas ele negou o fato com muita sinceridade, e fiquei convencido de que falava a verdade. A outra hipótese era de que alguém houvesse passado pela porta e, ao ver a chave, tivesse entrado para examinar os papéis. Uma grande quantia está em jogo, sr. Holmes, pois a bolsa de estudos é valiosa, e um
homem sem escrúpulos poderia arriscar-se para ter vantagens sobre os outros concorrentes. "Bannister ficou muito perturbado com o incidente. Quase desmaiou quando percebemos que tinham mexido nas provas. Dei-lhe um pouco do conhaque e deixei-o caído numa cadeira, enquanto examinava cuidadosamente o quarto. Logo verifiquei que o intruso deixara outros vestígios de sua presença, além de papéis em desordem. Na mesinha próxima à janela havia várias aparas da madeira de um lápis que fora apontado. Havia também um pedaço da ponta, quebrada. Evidentemente, o malandro copiou a prova às pressas, quebrou a ponta do lápis e apontou de novo." — Ótimo! — disse Holmes, a quem voltara o bom humor à medida que seu interesse aumentava. — O destino foi seu amigo. — Não é só isso. Minha escrivaninha é nova, coberta de couro vermelho. Estou pronto a jurar, assim como Bannister, que a superfície era macia e sem manchas. Pois apresenta um corte de oito centímetros de comprimento! Não apenas um risco, mas um corte. Além disso, encontrei na mesa um torrãozinho de argila, com pontinhos que pareciam serragem. Tenho certeza de que esses vestígios foram deixados pelo homem que remexeu nos papéis. Não havia pegadas nem outros sinais de sua identidade. Fiquei sem saber o que fazer, mas, felizmente, lembrei-me de que o senhor estava na cidade, de modo que vim imediatamente procurá-lo. Por favor, ajude-me, sr. Holmes! Compreenda meu dilema. Tenho de encontrar o homem, ou o exame terá de ser adiado até que se preparem novas provas. Uma vez que isso não pode ser feito sem explicações, haverá um terrível escândalo, que atingirá não somente a faculdade, mas toda a universidade. Antes de mais nada, desejo que tudo seja feito discretamente. — Terei muito prazer em investigar e auxiliá-lo no que puder — disse Holmes, erguendo-se e vestindo o sobretudo. — O caso não é destituído de interesse. Alguém visitou seus aposentos, depois que os papéis lhe foram entregues? — Sim, Daulat, um estudante indiano que mora no mesmo andar e veio me pedir explicações sobre o exame. — É um dos candidatos? — É, sim, senhor. — E os papéis estavam sobre a mesa? — Pelo que me lembro, estavam enrolados. — Mas ele poderia ter reconhecido as provas? — É possível. — Ninguém mais foi vê-lo? — Não. — Alguém sabia que as provas estariam lá? — Pergunta se alguém, além do tipógrafo...? — Bannister sabia? — perguntou Holmes. — Não, claro que não. Ninguém sabia. — Onde está Bannister, agora? — Estava se sentindo muito mal, o coitado! Deixei-o caído numa cadeira. Eu estava ansioso por vir procurá-lo.
— Deixou a porta aberta? — Primeiro fechei os papéis à chave. — Então, chegamos a isto, sr. Soames: a não ser que o estudante indiano tenha reconhecido o rolo como sendo as provas, o homem que as examinou deu com elas por acaso, sem saber que estavam ali. — É o que parece. Holmes deu um sorriso enigmático. — Muito bem, vamos até lá — disse ele.— Não é um caso para você, Watson — é mental, não físico. Muito bem, venha, se quiser. Agora, sr. Soames — às suas ordens! O escritório de nosso cliente dava para o pátio coberto de líquen da velha faculdade, onde havia uma janela longa, baixa, gradeada. Uma porta gótica conduzia a uma gasta escada de pedra. No andar térreo ficavam os aposentos do professor. Em cima, moravam três estudantes, um em cada andar. Escurecia quando lá chegamos. Holmes parou e olhou atentamente para a janela. Depois, aproximou-se e, pondo-se nas pontas dos pés, de pescoço esticado para dentro do quarto. — Ele deve ter entrado pela porta — observou nosso guia. — Realmente? — exclamou Holmes, sorrindo singularmente e olhando de relance para nosso companheiro. — Bem, já que nada encontramos aqui, é melhor procurar lá fora. O professor abriu a porta e fez-nos entrar em seus aposentos. Ficamos à entrada, enquanto Holmes examinava o tapete. — Infelizmente, creio que não há marcas aqui — disse ele. — Não se poderia mesmo esperar por elas, em dia tão seco. Parece que seu empregado já está bem. O senhor diz que o deixou numa cadeira. Que cadeira? — Perto da janela. — Compreendo. Ao lado desta mesinha. Podem entrar, agora. Acabei com o tapete. Vamos examinar a mesinha. Não é difícil saber o que aconteceu. O homem entrou e apanhou as provas, folha por folha, na escrivaninha. Levou-as para a mesa próxima à janela, de onde veria o senhor atravessar o pátio, podendo então fugir. — Para ser exato, não poderia — disse o professor. — Entrei pela porta do lado. — Ah, ótimo! Mas, em todo caso, era essa a idéia dele. Deixe-me ver as folhas. Nada de impressões digitais. Pois bem, apanhou a primeira e copiou-a. Quanto tempo levaria, por mais esperto que fosse? Quinze minutos, nunca menos. Depois, deitou-a fora e apanhou outra. Estava no meio, quando sua chegada, sr. Soames, o obrigou a uma retirada apressada, muito apressada, uma vez que não teve tempo de guardar as provas no lugar certo, o que indicaria ao senhor que alguém estivera em seu quarto. Não ouviu passos apressados, na escada, quando passou pela porta exterior? — Não, não ouvi. — Pois bem, ele escrevia tão furiosamente que quebrou o lápis, tendo de apontá-lo
novamente. Isso é interessante, Watson. O lápis não era do tipo comum. Era de tamanho invulgar, mole; a parte de fora, azul-escura, mostra o nome do fabricante em letras prateadas, e o pedaço que sobra é de apenas quatro centímetros. Procure esse lápis, sr. Soames, e terá seu homem. Quando eu acrescentar que ele possui uma faca afiada e grande, o senhor terá mais um indício. O sr. Soames estava atônito com as informações. — Posso compreender o resto — disse ele. — Mas, quanto ao comprimento do lápis... Holmes ergueu uma das lascas, onde se viam as letras NN e um espaço de madeira livre depois delas. — Vê? — perguntou. — Nem mesmo assim... Holmes explicou: — Que poderia significar nn? É o final de uma palavra, Watson. Você sabe que Johann Faber é a marca mais comum de lápis. Não vê que o que sobra do lápis é exatamente a parte em que não está impresso o nome Johann? — Holmes virou a mesinha de lado para a luz elétrica. — Tinha esperanças de que, se o papel onde ele escreveu fosse fino, ficasse qualquer marca na superfície polida da mesa. Mas nada vejo. Creio que nada mais podemos apurar aqui. Vamos ver a escrivaninha. Suponho que este torrão seja aquele a que o senhor se referiu. Triangular. Parece que há nele grãos de serragem. Interessante, não há dúvida. E o corte no couro é um rasgão, pelo que vejo. Começa com um risco e acaba num buraco. Fico-lhe muito grato por ter me chamado a atenção para este fato, sr. Soames. Para onde dá aquela porta? — Para o meu quarto. — Esteve lá após sua descoberta? — Não, senhor, fui pedir seu auxílio imediatamente. — Gostaria de vê-lo... Que quarto encantador, antigo! Peço-lhe que espere um minuto enquanto examino o soalho. Não, não descubro coisa alguma. E esta cortina! Ah, vejo que guarda as suas roupas atrás dela. Se alguém tivesse de se esconder no quarto, só poderia ser aqui, já que a cama é muito baixa, e o armário, muito estreito. Ninguém aqui, creio eu? Quando Holmes abriu a cortina, vi pela rigidez que estava preparado para qualquer emergência. Mas ali nada havia, além de três ou quatro ternos de homem. Holmes virou-se e de repente abaixou-se para examinar o chão. — Oh, o que é isto? Era um torrãozinho escuro, igual ao que víramos na escrivaninha. Holmes colocou-o na palma da mão e examinou-o. — O visitante deixou vestígios em seu quarto, assim como no escritório, sr. Soames. — O que ele poderia querer aqui? — Parece-me simples. O senhor surgiu inesperadamente, e ele não o notou até o senhor chegar à porta. Que poderia fazer? Agarrou em tudo o que denunciasse sua presença e escondeu-se no quarto. — Deus do céu, sr. Holmes, quer dizer que, enquanto eu falava com Bannister nesta sala, poderíamos ter apanhado o homem no quarto?
— É minha opinião. — Mas ainda há outra possibilidade, sr. Holmes. Parece-me que o senhor não examinou a janela de meu quarto. — Sim, examinei, e sei que daria passagem a um homem. — Exatamente. E dá para um ângulo do pátio, de modo que fica parcialmente escondida. O homem poderia ter entrado por ali, deixando vestígios ao passar pelo quarto, e ter saído depois pela porta, ao encontrá-la aberta. Holmes sacudiu a cabeça com impaciência. — Sejamos práticos — disse ele. — Creio tê-lo ouvido dizer que três estudantes se servem desta escada e costumam passar diante de sua porta. — Exatamente. — E todos os três estão inscritos no exame de amanhã? — Estão. — Tem algum motivo para suspeitar de algum deles em especial? Soames hesitou. — É uma pergunta muito delicada — disse ele. — Ninguém gosta de lançar suspeitas sem provas. — Ouçamos as suspeitas. Deixe as provas por minha conta. — Falarei, então, sobre o caráter dos três rapazes. O do andar de baixo é Gilchrist, bom estudante e ótimo atleta; joga rúgbi e críquete pela faculdade. É um rapaz distinto, viril. Seu pai foi o célebre Sir Jabez Gilchrist, que se arruinou nas corridas de cavalos. O filho ficou muito pobre, mas é estudioso e aplicado. Fará um bom exame. "No segundo andar mora Daulat Rãs, o indiano. É um rapaz quieto, reservado, como em geral todos os seus compatriotas. Está preparado, embora o grego seja seu ponto fraco. Rapaz firme e metódico. "No andar de cima mora Miles McLaren. É brilhante, quando se lembra de estudar, uma das mais vivas inteligências da universidade, mas é desorganizado e sem grandes princípios. Quase foi expulso no primeiro ano por causa de um jogo de cartas. Vadiou durante todo o semestre, e creio que receia o exame de amanhã." — Então é dele que o senhor suspeita? — Não irei tão longe. Mas, dos três, é o mais provável. — Perfeitamente, sr. Soames. Agora, gostaria de falar com seu criado, Bannister. Bannister era um homem pequeno, barbeado, de cabelos grisalhos, aparentando mais ou menos cinqüenta anos. Ainda parecia sofrer as conseqüências do fato que perturbara a calma rotina de sua vida. Seu rosto apresentava contrações nervosas, e as mãos tremiam-lhe. — Estamos investigando o desagradável incidente, Bannister — disse-lhe o patrão. — Sim, senhor. — Pelo que entendi, deixou a chave na porta — interveio Holmes. — Sim, senhor.
— Não é estranho que tenha feito isso justamente no dia em que as provas se encontravam no quarto? — Foi uma infelicidade, senhor. Mas não é a primeira vez que acontece. — Quando foi que entrou no quarto? — Mais ou menos às quatro e meia. Era a hora do chá do sr. Soames. — Quanto tempo ficou? — Ao ver que ele não estava, saí imediatamente. — Olhou os papéis que estavam na escrivaninha? — Não, senhor, claro que não. — Por que deixou a chave na porta? — Estava com a bandeja de chá nas mãos. Pensei em voltar para levar a chave, mas esqueci-me de fazê-lo. — A porta de fora tem fechadura com trinco? — Não, senhor. — Então ficou aberta todo o tempo? — Sim, senhor. — Qualquer pessoa que estivesse no quarto poderia sair? — Sim, senhor. — Quando o sr. Soames voltou e o chamou, ficou muito perturbado? — Sim, senhor. Nunca aconteceu coisa igual, durante todos os anos que tenho estado aqui. Quase desmaiei. — Foi o que me disseram. Onde estava, quando começou a se sentir mal? — Onde estava, senhor? Bem... aqui, perto da porta. — É estranho, pois foi sentar-se naquela cadeira, do outro lado. Por que passou por todas estas outras cadeiras? — Não sei, senhor. Não me fazia diferença a cadeira onde me sentasse. O professor interveio. — Não creio que ele possa dizer muita coisa, sr. Holmes. Estava muito perturbado, branco como um lençol. — Ficou aqui, depois que seu patrão saiu? — Apenas um minuto ou dois. Depois fechei o quarto e fui para o meu. — De quem você desconfia?
— Oh, eu não ousaria dizer, senhor. Não creio que haja um rapaz, nesta universidade, capaz de se beneficiar com tal ato. Não, senhor, não posso acreditar. — Muito obrigado. É tudo — disse Holmes. — Oh, mais uma coisa. Não disse a nenhum dos três rapazes o que tinha acontecido? — Não, senhor, nem uma palavra. — Não viu nenhum deles? — Não, senhor. — Muito bem. Agora, sr. Soames, vamos dar uma volta pelo pátio. Três quadrados amarelos de luz brilhavam acima de nossas cabeças quando nos vimos no pátio, no meio da tarde que caía. — Seus três pássaros estão no ninho — disse Holmes, erguendo os olhos. — Ora, ora! Parece que um deles está muito agitado. Era o indiano, cuja negra silhueta se desenhara de repente na cortina. Andava de um lado para outro do quarto. — Gostaria de dar uma olhada em cada um deles — disse Holmes. — Seria possível? — Sem a menor dúvida — disse o professor. — Esses quartos são os mais velhos da faculdade, e não é raro virem visitá-los. Vamos, eu o apresentarei. — Nada de nomes, por favor! — pediu Holmes, quando chegamos à porta de Gilchrist. Fomos recebidos por um rapaz alto, magro, de cabelos claros, que nos acolheu cordialmente, quando soube a que vínhamos. A arquitetura medieval era de fato atraente. Holmes estava tão interessado que insistiu em copiar alguns desenhos em seu caderno de apontamentos, mas quebrou o lápis e teve de pedir um emprestado ao dono do quarto, acabando por pedir uma faca para apontá-lo. A mesma coisa aconteceu no quarto do indiano, um rapaz quieto, de nariz adunco, que nos olhou sem amabilidade e ficou satisfeito quando Holmes acabou com seus estudos arquitetônicos. Não achei que Holmes tivesse obtido resultado em nenhum dos casos. Somente no terceiro é que nossa visita não surtiu efeito. Quando batemos, não somente não nos abriram a porta, como ainda ouvimos impropérios. — Não me importa quem sejam! — gritou o sujeito. — Podem ir para o inferno! O exame é amanhã e não quero que me perturbem. — Sujeito grosseiro — disse o professor, vermelho de cólera, quando nos afastamos. — Claro que não sabia que era eu quem estava batendo, mas, de qualquer maneira, foi muito pouco amável, e convenhamos que sua atitude é suspeita, dadas as circunstâncias. A reação de Holmes foi curiosa. — Pode dizer-me qual a altura do rapaz? — perguntou.
— Francamente, sr. Holmes, não posso dizer ao certo. É mais alto do que o indiano, não tanto como Gilchrist. Creio que tem um metro e sessenta e cinco, aproximadamente. — Isso é muito importante — disse Holmes. — E agora, boa noite, sr. Soames. O professor pareceu consternado. — Deus do céu, sr. Holmes, o senhor vai abandonar-me assim tão bruscamente? Não parece compreender a situação. O exame é amanhã. Preciso tomar sérias providências hoje à noite. Não posso permitir que o exame se realize, uma vez que houve tão grande irregularidade. Temos de enfrentar a situação. — Deixe as coisas como estão. Virei aqui amanhã cedo e conversaremos sobre o caso. É possível que então possa lhe indicar uma maneira de agir. Neste meio tempo, não faça nada. Nada. — Muito bem, sr. Holmes. — Pode ficar tranqüilo, pois encontraremos uma saída. Levarei comigo o torrão de argila, assim como as aparas do lápis. Até amanhã. Quando nos vimos na escuridão do pátio, erguemos de novo os olhos para as janelas. O indiano ainda passeava para lá e para cá. Os outros estavam invisíveis. — Então, Watson, o que me diz? — perguntou Holmes quando chegamos à rua. — Jogo de salão, hein? O truque das três cartas. Lá estão seus três homens. Escolha um. Qual deles? — O sujeito malcriado, do andar de cima. É o que tem a pior ficha. Mas o indiano também pareceu um sujeito dissimulado. Por que haveria de andar de um lado para outro, o tempo todo? — Isso não quer dizer nada. Muitas pessoas gostam de andar, quando estão decorando qualquer coisa. — Ele olhou-nos de maneira estranha. — Você faria o mesmo se um bando de desconhecidos lhe caísse em cima, na véspera do exame, quando cada minuto tem importância. Não, nada vejo aí. Lápis e facas, tudo em ordem. Mas aquele sujeito deixa-me perplexo. — Quem? — Bannister, o criado. Qual será seu jogo? — Pareceu-me um homem honesto. — A mim também. Isso é que me deixa perplexo. Por que haveria um homem honesto de... bem, ali está uma papelaria. Começaremos nossa busca por aqui. Havia apenas quatro papelarias de alguma importância na cidade. Em todas elas, Holmes mostrou as aparas de lápis e pediu um lápis da mesma marca. Todos disseram que poderiam encomendar, mas que não eram de tamanho comum, e que nunca tinham tido daquele tipo em estoque. Holmes não pareceu aborrecido com o fracasso. Encolheu os ombros, resignado. — Não adianta, Watson. Era nossa melhor pista, e deu em nada! Mas creio que o caso se manterá de pé, mesmo sem isso. Deus meu! São quase nove horas, e a senhoria falou em servir ervilhas às sete e meia. Com sua mania de fumar, Watson, e sua falta de pontualidade às refeições, creio que logo receberá o bilhete azul, e terei de lhe fazer companhia. Mas nunca antes de termos resolvido o problema do professor nervoso, do criado descuidado e dos três estudantes audaciosos. Holmes não fez mais alusão ao caso, embora tivesse ficado pensativo durante muito
tempo, após nosso tardio jantar. No dia seguinte, às oito da manhã, entrou em meu quarto, justamente quando eu acabava de me vestir. — Bem, Watson, está na hora de irmos para a universidade. Pode passar sem seu café? — Claro que sim. — Soames deve estar sobre brasas, à espera de que eu lhe diga algo positivo. — E tem alguma coisa de positivo para lhe dizer? — Creio que sim. — Chegou a uma conclusão? — Sim, caro Watson. Resolvi o mistério. — Mas que novos indícios conseguiu? — Ah!... Não foi à toa que saí da cama a hora tão imprópria: seis da manhã! Trabalhei duramente, e caminhei pelo menos oito quilômetros. Mas o resultado valeu a pena. Olhe para isto aqui! Holmes abriu a mão, e nela vi três torrõezinhos de terra escura. — Mas, Holmes, ontem você só tinha dois! — E mais um hoje de manhã. Creio que tenho um bom argumento: de onde veio o número 3, vieram também os números 1 e 2. Então, Watson?... Vamos tranqüilizar o amigo Soames. O infeliz professor estava em um deplorável estado de agitação, quando o visitamos em seus aposentos. Dali a poucas horas começaria o exame, e ele ainda se encontrava num dilema, sem saber se cancelaria a prova, tornando o fato público, ou se permitiria ao culpado que concorresse à bolsa de estudos. Mal podia manter-se de pé, tal a sua agitação, e correu para Holmes de mãos estendidas, assim que o viu aparecer. — Graças a Deus, chegou! Receei que tivesse desistido por não ter esperanças. Que devo fazer? Permitir que o exame se realize? — Sem a menor dúvida. — Mas... e o malandro? — Esse não concorrerá. — O senhor sabe quem é? — Creio que sim. Para que o caso não se torne público, temos de nos atribuir certos poderes e organizar uma pequena corte marcial. Fique ali, Soames. Watson, você aqui! Ficarei na poltrona do centro. Creio que estamos suficientemente imponentes para lançar o terror numa alma culpada. Faça o favor de tocar a campainha. Bannister apareceu, mas recuou, surpreso e amedrontado, ante nossa aparência de juízes. — Faça o favor de fechar a porta — disse Holmes. — Agora, Bannister, quer ter a bondade de contar a verdade sobre o incidente de ontem? O homem empalideceu.
— Contei tudo, senhor. — Nada tem a acrescentar? — Nada, senhor. — Então, vou fazer algumas sugestões. Quando você se sentou naquela cadeira, ontem, não o fez para esconder um objeto que teria denunciado quem estivesse no quarto? Bannister estava simplesmente lívido. — Não, senhor, claro que não. — É apenas uma sugestão — disse Holmes suavemente. — Confesso que nada poderia provar. Mas parece plausível, já que, assim que o sr. Soames virou as costas, você libertou o homem que estava no outro quarto. Bannister molhou os lábios secos. — Não havia homem nenhum, senhor. — É uma pena, Bannister. Até aqui, você falou a verdade, mas agora sei que mentiu. O criado tinha um ar de sombrio desafio. — Não havia homem nenhum, senhor. — Vamos, Bannister. — Não, senhor, não havia ninguém. — Nesse caso, não pode dar-nos nenhuma informação. Quer fazer o favor de ficar nesta sala? Agora, Soames, gostaria que fosse até o quarto do estudante Gilchrist, para pedir-lhe que venha até aqui. Dali a momentos, o professor voltou com o aluno. Era um rapaz simpático, alto, ágil, de andar vivo e rosto franco. Os olhos azuis viram-nos de relance, parecendo perturbados, e finalmente detiveram-se, com expressão consternada, em Bannister, que estava a um canto. — Feche a porta — disse Holmes. — Agora, sr. Gilchrist, estamos sós, e ninguém jamais precisará saber o que se passou aqui entre nós. Podemos falar com absoluta franqueza. Queremos saber, sr. Gilchrist, como o senhor, um homem honrado, chegou a cometer um ato como o de ontem. O infeliz rapaz cambaleou, olhando para Bannister com horror e censura. — Não, não, sr. Gilchrist, não disse uma palavra, nem uma palavra! — gritou o criado. — Não; mas disse agora — declarou Holmes. — Vamos, rapaz, pode ver pelas palavras de Bannister que sua situação é melindrosa, e que sua única esperança está numa confissão franca. De mão erguida, Gilchrist tentou, durante alguns segundos, dominar-se. Depois, atirou-se de joelhos ao chão, ao lado da escrivaninha, escondeu o rosto nas mãos e
rompeu em soluços, — Vamos, vamos — disse Holmes bondosamente. — Errar é humano, e pelo menos ninguém pode acusá-lo de ser reincidente. Talvez ache melhor que eu conte ao sr. Soames o que aconteceu. Poderá corrigir-me, se eu estiver enganado. Posso começar? Bem, não precisa responder. Ouça, e verá que não sou injusto. Holmes dirigiu-se ao professor. — No momento em que me disse que ninguém, nem mesmo Bannister, poderia saber que as provas se encontravam em seu quarto, sr. Soames, o caso começou a definir-se em minha mente. Quanto ao tipógrafo, claro que devia ser afastado. Ele poderia ter examinado as provas na oficina. Também não pensei no indiano. Se as provas estavam enroladas, ele não poderia tê-las reconhecido, quando veio a seu quarto. Por outro lado, parecia uma incrível coincidência que um rapaz ousasse entrar em seu quarto e que por acaso encontrasse ali as provas nesse dia. Afastei essa idéia. Mas, então, como poderia ele ter sabido? "Quando me aproximei de seu quarto, examinei a janela. O senhor divertiu-me, supondo que eu admitia a hipótese de alguém ter ousado penetrar aqui em pleno dia, à vista dos outros quartos. A idéia era absurda. Mas na verdade eu estava tentando verificar de que altura precisaria ser um homem para poder enxergar, ao passar pela janela, as provas que se encontravam sobre a escrivaninha. Tenho um metro e oitenta de altura, e só o consegui com dificuldade. Nenhum homem mais baixo poderia espreitar para dentro do quarto. Achei, portanto, que se um de seus estudantes fosse muito alto, era sobre ele que deveriam recair nossas suspeitas. Entrei em seu quarto, sr. Soames, e ao descrever-me os estudantes o senhor disse que Gilchrist era atleta, saltador. Vi imediatamente como tudo se dera. Precisava apenas obter provas, o que não me foi difícil. "Eis o que aconteceu. O rapaz passara a tarde no campo de atletismo, exercitando-se em salto. Voltou, calçando os sapatos de atletismo, os quais, como o senhor sabe, têm solas com travas. Ao passar por sua janela, viu, por ser muito alto, que as provas estavam sobre a escrivaninha. Nada de mau teria acontecido se ele não tivesse visto, ao passar pela porta, a chave que o criado ali esquecera. Teve a súbita tentação de entrar, para ver se realmente eram as provas. Não era muito arriscado, pois sempre poderia dizer que entrara para fazer uma pergunta. "Pois bem, quando viu que eram realmente as provas, sucumbiu à tentação. Pôs os sapatos na escrivaninha." Holmes dirigiu-se ao rapaz: — Que foi que pôs na cadeira perto da janela? — As luvas — respondeu Gilchrist. Holmes olhou para Bannister com ar de triunfo. — Pôs as luvas na cadeira e levou as provas, uma a uma, para copiá-las perto da janela. Calculou que o professor voltaria pelo portão principal e que dali poderia vê-lo chegar. Mas, como sabemos, o sr. Soames entrou pelo portão lateral. De repente, o rapaz ouviu-o à porta. Não podia fugir. Esqueceu as luvas, mas agarrou os sapatos e escondeu-se no quarto de dormir. Podem ver que o rasgo da escrivaninha é leve de um lado, mas que se aprofunda na direção do quarto. Isso basta para nos provar que foi esse o rumo que o culpado tomou. A terra à volta de uma trava ficou na escrivaninha, e um segundo torrão caiu no quarto. Participo-lhes que fui a pé até o campo de atletismo, hoje de manhã, vi a argila
escura que existe no campo de treino de saltos e trouxe uma amostra, salpicada da serragem que usam para que os atletas não escorreguem. Disse a verdade, sr. Gilchrist? O estudante erguera-se. — Sim, senhor, é a verdade. — Deus do céu, nada mais tem a dizer? — exclamou Soames. — Sim, senhor, tenho, mas o choque deixou-me perturbado. Tenho aqui uma carta, sr. Soames, que lhe escrevi no meio de uma noite inquieta. Foi escrita antes de saber que meu crime fora descoberto. Aqui está. O senhor verá o que escrevi: "Resolvi não fazer o exame. Ofereceram-me um lugar na polícia da Rodésia, e sigo imediatamente para a África do Sul". — Fico satisfeito por ver que não pretendia aproveitar-se da vantagem que obteve — disse Soames. — Mas por que mudou de idéia? Gilchrist indicou Bannister. — Ali está o homem que me pôs no bom caminho — disse ele. — Vamos lá, Bannister — disse Holmes. — Pelo que eu disse, bem vê que a única pessoa que poderia libertar o rapaz seria você mesmo, já que ficou aqui no quarto e fechou a porta depois de sair. Quanto à hipótese de ele ter saltado pela janela, é inadmissível. Não quer esclarecer esse último ponto do mistério e explicar a razão de seu ato? — Era muito simples, mas há um fato que, apesar de toda a sua inteligência, o senhor não poderia saber. Durante um certo tempo fui mordomo de Sir Jabez Gilchrist, pai do rapaz. Quando ele perdeu a fortuna, vim ser criado aqui na universidade, mas não me esqueci de meu patrão, pelo fato de estar por baixo na vida. Cuidei do filho dele como pude, por amor aos velhos tempos. Pois bem, senhor, quando ontem vim até aqui, depois do incidente, a primeira coisa que vi foram as luvas do sr. Gilchrist naquela cadeira. Conhecia as luvas e sabia o que sua presença significava. Se o sr. Soames as visse, estaria tudo perdido. Caí na cadeira e ninguém dali me tiraria, até o sr. Soames sair à sua procura. Depois, meu patrãozinho saiu do quarto, ele que eu carregara ao colo, e confessou-me tudo. Não era natural que eu o salvasse, e não era também natural que eu lhe falasse como seu velho pai teria feito, se fosse vivo? Procurei fazer com que compreendesse que não poderia aproveitar-se do que fizera. O senhor censurar-me-ia? — Não, nunca! — exclamou Holmes, erguendo-se. — Pois bem, Soames, desvendamos o mistério, e o café está à nossa espera. Venha, Watson. Quanto ao senhor, sr. Gilchrist, espero que tenha um brilhante futuro na Rodésia. Por uma vez, deixou-se cair; vejamos a que altura poderá elevar-se no futuro.
Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar
Arthur Conan Doyle
O Pincenê Dourado Título original: The Golden Pince-Nez
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1904
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Golden Pince-Nez publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.
Quando olho para os três maciços volumes onde estão registradas nossas atividades do ano de 1894, confesso que tenho dificuldade em escolher, entre tão rico material, os casos mais interessantes que ao mesmo tempo possam evidenciar as extraordinárias qualidades que tornaram famoso Sherlock Holmes. Ao virar as páginas, encontro minhas notas sobre a repulsiva história da sanguessuga vermelha e sobre a horrível morte do banqueiro Crosby. Vejo também a tragédia Addieton e a famosa herança de SmithMortimer, assim como a prisão de Huret, o assassino do bulevar — este último caso valeu a Holmes uma carta de agradecimento escrita pelo próprio punho do presidente da França, e a Legião de Honra. Cada um desses casos daria uma história, mas, em minha opinião, nenhum deles reúne pontos tão singulares como o episódio de Yoxley Old Place, onde estão incluídos não somente a lamentável morte do jovem Willoughby Smith, como os acontecimentos seguintes, que fizeram luz sobre as causas do crime. Era uma noite tempestuosa, em fins de novembro. Holmes e eu tínhamos ficado em silêncio durante toda a noite, ele decifrando com uma lente a inscrição original de um palimpsesto, e eu lendo um novo tratado sobre cirurgia. O vento ululava na Baker Street, e a chuva batia furiosamente nas janelas. Estranho que ali, no meio da cidade, cercados pêlos produtos do esforço humano num raio de quinze quilômetros, pudéssemos sentir a natureza e saber que, para a força dos elementos, Londres não era mais do que os moinhos de vento espalhados pêlos campos. Fui até a janela e olhei para a rua deserta. Vinha um único carro, do lado da Oxford Street.
— Ainda bem que não temos de sair hoje à noite, Watson — disse Holmes, largando a lente e o palimpsesto. — Já trabalhei bastante. É serviço que cansa os olhos. Pelo que parece, não há nada nele de muito interessante. Data da segunda metade do século XV, Ora, mas o que é isso? Em meio aos gemidos do vento, ouvimos o ruído de patas de cavalo e de uma roda raspando a guia. O carro que eu vira parou à nossa porta. — O que quererá ele? — perguntei, quando vi um homem descer. — O que quer ele? Procura-nos — respondeu Holmes. — E nós, caro Watson, queremos sobretudos, galochas e todas as coisas que os homens inventaram para lutar contra o tempo. Espere um pouco! O carro vai embora. Ainda há esperança. Ele o teria feito esperar se quisesse que o acompanhássemos. Vá abrir a porta, caro amigo, pois as pessoas virtuosas já estão na cama há muito tempo. Quando a luz da lâmpada do vestíbulo caiu sobre o visitante, não tive dificuldade em reconhecê-lo. Era Stanley Hopkins, um detetive de futuro, por quem Holmes muito se interessava. — Ele está? — perguntou-me o rapaz ansiosamente. — Suba, caro senhor — disse Holmes lá de cima. — Espero que não tenha desígnios a nosso respeito, em noite tão tempestuosa. O detetive subiu a escada, e a luz brilhou em seu impermeável molhado. Ajudei-o a despir-se, enquanto Holmes avivava o fogo na lareira. — Agora, caro Hopkins, venha aquecer-se — disse Holmes. — Tome um charuto; o doutor tem uma receita de água quente e limão que é ótima para uma noite assim. Deve ser importante o assunto que o trouxe aqui, com esse tempo. — É verdade, sr. Holmes. Tive uma tarde cheia, pode estar certo. Leu alguma coisa, nos jornais da tarde, sobre o caso Yoxley? — Não passei do século XV, hoje — disse Holmes. — Pois bem, saiu apenas um parágrafo e mesmo assim errado, de modo que não perdeu nada. O caso deu-se em Kent, a onze quilômetros de Chatham e a cinco da linha férrea. Recebi um telegrama às três e quinze, cheguei a Yoxley Old Place às cinco, fiz minhas investigações pelo último trem. Depois vim diretamente para cá. — E isso quer dizer que não tem grande certeza quanto ao caso? — Quer dizer que, para mim, ele não tem pé nem cabeça. A julgar pelas aparências, é o caso mais complicado que já tive, embora a princípio parecesse muito simples. Não existe motivo, sr. Holmes. É o que me aborrece. Não existe o menor motivo. Temos um homem morto... disso não há dúvida, mas, ao que parece, ninguém no mundo tinha razões para desejar sua morte. Holmes acendeu o charuto e recostou-se na cadeira. — Vamos ouvir a história — disse ele.
— Os fatos são muito claros — explicou Stanley Hopkins. — Só o que quero saber é o que significam. A história é a seguinte: há anos, essa casa de campo, Yoxley Old Place, foi alugada por um homem de idade, que disse chamar-se professor Coram. É um inválido que passa a maior parte do tempo na cama, e o resto a andar pela casa com sua bengala, ou empurrado numa cadeira de rodas pelo jardineiro. Causou boa impressão aos poucos vizinhos que o visitaram, tendo a reputação de ser muito culto. Na casa há duas empregadas, a governanta, a sra. Marker, já de idade, e uma criadinha, Susan Tariton. Estão com ele desde que chegou, e parecem pessoas muito dignas. O professor está escrevendo um livro, e achou necessário, há um ano, empregar um secretário. Os dois primeiros que ele escolheu não serviram. Mas o terceiro, o sr. Willoughby Smith, um rapaz recém-saído da universidade, parece que agradou muito ao professor. Sua função era escrever, a manhã inteira, o que o professor lhe ditava, e geralmente passava a tarde à procura de passagens e referências que pudessem ser de interesse para o trabalho do dia seguinte. Esse Willoughby Smith era um bom sujeito, e nada encontramos em seu desabono, nem em criança, como aluno em Uppingham, nem como rapaz, em Cambridge. Sempre foi estudioso, sem nenhuma falha de caráter. E no entanto, foi esse rapaz que encontrou a morte hoje de manhã, no escritório do professor, em circunstâncias que indicam tratar-se de assassinato. O vento gemia contra as janelas. Holmes e eu aproximamo-nos ainda mais do fogo, enquanto o detetive continuava sua singular narrativa. — Se o senhor tivesse de procurar em toda a Inglaterra, não creio que pudesse encontrar lar mais calmo e livre de influências estranhas — continuou Hopkins. — Durante semanas, nenhuma das pessoas da casa ia além do portão do jardim. O professor ficava mergulhado no trabalho, e nada mais existia para ele. O secretário não conhecia ninguém na vizinhança, e levava a mesma vida do patrão. As duas mulheres também não saíam. Mortimer, o jardineiro, que é quem empurra a cadeira de rodas, é um velho soldado da Guerra da Criméia e ótimo sujeito. Não mora na casa, mas numa dependência na extremidade do jardim. São as únicas pessoas que o senhor encontrará em Yoxley Old Place. Por outro lado, o portão do jardim fica a cem metros da estrada que liga Londres a Chatham. Tem um trinco, e nada impediria que qualquer pessoa entrasse por ali. "Vou agora contar-lhes as declarações de Susan Tariton, a única pessoa que pode dizer algo positivo. O fato deu-se entre as onze horas e o meio-dia. Ela estava ocupada colocando umas cortinas no quarto da frente, no andar de cima. O professor Coram ainda estava na cama, pois, com o mau tempo, raramente se levanta antes do meio-dia. A governanta estava trabalhando nos fundos da casa. Willoughby Smith estivera em seu quarto, que servia também de saleta, mas a criada ouvira-o passar pelo corredor e descer para o escritório, logo por baixo da sala onde ela se encontrava. A jovem não o viu, mas disse que não poderia enganar-se quanto aos passos firmes, rápidos. Não ouviu a porta do escritório fechar-se, mas dois ou três minutos depois ouviu um grito horrível, partindo de lá. Grito tão pavoroso, rouco e estranho, que tanto poderia ser de homem como de mulher. Logo em seguida, houve um ruído pesado, que sacudiu a casa, e depois silêncio. A criada ficou petrificada por um momento, mas depois, enchendo-se de coragem, correu para baixo. A porta do escritório estava fechada. A moça abriu-a. O secretário, Willoughby Smith, estava estendido no chão. A princípio, não percebeu que estava ferido e procurou erguê-lo, mas depois viu que o sangue lhe jorrava do pescoço. Havia ali um corte pequeno, mas profundo, que abrira a carótida. A arma do crime estava no tapete, ao lado do rapaz. Era uma dessas faquinhas usadas para lacrar cartas, que se encontra em todas as escrivaninhas antigas, de cabo de marfim e lâmina afiada. Fazia parte dos objetos da escrivaninha do professor Coram. "A princípio, a criada pensou que o rapaz estivesse morto, mas depois, ao molhar-lhe a fronte com água da jarra, viu-o abrir os olhos por um instante. 'O professor... foi ela', murmurou o secretário. A criada está pronta a jurar que foram exatamente essas as palavras. Ele tentou desesperadamente dizer alguma coisa, com a mão direita erguida, mas logo em seguida caiu morto. "Entretanto, a governanta também chegara, mas não a tempo de ouvir as últimas palavras do rapaz. Deixando Susan com o cadáver, correu para o quarto do professor. Encontrou-o sentado na cama, muito agitado, pois ouvira o suficiente para estar convencido
de que algo terrível acontecera. A sra, Marker está pronta a jurar que o professor ainda estava com as roupas de dormir, e de fato é-lhe impossível vestir-se sem o auxílio de Mortimer, que tinha por obrigação subir ao meio-dia. O professor declara que ouviu o grito, mas nada mais pôde informar. Não sabe explicar as últimas palavras do rapaz, 'O professor... foi ela', mas imagina que tenham sido ditas inconscientemente. Em sua opinião, o secretário não tinha um inimigo sequer, e não pode atinar com um motivo para o crime. Seu primeiro cuidado foi mandar Mortimer, o jardineiro, avisar a polícia. O inspetor da localidade mandou logo chamar-me. Não tinham tocado em nada até eu chegar, e haviam sido dadas ordens peremptórias para que ninguém andasse na alameda que conduzia à casa. Teria sido ótima oportunidade para o senhor pôr em prática suas teorias, sr. Sherlock Holmes. Não faltava coisa alguma." — Com exceção de Sherlock Holmes! — disse meu amigo, com um sorriso um tanto amargo. — Pois bem, ouçamos o fim. Que fez você? — Primeiro, quero que veja esta planta, meio rabiscada, que lhe dará uma idéia da posição dos quartos. Creio que isso o ajudará a acompanhar os passos que dei na investigação.
Hopkins abriu a planta e estendeu-a sobre os joelhos de Holmes. Levantei-me e fui postar-me ao lado de meu amigo. — É apenas um rabisco, para mostrar os pontos que julgo essenciais. O resto o senhor verá mais tarde por si mesmo. Agora, em primeiro lugar, presumindo-se que o assassino tenha entrado na casa, por onde entrou? Sem dúvida, pela alameda do jardim e pela porta do fundo, de onde se tem acesso direto ao escritório. Qualquer outra entrada teria sido muito complicada. A fuga deve ter-se dado também por aí, pois as duas outras saídas não serviam, visto que uma estava bloqueada por Susan, que descera correndo, e a outra conduz ao quarto do professor. Posto isso, dediquei toda a atenção à alameda do jardim, que estava molhada por chuva recente e onde certamente haveria pecadas. "O exame mostrou-me que estava lidando com um criminoso cauteloso e sabido. Não havia pegadas. Mas alguém andara pela relva que margina a alameda, e essa pessoa agira assim para não deixar vestígios. Não encontrei impressões distintas, mas a relva estava pisada, indicando que alguém passara por ali. Só poderia ter sido o assassino, já que ninguém, nem mesmo o jardineiro, andara por ali naquela manhã, e a chuva caíra de noite." — Um momento — interrompeu Holmes. — Aonde conduz essa alameda? — À estrada. — Qual a distância? — Uns cem metros, mais ou menos. — Mas no trecho em que a alameda passa pelo portão, sem dúvida você poderia encontrar pegadas.
— Infelizmente, a alameda é calçada naquele ponto. — E na estrada? — Também não. A lama estava toda pisada. — Mas as pegadas na relva... iam, ou vinham? — Impossível dizer. Eram imprecisas. — Pé grande ou pequeno? —- Não dava para ver. Holmes teve um gesto impaciente. — Tem chovido e ventado desde então — disse ele. — Agora, seria mais difícil ler o que está escrito ali do que neste palimpsesto. Paciência. Mas o que você fez, Hopkins, depois que se certificou de que não tinha se certificado de coisa alguma? — Creio que me certifiquei de muita coisa, sr. Holmes. Sabia que alguém entrara na casa com cuidado. Examinei em seguida o corredor. Há ali um tapete de crina, de modo que não há qualquer espécie de marca. O corredor levou-me ao escritório, escassamente mobiliado. A peça principal é uma vasta escrivaninha; há também um arquivo. Este consta de uma dupla coluna de gavetas, com um armariozinho central entre elas. As gavetas estavam abertas, o armariozinho, fechado. Parece que as gavetas nunca são fechadas à chave, pois nada existe de valor dentro delas. No armariozinho havia alguns documentos importantes, mas não tinham sido tocados, e o professor garantiu-me que nada faltava. Não há dúvida de que não houve roubo. "Chegamos agora ao cadáver. Foi encontrado no escritório perto da escrivaninha, um pouco à esquerda, como está marcado no mapa. O ferimento, no lado direito do pescoço, vem de trás para diante, de modo que é impossível tratar-se de suicídio." — A não ser que ele tenha caído em cima da faca — observou Holmes. — Exatamente. Também pensei nisso. Mas a faca foi encontrada um pouco longe do corpo, de modo que essa hipótese pode ser afastada. Além disso, temos de levar em consideração as últimas palavras do rapaz. E, finalmente, temos esse indício importante, encontrado na mão fechada do rapaz. Hopkins tirou um embrulhozinho do bolso. Abriu-o e mostrou-nos um pincenê dourado, do qual pendiam dois pedaços de cadarço de seda preta. — Willoughby Smith tinha uma ótima vista — disse ele. — Não há dúvida de que o pincenê foi arrancado à pessoa que o matou. Sherlock Holmes apanhou o pincenê e examinou-o com grande interesse. Colocou-o sobre o nariz, tentou ler com ele, foi até a janela e olhou a rua através das lentes, examinou-o sob a lâmpada da sala e finalmente, com um estalido da língua, sentou-se e escreveu qualquer coisa num papel, que entregou depois a Stanley Hopkins. — É o máximo que posso fazer por você —
disse ele. — Pode ser que adiante. O atônito detetive leu em voz alta: "Procura-se uma mulher bem-vestida. Nariz grosso, olhos muito juntos um do outro. Testa franzida, pálpebras contraídas e, provavelmente, ombros arredondados. É de se prever que tenha procurado um oculista pelo menos duas vezes nos últimos meses. Como as lentes são muito fortes e os oculistas não são numerosos, não haverá dificuldade em encontrar-lhe a pista". Holmes sorriu do espanto de Hopkins, que se refletia em meu rosto. — Minhas deduções são muito simples — disse ele. — Não há melhor artigo do que um par de óculos para campo de deduções, e mais ainda quando são óculos extraordinários como estes aqui. Suponho que pertençam a uma mulher, por sua delicadeza, e também pelas últimas palavras da vítima. Quanto a ser pessoa de gosto e bem-vestida, você poderá deduzi-lo pelo pincenê de ouro maciço, e é inadmissível que uma pessoa que use tais óculos seja descuidada em outros pontos. Pode ver, Hopkins, que o cavalete do pincenê é largo demais para seu nariz, o que indica que o nariz da dama em questão é muito grosso. Esse tipo de nariz geralmente é curto e comum, mas há exceções, de modo que não quis ser dogmático e não insisti nesse ponto em minha descrição. Meu rosto é fino e, mesmo assim, não consigo focalizar o olhar no centro das lentes. Portanto, chego à conclusão de que os olhos da dama são muito próximos do nariz. Bem vê, Watson, que as lentes são côncavas e muito fortes. Uma pessoa que tenha tão grande deficiência visual deve ter as características dessa deficiência, de onde deduzi a testa franzida e os ombros arredondados. — Sim, compreendo — respondi. — Mas confesso que não sei como você conseguiu chegar à conclusão das duas visitas ao oculista. Holmes mostrou-me o pincenê. — Veja que os dois suportes do cavalete são forrados de cortiça, para suavizar a pressão da mola sobre o nariz. Um deles está gasto, mas o outro, novo. Evidentemente, um caiu e foi substituído. Mas parece-me que o mais velho tem poucos meses de uso. Ambos são iguais, de modo que calculo que a mulher tenha voltado à mesma ótica. — Meu Deus, é admirável! — exclamou Hopkins. — Pensar que tive todos esses indícios nas mãos e não soube aproveitá-los! Mas eu pretendia procurar os oculistas de Londres. — Claro que pretendia. Nesse meio tempo, tem mais alguma coisa a contar-nos? — Nada, sr. Holmes. Creio que o senhor sabe tanto quanto eu, ou talvez mais. Mandei indagar a respeito de qualquer estranho nas redondezas ou nas estações de trem. Nada apuramos. O que me causa espanto é a ausência absoluta de motivos para o crime. Ninguém pode sugerir o menor que seja. — Ah, nesse ponto não posso ajudá-lo. Mas tenho certeza de que deseja que o acompanhemos amanhã. — Se não for pedir demais, sr. Holmes. Sai um trem para Chatham às seis da manhã, e chegaríamos a Yoxley Old Place entre as oito e as nove horas. — Então, está combinado. O caso é interessante, e terei prazer em auxiliá-lo. Pois bem, é quase uma hora, e acho que devemos procurar dormir um pouco. Parece-me que você ficará bem aí no sofá, diante da lareira. Acenderei a espiriteira e dar-lhe-ei uma xícara de café antes de partirmos. O vento cessara de soprar no dia seguinte, mas o tempo ainda continuava feio quando partimos. Vimos o frio sol de inverno sobre os pântanos que ladeiam o Tamisa, e que
sempre me lembrarão os primeiros dias de nossa carreira. Após uma viagem cansativa, descemos numa estaçãozinha a alguns quilômetros de Chatham. Enquanto atrelavam um carro, fizemos uma refeição rápida na estalagem local, e, quando chegamos à casa do crime, estávamos prontos a iniciar nosso trabalho. Um policial recebeu-nos no jardim. — Então, Wilson, há novidades? — Não, senhor, nada. — Nenhuma notícia a respeito de um estranho nas redondezas? — Nada. Na estação todos têm certeza de que não chegou nem partiu nenhum estranho, ontem. — Mandou saber nas estalagens e pensões? — Mandei, senhor, e nada apuramos. — Pois bem, não é muito grande a caminhada até Chatham. Qualquer pessoa poderia ter ficado lá, ou apanhado um trem, sem ser notada. Aqui está a alameda de que lhe falei, sr. Holmes. Posso garantir-lhe que nela não havia pegadas ontem. — De que lado da relva estavam as marcas? — Deste lado. Há uma pequena faixa de relva entre a alameda e o canteiro. Agora não as distingo, mas ontem podiam ser notadas. — Sim, sim, alguém passou por aqui — disse Holmes, inclinando-se sobre a relva. — A mulher deve ter caminhado com cuidado, pois viu que, de um lado, deixaria pegadas na alameda e, do outro, no canteiro. Não é isso mesmo? — Sim, senhor, deve ter usado de cautela. Vi uma expressão de interesse no rosto de Holmes. — Então você acha que ela voltou por aqui? — Sim, senhor, não há outro caminho. — Por esta faixa de relva? — Sem dúvida, sr. Holmes. — Hum... Feito extraordinário, sem a menor dúvida. Pois bem, acho que não há mais nada para se ver aqui. Vamos continuar. Esta porta para o jardim geralmente fica aberta, não é verdade? Então a visitante não teve dificuldade em entrar. A idéia do crime não estava em seu espírito, pois do contrário teria trazido uma arma, em vez de apanhar a faca na escrivaninha. Ela passou pelo corredor sem deixar marcas na passadeira. Depois, viu-se no escritório, Quanto tempo ficou ali? Não podemos saber. — Apenas alguns minutos. Esqueci-me de dizer que a sra. Marker, a governanta, ali estivera pouco antes pondo as coisas em ordem. Um quarto de hora antes, pelo que 'ela calcula. — Bem, isso nos dá um limite. A mulher entra no escritório. Vai até a escrivaninha. Para quê? Não para remexer nas gavetas. Ela estava interessada no compartimento superior do móvel, que fica trancado. Esperem, que risco é este? Acenda um fósforo, Watson. Por que não me falou nisso, Hopkins? A marca que ele examinava começava no metal, do lado direito da fechadura, e estendia-se por onze centímetros, invadindo o verniz da madeira. — Eu tinha notado o risco, sr. Holmes. Mas a gente sempre encontra riscos perto de
fechaduras. — Este é recente, bem recente. Veja como o metal está brilhante, no ponto onde foi riscado. Um risco antigo teria a mesma cor da superfície. Examine-o com minha lente. Veja também o pó do verniz, de cada lado do sulco. A sra. Marker está aqui? Dali a pouco surgiu uma senhora de idade, de aparência tristonha. — A senhora limpou este móvel ontem? — perguntou Holmes. — Sim, senhor. — Notou este risco? — Não, senhor. — Tenho certeza de que não, pois o espanador teria tirado este pózinho de verniz. Quem guarda a chave deste móvel? — O professor a leva na corrente do relógio. — É uma chave simples? — Não, senhor, é uma chave de cadeado. — Muito bem. Pode se retirar, sra. Marker. Holmes voltou-se para nós: — Estamos fazendo alguns progressos. A mulher entra no escritório, avança para o arquivo e abre-o, ou tenta abri-lo. É surpreendida pelo secretário, Willoughby Smith. Na pressa de retirar a chave, risca a madeira. O rapaz segura-a, e ela, agarrando o primeiro objeto que encontra, e que acontece ser a faca, golpeia-o para que a solte. O ferimento é fatal. O rapaz cai e ela foge, com ou sem o objeto que veio procurar. Querem fazer o favor de chamar Susan, a criada? Susan apareceu imediatamente, e Holmes perguntou-lhe: — Alguém podia ter fugido por aquela porta depois de você ter ouvido o grito, Susan? — Não, senhor. Impossível. Antes de descer a escada, eu teria visto qualquer pessoa que estivesse no corredor. Além disso, a porta não foi aberta, pois do contrário eu teria ouvido o ruído. — Então, esse meio de fuga está fora de cogitação. Não há dúvida de que a mulher saiu por onde entrou. Parece que este outro corredor conduz ao quarto do professor. Não há saída por este lado? — Não, senhor. — Vamos conhecer o professor. Ora, Hopkins, isso é importante, muito importante! O corredor do professor também tem passadeira de crina. — É verdade, mas o que tem isso? — Não vê a importância que tem no caso? Bem, bem, não insisto, então. Com certeza estou enganado. Mas parece-me sugestivo. Venha apresentar-nos ao dono da casa. Passamos pelo corredor, que era do mesmo comprimento do outro que levava ao jardim.
Nosso guia bateu, fazendo-nos depois entrar no quarto do professor. Era um quarto grande, com muitos livros. Como não cabiam todos nas prateleiras, havia pilhas nos cantos e no chão, na base das estantes. A cama estava no centro do quarto, e ali, recostado contra os travesseiros, encontramos o dono da casa. Nunca vi pessoa mais extraordinária. Rosto esquálido, aquilino, olhos negros, fundos "e penetrantes, sob grossas sobrancelhas. A barba e os cabelos eram brancos, mas a primeira estava amarelada à volta da boca. Um cigarro pendia em meio à barba, e a atmosfera do quarto era pesada devido ao cheiro de sarro. Quando ele estendeu a mão a Holmes, notei que tinha uma mancha amarela causada pela nicotina. — Fuma, sr. Holmes? — perguntou ele, num inglês cuidado e um tanto pedante. — Aceite um cigarro. E o senhor?... Posso recomendar estes cigarros, pois foram preparados especialmente para mim por lonides, de Alexandria. Ele me manda mil de cada vez, e é com pesar que digo que faço uma encomenda de quinze em quinze dias. Mau, mau, senhor, mas um velho tem poucos prazeres na vida! O fumo e meu trabalho... é só o que me resta. Holmes acendera um cigarro e lançava olhares rápidos por todo o quarto. — O fumo e meu trabalho, mas agora somente o fumo — continuou o velho. — Ah, que triste interrupção! Quem poderia prever semelhante catástrofe? Um rapaz tão distinto! Posso dizer-lhe que, após alguns meses de experiência, era um ótimo auxiliar. Que pensa do caso, sr. Holmes? — Ainda não tenho opinião formada. — Ficar-lhe-ei muito grato se puder lançar um raio de luz num caso tão obscuro. Para um pobre inválido, amante de livros, como eu, é um golpe paralisante. Tenho a sensação de ter perdido a faculdade de pensar. Mas o senhor é um homem de ação. Isso faz parte da rotina de sua vida. O senhor conserva o sangue-frio, seja qual for a emergência. Temos sorte em contar com seu auxílio. Holmes andava de um lado para outro do quarto, enquanto o professor falava. Notei que fumava com grande rapidez. Não havia dúvida de que gostava dos cigarros de Alexandria. — Sim, senhor, foi um golpe terrível — continuou o velho. — Eis meu magnum opus, aquela pilha de papéis na mesinha, ali adiante. É minha análise dos documentos encontrados nos mosteiros cópticos da Síria e do Egito, um trabalho que abalará as raízes da religião revelada. Com minha pouca saúde, não sei se conseguirei terminar a obra, agora que meu assistente me foi roubado. Deus do céu, sr. Holmes, o senhor fuma ainda mais depressa do que eu. Holmes sorriu. — Sou um conhecedor — disse ele, tirando outro cigarro da caixa (o quarto) e acendendo-o com o toco daquele que acabara de fumar — Não vou aborrecê-lo com um interrogatório, professor Coram, já que me disseram que o senhor estava na cama no momento do crime, e nada poderia contar. Só uma pergunta. Que acha o senhor que o pobre rapaz queria dizer com: "O professor... foi ela"? O professor sacudiu a cabeça. — Susan é uma camponesa — disse ele. — O senhor conhece a ignorância dessa classe. Com certeza o pobre rapaz murmurou palavras incoerentes, e ela as interpretou dessa
forma. — Compreendo. O senhor não oferece nenhuma explicação para a tragédia? — Talvez tenha sido acidente. Ou talvez (só ouso murmurá-lo aqui entre nós) suicídio. Os rapazes têm seus aborrecimentos secretos, talvez qualquer complicação amorosa de que não tivéssemos conhecimento. É mais provável do que assassinato. — Mas, e o pincenê? — Ah, sou apenas um estudioso, um sonhador. Não posso explicar as coisas práticas da vida. Mas sabemos que os penhores de amor são variados. Pois não, pode fumar outro cigarro. É um prazer encontrar alguém que os aprecie a esse ponto. Um leque, uma luva, um par de óculos, quem imaginará os objetos que podem ser guardados como lembrança e acariciados na hora em que um homem se lembra de pôr fim à vida? "Esse senhor mencionou passos na relva, mas é fácil enganar-se nesse ponto. Quanto à faca, é possível que tenha saltado para longe quando o infeliz caiu. Pode ser que eu esteja dizendo tolices, mas parece-me que Willoughby Smith pôs fim à vida voluntariamente." Holmes pareceu impressionado com essa teoria, e continuou andando de um lado para outro durante algum tempo, perdido em seus pensamentos e fumando sem parar. — Diga-me, professor Coram, o que há naquele compartimento trancado da escrivaninha? — Nada que pudesse interessar a um ladrão. Documentos de família, cartas de minha pobre esposa, diplomas das universidades que me conferiram essa honra. Aqui está a chave. Pode vê-lo, se quiser. Holmes pegou a chave e examinou-a durante alguns instantes, devolvendo-a em seguida. — Não, creio que de nada adiantaria — disse ele. — Prefiro ir passear pelo jardim e refletir sobre o caso. A teoria do suicídio não deixa de ser interessante. Devemos pedir-lhe desculpas por tê-lo incomodado, professor Coram, e prometo-lhe que só voltaremos depois do almoço. Às duas horas viremos dar-lhe notícias do que houvermos constatado. Holmes estava muito pensativo, e passeamos em silêncio pelo jardim. — Tem alguma pista? — perguntei finalmente. — Depende daqueles cigarros que fumei — disse ele. — É possível que eu esteja enganado. Os cigarros dirão. — Caro Holmes, como é possível?... — Bem, bem, você verá por si próprio. E se nada acontecer, não haverá mal nenhum. É verdade que sempre temos o recurso do oculista, mas prefiro tomar um atalho quando o encontro. Ah, aqui está a boa sra. Marker. Vamos gozar de cinco minutos de conversa instrutiva com ela. Creio que já disse que Holmes, quando o desejava, tinha um jeito especial para agradar às mulheres, conseguindo sem dificuldade que confiassem nele. Em poucos minutos, estava conversando com a governanta como se a conhecesse há muito tempo. — Sim, sr. Holmes, tem razão. Ele fuma demais. O dia todo e às vezes a noite inteira. Tenho visto aquele quarto de manhã... pois bem, é como se a gente estivesse no meio da neblina de Londres. Pobre sr. Smith, também era fumante, mas não tanto quanto o professor. A saúde dele?... Pois bem, não sei se melhora ou piora com o fumo. — Ah! — exclamou Holmes. — Mas tira o apetite. — Oh, não sei, não o creio, senhor.
— Com certeza, o professor deve comer pouquíssimo. — Bem, isso varia muito, não há dúvida. — Garanto que não tomou a refeição da manha e não quererá saber do almoço, depois de todos aqueles cigarros que fumou. — Nisso o senhor se engana, pois tomou um café bem farto hoje de manhã. Nunca o vi comer tão bem, e, além disso, encomendou um bom prato de costeletas para o almoço. Fiquei admirada, pois, desde que entrei no escritório e vi o pobre sr. Smith morto, não pude mais olhar para comida. Bem, há de tudo neste mundo, e o professor não deixou que isso lhe tirasse o apetite. Passamos a manhã no jardim. Stanley Hopkins fora à vila averiguar a verdade de um boato sobre uma mulher desconhecida que fora vista na estrada de Chatham, na manhã anterior, por algumas crianças. Quanto a Holmes, parecia que sua habitual energia o abandonara; nunca o vira tratar de um caso com tão pouco interesse. Hopkins voltou, dizendo que as crianças tinham visto uma mulher com as características descritas por Holmes e que usava óculos, mas nem isso despertou o interesse de meu amigo. Ficou mais atento quando Susan, que nos servia o almoço, disse achar que o sr. Smith houvesse saído para um passeio a pé na manhã anterior, voltando apenas meia hora antes da tragédia. Eu não podia entender a importância desse incidente, mas vi que Holmes lhe dava valor. De repente, levantou- se, olhando o relógio. — Duas horas, senhores. Vamos liquidar o caso com o professor. O velho acabara de almoçar, e o prato vazio provava que eram verdadeiras as palavras da governanta sobre seu apetite. Era um tipo estranho, com sua juba branca e os olhos brilhantes, o eterno cigarro pendurado nos lábios. Estava vestido, e sentado numa poltrona diante do fogo. — Então, sr. Holmes, solucionou o mistério? — perguntou, empurrando para meu amigo a caixa de cigarros que estava sobre a mesinha. Holmes estendeu a mão ao mesmo tempo e, com isso, a caixa de estanho caiu ao chão. No momento seguinte, estávamos todos de joelhos para apanhar os cigarros. Quando nos levantamos, notei que os olhos de Holmes brilhavam e que ele estava com o rosto corado. Somente em momentos de crise lhe vira esses sinais de luta. — Sim, solucionei-o — respondeu ele. Stanley Hopkins e eu olhamos para Holmes, atônitos. No rosto do professor havia uma expressão de desprezo. — Realmente! No jardim! — Não. Aqui. — Aqui? Quando? — Neste instante. — Deve estar brincando, sr. Holmes. O senhor obriga-me a dizer que o assunto é sério demais para ser tratado dessa forma. — Experimentei todos os elos da corrente, professor Coram, e tenho certeza de que são fortes. Quais seus motivos e que parte representa o senhor em tudo isso é o que não sei dizer. Daqui a alguns minutos, provavelmente ouvirei a história de seus próprios lábios. Entretanto, vou reconstituir o caso, para que o senhor saiba quais as informações que ainda desejo obter. Holmes fez uma pausa e continuou:
— Uma senhora entrou ontem em seu escritório. Veio com a intenção de se apossar de alguns documentos que estavam no arquivo. Tinha uma chave própria. Tive a oportunidade de examinar a sua, professor Coram, e não encontrei a leve descoloração que teria sido produzida pelo risco feito no verniz. O senhor não era, portanto, cúmplice, e, ao que parece, ela veio roubá-lo sem que o senhor soubesse disso. O professor tirou uma baforada do cigarro. — Muito interessante e muito instrutivo — disse ele. — Nada mais tem a acrescentar? Depois de ter ido tão longe com certeza deve saber o que aconteceu a essa senhora. — Já chego lá. Em primeiro lugar, a mulher foi surpreendida por seu secretário e golpeou-o, para se livrar dele. Considero a morte do sr. Smith como um acidente infeliz, pois estou convencido de que ela não pretendia matá-lo. O assassino vem sempre armado. Horrorizada com o que fizera, ela fugiu da cena do crime. Infelizmente perdera os óculos na luta e, como era muito míope, quase nada via sem eles. Correu por um corredor, que imaginou ser o mesmo por onde entrara (ambos têm passadeira de crina), e somente quando era tarde demais compreendeu que enveredara por outro lado e não mais poderia escapar. Que fazer? Não podia voltar. Continuou. Subiu uma escada, abriu uma porta e viu-se em seu quarto, professor Coram. O velho olhava para Holmes de boca aberta. Em seu rosto via-se estupefação e medo. Fez um esforço para dominar-se, encolheu os ombros e soltou uma risada falsa. — Muito interessante, sr. Holmes. Mas há uma pequena falha em tão magnífica teoria. Eu estava no quarto, e dele não saí durante toda a tarde. — Sei disso, professor Coram. — E seria possível que, deitado em minha cama, eu não notasse a entrada de uma mulher em meu próprio quarto? — Eu não disse isso. O senhor notou-a. Falou com ela. Ajudou-a. O professor riu nervosamente. Erguera-se, e seus olhos luziam como brasas. — Está louco! —exclamou. — Ajudei-a a fugir? Onde estará ela agora? — Está aqui — disse Holmes, apontando para uma estante alta, a um canto do quarto. O velho ergueu os braços para o ar, de rosto convulso, e caiu na cadeira. No mesmo momento, a estante que Holmes indicara moveu-se, e uma mulher surgiu no quarto. — Tem razão — disse uma voz estrangeira. — Tem razão. Estou aqui. Estava cheia de pó e de teias de aranha, ao sair do esconderijo. Também o rosto estava sujo, e nem mesmo em seus melhores dias poderia ter sido bonita, pois tinha as características adivinhadas por Holmes e, além disso, um queixo longo e teimoso. Devido à sua miopia e à mudança da escuridão para a luz, parecia atordoada, piscando para ver melhor. Mas, apesar de todas essas desvantagens, havia nela nobreza, uma coragem no queixo provocante e na cabeça erguida que merecia respeito e admiração. Stanley Hopkins pôs a mão no braço da desconhecida e declarou-a sua prisioneira, mas a mulher afastou-o com
uma dignidade que impunha obediência. O velho continuava caído na cadeira, muito perturbado. — Sim, senhor, sou sua prisioneira. De meu esconderijo ouvi tudo o que disseram, e sei que conhecem a verdade. Matei o rapaz. Mas o senhor tem razão, quando disse que foi acidente. Eu nem mesmo sabia que era uma faca o que tinha na mão, pois agarrei-a num momento de desespero e dei um golpe no rapaz para que me soltasse. É esta a verdade. — Minha senhora, tenho certeza disso — declarou Holmes. — Creio que a senhora não se sente bem. Ela ficara mortalmente pálida, e por isso sentara-se na beira da cama. — Tenho pouco tempo de vida — disse. — Mas quero que saibam toda a verdade. Sou a esposa deste homem. Ele não é inglês. É russo. Seu nome, não direi qual é. O velho moveu-se pela primeira vez. — Deus a abençoe, Anna! — exclamou. — Deus a abençoe! A mulher lançou-lhe um olhar de profundo desdém. — Por que se apega tanto a esta vida miserável, Sergius? — disse ela. — Causou mal a muitos, e bem a ninguém... nem mesmo a você. Em todo caso, não me compete romper o frágil fio de vida antes que seja esta a vontade de Deus. Tenho um grande peso na consciência desde que atravessei o umbral desta casa amaldiçoada. Mas preciso falar, senão depois será tarde demais. Houve um minuto de silêncio. — Já lhes disse, senhores, que sou a esposa deste homem — continuou a mulher. — Ele tinha cinqüenta anos e eu era uma jovem desmiolada de dezoito, quando nos casamos. Foi numa cidade da Rússia, numa universidade... não direi qual. — Deus a abençoe, Anna! — repetiu o velho. — Éramos reformadores, revolucionários, niilistas, os senhores compreendem. Ele, eu e muitos outros. Depois, veio uma época infeliz. Um policial foi morto, houve prisões, e as autoridades precisavam de provas. E, para salvar a vida e ganhar uma grande recompensa, meu marido atraiçoou a própria esposa e seus companheiros. Sim, fomos todos presos por sua causa. Alguns foram executados, outros, mandados para a Sibéria. Eu estava entre estes últimos, mas não fui condenada à prisão perpétua. Meu marido veio para a Inglaterra com o dinheiro ganho tão miseravelmente, e vinha levando uma vida retirada, pois sabia que se a Irmandade descobrisse onde se encontrava, não passaria uma semana sem que se fizesse justiça. O homem estendeu a mão trêmula e pegou um cigarro. — Estou em suas mãos, Anna — disse ele. — Você sempre foi boa para mim. — Ainda não lhes contei o máximo de sua vilania — continuou a mulher. — Entre nossos camaradas da Ordem, havia um que era meu amigo do coração. Nobre, desprendido, carinhoso... tinha todas as qualidades que faltavam a meu marido. Detestava a violência. Todos nós éramos culpados, mas não ele. Escreveu-me muitas vezes procurando dissuadir-me. Aquelas
cartas tê-lo-iam salvo. E também meu diário, onde eu registrará meus sentimentos por ele e o modo de pensar de cada um de nós. Meu marido encontrou as cartas e o diário, e apossou-se deles. Escondeu-os e fez tudo para que o rapaz perdesse a vida. Não o conseguiu, mas Alexis foi mandado para a Sibéria e agora trabalha numa mina de sal. Pense nisso, miserável, pense nisso! Atualmente, Alexis, cujo nome você não é digno de pronunciar, trabalha numa mina como escravo, e eu tenho sua vida nas mãos e não o denuncio! — Você sempre foi uma mulher nobre, Anna — disse o velho, fumando. Ela erguera-se, mas caiu com um grito de dor. — Preciso terminar — disse. — Cumprida a minha pena, resolvi procurar o diário e as cartas, a fim de mandá-los ao governo russo para que meu amigo fosse libertado. Sabia que meu marido viera para a Inglaterra. Após meses de busca, descobri onde se encontrava. Sabia que ainda tinha o diário em seu poder, pois, quando eu estava na Sibéria, recebi uma carta dele censurando-me e citando trechos do diário. Mas não ignorava que, com seu gênio vingativo, jamais o entregaria de livre vontade. Era preciso que eu própria o recuperasse. Com esse objetivo arranjei um detetive particular, que aqui se empregou como secretário, seu segundo secretário, Sergius, aquele que saiu em pouco tempo. Ele descobriu que no armariozinho do arquivo estavam guardados alguns documentos, e tirou um molde da fechadura. Não quis fazer mais do que isso. Deu-me a planta da casa e disse-me que, ao meio-dia, o escritório estava sempre vazio, pois o secretário trabalhava aqui com você. Criei coragem e vim à procura dos papéis. Obtive resultado, mas a que preço! A mulher fez uma pequena pausa. — Eu acabara de fechar o armário quando o rapaz me agarrou. Já o vira de manhã, na estrada, e perguntara-lhe onde morava o professor Coram, sem saber que era seu secretário. — Exatamente! Exatamente! — exclamou Holmes. — O secretário voltou e falou ao professor na mulher que encontrara. E então, ao morrer, procurou mandar uma mensagem ao professor — "foi ela" —, isto é, a mulher de quem tinham acabado de falar. — Deixem-me continuar — interveio a mulher, em tom imperativo, o rosto contraído pela dor. — Depois que ele caiu, saí correndo da sala, passei pela porta errada e vime no quarto de meu marido. Ele falou em entregar-me à polícia. Respondi que, se o fizesse, sua vida estaria em minhas mãos. Se ele me entregasse à polícia, eu o entregaria à Irmandade. Não que eu tivesse amor à vida, mas queria cumprir o que prometera a mim própria. Ele viu que eu faria o que disse, que sua vida dependia da minha. Por esse motivo, e por nenhum outro, protegeu-me. Enfiou-me naquele esconderijo escuro, relíquia dos tempos antigos, que só ele conhecia. Tomava as refeições no quarto, de modo que dividia a comida comigo. Ficou combinado que, depois que a polícia saísse definitivamente daqui, eu fugiria no meio da noite para nunca mais voltar. Mas o senhor adivinhou o que aconteceu. A mulher tirou do seio um pacotinho.
— São estas as minhas últimas recomendações — disse a Holmes. — Estas cartas salvarão Alexis. Confio-as à sua honra e senso de justiça. O senhor as entregará ao embaixador da Rússia. Agora que cumpri meu dever... — Não a deixem fazer isso! — gritou Holmes, dando um salto para o lado dela e tornando-lhe um frasco da mão. — Tarde demais — disse a mulher, caindo na cama. — Tarde demais! Tomei o veneno antes de sair do esconderijo. Sinto a cabeça girando! Estou morrendo! Senhor, recomendo-lhe que não se esqueça do pacote.
— Um caso simples, mas de certo modo instrutivo — disse-nos Holmes quando voltamos para Londres. — Desde o princípio, dependia do pincenê. Se por azar o rapaz não houvesse agarrado o pincenê antes de morrer, não sei se conseguiríamos desvendar o caso. Pelas lentes, vi que o dono devia ser quase cego, e que ficaria inutilizado, se privado dos óculos. Quando você me disse, Hopkins, que ela andara pela relva sem dar um passo em falso, observei, como deve estar lembrado, que isso era um fato extraordinário. No íntimo, achava um fato impossível, a não ser que ela tivesse outro par de óculos. Por isso, passei a considerar seriamente a hipótese de ela ter continuado na casa. Ao notar a semelhança entre os dois corredores, ocorreu-me que ela poderia ter-se enganado e, nesse caso, entrado no quarto do professor. Fiquei portanto alerta, à espera de alguma coisa que confirmasse essa suposição. Examinei o quarto à procura de um esconderijo. O tapete estava firmemente pregado no chão, de modo que afastei a hipótese de um alçapão. Podia haver um nicho atrás das estantes. Bem sabe que isso era comum nas bibliotecas antigas. Notei que havia livros no chão por toda parte, menos diante de uma determinada estante. Então, a porta devia ser ali. Não vi marcas, mas o tapete tinha uma cor parda, que se presta muito a exame. Fumei, portanto, grande número daqueles ótimos cigarros, deixando a cinza cair diante da estante suspeita. Foi um truque simples, mas de grande efeito. Descemos, e na sua frente, Watson, embora você não se apercebesse disso, fiz perguntas a respeito do consumo de comida do professor Coram, e fiquei sabendo que aumentara, o que é natural quando se está alimentando outra pessoa. Subimos de novo ao quarto e, ao deixar cair a caixa de cigarros, pude examinar perfeitamente o chão. Vi, pelas marcas na cinza dos cigarros, que em nossa ausência a prisioneira saíra do esconderijo. Bem, Hopkins, cá está Charing Cross, e dou-lhe os parabéns por ter concluído com sucesso seu caso. Com certeza vai para a Scotland Yard. Quanto a nós, Watson, creio que nosso destino é a embaixada russa...
Ilustrações: Frederic Dorr Steele e Sidney Paget, cortesia The Camden House Voltar
Arthur Conan Doyle
O Atleta Desaparecido Título original: The Missing Three-quarter
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1904
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Missing Three-quarter publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume V, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Álvaro Pinto de Aguiar.
Estávamos habituados, na Baker Street, a receber estranhos telegramas, mas lembro-me especialmente de um que nos foi entregue numa feia manhã de fevereiro, há sete ou oito anos, e que deixou Sherlock Holmes pensativo durante um quarto de hora. Era endereçado a ele e dizia: "Favor esperar-me. Grande infelicidade. Jogador ala direita desaparecido. Indispensável amanhã. Overton" — Carimbo do Strand, expedido às dez e trinta e seis — disse Holmes, relendo-o. — O sr. Overton evidentemente estava muito excitado quando o mandou, e por isso se mostra incoerente. Bem, bem, ele já terá chegado quando eu acabar de ler o Times, e ficaremos a par de tudo. O mais insignificante dos problemas será bem recebido, nestes dias de ociosidade. Os negócios estavam realmente parados, e eu aprendera a temer os períodos de inação, pois sabia que a mente de meu amigo era tão ativa que seria perigoso deixá-la sem material com que se ocupar. Há vários anos convivia com ele na maior intimidade. Como médico, zelava por sua saúde; como amigo, acompanhava com muito interesse sua brilhante carreira. Conhecia-lhe, pois, todos os hábitos e características individuais. Holmes tinha um sono leve, acordando várias vezes no meio da noite. Freqüentemente, em períodos de inação, surpreendia em seu rosto ascético um ar abatido e nos olhos inescrutáveis uma expressão sonhadora. Por isso abençoei o sr. Overton, fosse ele quem fosse, já que viera, com sua enigmática mensagem, quebrar a monótona calma que, para
Holmes, era mais perigosa do que todas as tempestades de sua tormentosa existência. Conforme esperávamos, o telegrama foi logo seguido da pessoa que o mandara. O cartão do sr. Cyril Overton, do Trinity College, Cambridge, anunciou a chegada de um rapaz enorme, sólido e musculoso, cujos ombros quase tocavam os dois lados do batente. Olhou-nos de um para o outro, com rosto simpático, mas onde havia uma expressão ansiosa. — Sr. Sherlock Holmes? — perguntou. O meu amigo inclinou-se. — Estive na Scotland Yard, sr. Holmes. Falei com o inspetor Hopkins. Ele me aconselhou a vir procurá-lo. Disse que o caso, ao que lhe parece, era mais para o senhor do que para a polícia oficial. — Por favor, sente-se e conte-me o que se passou. — É horrível, sr. Holmes, simplesmente horrível! Não sei como não fiquei com os cabelos brancos. Godfrey Staunton... Ouviu falar nele, com certeza... Ele é simplesmente o cabeça de toda a equipe da escola. Eu preferiria ficar privado de dois outros jogadores a perder Godfrey. Para passar a bola, atacar ou marcar os adversários, ninguém o iguala. Além disso, tem cabeça, e faz com que todos joguem com equilíbrio. O que vou fazer? É o que lhe pergunto, sr. Holmes. Temos Moorhouse, o primeiro reserva, mas foi treinado como centro-avante e mete-se sempre no barulho, em vez de ficar na ponta. É um bom jogador, não há dúvida, mas não tem cabeça e não sabe correr. Ora, Morton ou Johnson, da equipe de Oxford, poderiam dar-lhe um baile! Stevenson é suficientemente rápido, mas tem grandes defeitos e não merece um lugar de responsabilidade. Não, sr. Holmes, estamos perdidos, a não ser que nos ajude a encontrar Godfrey Staunton. Holmes ouvira com ar de divertida surpresa esse longo discurso, pronunciado com sinceridade e energia, e a todo momento reforçado pelo rapaz com uma palmada da mão musculosa no joelho. Depois que nosso visitante se calara, Holmes estendeu a mão e pegou um livro, procurando a letra S. Dessa vez, procurou em vão naquela variada fonte de informações. — Temos Arthur H. Staunton, o próspero falsificador — disse Holmes. — E Henry Staunton, que ajudei a mandar para a forca, mas não encontro nenhum Godfrey Staunton. Foi a vez de nosso visitante ficar admirado. — Oh, sr. Holmes, pensei que o senhor soubesse tudo — disse ele. — Então, se nunca ouviu falar em Godfrey Staunton, com certeza também não conhece Cyril Overton. Holmes sacudiu a cabeça, bem-humorado. — Santo Deus! — exclamou o atleta. — Oh, fui primeiro reserva da Inglaterra contra Gales e capitão da equipe da universidade, durante o ano inteiro. Isso ainda não é nada, mas pensei que não houvesse uma alma na Inglaterra que não conhecesse Godfrey Staunton, o maior craque de Cambridge, Blackheat e cinco internacionais. Santo Deus, sr. Holmes, onde o senhor tem vivido? Holmes riu do ingênuo espanto do rapaz. — O senhor vive num mundo diferente do meu, sr. Overton, um mundo melhor e mais sadio. Meu trabalho ramifica-se por muitas seções da sociedade, mas, sinto prazer em dizê-lo, nunca atingiu o esporte amador, que é o que há de melhor e de mais sadio na Inglaterra. Mas sua inesperada visita hoje de manhã prova-me que, mesmo nesse mundo de ar fresco e jogo limpo, pode haver trabalho para mim. E agora, caro senhor, peço-lhe que me conte lentamente e com exatidão o que aconteceu, e de que maneira deseja meu auxílio. O rosto de Overton adquiriu a expressão de um homem que está mais habituado a usar os músculos do que o cérebro, mas, pouco a pouco, com muita repetição e falta de clareza
(que vou omitir na minha narrativa), contou-nos esta estranha história. — Foi assim, sr. Holmes. Como disse, sou o capitão da equipe de rúgbi da Universidade de Cambridge, e Godfrey Staunton é meu melhor homem. Amanhã vamos jogar contra Oxford. Chegamos a Londres ontem e instalamo-nos no Hotel Bentiey. Às dez horas, fui ver se os rapazes estavam na cama, pois acho necessário muito sono e disciplina para que um grupo se conserve em forma. Falei com Godfrey antes de ir vê-lo na cama. Pareceu-me pálido e preocupado. Perguntei-lhe o que havia. Respondeu-me que estava bem, apenas com um pouco de dor de cabeça. Dei-lhe boa-noite e deixei-o. Meia hora mais tarde, o porteiro contou-me que um homem de aparência rude, de barba, viera trazer um bilhete para Godfrey. O porteiro levou o bilhete ao quarto do rapaz. Godfrey leu-o e caiu numa cadeira, como que fulminado. O porteiro ficou tão assustado que quis chamar-me, mas Godfrey impediu-o, bebeu um gole de água e pareceu melhor. Depois, desceu, disse umas palavras ao homem que trouxera o bilhete e saíram juntos. O porteiro viu-os sair quase correndo, na direção do Strand. Hoje de manhã, Godfrey não foi encontrado no quarto, a cama dele não fora desfeita e estava tudo como na noite anterior. De-115 == pois de ter saído inesperadamente com aquele homem, não ouvimos mais uma palavra a respeito dele. Não creio que ainda volte. Era um esportista, sr. Holmes, até a raiz dos cabelos, e não teria interrompido o treino e abandonado o seu capitão se não houvesse um motivo muito forte. Não. Creio que se foi de uma vez para sempre, e que nunca mais o veremos. Holmes ouviu com o maior interesse a estranha narrativa e, por fim, perguntou: — Que providências o senhor tomou? — Telegrafei para Cambridge, para saber se tinham tido notícias dele. Já veio a resposta. Não sabem de nada. — Ele poderia ter voltado para Cambridge? — Sim, havia um trem muito tarde, às onze e quinze. — Mas, ao que lhe consta, o rapaz não o tomou, não? — Não; ninguém o viu. — O que o senhor fez em seguida? — Telegrafei para Lorde Mount-James. — Por quê? — Godfrey é órfão, e Lorde Mount-James é seu parente mais próximo; seu tio, creio. — Ora! Isso dá outro aspecto ao caso. Lorde Mount-James é um dos homens mais ricos da Inglaterra. — Foi o que Godfrey me disse, — E seu amigo é o parente mais próximo? — Sim, é o herdeiro. O velho tem quase oitenta anos, e sofre de gota, ainda por cima. Nunca deu um níquel a Godfrey em toda a vida, pois é um grande avarento, mas o dinheiro acabará por ser do meu amigo, disso não há dúvida. — Recebeu resposta de Lorde Mount-James? — Não. — Que motivos seu amigo poderia ter para procurar o tio? — Pois bem, alguma coisa o preocupava ontem à noite, e, se o problema era dinheiro, é possível que recorresse ao parente mais próximo, que tem tanto, embora sem grande
probabilidade de êxito, pelo que tenho ouvido dizer do velho. Godfrey não gosta do tio. Não iria procurá-lo se houvesse outra alternativa. — Pois bem, isso é fácil de averiguar. Se seu amigo foi ver Lorde Mount-James, temos então de explicar a visita do homem de aparência rude que o procurou tão tarde, e a agitação que causou. Overton apertou a cabeça entre as mãos. — Não entendo nada — disse ele. — Bem, bem, tenho o dia livre e posso tratar do caso — prometeu Holmes. — Aconselho-o a continuar os preparativos para o jogo sem contar com o rapaz. Como o senhor próprio disse, somente um motivo de força maior o afastaria, e é possível que esse mesmo motivo o detenha. Vamos até o hotel para ver se o porteiro pode dar mais alguma informação. Holmes era um artista para fazer uma testemunha humilde ficar à vontade. Na intimidade do quarto abandonado de Godfrey, arrancou tudo o que o porteiro tinha a dizer. O visitante da véspera não era um cavalheiro, nem um operário. Era o que o porteiro descrevia como "pessoa de aparência mediana": homem de cinqüenta anos, barba grisalha, rosto pálido, vestido discretamente. Também ele parecia agitado. O porteiro notara que a mão lhe tremia, ao entregar o bilhete. Staunton enfiara o bilhete no bolso. Não apertara a mão do homem no vestíbulo. Tinham trocado palavras, das quais o porteiro distinguira apenas uma: "tempo". Depois saíram apressadamente. O relógio da entrada marcava dez e meia. — Deixe-me ver — disse Holmes, sentando-se na cama de Staunton. — Você é o porteiro do dia, não é? — Sim, senhor. Saio às onze. — O porteiro da noite não viu coisa alguma, suponho. — Não, senhor. Um grupo vindo do teatro chegou tarde. Ninguém mais. — Você esteve em serviço durante todo o dia, ontem? — Sim, senhor. — Levou algum recado ao sr. Staunton? — Sim, senhor, um telegrama. — Oh, isso é interessante. Que horas eram? — Mais ou menos seis. — Onde estava o sr. Staunton, quando recebeu o telegrama? — Aqui no quarto. — Estava presente, quando ele o abriu? — Sim, senhor; esperei para ver se havia resposta. — E houve? — Sim, senhor. Ele escreveu um bilhete. — Você o levou?
— Não, senhor, ele próprio foi levá-lo. — Mas escreveu-o em sua presença? — Sim, senhor. Eu estava perto da porta, e depois de escrevê-lo, de costas para mim, diante daquela mesa, ele disse: "Muito bem, porteiro, eu próprio vou levá-lo". — Com que ele escreveu? — Com uma caneta. — O talão para preenchimento do telegrama era um desses que estão sobre a mesa? — Sim, senhor. Era o de cima. Holmes ergueu-se. Pegou o talão e levou-o para perto da janela, examinando com cuidado a folha de cima. — Pena ele não ter escrito a lápis — disse, atirando-o de novo sobre a mesa com um gesto de desapontamento. — Como sabe, Watson, a impressão muitas vezes fica na folha de baixo, fato esse que desmanchou muito casamento feliz. Mas nada encontro aqui. Fico porém satisfeito por ver que escreveu com uma pena de ponta larga, e espero encontrar algumas impressões no mata-borrão. Ah, sim, é isso mesmo. Holmes arrancou uma folha do mata-borrão e mostrou-nos o que estava impresso ali.
Cyril Overton ficou muito excitado. — Ponha diante do espelho — disse. — Não é necessário — observou Holmes. — O papel é fino. Virando-o, podemos ler o que está escrito. Vejam. Virou o papel e lemos:
— É o final do telegrama que Godfrey expediu, poucas horas antes de desaparecer. Pelo menos seis palavras escaparam-nos. Mas o que restou: "Ajude-nos, pelo amor de Deus", indica que o rapaz soube que um horrível perigo o ameaçava, e que uma pessoa poderia protegê-lo. "Ajude-nos." Notem bem o "nos". Outra pessoa estava envolvida.Quem haveria de ser, senão o homem de barba que parecia tão agitado? Qual a relação entre esse homem e Staunton? E qual a terceira pessoa que ambos procuraram, pedindo proteçao contra o perigo? É o que temos de averiguar. — Basta descobrir a quem foi enviado o telegrama — observei. — Exatamente, caro Watson. Sua idéia, embora profunda, já me ocorrera. Mas talvez já tenha notado que, se você for ao telégrafo e pedir para ler um telegrama mandado por outra pessoa, os empregados não o atenderão com boa vontade. Há tanta burocracia! Mas creio que, com um pouco de delicadeza e fineza, conseguiremos nosso intento. Neste meio tempo, gostaria de examinar em sua presença, sr, Overton, os papéis deixados sobre a mesa. Havia algumas cartas, contas e cadernos de apontamentos, que Holmes examinou com dedos nervosos e olhos penetrantes. — Nada aqui — disse, finalmente. — A propósito, espero que seu amigo seja um rapaz sadio!
— Forte como um touro. — Já ouviu falar que tivesse estado doente? — Nunca. Certa vez ficou de repouso, por causa do joelho, mas não foi nada de importância. — Talvez não seja tão forte como o senhor supõe. Creio que tem qualquer doença. Com sua permissão, vou levar estes papéis, caso venham a ter relação com nossas futuras investigações. — Um momento, um momento! — disse uma voz fanhosa. Olhamos para a porta e ali vimos um velhinho esquisito, gesticulando. Estava com um terno preto e surrado, chapéu de aba larga e gravata branca, solta, dando a impressão de um pároco de aldeia ou de um agente funerário. Mas, apesar de malvestido e de sua absurda aparência, a voz era firme, e sabia impor sua presença. — Quem é o senhor, e com que direito mexe nos papéis do rapaz? — perguntou. — Sou um detetive particular, e estou procurando explicar seu desaparecimento. — Ah, é? E quem o chamou, senhor? — Este cavalheiro, amigo do sr. Staunton, que me procurou por indicação da Scotland Yard. — Quem é o senhor? — perguntou o velho ao rapaz. — Sou Cyril Overton. — Então foi o senhor que me mandou o telegrama. Sou Lorde Mount-James. Vim assim que pude. Quer dizer que chamou um detetive? — Sim, senhor. — E está disposto a arcar com a despesa? — Tenho certeza, senhor, de que meu amigo Godfrey, quando for encontrado, estará pronto a fazê-lo. — Mas e se nunca for encontrado, hein? Responda. — Nesse caso, sem dúvida a família... — Nada disso, cavalheiro! — gritou o velho. — Não esperem de mim nem um centavo! Nem um centavo! Compreenda isso, senhor detetive! Sou a única família que o rapaz tem, e digo-lhe que não sou responsável. Se ele tem expectativas, é pelo fato de eu nunca ter desperdiçado dinheiro, e não pretendo começar a fazê-lo agora. Quanto aos papéis que o senhor examinava com tanto desembaraço, aviso-o de que, se houver alguma coisa de valor no meio deles, ficará responsável pelo que lhes acontecer. — Muito bem — disse Sherlock Holmes. — Nesse meio tempo, posso perguntar-lhe se tem alguma teoria a respeito do desaparecimento do rapaz? — Não, senhor, não tenho. Ele tem idade bastante e tamanho suficiente para tomar conta de si próprio, e, se é tonto a ponto de se perder, recuso-me a assumir a responsabilidade
de mandar procurá-lo. — Compreendo perfeitamente sua posição — disse Holmes, com um brilho malicioso no olhar. — Talvez o senhor não compreenda a minha. Parece que Godfrey Staunton é um homem pobre. Se foi raptado, não pode ter sido pelo que possui. Mas a fama de sua riqueza atravessou os mares, Lorde Mount-James, e é possível que uma quadrilha de ladrões tenha raptado seu sobrinho para obter informações quanto à sua casa, seus hábitos e seus tesouros. O nosso desagradável visitante ficou branco como um lençol. — Deus do céu, que idéia! Nunca pensei em tamanha patifaria! Que bandidos desumanos há neste mundo! Mas Godfrey é um bom rapaz, um rapaz direito. Nada o induziria a trair seu velho tio. Mandarei as pratas da casa para o banco hoje mesmo. Nesse meio tempo, não poupe esforços, senhor detetive. Suplico-lhe que não deixe pedra sobre pedra para fazê-lo voltar. Quanto ao dinheiro, pois bem, se for questão de cinco libras, ou mesmo dez, pode contar comigo. Mesmo nessa mansa disposição de espírito, o nobre avarento não pôde dar informação que nos valesse, pois pouco sabia da vida particular do sobrinho. Nossa única pista era o telegrama, e, com uma cópia do que lera, Holmes saiu à procura do segundo elo da corrente. Tínhamo-nos livrado de Lorde Mount-James, e Overton fora consultar os outros membros da equipe, a respeito da desventura que se abatera sobre eles. Havia uma agência de telégrafo a pequena distância do hotel. Paramos diante dela. — Vale a pena tentar, Watson — disse Holmes. — Claro que, com uma ordem da polícia, poderíamos exigir que nos mostrassem as cópias dos telegramas já expedidos, mas ainda não chegamos a esse ponto. Não creio que se lembrem de fisionomias em lugar tão movimentado. Vamos experimentar. — Sinto incomodá-la — disse ele com sua voz mais suave, à jovem atrás da grade. — Houve um pequeno engano no telegrama que mandei ontem. Não obtive resposta, mas receio ter omitido meu nome no fim. Pode dizer-me se foi isso o que aconteceu? A moça folheou um maço de cópias. — A que horas foi? — perguntou. — Um pouco depois das seis. — O que estava escrito? Holmes pôs o dedo nos lábios e olhou de relance para mim. — As últimas palavras eram "pelo amor de Deus" — murmurou ele confidencialmente. — Estou muito aflito por não ter tido resposta. A jovem separou uma das cópias. — É esta. Não tem assinatura — disse ela, empurrando o papel sobre o balcão. — Então é por isso que não recebi resposta — exclamou Holmes. — Deus do céu, que estupidez a minha! Até logo, minha senhora, e muito obrigado por me ter aliviado o espírito. Quando nos vimos na rua, Holmes deu uma risadinha, esfregando as mãos. — Então? — perguntei. — Progredimos, Watson, progredimos. Eu tinha sete diferentes planos para dar uma olhada no telegrama, mas não esperava obter sucesso logo no primeiro. — E que ganhou com isso?
— O ponto de partida de nossa investigação — respondeu Holmes, chamando uma carruagem. — Para a Estação King's Cross — ordenou ele ao cocheiro. — Então, vamos viajar? — perguntei. — Sim, creio que temos de ir a Cambridge. Tudo aponta nessa direção. — Diga-me, tem alguma suspeita quanto à causa do desaparecimento? Em todos os casos que investigamos, não me lembro de nenhum cujos motivos fossem mais obscuros. Você não desconfia, realmente, que ele tenha sido raptado para dar informações quanto à fortuna do tio, não é? — Confesso, caro Watson, que isso não me atrai como provável explicação. Mas pareceu-me a única capaz de interessar àquela desagradável criatura. — E com resultado. Mas quais as alternativas? — Posso mencionar várias. Você deve reconhecer que é curioso o incidente se ter dado justamente na véspera de um jogo importante, envolvendo o único homem cuja presença parece essencial para a vitória do time. Pode ser coincidência, mas é interessante. Oficialmente, não se fazem apostas no esporte amador; mas há um grande número de apostas entre o público, e é possível que seu desaparecimento interessasse a alguém. Esta é uma hipótese. A segunda é que o rapaz é de fato o herdeiro de uma grande fortuna, por mais modestos que sejam seus meios atualmente, e não é impossível que o tenham raptado para efeitos de resgate. — Essas teorias não explicam o telegrama. — É verdade, Watson. O telegrama ainda é a única coisa sólida que temos, e não devemos permitir que nossa atenção se afaste dele. É para descobrir o que há no telegrama que nos dirigimos para Cambridge. O caminho de nossa investigação ainda é obscuro, mas ficarei muito admirado se antes do cair da noite não tivermos lançado nele um raio de luz. Já era quase noite quando chegamos à velha cidade universitária. Holmes apanhou uma carruagem na estação e pediu ao homem que nos levasse à residência do dr. Leslie Armstrong. Minutos depois, parávamos diante de uma grande mansão, na rua mais movimentada das redondezas. Depois de longa espera, fizeram-nos entrar no consultório, onde encontramos o médico sentado à escrivaninha. A prova de que eu perdera contato com meus colegas estava no fato de Leslie Armstrong ser um nome desconhecido para mim. Sei agora que não somente é um dos chefes da escola médica da universidade, mas um pensador afamado em toda a Europa, em mais de um ramo da ciência. Mas, mesmo sem conhecer sua brilhante carreira, não se podia deixar de ficar impressionado com o homem — rosto maciço, quadrado, expressão sonhadora sob as grossas sobrancelhas, queixo firme. Homem profundo, de mente alerta, decidida, controlada, formidável — foi o que li no dr. Armstrong. Ele tinha na mão o cartão de Holmes, e ergueu os olhos com expressão descontente no rosto severo. — Conheço-o de nome, sr. Sherlock Holmes, e sei qual sua profissão, embora ela não mereça minha aprovação — disse ele.
— Nisso o senhor está de acordo com todos os criminosos do país, doutor — replicou Holmes tranqüilamente. — Enquanto seus esforços se dirigem contra os criminosos, senhor, eles têm de merecer o apoio da comunidade, embora eu não duvide de que a máquina oficial tenha competência para combatê-los. Mas o senhor se expõe à crítica quando se mete nos segredos de particulares, quando traz à tona assuntos de família que seria preferível deixar ocultos, e quando desperdiça o tempo de homens mais ocupados do que o senhor. No momento presente, por exemplo, eu devia estar escrevendo um tratado, em vez de estar conversando com o senhor. — Sem dúvida, doutor, mas talvez a conversa venha a ser mais importante do que o tratado. Entretanto, afirmo-lhe que estamos fazendo o contrário daquilo que o senhor critica, e procuramos evitar que venham a público assuntos privados, o que fatalmente aconteceria se o caso fosse parar nas mãos da polícia. O senhor pode considerar-me simplesmente como um soldado irregular que vai à frente das forças regulares. Vim pedir-lhe notícias do sr. Godfrey Staunton. — Que há com ele? — O senhor o conhece, não é verdade? — É meu amigo íntimo. — Ele desapareceu. — Ah, sim? — exclamou o médico, sem que sua expressão se alterasse. — Saiu do hotel ontem à noite, e ainda não deu notícias. — Com certeza voltará. — Amanhã realiza-se o jogo da universidade. — Não ligo a esses jogos infantis. A sorte do rapaz interessa-me profundamente, uma vez que o conheço e estimo. O esporte não entra na minha esfera de ação. — Peço-lhe, então, que se interesse pelo assunto, agora que vou fazer investigações quanto ao desaparecimento do rapaz. Sabe onde ele está? — De forma nenhuma. — Não o viu desde ontem? — Não, não o vi. — O sr. Staunton é um homem sadio? — Certamente. — Já o viu doente alguma vez? — Nunca. Holmes colocou uma folha de papel diante do médico. — Então talvez o senhor explique esse recibo de treze guinéus, pagos pelo sr. Godfrey Staunton, o mês passado, ao dr. Leslie Armstrong, de Cambridge. Encontrei-o no meio dos papéis do rapaz. O médico ficou vermelho de cólera. — Não vejo razão para lhe dar explicações, sr. Holmes.
Holmes guardou de novo a conta no bolso. — Se preferir uma explicação pública, terá de ser dada, cedo ou tarde — replicou ele. — Já lhe disse que posso abafar aquilo que outros teriam de publicar. O senhor faria bem se confiasse em mim. — Nada sei. — Recebeu comunicação de seu amigo, de Londres? — Claro que não. — Deus meu, o telégrafo novamente! — suspirou Holmes. — Um telegrama urgente foi-lhe mandado de Londres por Godfrey Staunton, às seis e pouco, ontem à tarde... telegrama indubitavelmente ligado a seu desaparecimento, e o senhor não o recebeu! É incrível. Faço questão de ir ao telégrafo daqui para registrar a queixa. O dr. Armstrong pulou da cadeira, furioso. — Peço-lhe o favor de sair de minha casa, senhor — disse ele. — E pode dizer a seu patrão, Lorde Mount-James, que não quero saber dele, nem de seus representantes. Não, senhor, nem mais uma palavra! — O médico tocou furiosamente a campainha e disse ao criado que apareceu: — John, acompanhe esses senhores à porta. Um mordomo imponente acompanhou-nos com ar severo e dali a segundos vimo-nos na rua. Holmes começou a rir. — Não há dúvida de que o dr. Armstrong é pessoa de energia e de caráter — disse ele. — Nunca vi homem que, se dirigisse seu talento para outro lado, estivesse mais apto a preencher a lacuna deixada pelo ilustre professor Moriarty. E agora, caro Watson, aqui estamos, perdidos e sem amigos, nesta cidade pouco hospitaleira. E não podemos abandoná-la sem abandonar nosso caso. Aquele hotelzinho diante da casa de Armstrong adapta-se singularmente a nossos planos. Se você quiser reservar um quarto da frente e comprar os artigos necessários para aqui passarmos a noite, creio que terei tempo de fazer umas investigações. As investigações, porém, foram mais longas do que Holmes imaginara, pois não voltou antes das nove horas. Estava pálido e abatido, sujo de pó, e exaurido pela fome e pelo cansaço. Uma ceia fria esperava-o, e depois que o apetite foi satisfeito e o cachimbo, aceso, ele já estava disposto a tomar aquela atitude filosófica e meio cômica que adotava quando os negócios lhe corriam mal. Um ruído de rodas fez com que se erguesse e fosse espreitar à janela. Um carro puxado por dois cavalos cinzentos estava à porta do médico, sob a luz do lampião da rua. — Esteve fora durante três horas — observou Holmes. — Saiu às seis e meia e está de volta. Isto nos dá uma área de dezesseis a vinte quilômetros, e ele faz a viagem uma ou duas vezes por dia. — Nada de extraordinário, para um médico que esteja clinicando. — Mas Armstrong não é propriamente um clínico. É conferencista e consultor, e não gosta de clinicar, pois isso o afasta de seus trabalhos literários. Por que então faz essas longas viagens, que devem irritá-lo, e a quem vai ele visitar? — O cocheiro... — Caro Watson, duvida que o tenha procurado em primeiro lugar? Não sei se foi por causa de sua natureza maldosa, ou por instigação do patrão, mas o homem soltou um cão em meu encalço. Nem o cão nem o homem gostaram da aparência de minha bengala, de modo
que as coisas pararam por aí. Nossas relações ficaram frias depois disso, de modo que nada mais ousei indagar. Tudo o que sei consegui por intermédio de um rapaz amável, que trabalha no quintal de nosso hotel. Foi quem me falou dos hábitos do médico e de suas viagens diárias. No momento em que me contava isso, a carruagem justamente parava à porta. — Não poderia segui-la? — Excelente, caro Watson! Você hoje está brilhante. A idéia ocorreu-me. Como deve ter observado, há uma loja de bicicletas ao lado do hotel. Corri para lá, aluguei uma, e consegui partir antes que a carruagem tivesse desaparecido de vista. Aproximei-me e, conservando uma discreta distância de cem metros, segui as luzes traseiras até sairmos da cidade. Já estávamos longe quando aconteceu um incidente humilhante para mim. O carro parou, o médico desceu, caminhou apressadamente até o ponto onde eu também parara e, de maneira sardônica, disse que achava que a estrada era um tanto estreita e que a carruagem estava impedindo a passagem da bicicleta. Passei imediatamente à frente e, conservando-me na estrada, pedalei durante alguns quilômetros, escondendo-me depois num lugar conveniente para ver se a carruagem passava. Não vi sinal dela, de modo que, evidentemente, enveredara por um dos muitos atalhos lá existentes. Voltei, mas nem sinal do carro, o qual, como você viu, chegou aqui depois de mim. Claro que, a princípio, eu não tinha base para ligar esses fatos ao desaparecimento de Staunton, e estava apenas investigando de um modo geral, pois tudo o que diz respeito ao dl. Armstrong nos interessa. Mas agora vejo que ele toma tantas precauções para não ser observado nessas excursões que o caso me parece muito mais sério, e não pretendo abandoná-lo enquanto não estiver tudo claro. — Podemos segui-lo amanhã — sugeri. — Podemos? Não é tão fácil como pensa. Você não está familiarizado com a topografia de Cambridge, não é? Ela não se presta a esconderijos. O terreno por onde passei é plano como a palma de minha mão, e o homem que estamos seguindo não é tolo, como provou hoje à tarde. Telegrafei a Overton, dando nosso endereço e pedindo-lhe que me comunique qualquer novidade. Nesse meio tempo, temos de nos concentrar no dr. Armstrong, cujo nome a prestimosa jovem do telégrafo me deixou ler no telegrama. Ele sabe onde está Staunton, disso não há dúvida e, já que sabe, será culpa nossa se não conseguirmos descobrir o rapaz. De momento, temos de admitir que os melhores trunfos estão com ele, mas você bem sabe, Watson, que não costumo deixar o jogo muito tempo nessas condições.
Mas o dia seguinte não nos levou à solução do mistério. Vieram trazer-nos um bilhete, à tarde. Holmes leu-o e entregou-o a mim com um sorriso. "Senhor, posso garantir-lhe que está perdendo seu tempo a espiar-me. Tenho, como deve ter percebido ontem, uma janela na parte de trás da carruagem, e, se o senhor desejar fazer um passeio de quarenta quilômetros, que o trará de volta ao ponto de partida, é só seguir-me. Nesse meio tempo, informo-o de que o fato de me seguir não ajudará em nada o sr. Godfrey Staunton, e estou convencido de que, se quiser favorecer o rapaz, o melhor que tem a fazer é voltar para Londres e dizer a seu patrão que não conseguiu encontrá-lo. Não há dúvida de que está perdendo tempo em Cambridge. Atenciosamente, Leslie Armstrong." — Antagonista franco e despachado, o doutor — observou Holmes. — Bem, bem, ele desperta minha curiosidade, e preciso descobrir mais alguma coisa antes de lhe dizer adeus. — A carruagem está à porta — disse eu. — O médico está subindo nela. Vi-o olhar para cá. Quer que experimente segui-lo de bicicleta? — Não, não, caro Watson! Com o devido respeito pela sua natural perspicácia, não me parece que seja antagonista para o doutor. Creio que posso atingir meus fins à minha
moda. Tenho de deixá-lo só, caro amigo, pois a presença de dois estranhos curiosos, na campina sonolenta, iria provocar comentários que desejo evitar. Com certeza encontrará belas vistas nessa venerável cidade, e espero trazer melhores notícias antes que chegue a tarde. Mas meu amigo iria mais uma vez ficar decepcionado. Voltou à noite, cansado e derrotado. — Dia perdido, Watson. Sabendo qual o rumo que tem tomado o médico, visitei todas as vilazinhas perto de Cambridge, pedindo notícias aos freqüentadores das tabernas e outros locais públicos. Estive em Chesterton, Histon, Waterbeach e Oakington, e nada consegui apurar. A aparição diária de uma carruagem não poderia deixar de chamar a atenção naqueles lugares mortos. O médico lavrou outro tento. Algum telegrama para mim? — Sim; abri-o. Aqui está. "Procure Pompey, de Jeremy Dixon, Trinity College." Não compreendo, Holmes. — Para mim é muito claro. É nosso amigo Overton, em resposta a uma pergunta minha. Vou mandar um bilhete ao sr. Jeremy Dixon e tenho certeza de que nossa sorte mudará. Por falar nisso, há notícias do jogo? — Sim, o jornal local dá uma ótima descrição da partida, na última edição. Oxford ganhou. O último parágrafo diz: "A derrota de Cambridge pode ser atribuída inteiramente à infeliz ausência do grande esportista internacional Godfrey Staunton, cuja falta se fez sentir a cada minuto, apesar dos esforços do valoroso time". — Então os receios do nosso amigo Overton justificaram-se — disse Holmes. — Pessoalmente, estou de acordo com o dr. Armstrong, pois esse esporte não me atrai. Vamos cedo para a cama hoje, Watson, pois creio que amanhã teremos um dia cheio.
Na manhã seguinte encontrei Holmes diante da lareira, com uma seringa na mão. Ante minha expressão de curiosidade, ele explicou: — Neste momento, esta seringa será a chave que abrirá as portas do misterioso caso. Nela estão minhas esperanças. Acabo de voltar de uma excursão, e tudo vai bem. Faça uma boa refeição, Watson, pois pretendo seguir o dr. Armstrong hoje e, uma vez no seu encalço, não pretendo comer nem descansar enquanto não tiver descoberto sua toca. — Nesse caso, é melhor levarmos conosco nossa refeição da manhã — sugeri. — O médico vai sair cedo. A carruagem já está à porta. — Não se incomode. Deixe-o partir. Será muito inteligente se conseguir chegar aonde eu não o possa seguir. Depois de terminar o café, venha comigo para baixo e eu lhe apresentarei um detetive, que é eminente especialista no trabalho que está à nossa frente. Depois que descemos, segui Holmes à cocheira. Ele abriu a porta de uma caixa e dali saiu um cão atarracado, de orelhas caídas. — Permita que o apresente a Pompey — disse ele. — Pompey é o orgulho dos cães de fila, não grande corredor, como seu corpo indica, mas um cão firme, que nunca abandona uma pista. Pois bem, Pompey, você não é corredor, mas creio que, mesmo assim, correrá mais que dois cavalheiros de meia-idade, e vou tomar a liberdade de pôr-lhe esta correia ao pescoço. Bem, rapaz, venha mostrar do que é capaz. Holmes levou-o até a porta do médico. O cão farejou por um instante e depois, com um ganido excitado, saiu pela rua, puxando a correia, esforçando-se para ir mais depressa. Em meia hora, tínhamos deixado a cidade e seguíamos por uma estrada
rural. — Que fez você, Holmes? — Adotei um truque muito conhecido, mas útil. Fui ao quintal do médico hoje de manhã e injetei uma seringa cheia de essência de aniz na roda de trás da carruagem. Um cão de fila seguirá o cheiro de aniz até o fim do mundo; nosso amigo Armstrong jamais conseguiria escapar a Pompey. Oh, o diabo é esperto! Foi aqui que ele me iludiu na outra noite. O cão saíra de repente da estrada principal, enveredando por um atalho verdejante. Oitocentos metros adiante, entramos em outra estrada larga e o cão virou à direita, em direção à cidade que acabávamos de deixar. A estrada subiu para o sul da cidade, continuando na direção oposta àquela de onde tínhamos vindo. — Então esta volta foi em nosso benefício? — observou Holmes. — Não é de admirar que minhas indagações nas outras cidades tenham dado em nada. Com certeza o médico tinha razão para isso, e eu gostaria de saber qual será, para se dar ao trabalho de tanta dissimulação. Ali deve ser o vilarejo Trumpington, à direita. Por Deus, lá vem a carruagem. Depressa, Watson, ou estamos perdidos! Holmes entrou num campo, passando por um portão, e puxou o relutante Pompey. Mal nos tínhamos escondido atrás da sebe, a carruagem passou por nós, vindo em direção oposta. Vimos de relance o dr. Armstrong, de ombros caídos, cabeça entre as mãos, a verdadeira imagem do desespero. Pela expressão grave de Holmes notei que ele também o vira. — Receio que nossa investigação tenha um fim negro — disse ele. — Mas depois saberemos. Vamos, Pompey, deve ser aquela casa no campo. Chegáramos ao fim da jornada, sem dúvida. Pompey corria de um lado para outro e gania do lado de fora do portão, onde ainda se viam, no chão, as marcas das rodas da carruagem. Um caminho conduzia à vivenda isolada. Holmes amarrou o cão à sebe. Continuamos. Meu amigo bateu à porta sem obter resposta, e tornou a bater. Mas a casa não estava deserta, pois chegou a nossos ouvidos um som baixo — um gemido de desespero, incrivelmente melancólico. Holmes parou, irresoluto, depois olhou de novo para a estrada de onde tínhamos vindo. Uma carruagem aparecera, e não havia dúvida quanto àqueles cavalos cinzentos. — Por Deus, o médico está de volta! — exclamou Holmes. — Então, está decidido. Temos de averiguar o que há antes que ele chegue. Holmes abriu a porta e entramos no vestíbulo. O gemido pareceu-nos mais forte, até se tornar um grito de desespero. Vinha de cima. Holmes subiu e acompanhei-o. Ele empurrou uma porta semi-aberta, e ambos ficamos atônitos com o que vimos. Uma mulher morta, jovem e bela, estava deitada na cama. O rosto calmo, pálido, de
olhos azuis completamente abertos, era emoldurado por cabelos dourados. Aos pés da cama, meio sentado, meio ajoelhado, com o rosto escondido nas roupas da cama, vimos um rapaz que se sacudia em soluços. Tão perturbado estava que não ergueu os olhos, até Holmes bater em seu ombro. — O senhor é o sr. Godfrey Staunton? — perguntou. — Sim, senhor, mas chegou tarde demais. Ela morreu. Estava tão fora de si, que não conseguiu compreender que não éramos médicos mandados para ajudá-lo. Holmes tentava dizer algumas palavras de consolação e explicar o alarme que seu desaparecimento provocara nos amigos, quando ouvimos passos na escada, e apareceu à porta o rosto severo e indagador do dr. Armstrong. — Então, senhores, atingiram seu objetivo e escolheram um momento delicado para a intrusão. Não me agrada perder a calma em presença da morte, mas asseguro-lhes que, se fosse mais jovem, tal conduta não deixaria de ser punida. — Desculpe-me, dr. Armstrong. Creio que há entre nós um mal-entendido — disse Holmes com dignidade. — Se quiser descer conosco, poderemos esclarecer-nos mutuamente a respeito deste assunto. Momentos depois o médico e nós estávamos na sala de baixo. — Então? — perguntou ele. — Quero que compreenda, em primeiro lugar, que não estou a serviço de Lorde MountJames, e que não tenho nenhuma simpatia por aquele senhor. Quando um homem desaparece, é meu dever investigar o fato. Mas, ao encontrá-lo, fica terminada minha missão e, contanto que não haja ato criminoso, prefiro abafar um escândalo particular a dar-lhe publicidade. Se, como imagino, a lei não foi infringida, pode contar com minha discrição e com minha cooperação para que os jornais nada publiquem. O dr. Armstrong deu um passo rápido à frente e apertou a mão de Holmes. — É uma boa pessoa — disse ele. — Tinha-o julgado mal. Agradeço aos céus pelo fato de meu remorso não ter permitido que deixasse só o pobre Staunton, e por ter-me feito voltar, pois assim posso conhecê-lo melhor, sr. Holmes. Sabendo o que sabe, a situação é fácil de ser explicada. Há um ano, Godfrey Staunton passou uma temporada em Londres e ficou apaixonado pela filha da senhoria, com quem se casou. Ela era boa, além de bonita e inteligente. Nenhum homem teria de se envergonhar de tal esposa. Mas Godfrey era herdeiro daquele velho malvado, e não há dúvida de que a notícia de seu casamento seria o fim da herança. Eu conhecia bem o rapaz, e estimava-o pelas suas excelentes qualidades. Procurei ajudá-lo. Fizemos o possível para que o casamento ficasse secreto, pois, quando há um murmúrio, as pessoas acabam sabendo. Graças a esta casa isolada e à discrição de Godfrey, até agora nada transpirou. Os únicos que sabiam desse segredo éramos eu e um criado fiel, que foi agora a Trumpington buscar socorro. Mas a esposa de meu amigo contraiu uma moléstia terrível. Uma tuberculose gravíssima. O pobre rapaz ficou desesperado, mas tinha de ir para Londres por causa daquele jogo, e não podia esquivar-se sem dizer o motivo que revelaria seu segredo. Tentei animá-lo com um telegrama, e ele mandou-me outro, implorando-me que fizesse o possível. Foi esse o telegrama que, de maneira inexplicável, parece que o senhor viu. Não contei ao rapaz a
gravidade do perigo, pois sabia que ele aqui nada poderia fazer, mas telegrafei contando a verdade ao pai da jovem e ele, levianamente, comunicou o fato a Godfrey. O resultado foi a vinda do rapaz, num estado de quase alucinação, e assim ele ficou, desde então, ajoelhado aos pés da cama, até que hoje de manhã a morte pôs fim aos sofrimentos da pobre jovem. É tudo, sr. Holmes, e tenho a certeza de que posso contar com sua discrição e a de seu amigo. Holmes apertou a mão do médico. — Venha, Watson — disse ele. Saímos daquela casa de dor para a claridade dúbia de um pálido sol de inverno.
Ilustrações: Frederic Dorr Steele e Sidney Paget, cortesia The Camden House Voltar
Sherlock Holmes em: Abbey Grange Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
Numa fria e nevoenta manhã de inverno, em 1897, acordei com um puxão em meu ombro. Era Holmes. A vela que ele segurava iluminava-lhe o rosto ansioso, e eu soube imediatamente que acontecera alguma coisa. — Venha, Watson, venha! O jogo começou! Nem uma palavra! Vista-se e venha! Dez minutos mais tarde, estávamos numa carruagem, atravessando ruas silenciosas a caminho da Estação de Charing Cross. Os primeiros sinais da madrugada apareciam, e víamos de vez em quando um vulto de operário. Holmes estava silencioso, encolhido em seu vasto sobretudo, e eu também, pois o frio era cortante e nenhum de nós tomara café antes de sair. Só depois de termos tomado um chá bem quente na estação, e já sentados no trem, é que ele se sentiu disposto a falar, e eu, a ouvir. Holmes tirou um papel do bolso e leu em voz alta:
"Abbey Grange, Marsham, Kent, 3:30 h. Caro sr. Holmes — Ficaria muito satisfeito se pudesse vir imediatamente em meu auxílio, num caso que promete ser realmente extraordinário. É algo de sua especialidade. A não ser para libertar a dama, farei com que tudo fique exatamente como foi encontrado, e peço-lhe que não perca um instante, pois é difícil deixar Sir Eustace lá. Sinceramente, Stanley Hopkins". — Hopkins pediu meu auxílio sete vezes, e todas elas se justificaram — disse Holmes. — Creio que os casos de nosso amigo fazem parte de sua coleção, Watson, e devo confessar que você tem um dom de seleção que desculpa muita coisa deplorável, a meu ver, em suas narrativas. Seu hábito fatal de olhar
para tudo como uma história, em vez de um exercício científico, arruinou o que poderia ter sido uma instrutiva e até mesmo clássica série de demonstrações. Refere-se por alto a um trabalho de grande astúcia e delicadeza, e apoia-se em pormenores sensacionalistas, que podem excitar mas não instruir o leitor. — Por que não escreve você mesmo seus casos? — repliquei, um tanto azedamente. — Escreverei, caro Watson, escreverei. No momento presente, estou muito ocupado, como sabe, mas pretendo dedicar a velhice à composição de um livro que focalizará toda a arte detetivesca num único volume. Nosso caso presente parece ser de assassinato. — Acha, então, que Sir Eustace está morto? — Creio que sim. A letra de Hopkins denota grande agitação, e ele é emotivo. Sim, acho que houve violência, e que o corpo está à nossa espera para um exame. Um simples suicídio não faria com que Hopkins me chamasse. Quanto a dizer que libertou a dama, parece que ela esteve presa no quarto durante a tragédia. Estamos nos movendo na alta sociedade. Veja, Watson, o papel, o monograma E. B., o brasão, o pitoresco endereço. Creio que nosso amigo Hopkins estará à altura da situação, e que vamos ter uma manhã interessante. O crime foi cometido antes da meia-noite de ontem. — Como sabe? — Por um exame dos trens e uma avaliação do tempo. A polícia local foi chamada, mas comunicou-se com a Scotland Yard. Hopkins foi para lá e, por sua vez, chamou-me. Tudo isso leva bem uma noite de trabalho. Bem, cá está a Estação de Chislehurst, e já o saberemos. Um trajeto de três quilômetros, por estreitas azinhagas, levou-nos a um portão grande, aberto por um homem que parecia aflito, provavelmente por causa da tragédia. A alameda cortava um parque antigo, no meio de velhos olmos, e ia acabar diante de uma casa baixa, esparramada, com pilares na frente. A parte central era, evidentemente, muito antiga, coberta de hera, mas as janelas largas indicavam que houvera reforma, e uma ala da casa parecia completamente nova. O inspetor Stanley Hopkins, com seu vulto jovem e expressão viva, esperava-nos à porta. — Estou muito satisfeito por ter vindo, sr. Holmes. E também o senhor, dr. Watson! Mas, se pudesse voltar atrás, não os teria incomodado, pois a dona da casa, depois que voltou a si, fez-nos uma descrição tão clara do incidente que não nos resta muito o que fazer. Lembra-se daquele grupo de ladrões de Lewisham? — Refere-se aos três Randalls? — Exatamente: o pai e os dois filhos. É obra deles, não tenho a menor dúvida. Fizeram um trabalhinho em Sydenham, há quinze dias, e foram vistos e
descritos. É uma audácia fazer outro logo em seguida, mas foram eles. Desta vez, é a forca que os espera. — Quer dizer que Sir Eustace morreu? — Sim, esmagaram-lhe a cabeça com o atiçador da lareira de sua própria casa. — O cocheiro disse-me que se trata de Sir Eustace Brackenstall. — Realmente, era um dos homens mais ricos de Kent. Lady Brackenstall está na saleta. Pobre senhora, passou por uma terrível prova. Parecia mais morta do que -viva quando cheguei. Creio que é melhor ouvi-la contar os fatos. Depo is, iremos examinar a sala de jantar. Lady Brackenstall não era uma pessoa vulgar. Raras vezes tenho visto mulher tão graciosa, tão feminina, tão bela. Loura, com cabelos dourados, olhos azuis; teria, naturalmente, a tez perfeita que geralmente acompanha esse tipo, se a experiência daquela noite não a tivesse deixado tão desfeita. Os sofrimentos eram tanto físicos como mentais, pois um lado da testa estava roxo e inchado, e era constantemente banhado com água e vinagre por uma criada alta e austera. A dona da casa estava estendida, exausta, num divã, mas o olhar vivo, observador, a expressão alerta no belo rosto indicavam que nem o intelecto nem a coragem tinham ficado prejudicados com a terrível experiência. Vestia uma camisola solta, azul e prateada, mas havia a seu lado um vestido preto de jantar. — Já lhe contei tudo o que aconteceu, sr. Hopkins — disse ela, com voz cansada. — Se posso repetir? Bem, se achar necessário, repetirei para esses senhores. Já estiveram 'na sala de jantar? — Achei melhor ouvirem primeiro sua história. — Ficarei satisfeita assim que o senhor tomar todas as providências. É horrível pensar nele lá. — Estremeceu, escondendo o rosto nas mãos. Ao fazê-lo, a manga solta caiu, mostrando o antebraço, Holmes soltou uma exclamação. — Tem outros ferimentos, minha senhora! O que é isso? Duas manchas vermelhas marcavam o braço claro e roliço. A jovem ocultouas imediatamente. — Não é nada — disse ela. — Nada tem a ver com o horrível acidente de ontem à noite. Façam o favor de se sentar, e eu contarei o que houve. "Sou esposa de Sir Eustace Brackenstall. Casei-me há um ano. É inútil querer ocultar o fato de ter sido um casamento infeliz. Todos os vizinhos poderiam informá-lo, senhor, mesmo que eu tentasse negar. Talvez a culpa
seja, em parte, minha. Fui educada na atmosfera mais livre, menos convencional do sul da Austrália, e adapto-me mal à vida na Inglaterra, com seus preconceitos e tabus. Mas a razão principal estava num fato de todos conhecido, isto é, Sir Eustace era um bêbado inveterado. Conviver com um homem assim, mesmo por uma hora, é desagradável. Pode imaginar o que era, para uma mulher sensível e voluntariosa, viver presa a ele dia e noite? É um sacrilégio, um crime, dizer que tal casamento é indissolúvel. Essas leis monstruosas trarão maldição ao país. Deus não permitirá que tanta maldade persista." Ela sentou-se por um momento, de rosto corado, os olhos brilhando sob a marca na fronte. Depois, a mão forte e macia da criada fez com que se deitasse de novo, e a cólera foi substituída por soluços. Finalmente, continuou: — Vou contar-lhes o que aconteceu a noite passada. Talvez saibam que todos os empregados dormem na ala nova. Neste bloco central ficam os dormitórios, com a cozinha atrás e nosso quarto em cima. Minha empregada, Theresa, dorme num quarto acima do meu. Não há mais ninguém, e nenhum som perturbaria os que dormem na outra ala. Isso devia ser do conhecimento dos ladrões, pois de contrário não teriam agido como agiram. "Meu marido foi para o quarto às dez e meia, mais ou menos. Os empregados já tinham se recolhido. Somente minha criada estava acordada, e ela costuma ficar em seu quarto, em cima, aguardando que eu a chame. Fiquei aqui nesta sala até depois das onze horas, absorta num livro. Depois dei uma volta para ver se estava tudo em ordem, antes de subir. Era meu hábito fazê-lo pessoalmente, pois não se podia confiar em Sir Eustace. Fui à cozinha, à copa, à sala de armas, à sala de bilhar, à sala de visitas e, finalmente, à sala de jantar. Ao aproximar-me da porta-janela, coberta por uma cortina pesada, senti de repente um golpe de vento no rosto, o que indicava que estava aberta. Abri a cortina e dei com um homem idoso, de ombros fortes, que acabara de entrar na sala. A porta-janela é larga e dá para um relvado. Eu tinha na mão minha vela de quarto e, à luz dela, vi atrás do homem outros dois, que iam entrando. Recuei, mas o primeiro sujeito avançou. Agarrou-me primeiro pelos pulsos, depois pelo pescoço. Abri a boca para gritar, mas recebi um soco no olho e caí. Devo ter ficado inconsciente por alguns minutos, pois, quando dei por mim, vi que tinham rebentado o cordão da campainha e que me tinham amarrado na cadeira de carvalho que fica à cabeceira da mesa. Estava tão bem presa que não podia mover-me, e uma mordaça impedia-me de gritar. Foi nesse momento que meu pobre marido entrou na sala. Evidentemente, ouvira sons e viera preparado para o que quer que fosse. Estava de calça e camisa, e tinha na mão sua bengala favorita. Correu para um dos ladrões, mas o outro, o sujeito de idade, inclinou-se, apanhou o atiçador da lareira e desferiu-lhe um terrível golpe. Meu marido caiu sem um gemido, e não mais se moveu. Desmaiei de novo, mas deve ter sido apenas por alguns minutos. Quando abri os olhos, vi que tinham tirado as pratas de cima do aparador e uma garrafa de vinho que lá estava. Cada um deles tinha um copo na mão. Já lhe disse que um era idoso, com barba, e os outros dois, rapazinhos imberbes. Poderiam ser pai e filhos. Falavam por murmúrios, Depois, aproximaram-se, verificando se eu estava bem amarrada. Finalmente saíram, fechando a janela.
Só um quarto de hora depois consegui fazer com que a mordaça caísse. Gritei, e minha criada acudiu. Depois vieram os outros empregados e mandaram chamar a polícia, que alertou Londres imediatamente. É só o que posso dizerlhes, senhores, e espero que não me seja necessário repetir história tão dolorosa." — Alguma pergunta, sr. Holmes? — disse Hopkins. — Não quero abusar do tempo e da paciência de Lady Brackenstall — declarou meu amigo, — Mas, antes de ir para a sala de jantar, gostaria de ouvir o que a criada tem a dizer — continuou, voltando-se para ela. — Vi os homens antes de entrarem em casa — contou ela. — Sentada à minha -janela, vi três homens ao luar, perto do portão de entrada, mas não dei importância a isso, na ocasião. Somente uma hora depois é que ouvi minha patroa gritar, e corri para baixo, encontrando-a, coitadinha, como ela já lhes contou, e ele caído no chão, todo ensangüentado. Era de deixar uma mulher louca, ali amarrada, o vestido manchado com o sangue do próprio marido, mas nunca lhe faltou coragem, à srta. Mary Fraser, de Adelaide... e Lady Brackenstall, de Abbey Grange, não é diferente. Já a interrogaram bastante, senhores, e agora ela vai para o quarto, com sua velha Theresa, à procura do descanso que necessita. Com ternura de mãe, a mulher magra e abatida pôs os braços à volta da patroa e levou-a. — Está com ela desde criança — contou Hopkins. — Foi sua ama, e veio com Lady Brackenstall para a Inglaterra, quando deixaram a Austrália há dezoito meses. Chama-se Theresa Wright, e é o tipo de empregada que não se encontra hoje em dia. Por aqui, sr. Holmes, por favor! A expressão de interesse desaparecera do rosto de Holmes, e percebi que, uma vez que não existia mistério, o caso não o atraía. Ainda precisava ser efetuada uma prisão, mas quem eram aqueles malandros vulgares, para que Holmes sujasse suas mãos na tarefa de capturá-los? Um grande especialista que fosse chamado para um caso de sarampo teria a mesma expressão aborrecida que vi no rosto de meu amigo. Mas a cena na sala de jantar foi suficientemente estranha para lhe chamar a atenção e reavivar-lhe o interesse. Era uma sala grande e de pé-direito alto, com teto e lambris de carvalho, uma bela coleção de cabeças de veado e armas antigas nas paredes. Na parede oposta à porta de entrada, vimos a porta-janela de que nos tinham falado. Três janelas menores, do lado direito, deixavam entrar o pálido sol de inverno. A esquerda, havia uma lareira grande, funda, com um pesado tampo de carvalho. Ao lado da lareira, uma pesada cadeira de carvalho, de braços e com pés cruzados embaixo. Na madeira trabalhada, via-se enrolada uma corda vermelha, amarrada embaixo, nos pés cruzados. Ao soltarem a dona da casa, a corda escorregara, mas ficaram os nós que a tinham prendido. Esses pormenores só nos chamaram a atenção mais tarde, pois nossos olhos fixaram-se no terrível espetáculo oferecido pelo homem estendido no chão,
sobre uma pele de tigre. Era o corpo de um homem alto, bem-feito, de mais ou menos quarenta anos de idade. Estava de costas, o rosto para cima, os dentes brancos como que arreganhados no meio da barba preta. As duas mãos contraídas estavam erguidas acima da cabeça, e no meio delas via-se uma pesada bengala. O rosto escuro, aquilino, estava convulso, num espasmo de cólera vingativa, dando-lhe um ar diabólico. Evidentemente estava deitado quando ouviu o barulho, pois usava um camisolão de dormir pretensioso, bordado, e os pés que saíam das calças estavam nus. A cabeça estava horrivelmente machucada, e toda a sala indicava a ferocidade do golpe que lhe fora desferido. A seu lado estava o atiçador, dobrado, devido ao impacto. Holmes examinou-o e ao terrível ferimento por ele causado. — Deve ser um homem muito forte, o tal Randall — observou. — É, sim — disse Hopkins. — Sei muito bem quem é, um sujeito perigoso. — Não lhe será difícil apanhá-lo. — Claro que não. Temos andado à sua procura, e ouvíramos dizer que fugira para a América. Agora que sabemos que o bando está aqui, não poderá escapar-nos. Mandamos aviso para todos os portos, e será oferecida uma recompensa antes que caia a noite. O que me admira é como podem ter feito tal loucura, sabendo que Lady Brackenstall os descreveria e que não poderíamos deixar de reconhecer a descrição. — Exatamente, Seria de esperar que tivessem também procurado obter o silêncio de Lady Brackenstall. — Talvez não tenham percebido que ela voltara a si. — Provavelmente. Estando ela inconsciente, não lhe tirariam a vida. Que me diz deste infeliz, Hopkins? Lembro-me de ter ouvido estranhas histórias a seu respeito. — Era um bom homem, quando sóbrio, mas um demônio quando bêbado, ou antes, meio bêbado, pois raramente se embriagava por completo. O demônio parecia tomar conta dela, nessas ocasiões, e era capaz de tudo. Pelo que ouvi dizer, apesar da fortuna e do título, uma ou duas vezes quase se meteu com a polícia. Houve um escândalo, pois dizem ter derramado gasolina num cão, ateando-lhe fogo... o cão da esposa, o que é pior, e só com dificuldade o caso foi abafado. Depois, atirou uma jarra na cabeça da criada, Theresa. Também isso lhe trouxe aborrecimentos. Cá entre nós, a atmosfera aqui ficará mais leve sem ele. O que está procurando agora?
Holmes estava de joelhos, examinando com grande atenção os nós da corda vermelha que tinham prendido a dona da casa. Depois examinou o cordão da campainha, que fora arrancado. — Quando tiraram o cordão, a campainha deve ter tocado alto na cozinha — disse ele. — Ninguém poderia ter ouvido. A cozinha fica muito no fundo. — Como o ladrão poderia saber que ninguém ouviria? Como ousou arrancar um cordão de campainha dessa maneira temerária? — É verdade, sr. Holmes, é verdade. O senhor formula a pergunta que, mais de uma vez, fiz a mim próprio. Não há dúvida de que esse sujeito conhecia a casa e seus hábitos. Devia saber que os criados estariam deitados àquela hora da noite, e que ninguém ouviria a campainha na cozinha. Deve, portanto, ter tido algum criado como cúmplice. Mas são oito, e todos com boas referências. — Em princípio, a suspeita recairia sobre a criada em quem o patrão atirou a jarra. Mas isso seria trair a patroa, a quem ela parece tão dedicada. Bem, bem, isso não tem importância, e, quando Randall estiver preso, você não terá dificuldade em saber o nome dos cúmplices. A história contada pela dona da casa parece corroborada pelo que vemos diante de nós. — Holmes foi até a porta-janela e abriu-a. — Aqui não há pegadas; mas o chão é duro e não seria o caso de esperar encontrá-las. Vejo que as velas sobre a lareira foram acesas. — Sim, foi por esta luz e pela vela que a senhora trazia que os ladrões puderam orientar-se. — E o que foi que levaram? — Oh, não roubaram grande coisa. Apenas algumas peças de prata, de cima do aparador. Lady Brackenstall acha que ficaram tão perturbados com a morte de Sir Eustace, que não fizeram a limpeza que pretendiam fazer. — Deve ser verdade. Apesar disso, beberam vinho, pelo que vejo. — Para retemperar os nervos. — Exatamente. Ninguém tocou nesses três copos sobre o aparador, não é? — Não. E também a garrafa está como foi deixada. — Vamos ver. Ora, ora, o que é isso?
Os três copos estavam agrupados, todos tintos de vinho, e um deles continha borra. A garrafa estava perto, três quartos cheia, e, ao lado, uma rolha longa, manchada. Sua aparência e o pó na garrafa indicavam que os ladrões não tinham aberto uma garrafa comum. A atitude de Holmes mudou. Perdeu a expressão distraída, e vi de novo uma luz de interesse em seus olhos profundos. Ergueu a rolha e examinou-a atentamente. — Como a tiraram? — perguntou. Hopkins apontou para uma gaveta aberta pela metade. Havia ali roupa de mesa e um grande saca-rolhas. — Lady Brackenstall disse que o saca-rolhas foi usado? — Não. O senhor deve lembrar-se de que ela estava inconsciente no momento em que a garrafa foi aberta. — Isso mesm o. Por falar nisso, o saca-rolhas não foi usado. A garrafa foi aberta com um saca-rolhas de bolso, provavelmente desse tipo que vem junto com um canivete e que não tem mais de quatro centímetros de comprimento. Se examinar a parte de cima da rolha, verá que foi furada três vezes, até que conseguissem tirá-la. Não foi trespassada. Esse saca-rolhas grande teria trespassado a rolha, que sairia com um só arranco. Quando encontrar o ladrão, verá que possui um desses canivetes. — Ótimo! — disse Hopkins. — Mas confesso que estes copos me deixam perplexo. Lady Brackenstall viu os homens beberem, não é verdade? — Sim, foi clara a esse respeito.. — Então, está acabado. Que mais se pode dizer? Apesar de tudo, deve reconhecer que os três copos são extraordinários, Hopkins! Ora, não vê nada estranho? Bem, bem, vá lá. É possível que, quando um homem possui dons e poderes extraordinários, como eu, seja levado a procurar uma explicação complexa quando tem uma simples à mão. Talvez seja coincidência a respeito dos copos. Pois bem, até logo, Hopkins. Não creio que possa ajudá-lo, e parece-me que o caso está bem claro. Avise-me quando Randall for preso, ou se houver qualquer outra novidade. Espero poder dar-lhe logo os parabéns por uma feliz conclusão. Venha, Watson, creio que poderemos aplicar melhor nosso tempo em casa. Na viagem de regresso percebi, pela expressão de Holmes, que ele estava muito preocupado com algo que observara. De vez em quando, com esforço, procurava desfazer essa impressão e conversar como se o caso estivesse liquidado, mas depois ficava de novo pensativo. Finalmente, com súbito impulso, assim que nosso trem saiu de uma estação de subúrbio, pulou para a
plataforma e puxou-me. — Desculpe-me, caro amigo — disse, quando vimos o trem virar a curva. — Sinto torná-lo vítima do que talvez seja apenas um capricho, mas, por Deus, Watson, não posso deixar o caso como está. Todos os meus instintos gritam contra isso. Está errado, está errado, está tudo errado. E, no entanto, a história da dona da casa está completa, foi corroborada pela empregada, cada pormenor parece absolutamente exato. Que tenho eu a opor a isso? Três copos de vinho, apenas. Mas, caso eu não tivesse tomado as coisas como certas, se tivesse examinado tudo com o cuidado de quem começa uma investigação com a cabeça fresca, sem ter ouvido uma história, não teria encontrado algo mais definido? Claro que teria. Sente-se neste banco, Watson, até que chegue um trem de Chislehurst, e permita-me que ponha os indícios diante de você, implorando-lhe, em primeiro lugar, que afaste do pensamento a idéia de que os fatos contados pela dona da casa e pela criada sejam necessariamente verdadeiros. A encantadora personalidade da dama não deve influir em nosso julgamento. "Na história de Lady Brackenstall existem certamente pormenores que, examinados a sangue-frio, excitariam nossas suspeitas. Esses ladrões cometeram um considerável roubo em Sydenham, há quinze dias. Saiu nos jornais a descrição do pai e dos filhos, e ela logo ocorreria a quem desejasse inventar uma história na qual bandidos imaginários tomassem parte. Em geral, os ladrões que fizeram um bom negócio dão-se por felizes de aproveitar em paz as vantagens do roubo, em vez de se meterem em outra perigosa aventura. Além disso, não é natural que atuem tão cedo, no princípio da noite; em geral não espancam uma mulher para evitar que grite, pois seria esse o meio mais fácil de fazê-la gritar; não é comum assassinarem um homem, quando são em número suficiente para dominá-lo; é extraordinário que se contentem com pouca coisa, quando têm muita a seu alcance; e, finalmente, asseguro-lhe que é estranho que tais homens deixem uma garrafa de vinho pela metade. Que acha, Watson?" — O efeito acumulado de tudo isso é de fato considerável, mas cada um dos pontos em separado é admissível — respondi. — O mais estranho, para mim, é que ela tenha sido amarrada. — Pois bem, isso não é assim tão estranho, Watson, pois é evidente que teriam de matá-la, ou amarrá-la, para que não desse imediatamente o alarme da fuga. E, acima de tudo, vem o incidente dos três copos de vinho. — Que têm eles? — Não pode se recordar deles? — Claro que posso. — Disseram-nos que os três homens beberam. Acha isso provável? — Por que não? Havia vinho em todos os copos.
— Exatamente. Mas havia borra num apenas. Deve ternotado essa particularidade. O que lhe sugere? — O último copo servido provavelmente foi o que recebeu a borra. — Claro. A garrafa estava cheia dela, e é inconcebível que dois copos estivessem sem nada, e o outro, cheio dela. Há duas explicações, e apenas duas. Uma, que a garrafa foi violentamente agitada depois de ser servido o segundo copo, de modo que o terceiro apanhou a borra. Isso não parece provável. Não, não, tenho certeza de que tenho razão. — Então, qual é sua suposição? — De que somente dois copos foram usados, e que os restos dos dois foram vertidos no terceiro copo, para dar a impressão de que havia três pessoas. Dessa maneira, toda a borra iria para o terceiro copo, não é verdade? Sim, estou convencido de que foi isso. Mas, se acertei na explicação desse pequeno pormenor, então o caso passa do comum para o extraordinário, pois significa apenas que Lady Brackenstall e sua criada tentaram deliberadamente mentirnos, e não devemos acreditar numa só palavra de sua história; elas têm motivos para ocultar o verdadeiro criminoso, e devemos investigar nosso caso sem o auxílio delas. É esta a nossa missão, Watson, e aqui esta o trem. O pessoal da casa ficou muito admirado com nossa volta, mas Holmes, vendo que Hopkins saíra para fazer seu relatório, tomou conta da sala de jantar, fechou a porta por dentro e dedicou-se, durante duas horas, à minuciosa investigação que era a base em que se firmava o brilhante edifício de suas deduções. Sentado a um canto, como o estudante interessado que observava a demonstração do professor, acompanhei todos os passos de sua extraordinária busca. A janela, as cortinas, o tapete, a cadeira, a corda — cada objeto foi examinado minuciosamente, e seu valor, ponderado. O corpo do infeliz baronete fora removido, mas o resto continuava em seus lugares. Depois, com espanto, vi Holmes subir na maciça lareira. Acima de sua cabeça, pendiam alguns centímetros de corda, ainda presa ao arame. Durante muito tempo ele olhou para cima, e, tentando chegar mais perto, apoiou o joelho na mão-francesa da parede. Isso permitiu que sua mão chegasse muito perto da ponta da corda, mas foi a mão-francesa o que mais lhe prendeu a atenção. Finalmente, desceu c om uma exclamação satisfeita. — Está certo, Watson — disse ele. — Este caso é um dos mais extraordinários de nossa coleção. Mas, Deus do céu, como fui inepto, quase chegando a cometer a maior falta de minha vida! Acho, agora, que os poucos elos que faltam à corrente estão quase à nossa mão. — Sabe quem são os homens? — O homem, Watson, o homem. Apenas um, mas uma formidável criatura. Forte como um touro, basta ver a violência com que o atiçador foi dobrado. Um
metro e noventa de altura, ágil como um esquilo, e de dedos hábeis. Finalmente, homem de muito sangue-frio, pois esta história engenhosa é de sua autoria. Sim, Watson, temos aqui o trabalho de um sujeito extraordinário. Mas com a corda ele nos dá uma pista que não deixa dúvidas. — Que pista? — Pois bem, se você tivesse de puxar aquela corda, Watson, onde esperaria que ela rebentasse? Certamente no ponto onde se prende ao arame. Por que haveria de partir-se a oito centímetros da extremidade de cima, como aconteceu com esta aqui? — Pelo fato de estar gasta? — Exatamente. Esta ponta aqui está gasta. Ele teve a inteligência de cortá-la com uma faca, mas a outra parte não está desfiada. Não se podia observar isso daqui de baixo, mas subindo na lareira pude ver que a ponta da parte superior está cortada firmemente, sem sinais de desgaste. Podemos reconstituir os fatos. O homem precisava da corda. Não quis arrancá-la, com medo do alarme da campainha. O que fez, então? Pulou para a lareira, não pôde alcançar a corda, pôs o joelho na mão-francesa, como você pode ver pela marca na poeira, e cortou a corda com a faca. Faltam oito centímetros para que eu alcance a extremidade, de modo que calculo que ele seja oito centímetros mais alto do que eu. Veja esta marca na cadeira de carvalho! O que é? — Sangue. — Claro que é sangue. Só isso desmente a história da dona da casa. Se ela estava sentada nesta cadeira, quando o crime foi cometido, como pode haver aqui esta marca? Não, não, ela foi posta na cadeira após a morte do marido. Garanto que há uma marca correspondente em seu vestido preto. Ainda não encontramos nosso Waterloo, mas isso aqui é nossa Marengo, pois começa com derrota e termina com vitória. Gostaria de trocar uma palavra com Theresa, a criada. Temos de nos acautelar, a princípio, se quisermos a informação que desejamos. Era interessante aquela australiana de ar severo. Taciturna, desconfiada, pouco amável. Holmes levou tempo para, com sua amabilidade e aceitação de tudo o que ela dizia, conseguir que se abrisse. A mulher não tentou ocultar seu ódio pelo antigo patrão. — Sim, senhor, é verdade que ele arremessou a jarra contra mim. Quando o ouvi chamar minha patroa por certo nome, eu lhe disse que ele não ousaria falar assim se o irmão dela estivesse presente. Foi então que ele a atirou. Poderia atirar uma dúzia, contanto que deixasse minha menina em paz. Ele estava sempre maltratando-a, e ela era orgulhosa demais para se queixar; ela nunca vai chegar a me contar tudo o que o marido lhe fez. Não me falou sobre
aquelas marcas no braço que o senhor viu esta manhã, mas eu sei que foram feitas com um alfinete de chapéu. O miserável! Deus me perdoe por falar assim, agora que está morto, mas jamais existiu demônio igual na terra. Era todo mel, quando o conhecemos, há dezoito meses apenas, mas parece que foram dezoito anos. Ela acabara de chegar a Londres. Era sua primeira viagem, nunca saíra da Austrália. Ele conquistou-a com seu título, seu dinheiro e suas falsas maneiras londrinas. Se a coitada cometeu um erro, pagou caro. Em que mês o conhecemos? Logo que chegamos. Chegamos em junho, e ela conheceu-o em julho. Casaram-se em janeiro do ano passado. Sim, ela está na saleta agora, e creio que o receberá, mas o senhor deve poupá-la, pois já agüentou o máximo que uma criatura pode agüentar. Lady Brackenstall estava reclinada no mesmo divã, mas parecia mais animada. A criada entrou conosco e recomeçou a pôr compressas na mancha da testa da patroa. —- Espero que não tenham vindo interrogar-me de novo — disse a dona da casa. — Não — respondeu Holmes com sua voz mais suave. — Não quero incomodá-la desnecessariamente, Lady Brackenstall. O meu desejo é facilitarlhe as coisas, pois estou convencido de que sofreu muito. Se quiser tratar-me como amigo e confiar em mim, creio que não se arrependerá dessa confiança. — O que quer que eu faça? — Conte-me a verdade. — Sr. Holmes! — Não, não, Lady Brackenstall, não adianta. Talvez conheça minha reputação. Pois renuncio a ela se sua história não for pura invenção. Patroa e empregada olharam para Holmes, pálidas e amedrontadas. — O senhor é ousado! — exclamou Theresa. — Está querendo dizer que minha patroa mentiu? Holmes ergueu-se. — Nada tem a dizer-me? — perguntou. — Já lhe disse tudo. — Pense um pouco, Lady Brackenstall. Não seria melhor ser franca? Por um instante, houve hesitação no belo rosto. Depois, um pensamento mais forte fez com que ele se transformasse numa máscara. — Contei-lhe tudo o que sabia.
Holmes pegou o chapéu e encolheu os ombros. — Sinto muito, minha senhora — disse ele. E, sem mais palavras, saiu da sala e da casa. Havia um tanque no jardim, e foi para lá que meu amigo me conduziu. Estava gelado, mas no centro havia uma abertura cômoda para um cisne solitário. Holmes fitou-o, e em seguida atravessou o portão de entrada. Escreveu um bilhete a Hopkins e entregou-o ao porteiro. — Pode ser que acerte, pode ser que não, porém temos de fazer alguma coisa pelo amigo Hopkins, a fim de justificar esta segunda visita — disse ele. — Mas ainda não quero fazerlhe confidências. Nosso próximo centro de operações vai ser o escritório da agência de navegação da linha Adelaide—Southampton, que fica na extremidade da Pall Mall, se bem me lembro. Há outra linha de vapores que liga a Austrália à Inglaterra, mas primeiro investigaremos a mais importante. O cartão de Holmes, mandado ao gerente, fez com que fosse atendido imediatamente, e não tardou em obter a informação que desejava. Em junho de 1895, somente um navio daquela linha aportara na Inglaterra. Era o Rock of Gibraltar, o maior e melhor da companhia. O exame da lista de passageiros, revelou-nos o nome da srta. Fraser, de Adelaide, que viajava com sua criada. A tripulação ainda era a mesma de 1895, com uma exceção. O primeiro-of icial, o sr. Jack Croker, fora feito capitão, e devia assumir o comando de novo navio, o Bass Rock, que sairia dali a dois dias de Southampton. Morava em Sydenham, mas talvez tivesse vindo receber instruções. Desejávamos falar com ele? Não, o sr. Holmes não desejava vê-lo, mas gostaria de saber alguma coisa a respeito de sua carreira e seu caráter. Sua filha era magnífica. Não havia, na frota, oficial que se lhe comparasse. Quanto ao caráter, ele era digno de confiança quando em seu posto; fora do navio era um sujeito violento, exaltado, facilmente excitável, mas leal, honesto e de bom coração. Foram essas as informações que Holmes colheu na companhia de navegação. Dali foi para a Scotland Yard, mas, em vez de entrar, ficou sentado na carruagem, mergulhado em seus pensamentos. Finalmente, foi ao telégrafo da Charing Cross e mandou um telegrama. Dali a pouco púnhamo-nos a caminho da Baker Street. — Não, não pude fazê-lo, Watson — disse ele. — Uma vez expedido o mandado de prisão, nada mais o salvaria. Uma ou duas vezes durante minha carreira, achei que o mal que eu tinha feito, ao revelar o criminoso, era maior do que o que ele próprio fizera. Aprendi a ser cauteloso, e prefiro prejudicar a lei inglesa a prejudicar minha consciência. Precisamos saber mais alguma coisa antes de agir.
Ao anoitecer, recebemos a visita do inspetor Hopkins. As coisas não lhe corriam bem. — Creio que o senhor é um feiticeiro, sr. Holmes. Às vezes acho realmente que tem poderes sobrenaturais. Como pôde saber que as pratas roubadas estavam no fundo do tanque? — Não sabia. — Mas aconselhou-me a verificar. — Encontrou-as, então? — Encontrei-as, sim. — Fico muito satisfeito por tê-lo ajudado. — Mas não me ajudou. Tornou o caso mais difícil ainda. Que espécie de bandidos são esses, que roubam pratas para atirá-las ao tanque? — Não há dúvida de que é uma excentricidade. Calculei apenas que, se as pratas tivessem sido roubadas por pessoas que não as quisessem, e que as tivessem levado apenas para despistar (como foi o que aconteceu), essas pessoas ficariam desejosas de se ver livres delas. — Mas por que lhe ocorreu tal idéia? — Pois bem, achei possível. Quando eles saíram pela porta-janela, viram o tanque com um buraco bem no meio. Poderia haver melhor esconderijo? — Ah, esconderijo, isso é outra coisa! — exclamou Hopkins. — Sim, sim, agora vejo tudo! Era cedo, havia gente nas estradas, eles tiveram medo de ser vistos com as pratas, de modo que as atiraram ao tanque, pretendendo voltar quando as coisas se acalmassem. Excelente, sr. Holmes, melhor do que sua idéia da pista falsa. — Isso mesmo. Tem aí uma admirável teoria. Reconheço que minhas idéias são fantásticas, mas levei-o a descobrir as pratas. — Sim, sim, foi graças ao senhor. Mas tive um contra-tempo. — Um contratempo!? — Sim, sim, sr. Holmes. O bando de Randall foi preso em... Nova York, hoje de manhã. — Que diabo, Hopkins, isso vai contra sua teoria de que eles teriam cometido um assassinato em Kent na noite passada. — É um golpe, sr. Holmes, um golpe fatal. Enfim, sempre há outras quadrilhas,
ou talvez se trate de uma que a polícia não conheça. — É muito possível. O quê, já vai embora? — Sim, sr. Holmes. Não descansarei enquanto não chegar ao fim deste caso. Suponho que não tem nenhuma pista a dar-me! — Já lhe dei uma. — Qual? — Pois bem, falei em pista falsa. — Ora, sr. Holmes, ora! — É essa a questão, naturalmente. Mas dou-lhe a sugestão. Talvez perceba que tem algum fundamento. Não quer jantar? Então adeus, e dême notícias. O jantar terminara quando Holmes aludiu de novo ao Caso. Acendeu o cachimbo e aproximou os pés do fogo. De repente, olhou para o relógio. — Estou à espera de novidades, Watson. — Quando? — Daqui a alguns minutos. Acha que agi mal com Hopkins, agora há pouco? — Confio em você. — Resposta muito sensata, Watson. Pode encarar o caso desta maneira: o que sei não é oficial; posso, portanto, agir à minha moda, mas ele... mas ele, não. Hopkins tem de revelar tudo, para ser leal a seu emprego. Havendo dúvidas, eu não gostaria de deixá-lo em posição difícil, de modo que reservo minha informação até ter absoluta certeza. — Mas quando será? — Chegou a hora. Vai presenciar a última cena de um dramazinho extraordinário. Ouvimos passos na escada, e nossa porta abriu-se para dar entrada ao mais belo tipo de homem que jamais vi. Era um rapaz muito alto, de bigode louro, olhos azuis, pele queimada pelo sol dos trópicos e um andar que indicava ser ele ágil e forte. Fechou a porta, ficou de mãos contraídas e peito ofegante, parecendo profundamente emocionado. — Sente-se, capitão Croker. Vejo que recebeu meu telegrama.
Nosso visitante caiu numa poltrona, olhando-nos com ar interrogador. — Recebi e vim à hora que o senhor marcou. Soube que esteve na companhia de navegação. Não havia maneira de lhe escapar. Ouçamos o pior. Que vai fazer de mim? Prender-me? Fale, homem! Não pode ficar aí sentado, brincando de gato e rato comigo. — Tome um charuto — disse Holmes. — Fume, e não se deixe dominar pelos nervos, capitão Croker. Eu não estaria aqui sentado, fumando, se o considerasse um criminoso vulgar, pode estar certo disso. Seja franco comigo, e talvez resolvamos o caso. Mas se procura enganar-me, liquido-o. — Que deseja que eu faça? — Conte-me exatamente o que aconteceu em Abbey Grange, a noite passada... a história verdadeira, sem nada acrescentar ou diminuir. Se o senhor se desviar da verdade um centímetro que seja, tocarei este apito de polícia à janela, e o caso sairá para sempre de minhas mãos. O marinheiro pensou um momento. Depois bateu na perna, com a grande mão queimada de sol. — Arrisco-me. Acredito que o senhor seja um homem honrado e de palavra, e vou contar-lhe a história. Mas direi uma coisa em primeiro lugar. Pelo que me diz respeito, de nada me arrependo e nada temo. Maldita seja aquela fera; se tivesse dezenas de vidas, de todas elas teria de me prestar contas! Mas existe aquela senhora, Mary, Mary Fraser, pois nunca a chamarei pelo maldito sobrenome do marido. Quando penso que posso prejudicá-la, eu, que daria a vida só para vê-la sorrir, fico com o coração partido. E no entanto, no entanto, o que eu poderia ter feito? Vou contar-lhes a história, senhores, e depois lhes perguntarei de homem para homem se poderia ter feito outra coisa. "Tenho de retroceder um pouco. Parece que sabem tudo, de modo que c om certeza não ignoram que a conheci quando era primeiro-oficial, a bordo do Rock of Gibraltar. Desde o primeiro dia, não existiu no mundo outra mulher para mim. Cada dia a amava mais, e muitas vezes, desde então, ajoelhei-me no tombadilho, na escuridão da noite, e beijei o chão, por saber que ela passara por ali. Ela tratou-me com toda a lealdade. Não tenho do que me queixar. Era amor de meu lado e camaradagem e amizade do lado dela. Quando nos despedimos, Mary era livre, mas eu nunca mais seria um homem livre. "Quando regressei de minha última viagem, soube que ela estava casada. Por que não haveria de se casar com quem quisesse? Título e dinheiro, quem mais do que ela mereceria ser feliz? Nasceu para as coisas bonitas e caras. Não lamentei o casamento dela, não era egoísta até esse ponto. Alegrei-me por ter tido sorte, em vez de desperdiçar a vida com um marinheiro sem vintém. Era assim que eu amava Mary Fraser. "Pois bem, pensava nunca mais tornar a vê-la, mas quando cheguei fui
promovido, de modo que tive de esperar meu navio alguns meses, em Sydenham. Um dia, no campo, encontrei-me com Theresa, a criada de Mary. Ela contou-me tudo sobre Mary, o marido, tudo. Garanto-lhes, senhores, que fiquei como louco. Aquele bêbado miserável ousar erguer a mão para a mulher cujos sapatos ele não merecia beijar! Encontrei Theresa de novo. E encontrei Mary várias vezes. Depois, ela não quis voltar a ver-me. Há alguns dias, recebi a comunicação de que meu navio ia partir dentro de uma semana, e resolvi ir vê-la mais uma vez. Theresa sempre foi minha amiga, pois era afeiçoada a Mary e detestava aquele vilão tanto como eu. Por ela, fiquei conhecendo a casa e seus hábitos. Mary costumava ler embaixo, na saleta. Fui de mansinho até lá, ontem à noite, e bati na janela. A princípio, ela não quis abrir, mas no fundo do coração eu sabia que ela me amava e que não me deixaria fora de casa, numa noite gélida. Ela disse-me que fosse até a porta grande da frente. Entrei na sala de jantar. Ouvi de novo, de seus próprios lábios, coisas que me fizeram ferver o sangue, e amaldiçoei o bandido que assim maltratava a mulher que eu amava. Pois bem, senhores, estava ali com ela, inocentemente, tomo a Deus por testemunha! Quando ele entrou como louco na sala, chamou-a pelo nome mais baixo que um homem pode atirar a uma mulher e deu-lhe no rosto com a bengala que tinha na mão. Eu agarrei o atiçador, e houve uma luta leal entre nós dois. Veja aqui em meu braço o ponto onde ele me feriu em primeiro lugar. Chegou então minha vez e avancei, como se ele fosse um verme. Pensam que estou arrependido? Nunca! Era minha vida ou a dele, e, mais do que isso, era a dele ou a dela, pois como eu poderia deixá-la em poder daquele louco? Pois bem, o que os senhores teriam feito se estivessem no meu lugar?" O capitão Croker continuou: — Ela gritou quando ele lhe bateu, e isso fez com que Theresa acorresse. Havia uma garrafa de vinho no aparador. Abri-a, fiz Mary tomar um gole, pois estava mais morta do que viva. Depois, também tomei um gole. Theresa conservara absoluto sangue-frio, e o plano foi tanto dela como meu. Tínhamos de dar a impressão de que houvera ladrões em casa. Theresa repetia a história à patroa, enquanto eu subia na lareira para cortar a corda. Amarrei Mary a uma cadeira, desfiando a corda para que parecesse gasta, pois do contrário pensariam: como poderia um ladrão subir para cortá-la? Depois, apanhei algumas peças de prata para reforçar a idéia de roubo, e saí, recomendando que dessem o alarme um quarto de hora após minha partida. Atirei as pratas no tanque e dirigi-me a Sydenham, achando que, ao menos uma vez na vida, agira com justiça. É esta a verdade e toda a verdade, sr. Holmes, mesmo que eu tenha de ir para a forca. Holmes fumou em silêncio durante algum tempo. Depois atravessou a sala e apertou a mão do visitante. — É isso o que penso — disse ele. — Sei que cada palavra sua é verdadeira, pois não disse uma única que eu já não conhecesse. Ninguém a não ser um acrobata, ou marinheiro, poderia ter alcançado a corda apoiando-se na mãofrancesa; e ninguém, a não ser um marinheiro, teria feito aqueles nós na corda. Somente uma vez Lady Brackenstall estivera em contato com marinheiros, isto é, naquela viagem, e devia ser alguém de sua classe, pois ela fazia tudo para
protegê-lo, mostrando assim que o amava. Bem vê como foi fácil descobri-lo, uma vez que me pus na pista certa. — Calculei que a polícia nunca pudesse descobrir a trama. — E não descobriu nem descobrirá, ao que penso. Agora, escute, capitão, esse assunto é sério e estou pronto a reconhecer que o senhor agiu sob grande provocação. Não sei se, alegando legítima defesa, seria ou não absolvido. Isso compete ao júri. Mas simpatizo tanto com seu caso que, se o senhor desaparecer dentro de vinte e quatro horas, prometo que ninguém o impedirá de fazê-lo. — E depois tudo virá a público? — Claro que sim. O marinheiro ficou vermelho de cólera. — Que espécie de proposta é essa para se fazer a um homem? Conheço bastante a lei para saber que Mary seria considerada cúmplice. Acha que a deixaria só para enfrentar tudo, enquanto eu fugisse? Não, senhor, que me façam o pior, mas, pelo amor de Deus, sr. Holmes, arranje uma forma de deixar Mary fora de tudo isso. Pela segunda vez, Holmes estendeu-lhe a mão. — Eu estava pondo-o à prova e, também agora, cada uma de suas palavras soou verdadeira. Pois bem, é uma grande responsabilidade que tomo, mas fiz uma alusão a Hopkins e, se ele não a aproveitar, paciência. Ouça, capitão Croker, vamos fazer isso a exemplo da lei. O senhor é o prisioneiro. Watson, você é o júri britânico.... e jamais encontrei pessoa mais apta para representálo. Eu sou o juiz. Agora, senhores jurados, conhecem o processo. Consideram o réu culpado ou inocente? — Inocente, meritíssimo juiz — respondi. — Vox populi, vox Dei. Está absolvido, capitão Croker. Enquanto a lei não encontrar outra vítima, o senhor poderá ficar tranqüilo. Venha buscar sua dama dentro de um ano, e que o futuro de ambos justifique a sentença que hoje pronunciamos.
Arthur Conan Doyle
A segunda mancha
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Era minha intenção encerrar a narração das aventuras do meu amigo Holmes com “Abbey Grange”. Essa resolução não foi tomada por falta de material, pois tenho anotações sobre centenas de casos aos quais nunca aludi, e tampouco devido ao desinteresse por parte dos leitores a respeito da singular personalidade e dos extraordinários métodos daquele homem. A verdadeira razão foi a má vontade de Holmes em relação a que eu continuasse a publicar suas experiências. Enquanto ele exercia a profissão, a narrativa de meus sucessos sempre lhe valia alguma coisa, mas desde que se retirou para uma fazenda de criação de abelhas, em Sussex Downs, tomou aversão à notoriedade e recomendou-me seriamente que obedecesse a seus desejos. Somente quando argumentei que prometera contar a história de “A segunda mancha” quando chegasse a ocasião propícia, insistindo em que a série devia terminar com a mais interessante, de importância internacional, é que ele me deu seu consentimento. Se eu, ao contar a história, parecer um tanto vago quanto aos pormenores, o público deverá reconhecer que há excelentes razões para essa reserva. Foi, então, num ano, ou mesmo numa década, que não direi qual é, que, numa terça-feira de manhã, no outono, vimos dois visitantes, famosos em toda a Europa, sentados em nossa humilde sala, na Baker Street. Um, austero, de nariz adunco, olhos de águia, dominador, não era outro senão o ilustre Lorde Beilinger, duas vezes primeiro-ministro da Inglaterra. O outro, moreno, elegante, quase de meia-idade, ostentando uma singular beleza de corpo e espírito, era o honorabilíssimo Trelawney Hope, secretário dos Negócios Europeus, o mais promissor dos estadistas da época. Sentaram-se lado a lado em nosso sofá cheio de papéis, e não foi difícil ver, pela expressão ansiosa de ambos, que era muito grave o assunto que ali os trazia. As mãos do primeiroministro, finas, de veias azuladas, comprimiam o castão de marfim do guardachuva, enquanto o rosto de asceta olhava sombriamente de Holmes para mim. O outro puxava nervosamente o bigode e mexia na corrente do relógio. - Quando descobri o desaparecimento, sr. Holmes, hoje às oito da manhã, pus-me imediatamente em contato com o primeiro-ministro. Foi por sugestão sua que ambos viemos procurá-lo. - Já informaram a polícia? - Não - respondeu o ministro, com a maneira viva, incisiva, que era de todos conhecida. - Não o fizemos, e não é possível procurar a polícia. Isso seria,
no fim de contas, informar o público, coisa que desejamos particularmente evitar. - E por quê, senhor ministro? - Porque o documento desaparecido é de tal importância, que sua publicação poderia facilmente (posso quase dizer provavelmente) levar a complicações internacionais. Não é exagero dizer que dele podem depender a paz ou a guerra. A não ser que seja recuperado dentro do maior sigilo, não adianta ser encontrado, pois o objetivo daqueles que o apreenderam é justamente torná-lo conhecido. - Compreendo. Agora, sr. Trelawney Hope, ficaria muito grato se me contasse exatamente em que circunstâncias desapareceu o documento. - Posso fazê-lo em poucas palavras, sr. Holmes. A carta... pois trata-se de uma carta de um potentado estrangeiro, chegou há seis dias. Era tão importante que não a deixei no cofre, mas levava-a, todas as noites, do Whitehall Terrace para minha casa, e guardava-a em meu quarto, numa pasta fechada. Lá estava a noite passada, disso tenho certeza. Abri a pasta, enquanto me vestia para jantar, e vi o documento. Hoje de manhã havia desaparecido. A pasta ficou em minha mesinha-de-cabeceira a noite toda. Tenho o sono leve, e minha esposa, também. Estamos prontos a jurar que ninguém entrou no quarto, durante a noite. Mas, repito: o documento desapareceu. - A que horas jantaram? - Às sete e meia. - Quanto tempo depois foi para a cama? - Minha mulher tinha ido ao teatro. Esperei-a. Fomos para a cama às onze e meia. - Então, durante quatro horas, a pasta ficou desprotegida? - Ninguém tem licença de entrar no quarto, a não ser, de manhã, a mulher da limpeza, e durante o dia, meu criado particular ou a criada de minha mulher. Esses dois são de toda a confiança, e estão há tempos a nosso serviço. Além disso, nenhum deles podia saber que havia na pasta um documento mais importante do que os papéis que despacho diariamente. - Quem sabia da existência da carta? - Ninguém em casa. - Mas, sem dúvida, sua mulher sabia, não? - Não, senhor. Nada contei à minha mulher, até dar pela falta do documento, hoje de manhã. O ministro aprovou com a cabeça.
- Há muito que sei como é grande sua noção do dever público - declarou. Estou convencido de que, num caso de tão grande importância, o segredo paira acima dos laços de família. O secretário inclinou a cabeça. - O senhor realmente faz-me justiça - disse ele. - Até hoje de manhã, não tinha feito a mínima alusão sobre isso à minha esposa. - Ela poderia ter suspeitado? - Não, sr, Holmes, nem ela nem qualquer outra pessoa em casa. - Perdeu algum documento antes disso? - Nunca. - Quem, na Inglaterra, sabia da existência da carta? - Todos os membros do gabinete foram informados, ontem, mas a obrigação de guardar segredo, rotineira em todas as reuniões do gabinete, foi solenemente reforçada, por recomendação do primeiro-ministro. Deus do céu, pensar que, dali a poucas horas, eu próprio iria perdê-la! Seu belo rosto estava desfigurado por uma expressão de desespero, e o homem puxou os cabelos. Por um momento ficamos conhecendo seu verdadeiro “eu”: impulsivo, ardente, sensível. No momento seguinte, surgiu a máscara do aristocrata, e ouvimos de novo sua voz suave: - Além dos membros do gabinete, há dois, talvez três empregados do departamento que sabiam da existência da carta - continuou ele. - Ninguém mais na Inglaterra, garanto-lhe, sr. Holmes. - E no estrangeiro? - Creio que ninguém, a não ser o homem que a escreveu. Estou convencido de que seus ministros ou os canais oficiais não foram empregados para a entrega da carta. Holmes refletiu durante alguns segundos. - Agora, senhores, posso saber o que há nesse documento, e por que motivo seu desaparecimento pode ter tão desastrosas conseqüências? Os dois estadistas entreolharam-se rapidamente, e o primeiro-ministro contraiu as sobrancelhas. - Sr. Holmes, trata-se de um envelope longo, fino, azul-claro. Há um sinete de lacre vermelho, com um leão deitado. A letra ê larga, ousada. - Creio que, por mais interessantes que sejam esses pormenores, tenho de ir à raiz do fato. O que havia na carta? - É um segredo de Estado de grande importância, e receio não poder contá-lo ao senhor, nem vejo necessidade disso. Se, auxiliado pêlos dons que
reconhecidamente possui, o senhor puder descobrir esse envelope e seu conteúdo, merecerá a gratidão de seu país e a recompensa que estiver a nosso alcance poder dar-lhe. Sherlock Holmes ergueu-se com um sorriso. - Os senhores são os dois homens mais ocupados da nação - disse ele. - E, em meu setor, também tenho muito o que fazer. Lamento não poder ajudá-los, a continuação desta entrevista seria uma perda de tempo. O primeiro-ministro pulou, com aquele brilho rápido e feroz nos olhos que os membros do gabinete tinham aprendido a temer. - Não estou habituado... - começou ele. Mas dominou a cólera e tornou a sentar-se. Por um minuto, todos ficamos em silêncio. O velho estadista encolheu os ombros. - Temos de aceitar suas condições, sr. Holmes. Com certeza tem razão, e não podemos esperar que comece a agir a não ser que mereça nossa absoluta confiança. - Estou de acordo - disse o secretário. - Então vou contar-lhe, sr. Holmes, confiando em sua honra e na de seu colega, o dr. Watson. Apelo também para seu patriotismo, pois não seria possível imaginar maior desventura para seu país do que a revelação deste incidente. - Pode ter absoluta confiança em nós. - A carta é de certo potentado, que ficou irritado com alguns recentes acontecimentos em nossas colônias. Foi escrita às pressas e sob sua única responsabilidade. Certas investigações provaram que seus ministros nada sabem a esse respeito. Por outro lado, está redigida de modo tão infeliz e certas frases são tão provocantes, que sua publicação levaria nosso país a um perigoso estado de coisas. Haveria tal revolta, senhor, que não hesito em dizer que, uma semana após sua divulgação, nos veríamos envolvidos numa guerra. Holmes escreveu um nome num pedaço de papel e entregou-o ao primeiro-ministro. - Exatamente. Foi ele. E foi essa carta, essa carta que pode significar o gasto de milhões de libras e a perda de milhares de vidas, que se extraviou de maneira tão inexplicável. - Informaram o homem que a escreveu? - Sim, mandamos um telegrama cifrado. - Talvez ele deseje a divulgação da carta.
- Não, senhor. Temos razões para supor que ele já compreendeu ter agido de maneira indiscreta e impensada. Se a carta se tornar conhecida, o golpe será maior para ele e para seu país do que para nós. - Nesse caso, quem tem interesse em que a carta apareça? Por que desejariam roubá-la, ou publicá-la? - Agora, sr. Holmes, o senhor leva-nos às regiões da alta política internacional. Mas, se observar a situação da Europa, não terá dificuldade em conhecer o motivo. A Europa inteira está em pé de guerra. Há uma dupla aliança, que estabelece um equilíbrio de poder militar. A Grã-Bretanha é o fiel da balança. Se a Inglaterra fosse levada à guerra contra uma das confederações, daria supremacia à outra, quer esta entrasse na guerra ou não. Compreende? - Perfeitamente. Os inimigos desse potentado têm, portanto, interesse em publicar a carta, de maneira a causar um rompimento entre seu país e o nosso? - Exatamente. - E a quem seria o documento mandado, se caísse nas mãos de um inimigo? - A qualquer uma das grandes chancelarias da Europa. Provavelmente está a caminho de uma delas, neste momento. O sr. Trelawney Hope deixou a cabeça cair sobre o peito e soltou um gemido. O primeiro-ministro pôs bondosamente a mão em seu ombro. - Foi infelicidade sua, meu amigo. Ninguém pode censurá-lo. Não houve precaução que não tomasse. Agora, sr. Holmes, está de posse de todos os fatos. O que nos aconselha? Holmes sacudiu a cabeça, desanimado. - Os senhores acham que, a não ser que o documento seja recuperado, haverá uma guerra? - É muito provável. - Então, preparem-se para a guerra. - Está sendo duro, sr. Holmes. - Considere os fatos, senhor. É inconcebível que a carta tenha sido roubada depois das onze e meia da noite, uma vez que o sr. Hope e sua esposa estiveram no quarto desde essa hora até o momento em que notaram sua falta. Então foi roubada ontem, entre as sete e meia e as onze e meia, provavelmente mais perto das sete e meia, pois quem a tirou sabia que ela estava ali e tinha interesse em levá-la o mais depressa possível. Agora, senhores, se um documento dessa importância foi roubado a essa hora, onde poderá estar agora? Ninguém tem motivos para guardá-lo. Deve ter sido entregue imediatamente àqueles que o
cobiçavam. Que probabilidades temos de encontrá-lo? Está fora de nosso alcance. O primeiro-ministro ergueu-se. - O que diz é perfeitamente lógico, sr. Holmes. Receio que o caso tenha saído de nossas mãos. - Vamos supor, só para argumentar, que a carta tenha sido roubada pelo criado ou pela mulher da limpeza... - São empregados antigos e de toda a confiança. - Pelo que deduzi, seu quarto fica no segundo andar, não tem entrada por fora, e ninguém poderia chegar até lá sem ser visto. Deve, então, ter sido pessoa da casa. A quem levariam a carta? A algum dos vários espiões internacionais e agentes secretos cujos nomes são mais ou menos conhecidos. Há três que talvez possam ser considerados os mais atilados na profissão. Começarei minha investigação procurando-os a todos. Se algum estiver fora, principalmente se tiver desaparecido ontem à noite, teremos um indício sobre o destino do documento. - Por que o homem haveria de ter desaparecido? - perguntou o secretário. Bastaria levar a carta a alguma embaixada em Londres. - Não creio. Esses agentes trabalham por conta própria e, muitas vezes, suas relações com as embaixadas são tensas. O primeiro-ministro aprovou com a cabeça. - Creio que tem razão, sr. Holmes. Ele deveria levar tão valiosa prenda pessoalmente ao quartel-general. Acho que sua sugestão é ótima. Nesse meio tempo, Hope, não podemos abandonar nossos afazeres por causa deste incidente. Se houver alguma novidade, nós o avisaremos, sr. Holmes; e o senhor, por sua vez, certamente nos manterá informados. Os dois estadistas ergueram-se, inclinaram-se e saíram, com ar grave. Holmes acendeu um cachimbo em silêncio e ficou durante algum tempo perdido em meditação. Eu abrira o jornal da manhã e estava imerso na leitura de um crime sensacional que ocorrera na noite anterior, quando meu amigo soltou uma exclamação, deu um salto da cadeira e colocou o cachimbo sobre a lareira. - Não há melhor maneira de começar a investigação - disse ele. - A situação é difícil, mas não desesperadora. Mesmo agora, se eu soubesse ao certo qual deles tem a carta, há a possibilidade de que ainda não a tenha mandado... Afinal de contas, e uma questão de dinheiro com essa gente, e tenho o Banco da Inglaterra atrás de mim. Se a carta estiver no mercado, compro-a, mesmo que
isso venha a significar mais um centavo nos futuros impostos. É possível que o homem guarde a carta para ver qual a oferta de nosso lado antes de oferecê-la ao outro. Há apenas três homens capazes de jogo tão ousado: Oberstein, La Rothiere e Eduardo Lucas. Irei vê-los. Olhei para o jornal da manhã. - Eduardo Lucas mora na Godolphin Street? - Mora. - Então não o verá. - Por que não? - Porque foi assassinado em sua casa, a noite passada. Meu amigo tem-me surpreendido tantas vezes, em nossa carreira, que foi com imenso prazer que percebi tê-lo deixado atônito. Olhou-me por um segundo, depois arrancou-me o jornal das mãos. Era este o parágrafo que eu estivera lendo: “ASSASSINATO EM WESTMINSTER Um crime misterioso foi cometido a noite passada, no número 16 da Godolphin Street, uma das casas antigas do século XVIII, quase à sombra da grande torre do Parlamento. A pequena mas fina mansão era habitada, há alguns anos, pelo sr. Eduardo Lucas, conhecido nos círculos sociais pela sua encantadora personalidade e pela merecida reputação de ser um dos melhores tenores do país. O sr. Lucas era solteiro e tinha trinta e quatro anos de idade. Havia dois empregados em casa, a sra. Pringie, governanta já idosa, e Mitton, o mordomo. A governanta deita-se cedo e dorme no sótão. O mordomo tinha saído, para visitar um amigo, em Hammersmith. Das dez horas em diante o sr. Lucas estava só em casa. Não se sabe o que ocorreu nesse intervalo, mas, às quinze para a meia-noite, o policial Barret, ao passar pelo número 16 da Godolphin Street, notou que a porta estava escancarada. Bateu, mas não obteve resposta. Vendo luz na sala da frente, adiantou-se e bateu de novo, sem resultado. Empurrou a porta e entrou. A sala estava em grande desordem, a mobília fora levada para um canto e uma cadeira estava tombada de costas, ao centro. Ao lado da cadeira, ainda agarrado a uma das pernas, estava o infeliz dono da casa. Fora apunhalado no coração e deve ter tido morte instantânea. A arma do crime era uma adaga indiana, curva, arrancada a uma coleção de trofeus orientais que adornavam as paredes. O roubo não parece ter sido o móvel do crime, pois não houve tentativa de levar os objetos de valor da sala. O
sr. Eduardo Lucas era muito conhecido e popular, e sua morte violenta e misteriosa causou pesar em seu círculo de relações.” - Então, Watson, que me diz a isso? - perguntou Holmes, após longa pausa. - É uma estranha coincidência. - Coincidência! Temos aqui um dos homens que citamos como um dos possíveis atores do drama, e ele encontra uma morte violenta justamente no momento em que sabemos que o drama está sendo encenado. Tudo indica que não se trata de coincidência. Não, caro Watson, os dois acontecimentos estão ligados, têm de estar ligados. Cabe-nos encontrar a relação existente entre eles. - Mas agora a polícia oficial já deve saber tudo. - De forma nenhuma. Sabem, apenas, do que se passou na Godolphin Street. Nada sabem, e nem saberão, do que se passa no Whitehall Terrace. Somente nós conhecemos os dois fatos e podemos relacioná-los. Há um ponto que, de qualquer maneira, faria com que minhas suspeitas se virassem contra Eduardo Lucas. A Godolphin Street, em Westminster, fica apenas a alguns passos do Whitehall Terrace. Os outros agentes a que me referi moram muito mais longe. Portanto, seria fácil a Lucas estabelecer contato ou receber uma mensagem da casa do secretário, algo insignificante mas que poderia ser provado como essencial, quando os acontecimentos se precipitassem. Ei, o que temos aqui? A sra. Hudson aparecera, trazendo na salva o cartão de uma senhora. Holmes olhou para o nome, ergueu as sobrancelhas e passou-me o cartão. - Diga a Lady Hilda Trelawney Hope que faça o favor de entrar. No momento seguinte, nosso apartamento, já tão honrado naquela manhã, foi distinguido novamente com a presença de uma das mulheres mais lindas de Londres. Eu já ouvira falar na beleza da filha mais nova do duque de Belminster, mas nenhuma descrição ou fotografia me preparara para a beleza delicada e o sutil encanto da mulher que estava à nossa frente. Mas o rosto que vimos naquela manhã de outono não era de beleza que impressionasse à primeira vista. Rosto belo, mas pálido de emoção; os olhos brilhavam, mas com um brilho febril; a boca sensível estava tensa, num esforço de autodomínio. Terror, não beleza, era o que havia no olhar de nossa visitante, quando surgiu à porta. - Meu marido esteve aqui, sr. Holmes? - Sim, minha senhora, esteve. - Sr. Holmes, suplico-lhe que não lhe diga que vim a sua casa.
Holmes inclinou-se friamente e indicou-lhe uma cadeira. - Minha senhora, está me colocando numa situação delicada. Peço-lhe que se sente e me diga o que tem a dizer, mas receio não poder fazer promessas incondicionais. Ela entrou e sentou-se de costas para a janela. Era uma presença régia alta, graciosa e essencialmente feminina. Abrindo e fechando as mãos enluvadas de branco, começou: - Vou falar-lhe com franqueza, na esperança de que também seja franco comigo. Há absoluta confiança entre mim e meu marido, em todos os assuntos, a não ser num: a política. Nesse ponto, seus lábios são mudos. Ele nada me conta. Mas vim a saber que houve um lamentável incidente em nossa casa, a noite passada, com o desaparecimento de um documento importante. Como é de natureza política, meu marido recusa-se a fazer-me confidências. Mas é essencial... essencial, compreenda-me, que eu saiba o que aconteceu. O senhor é a única pessoa, além daqueles políticos, a conhecer a verdade exata. Suplico-lhe, sr. Holmes, diga-me do que se trata e quais as possíveis consequências. Conteme tudo, sr. Holmes. Não permita que o interesse de seu cliente o faça calar-se, pois garanto que o interesse dele, se pudesse saber da verdade, seria justamente que eu ficasse sabendo de tudo. Que documento era esse que foi roubado? - Minha senhora, pede-me o impossível. Ela gemeu e escondeu o rosto nas mãos. - Deve compreender, minha senhora. Se seu marido acha que nada lhe deve revelar, não compete a mim, que fiquei a par dos fatos sob juramento de segredo, contar-lhe o que ele ocultou. É a ele que deve perguntar. - Perguntei-lhe. Venho ter com o senhor como último recurso. Mas, sem me dizer nada definitivo, far-me-ia um grande favor se me esclarecesse um ponto. - Qual, minha senhora? - A carreira política de meu marido poderia ficar comprometida por esse incidente? - Pois bem, a não ser que o caso seja solucionado favoravelmente, terá gravíssimas consequências. - Ah! - Ela suspirou, como quem tivesse tomado uma resolução. - Mais uma pergunta, sr. Holmes. Por uma frase que meu marido deixou escapar, no primeiro momento de choque, deduzi que terríveis consequências públicas poderiam surgir pela perda do documento. - Se ele o disse, não posso negar o fato.
- De que natureza é o perigo? - Agora, minha senhora, está perguntando mais do que posso responder. - Então, não lhe tomarei mais tempo. Não posso censurá-lo, sr. Holmes, por se ter recusado a falar mais livremente, e espero que não pense mal de mim por desejar, contra a vontade de meu marido, participar de sua aflição. Suplicolhe, mais uma vez, que não lhe fale de minha visita. Ela olhou-nos da porta, e tive novamente a visão de um rosto belo, ansioso, os olhos assustados e a boca tensa. Depois, desapareceu. - Agora, caro Watson, o belo sexo é sua especialidade - disse Holmes com um sorriso. - Qual o jogo daquela senhora? Que desejava ela realmente? - Não há dúvida de que sua ansiedade era sincera. - Hum... Pense em sua aparência, Watson, a excitação, o ar inquieto, a tenacidade das perguntas. Lembre-se de que pertence a uma classe que não demonstra emoção facilmente. - Não há dúvida de que estava emocionada. - Lembre-se, também, da curiosa insistência com que disse que precisava saber, no interesse do marido. Que queria dizer com isso? E deve ter observado que ela procurou ficar de costas para a janela. Não quis que lhe víssemos a expressão do rosto. - Sim, ela escolheu aquela cadeira. - Apesar de tudo, os motivos das mulheres são inescrutáveis. Lembre-se da mulher de Margate, de quem suspeitei pela mesma razão. Não tinha pó no rosto - foi essa a solução correta. Como é possível construir sobre areia movediça? O ato mais trivial pode significar muito, a mais extraordinária atitude pode depender de um grampo ou de um alfinete. Até logo, Watson. - Vai sair? - Sim, vou passar a manhã na Godolphin Street, com nossos amigos da polícia oficial. Em Eduardo Lucas está a solução do mistério, e confesso que tenho um palpite a respeito do rumo que os fatos tomarão. É um grande erro formar teorias antes dos acontecimentos. Fique de guarda, caro Watson, e receba os visitantes que aparecerem. Virei almoçar, se me for possível. Durante todo esse dia e no seguinte, Holmes se mostrou taciturno. Entrava e saía, fumava sem cessar, devorava sanduíches fora de hora, caía em meditação e mal respondia às minhas perguntas. Não havia dúvida de que as coisas não corriam muito bem. Não quis me contar nada, e eu soube dos pormenores do inquérito pêlos jornais. Li sobre a prisão e a soltura do mordomo de Lucas. O médico-legista declarou: “Assassinato, por pessoa ou pessoas desconhecidas”.
Nenhum móvel do crime foi apresentado. Havia na sala objetos de valor, mas não foram roubados. Não tinham mexido nos documentos do morto. Estes foram examinados, e ficou provado que ele era um estudioso de assuntos internacionais, um extraordinário linguista, e mantinha vasta correspondência. Fora íntimo dos maiores políticos de vários países. Mas nada de sensacional foi descoberto entre os documentos guardados nas gavetas. Quanto às suas relações com mulheres, parece que haviam sido variadas, mas superficiais. Tinha muitas conhecidas, mas poucas amigas, e não amava nenhuma. Seus hábitos eram regulares, sua conduta, inofensiva. Sua morte era um mistério, e assim permaneceria. Quanto à prisão de John Mitton, o mordomo, fora um gesto de desespero por parte da polícia, só para não deixar de fazer alguma coisa. Nada havia contra ele. Tinha um álibi perfeito. Era verdade que voltara para casa a uma hora que lhe permitiria chegar antes do momento do crime, mas sua alegação de que fizera parte do caminho a pé era aceitável, em vista da beleza da noite. Chegara a casa à meia-noite, e mostrara-se consternado com a tragédia. Sempre se dera bem com o patrão. Alguns objetos do morto - entre eles um aparelho de barba - foram encontrados em seu poder, mas explicou que eram presentes do patrão e a governanta confirmou suas palavras. Havia três anos que Mitton trabalhava com Lucas. O patrão nunca o levara nas suas viagens ao continente. Às vezes passava três meses em Paris, mas o mordomo ficava tomando conta da casa em Londres. Quanto à governanta, nada ouvira na noite do crime. Se viera alguma visita, devia ter sido recebida pelo próprio patrão. O mistério continuou durante três manhãs, pelo que li nos jornais. Se Holmes sabia de alguma coisa, nada me contou, a não ser que estava em contato com o inspetor Lestrade. No quarto dia, chegou um telegrama de Paris que parecia conter a solução do problema. “A polícia parisiense acaba de fazer uma descoberta (disse o Daily Telegraph) que ergueu o véu sobre a trágica morte do sr. Eduardo Lucas, assassinado na segunda-feira, na Godolphin Street, em Westminster. Nossos leitores devem estar lembrados de que ele foi encontrado morto em sua sala, havendo suspeitas contra o mordomo, que provou ter um álibi. Ontem, uma senhora conhecida como Mme Henri Fournaye, que mora numa vila na Rue Austerlitz, foi denunciada como louca, à polícia, pêlos seus empregados. O exame provou que sorria de mania de perseguição. A polícia descobriu que essa senhora voltara de Londres na última terça-feira, e há razões para relacioná-la com o crime de Westminster. Uma comparação de fotografias demonstrou que
o sr. Henry Fournaye e Eduardo Lucas são a mesma pessoa, e que o morto levava vida dupla, em Londres e Paris. Mme Fournaye, que é de origem crioula, possui natureza excitável, pois teve no passado crises de ciúme que se assemelhavam à loucura. Supõe-se que, numa delas, tenha cometido o crime que emocionou Londres inteira. Seus movimentos, na noite de segunda-feira, ainda não foram reconstituídos, mas sabe-se que uma mulher cuja descrição se adapta à sua chamou muito a atenção na Estação de Charing Cross, na terçafeira de manhã, pela aparência desordenada e gestos frenéticos. Portanto, é provável que o crime tenha sido cometido num momento de loucura, e a infeliz mulher teria ficado com a mente irremediavelmente prejudicada. De momento, não está em condições de prestar declarações, e os médicos não têm esperanças de que volte à normalidade. Sabe-se que uma mulher, que pela descrição poderia ter sido ela, andou espiando a casa da Godolphin Street durante algumas horas, na segunda-feira à noite.” - Que pensa disso, Holmes? - perguntei, ao terminar a leitura em voz alta, enquanto ele acabava seu café da manhã. Holmes ergueu-se e pôs-se a passear pela sala. - Caro Watson, você é muito paciente, mas, se nada lhe contei, foi porque nada havia a contar nestes três últimos dias. Mesmo agora, esta notícia de Paris de nada nos adianta. - Mas é definitiva, quanto à morte do homem. - A morte de Lucas é um mero incidente, um episódio trivial, em comparação com nossa verdadeira missão, que é encontrar o documento para evitar uma catástrofe na Europa. Somente uma coisa importante aconteceu nestes três últimos dias: precisamente o fato de nada ter acontecido. Tenho recebido notícias de hora em hora do governo, e não há dúvida de que não há sinal de crise na Europa. Ora, se a carta estivesse perdida... Mas não pode estar perdida... E, não estando perdida, onde está? Quem a tem em seu poder? E por que a conserva, sem se servir dela? É essa a questão que não me sai do pensamento. Terá sido mesmo coincidência o fato de Lucas falecer na mesma noite em que a carta desapareceu? Teria a carta chegado às suas mãos? Nesse caso, por que não está entre seus documentos? A esposa louca teria levado a carta para Paris? Nesse caso, estará em sua casa? Como eu poderia procurá-la sem despertar as suspeitas da polícia francesa? Trata-se de um caso, Watson, em que a lei é tão perigosa quanto os criminosos. Estão todos contra nós, e, no entanto, esse é um caso de tremenda importância. Se eu conseguir ser bem
sucedido, será o apogeu de minha carreira. Agora, as últimas notícias da frente de batalha!... Holmes leu de relance o bilhete que lhe fora entregue, e continuou: - Ora, ora! Parece que Lestrade observou algo interessante. Pegue seu chapéu, Watson, e vamos para Westminster. Era minha primeira visita à cena do crime. Lestrade olhou-nos da janela da frente e saudou-nos cordialmente, quando um policial alto e forte nos abriu a porta. Entramos na sala onde Lucas fora morto, mas já não havia sinais da tragédia, a não ser uma mancha feia, irregular, no tapete. Era um tapete quadrado, pequeno, no centro da sala, cercado por um soalho antigo, de tacos quadrados, e muito bem encerado. Sobre a lareira, havia uma magnífica coleção de armas, uma das quais servira de instrumento do crime. Perto da janela, uma suntuosa escrivaninha; tudo indicava o gosto e o luxo do proprietário. - Viu as notícias de Paris? - perguntou Lestrade. Holmes inclinou a cabeça. - Parece que nossos amigos franceses acertaram dessa vez. Não há dúvida de que deve ter sido conforme eles pensaram. Ela bateu à porta sem ser aguardada, pois parece que o homem levava uma existência dupla. Lucas fê-la entrar; não podia deixá-la na rua. Discutiram, ela recriminou-o, uma coisa levou a outra e ali estavam as armas, à disposição de qualquer um. Não foi coisa rápida, pois a desordem da sala indicava luta, e as cadeiras estavam todas empurradas para um canto. Holmes ergueu as sobrancelhas. - Apesar disso, você mandou me chamar? - Ah, sim, há um pormenor, coisa insignificante, mas dessas que despertam o interesse. Nada tem a ver com o fato principal, ao que parece. - Então o que é? - Pois bem, o senhor sabe que, depois de um crime desses, temos o máximo cuidado em manter as coisas nos devidos lugares. O policial de guarda não arredou pé daqui. Hoje de manhã, depois do enterro, como a investigação terminara, achamos que podíamos pôr um pouco de ordem na sala. Veja o tapete. Não está preso ao soalho. Quando o erguemos, encontramos... - Sim? Encontraram... Havia ansiedade no rosto de Holmes. - Pois bem, creio que o senhor nunca adivinharia. Vê esta mancha, no tapete? Muito sangue deve tê-lo atravessado, não é verdade? - Sem dúvida.
- Pois bem, vai ficar admirado por saber que não havia mancha correspondente no soalho. - Não havia mancha! Mas deve haver! - Era de supor, mas não há. Lestrade virou o tapete para provar o que dizia. - Mas a parte de cima está tão marcada como a de baixo. Deve haver uma mancha no soalho. Lestrade riu, satisfeito por deixar perplexo o grande perito. - Agora, a explicação. Há uma segunda mancha, mas não corresponde à primeira. Veja. Lestrade puxou o tapete, e de fato havia uma grande mancha escura no outro lado do soalho. - A polícia não precisa do senhor, sr. Holmes, para encontrar essa explicação. As manchas são idênticas, como podemos ver virando o tapete e colocando uma sobre a outra. Mas desejo saber quem virou o tapete e por quê. Vi pela expressão de Holmes que ele estava vibrante de excitação. - Escute, Lestrade, o policial ficou de guarda o tempo todo? - Sim, ficou. - Então, ouça meu conselho. Interrogue-o minuciosamente. Não o faça diante de nós. Esperaremos aqui. É mais fácil conseguir uma confissão sem testemunhas. Pergunte-lhe como ousou deixar entrar uma pessoa aqui, deixando-a só nesta sala. Não pergunte se ele o fez; afirme-o como coisa certa. Diga-lhe que sabe que alguém esteve aqui. Pressione-o. Diga que uma confissão será sua única esperança de perdão. Faça como lhe digo. - Por Deus, se ele souber eu o farei confessar! - exclamou Lestrade, saindo apressadamente. Logo em seguida ouvimo-lo no quarto dos fundos interrogando o policial. - Agora, Watson! - exclamou Holmes, com frenesi. Todas as forças diabólicas daquele homem, ocultas sob a máscara da frieza, irromperam num paroxismo de energia. Puxou para um lado o tapete e pôs-se de joelhos, apalpando todos os tacos do soalho. Um deles moveu-se, como a tampa de uma caixa. Vimos uma pequena cavidade escura. Holmes enfiou a mão ansiosamente, mas retirou-a com uma exclamação de desapontamento. Nada encontrara. - Depressa, Watson, vamos pôr o tapete no lugar! - disse ele. Dali a minutos, ouvimos a voz de Lestrade no corredor. Encontrou Holmes apoiado languidamente à lareira, com ar entediado.
-- Desculpe-me tê-lo feito esperar, sr. Holmes - disse ele. - Vejo que está aborrecido com essa história toda. Pois bem, o homem confessou. Venha cá, MacPherson. Que estes senhores fiquem sabendo de sua imperdoável conduta. Vermelho e arrependido, o policial entrou na sala. - Não o fiz por mal, senhor, pode estar certo. A jovem veio a noite passada, tinha-se enganado de casa, foi o que aconteceu. Começamos a conversar. É triste quando se fica no posto o dia inteiro. - E depois o que houve? - Ela queria ver a cena do crime, tinha lido a respeito do caso nos jornais, disse ela. Era muito respeitável, muito fina, de modo que não vi mal em deixála entrar. Quando viu a mancha no tapete, caiu desmaiada no chão, ali ficando como morta. Corri para os fundos e trouxe um copo de água, mas não consegui fazê-la voltar a si. Fui então até a taberna da esquina buscar um pouco de conhaque. Quando voltei, a jovem já partira, muito envergonhada, creio eu, sem ter coragem de me encarar. - E o tapete? - Pois bem, estava um pouco enrugado, não há dúvida, mas a moça tinha caído em cima dele. Endireitei-o. - É uma lição para provar que não pode me enganar, MacPherson - disse Lestrade com dignidade. - Com certeza pensou que sua falta nunca seria descoberta, mas bastou-me olhar para o tapete para ver que alguma coisa acontecera. Felizmente para você, nada falta, do contrário a coisa não ficava por aqui. Sinto tê-lo chamado por assunto tão trivial, sr. Holmes, mas achei que o fato de uma mancha não coincidir com a outra iria interessá-lo. - Sim, de fato. A mulher só esteve aqui uma vez? - Sim, apenas uma vez - respondeu o guarda. - Quem era ela? - Não a conheço, senhor. Estava bem vestida. Creio que se pode dizer que era bonita. Alguns diriam muito bonita, mesmo. “Oh, chefe, deixe-me dar só uma olhadinha!”, disse ela. Tinha um jeitinho especial, como se costuma dizer, e pensei que não havia mal em deixá-la espiar da porta. - Como estava vestida? - Discretamente, com um manto longo até os pés. - Que horas eram? - Era noitinha. Estavam acendendo as luzes quando voltei com o conhaque.
- Muito bem - disse Holmes. - Agora, Watson, creio que temos coisas mais importantes a fazer. Saímos dali, deixando Lestrade na sala, enquanto o arrependido policial nos acompanhava até a porta. Holmes virou-se e mostrou-lhe um papel. O homem olhou atentamente. - Deus do céu! - exclamou, atônito. Holmes pôs o dedo nos lábios, guardou de novo o papel no bolso e saiu rindo pela rua. - Ótimo! - disse ele. - Venha, Watson, a cortina ergue-se para o último ato. Você vai ficar satisfeito por saber que não haverá guerra, que a carreira do honorabilíssimo Trelawney Hope não sofrerá danos, que o indiscreto potentado não pagará por sua indiscrição, que o primeiro-ministro não se verá a braços com complicações europeias e que, com um pouco de tato de nossa parte, ninguém ficará prejudicado com o que poderia ter sido um incidente muito desagradável. Minha admiração por aquele homem extraordinário aumentava sem cessar. - Você resolveu o problema! - exclamei. - Não é bem isso, caro Watson. Há pontos tão obscuros, como ao princípio. Mas temos já tanta coisa, que será culpa nossa se não desvendarmos o mistério. Vamos para o Whitehall Terrace decidir o caso. Quando chegamos à casa do secretário de Estado, foi por Lady Trelawney que Holmes perguntou. Fizeram-nos entrar na sala de visitas. - Sr. Holmes! - disse ela, rubra de indignação. - Isso é injusto e pouco generoso da sua parte. Desejava, conforme lhe disse, que a visita que lhe fiz permanecesse secreta, para que meu marido não julgasse que me intrometo em seus assuntos. Mas o senhor me compromete vindo procurar-me, e mostrando que tem relações profissionais comigo. - Infelizmente, minha senhora, não tenho outra alternativa. Fui contratado para recuperar um importante documento. Tenho, portanto, de lhe pedir que o entregue a mim. Ela pulou da cadeira, e a cor desapareceu-lhe do rosto. Tive a impressão de que ia desmaiar. Depois, com grande esforço, dominou-se, e a surpresa e a indignação não deixaram lugar a outra expressão. - O senhor insulta-me, sr. Holmes. - Vamos, vamos, minha senhora, entregue-me a carta. Ela adiantou-se para a campainha. - O mordomo os conduzirá à porta.
- Não toque, Lady Hilda. Se o fizer, verei frustrados meus esforços para evitar um escândalo. Dê-me a carta e as coisas ficarão no seu lugar. Se cooperar, farei com que tudo fique em ordem. Se se puser contra mim, serei obrigado a denunciá-la. Ela ficou de pé, provocadora, figura régia, os olhos fixos em Holmes, como se quisesse ler sua alma. Sua mão pousava na campainha, mas recusou-se a tocá-la. - Está procurando amedrontar-me. Não é muito nobre de sua parte, sr. Holmes, vir aqui ameaçar uma mulher. Diz que sabe alguma coisa. O que sabe? - Faça o favor de se sentar, minha senhora. Poderá machucar-se se cair. Não falarei, até então. Obrigado. - Dou-lhe cinco minutos, sr. Holmes. - Basta um, Lady Hilda. Sei de sua visita a Eduardo Lucas, sei que lhe entregou o documento, sei de sua engenhosa visita à sala, a noite passada, e de que maneira recuperou a carta, tirando-a do esconderijo sob o tapete. Ela olhou para meu amigo com o rosto lívido e engoliu em seco, uma ou duas vezes, antes de falar. - Está louco, sr. Holmes, está louco! Holmes tirou do bolso um pedaço de papelão. Vimos o rosto de uma mulher recortado de uma fotografia. - Trouxe isto comigo por achar que me seria útil - disse ele. - O policial reconheceu-a. Ela soltou um gemido, a cabeça caída sobre o peito. - Vamos, Lady Hilda. A senhora tem a carta em seu poder. O caso pode ser remediado. Não tenho interesse em prejudicá-la. Meu dever terminará no momento em que devolver a carta a seu marido. Siga meu conselho e seja franca comigo; é sua única oportunidade. A coragem dela foi admirável. Nem mesmo então se reconheceu derrotada. - Repito, sr. Holmes, que está completamente iludido. Holmes ergueu-se. - Sinto muito pela senhora, Lady Hilda. Fiz o possível, mas vejo que foi em vão. Holmes tocou a campainha. O mordomo apareceu. - O sr. Trelawney já chegou? - Deve chegar às quinze para a uma, senhor. Holmes olhou para o relógio.
- Faltam quinze minutos. Muito bem. Esperarei. Mal o mordomo fechou a porta, Lady Hilda atirou-se de joelhos diante de Holmes, as mãos estendidas, o lindo rosto úmido de lágrimas. - Oh, poupe-me, sr. Holmes! Poupe-me! - suplicou ela. - Pelo amor de Deus, não lhe conte! Amo-o tanto! Não era meu desejo causar-lhe o menor desgosto, pois isso lhe partiria o coração. Holmes obrigou-a a erguer-se. - Fico satisfeito, minha senhora, por ver que recuperou o bom senso, embora no último momento. Não há um segundo a perder. Onde está a carta? Ela correu para a escrivaninha, abriu-a e tirou de lá um longo envelope azul. - Aqui está, sr. Holmes. Antes nunca o tivesse visto. - Como poderemos devolvê-lo? - murmurou Holmes. - Depressa, depressa, temos de encontrar um meio! Onde está a pasta? - Ainda está no quarto. - Que sorte! Depressa, minha senhora, vá buscá-la. No momento seguinte, ela voltou com a pasta. - Como foi que a abriu? Tem uma chave? Claro que deve ter. Abra a pasta. Lady Hilda tirou uma chave do seio. Abriu a pasta. Estava cheia de documentos. Holmes enfiou o envelope no meio deles. A pasta foi fechada e levada de novo para o quarto. - Agora estamos prontos para receber seu marido - disse Holmes. - Ainda nos sobram dez minutos. Estou indo longe demais para protegê-la, Lady Hilda. Em troca, quero que me conte francamente o significado de tudo isso. - Sr. Holmes, vou contar-lhe tudo! - exclamou a infeliz senhora. - Oh, sr. Holmes, preferia perder a mão direita a dar a meu marido um momento de desgosto. Não há, em Londres, mulher que tenha maior amor ao marido, e, se ele soubesse o que fiz, o que fui obrigada a fazer, nunca me perdoaria. Coloca tão alto sua honra, que não perdoaria um deslize em outra pessoa. Ajude-me, sr. Holmes! Minha felicidade e a dele estão em jogo! - Depressa, minha senhora, o tempo voa. - Foi uma carta minha, sr. Holmes, uma carta indiscreta, antes de meu casamento. Carta de menina tola, impulsiva. Não havia mal, mas poderia causar má impressão. Se ele a lesse, perderia para sempre a confiança em mim. Há anos que escrevi essa carta. Pensei que estivesse tudo esquecido. Mas fiquei sabendo que estava nas mãos daquele homem, Lucas, e que ele estava disposto a apresentá-la a meu marido. Pedi-lhe misericórdia. Ele respondeu que me
daria a carta se eu lhe entregasse certo documento que se encontrava na pasta de meu marido. Ele tinha um espião, no escritório, que lhe falou na existência do documento. Ponha-se na minha posição, sr. Holmes! Que podia eu fazer? - Abrir-se com seu marido. - Não podia, não podia, sr. Holmes! De um lado, a ruína certa; do outro, por terrível que parecesse tirar um documento a meu marido, em matéria de política eu não podia medir as consequências, ao passo que, numa questão de amor, tudo estava claro ante meus olhos. Concordei, sr. Holmes! Tirei um molde da fechadura, e Lucas mandou fazer a chave. Abri a pasta, tirei o documento e levei-o à Godolphin Street. - Que aconteceu, então? - Bati à porta, como combinado. Lucas abriu-a. Segui-o até a sala, deixando a porta da rua aberta, por medo de ficar a sós com ele. Lembro-me de ter visto uma mulher na calçada quando entrei. Nosso negócio foi rápido. Ele entregoume a carta, e eu lhe dei o documento. Nesse momento, ouvimos um ruído no corredor. Lucas virou rapidamente o tapete e enfiou o documento num esconderijo, cobrindo-o de novo com o tapete. “O que aconteceu em seguida parece um pesadelo. Vi um rosto de mulher, moreno, desesperado, e uma voz gritou em francês: 'Minha espera não foi em vão. Finalmente encontro você com ela!' Houve luta. Vi-o com uma cadeira nas mãos, ela com uma faca. Saí dali correndo e, no dia seguinte, li a notícia do crime nos jornais. Senti-me feliz, naquela noite, pois tinha minha carta, mas não sabia o que o futuro me reservava. “Na manhã seguinte, compreendi que trocara um aborrecimento por outro. O desespero de meu marido, ao perceber que o documento desaparecera, cortou-me o coração. Mal pude conter o ímpeto de me ajoelhar a seus pés e confessar-lhe tudo. Mas isso seria confessar também o passado. Fui então procurá-lo, sr. Holmes, para que compreendesse a extensão de meu ato. Depois disso, não pensei em outra coisa a não ser em recuperar o documento. Devia estar no mesmo lugar, pois o tapete cobria-o, quando a mulher chegara. Se ela não tivesse aparecido, eu nunca saberia do esconderijo. Como eu poderia entrar lá? Durante dois dias, observei a casa, mas a porta nunca estava aberta. A noite passada fiz a última tentativa. O senhor sabe o que aconteceu. Trouxe o documento e pensei em destruí-lo, pois não via meio de devolvê-lo sem confessar tudo a meu marido. Céus, ouço passos na escada!” O sr. Hope entrou excitadamente na sala.
- Tem alguma novidade, sr. Holmes? - Tenho esperanças. - Ah, graças a Deus! - exclamou ele, radiante. - O primeiro-ministro vem almoçar comigo. Posso contar-lhe? Ele tem nervos de aço, mas sei que mal dormiu desde aquele dia fatídico. Jacobs, quer pedir ao ministro que venha até aqui? Quanto a você, minha querida, desculpe-nos, mas trata-se de assunto político. Iremos a seu encontro na sala de jantar, daqui a alguns minutos. O primeiro-ministro estava calmo, mas, pelo brilho dos olhos e pela contração das mãos magras, percebi que estava tão excitado como seu colega. - Tem mesmo alguma novidade, sr. Holmes? - perguntou ele. - Negativa, por enquanto - disse Holmes. - Investiguei em todos os lugares prováveis, e tenho certeza de que não há perigo de ter sido roubada. - Mas isso não basta, sr. Holmes. Não podemos viver para sempre sobre um vulcão. Precisamos de algo concreto. - Tenho esperanças disso. É por esse motivo que estou aqui. Quanto mais penso no caso, mais me convenço de que a carta não saiu desta casa. - Sr. Holmes! - Se tivesse saído, já teria sido divulgada. - Mas por que a teriam roubado, se quisessem conservá-la aqui? - Não estou convencido de que a tenham roubado. - Então, como poderia ter saído da pasta? - Estou convencido de que não chegou a sair da pasta. - Sr. Holmes, a brincadeira é inoportuna. Garanto que não estava na pasta. - O senhor examinou a pasta depois de terça-feira de manhã? - Não; não era necessário. - É possível que se tenha enganado, na precipitação da busca. - Impossível. - Pois estou convencido disso - declarou Holmes. - Não seria a primeira vez que uma coisa dessas acontece. Suponho que os outros documentos ainda se encontrem lá. É possível que esteja no meio de um deles. - Estava em cima. - Alguém pode ter sacudido a pasta, deslocando-o. - Não, não, tirei tudo da pasta. - Mas é fácil verificar, Hope! - exclamou o primeiro-ministro. - Mande buscar a pasta. Hope tocou a campainha e o mordomo apareceu.
- Jacobs, traga minha pasta. É pura perda de tempo, Holmes, mas, se insiste... Obrigado, Jacobs, ponha a pasta aí. A chave está sempre na corrente do meu relógio. Aqui temos os documentos. Carta de Lorde Merrow, relatório de Sir Charles Hardy, memorando de Belgrado, nota russo-germânica sobre o imposto de trigo, carta de Madri, nota de Lorde Flowers... Santo Deus, o que é isto? Lorde Beilinger! Lorde Beilinger! O primeiro-ministro arrancou das mãos do outro o envelope azul. - Sim, sim, é a carta, intacta. Hope, meus parabéns! - Muito obrigado! Muito obrigado! Que peso me saiu do coração! Mas é inconcebível! Impossível! Sr. Holmes, o senhor é um mágico, um feiticeiro! Como soube que estava lá? - Porque sabia que não estava em outro lugar. - Mal posso acreditar em meus próprios olhos! - Hope foi correndo para a porta à procura da mulher. - Hilda, Hilda! Preciso lhe contar, Hilda! Ouvimos ainda a sua voz, na escada. O primeiro-ministro olhou para Holmes com um brilho nos olhos. - Vamos lá, sr. Holmes, o senhor ainda não disse tudo. Como a carta foi parar dentro da pasta? Holmes sorriu ante a expressão perscrutadora daqueles olhos profundos. - Também temos nossos segredos diplomáticos - respondeu. E, pegando o chapéu, dirigiu-se para a porta.
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