Sherlock Holmes em: O cliente ilustre Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
"Agora já não pode fazer mal", disse Sherlock Holmes à guisa de comentário, quando, pela décima vez em outros tantos anos, eu lhe pedi licença para divulgar a seguinte narrativa. Foi assim que, afinal, obtive permissão para publicar aquilo que, sob certos aspectos, foi o momento supremo da carreira de meu amigo. Tanto Holmes como eu tínhamos um fraco pelo banho turco. Era na aprazível languidez da sala quente, tirando umas baforadas, que eu sempre o encontrava menos reticente e mais humano do que em qualquer outra parte. No andar superior do estabelecimento da Northumberland Avenue, há um recanto isolado onde ficam duas camas, uma ao lado da outra, sobre as quais estávamos deitados no dia 3 de setembro de 1902, data que marca o início da presente narrativa. Eu tinha lhe perguntado se havia alguma novidade, e em resposta ele tirara o braço fino, comprido e nervoso de sob o lençol que o cobria e extraíra um envelope do bolso interno do casaco, pendurado ao seu lado. — Talvez seja um impertinente qualquer, um tolo que pretende se fazer de importante, mas pode ser também um caso de vida ou morte — disse ele, passandome o bilhete. — Sei apenas o que está contido nestas linhas. Vinha do Cariton Club e trazia a data da noite anterior. Eis o que li: "Sir James Damery apresenta seus cumprimentos ao Sr. Sherlock Holmes, a quem fará uma visita amanhã, às 4.30. Pede licença para dizer que o assunto sobre o qual deseja consultar o Sr. Holmes é muito delicado e também muito importante. Confia, pois, em que o Sr. Holmes faça o possível por lhe conceder esta entrevista e que a confirme telefonando para o Carlton Club". — Não preciso dizer que a confirmei, Watson — disse Holmes, quando lhe devolvi o papel. — Sabe alguma coisa a respeito desse Damery? — Sei apenas que é muito conhecido na sociedade. — Pois então vou lhe dar algumas informações. Ele tem fama de saber tratar de assuntos delicados, que não devem ser publicados pela imprensa. Lembrese das negociações dele com Sir George Lewis sobre o caso Hammerford Will. É um homem que conhece o mundo e que tem queda para a diplomacia. Devo, portanto, esperar que não se trate de uma pista falsa e que ele de fato precise
de nossa assistência. — Nossa? — Se quiser ter a bondade de me assistir, Watson. — Com muita honra. — Então já sabe a hora: quatro e meia. Até lá, vamos nos esquecer do assunto. Naquela época, meus aposentos ficavam na Queen Ane Street, mas eu já me encontrava na Baker Street antes da hora aprazada. Precisamente às quatro e meia, o coronel Sir James Damery fez-se anunciar. É quase desnecessário descrevê-lo, pois muitos ainda se lembrarão daquele homem honrado, bonachão, de elevada estatura, rosto largo e escanhoado, e, sobretudo, de sua voz suave e agradável. A franqueza brilhava nos seus olhos cinzentos de irlandês, e o bom humor patenteava-se no sorriso dos lábios em constante movimento. Sua cartola reluzente, a sobrecasaca preta, cada pormenor, em suma, de seu traje, desde o alfinete de pérola da gravata de cetim preto até as polainas azul-claras sobre os sapatos de verniz, denotava o meticuloso apuro com que se vestia e que o tornou famoso. O imenso e importante aristocrata dominava a nossa saleta. — É claro que eu contava encontrar aqui o Dr. Watson — comentou ele com uma mesura. — Sua colaboração pode ser necessária, porquanto desta vez vamos tratar com um homem, Sr. Holmes, para quem a violência é coisa familiar e que, literalmente, não se deterá diante de nada. Eu diria que não há na Europa homem mais perigoso. — Tenho tido vários oponentes a quem tem sido aplicado esse lisonjeiro epíteto — disse Holmes, com um sorriso. — O senhor não fuma? Então não levará a mal que eu acenda o meu cachimbo. Se o seu homem é mais perigoso que o finado professor Moriarty ou que o coronel Sebastian Moran, que ainda vive, é realmente um adversário de respeito. Pode me dizer o nome dele? — Já ouviu falar no barão Gruner? — O senhor se refere ao assassino austríaco? O coronel Damery, dando uma risada, ergueu as mãos cobertas com luvas de pelica. — O senhor é insuperável, Sr. Holmes! Maravilhoso! Com que então já o tem na conta de assassino? — É meu ofício acompanhar os
pormenores do crime no continente. Quem quer que haja lido o que aconteceu em Praga não pode ter dúvidas quanto à culpabilidade do homem. O que o salvou foi unicamente um pormenor legal, de natureza técnica, e a morte suspeita de uma testemunha. Estou tão certo de que ele matou a esposa quando se deu o chamado "acidente" no desfiladeiro de Splugen como se o tivesse visto cometer o crime. Soube também que Gruner tinha vindo para a Inglaterra, e tive um pressentimento de que, mais cedo ou mais tarde, ele me daria algum trabalho. Então, qual foi a última do barão Gruner? Presumo que não tenha voltado ao cartaz a velha tragédia... — Não, é coisa mais séria. Vingar o crime é importante, mas preveni-lo ainda o é mais. É uma coisa terrível, Sr. Holmes, ver uma grande tragédia, uma situação atroz, em perspectiva iminente, compreender claramente que desfecho terá, e contudo não poder dar um passo para impedi-la. Poderá um ser humano ver-se colocado em posição mais difícil? — Talvez não. — Então o senhor partilhará os sentimentos do cliente cujos interesses estou advogando. — Eu não tinha percebido que o senhor era apenas um intermediário. Quem é o interessado direto? — Sr. Holmes, rogo-lhe que não insista nessa pergunta. É de grande importância que eu possa lhe assegurar que seu honrado nome não figurará de maneira alguma neste assunto. As razões dessa pessoa são, até o mais alto grau, honrosas e cavalheirescas, mas ela prefere permanecer incógnita. Não preciso dizer que os honorários do senhor estão garantidos e que terá carta branca no assunto. Não é certo que o verdadeiro nome de seu cliente é de mínima importância? — Queira desculpar-me — disse Holmes. — Estou habituado a lidar com casos misteriosos, mas mistério demais complica tudo. Receio, Sir James, ter de recusar servi-lo. Nosso visitante ficou visivelmente perturbado. Seu rosto grande e impressionável revelou emoção e desapontamento. — O senhor não pode avaliar, Sr. Holmes, o resultado de sua recusa — disse ele. — Vejo-me diante de um dilema muito sério, porquanto tenho certeza de que o senhor se orgulharia de poder se encarregar do caso se eu pudesse lhe apresentar os fatos, e contudo há uma promessa que me impede de revelar tudo. Posso ao menos expor-lhe o que me é permitido? — Perfeitamente, com a ressalva, porém, de que não me comprometo a coisa alguma. — De acordo. Em primeiro lugar, o senhor já ouviu falar no general de Merville?
— O que se tornou famoso no caso Khiber? Sim, ouvi falar. — Ele tem uma filha, Violet de Merville, jovem, rica, formosa, uma criatura prendada em todos os sentidos. É essa filha, uma moça adorável e inocente, que procuramos libertar das garras de um demônio. — Terá o barão Gruner alguma influência sobre ela? — A mais forte das influências que um homem pode exercer sobre uma mulher... a influência do amor. O tal tipo, como o senhor talvez tenha ouvido falar, é extraordinariamente simpático, possui maneiras fascinantes, voz agradável, e aquele ar romanesco e misterioso que tanto seduz uma mulher. Dizem que ele dispõe do sexo frágil a seu bel-prazer, e que tira enorme partido dessa prerrogativa. — Mas como foi que tal homem conheceu uma mulher da posição da Srta. Violei de Merville? — Foi numa viagem de iate pelo Mediterrâneo. Os componentes do grupo, embora seleto, pagaram cada qual a sua passagem. É claro que os promotores da excursão só muito tarde vieram a saber que espécie de homem era o barão. O canalha insinuou-se no espírito da jovem, e com tal arte que a conquistou inteiramente. Dizer que ela o ama é dizer pouco. A Srta. Violei apaixonou-se loucamente por ele, mais parecendo vítima de uma obsessão. Além dele, nada mais existe para ela no mundo. Não admite que se diga uma palavra contra Gruner. Tudo tem sido tentado para curá-la de sua loucura, mas em vão. Em suma, ela pretende desposá-lo no próximo mês. Como Violet é maior e tem uma vontade de ferro, é quase impossível detê-la. — Será que ela ignora o episódio da Áustria? — A astuta raposa contou-lhe os casos mais escabrosos de sua vida passada, mas de tal modo que se transforma sempre em vítima, em mártir. Ela aceita cegamente a versão que ele oferece dos fatos, e não quer saber de nenhuma outra. — Que absurdo! Mas o certo é que o senhor, por inadvertência, deixou escapar o nome de seu cliente, não é verdade? É evidente o general de Merville. Nosso visitante mexeu-se, inquieto, na cadeira. — Eu podia muito bem enganá-lo, concordando com o que o senhor diz, Sr. Holmes, mas não seria verdade. De Merville é hoje um homem alquebrado. O bravo militar ficou profundamente abatido com esse incidente. Perdeu a energia que jamais lhe faltou no campo de batalha e tornou-se um velho fraco, medroso, completamente incapaz de enfrentar um patife tão atilado e robusto como o tal austríaco. Todavia, meu cliente é um velho amigo, um homem que durante muitos anos conheceu o general na intimidade e acabou por tomar um interesse paternal pela pequena, desde o tempo em que ela usava saia curta. Não admite a idéia de ver se consumar essa catástrofe sem fazer alguma
tentativa de impedi-la. A Scotland Yard nada pode fazer nesse ponto. Foi meu próprio cliente que sugeriu que se pedisse a sua ajuda, mas, conforme já disse, com a cláusula expressa de que ele não fosse pessoalmente envolvido no assunto. Não duvido, Sr. Holmes, de que, com sua grande perspicácia, o senhor facilmente possa, seguindo-me o rastro, descobrir a identidade de meu... digamos, constituinte, mas devo pedir-lhe, por quem é, que se abstenha de fazê-lo. Por favor, deixe-o ficar incógnito. Holmes sorriu enigmaticamente. — Não me é difícil prometê-lo — disse. — Posso acrescentar que seu problema me interessa e que estou disposto a tratar dele. Como poderei me comunicar com o senhor? — Posso ser encontrado no Carlton Club. Mas, em caso de necessidade, pode utilizar um número telefônico particular: XX. 31. Holmes anotou-o e sentou-se, ainda sorrindo, com o bloco aberto sobre o joelho. — Por favor, qual o endereço atual do barão? — Vernon Lodge, perto de Kingston. É uma casa grande. Ele foi feliz em certas especulações um tanto suspeitas, e é hoje um homem rico, o que o torna, como é natural, um antagonista ainda mais temível. — Presentemente está aqui? — Sim. — Além do que o senhor já me disse, pode me dar mais algumas informações acerca do homem? — Tem gostos de ricaço. Adora cavalos. Há algum tempo, jogava pólo em Hurlingham, mas depois, com a divulgação do escândalo de Praga, teve que desistir. Coleciona livros e quadros. Possui considerável gosto artístico. É, creio eu, reconhecida autoridade em cerâmica chinesa, tendo escrito um livro sobre o assunto. — Um espírito complexo — comentou Holmes. — Todos os grandes criminosos são assim. Meu velho amigo Charles Peace era um violinista excepcional. Wainwright era um artista não menos dotado. Poderia citar outros. Bem, Sir James, o senhor pode informar seu cliente de que estarei com o espírito voltado para o barão Gruner. Mais não posso dizer. Disponho de algumas fontes de informação próprias e ouso dizer que podemos encontrar meios de encaminhar o assunto. Depois de nosso visitante se retirar, Holmes de tal modo se embebeu em seus próprios pensamentos que supus que se esquecera de minha presença ali. Mas, afinal, voltou a si com a alacridade habitual.
— Então, Watson, que lhe parece? — perguntou. — Penso que você devia entrar em contato com a própria jovem. — Meu caro Watson, se o pobre pai, velho e alquebra- do, não consegue demovê-la, como o conseguirei eu, que sou um estranho? Todavia, se tudo o mais falhar, sua sugestão poderá ser útil. Acho, porém, que devemos começar por um setor diferente. Tenho a impressão de que Shinwell Johnson pode nos prestar auxílio. Ainda não tive ocasião de mencionar Shinwell Johnson nestas memórias porque raramente minhas histórias são extraídas da fase mais recente da carreira de meu amigo. Durante os primeiros anos do século, ele se tornou um valioso auxiliar. Johnson, sinto dizê-lo, criou fama primeiro como indivíduo perigoso, e duas vezes cumpriu pena na prisão de Parkhurst. Finalmente, arrependeu-se e tornou-se aliado de Holmes, trabalhando como seu agente nos piores antros de crime de Londres e colhendo informações que às vezes tinham importância vital. Se Johnson fosse um espião da polícia, seria logo descoberto e evitado; porém, como tratava de casos que não chegavam diretamente aos tribunais, suas atividades nunca eram percebidas pelos companheiros. Com o prestígio de ter sido sentenciado duas vezes, tinha entrada em qualquer clube noturno, em qualquer albergue, em todas as casas de jogo da cidade, e sua observação rápida e seu cérebro ativo tornavam-no o agente ideal para obter informações. Era a esse homem que Sherlock Holmes tencionava recorrer agora. Não me foi possível acompanhar de perto as providências imediatas tomadas pelo meu amigo, porque deveres profissionais me chamaram a outro lugar, mas, por combinação prévia, naquela noite encontrei-me com ele no Simpson's, onde, sentado a uma mesinha perto da janela da frente e olhando lá embaixo o movimento intenso que ia pelo Strand, contou-me algo do que tinha se passado. — Johnson está de sobreaviso — disse Holmes. — É muito possível que apanhe alguma coisa no monturo que freqüenta, porque é ali, entre as raízes negras do crime, que haveremos de surpreender os segredos do tal barão. — Mas, se a jovem dama não quer aceitar o que já é conhecido, como poderá demovê-la de seu intento qualquer descoberta que você venha a fazer? — Quem sabe, Watson? O coração e a mente de uma mulher são um enigma para nós, homens. Um homicídio pode ser perdoado ou explicado, e, no entanto, às vezes um crime menor é como uma ferida que fica sangrando. O barão Gruner me disse... — Disse a você? — Oh, é claro, esqueci que não lhe contei meus planos! Pois bem, Watson, gosto de entrar em contato direto com o meu homem. Gosto de observá-lo bem
e de verificar por mim mesmo o material de que é feito. Depois de ter dado instruções a Johnson, tomei um carro que me levou a Kingston e encontrei o barão de muito bom humor. — Ele o reconheceu? — Quanto a isso, não houve dificuldade, simplesmente porque lhe mandei meu cartão de visitas. Ele é um excelente adversário, frio como o gelo, de voz sedosa, suave como certos elegantes clientes seus, e venenoso como uma cobra. Tem linhagem, é um verdadeiro aristocrata do crime, com uns laivos de burguês e toda a crueldade do homem sem escrúpulos. Sim, estou feliz por terem feito voltar a minha atenção para o barão Adelbert Gruner. — Diz que o achou afável? — Sim. A afabilidade do gato que sonha com ratinhos apetitosos. Há cortesias mais mortíferas que a violência dos réprobos. O cumprimento foi característico. "— Eu esperava sua visita mais cedo ou mais tarde, Sr. Holmes — disse. — O senhor, sem dúvida, foi contratado pelo general de Merville para tentar frustrar meu casamento com sua filha Violei. É ou não verdade? "Concordei. "— O senhor, meu caro amigo — prosseguiu ele —, vai arriscar sua merecida reputação. Este não é um caso em que o senhor tenha possibilidade de êxito. Perde seu tempo, e ainda por cima corre perigo. Permita-me que o aconselhe encarecidamente a levantar o cerco o quanto antes. "— É curioso — respondi —, mas era exatamente esse o conselho que eu pretendia lhe dar. Sua inteligência merece o meu respeito, barão, e o pouco que conheço de sua personalidade não diminuiu esse respeito. Falemos de homem para homem. Não é intuito de ninguém molestá-lo revolvendo as cinzas do seu passado. O que passou passou, e o senhor agora está como quer, mas se insistir nesse casamento, provocará uma chusma de inimigos poderosos que não o deixarão em paz até obrigá-lo a sair deste país. Acha que vale a pena? Seria certamente mais prudente que o senhor deixasse a jovem em paz. Não seria nada agradável para o senhor que ela viesse a saber do seu passado. "O barão tem sob o nariz umas pontinhas de pelo crescidas, que parecem as curtas antenas de um inseto. Elas vibravam de prazer enquanto ele ouvia, e, finalmente, ele não conseguiu abafar uma risadinha. "— Desculpe eu rir, Sr. Holmes — disse ele —, mas é realmente engraçado o senhor querer começar o jogo sem cartas na mão. Creio que ninguém o faria melhor que o senhor, mas em tais condições é de dar dó. Desista, Sr. Holmes, pois não tem a mínima probabilidade de êxito. "— É o que lhe parece.
"— É o que sei. Deixe-me explicar-lhe bem o assunto, pois minha mão é tão forte que não me custa mostrá-la. Tive a felicidade de conquistar todo o afeio daquela jovem. Esse afeto me foi dado apesar de eu lhe haver referido com muita clareza todos os infelizes incidentes de minha vida passada. Disse-lhe também que certas pessoas mal-intencionadas e intrigantes (creio que o senhor não terá dificuldade em reconhecer-se a si próprio) iriam lhe contar essas coisas, e preveni-a de como devia tratar tais pessoas. Já ouviu falar em sugestão pós-hipnótica, sr. Holmes? Pois verá o efeito disso, porque um homem de personalidade pode usar o hipnotismo sem lançar mão de passes e de quejandas tolices. Dessa forma, Violei estará pronta para recebê-los, pois se submete facilmente à vontade do pai, menos no nosso assunto. "Bem, Watson, pareceu-me que não havia mais nada a dizer, por isso despedime com a mais fria dignidade de que fui capaz. Porém, quando estava com a mão na maçaneta da porta, ele me deteve. "— A propósito, Sr. Holmes — disse —, o senhor conheceu Le Brun, o agente francês? "— Sim, conheci — respondi. "— Sabe o que lhe aconteceu? "— Ouvi dizer que foi agredido por alguns apaches no bairro de Montmartre e ficou marcado para toda a vida. "— Exato, Sr. Holmes. Por uma curiosa coincidência, ele resolvera se intrometer nos meus negócios apenas uma semana antes. Não faça tal coisa, sr. Holmes, que pode se arrepender. Várias pessoas constataram isso por experiência própria. Minha última recomendação é esta: siga o seu caminho e deixe-me seguir o meu. Até outra vez. "Aí está, Watson. Você tem todos os dados." — O sujeito parece perigoso. — Perigosíssimo. Do fanfarrão eu não faço caso, mas ele é daqueles homens que fazem mais do que ameaçar. — Você vai realmente intervir no caso? Que mal faz que ele case com a moça? — Considerando que Gruner, sem sombra de dúvida, assassinou sua última mulher, acho que faz muito mal que se case com Violet. Além disso, e o
cliente? Bem, não precisamos discutir o assunto. Quando você acabar de beber seu café, seria bom que viesse comigo a casa, pois o risonho Shinwell deve estar lá com suas informações. Lá o encontramos efetivamente. Johnson era um homem imenso, rude, corado, escorbútico, de olhos negros e vivos, único sinal exterior do seu espírito atilado. Parece que mergulhara no seu elemento. A seu lado, no canapé, estava uma regenerada que trouxera, sob a aparência de uma mulher nova, esbelta e ardente, de rosto pálido, nervoso e juvenil, e contudo tão estragada pelo vício e pela dor que era visível a marca que os terríveis anos de boêmia lhe haviam deixado. — Esta é a Srta. Witty Winter — disse Shinwell Johnson, fazendo um vago gesto de apresentação com a mão gorda. — O que ela não souber... bem, deixe-a falar por si. Apanhei-a logo, Sr. Holmes, uma hora depois de ter recebido seu recado. — Sou fácil de encontrar — disse a mulher. — Neste inferno aqui de Londres acham-me a qualquer hora. Porky Shinwell tem meu endereço. Porky e eu somos velhos camaradas. Mas, com os diabos! Há um outro que devia estar num inferno pior que o nosso, se houvesse justiça no mundo. É o homem com o qual o senhor quer ajustar contas, Sr. Holmes. Sherlock sorriu. — Pelo que vejo, podemos contar com sua boa vontade, Srta. Winter. — Se eu puder ajudar a mandá-lo para o lugar que ele merece, conte comigo enquanto me restar um sopro de vida — disse a nossa visitante com feroz energia. Notava-se um ódio intenso em seu rosto branco e imóvel e em seus olhos chamejantes, um ódio tal que dificilmente se pode ver numa criatura humana. — Sr. Holmes, não é preciso que o senhor remexa o meu passado. De que adiantaria? O que sou, devo-o a Adelbert Gruner. Se eu pudesse aniquilá-lo! — Fazia gestos desvairados, socando o ar com o punho fechado. — Oh, se eu pudesse atirá-lo no abismo a que ele arrastou tanta gente! — A senhorita sabe em que pé está o caso? — Porky Shinwell falou-me. O patife anda atrás de outra pobre tola, e desta vez pretende se casar com ela. O senhor quer ver se o impede. É claro que, conhecendo aquele demônio como conhece, deseja evitar que qualquer moça decente e que esteja em seu juízo perfeito una o seu destino ao dele. — Ela perdeu o juízo. Está loucamente apaixonada. Apesar de lhe terem contado toda a sua história, não dá importância a nada. — Falaram-lhe no assassinato? — Falaram.
— Meu Deus, que nervos ela deve ter! — Diz que tudo é calúnia. — O senhor não poderia pôr as provas diante de seus olhos? — Quer ajudar-nos a fazê-lo? — Não sou eu mesma uma prova? Se aparecesse diante dela e lhe contasse como ele me tratou... — Seria capaz de o fazer? — Se seria! — Valia a pena tentar. Mas o homem lhe fez uma confissão quase completa, e a jovem perdoou-o, e, pelo que ouvi dizer, ela não quer que se toque novamente no assunto. — Para mim, Gruner não contou tudo — volveu a Srta. Winter. — Eu soube mais ou menos de um ou dois crimes além daquele que teve tanta repercussão. Ele me falava de alguém com seu jeito aveludado, depois me fitava com firmeza e dizia: "O sujeito morre no prazo de um mês". E não era apenas bravata. Mas eu não dava grande importância à coisa. O senhor compreende, naquela época eu o amava. Guardei para mim o que ele fizera, absolvendo-o de tudo, tal qual essa louquinha de agora. Apenas uma coisa me abalou. Se não fosse aquela língua peçonhenta e mentirosa que diz as coisas e imediatamente as abranda, eu o teria deixado naquela mesma noite. É um livro que ele tem... um livro de couro marrom, com um fecho, e as armas dele em ouro na capa. Creio que naquela noite estava um pouco bêbado, do contrário não o mostraria a mim. — E de que trata o livro? — Eu lhe digo, Sr. Holmes. Esse homem coleciona mulheres, e vangloria-se da sua coleção como alguns homens de suas borboletas. Está tudo no tal livro. Instantâneos fotográficos, nomes, pormenores, tudo o que se refere a elas. Trata-se de um livro imundo... um livro que nenhum homem, nem mesmo o mais depravado, seria capaz de escrever. No entanto, Adelbert Gruner fez esse livro. "Tudo gente que eu arruinei." Ele podia ter deixado isso de lado, se quisesse. Afinal, isso pouco adianta, porque o livro não lhe serviria, e, ainda que servisse, o senhor não poderia obtê-lo. — Onde está esse livro? — Como poderei lhe dizer onde está agora? Há mais de um ano que deixei Adelbert. Sei onde ele o guardava então. Como Adelbert é um indivíduo muito metódico e cuidadoso, é possível que o livro ainda esteja no escaninho da velha secretária do gabinete interno. O senhor conhece a casa de Gruner?
— Estive no escritório — disse Holmes. — Deveras? Se a coisa só começou hoje de manha, devo reconhecer que o senhor não perde tempo. Tomara que o caro Adelbert desta vez encontre um homem pela frente. O gabinete externo é onde fica a louça chinesa, um enorme armário de vidro entre as janelas. E atrás da escrivaninha fica a porta que abre para o gabinete interno, pequeno quarto onde ele guarda papéis e objetos. — Ele não tem medo de ladrões. — Adelbert não é covarde. Seu pior inimigo não poderia acusá-lo disso. Sabe se cercar de garantias. À noite, funciona uma campainha de alarme. Além disso, o que há ali que possa tentar um ladrão? Só se for a louça de fantasia... — O que vale isso? — disse Shinwell Johnson, no tom decidido do perito. — Não é necessário grade para proteger coisas assim, que não se pode nem fundir nem vender. — É exato — confirmou Holmes. — Então, Srta. Winter, se puder aparecer aqui amanhã, às cinco horas da tarde, irei refletindo, nesse meio tempo, se é viável sua sugestão de se combinar uma visita à jovem. Fico-lhe gratíssimo por sua cooperação. Nem preciso lhe dizer que meus clientes não deixarão de considerá-la com generosidade... — Nada disso, Sr. Holmes — atalhou a jovem mulher. — Não é o dinheiro que me interessa. Se eu vir esse homem na lama, darei por bem pago o meu trabalho. Quero vê-lo na lama e sentir meu pé na sua cara maldita. Eis o meu preço. Estarei com o senhor amanhã ou em qualquer outro dia, enquanto o senhor andar no encalço dele. Porky pode lhe dizer onde me encontrar. Só tornei a ver Holmes no dia seguinte à noite, quando mais uma vez jantamos no nosso restaurante do Strand. Perguntei-lhe como tinha sido a entrevista. Ele encolheu os ombros e depois contou a história que eu reproduzirei a seguir. Seu relato, ríspido e seco, necessita de alguns retoques que o enquadrem suavemente no âmbito da vida real. — Não houve dificuldade alguma a respeito do encontro — disse Holmes —, pois a jovem se vangloria de ostentar obediência filial quase abjeta em todas as coisas secundárias, como que tentando compensar sua flagrante desobediência na questão do noivado. O general me telefonou dizendo que estava tudo combinado, e a exuberante srta. Winter apareceu de acordo com o planejado, de modo que às cinco e meia um carro nos deixou em frente do número 104 da Berkeley Square, onde reside, o velho soldado... um desses casarões londrinos horrendamente cinzentos, que, em matéria de imponência, põem qualquer igreja no chinelo. Um lacaio introduziu-nos numa vasta sala de visitas, ornada de cortinas amarelas, e lá estava a dama à nossa espera, sisuda, pálida, reservada, inflexível e tão alheia a tudo como uma imagem de neve sobre uma montanha. "Não sei como descrevê-la, Watson. Talvez você venha a conhecê-la antes
de deslindarmos este caso, e poderá então utilizar seu dom da palavra. É bonita, mas de uma beleza etérea e mística, a beleza de certas fanáticas cujos pensamentos estão fixos nas alturas. Tenho visto esses semblantes angelicais nos quadros dos velhos mestres da Idade Média. Como é que um homem bestial pode deitar as garras num ser tão ultraterreno é coisa que não posso conceber. Como você sabe, os extremos tocam-se, o espiritual chama o animal, o homem da caverna atrai o anjo. Você ainda não viu um caso pior do que este. "Ela sabia certamente o motivo de nossa visita. Com a máxima rapidez, o patife lhe envenenara o espírito contra nós. A presença da Srta. Winter não deixou de lhe causar espanto, creio eu, mas com um gesto ela nos indicou as respectivas cadeiras, como uma reverenda abadessa recebendo dois mendigos. Se você, meu caro Watson, desejar receber aulas de presunção, procure a Srta. Violei de Merville. "— Bem, cavalheiro — disse ela, numa voz como a do vento que vem de um iceberg —, seu nome me é familiar. O senhor veio aqui, segundo creio, para difamar meu noivo, o barão Gruner. Foi somente por deferência para com meu pai que concordei em recebê-lo, mas aviso-o desde já de que tudo quanto o senhor possa dizer não causará a mínima impressão em meu espírito. "Tive pena dela, Watson. Naquele momento, pensei nela como pensaria numa filha minha. Em geral, não sou eloqüente. Sirvo-me da cabeça, não do coração. Mas realmente instei com ela com todo o calor das palavras que pude encontrar em mim. Descrevi-lhe a situação terrível da mulher que só vem a conhecer o caráter de um homem depois de ser sua esposa, da mulher que tem de se submeter às carícias das mãos de um sanguinário e aos lábios de um libertino. Falei-lhe da vergonha, do medo, da agonia, do desprezo de tal estado. Minhas palavras candentes não lograram produzir naquelas faces ebúrneas o mais leve rubor, nem um vislumbre de emoção naqueles olhos abstratos. Lembrei-me do que o canalha tinha dito acerca de uma influência pós-hipnótica. Podia-se até crer que ela estivesse vivendo, longe, algum sonho extático. E, contudo, em suas respostas, nada havia de impreciso. "— Ouvi-o com toda a paciência, Sr. Holmes — disse ela. — O efeito de suas palavras em meu espírito é tal qual se previa. Não ignoro que Adelbert, meu noivo, tenha tido uma existência tempestuosa, durante a qual incorreu no ódio mais encarniçado e nas mais injustas calúnias. O senhor é apenas o último de uma série de pessoas que vêm aqui falar mal dele. É possível que sua intenção seja boa, embora eu saiba que o senhor é um agente pago e que estaria disposto a agir tanto a favor do barão como contra ele. Mas, seja como for, desejo que o senhor saiba de uma vez por todas que eu o amo e que ele me ama, e que a opinião do resto do mundo vale tanto para mim como o chilrear desses pássaros aí fora, no beiral do telhado. Se sua natureza nobre alguma vez sucumbiu por um instante, pode ser que eu tenha sido especialmente chamada para reerguê-la ao seu verdadeiro e elevado nível. Não sei — e, dizendo isso, volveu os olhos para minha companheira — quem é esta jovem senhora.
"Eu ia responder quando a jovem irrompeu como um turbilhão. Se você já viu a chama diante de gelo, tem uma imagem perfeita dessas duas mulheres, uma frente à outra. "— Vou lhe dizer quem sou! — gritou ela, pulando da cadeira, com a boca torcida pela emoção. — Sou a última amante de Adelbert Gruner. Sou uma entre cem que ele seduziu, de que usou e abusou, que arruinou e atirou no lixo, como fará com você. E o lixo reservado para você bem pode ser um túmulo, e isso talvez seja melhor. Digo-lhe, sua tola: se se casar com esse homem, ele será a sua morte. Pode ser que lhe parta o coração ou que lhe parta o pescoço, mas de um modo ou de outro ele vai liquidá-la. Se assim lhe falo, não é por amor a você. Pouco se me áá que viva ou que morra. É pelo ódio que voto a ele, é para contrariá-lo, para lhe devolver o que ele fez a mim. Mas tudo dá na mesma, e não é preciso olhar para mim dessa maneira, minha fina dama, pois talvez, antes que o pesadelo acabe, você já esteja pior do que eu. "— Eu preferiria não discutir tais assuntos — disse a Srta. de Merville com frieza. — Deixe-me dizer de uma vez por todas que sei de três episódios da vida de meu noivo nos quais ele se viu envolvido com mulheres intrigantes, e que estou certa do seu sincero arrependimento por qualquer mal que possa ter praticado. "— Três episódios? — vociferou minha companheira. — Que idiota! Que grande idiota! "— Sr. Holmes, rogo-lhe que dê por encerrada esta entrevista — disse a voz de gelo. — Ao recebê-lo, obedeci ao desejo de meu pai, mas não sou obrigada a ouvir os despropósitos dessa mulher. "Rogando uma praga, a Srta. Winter arremessou-se para a frente, e, se eu não a tivesse agarrado pelo pulso, cravaria as unhas no cabelo da jovem louca. Arrastei-a para a porta e dei-me por feliz de poder enfiá-la no carro sem causar muito escândalo, porque a raiva a pusera fora de si. De minha parte me sentia irritadíssimo, Watson, pois havia qualquer coisa de sumamente vexatório no alheamento calmo e no soberano ar de superioridade da mulher que estávamos tentando salvar. Dessa forma, pode ver em que ponto estamos, e é óbvio que tenho de descobrir novo lance, porque este primeiro falhou. Estarei em contato com você, Watson, porque é mais que provável que você tenha o seu papel a desempenhar, embora seja possível que a próxima jogada pertença a eles e não a nós." E foi realmente o que se deu. O golpe deles falhou, ou antes, o golpe dele, pois jamais pude acreditar que a jovem tivesse qualquer interferência no caso.
Creio que poderia mostrar ao leitor até mesmo a pedra da calçada sobre a qual me encontrava quando meus olhos caíram sobre a manchete, e senti um calafrio de horror me atravessar a alma. Foi entre o Grand Hotel e a Estação de Charing Cross, onde um jornaleiro que só tinha uma perna expunha os seus jornais vespertinos. Tinham decorrido dois dias desde a nossa última conversa. Em letras negras, lá estava a terrível notícia: ATENTADO CONTRA A VIDA DE SHERLOCK HOLMES
Creio que fiquei aturdido durante alguns minutos. Depois, tenho uma vaga lembrança de me haver apossado violentamente de um jornal, de ter sido admoestado pelo homem a quem eu não pagara, e, por fim, de ter me encostado à porta de uma farmácia enquanto procurava avidamente a notícia fatal. Estava assim redigida: "Penalizados, acabamos de saber que o sr. Sherlock Holmes, o conhecido detetive particular, foi vítima esta manhã de uma agressão que o deixou em estado grave. Não dispomos de pormenores exatos, mas parece que o fato ocorreu mais ou menos ao meio-dia, na Regent Street, perto do Café Royal. O ataque foi levado a efeito por dois homens armados de paus, tendo o sr. Holmes recebido golpes na cabeça e no corpo, que produziram ferimentos considerados gravíssimos pelos médicos. Foi transportado para o Hospital de Charing Cross e depois, por insistência sua, levado para os seus aposentos na Baker Street. Os bandidos que o agrediram estavam, ao que parece, decentemente trajados e escaparam dos circunstantes atravessando o Café Royal e desembocando na Glasshouse Street. Não há dúvida de que pertencem a essa turba de criminosos que tantas vezes têm tido ocasião de perturbar a atividade e a engenhosidade do ferido". É ocioso dizer que, mal acabei de relancear os olhos pela notícia, pulei dentro de um carro a caminho da Baker Street. Encontrei Sir Leslie Oakshott, o famoso cirurgião, no vestíbulo, e o seu cupê parado junto à calçada. — Perigo imediato não há — informou-me ele. — Dois ferimentos profundos no crânio e algumas contusões de certa importância. Foi necessário dar vários pontos. Dei-lhe morfina, e o repouso é essencial, mas não há proibição absoluta de uma visita de alguns minutos. Valendo-me dessa concessão, penetrei cautelosamente no quarto quase
escuro. O enfermo estava completamente acordado, e ouvi meu nome num cochicho roufenho. O estore estava quase todo descido, mas um raio de sol introduziu-se de esguelha e foi incidir na cabeça enfaixada do ferido.- Sob a compressa de linho branco, notava-se um pedaço de tafetá embebido em sangue. Sentei-me ao lado dele e baixei a cabeça. — Tudo bem, Watson. Não fique assim tão assustado — murmurou, em voz muito fraca. — A coisa não é tão feia como parece. — Graças a Deus! — Como você sabe, manejo bem a bengala. Pude aparar a maior parte dos golpes. O segundo homem é que foi demais para mim. — Que posso fazer, Holmes? Com toda a certeza foi aquele canalha que mandou os dois agressores. É só você pronunciar uma palavra e saio daqui e o esfolo vivo. — Meu bom Watson! Não, nada podemos fazer, a menos que a polícia ponha as mãos nos homens. Mas a fuga deles deve ter sido bem preparada. Disso podemos estar certos. Espere um pouco. Tenho os meus planos. A primeira coisa é exagerar meus ferimentos. Irão procurá-lo para saber notícias. Exagere, Watson. Diga-lhes que só por sorte eu passarei desta semana, fale-lhes em traumatismo, em delírio, no que quiser! Nunca exagerará demasiado. — Mas, e Sir Leslie Oakshott? — Oh, não se preocupe. Ele também fará prognósticos sombrios. Deixe-o por minha conta. — Mais alguma coisa? — Sim. Diga a Shinwell Johnson que trate de esconder a garota. Aqueles valentões agora vão ficar no encalço dela. Eles certamente sabem que ela também se envolveu no caso. Se se atreveram a me agredir daquela forma, não é provável que se esqueçam da Srta. Winter. Isso é urgente. Procure-o hoje mesmo. — Vou já. Mais alguma coisa? — Ponha o meu cachimbo em cima da mesa. Muito bem. Apareça aqui todas as manhãs, e iremos fazendo nossos planos de batalha.
Naquela noite, combinei com Johnson que levasse a Srta. Winter para um bairro sossegado e que lhe recomendasse sair o menos possível até que o perigo passasse. Durante seis dias, o público esteve convencido de que Holmes se encontrava às portas da morte. Os boletins eram um tanto alarmantes, e as notícias nos jornais não o eram menos. Minhas contínuas visitas asseguravam-me que a coisa não era assim tão má. Sua constituição de ferro e sua força de vontade estavam operando maravilhas. Holmes restabelecia-se rapidamente, e às vezes cheguei a suspeitar de que ele realmente melhorava mais depressa do que fingia, até mesmo diante de mim. Havia naquele homem uma ponta de mistério que conduzia a vários efeitos dramáticos, mas que deixava até mesmo seu amigo mais íntimo na dúvida sobre quais seriam verdadeiramente seus planos. Levava até as últimas conseqüências o axioma segundo o qual o único conspirador seguro é aquele que conspira sozinho. Eu me encontrava mais perto dele do que qualquer outra pessoa, e no entanto via com toda a clareza o abismo que nos separava. No sétimo dia, foram tirados os pontos. Apesar disso, os jornais da tarde noticiaram o aparecimento de erisipela. Havia também uma nota que fui obrigado a transmitir ao meu amigo, estivesse ele doente ou não. Dizia simplesmente que entre os passageiros do navio Ruritania, da Cunard, que largaria de Liverpool na sexta-feira, achava-se o barão Adelbert Gruner, que ia aos Estados Unidos regularizar importantes negócios financeiros antes de seu próximo casamento com a srta. Violet de Merville, filha única do etc., etc. Holmes escutou a notícia com um ar de frieza e concentração estampado no semblante, que me deu a perceber a inquietação que tudo aquilo lhe causava. — Sexta-feira! — exclamou ele. — Apenas três dias de intervalo. Creio que o canalha quer se livrar do perigo. Mas não há de conseguir, Watson. Juro que não! E agora, Watson, preciso que me preste um serviço. — Estou ao seu inteiro dispor, Holmes. — Então você vai passar as próximas vinte e quatro horas num intenso estudo da cerâmica chinesa. Ele não deu explicações, e eu não pedi. A experiência diária me ensinara a sabedoria da obediência. Mas, depois de deixar os seus aposentos, fui andando pela Baker Street, pensando na forma como executaria uma ordem tão estranha. Finalmente, dirigi-me de carro à Biblioteca de Londres, na St. James's Square, expus minhas dificuldades a meu amigo Lomax, bibliotecário auxiliar, e fui para casa sobraçando um grande volume. Dizem que um advogado que estude uma causa com afinco na segundafeira é capaz de interrogar uma testemunha sagaz e esquecer, no sábado seguinte, toda a sabedoria forçada. É claro que eu não gostaria de me fazer passar por autoridade em cerâmica. E contudo, toda aquela tarde e toda aquela noite, com exceção de um curto intervalo dedicado ao descanso, e toda
a manhã seguinte, estive bebendo nas fontes do saber e decorando nomes. Assim, fiquei conhecendo as características dos grandes artistas, o mistério das datas cíclicas, as peculiaridades dos Hung-wu e as belezas dos Yung-lo, os escritos de Tang-ying e as glórias do período primitivo dos Sung e dos Yuan. Estava repleto de toda essa ilustração quando apareci diante de Holmes, no dia seguinte à tarde. Ele já não estava de cama, embora pelas notícias da imprensa ninguém pudesse supor tal coisa, e, apoiando na mão a cabeça ainda enfaixada, sentou-se em sua poltrona preferida. — Ouça, Holmes, quem acreditasse nos jornais, pensaria que você está moribundo. — É justamente essa — volveu ele — a impressão que desejo causar. Então, Watson, aprendeu sua lição? — Pelo menos procurei aprender. — Bom. Seria capaz de sustentar uma conversa interessante sobre o assunto? — Creio que sim. — Então dê-me aí essa caixinha que está em cima do console da lareira. Ergueu a tampa e tirou um pequeno objeto, envolvido com o maior cuidado numa fina seda oriental. Desembrulhou-o, e surgiu um pequeno pires de delicado desenho, no mais lindo azul-escuro. — Todo cuidado é pouco, Watson. Isto é genuína porcelana casca-de-ovo, trabalho verdadeiramente artístico da dinastia Ming. Jamais passou pelas mãos dos especialistas da Christie's uma peça tão fina. Um jogo completo disto daria para resgatar um rei. É até duvidoso que haja uma coleção intacta fora do palácio imperial de Pequim. Um verdadeiro entendido no assunto, se visse isto, ficaria maluco. — Que vou fazer com essa preciosidade? Holmes entregou-me um cartão sobre o qual estava impresso o seguinte: "Dr. Hill Barton, Half Street, 369". — É seu nome para esta noite, Watson. Você vai fazer uma visita ao barão Gruner. Conheço um pouco os hábitos dele, e às oito e meia provavelmente estará livre. Um bilhete vai avisá-lo com antecedência de que você vai visitá-lo, e então dirá que vai lhe levar um espécime de um jogo absolutamente único de porcelana Ming. Também poderá ser um médico, visto que é um papel que pode representar sem fingir. Você é um colecionador, e esta peça veio casualmente parar em suas mãos. Ouviu falar no interesse do barão pelo assunto e não se nega a vendê-la por um certo preço. — Que preço?
— Fez bem em perguntar, Watson. Certamente, faria má figura se ignorasse o valor de sua mercadoria. Obtive este pires por intermédio de Sir James, e ele pertence, segundo estou informado, à coleção de seu cliente. Não exagerará se disser que se trata de uma peça sem rival no mundo. — Talvez eu possa sugerir que ela fosse avaliada por um entendido no assunto. — Excelente, Watson! Você hoje é famoso. Sugira a Christie's ou a Sotheby's. Sua delicadeza deve impedi-lo de fazer o preço. — Mas e se ele não quiser me receber? — Não há dúvida de que o receberá. Gruner tem loucura por coleções, em especial de porcelana, em que é tido e havido como autoridade. Sente-se, Watson, que lhe vou ditar a carta. Não precisa de resposta. Dirá simplesmente que vai e declara o motivo. Foi um admirável documento, conciso, cortês e estimulante para a curiosidade do perito. Foi enviado em mãos ao destinatário. Na mesma tarde, com o precioso pires na mão e o cartão do Dr. Hill Barton no bolso, parti rumo à aventura. A bela casa e o terreno indicavam que o barão Gruner era, como o havia dito Sir James, um homem consideravelmente rico. Um longo caminho sinuoso, ladeado de renques de arbustos raros, levava a um espaçoso pátio calçado, adornado de estátuas. A residência tinha sido construída por um rei do ouro sul-africano em dias de grande prosperidade, e a casa comprida e baixa, com pequenas torres nos cantos, embora de acentuado mau gosto arquitetônico, era imponente no tamanho e na solidez. Um mordomo, que faria bonita figura numa roda de prelados, introduziu-me, confiando-me logo aos cuidados de um lacaio vestido de pelúcia, que me levou à presença do barão. Ele estava de pé, em frente a um grande armário que ficava entre as janelas e que continha parte da sua coleção chinesa. Quando entrei, virou-se, segurando na mão um pequeno vaso castanho. — Queira sentar-se, doutor — disse. — Estava olhando para as minhas preciosidades para ver se realmente me achava em condições de aumentá-las. Este pequeno espécime Tang, que data do século VII, talvez lhe interessasse. Tenho certeza de que o senhor nunca viu um acabamento mais fino nem um esmalte mais rico. Traz aí o pires Ming a que se referiu? Desembrulhei-o cuidadosamente e entreguei-o a ele. O barão sentou-se à sua escrivaninha, puxou para perto a lâmpada, pois começava a escurecer, e pôs-se a examinar a peça. Enquanto o fazia, a luz amarela caiu-lhe sobre as feições, e pude estudá-las à vontade. Era realmente um belo homem. Fazia justiça à reputação européia de que gozava nesse particular. Sua estatura não excedia a mediania, mas era elegante e sóbrio. Seu rosto era de um tom moreno quase oriental, com grandes olhos negros e lânguidos, que, como
facilmente se compreende, exerciam irresistível fascínio nas mulheres. O cabelo e o bigode eram negros; o bigode era diminuto, terminando em ponta e cuidadosamente encerado. Tinha traços regulares e agradáveis, exceto a boca, em linha reta, de lábios finos. Aquilo, sim, era uma boca de assassino — uma fenda que se rasgava à flor da face, cruel, rude, comprimida, inexorável e terrível. Mas avisado andava o barão em cobri-la com o bigode, pois ela era uma espécie de sinal de perigo, posta ali pela natureza como advertência às suas vítimas. Sua voz era suave e as maneiras, perfeitas. Eu lhe daria pouco mais de trinta anos de idade, embora mais tarde o registro acusasse quarenta e dois. — Lindo, realmente lindo! — disse ele por fim. — E diz o senhor que possui um jogo de seis para completar? O que me admira é o fato de eu não ter ouvido falar em exemplares tão magníficos. Só sei da existência de um, na Inglaterra, que pode se equiparar a este, e não é nada provável que esteja no mercado. Seria indiscrição minha perguntar-lhe, Dr. Hill Barton, como obteve este? — Interessa-lhe realmente saber? — indaguei, com a maior indiferença de que fui capaz. — O senhor pode ver que a peça é legítima, e, quanto ao seu valor, contento-me em acatar a avaliação de um perito. — Muito misterioso — disse ele, com um brilho fugaz e de dúvida nos olhos negros. — Ao negociar com objetos de tal valor, é muito natural que se queiram dados completos sobre a transação. Que a peça é genuína não há a menor dúvida. Suponhamos, porém (sou obrigado a levar em conta todas as possibilidades), que mais tarde venha a ser provado que o senhor não tinha direito de vendê-la! — Oferecer-lhe-ei garantias contra qualquer reivindicação desse gênero. — Mas a questão continuaria de pé por eu ignorar o valor de suas garantias. — Meus banqueiros lhe dissiparão quaisquer dúvidas. — Perfeitamente. E todavia a transação continua a me parecer um tanto insólita. — Pode fazer ou não o negócio — disse eu com indiferença. — Fiz-lhe a primeira oferta por saber que o senhor é um entendido no assunto, mas não terei dificuldade em bater em outras portas.
— Quem lhe disse que sou entendido? — Estou informado de que o senhor escreveu um livro sobre o assunto. — Leu esse livro? — Não. — Pois olhe, a coisa se torna cada vez mais difícil de compreender! O senhor é um entendido e um colecionador que possui em sua coleção uma peça de grande valia, e no entanto nunca se deu ao trabalho de consultar o único livro que o informaria sobre o verdadeiro valor e significado daquilo que possui. Como explica isso? — Sou um homem muito ocupado. Exerço ativamente a medicina. — Essa resposta não me satisfaz. Um homem que tenha uma mania jamais a sacrifica, sejam quais forem as outras preocupações. Em seu bilhete, o senhor disse que é um entendido no assunto. — E sou. — Posso fazer-lhe algumas perguntas para experimentá-lo? Vejo-me obrigado a dizer-lhe, doutor... se é que o senhor realmente é médico, que o episódio se torna cada vez mais suspeito. Desejava perguntar-lhe o que sabe do imperador Shomu, e qual a relação que há entre ele e o Shosoin perto de Nara. Será possível que isto o embarace? Fale-me um pouco da dinastia setentrional dos Wei e do seu lugar na história da cerâmica. Pulei da cadeira, simulando irritação. — Cavalheiro, isto é intolerável — disse eu. — Vim aqui para lhe fazer uma oferta e não para ser examinado como se fosse um aluno. Meus conhecimentos nesse assunto serão naturalmente inferiores aos seus, mas é claro que não vou responder a perguntas propostas de modo tão ofensivo! O homem olhou para mim com firmeza. A languidez desaparecera dos seus olhos. Subitamente eles cintilaram. Vi um brilho nos dentes, por trás daqueles lábios cruéis. — O que é que pretende? O senhor veio aqui como espião. É um emissário de Holmes. Quer pregar-me uma peça. O sujeito está moribundo, segundo ouço dizer, e então envia seus representantes para me vigiarem. O senhor conseguiu entrar aqui sem permissão, mas juro-lhe que vai achar mais difícil sair do que entrar. Pusera-se decididamente de pé, e eu dei um passo para trás, preparandome para um possível ataque, pois o homem estava fulo de raiva. Devia ter desconfiado de mim desde o princípio; com certeza, aquele interrogatório lhe revelara a verdade; porém, era evidente que eu não podia ter esperanças de
enganá-lo. Enfiou a mão numa gaveta lateral e revolveu-a com fúria. Nisso, alguma coisa lhe feriu os tímpanos, pois começou a aguçar os ouvidos atentamente. — Ah! — gritou. — Ah! — E precipitou-se para o quarto que ficava atrás dele. Dando dois passos, encontrei-me junto da porta aberta, e jamais se varrerá de meu espírito a cena que ali presenciei. A janela que dava para o jardim estava completamente aberta. De pé, ao lado dela, com a terrível aparência de um fantasma, a cabeça envolvida em panos manchados de sangue, o rosto desfeito e pálido, estava Sherlock Holmes. No instante seguinte, ele já passara pela abertura, e ouvi o baque do seu corpo lá fora, entre os loureiros. Com um uivo de raiva, o dono da casa correu até a janela aberta. Aquilo tudo durou apenas alguns segundos, mas vi-o com toda a clareza. Um braço — um braço de mulher — surgiu do meio da folhagem. Repentinamente, o barão soltou um urro — um grito horrível, que sempre me ecoará nos ouvidos. Levou as mãos ao rosto e rodopiou desalmadamente pelo aposento, dando com a cabeça nas paredes. Depois caiu sobre o tapete, rolando e contorcendo-se, enquanto ressoavam por toda a casa os seus clamores. — Água! Água, pelo amor de Deus! — bradava ele. Agarrei numa garrafa que estava sobre uma mesinha e acudi em seu auxílio. No mesmo instante, o mordomo e vários lacaios vinham correndo do vestíbulo. Recordo-me que um deles desmaiou quando me viu, de joelhos junto ao ferido, virar aquele rosto horrendo para a luz da lâmpada. O vitríolo estava corroendoo em diversas partes, e gotejava das orelhas e do queixo. Um olho já se achava branco e vidrado. O outro estava vermelho e inflamado. As feições que eu havia admirado alguns minutos antes apresentavam agora o aspecto de um painel sobre o qual o artista tivesse passado uma esponja úmida e suja. Estavam embaciadas, descoloridas, inumanas, irreconhecíveis. Em poucas palavras, expliquei com exatidão o que acontecera, relativamente ao ataque com vitríolo. Em meio aos seus berros, a vítima clamava furiosamente contra o vingador. — Foi Kitty Winter, aquela bruxa infernal! — gritava ele. — Oh! demônio de saias! Mas ela há de me pagar! Há de me pagar! Oh, Deus do céu, esta dor é
insuportável. Banhei-lhe o rosto com azeite, pus chumaços de algodão sobre as superfícies em carne viva e administrei-lhe uma injeção de morfina. Na presença de tal golpe, toda a suspeita se desvanecera do espírito do barão, e ele me ferrou as mãos como se eu tivesse o poder de desanuviar aqueles olhos de peixe morto que me fitavam com infinita angústia. Eu seria capaz de deplorar aquela ruína, se não me lembrasse muito bem da vil existência que terminava numa mudança tão horrenda. Repugnava-me sentir o contato daquelas mãos ardentes, e senti grande alívio quando seu médico particular, seguido de perto por um especialista, veio me livrar do meu doente. Chegara também um inspetor da polícia, e a esse dei meu cartão autêntico. Seria inútil proceder de outro modo, porque eu era quase tão conhecido de vista na Scotland Yard como o próprio Holmes. Em seguida, saí daquela casa de tristeza e de terror. Dentro de uma hora, achava-me na Baker Street. Holmes estava em sua cadeira familiar, muito pálido e denotando grande cansaço. Sem falar nos ferimentos, até mesmo seus nervos de aço tinham sido afetados pelos acontecimentos daquela noite, e ele ouviu horrorizado a narrativa que lhe fiz da transformação de Gruner. — É a paga do pecado, Watson, a paga do pecado! — disse ele. — É o que sempre sucede, mais cedo ou mais tarde. Deus sabe que havia pecado demais — acrescentou, pegando um volume marrom que estava sobre a mesa. — Está aqui o livro de que a mulher falou. Se isto não desmanchar o casamento, nada poderá fazê-lo. Mas desmanchará, Watson, não há qualquer dúvida. Nenhuma mulher que se respeite poderia tolerar isso. — É seu diário amoroso? — Ou seu diário luxurioso. Dê-lhe o nome que quiser. No momento em que a mulher nos falou no tal livro, percebi que estava ali uma arma poderosa, e que bastava que nos apoderássemos dele. Naquela altura, não lhe disse nada para não revelar meu plano, porque aquela mulher era capaz de dar com a língua nos dentes. Mas fiquei pensando no caso. Depois, a agressão de que fui vítima sugeriu-me a idéia de fazer o barão acreditar que não precisava se precaver contra mim. Tudo correu bem. Eu podia esperar um pouco mais, porém a viagem dele à América precipitou os acontecimentos. Só nos restava agir imediatamente. arrombar-lhe a casa à noite é impossível. Ele toma precauções. Mas à noitinha havia uma pequena oportunidade, uma vez que sua atenção estivesse realmente ocupada. Foi quando entraram em cena você e seu pires azul. Entretanto, era necessário que eu soubesse o lugar exato onde se encontrava o livro, e eu sabia que só dispunha de alguns minutos para trabalhar, porque meu tempo estava limitado pelos seus conhecimentos da cerâmica chinesa. Por isso, no último momento, chamei em meu auxílio aquela moça. Como poderia eu adivinhar o que continha o pequeno embrulho que ela trazia com tanto cuidado debaixo da capa? Pensei que tivesse ido apenas para localizar o livro, mas parece que ela queria resolver um assunto particular. — O barão acabou adivinhando que eu fora a seu mando.
— Eu receava isso. Você, porém, entreteve-o bastante para que eu me apoderasse do livro, embora o tempo não desse para uma fuga disfarçada. Ah, Sir James, folgo muito com sua vinda! Nosso delicado amigo aparecera atendendo a uma chamada prévia. Escutou com a maior atenção o relatório, feito por Holmes, do que ocorrera. — O senhor fez maravilhas, verdadeiras maravilhas! — exclamou ele, acabando de ouvir a narrativa. — Se, porém, os ferimentos são tão medonhos como os descreve o dr. Watson, então, com toda a certeza, nosso intuito de fazer malograr o casamento já foi conseguido sem se recorrer ao livro imundo. Holmes abanou a cabeça. — Mulheres do tipo dessa De Merville são diferentes das outras. É capaz de amá-lo ainda mais, como a um mártir desfigurado. Não, não. É o seu lado moral, e não o físico, que nos cumpre destruir. Este livro fará com que ela reconsidere. Não sei de outra coisa capaz de fazê-lo. Foi escrito por seu próprio punho. Não é possível que ela não lhe dê atenção. Sir James levou consigo tanto o livro como o precioso pires. Como já estava atrasado, saí com ele para a rua. Aguardava-o um cupê. Entrou na carruagem, deu rapidamente uma ordem ao cocheiro de libré e partiu às carreiras. Pôs uma parte do seu capote fora da janela, a fim de tapar o escudo gravado no vidro, mas eu o tinha visto devido à luz que entrava pela bandeira de nossa porta. Fiquei boquiaberto de surpresa. Depois, voltei-me e subi a escada que dava para os aposentos de Holmes. — Descobri quem é nosso cliente — gritei, sem poder me conter, dando a notícia. — Imagine, Holmes, é... — Trata-se de um amigo leal, de um cavalheiro em toda a acepção da palavra — disse Holmes, erguendo a mão como para impor silêncio. — Que isto agora e para sempre seja o suficiente para nós. Ignoro de que modo foi usado o livro acusador. Talvez Sir James tenha se encarregado de tomar as medidas necessárias. Ou é provável que uma missão tão delicada tenha ficado a cargo do pai da jovem dama. Seja como for, o efeito foi o que se esperava. Três dias depois, saiu no Morning Post uma nota dizendo que não se realizaria o casamento do barão Adelbert Gruner com a Srta. Violei de Merville. O mesmo jornal noticiou a primeira audiência do tribunal do crime relativo ao processo movido contra a Srta. Kitty Winter sob a grave acusação de vitriolagem. Surgiram durante o julgamento tantas circunstâncias atenuantes que a sentença, como todos se lembram, foi a mais branda possível para um crime tão covarde. Sherlock Holmes viu-se ameaçado de uma ação de arrombamento, mas, quando o fim é bom e o cliente é suficientemente ilustre, até a rígida lei britânica se torna humana e flexível. Meu amigo jamais se sentou no banco dos réus.
Arthur Conan Doyle
O Rosto Lívido Título original: The Blanched Soldier
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1926
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Blanched Soldier publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VII, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Hamílcar de Garcia.
Embora limitadas, as idéias do meu amigo Watson valem pela sua pertinácia pouco vulgar. Há muito tempo que ele insiste comigo para que eu escreva a respeito de uma aventura exclusivamente minha. Talvez eu próprio haja provocado sua insistência, visto que freqüentemente tenho tido ocasião de lhe fazer ver como suas narrativas são superficiais, e de acusá-lo de condescender com o gosto do público em vez de se restringir rigorosamente aos fatos e às personagens. "Tente-o, você mesmo, Holmes!", retorquiu-me ele, e agora, de caneta na mão, começo a compreender que a coisa tem de ser apresentada de modo que interesse o leitor. A história seguinte não deixa de ser sugestiva, e figura entre os casos mais estranhos de minha coleção, embora Watson não a tenha registrado em suas notas. Por falar no meu velho amigo e biógrafo, aproveito a oportunidade para observar que, se em minhas pequenas averiguações me faço acompanhar de Watson, não procedo assim por qualquer sentimento ou por capricho, mas porque ele possui certas características notáveis, a que, por modéstia, dá pouca atenção em seus exagerados relatos de minhas façanhas. Um aliado que prevê nossas conclusões e o curso de nossas ações é sempre perigoso, mas aquele para quem cada fase surge como uma perpétua surpresa, e para quem o futuro é sempre um livro fechado, é na realidade um auxiliar ideal. Leio em meu caderno de apontamentos que, em janeiro de 1903, logo depois do final da Guerra dos Bôeres, recebi a visita do sr. James M. Dodd, um inglês enorme, airoso, queimado de sol e muito empertigado. Naquela ocasião, o bom Watson tinha me abandonado por uma esposa, sua única ação egoísta de que me recordo durante o tempo de nossa sociedade. Eu estava só. Costumo sentar-me com as costas para a janela e colocar meus visitantes na cadeira em frente, onde a luz bate em cheio sobre eles. O
sr. James M. Dodd parecia um tanto embaraçado no início da entrevista. Não fiz qualquer tentativa para ajudá-lo porque seu silêncio me proporcionou mais tempo para observá-lo. Acho de boa tática impressionar meus clientes com um ar de poder, e por isso lhe transmiti algumas de minhas conclusões. — O senhor vem, segundo percebo, da África do Sul. — Sim, senhor — respondeu ele, algo surpreso. — Da Guarda Imperial, creio eu. — Exato. — Do Corpo de Middlesex, sem dúvida. — Isso mesmo, sr. Holmes, o senhor é um adivinho. Sorri, vendo o ar de espanto do meu visitante. — Quando um cavalheiro de aparência varonil entra nos meus aposentos com a tez tostada por um sol que não é da Inglaterra e com o lenço metido na manga, em vez de no bolso, não é difícil conjeturar sua procedência. O senhor usa barba curta, e isso prova que não foi um soldado regular. Tem o porte de um cavalheiro. Quanto a Middlesex, seu cartão já me prevenira de que é corretor na Throgmorton Street. Em que espécie de outro regimento poderia o senhor ter estado? — O senhor percebe tudo. — Não percebo mais do que o senhor. O que fiz foi treinar-me em reparar no que vejo. Todavia, sr. Dodd, não foi para discutir a ciência da observação que o senhor veio me visitar hoje. O que está acontecendo em Tuxbury Old Park? — Sr. Holmes...! — Meu caro senhor, não há mistério. Esse nome veio no cabeçalho de sua carta, e como o senhor marcou a presente entrevista em termos muito insistentes, é claro que ocorrera repentinamente alguma coisa importante. — Sim, é verdade. Mas a carta foi escrita depois do meio-dia, e muita coisa aconteceu dali para cá. Se o coronel Emsworth não tivesse me enxotado a pontapés... — Será possível> — Bem, vem a dar quase no mesmo. Esse coronel Emsworth é duro de roer. No seu tempo, não havia no exército um militar mais inflexível.
Discutimos bastante naquele dia, e, se eu o aturei, foi por consideração para com Godfrey. Acendi o cachimbo e recostei-me na cadeira. — Espero que se explique. Meu cliente riu com malícia. — Já estava me habituando à idéia de que o senhor sabe tudo sem que lhe digam — respondeu. — Mas vou lhe expor os fatos, e espero em Deus que o senhor consiga me dizer o que eles significam. Passei a noite em claro, dando tratos à bola, e quanto mais penso, mais incrível me parece a coisa. "Quando me alistei, em janeiro de 1901, há justamente dois anos, o jovem Godfrey Emsworth se alistara no mesmo esquadrão. Era o filho único do coronel Emsworth. Este último foi condecorado durante a Guerra da Criméia. Godfrey tem nas veias sangue de combatente, não sendo pois de admirar que se apresentasse como voluntário. Não havia no regimento rapaz mais bonito. Tornamo-nos amigos... aquela espécie de amizade que só pode existir quando se vive a mesma vida e se partilham as mesmas alegrias e as mesmas tristezas. Ele era meu camarada, o que no exército significa alguma coisa. Durante todo um ano de luta árdua, experimentamos juntos as mesmas asperezas e os mesmos gostos. Depois, ele foi ferido durante o combate travado no morro do Diamante, nas cercanias de Pretória. Recebi uma carta procedente do hospital da Cidade do Cabo e outra de Southampton. Daí para cá, nem mais uma palavra, sr.Holmes, já faz seis meses, e isso sendo ele o meu melhor amigo. "Terminada a guerra, e depois de todos termos voltado, escrevi ao pai dele indagando do seu paradeiro. Não recebi resposta. Esperei algum tempo e tornei a escrever. Dessa vez, obtive uma resposta lacônica e ríspida. Segundo ela, Godfrey tinha empreendido uma viagem de volta ao mundo, sendo pouco provável que regressasse antes de decorrido um ano. E foi tudo. "Não fiquei satisfeito, sr. Holmes. Aquilo me pareceu pouco natural. Tratava-se de um bom rapaz, e não era possível que cortasse assim as relações com um amigo. Isso não era de seu feitio. Vim ainda a saber
que ele herdara um dinheirão, e também que ele e o pai não se entendiam muito bem. O velho às vezes se mostrava violento, e o jovem Godfrey era demasiado brioso para suportá-lo. Não, não fiquei satisfeito, e resolvi tirar a coisa a limpo. Sucedeu, entretanto, que eu precisava regularizar meus negócios, que andavam um tanto embrulhados após dois anos de ausência; por isso, só esta semana é que consegui me ocupar novamente do caso de Godfrey. Mas, uma vez que me encarreguei desse caso, é minha intenção abandonar tudo o mais até vê-lo esclarecido. O sr. James M. Dodd parecia ser daquelas pessoas que é melhor ter como amigas do que como inimigas. Seus olhos azuis eram severos, e, enquanto falava, cerrava com força a mandíbula quadrada. — E então o que o senhor fez? — A primeira providência que tomei foi dirigir-me à casa dele, em Tuxbury Old Park, perto de Bedford, e ver com meus próprios olhos o que teria acontecido. Escrevi então à sua mãe (do egoísta do pai eu não queria mais saber), e entrei diretamente no assunto. Disse-lhe que Godfrey era meu amigo, que eu me interessava muito por ele porque tínhamos tido aventuras comuns de que lhe poderia falar. Perguntei-lhe se, dado que estava perto do lugar, não haveria inconveniente, etc. Ela me respondeu com grande amabilidade e ofereceu-me hospedagem naquela noite. Foi isso o que me levou lá na segunda-feira. "Tuxbury Old Park é inacessível, e fica a oito quilômetros de qualquer outro lugar. Como na estação não havia carro algum, tive de ir a pé, carregando minha mala, e já estava quase escuro quando cheguei. A casa, enorme, de construção irregular, fica no meio de um parque imenso. Dir-se-ia pertencer a todas as épocas e estilos, desde o madeiramento elizabetano até o pórtico vitoriano. O interior era formado de painéis e tapeçarias, e de quadros antigos meio descorados; uma mansão de sombras e mistério. O mordomo, o velho Ralph, parecia ter a mesma idade da casa, e sua mulher parecia ser ainda mais velha. Ela fora ama de Godfrey, e este se referia a ela com o maior carinho, colocando-a afetivamente logo abaixo de sua mãe. Foi o que me fez gostar dela, apesar de seu ar antipático. Gostei também da mãe, uma mulher delicada, pequena e muito branca. Só o coronel é que não pude tragar. "Tivemos uma escaramuça logo de início, e só não voltei imediatamente para a estação por ter desconfiado de que isso fazia parte do jogo dele. Fui diretamente introduzido em seu escritório, onde deparei com um homem alto, meio curvo, de pele crestada e barba grisalha e rala, sentado atrás de uma escrivaninha em desordem. Um nariz de veias vermelhas sobressaía como o bico de um abutre, e dois olhos cinzentos e ferozes fitavam-me sob espessas sobrancelhas. Naquele instante, compreendi por que razão Godfrey quase não falava no pai.
"— Então, cavalheiro — disse ele com voz rouca — Gostaria de saber os verdadeiros motivos desta visita. "Respondi que já os tinha declarado em minha carta a sua esposa. "— Sim, sim; o senhor disse que conheceu Godfrey na África. Como pode prová-lo? "— Tenho cartas dele. "— Deixe-me vê-las, por favor. "Relanceou os olhos pelas duas cartas que lhe entreguei, e logo restituiu-as a mim, com certa dureza. "— Bem. O que pretende? — indagou. "— Eu gostava muito de seu filho Godfrey. Estávamos unidos por muitos laços e recordações. Não é natural que eu estranhe seu repentino silêncio e deseje saber que fim levou? "— Tenho uma vaga lembrança de que já troquei correspondência com o senhor e lhe disse o que foi feito de Godfrey. Está fazendo uma viagem de volta ao mundo. Sua saúde ficou combalida depois daquelas aventuras na África, e tanto eu como sua mãe fomos de opinião que um repouso completo e uma mudança de ares eram necessários. Faça o favor de transmitir essa explicação a quaisquer outros amigos que se interessem por Godfrey. "— Sem dúvida — respondi. — Mas talvez o senhor me faça a fineza de dizer qual o vapor que ele tomou e em que data foi isso. Tenho a certeza de que poderei então fazer-lhe chegar às mãos uma carta minha. "Tive a impressão de que meu pedido causou certo embaraço e irritação no dono da casa. Suas grossas sobrancelhas baixaram sobre os olhos, e ele tamborilou impacientemente com os dedos na mesa. Ergueu por fim os olhos com ar de quem viu o adversário fazer um lance perigoso no tabuleiro de xadrez, e decidiu neutralizá-lo. "— Qualquer pessoa, sr. Dodd — disse —, se ofenderia com sua infernal obstinação e pensaria que sua insistência atingiu as raias da impertinência. "— O senhor deve atribuí-la à grande amizade que dedico ao seu filho. "— É exato. Tendo isso em vista, já dei o devido desconto. Devo, entretanto, pedir-lhe que desista dessas investigações. Todas as famílias têm seus casos íntimos e seus motivos particulares, que não devem ser revelados a estranhos, ainda que bem-intencionados. Minha
mulher está ansiosa por ouvir alguma coisa do passado de Godfrey, e sobre isso o senhor está em condições de falar, mas rogo-lhe que deixe de lado o presente e o futuro. São indagações ociosas, que nos colocam numa posição delicada e difícil. "Perante isso tive de me calar, sr. Holmes. Não havia outra solução. Pude apenas fingir que aceitava a situação e intimamente jurei não descansar enquanto não descobrisse o que acontecera com meu amigo. Foi uma noite triste. Jantamos tranqüilamente os três, numa vetusta sala lúgubre e desbotada. A senhora, muito interessada, fez-me várias perguntas sobre o filho, mas o velho parecia mal-humorado e deprimido. O ambiente tornou-se tão pesado para mim, que, apresentando uma desculpa assim que pude fazê-lo decentemente, retirei-me para o meu quarto. Era um aposento muito grande e simples, no andar térreo, tão sombrio como o resto da casa, mas, depois de se passar um ano no veldt, sr. Holmes, uma pessoa já não é muito exigente em relação a alojamentos. Abri as cortinas e fiquei contemplando o jardim, verificando que estava uma bela noite de lua em quarto crescente. Em seguida, sentei-me junto à lareira crepitante com o lampião colocado sobre uma mesa ao meu lado, e procurei distrair o espírito lendo um romance. Contudo, fui interrompido por Ralph, o velho mordomo, que veio renovar a provisão de carvão. "— Calculei que seu combustível podia acabar durante a noite. O tempo está terrível, e estes quartos são frios. "Hesitou um pouco antes de sair, e, ao voltar-me, dei com ele de pé, na minha frente, com uma expressão de curiosidade estampada no rosto cheio de rugas. "— Desculpe, senhor, mas não pude deixar de ouvir o que disse do nosso jovem patrão Godfrey à hora do jantar. Como sabe, minha mulher foi ama-de-leite de Godfrey, pelo que me sinto quase seu segundo pai. É natural que nos interessemos por ele. Diz o senhor que ele sempre se portou bem, não é assim? "— Não havia no regimento homem mais valente. Uma vez tirou-me de sob o tiroteio dos bôeres. Se não fosse ele, talvez eu não estivesse aqui. "O velho mordomo esfregou as mãos descarnadas. "— Sim, meu senhor, esse é o nosso patrão Godfrey sem tirar nem pôr. Foi sempre corajoso. Não há aqui no parque uma árvore que não tenha trepado. Não o detinha. Era um belo rapaz, um belo homem. "Pus-me de pé de um salto. "— Alto lá! — exclamei. — O senhor diz que ele era. Fala como se o rapaz tivesse morrido. Que mistério é esse? Que fim levou Godfrey
Emsworth? "Agarrei o velho pelo ombro, mas ele se esquivou. "— Não sei o que o senhor quer dizer. Pergunte ao patrão. Ele sabe o que aconteceu ao nosso jovem. Não me compete intervir na questão. "Ele ia sair, mas retive-o pelo braço. "— Ouça — tornei eu. — Antes de se retirar, o senhor vai responder a uma pergunta, ainda que eu o mantenha aqui a noite toda. Godfrey morreu? "O homem não ousou me encarar. Estava como que hipnotizado. A resposta foi-lhe arrancada dos lábios. Foi uma resposta terrível e inesperada. "— Provera a Deus que tivesse morrido! — exclamou, e, livrando-se do meu pulso, saiu precipitadamente do quarto. "O senhor deve calcular, sr. Holmes, em que estado de espírito regressei à minha cadeira. As palavras do velho admitiam apenas uma interpretação. Era evidente que meu pobre amigo se envolvera em alguma transação criminosa ou, pelo menos, equívoca, que atingia a honra da família. O velho pai severo tinha enviado o filho para longe, escondendo-o do mundo para que não ocorresse algum escândalo. Godfrey era bastante estouvado e se deixava influenciar facilmente pelos que o rodeavam. Metera-se sem dúvida com gente ruim, que o desencaminhara, arrastando-o para a ruína. Tratava-se de um caso lamentável, se era certa minha suposição, mas mesmo assim eu me sentia na obrigação de descobrir onde estava e ver se podia ajudá-lo. Achava-me completamente embrenhado nesses pensamentos quando, erguendo os olhos, vejo Godfrey Emsworth diante de mim." Meu cliente deteve-se, como alguém que se sente tomado de viva emoção. — Queira continuar — disse eu. — Seu problema apresenta alguns
aspectos inéditos. — Ele estava do lado de fora da janela, sr. Holmes, com o rosto colado ao vidro. Eu lhe disse que estivera à janela, contemplando a noite. Ao voltar, deixei as cortinas meio abertas. Seu vulto ficou como que emoldurado nessa brecha. A janela ia até o chão, e pude vê-lo de corpo inteiro, mas foi seu rosto que me prendeu o olhar. Era de uma lividez cadavérica. Nunca vi uma pessoa tão pálida! Suponho que os fantasmas devem ter a mesma aparência; mas seus olhos cruzaram com os meus, e eram olhos de um homem vivo. Godfrey deu um salto para trás, quando viu que eu o olhava, e sumiu no escuro. "Havia qualquer coisa de horroroso naquele homem, sr. Holmes. Não era apenas o rosto espectral, brilhando com a alvura de um queijo na escuridão. Era mais sutil do que isso... qualquer coisa de esquivo, de fugidio, de culposo... qualquer coisa muito diferente do rapaz franco e viril que eu conhecera. Aquilo deixou em meu espírito um sentimento de pavor. Porém, quando um homem guerreia durante um ano ou dois, tendo como parceiro o irmão bôer, sabe dominar os nervos e procede com presteza. Mal Godfrey desapareceu, e já eu estava junto da janela. O trinco estava emperrado, e levei algum tempo até poder abri-lo. Então, pulei para fora e corri pelo jardim, na direção que, conforme julguei, ele seguira. "O caminho era comprido e a luz, escassa, mas pareceu-me ver qualquer coisa mover-se à minha frente. Corri mais e chamei-o pelo nome, mas em vão. Tendo chegado ao fim do caminho, vi que havia vários outros, que se ramificavam em diferentes sentidos, levando a várias dependências da casa. Parei, hesitante, e nisso ouvi distintamente a pancada de uma porta que se fechava. O som vinha da frente, de algum lugar no escuro. Isso foi o suficiente, sr. Holmes, para me garantir que o que eu tinha visto não era uma alucinação. Godfrey fugira de mim e fechara aquela porta. Disso eu estava certo.
"Nada mais havia que eu pudesse fazer, e passei uma noite inquieta, revolvendo no espírito aquele caso e tentando encontrar alguma teoria que explicasse os fatos. No dia seguinte achei o coronel um pouco mais conciliatório, e, como sua esposa me falasse na existência de alguns lugares interessantes nas vizinhanças, isso me deu ocasião para perguntar se minha presença ali mais uma noite os incomodaria. O velho aquiesceu com certa relutância, e eu dispus de um dia livre para fazer minhas pesquisas. Já então estava perfeitamente convencido de que Godfrey se escondia por ali, mas onde e por que motivo eram questões ainda por resolver. "A casa era tão grande e de construção tão irregular que nela se poderia ocultar um regimento sem que ninguém o notasse. Mas a porta que eu tinha ouvido fechar certamente não fazia parte da casa. Eu precisava examinar bem o jardim, para ver se descobria alguma coisa. Não me seria difícil fazê-lo, porque os criados estavam entregues às suas próprias tarefas domésticas e deixavam-me ampla liberdade de ação. "Havia várias pequenas dependências, mas na extremidade do jardim existia uma construção separada, suficientemente espaçosa para servir de moradia a um jardineiro ou caseiro. Seria aquele o lugar de onde partira o som da porta que se fechara? Aproximei-me do lugar, simulando indiferença, como se andasse espairecendo por aqueles arredores. Nisso, um homem de barba, baixo, muito vivo, de casaco preto e chapéu-coco, sem o menor aspecto, portanto, de jardineiro, abriu a porta e saiu. Antes, porém, para minha surpresa, fechou-a à chave e colocou-a no bolso. Depois olhou para mim um tanto admirado. "— Está aqui de visita? — perguntou. "Respondi afirmativamente, e acrescentei que era amigo de Godfrey. "— Que pena ele estar viajando, pois gostaria muito de me ver! — continuei. "— Isso mesmo. É verdade — confirmou o outro, com um ar de quem não está muito certo do que diz. — O senhor devia voltar numa ocasião mais propícia. "Dito isso, o homem seguiu seu caminho, mas, ao voltar-me, percebi que me observava, meio escondido pêlos loureiros da extremidade do jardim. "Olhei detidamente para a pequena casa ao passar por ela, mas havia pesadas cortinas diante das janelas, e, tanto quanto me era dado ver, estava vazia. Qualquer indiscrição minha poria tudo a perder, e eu podia até ser expulso dali, se me mostrasse muito atrevido, pois sabia que continuava a ser vigiado. Por isso, regressei para a casa principal e esperei anoitecer, a fim de prosseguir em minhas observações. Quando
estava tudo em silêncio e imerso em trevas, resvalei para fora de minha janela e encaminhei-me silenciosamente para o misterioso pavilhão. "Eu disse que havia pesadas cortinas diante das janelas, mas verifiquei naquele momento que elas também tinham venezianas. Contudo, por uma delas filtrava-se um pouco de claridade e para lá voltei toda a minha atenção. Tive sorte, porque a cortina não tinha sido bem fechada e havia uma fenda na veneziana, de modo que pude ver o interior do quarto. Era um lugar bastante alegre, com bom fogo e luz forte. Bem em frente a mim, estava sentado o homenzinho que eu vira de manhã. Fumava um cachimbo e lia um jornal..." — Que jornal? — perguntei. Pareceu-me que meu cliente se aborreceu um pouco com minha interrupção. — Isso tem importância? — perguntou. — É essencial. — Para falar a verdade, nem reparei. — Talvez o senhor tenha observado se se tratava de um jornal de grande formato ou de outro, de tamanho menor, como o que é usado nas publicações semanais. — Agora me lembro, já que o senhor me chamou a atenção para esse pormenor, que não era de formato grande. Provavelmente, seria o Spectator. Todavia, não tive tempo de pensar nessas particularidades, porque um outro homem estava sentado de costas para a janela, e eu seria capaz de jurar que esse outro era Godfrey. Não pude ver seu rosto, mas reconheci a inclinação familiar de seus ombros. Estava apoiado sobre o cotovelo, em atitude de profunda melancolia, com o corpo virado para o fogo. Hesitava sobre o que deveria fazer, quando senti uma rude pancada no ombro, e quem é que estava ao meu lado? O coronel Emsworth! "— Por aqui, cavalheiro! — disse, em voz baixa. Foi andando em silêncio para casa, e segui-o até entrar no meu quarto. Ao passar pela sala de entrada, ele pegara um horário de trens. — Há um trem para Londres às oito e meia da manhã — disse ele. — O carro estará à porta às oito. "O homem estava fulo de raiva, e, na verdade, eu me vi numa posição tão difícil que apenas pude balbuciar umas palavras incoerentes, procurando desculpar-me com a ansiedade de ter notícias de meu amigo. "— O assunto não tem discussão — disse ele abruptamente. — O senhor se intrometeu culposamente na intimidade de nossa família. Entrou aqui como hóspede e sai como espião. Não tenho mais nada a acrescentar, a não ser que não desejo tornar a vê-lo.
"Ao ouvir isso, perdi a calma, sr. Holmes, e falei com certa veemência. "— Eu vi seu filho, e estou convencido de que, por alguma razão particular, o senhor o esconde do mundo. Ignoro quais são os motivos de tal procedimento, mas tenho certeza de que ele já não é mais senhor de si. Previno-o, coronel Emsworth, de que, enquanto eu não estiver certo da segurança e do bem-estar de meu amigo, não pouparei esforços para deslindar o mistério, e não me intimidarei com o que o senhor possa dizer ou fazer. "O velho mostrou-se irritadíssimo, e cheguei a crer que iria me agredir. Como já disse, ele é um gigante, e, apesar de magro, é feroz; e, embora eu não seja nenhum fracalhão, teria de reunir todas as minhas energias para enfrentá-lo. Entretanto, depois de me olhar com profundo ódio, girou nos calcanhares e saiu do quarto. De minha parte, tomei pela manhã o trem indicado, com a firme resolução de vir diretamente me encontrar com o senhor para pedir sua opinião e sua ajuda na entrevista que já lhe solicitara por escrito." Tal era o problema que meu visitante me propôs. Esse problema apresentava, como o leitor sagaz já terá percebido, poucas dificuldades de solução, pois são limitadas as alternativas para se chegar ao âmago da questão. Contudo, apesar de tão elementar, oferecia pontos de interesse e de novidade, capazes de justificar minha decisão de divulgá-lo por escrito. Então, usando meu método familiar de exame lógico das circunstâncias, tratei de delimitar as soluções possíveis. — Com referência a criados — perguntei —, quantos existiam na casa? — Segundo suponho, havia somente o velho mordomo e sua mulher. Pareciam viver na maior simplicidade. — Então, no pavilhão não havia nenhum criado? — Nenhum, a não ser que o homenzinho da barbicha tivesse tal categoria. Contudo, parecia homem de posição bastante superior. — Isso me parece bastante sugestivo. Não percebeu se levavam comida de uma casa para a outra? — Já que fala nisso, lembro-me de ter visto o velho Raph carregando um cesto, pelo caminho do jardim, em direção à tal casinha. No momento, não me ocorreu que aquilo pudesse ser comida. — Não procurou se informar na vizinhança? — Procurei. Falei com o chefe da estação e também com o estalajadeiro da aldeia. Perguntei-lhes simplesmente se tinham alguma
notícia de meu velho camarada Godfrey Emsworth. Ambos me garantiram que ele empreendera uma viagem de volta ao mundo. Logo depois de regressar a casa, tornara a partir. Ficou patente que aquela versão era universalmente aceita. — O senhor não disse nada a respeito de suas desconfianças? — Nada. — Isso foi bom. Esse assunto deve, sem dúvida alguma, ser posto em pratos limpos. Vou a Tuxbury Old Park com o senhor. — Hoje mesmo? Aconteceu que, naquela altura, eu estava ocupado em esclarecer o que, na descrição de meu amigo Watson, é denominado "O caso da Abbey School", no qual o duque de Greyminster se encontrava bastante envolvido. Eu recebera também uma incumbência do sultão da Turquia que exigia solução imediata, porquanto, se fosse descuidada, podia ter conseqüências políticas de suma gravidade. Visto isso, somente no começo da semana seguinte, conforme o registra o meu diário, pude viajar para Bedfordshire em companhia do sr. James M. Dodd. Quando nossa carruagem passou por Euston, agregou-se ao nosso grupo um cavalheiro grave e taciturno, de terno cinzento, cor de ferro, com o qual eu antecipadamente entrara em contato. — Este é um velho amigo — disse eu a Dodd. — É possível que sua presença seja inteiramente desnecessária, mas, por outro lado, pode se tornar imprescindível. Por ora, é a única informação que tenho a dar. As narrativas de Watson habituaram sem dúvida o leitor ao fato de que não desperdiço palavras nem revelo minhas idéias enquanto um caso ainda está em andamento. Dodd pareceu surpreso, mas nada mais se disse, e continuamos os três nossa viagem. No trem, fiz mais umas perguntas a Dodd, que eu desejava que nosso companheiro ouvisse. — O senhor diz que viu claramente na janela o rosto de seu amigo, tão claramente que não tem dúvidas quanto à sua identidade, não é assim? — Nenhuma dúvida. Ele achatou o nariz contra o vidro. A claridade da lâmpada caía em cheio sobre Godfrey. — Não podia ser alguém parecido com ele? — Não, não; era ele e não outro. — Mas se o senhor diz que seu amigo estava mudado! — Apenas na cor. Seu rosto era... Como poderei descrevê-lo?... de uma brancura de barriga de peixe. Era um rosto lívido.
— A palidez era uniforme? — Creio que não. Foi sua testa que vi claramente quando a colou à janela. — O senhor não o chamou? — No momento, fiquei muito assustado e horrorizado. Depois, persegui-o, como já disse, mas sem resultado. Meu caso estava suficientemente esclarecido, só faltando um pequeno incidente para rematá-lo. Quando, após uma longa viagem de carro, chegamos ao estranho e vetusto casarão já descrito por meu cliente, foi Ralph, o idoso mordomo, que nos abriu a porta. A carruagem que nos trouxera tinha ficado à minha disposição naquele dia, e eu pedira ao meu amigo já mencionado que permanecesse nela, a menos que nós o convocássemos. Ralph, homem de certa idade e cheio de rugas, trajava a roupa convencional, isto é, casaco preto e calça preta e branca, mas com uma curiosa variante. Usava luvas cor de couro, e, assim que nos viu, descalçou-as instantaneamente, deixando-as em cima da mesa do vestíbulo, enquanto éramos introduzidos. Tenho, como meu amigo Watson já deve ter dito, sentidos anormalmente aguçados; meu olfato, nesse momento, acusava um cheiro débil mas incisivo. Parecia emanar da mesa do vestíbulo. Virei-me, coloquei lá meu chapéu, derrubei-o, abaixei-me para apanhá-lo e fiz o possível para aproximar o nariz uns vinte ou trinta centímetros das luvas. Sim, vinha delas, sem dúvida alguma, aquele estranho cheiro de alcatrão. Quando penetrei no escritório, meu caso já tinha o derradeiro remate. Quem dera eu não precisasse revelar meu jogo quando conto eu mesmo minha história! Ocultando cuidadosamente esses elos da cadeia é que Watson conseguia produzir aqueles seus efeitos finais tão maravilhosos. O coronel Emsworth não estava na sala, mas, tendo recebido o recado de Ralph, veio imediatamente. Ouvimos-lhe o passo rápido e pesado no corredor. A porta foi aberta com ímpeto, e ele entrou, com a barba rija e as feições transtornadas. Não me recordo de ter visto um velho tão terrível. Trazia nas mãos nossos cartões de visita. Rasgou-os em pedacinhos e pisou-os. — Eu já não lhe disse, grandessíssimo intrometido, que não tornasse a entrar em minha casa nem em suas dependências? Não ouse aparecer aqui outra vez. Se o senhor torna a entrar sem minha permissão, estou no meu direito de utilizar a violência. Cavalheiro, eu lhe dou um tiro! Por Deus que o faço! Quanto ao senhor — disse, dirigindo-se a mim —, torno-lhe extensiva minha advertência. Conheço sua ignóbil profissão, mas aconselho-o a dirigir para outro lado seu gabado talento. Aqui não há lugar para ele. — Não sairei daqui — disse com firmeza o meu cliente — enquanto não
ouvir da boca do próprio Godfrey que ele não se encontra sob coação. O dono da casa tocou a campainha. — Ralph — ordenou ele —, telefone para a polícia do condado e peça ao inspetor que mande dois guardas. Diga-lhe que há ladrões em casa. — Um momento — disse eu. — O senhor deve compreender, sr. Dodd, que o coronel Emsworth está no seu direito e que nossa situação nesta casa não é legal. Por outro lado, ele devia reconhecer que seu gesto é inteiramente ditado pela solicitude do senhor em relação ao filho dele. Ouso esperar que, se me fossem concedidos cinco minutos para conversar com o coronel Emsworth, certamente conseguiria modificar seu ponto de vista sobre o assunto. — Não é com essa facilidade que modifico meu ponto de vista — volveu o velho soldado. — Ralph, faça o que eu disse. Que diabo está esperando? Vamos, telefone para a polícia! — Nada disso — disse eu, encostando as costas à porta. — Qualquer intervenção da polícia provocaria exatamente a catástrofe que o senhor tanto receia. — Peguei meu bloco e rabisquei uma palavra sobre uma folha solta. — Isto — continuei, entregando a folha ao coronel Emsworth — é o que nos trouxe aqui. Ele cravou os olhos no que estava escrito no papel. Desvanecera-se de seu rosto qualquer outra expressão, exceto a de espanto. — Como é que o senhor sabe? — disse ele, atônito, sentando-se pesadamente na cadeira. — É meu ofício saber as coisas. Ficou absorvido em profunda meditação, cofiando a barba rala com a mão descarnada. Depois, fez um gesto que denotava resignação. — Bem, se desejam ver Godfrey, vão vê-lo. Não haverá interferência de minha parte. Os senhores me forçaram a isso. Ralph, vá dizer ao sr. Godfrey e ao sr. Kent que dentro de cinco minutos estaremos lá. Decorrido esse tempo, fomos andando pelo caminho do jardim até nos determos em frente da casa misteriosa, que ficava na extremidade. Um homem barbado, de baixa estatura, estava de pé, junto à porta, com um ar de assombro estampado no semblante. — Que reviravolta foi essa tão súbita, coronel Emsworth? — perguntou ele. — Isso atrapalhará todos os nossos planos. — Não há outro remédio, sr. Kent. Fomos forçados a isso. O sr. Godfrey pode nos ver?
— Pode. Ele está esperando lá dentro. — Voltou-se, e conduziu-nos até um espaçoso aposento, na frente, mobiliado com simplicidade. Estava ali um homem, de pé, de costas para o fogo, e, ao vê-lo, meu cliente avançou apressadamente, estendendo-lhe a mão. — Então, Godfrey, meu caro amigo, como vai? O outro, porém, fez um gesto como que para detê-lo. — Não me toque, Jimmie. Conserve-se à distância. Sim, fite-me bem! Já não pareço mais o elegante soldado Emsworth, do Esquadrão B, não é verdade? Seu aspecto era de fato extraordinário. Podia-se ver que realmente fora um belo homem, de feições delicadas, queimado pelo sol da África, mas, nas áreas mais escuras, viam-se manchas esbranquiçadas, que davam à tez uma estranha alvura. — É por isso que não quero receber visitas — disse ele. — Se fosse só você, Jimmie, ainda vá lá, mas podia ter dispensado a presença de seu amigo. Suponho que haja para isso alguma razão de peso, mas, como vê, estou em más condições. — Queria me certificar de que você estava bem, Godfrey. Vi-o naquela noite em que você encostou o rosto à minha janela, e não podia descansar enquanto não esclarecesse tudo. — O velho Raph me disse que você estava aqui, e não pude deixar de tentar vê-lo. Esperava que você não me visse, e tive de correr para minha toca quando ouvi a janela se abrir. — Mas, pelo amor de Deus, diga-me o que significa tudo isto! — A história não é muito longa — disse ele, acendendo um cigarro. — Recorda-se daquele combate matinal em Buffeisspruit, fora de Pretória, na linha da estrada de ferro do leste? Soube que fui ferido? — Sim, soube, mas faltaram-me pormenores. — Três de nós se perderam dos restantes. Era um terreno muito irregular, como você deve se lembrar. Os três eram: Simpson, o tal que chamávamos Baldy Simpson, Anderson e eu. Íamos passando incólumes por um bôer, mas ele se fingia de morto e agarrou-nos. Os outros dois foram mortos. Eu levei uma pancada no ombro. Colei-me no entanto, ao meu cavalo, e ele galopou vários quilômetros antes que eu desfalecesse e rolasse sela abaixo. "Quando voltei a mim, a noite caía. Levantei-me, sentindo-me muito fraco e doente. Fiquei surpreso ao ver uma casa muito próxima, um
casarão com uma grande varanda e com muitas janelas. Fazia um frio de rachar. Você deve se lembrar daquele frio entorpecedor que costumava fazer à tardinha, um frio terrível, abominável, muito diferente da geada áspera mas saudável. Eu estava enregelado até os ossos, e minha única esperança parecia estar naquela casa. "Tentei ficar de pé, e fui me arrastando, quase sem consciência do que fazia. Tenho uma vaga lembrança de ter subido lentamente os degraus, transposto uma porta aberta de par em par, entrado num enorme salão com várias camas e de ter me atirado em cima de uma delas. A cama estava por fazer, mas isso não me perturbou. Puxei as cobertas sobre o corpo enregelado e logo adormeci profundamente. "Quando acordei, era de manhã, e pareceu-me que, em vez de ter chegado a um mundo são e normal, tinha entrado num extraordinário pesadelo. O sol africano penetrava livremente pelas janelas amplas e sem cortinas, e cada pormenor do imenso dormitório, caiado de branco, e vazio, destacava-se com toda a clareza. De pé, diante de mim, estava um homem de baixa estatura, que parecia anão, com uma cabeça volumosa, falando nervosamente em holandês e meneando duas mãos horrendas, que me pareceram duas esponjas castanhas. Atrás dele estava um grupo de pessoas que pareciam muito divertidas com a situação, mas senti um arrepio de terror ao olhar para elas. Nenhuma daquelas criaturas era um ser humano normal. Todas eram tortas ou inchadas ou disformes de alguma maneira estranha, O riso daqueles mostrengos era uma coisa medonha de se ouvir. "Parecia que nenhum deles sabia falar inglês, mas a situação era clara, porque o tal da cabeça grande ia ficando cada vez mais furioso e dava berros selvagens, pondo as mãos disformes em cima de mim, e puxando-me para fora da cama, sem fazer caso do sangue que saía da minha ferida. O pequeno monstro era forte como um touro, e não sei o que ele teria feito de mim se um homem já maduro, que dispunha claramente de mais autoridade que os presentes, não tivesse chegado ao local atraído pela algazarra. O recém-chegado disse algumas palavras severas em holandês, e meu perseguidor desistiu de seu propósito. Então, o outro voltou-se para mim, olhando-me com verdadeiro assombro. "— Como foi possível que o senhor viesse parar aqui? — perguntou-me. — Espere um pouco. Vejo que está cansado e que seu ombro ferido precisa ser tratado. Sou médico, e logo lhe farei o curativo necessário. Mas, homem de Deus, o senhor aqui corre um perigo muito maior do que no campo de batalha! Está num hospital de leprosos, e dormiu na cama de um leproso. "Será preciso acrescentar mais alguma coisa, Jimmie? Parece que, com a batalha iminente, aqueles infelizes tinham sido evacuados na véspera. Depois, enquanto os britânicos avançavam, tinham sido reconduzidos para lá por aquele homem, superintendente médico do
hospital, o qual me garantiu que, embora se acreditasse imunizado contra a moléstia, jamais ousaria fazer o que eu tinha feito. Pôs-me num quarto particular, tratou-me com bondade, e, decorrida mais ou menos uma semana, fui enviado para o Hospital Geral de Pretória. "Essa é a minha tragédia. Aguardei cheio de esperança, mas só depois de chegar a casa é que os terríveis sinais que vê em meu rosto me disseram que eu não tinha escapado. Que havia de fazer? Encontrava-me nesta casa solitária. Tínhamos dois criados de absoluta confiança. Havia um pavilhão onde eu podia viver. Sob juramento de segredo total, o sr. Kent, que é médico, dispôs-se a ficar comigo. Posta nesses termos, a coisa pareceu bastante fácil. A alternativa é que era terrível.. isolamento perpétuo entre estranhos, sem nenhuma esperança de libertação. Mas era necessário absoluto sigilo, do contrário até mesmo nesta sossegada zona rural se ergueria um clamor público, e eu teria de ser atirado ao meu horroroso destino. Até você, Jimmie, até mesmo você teve de ficar alheio ao caso. Não posso imaginar por que motivo meu pai quebrou meu isolamento. O coronel Emsworth apontou para mim. — Foi este cavalheiro que me obrigou. — O velho militar desdobrou o pedaço de papel no qual eu escrevera a palavra "lepra". — Pareceu-me que, já que ele sabia tanto, era preferível que soubesse o resto. — Assim é — confirmei. — E quem sabe se daí não pode resultar algum bem? Segundo me consta, somente o sr. Kent examinou o doente. Permita-me indagar, cavalheiro, se o senhor é alguma autoridade nessas doenças, que são, conforme estou informado, de natureza tropical ou semi-tropical. — Possuo os conhecimentos correntes de todos os homens formados em medicina — respondeu o interpelado, formalizando-se um pouco. — Não tenho a menor dúvida, doutor, quanto à sua competência, mas também não duvido que o senhor concordará em que, num caso destes,
uma segunda opinião é valiosa. Sei que evitou esse alvitre receando que insistissem no sentido de isolar o paciente. — É exato — disse o coronel Emsworth. — Prevendo tal situação — expliquei —, trouxe comigo um amigo com cuja absoluta discrição se pode contar. Prestei-lhe uma vez um serviço profissional, e ele se prontificou a emitir sua opinião mais como amigo do que como especialista. Seu nome é Sir James Saunders. A expectativa de uma entrevista com lorde Roberts não teria causado maior deslumbramento e satisfação a um rude subalterno do que a que se via estampada agora no rosto do sr. Kent. — Será para mim uma honra conhecê-lo — murmurou o médico. — Vou então pedir a Sir James que dê um pulo até aqui. Ele está na carruagem, que ficou lá fora. Entretanto, coronel Emsworth, talvez possamos nos reunir em seu escritório, onde me seria possível dar as necessárias explicações. E aqui é que vejo a falta que me faz o meu Watson. Mediante perguntas astutas e exclamações de pasmo, ele saberia enaltecer a minha arte comezinha, que não é mais que bom senso sistematizado, e elevá-la às alturas de prodígio. Quando sou eu que conto a história, fico sem essa ajuda. Todavia, vou transmitir ao leitor meu processo mental da mesma forma que o fiz ao meu reduzido auditório, que incluía também a mãe de Godfrey, no gabinete do coronel Emsworth. — Este meu processo — principiei — parte da suposição de que, uma vez eliminado tudo o que é impossível, o restante, por pouco provável que pareça, deve ser a verdade. Também pode ocorrer que várias explicações fiquem de pé, e nesse caso tenta-se uma experiência, e logo outra, até que uma delas tenha uma base convincente. Vamos agora aplicar esse princípio ao caso presente. Tal como primeiro me foi apresentado, havia três. explicações possíveis a respeito da reclusão ou encarceramento daquele cavalheiro numa dependência da mansão paterna. Havia a explicação de que se mantivesse oculto por causa de um crime, ou de que estivesse louco e os seus desejassem evitar seu internamento num manicômio, ou de que tivesse alguma doença que motivara o isolamento. Não pude descobrir outras soluções adequadas. Estas, portanto, tinham de ser analisadas e postas em contraste. "A solução criminal não resistiu ao exame. Não havia, naquele distrito, notícia de nenhum crime cuja solução preocupasse as autoridades. Disso eu estava certo. Se se tratasse de algum crime ainda não descoberto, então é claro que seria de interesse para a família desembaraçar-se do delinqüente, e não conservá-lo oculto em casa. Não pude achar explicação para tal procedimento. "A loucura era mais plausível. A presença da segunda pessoa no
pavilhão sugeria um guarda. O fato de essa pessoa, ao sair, ter fechado a porta à chave corroborava a hipótese e dava a idéia de detenção. Por outro lado, essa detenção não podia ser severa, do contrário o jovem não teria escapado nem teria ido espiar seu amigo. O senhor deve se recordar, sr. Dodd, que eu sondava o terreno aqui e ali, perguntando-lhe, por exemplo, qual o jornal que o sr. Kent estava lendo. Se fosse o Lancet ou o British Medical Journal, isso teria me ajudado. Entretanto, não é ilegal conservar um doido numa casa particular, uma vez que ele esteja sob os cuidados de uma pessoa capaz e que as autoridades tenham sido devidamente notificadas. Por quê, pois, tanto mistério? Mais uma vez não pude ajustar a teoria aos fatos. "Restava a terceira possibilidade, com a qual, apesar de insólita e pouco verossímil, tudo parecia condizer. Não é rara na África do Sul a lepra. Por alguma casualidade extraordinária, o jovem podia tê-la contraído. As pessoas da família se veriam numa situação angustiosa, visto que desejariam salvá-lo do isolamento. Seria necessário grande segredo para evitar que a coisa transpirasse, seguindo-se então a interferência das autoridades. Facilmente se encontraria um médico devotado, o qual, sendo bem pago, se encarregaria do enfermo. Não havia motivos para se proibir este último de sair depois do escurecer. O embranquecimento da pele é um sintoma comum da moléstia. Tratava-se de um caso notável, tão notável que deliberei agir como se estivesse realmente provado. Quando, ao chegar aqui, notei que Raph, que é quem leva as refeições, usava luvas impregnadas de desinfetante, minhas últimas dúvidas se dissiparam. Uma única palavra lhe mostrou, coronel, que seu segredo fora descoberto, e, se preferi escrevê-la a dizê-la, foi para lhe provar que podia confiar na minha discrição. Estava eu terminando esta ligeira análise do caso quando a porta se abriu e apareceu a austera figura do grande dermatologista. Desta vez, porém, suas feições rígidas estavam suavizadas, e via-se nos seus olhos uma cálida expressão de humanidade. Encaminhou-se diretamente para o coronel Emsworth e apertou-lhe a mão. — Acontece-me freqüentemente ser portador de más novas, e raramente de boas — disse ele. — Mas, na presente ocasião, mereço um prêmio. Não é lepra. — Como? — Um caso bem marcado de falsa lepra ou ictiose, uma afecção escamosa da pele, desagradável à vista, obstinada, mas possivelmente curável e certamente nao-infecciosa. Sim, sr. Holmes, a coincidência é notável. Mas será realmente coincidência? Não estarão em ação forças sutis das quais pouca coisa sabemos? Quem nos assegura que a apreensão, que aquele rapaz sem dúvida sofreu de maneira terrível desde que esteve exposto ao contágio, não tenha produzido um efeito físico que simula aquilo que ele teme? Seja como for, empenho minha reputação profissional.... mas a senhora teve um desmaio! Creio que o sr. Kent deve cuidar da sra. Emsworth até que ela se restabeleça de um
choque tão feliz.
Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar
Sherlock Holmes em: A pedra Mazarino Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
Para o dr. Watson era agradável encontrar-se mais uma vez no desarrumado aposento do primeiro andar da Baker Street, que tinha sido o ponto de partida de tantas aventuras notáveis. Ele relanceou os olhos pelos certificados científicos colocados na parede, pela bancada de produtos químicos enegrecida pela ação da queimadura dos ácidos, pela caixa do violino encostada num canto, pelo balde de carvão, que em outros tempos continha os cachimbos e o tabaco. Finalmente, seus olhos voltaram-se para a cara nova e sorridente de Billy, o criado jovem mas muito discreto e jeitoso que ajudara um pouco a preencher a solidão e o isolamento que se formara em torno da figura taciturna do grande detetive. — Parece que não houve nenhuma modificação, Billy. Você também não muda. Espero que dele se possa dizer o mesmo. Billy lançou um olhar um pouco inquieto para a porta fechada do quarto de dormir. — Creio que ainda está dormindo — disse. Eram sete horas da noite de um belo dia de verão, mas o dr. Watson não se surpreendeu com o fato, porque conhecia de longa data o seu amigo e sabia que ele tinha noção do tempo. — Isso significa que temos um novo caso? — Sim, senhor, e, por sinal, neste momento ele está vivamente interessado em solucioná-lo. Chego a recear pela sua saúde. Está ficando macilento, e não quer comer nada. "Quando é que quer jantar, sr. Holmes?", perguntou-lhe a sra. Hudson. "Depois de amanhã, às sete e meia", respondeu ele. O senhor sabe como ele é quando toma alguma coisa a peito. — Sim, Billy, sei muito bem. — Está seguindo alguém. Ontem saiu disfarçado de operário à procura de trabalho. Hoje transformou-se numa velha. Até a mim enganou, a mim, que já devia estar habituado ao seu feitio. — Sorrindo, Billy indicou uma bojuda sombrinha, apoiada contra o sofá. — Aquilo faz parte da indumentária da velha — disse o rapaz. — Mas para que é tudo isso, Billy? Billy baixou a voz, como quem discute grandes segredos de Estado. — Não me importo de lhe dizer, doutor, mas a coisa não deve sair daqui. É esse tal caso do diamante da coroa. — O quê? O roubo de cem mil libras? — Exatamente. Tem de ser recuperado. Se eu lhe disser que o primeiroministro e o ministro do Interior estiveram ambos sentados nesse mesmo sofá!
O sr. Holmes tratou-os com muita distinção. Pôs logo os dois à vontade e prometeu fazer o que pudesse. Depois foi Lorde Cantlemere... — Ah! — Sim, senhor doutor; o senhor sabe o que isso significa. Ele para mim não passa de um emproado. Não desgosto do primeiro-ministro e nada tenho contra o ministro do Interior, que me pareceu homem cortês e bondoso, mas o tal lorde é que não tolero. O sr. Holmes também o detesta. É que ele não acredita no sr. Holmes, e foi contrário a que lhe entregassem o caso. Preferiria que Holmes falhasse. — E ele sabe disso? — O sr. Holmes sempre sabe tudo o que é preciso saber. — Bem, esperemos que ele não falhe e que Lorde Cantlemere fique envergonhado. Mas diga-me, Billy, por que aquela cortina está atravessada na janela? — O sr. Holmes mandou suspendê-la ali há já três dias. Ela está encobrindo uma coisa interessante. Billy avançou e correu o pano que tapava a cavidade da sacada. O dr. Watson não pôde reprimir um grito de espanto. Havia ali um autêntico fac-símile do seu velho amigo, de roupão e tudo o mais, com o rosto virado uns três quartos para a janela e para baixo, como se estivesse lendo um livro invisível, ao passo que o corpo estava bem enterrado numa poltrona. Billy descolou a cabeça e seguroua no ar. — Nós a colocamos em ângulos diferentes, de modo a dar mais a impressão de realidade. Eu não ousaria tocá-la se o estore não estivesse descido. Mas quando está erguido, pode-se vê-la do outro lado da rua. — Já uma vez usamos um estratagema parecido. — Antes de eu vir para cá, não é verdade? — comentou Billy. Abriu as cortinas da janela e olhou para a rua. — Há pessoas a nos observar lá longe. Vejo mesmo um sujeito à janela. Venha verificar por si mesmo. Watson dera um passo à frente, quando a porta do quarto se abriu e apareceu o vulto esguio de Holmes, com o rosto pálido e desfeito, mas o passo e o porte firmes como de costume. Com um salto, já estava junto à janela e correra de novo o estore.
— Basta, Billy — disse. — Você agora esteve em perigo de vida, meu rapaz, e no momento o seu auxílio me é imprescindível. Bem, Watson, é agradável vê-lo novamente nos seus velhos aposentos. Chegou numa ocasião crítica. — É o que acabo de saber. — Pode ir, Billy. Esse rapaz é um problema, Watson. Até que ponto terei desculpa para expô-lo assim ao perigo? — Perigo de quê, Holmes? — De morte súbita. Estou esperando alguma coisa para esta noite. — Esperando o quê? — Ser assassinado, Watson. — Que ideia, Holmes! Pare de gracejar. — Até mesmo o meu limitado senso de humor seria capaz de inventar um gracejo melhor do que esse. Mas, enquanto isso, fiquemos à vontade. É permitido o uso do álcool? O gasogênio e os charutos estão no mesmo lugar de sempre. Quero vê-lo de novo na sua cadeira de braços habitual. Espero que não tenha aprendido a desprezar o meu cachimbo e o meu lamentável tabaco, não? É o que nos últimos dias tem me substituído a comida. — Mas por que não come? — Porque as faculdades se apuram quando se é deixado a pão e água. Como médico, meu caro Watson, há de convir que o que a digestão ganha para abastecer o sangue fica perdido para o cérebro. E eu sou cérebro, Watson. O resto da minha pessoa é um mero apêndice. Portanto, é o cérebro que importa para mim. — Mas, e esse perigo, Holmes? — Ah, é verdade. Se isso vier a se concretizar, convém que você retenha na memória o nome e o endereço do assassino. Pode dá-lo à Scotland Yard, com recomendações e uma bênção de despedida. O nome é Sylvius: conde Negretto Sylvius. Vamos, homem, tome nota! Moorside Gardens, 136, W. Escreveu? O rosto franco de Watson mostrava contrações de ansiedade. Ele sabia perfeitamente os imensos perigos a que Holmes se expunha, e não ignorava que o que ele dizia talvez pecasse por falta e não por excesso. Watson era sempre o homem de ação, e mostrou-se à altura das circunstâncias. — Pode contar comigo, Holmes. Estou de folga durante um ou dois dias. — As suas qualidades não melhoram, Watson. Pois não é verdade que agora
acrescentou o vício da mentira aos seus outros vícios? Traz todos os sinais do médico atarefado com chamadas de hora em hora. — Não são chamadas assim tão importantes. Mas você não pode mandar prender esse indivíduo? — Sim, Watson, eu realmente poderia. É isso o que o preocupa tanto. — Mas, então, por que não manda prendê-lo? — Porque não sei onde está o diamante. — Ah! Billy contou-me... a pedra preciosa que falta à coroa! — Sim, a grande pedra amarela conhecida por "Pedra Mazarino". Lancei a minha rede e apanhei os meus peixes. Contudo, não tenho a pedra. Então, para que apanhá-los? Podemos limpar um pouco o mundo metendo-os no xadrez. Mas não é esse o meu propósito. O que quero é a pedra. — E esse conde Sylvius, é um dos peixes? — Sim, é um tubarão. E morde. O outro é Sam Merton, o boxeur. Sam não é mau sujeito, mas o conde tem se servido dele. Sam não é um tubarão. É um grande e tolo cadoz com cabeça de touro. Mas mesmo assim está se debatendo na minha rede. — Por onde anda esse conde Sylvius? — Estive toda a manhã ao lado dele. Você devia ter me visto disfarçado de matrona, Watson. Nunca representei melhor um papel. Ele chegou até a apanhar-me uma vez a sombrinha. "Com licença, senhora", disse, meio italiano que é, como você deve ter percebido, com a maneira graciosa dos povos do sul quando está bem disposto, mas um demónio em figura de gente quando o sangue lhe ferve. A vida, Watson, está cheia de caprichosos sucessos. — Podia ter sido uma tragédia. — Podia. Segui-o até a oficina do velho Straubenzee, os Minories. Foi Straubenzee que fez a espingarda de ar comprimido, uma perfeição, segundo ouço dizer, e acho que neste momento ele está na janela fronteira. Você viu o boneco? Billy com certeza o mostrou a você. Pois bem, ele pode, a qualquer instante, receber uma bala na formosa cabeça. Ah, Billy, o que é? O rapaz entrava de novo na sala, trazendo um cartão sobre uma salva. Holmes relanceou os olhos pelo cartão, ergueu as sobrancelhas e sorriu, divertido. — O homem em carne e osso. Eu esperava por isso. É hora de demonstrar coragem e sangue-frio, Watson. Talvez você tenha ouvido falar na fama do homem como exímio atirador de caça grossa. Seria um remate condigno da
sua excelente folha de atividades cinegéticas se ele pudesse me juntar à sua caçada. Isto é uma prova de que ele sente o meu pé tocando-lhe no calcanhar. — Mande chamar a polícia. — É o que provavelmente vou fazer. Mas não exatamente neste momento. Quer dar uma olhadela pela janela lá para fora, Watson, e ver se há alguém na rua, rondando a casa? — Sim, perto da porta há um tipo de aparência rude. — Deve ser Sam Merton, o fiel mas um tanto imbecil Sam. Onde está o tal cavalheiro, Billy? — Na sala de espera. — Mande-o aqui quando eu tocar. — Sim, senhor. — Se eu não estiver aqui, mande-o entrar de qualquer forma. — Sim, senhor. Watson esperou que a porta se fechasse, e então voltou-se muito sério para o seu companheiro. — Cuidado, Holmes, é muito perigoso. Aquele homem é um aventureiro sem nenhuma espécie de escrúpulo. Ele pode muito bem ter vindo aqui para assassiná-lo. — Isso não me causaria surpresa. — Insisto em ficar aqui com você. — Você atrapalharia muito. — A você ou a ele? — A mim, meu caro, a mim. — Mas não posso de maneira nenhuma deixá-lo. — Sim, Watson, pode. E vai fazê-lo, porque você nunca me falhou. Aquele homem veio com interesses próprios, mas acabará por se resignar aos meus. — Holmes tirou do bolso o seu caderno de notas e rabiscou algumas linhas. — Apanhe um trem e vá até a Scotland Yard, onde entregará isto a Youghal, do Departamento de Investigação criminal. Volte com a polícia. Então se dará a prisão do indivíduo.
— Fá-lo-ei com prazer. — Antes de você voltar, talvez eu tenha tempo suficiente para descobrir onde está a pedra. — Tocou a campainha. — Creio que é melhor sairmos pelo quarto de dormir. Essa segunda saída é extremamente útil. Prefiro ver o meu tubarão sem que ele me veja, e tenho, como você deve estar lembrado, a minha maneira própria de conseguir isso. Foi, portanto, numa sala vazia que Billy, um minuto depois, introduziu o conde Sylvius. O famoso caçador, esportista e mundano elegante era um sujeito alto e moreno, com um formidável bigode preto que encobria uma boca cruel, de lábios finos, encimada por um nariz comprido e curvo, semelhante ao bico de uma águia. Vestia-se bem, mas a sua gravata brilhante, alfinete fulgurante e anéis rutilantes faziam um efeito espaventoso. Quando a porta se fechou depois da sua passagem, ele olhou em redor com olhos ferozes e assustados, como quem desconfia de uma armadilha emcada canto. Teve um violento sobressalto ao ver a impassível cabeça e a gola do chambre que se destacavam acima da poltrona na janela. A princípio, sua expressão foi de puro espanto. Depois, o clarão de uma horrível esperança lampejou-lhe nos olhos negros e assassinos. Deitou um olhar em redor para ver se não havia testemunhas, e depois, na ponta dos pés, com a grossa bengala meio levantada, aproximou-se da silenciosa figura. Curvava-se já para o pulo e o golpe final quando uma voz fria e zombeteira o saudou da porta aberta do quarto de dormir. — Não o quebre, conde! Não o quebre. O assassino recuou, com o semblante transtornado pelo assombro. Por um instante, tornou a erguer um pouco a poderosa bengala, como se quisesse transferir da efígie para o original a sua violência; mas havia naqueles olhos cinzentos e firmes e naquele sorriso sardônico qualquer coisa que fez baixar a mão daquele agressor. — É uma bela obra — disse Holmes, avançando para a imagem. — Foi feita por Tavernier, o modelador francês. É tão hábil em obras de cera como o é o seu amigo Straubenzee em espingardas de ar comprimido. — Espingardas de ar comprimido!? Que quer dizer com isso? — Ponha o seu chapéu e a sua bengala em cima da mesinha. Queira sentarse. Quem sabe se o senhor não quererá também pôr de lado o seu revólver. Oh, muito bem, prefere sentar-se em cima dele. A sua visita é muito oportuna, porque preciso muitíssimo ter com o senhor dois dedos de conversa. O conde franziu a testa e as pesadas sobrancelhas ameaçadoras. — Eu também desejava dizer-lhe algumas palavras, Holmes. É por isso que
estou aqui. Não nego que há pouco estivesse quase para agredi-lo. Holmes balançou a perna pendente da beira da mesa. — Efetivamente, concluí que o senhor tinha essa ideia na cabeça — disse. — Mas a que devo essas atenções pessoais? — Deve-as ao fato de pôr os seus homens no meu encalço. — Os meus homens? Garanto-lhe que não! — A mim não me engana. Olhe que eu mandei acompanhá-los. Pelo menos dois estão no jogo, Holmes. — Trata-se de um pequeno pormenor, conde Sylvius, mas talvez o senhor quisesse fazer o obséquio de me tratar pelo meu título quando se dirige a mim. O senhor deve compreender que, com a minha rotina de trabalho, costumo tratar familiarmente metade da galeria dos patifes, e há de concordar em que as exceções são odiosas. — Está bem, sr. Holmes. — Ótimo! Mas asseguro-lhe que está enganado a respeito dos meus sonhados agentes. O conde riu desdenhosamente. — Não é só o senhor que observa. Ontem foi um velho esportista. Hoje era uma matrona. Não me perdem de vista durante o dia todo. — Realmente, cavalheiro, o senhor me lisonjeia. O velho barão Dowson disse, na noite anterior ao seu enforcamento, que, no meu caso, o palco perdera o que a lei ganhara. E agora o senhor confere os seus bondosos elogios aos meus modestos disfarces! — Então, era o senhor... em pessoa? Holmes encolheu os ombros. — O cavalheiro pode ver naquele canto a sombrinha que tão cortesmente me entregou nos Minories, antes de ter começado a ficar com a pulga atrás da orelha. — Se eu tivesse sabido, o senhor nunca mais... — Teria voltado a este humilde lar. Percebi isso muito bem. Todos nós temos de deplorar oportunidades perdidas. Da mesma maneira, o senhor não o percebeu, e eis-nos aqui! As sobrancelhas do conde franziram-se ainda mais sobre os seus olhos
ameaçadores. — O que o senhor acaba de dizer só serve para piorar a situação. Com que então não eram os seus agentes, mas o senhor em pessoa, disfarçado de comediante! Confessa que e perseguiu. Por quê? — Ora, vamos lá, conde. O senhor já caçou leões a tiro na África. — Sim, e daí? — Por que o fez? — Por quê? Era o esporte em si... a excitação de uma caçada... o perigo! — E, sem dúvida, para livrar a região de uma peste, não? — Exatamente! — Pois aí estão, em duas palavras, as minhas razões. O conde pôs-se de pé, como se acionado por uma mola, e involuntariamente sua mão escorregou até o bolso traseiro. — Sente-se, cavalheiro, sente-se! Havia uma outra razão, mais prática. Quero aquele diamante amarelo! O conde Sylvius tornou a sentar-se na cadeira, com um sorriso malicioso. — Palavra de honra! — disse ele. — O senhor sabia que era por isso que eu andava no seu encalço. O verdadeiro motivo de sua vinda aqui esta noite é descobrir até onde chega o meu conhecimento do assunto e até que ponto é absolutamente essencial a minha eliminação. Pois bem, eu diria que, do seu ponto de vista, ela é absolutamente essencial, porque eu sei tudo, menos uma coisa, que o senhor me vai dizer ainda esta noite. — Oh, deveras? Diga-me, por favor, qual é esse pormenor? — Onde está agora o diamante da coroa? O conde olhou atentamente para o seu interlocutor. — Oh, então o senhor quer realmente saber? Como diabos estaria eu em condições de lhe dizer? — O senhor está em condições de me informar e vai fazê-lo. — Realmente!
— O senhor não me ilude, conde. — Os olhos de Holmes, cravados em Sylvius, contraíram-se e iluminaram-se até se transformarem em dois ameaçadores pontos de aço. — O senhor, diante de mim, é como um espelho. Vejo até mesmo o avesso da sua alma. — Então também vê onde está o diamante! Holmes bateu palmas, divertindo-se, e apontou um dedo escarninho. — Então o senhor sabe. Acaba de reconhecer! — Não reconheço coisa nenhuma. — Agora, conde, se quer ser razoável, poderemos negociar. Do contrário, o vencido não serei eu. O conde Sylvius ergueu os olhos para o teto. — E o cavalheiro ainda fala em iludir! — disse. Holmes olhou para ele, pensativo, como um exímio jogador de xadrez que planeja o lance final. Nisso, abriu a gaveta da mesa e tirou um livrinho de apontamentos. — Sabe o que guardo neste livro? — Não, senhor, não sei! — Guardo o senhor! — A mim!? — Sim, o senhor! O senhor está todo aqui... cada ato da sua existência vil e perigosa. — Para o diabo, Holmes! — gritou o conde, com os olhos chamejantes. — Minha paciência tem limites! — Está tudo aqui, conde. Os fatos relativos à morte da velha Sra. Harold, que lhe legou sua propriedade de Blymer, que o senhor tão rapidamente consumiu no jogo. — O senhor está sonhando! — E a biografia completa da srta. Minnie Warrender. — Essa é boa! Que ganha o senhor com isso? — E muito mais ainda, conde. Está aqui o assalto levado a efeito no trem de luxo que ia para a Riviera no dia 13 de fevereiro de 1892. Está aqui o cheque
falsificado no mesmo ano contra o Crédit Lyonnais. — Não; nisso você não tem razão! — Então quer dizer que tenho razão nos demais casos! Ora, conde, o senhor é um jogador de cartas. Quando o outro jogador tem todos os trunfos, se o senhor desistir do jogo, poupa-se tempo. — Que tem a ver toda essa conversa com o diamante de que falou? — Devagar, conde, tenha um pouco de calma. Deixe-me chegar ao ponto que quero, mas deixe-me agir à minha maneira vagarosa. Tenho tudo isto contra o senhor, mas, acima de tudo, tenho uma acusação séria contra o senhor e seu espadaúdo cúmplice no caso do diamante da coroa. — Tem, realmente? — Sei qual foi o cocheiro que o levou a Whitehall e o que de lá o levou para longe. Sei do mensageiro que o viu perto do estojo. Sei de Ikey Sanders, que se recusou a cortá-lo a seu pedido. Ikey abriu o bico, e tudo se acabou. As veias da fronte do conde pareciam querer saltar. Suas mãos escuras e cabeludas crispavam-se convulsivamente com a emoção contida. Tentou falar, mas não conseguiu articular as palavras. — Está vendo meu jogo, conde? — disse Holmes. — Ponho-o todo em cima da mesa. Falta-me, porém, um naipe. O de ouros. Não sei onde está a pedra. — E nunca saberá. — Não? Ora, seja razoável, conde. Reflita na situação. O senhor vai pegar vinte anos de cadeia. O senhor e Sam Merton. Que partido tirará do seu diamante? Absolutamente nenhum. Mas, se o entregar, poderemos entrar num acordo, ainda que pouco limpo. Não é ao senhor nem a Sam que queremos. Queremos a pedra. Entregue-a e, por mim, pode sair em liberdade, contanto que se porte bem no futuro. Se der mais uma escorregadela, será a última. Mas desta vez minha tarefa é apanhar a pedra e não o senhor. — E se eu recusar? — Se recusar, ai! Tem de ser o senhor e não a pedra. Billy aparecera, atendendo a um toque de campainha. — Penso, conde, que seria conveniente que seu amigo Sam tomasse parte nesta conferência. Afinal de contas, os interesses dele também devem ser representados. Billy, você vai ver lá fora, à porta, um sujeito feio e enorme. Convide-o a subir. — E se ele não quiser vir, sr. Holmes?
— Nada de violências, Billy. Não o trate com grosseria. Se lhe disser que o conde Sylvius quer lhe falar, ele certamente virá. — Que vai fazer agora? — perguntou o conde, depois que Billy se ausentou. — Meu amigo Watson estava aqui ainda há pouco. Eu lhe disse que tinha na minha rede um tubarão e um cadoz; agora estou puxando a rede, e ambos vão subindo juntos. O conde pusera-se de pé e tinha as mãos atrás das costas. Holmes segurava qualquer coisa que fazia volume no bolso do seu roupão. — Holmes, você não há de morrer na cama. — Já tive mais de uma vez a mesma idéia. Será que isso tem grande importância? Afinal, conde, a sua própria saída deste mundo é mais provável que seja perpendicular do que horizontal. Mas essas previsões do futuro são macabras. Por que não aproveitar estritamente a hora presente? Um súbito clarão de ódio feroz fulgiu nos negros olhos ameaçadores do mestre do crime. O vulto de Holmes pareceu crescer, enquanto ele se empertigava e se preparava para o que desse e viesse. — Não adianta apalpar o revólver, meu amigo — disse, com voz tranqüila. — O senhor sabe perfeitamente que não tem coragem de utilizá-lo, mesmo que eu lhe desse tempo de pegá-lo. Os revólveres, conde, são coisas desagradáveis e barulhentas. Fique antes com as espingardas de ar comprimido. Ah! Creio que ouço os passos delicados do seu estimável parceiro. Como vai, sr. Merton? Um tanto monótona a rua, não acha? O lutador, um homem novo, de constituição sólida e cara larga, que denotava estupidez e obstinação, parou desajeitadamente à porta, olhando em redor com ar apalermado. O tom simples de Holmes era uma experiência nova, e embora Sam sentisse vagamente que se achava diante de um inimigo, não sabia como encará-lo. Voltou-se, pois, para o seu camarada, que era mais astuto, em busca de auxílio. — Que temos agora, conde? Que quer esse sujeito? O que é que há? — A sua voz era grave e rouca. O conde encolheu os ombros, e foi Holmes quem deu a resposta. — Se me permite responder à sua pergunta, sr. Merton, digo-lhe que agora não há nada: já houve. O pugilista continuou a dirigir a atenção para o seu sócio.
— Esse sujeito quer se fazer de engraçado ou o quê? Se quer, eu não estou achando graça nenhuma. — Acredito — disse Holmes. — E posso lhe prometer que, com o avançar da noite, o senhor ainda achará menos graça nas coisas. Escute, conde Sylvius. Sou um homem ocupado, e não posso perder tempo. Vou para aquele quarto. Na minha ausência, queiram pôr-se à vontade. O senhor pode explicar ao seu amigo, sem o constrangimento da minha presença, em que pé está o negócio. Entretanto, vou ensaiar no meu violino a Barcarola de Hoffmann. Voltarei dentro de cinco minutos para saber a sua resposta definitiva. Creio que o senhor percebeu bem a alternativa, não é verdade? Ou o senhor nos devolve a pedra ou o levamos preso. Holmes retirou-se, pegando no canto, ao passar, o seu violino. Passados alguns momentos, as notas plangentes da inesquecível melodia atravessavam brandamente as frestas da porta fechada do quarto. — O que é isso? — perguntou Merton ansiosamente, ao voltar-se para o companheiro. — Ele sabe do caso da pedra? — Sabe muito mais do que devia saber. E ninguém me assegura que ele já não saiba tudo. — Céus! — exclamou o pugilista, cujo rosto moreno se tornou um pouco pálido. — Ikey Sanders deu com a língua nos dentes. — Deveras? Ele há de me pagar. Nem que tenha de ir para a forca. — Isso de pouco nos valerá. O que importa é tomarmos uma decisão. — Um momento — disse o pugilista, olhando com desconfiança para a porta do quarto. — Esse sujeito é fino como um coral. Quem sabe se ele não estará ouvindo? — Como pode ele ouvir com o barulho da música? — É verdade. Mas não é impossível que haja alguém atrás de uma cortina. Há cortinas demais nesta sala. — Ao relancear os olhos pelo quarto, viu pela primeira vez a efígie na janela. Parou, de olhos fitos nela, e apontou-a com o dedo, tão embasbacado que não pôde dizer palavra. — Ora! Aquilo é apenas um boneco — disse o conde. — Para nos iludir, não é? Sim, senhor. É de se tirar o chapéu! Nem que tivesse saído do museu de cera de Madame Tussaud. É o homem escrito e escarrado,
de roupão e tudo. Mas essas cortinas, conde! — Oh, deixe as cortinas para lá! Estamos desperdiçando tempo, e olhe que é pouco. Ele pode nos mandar para a cadeia por causa daquela pedra. — Que vá ele para lá! — Mas deixa-nos escapar se lhe dissermos onde ela está. — O quê? Entregar a pedra? Perder cem mil libras? — Ou uma coisa ou outra. Merton coçou a cabeça de cabelo à escovinha. — Ele está sozinho ali. Podemos liquidá-lo. Os mortos não falam. O conde abanou a cabeça. — O homem está armado e prevenido. Se atirássemos contra ele, dificilmente conseguiríamos fugir de um lugar como este. Além disso, é muito provável que a polícia esteja inteirada das provas que ele tem contra nós. Olhe só! O que é isso? Ouviu-se um som vago, que parecia vir da janela. Ambos deram um salto, mas tudo estava em sossego. A sala certamente estava deserta. Havia apenas aquela estranha figura sentada na cadeira. — Foi alguma coisa na rua — disse Merton. — Escute, chefe, o senhor, que tem boa cabeça, com certeza há de achar uma saída. Se não houver violência, então a coisa já não é comigo. — Já enganei pessoas mais espertas do que ele — respondeu o conde. — A pedra está aqui no meu bolso secreto. Não quero correr o risco de perdê-la, deixando-a em qualquer lugar. Ela pode estar fora da Inglaterra esta noite e ser cortada em quatro pedaços em Amsterdam antes de domingo. Ele não sabe nada a respeito de Van Seddar. — Pensei que Van Seddar fosse embora a semana que vem. — Devia ir. Mas agora tem de partir no primeiro vapor. Um de nós tem de ir imediatamente com a pedra à Lime Street, para pô-lo ao corrente. — Mas o falso esconderijo ainda não está pronto. — Bem, a coisa tem de ser feita de qualquer maneira, e com qualquer risco. Não há um momento a perder. Novamente, com o senso do perigo que no esportista se converte em instinto, este fez uma pausa e olhou para a janela. Não havia dúvida: fora da
rua que viera aquele débil som. — Quanto a Holmes — continuou o conde —, podemos enganá-lo facilmente. Como sabe, o idiota não nos prenderá se puder obter a pedra. Pois bem, vamos prometer-lhe a pedra. Podemos pô-lo na pista falsa, e, até que ele descubra que está enganado, a pedra estará na Holanda e nós, fora do país. — Agora a coisa está cheirando bem! — disse Sam Merton, sorridente. — Vá dizer ao holandês que se mexa. Eu me encarrego deste pateta e lhe faço uma confissão falsa. Vou lhe dizer que a pedra está em Liverpool. Esta maldita música me dá nos nervos! Quando ele verificar que a pedra não está em Liverpool, ela já estará no seu lugar e nós, sulcando os mares. Você vai e volta o mais depressa possível. Aqui está a pedra. — Admira-me como tem coragem de trazê-la com o senhor. — Onde ela poderia estar mais segura? Se fomos capazes de tirá-la de Whitehall, qualquer pessoa podia tirá-la dos meus aposentos. — Deixe-me vê-la. O conde Sylvius lançou um olhar não muito lisonjeiro ao seu sócio e não fez caso da mão pouco limpa que ele lhe estendia. — O quê! Será que o senhor pensa que eu vou roubá-la? Olhe aqui, senhor, já estou ficando cansado dos seus modos! — Ora, ora, nada de melindres, Sam! Não podemos discutir. Venha até a janela, se quiser apreciar devidamente esta beleza. Agora segure-a contra a luz! Aqui! — Obrigado! Com um único salto, Holmes pulara da cadeira do manequim e agarrara a preciosa jóia. Agora segurava-a numa das mãos, enquanto a outra apontava um revólver para a cabeça do conde. Os dois ladrões, completamente atônitos, recuaram cambaleando. Antes que se refizessem do susto, Holmes apertara o botão da campainha elétrica. — Nada de violências, cavalheiros, nada de violências, é o que lhes peço! Poupem a mobília. Devem ter percebido que a posição de vocês é insustentável. A polícia está lá embaixo, esperando. A perplexidade do conde foi mais forte que a raiva e o medo que ele sentia. — Mas como diabos... ? — disse ele, e engasgou-se. — Sua surpresa é muito natural. O senhor não podia saber que há uma segunda porta no meu quarto que dá atrás daquela cortina. Imaginei que
tivessem me ouvido quando desloquei o boneco, mas a sorte estava do meu lado. Isso me deu ensejo de escutar sua substancial conversa, que teria lamentavelmente sido secreta se vocês tivessem notado a minha presença. O conde fez um gesto de resignação. — Damos a mão à palmatória, Holmes, Creio que você é o diabo em pessoa. — Pelo menos, pareço-me com ele, hem? — respondeu Holmes, com um sorriso delicado. A inteligência retardada de Sam Merton somente aos poucos foi compreendendo a situação. Apenas quando o som de passos pesados fez-se ouvir na escada exterior é que ele resolveu quebrar o silêncio. — Um tira e tanto! — exclamou ele. — Mas o que me diz daquela viola do inferno? Se eu ainda a ouço agora. — Sim, senhor! — tornou Holmes. — Tem toda a razão. Deixe-a tocar! Estes gramofones modernos não são uma invenção admirável!? Houve uma irrupção da polícia, as algemas deram o clássico estalido, e os criminosos foram conduzidos ao carro que os aguardava. Watson deixou-se ficar muito tempo com Holmes, congratulando-se com ele por mais aquele louro acrescentado à sua coroa de vitórias. A conversa dos dois foi outra vez interrompida pelo imperturbável Billy com a sua bandeja de cartões de visita. — Lorde Cantlemere, sr. Holmes. — Faça-o subir, Billy, É esse o eminente par do reino, representante dos mais altos interesses — disse Holmes. — É uma pessoa excelente e leal, mas pertence mais à velha guarda. Convirá fazê-lo perder a calma? Poderemos arriscar-nos a tomar certas liberdades com ele? Temos razões para supor que ele nada sabe do que se passou. A porta foi aberta para dar passagem a uma figura austera e magra, de traços angulosos, de suíças pendentes, daquelas que alguns homens usavam lá pelos meados da época vitoriana, de um negrume luzidio, características que mal se adaptavam aos seus ombros arredondados e ao andar incerto. Holmes adiantou-se com afabilidade e apertou a mão pouco amigável do fidalgo. — Como está, Lorde Cantlemere? Faz frio para esta época do ano, mas aqui dentro está bastante quente. Quer que eu lhe guarde o capote? — Não, obrigado. Não vou tirá-lo. Holmes conservava insistentemente a mão sobre a manga do capote do cavalheiro. — Por favor! Meu amigo, o dr. Watson, pode lhe garantir que essas mudanças
de temperatura são bastante traiçoeiras. Mas Sua Excelência, um tanto impaciente, libertou-se do importuno. — Cavalheiro, estou bem. A demora é pouca. Passei apenas para saber em que ponto vai a incumbência que o senhor próprio se impôs. — É difícil, muito difícil. — Eu já receava que o senhor fosse achá-la muito difícil. Sentia-se distintamente, nas palavras e nos modos do velho cortesão, uma ponta de escárnio. — Qualquer homem compreende as suas deficiências, sr. Holmes, mas pelo menos isso nos cura das fraquezas do amor-próprio. — É verdade. Tem-me deixado perplexo. — Sem dúvida. — Especialmente a respeito de um ponto. Quem sabe se o senhor pode me ajudar? — Recorre aos meus conselhos já um tanto tarde. Pensei que tivesse seus métodos infalíveis. Em todo caso, estou pronto a ajudá-lo. — Não há dúvidas quanto à possibilidade de intentarmos um processo contra os verdadeiros ladrões, não é verdade? — Sim, depois que o senhor os tiver agarrado. — Exatamente. Mas a questão é esta: como proceder em relação ao receptador? — Isso não é um tanto prematuro? — Faz parte do plano de ação. Agora, o que o senhor consideraria como prova cabal contra o receptador? — A posse real e efetiva da pedra. — Em tal hipótese o senhor o prenderia? — Sem dúvida alguma. Holmes raramente ria, mas chegou quase a fazê-lo, como o seu velho amigo Watson bem se recorda. — Nesse caso, meu caro senhor, sinto-me na dura contingência de lhe dar voz
de prisão. Lorde Cantlemere ficou vivamente irritado. Um vislumbre da antiga chama afluiu às suas faces descoradas. — É muita liberdade sua, sr. Holmes. Em cinqüenta anos de vida pública, não me recordo de nenhum caso semelhante. Sou um homem atarefado, cavalheiro, com a mente voltada para negócios de importância, e não tenho tempo nem gosto para brincadeiras. Posso dizer-lhe com franqueza que nunca acreditei nos seus poderes, e que fui sempre de opinião que o negócio estaria mais seguro nas mãos da força policial regular. Seu procedimento vem confirmar todas as minhas conclusões. Passe muito bem, cavalheiro. Holmes trocara rapidamente de lugar e achava-se agora entre o par do reino e a porta. — Um momento, cavalheiro — disse ele. — Realmente, retirar-se com a Pedra Mazarino seria um delito mais grave do que ser encontrado na sua posse temporária. — Cavalheiro, isto é intolerável! Deixe-me passar. — Meta a mão no bolso direito do capote. — Que significa isso, sr. Holmes? — Vamos, vamos; faça o que eu digo. No instante seguinte, o estupefato dignitário estava ali, gaguejando e piscando, tendo na palma da mão trêmula a grande pedra amarela. — O quê? Como! Que é isto, sr. Holmes? — Muito mal, Lorde Cantlemere, péssimo! — exclamou Holmes. — O meu velho amigo lhe dirá que tenho um hábito inveterado de pregar peças. E também que não posso resistir a uma situação dramática. Tomei a liberdade... a grande liberdade, reconheço-o, de pôr a pedra no seu bolso no começo da nossa entrevista. O velho par do reino volvia os olhos da pedra para o rosto risonho do brincalhão. — Cavalheiro, estou pasmo. Mas... sim, não há sombra de dúvida, é de fato a Pedra Mazarino. Ficamos muito agradecidos, sr. Holmes. Seu senso de humor pode, como o senhor reconhece, ser um pouco exagerado, e sua demonstração, bastante inoportuna, mas pelo menos devo retirar, como retiro, qualquer referência que fiz às suas maravilhosas faculdades profissionais. Mas como... — O caso está apenas meio concluído; os pormenores podem aguardar um
pouco. Sem dúvida, Lorde Cantlemere, o prazer que o senhor terá em falar a respeito deste feliz resultado no círculo brilhante ao qual regressará há de atenuar até certo ponto o seu desagrado pela minha brincadeira. Billy, queira acompanhar Sua Excelência até a porta, e depois diga à sra. Hudson que eu gostaria que ela mandasse aqui para cima, o mais depressa possível, um jantar para dois.
Sherlock Holmes em: As trĂŞs empenas Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
Não creio que qualquer das minhas aventuras com o sr. Sherlock Holmes tenha começado de maneira tão violenta ou tão dramática como a que costumo chamar "As Três Empenas". Havia já alguns dias que eu não via Holmes, e não fazia idéia do novo rumo que tinham tomado suas atividades. Contudo, naquela manhã, meu amigo estava com vontade de conversar, e tinha acabado de me mandar sentar na cadeira de braços, muito gasta e baixa, a um canto da lareira, enquanto ele, de cachimbo na boca, afundara-se na cadeira que ficava em frente, quando nosso visitante chegou. Para dar uma impressão exata do que ocorreu, será melhor dizer logo que tinha chegado ali uma espécie de touro bravo. A porta abrira-se de repelão, e um negro espadaúdo irrompera sala adentro. Seria uma figura cômica se não fosse terrível, pois usava um terno xadrez cinza muito berrante, com uma gravata salmão tremulando ao vento. Seu rosto largo e o nariz esborrachado projetavam-se para a frente, enquanto os olhos negros, nos quais se podiam vislumbrar ainda chispas de malícia, giravam de mim para Holmes e deste para mim. — Qual dos dois cavalheiros aqui presentes é o sr. Holmes? — perguntou. Holmes ergueu o cachimbo com um sorriso lânguido. — Oh, é o senhor! — disse nosso visitante, contornando a mesa com um passo antipático e sorrateiro. — Olhe lá, sr. Holmes, acho melhor não se meter onde não é chamado. Deixe os outros tratarem do que lhes compete. Percebeu, sr. Holmes? — Continue — pediu Holmes. — Está indo muito bem. — Ah, é — rouquejou o selvagem. — Deixará de pensar assim se eu lhe mostrar com quantos paus se faz nina canoa. Já tratei com gente de sua espécie, e no fim já não pareciam tão bem depois que cuidei deles. Olhe aqui, sr. Holmes! Dizendo isso, arregaçou as mangas e agitou no ar, bem junto ao nariz do meu amigo, um punho enorme, cheio de nós. Holmes examinou-o de perto, com fingido interesse, e indagou: — Você nasceu assim ou foi se transformando aos poucos? Talvez tenha sido a gélida frieza do meu amigo, ou talvez o ligeiro ruído que fiz ao empunhar o atiçador do fogo. O certo é que nosso visitante moderou um pouco seus ímpetos.
— Bem, considere-se avisado — disse ele. — Um amigo meu tem seus negócios lá para as bandas de Harrow (o senhor sabe o que quero dizer) e não deseja vê-lo metido neles. Compreendeu? Nem o senhor nem eu representamos a lei, e se o senhor for lá, vai me encontrar pela frente. Não se esqueça. — Já há muito tempo que eu queria me encontrar com você — disse Holmes. — Não lhe peço que se sente porque seu cheiro me desagrada, mas você não é Steve Dixie, o lutador? — É esse o meu nome, sr. Holmes, e o senhor vai pagar caro se continuar a me insultar. — Não é de insultos que você precisa — disse Holmes, olhando fixo para a boca horrenda do nosso visitante. — Mas que me diz do assassinato do jovem Perkins, em frente ao Holborn Bar.... Como? Já vai? O negro dera um pulo para trás, e seu rosto tornou-se cor de chumbo. — Não quero ouvir falar nisso — disse. — Que tenho eu a ver com esse Perkins, sr. Holmes? Eu estava treinando no Buli Ring, em Birmingham, quando ele se meteu em encrencas. — Sim, você deve dizer isso ao magistrado, Steve — continuou Holmes. — Estive observando você e Barney Stockdale... — Valha-me Deus! sr. Holmes... — Basta. Vá embora, vá! Quando eu precisar de você, chamo-o. — Passe bem, sr. Holmes. Espero que não fique me querendo mal por causa desta visita. — Não ficarei, se me disser quem o mandou aqui. — Oh, não há segredo nisso, sr. Holmes. Foi o cavalheiro que o senhor acaba de mencionar. — E quem o instigou a isso? — Meu Deus! Não sei, sr. Holmes. Ele apenas me disse: "Steve, vá procurar o sr. Holmes e diga-lhe que sua vida corre perigo, se ele vier a Harrow". Eis toda a verdade. Sem aguardar nova pergunta, nosso visitante saiu da sala quase tão precipitadamente como quando entrara. Holmes bateu no cachimbo para esvaziá-lo e deu uma risadinha de satisfação. — Ainda bem que você não foi obrigado a lhe pentear a carapinha, Watson. Estive observando suas manobras com o atiçador. Mas na verdade ele é um
indivíduo inofensivo, uma criança grande e musculosa, um fanfarrão idiota, facilmente assustadiço, como você viu. Pertence ao bando de Spencer John, e ultimamente tomou parte em atos sujos, que ainda sou capaz de pôr em pratos limpos quando tiver tempo. Barney, o chefe dele, é um sujeito mais astuto. São especializados em assaltos, intimidação e coisas assim. O que desejo saber é quem está por trás deles neste caso. — Mas por que é que eles querem intimidá-lo? — É a propósito desse caso de Harrow Weald. Isso acaba de me decidir a examinar o assunto, pois se alguém está com tanto interesse nisso é porque deve haver algo aí. — Mas o que se passa? — Eu ia lhe contar quando fomos interrompidos por essa pequena cena cômica. Aqui está o bilhete da sra. Maberiey. Se quiser vir comigo, podemos telegrafar a ela e partir imediatamente. "Prezado sr. Sherlock Holmes: [li eu] Tem havido uma série de estranhos incidentes relacionados com esta casa, e eu gostaria muito de ouvir sua opinião. Amanhã o senhor me encontrará em casa a qualquer hora. A casa fica a curta distância da Estação de Weald. Creio que meu finado marido, Mortimer Maberley, foi um de seus antigos clientes. Subscrevo-me atenciosamente, Mary Maberley." O endereço era: "As Três Empenas, Harrow Weald". — Aqui tem — disse Holmes. — E agora, se dispõe ilc tempo, Watson, partimos imediatamente. Uma curta viagem de trem e um trajeto ainda mais curto de carruagem levaram-nos à casa, uma vila de madeira e tijolo, localizada num terreno gramado. Três pequenas saliências acima das janelas superiores eram uma débil tentativa de justificar-lhe o nome. Ao fundo, um bosque de pinheiros melancólicos e de pouca altura. Todo o aspecto do lugar era de desolação. Sem dúvida, a casa parecia bem planejada, e a dama que nos recebeu era de certa idade, muito fina, com todos os indícios de esmerada educação e cultura. — Recordo-me muito bem de seu marido, minha senhora — disse Holmes —, embora tenha sido há anos que ele se serviu dos meus préstimos em algum assunto de pouca importância. — É provável que o nome de meu filho, Douglas, seja-lhe mais familiar. Holmes olhou para ela com grande interesse. — Realmente! A senhora é a mãe de Douglas Maberiey? Conheci-o vagamente. Mas Londres inteira o conheceu, é claro. Que criatura magnífica!
Por onde ele anda atualmente? — Morreu, sr. Holmes! Era adido diplomático em Roma, e lá faleceu, de pneumonia, o mês passado. — Sinto muito. Ninguém poderia ligar a idéia de morte a um tal homem. Jamais conheci alguém com tanta vitalidade. Ele vivia intensamente, com cada fibra de seu ser! — Intensamente demais, sr. Holmes. Foi o que o arruinou. O senhor se lembra dele como era, afável e esplêndido, mas não viu a criatura irritadiça, rabugenta, concentrada, em que Douglas se transformou. Seu coração estava partido. Num mês, a impressão que tive do meu valente rapaz foi de que se convertera num misantropo cansado de tudo. — Alguma aventura amorosa, uma mulher? — Ou algum demônio... Mas não foi para falar de meu filho que eu o chamei, sr, Holmes. — O dr. Watson e eu estamos às suas ordens. — Têm-se verificado aqui algumas ocorrências bastante estranhas. Já há mais de um ano que estou nesta casa, e, como desejava levar uma vida retirada, tenho tido poucas relações com meus vizinhos. Há três dias recebi a visita de um homem que se apresentou como corretor de imóveis. Disse que esta casa conviria exatamente a um cliente seu e que, se eu quisesse dispor dela, podia fazer o meu preço. Isso me pareceu um tanto estranho, visto haver à venda várias casas vazias e em iguais condições, mas naturalmente a proposta me interessou. Assim sendo, pedi quinhentas libras a mais do que eu dera por ela. Ele concordou imediatamente, acrescentando, porém, que seu cliente desejava comprar também a mobília, e por isso indagou quanto eu pedia por ela. Parte desta mobília vem de minha antiga casa e é, como o senhor vê, muito boa, de maneira que falei numa boa quantia redonda. Também com isso o homem logo concordou. Sempre desejei viajar, e o negócio era tão bom que realmente me pareceu que seria senhora de mim para o resto de minha vida. "Ontem, o homem chegou com o contrato já lavrado. Felizmente, tive a idéia de mostrá-lo ao sr. Sutro, meu advogado, que mora em Harrow. Ele me disse: "É um documento extravagante. A senhora percebeu que, se o assinar, não poderá levar coisa alguma da casa... nem sequer seus objetos de uso particular?" Quando o homem voltou, à tarde, falei-lhe nisso e disse-lhe que tencionava vender apenas a mobília. "— Não, não; tudo — respondeu ele. "— Mas, e as minhas roupas? As minhas jóias? "— Bem. Pode ser feita alguma concessão quanto a objetos de uso estritamente pessoal. Mas nada sairá da casa sem estar devidamente visado.
Meu cliente é um homem muito liberal, mas tem lá suas manias e o seu modo peculiar de fazer as coisas. Com ele é tudo ou nada. "— Então terá de ser nada — disse eu. "E o negócio parou aí. Mas a coisa me pareceu tão insólita que pensei... " Aqui deu-se uma interrupção bastante extraordinária. Holmes levantou a mão como para pedir silêncio. Depois, atravessou a sala, abriu violentamente a porta e arrastou para dentro uma mulher alta e magra, que ele agarrara pelo ombro. Ela entrou, debatendo-se desastradamente, como um frango descomunal e desajeitado que tivessem tirado do galinheiro, apesar de seus ruidosos protestos. — Largue-me, deixe-me! Que está fazendo? — dizia a mulher, esganiçandose. — Susan, que é isso? — Minha senhora, eu vinha perguntar se os visitantes ficavam para o almoço quando este homem avançou para mim. — Eu a estava ouvindo há uns cinco minutos, mas não queria interromper esta interessante narrativa. Você é um pouco asmática, não é verdade, Susan? Resfolega alto demais para o trabalho de que a encarregaram. A interpelada exibiu ao seu interlocutor uma expressão em que se via, ao lado da irritação, o assombro. — Quem é o senhor, afinal, para me empurrar dessa maneira? — Fiz isso simplesmente porque desejava fazer uma pergunta na sua presença. Sra. Maberley, disse a alguém que ia me escrever e me consultar? — Não, sr. Holmes, não disse a ninguém. — Quem pôs a carta no correio? — Foi Susan. — Claro. Agora, Susan, a quem foi que você escreveu ou mandou recado dizendo que sua patroa me pedia conselho?
— É mentira. Não mandei recado nenhum. — Olhe, Susan, os asmáticos não têm vida longa. Você sabe disso. E é feio pregar mentiras. A quem foi que você disse? — Susan! — gritou a patroa. — Creio que você é uma mulher má e traiçoeira. Lembro-me agora de vê-la falando com alguém por cima da sebe. — Isso não é da conta de ninguém — disse a mulher, bastante exasperada. — E se eu lhe disser que estava conversando com Barney Stockdale? — disse Holmes. — Pois se o senhor sabe, que mais quer saber? — Não tinha certeza, mas agora tenho. Escute, Susan, você pode ganhar dez libras se me disser quem protege Barney. — Alguém capaz de oferecer mil libras para cada dez que o senhor tem no mundo. — Sujeito rico, hein? Ah, você sorriu... Então não é sujeito, é sujeita. Já que chegamos até este ponto, diga o nome e ganhe as dez libras. — Vá para o inferno! — Oh, Susan! Dobre a língua! — Vou é sair daqui. Estou cheia de todos. Amanhã mando buscar minhas coisas. Dirigiu-se arrebatadamente para a porta. — Adeus, Susan. Tome um calmante... Agora — continuou Sherlock, passando subitamente do jocoso para o sério assim que a porta se fechou à passagem da abespinhada mulher —, este bando não é de brincadeira. Veja como não perdem tempo. A carta que a senhora me escreveu traz no carimbo a indicação de dez horas da noite. E contudo Susan fala a Barney. Este tem tempo de procurar o patrão para receber instruções; ele ou ela (em vista do sorriso zombeteiro de Susan quando pensou que eu tinha errado, inclino-me a que seja ela e não ele) traça um plano de ação. Convoca-se o negro Steve, e no dia seguinte, às onze horas da manhã, eu recebo a intimação. Trabalho rápido, como se vê. — Mas que pretendem eles? — Eis a questão. Quem era o dono desta casa antes da senhora? — Um capitão reformado de nome Ferguson.
— Há alguma coisa a respeito dele? — Que eu saiba, não. — Quem sabe se ele teria escondido aqui alguma coisa? Apesar de, hoje em dia, as pessoas esconderem seus tesouros nos bancos. Todavia, sempre há lunáticos por aí. Sem eles, o mundo seria um lugar triste. A princípio, pensei na possibilidade de haver alguma coisa de valor escondida por aí. Mas, nesse caso, por que haviam de querer sua mobília? Será que a senhora possui, sem o saber, alguma tela de Rafael ou uma primeira edição de Shakespeare? — Não. Acho que não possuo nada mais precioso do que um serviço de chá em porcelana de Derby. — Isso, a meu ver, não justificaria todo esse mistério. Ademais, por que não exporiam eles francamente o que desejam? Se cobiçam seu serviço de chá, podem certamente oferecer um preço por ele sem precisar lhe comprar tudo, até quase a roupa do corpo. Não. Parece-me que há por aí alguma coisa que a senhora ignora possuir e que não daria se soubesse que possui. — É o que também me parece — disse eu. — Se o dr. Watson o diz, é porque assim é. — Então, sr. Holmes, que poderá ser? — Vejamos se, por meio desta análise meramente mental, podemos chegar a algo de mais positivo. A senhora está nesta casa há um ano. — Há quase dois. — Tanto melhor. Durante todo esse tempo, ninguém quis nada da senhora. Agora, de repente, de três ou quatro dias para cá, a senhora está sendo assediada. Que conclui daí? — Só pode significar — disse eu — que o objeto, seja ele qual for, chegou aqui há pouco. — O dr. Watson tem novamente razão — disse Holmes. — Então, sra. Maberley, chegou aqui recentemente algum objeto? — Não. Não comprei nada de novo este ano. — Deveras? Não deixa de ser notável. Bem. Julgo que é melhor deixar que os fatos avancem um pouco mais, até conseguirmos dados mais concretos. Esse seu advogado é homem competente? — O sr. Sutro é muito competente. — A senhora tem outra criada, ou só estava aqui a bela Susan, que acaba de
sair? — Tenho aqui uma mocinha. — Então veja se Sutro se dispõe a passar uma noite ou duas aqui na casa. É possível que a senhora venha a precisar de proteção. — Contra quem? — Como se há de saber? O caso está certamente obscuro. Se não consigo descobrir aquilo que eles perseguem, tenho de abordar o assunto pela outra extremidade, e ver se chego ao principal. O corretor de imóveis deixou algum endereço? — O cartão de visita só traz o nome e a ocupação. Haines-Johnson, corretor de imóveis e avaliador. — Não tenho esperanças de encontrar esse nome nas listas telefônicas. Um homem honesto não oculta o lugar onde trabalha. Quanto ao resto, a senhora me informará do que houver. Aceitei o seu caso, e pode ficar tranqüila que o deslindarei. Ao atravessarmos a sala de entrada, os olhos de Holmes, aos quais nada escapava, pousaram sobre várias malas e caixotes empilhados a um canto. Os rótulos que traziam eram bem visíveis. — "Milano", "Lucerna". Isso vem da Itália. — São as coisas do meu pobre Douglas. — A senhora ainda não mexeu nesses objetos? Quando foi que os recebeu? — Chegaram a semana passada. — Mas a senhora disse... ora, certamente temos aqui o elo que faltava. Quem nos diz que não há aí alguma coisa de valor? — Não é possível, sr. Holmes. O pobre Douglas tinha apenas seu ordenado e uma pequena mesada. Que podia ele possuir de valioso? Holmes refletiu alguns momentos. — Não perca tempo, sra. Maberley — disse por fim. — Mande essas coisas para o seu quarto. Examine-as o mais depressa possível e veja o que contêm. Virei amanhã para saber o que há. Era evidente que As Três Empenas estava sob severa vigilância, porque, quando dobrávamos a sebe alta, no extremo da vereda, lá estava o negro
pugilista, à sombra. Aproximamo-nos dele cautelosamente, e aquele vulto nos pareceu sinistro e ameaçador. Holmes levou a mão ao bolso. — Procura o revólver, sr. Holmes? — Não, Steve. Procuro meu frasco de perfume. — O senhor é engraçado, sr. Holmes, não é verdade? — Mas não achará graça nenhuma em mim, Steve, se eu começar a andar no seu encalço. Avisei-o hoje de manhã. — Pois bem, sr. Holmes. Pensei no que o senhor me disse, e não desejo que toque mais no negócio do sr. Perkins. Suponhamos que eu possa ajudá-lo, sr. Holmes. Que tal? — Diga-me então quem está por trás de você, neste serviço. — Benza Deus! Eu já lhe disse a verdade, sr. Holmes. Não sei. Meu patrão Barney me dá ordens, e eu as cumpro. É só isso. — Tenha pois em mente, Steve, que a dona daquela casa e tudo o que há sob aquele teto estão sob minha proteção. — Perfeitamente, sr. Holmes. Vou procurar me lembrar. — Fiz com que temesse pela própria vida, Watson — observou Holmes, enquanto nos púnhamos de novo a caminho. — Creio que ele trairia o patrão se soubesse quem é o chefe. Minha sorte foi eu ter algum conhecimento do bando de Spencer John, e Steve pertencer a esse bando. Escute, Watson. Este é um caso para Langdale Pike, e vou procurá-lo agora mesmo. Quando estiver de volta, talvez já disponha de mais dados. Não tornei a ver Holmes durante aquele dia, mas calculei como o passara, porquanto Langdale Pike era seu manual vivo de consulta sobre todos os escândalos sociais. Essa estranha e lânguida criatura passava as horas em que estava acordada na sacada de um clube da St. James's Street, e era a estação receptora e transmissora de todas as bisbilhotices da metrópole. Amealhava, dizia-se, uma boa renda com os artigos que escrevia toda semana para jornais ordinários, ávidos de satisfazer a curiosidade mórbida dos leitores. Toda vez que, no mar denso da vida londrina, havia algum estranho redemoinho, era logo registrado, com exatidão automática, por aquele arquivo humano. Discretamente, Holmes ajudava Langdale com suas informações, sendo, por sua vez, ajudado por ele. Quando, na manhã seguinte, fui me encontrar com meu amigo em seus aposentos, percebi, pelo seu ar, que tudo ia bem, mas apesar disso aguardavanos uma notícia bastante desagradável. Estava contida no seguinte telegrama:
"Queira vir imediatamente. Casa cliente arrombada esta noite. Polícia vigilante. Sutro" Holmes deu um assobio. — O drama chegou a um ponto crítico, e mais depressa do que eu esperava — disse ele. — Há uma boa alavanca impulsionando este negócio, Watson, o que não me surpreende, depois do que me contaram. Esse Sutro naturalmente é o advogado dela. Receio ter cometido um erro por não lhe ter pedido que passasse a noite de vigilância. O homem provou que não tem competência. O recurso agora é empreender nova viagem a Harrow Weald. Achamos As Três Empenas muito diferentes da casa arrumada da véspera. Um pequeno grupo de ociosos aglomerava-se junto ao portão do jardim, enquanto dois policiais examinavam as janelas e os canteiros de gerânios. No interior, encontramos um cavalheiro encanecido, que se apresentou como o advogado, e junto dele um delegado rubicundo e espevitado, que cumprimentou Holmes como a um velho amigo. — Então, sr. Holmes, creio que no caso presente não terá grandes oportunidades. Trata-se de um arrombamento trivial, comum, cuja solução está nos limites da capacidade da velha polícia. Não há lugar para especialistas. — Estou certo de que o caso está em muito boas mãos — disse Holmes. — Está dizendo que se trata apenas de um arrombamento banal? — Exatamente. Conhecemos muito bem os autores e sabemos onde encontrálos, É o bando de Barney Stockdale, mais o negro. — Ótimo! O que foi que eles levaram? — Parece que não encontraram grande coisa. Cloroformizaram a sra. Maberley, e a casa foi... Ah! aqui está a própria senhora. Nossa amiga da véspera, pálida e abatida, entrara na sala, apoiada a uma criada. — O senhor bem me advertiu, sr. Holmes — disse ela, com um sorriso de pesar. — E eu, tola, não segui seu conselho. Não quis incomodar o sr. Sutro, e por isso fiquei desprotegida. — Somente esta manhã eu soube do ocorrido — explicou o advogado. — O sr. Holmes me aconselhou a ter algum amigo em casa. Eu não fiz caso do conselho, e paguei caro. — A senhora parece muito doente — disse Holmes. — Talvez nem esteja em condições de me contar o que sucedeu.
— Está tudo aqui — exclamou o delegado, batendo com a mão num volumoso bloco. — Todavia, se a senhora não se sentir demasiado exausta... — Na verdade, não há muito o que dizer. Não tenho dúvida de que a malvada Susan planejou um meio de lhes franquear uma entrada. Pareciam conhecer a casa como a palma da mão. Percebi, em dado momento, que me punham sobre a boca um pano embebido em clorofórmio, mas não tenho idéia de quanto tempo fiquei adormecida. Quando despertei, havia um homem ao lado da cama, e um outro, com uma trouxa na mão, erguia-se do meio da bagagem do meu filho, que se achava aberta em parte e espalhada pelo chão. Antes que ele pudesse fugir, dei um salto e agarrei-o. — A senhora se arriscou muito — notou o delegado. — Segurei-lhe o braço, mas ele se desembaraçou de mim, e o outro talvez tenha me batido, pois não consigo me lembrar de mais nada. Mary, a criada, ouviu o barulho e começou a gritar da janela. Isso provocou a chegada da polícia, mas os patifes já tinham fugido. — O que levaram? — Não creio que falte nada de valor. Tenho certeza que não havia nada nas malas do meu filho. — Os homens não deixaram nenhum indício? — Havia uma folha de papel que devo ter arrancado da mão do homem que agarrei. Essa folha ficou no chão, toda amassada. Está escrita com a letra do meu filho. — O que significa que não é coisa de grande valia — disse o delegado. — Pois, se fosse intenção do ladrão... — Claro — concordou Holmes. — Que bom senso! Não obstante isso, estou curioso para ver o papel. O delegado tirou de seu livro de notas uma folha dobrada de papel almaço. — Não deixo escapar nada, por mínimo que seja — disse ele, com certo enfado. — É um conselho que lhe dou, sr. Holmes. Em vinte e cinco anos de experiência, aprendi alguma coisa. Existe sempre a possibilidade de se encontrarem impressões digitais ou algo parecido. Holmes examinou a folha de papel. — Qual a sua opinião, delegado?
— Parece ser a parte final de algum romance excêntrico. É o que desconfio. — É bem possível que seja o fim de um conto excêntrico — confirmou Holmes. — Com certeza o senhor notou o número no alto da página. É 245. Onde estão as outras duzentas e quarenta e quatro páginas anteriores? — Suponho que os larápios as levaram. Que façam bom proveito! — Não deixa de parecer esquisito arrombar uma casa para furtar papéis como este. Isso lhe sugere alguma coisa, delegado? — Sim, senhor. Sugere-me que, com a pressa, os tratantes agarraram o que primeiro lhe veio às mãos. Bom lucro é o que novamente lhes desejo. — Que pretenderiam eles dos objetos de meu filho? — perguntou a sra. Maberley. — Como embaixo não acharam nada de valioso, foram tentar fortuna em cima. Eis como interpreto o fato. Que lhe parece, sr. Holmes? — Preciso refletir no caso, senhor delegado. Venha aqui à janela, Watson. E, quando nos achamos um ao lado do outro, ele leu de uma só vez o que a folha de papel continha. Começava no meio de uma frase e dizia o seguinte: "... rosto sangrava consideravelmente com os lanhos e cortes, porém, mais ainda lhe sangrava o coração, ao ver aquele rosto lindo, o rosto pelo qual ele estivera disposto a sacrificar sua própria vida, contemplar sua agonia e humilhação. Ela sorriu, sim, sorriu, como inimiga desapiedada e diabólica que era, quando o infeliz ergueu os olhos para ela. Foi nesse momento que o amor morreu e se converteu em ódio. O homem deve viver para alguma coisa. Se não é para o teu amplexo, minha dama, deve então ser certamente para a tua ruína e para a minha vingança completa". — Estranha gramática! — comentou Holmes com um sorriso ao devolver o papel ao delegado. — Reparou como do "ele" de repente passou à "minha"? O escritor ficou tão entusiasmado com a sua narrativa que no momento supremo imaginou ser ele próprio o infeliz herói. — Pareceu-me coisa bastante pobre — disse o delegado, guardando a folha em seu livro de apontamentos. — O quê! O senhor já está de saída, sr. Holmes? — Creio que nada mais me resta a fazer no presente caso, uma vez que ele se encontra em mãos tão capazes. A propósito, sra. Maberley, não disse que desejava viajar? — Foi sempre esse o meu sonho, sr. Holmes. — Aonde gostaria de ir? Cairo, Madeira, Riviera?
— Oh! Se tivesse dinheiro, daria uma volta ao mundo. — Muito bem. Pelo mundo todo. Então, até a vista. Talvez eu lhe escreva umas linhas hoje à tarde. Quando passávamos pela janela, surpreendi o sorriso do delegado e seu abanar de cabeça. "Esses tipos inteligentes têm sempre dois dedos de loucura." Foi a interpretação que dei ao sorriso do delegado... — Estamos agora, Watson, na derradeira parte da nossa curta jornada — disse Holmes, quando de novo nos achávamos em pleno centro de Londres. — Penso que seria melhor esclarecer este caso imediatamente, e não seria mau que você fosse comigo, pois é mais seguro ter uma testemunha quando se tem de tratar com uma senhora como Isadora Klein. Tínhamos tomado um carro e nos dirigíamos a um endereço que ficava na Grosvenor Square. Holmes estivera embebido em seus pensamentos, mas de repente despertou. — Por falar no caso, Watson, suponho que você já o recompôs com clareza, não é verdade? — Não posso dar uma resposta afirmativa. Somente concluo que vamos à procura da dama que é o móvel desta desagradável história. — Sem tirar nem pôr. Mas o nome de Isadora Klein não lhe sugere nada? Ela foi sem dúvida uma famosa beldade. Não havia mulher que com ela competisse. É espanhola da gema, do sangue real dos poderosos conquistadores que dominaram as Américas durante várias gerações. Isadora desposou o idoso alemão Klein, rei do açúcar, e pouco depois era, ao mesmo tempo, a mais rica e a mais linda viúva da terra. Houve então um intervalo de aventura durante o qual ela satisfazia todos os seus gostos. Teve vários amantes, e um deles foi Douglas Maberley, um dos homens mais belos de Londres. "Mas, afinal de contas, a aventura com Douglas tinha de ser uma coisa de mais importância. Ele não era uma mariposa da sociedade, mas um homem forte e orgulhoso, que dava tudo e esperava tudo. Ela, porém, é a belle dame sans merci de que falam prosadores e poetas. Uma vez satisfeito seu capricho, está terminada a aventura, e se o parceiro não se dá por entendido, ela o faz entender à força. — Então, aquela era a própria história dele... — Ah, enfim você começa a compreender. Ouvi dizer que ela está para se casar com o jovem duque Lomond, que quase podia ser seu filho. A mãe de Sua Graça podia não dar importância à diferença de idade, mas um grande escândalo seria um negócio muito diferente. Sendo assim, é urgente. Ah! Chegamos.
Era uma das mais belas casas de esquina do West End. Um lacaio que mais parecia um autómato recebeu nossos cartões de visita e pouco depois voltou para dizer que a senhora não estava em casa. — Então esperaremos até que chegue — disse Holmes jovialmente. O autômato acordou. — Não está em casa quer dizer que não está para recebê-los — disse o criado de libré. — Muito bem — retorquiu Holmes. — Isso significa que não teremos de esperar. Faça a fineza de entregar este bilhete à sua patroa. Rabiscou três ou quatro palavras numa página de seu bloco, dobrou-a e deu-a ao homem. — Que disse você, Holmes? — perguntei. — Escrevi simplesmente: "Prefere então a polícia"? Creio que com esta senha entraremos. O expediente surtiu o efeito desejado, e isso se deu com assombrosa celeridade. Um minuto depois, estávamos numa sala de visitas que parecia uma visão das Mil e uma noites, vasta e maravilhosa, mergulhada numa penumbra que era de quando em quando realçada por uma suave luz elétrica de cor rósea. A dama atingira, percebi, aquela fase da vida em que até mesmo a formosura mais orgulhosa se compraz na doçura dos meios-tons. Quando entramos, ela se levantou de um canapé. Era uma figura perfeita, alta, com um porte de rainha, um rosto lindo como se fosse máscara, com dois maravilhosos olhos espanhóis, que despediam chispas assassinas contra nós. — Que intromissão é essa e que significa essa insolente mensagem? — perguntou, tendo na mão a folha de papel. — Não necessito me explicar, madame. Tenho na mais alta conta a sua inteligência para ousar fazê-lo, embora confesse que ultimamente sua inteligência tem claudicado bastante. — Como assim, cavalheiro? — Supondo que os valentões que contratou pudessem me intimidar no desempenho de meu trabalho. Certamente não há homem que abrace uma profissão igual à minha se o perigo não o atrai. Com que então foi a senhora que me obrigou a examinar o caso do jovem Maberley? — Não faço a mínima idéia do ponto a que o senhor quer chegar. Que tenho eu a ver com valentões contratados?
— Sim, não dei o devido apreço à sua inteligência. Passe muito bem! — Um momento! Aonde vai? — À Scotland Yard. Ainda não tínhamos chegado à porta quando ela nos alcançou e segurou Holmes pelo braço. A dama de mármore, de um instante para outro, convertera-se na dama de veludo. — Queiram sentar-se, cavalheiros. Vamos discutir esse assunto. Sinto que posso ser franca com o senhor, sr. Holmes. O senhor tem os sentimentos de um cavalheiro. Com que rapidez o instinto feminino o descobre! Tratá-lo-ei como amigo. — Não posso prometer retribuir-lhe igual tratamento, madame. Não sou a lei, mas represento a justiça até onde chegam meu fracos poderes. Prontifico-me a ouvir, e depois direi como vou proceder. — Foi sem dúvida uma tolice minha ameaçar um homem da sua bravura. — Tolice maior, madame, foi a senhora ter-se posto à mercê de um bando de patifes que podem ou extorquir-lhe dinheiro ou traí-la a qualquer momento. — Oh, não! Não sou assim tão ingênua! Já que prometi usar de franqueza, posso dizer-lhe que ninguém, exceto Barney Stockdale e Susan, sua mulher, faz a mínima idéia de quem seja o chefe. Quanto aos dois citados, bem, não é a primeira... — Ela sorriu e fez um sinal com a cabeça, como a aprovar a sua encantadora confidência. — Percebo. A senhora já os experimentou antes. — São bons cães de caça, que correm e não ladram. — Pois cães desses arranjam meios e modos de, mais cedo ou mais tarde, morder a mão que lhes dá comida. Eles vão ser presos pelo arrombamento que praticaram. A polícia já anda no encalço deles. — Terão o que lhes toca. Por isso lhes pago. Quanto a mim, não figuro no caso. — A não ser que eu a faça figurar.
— Mas o senhor não fará tal coisa, O senhor é um cavalheiro. Trata-se de um segredo de mulher. — Em primeiro lugar, a senhora tem de restituir o manuscrito. Ela deu uma risada cristalina e encaminhou-se para a lareira da sala. Havia lá uma massa calcinada, que ela remexeu com o atiçador. — Terei de restituir isto? — perguntou. Apresentava um ar tão brejeiro, tão fora do comum, exibindo ali diante de nós seu sorriso de desafio, que me pareceu que, de todos os criminosos de Holmes, era aquele o que ele acharia mais difícil de enfrentar. Holmes, porém, não se deixava dominar pelo sentimento. — Isso acaba de marcar a sua sorte — disse ele com frieza. — É muito expedita nas suas ações, madame, mas desta vez passou dos limites. Ela deixou cair ruidosamente o atiçador. — O senhor é muito cruel — redargüiu. — Posso lhe contar a história toda? — Parece que eu mesmo poderia contá-la. — Mas o senhor deve vê-la com os meus olhos, não com os seus, sr. Holmes. Deve encará-la do ponto de vista de uma mulher que vê todo o sonho da sua vida prestes a desmoronar no último momento. Se essa mulher protege a si mesma, merece censura? — O pecado original foi seu. — Sim, sim, reconheço isso. Douglas era uma pérola de rapaz, mas aconteceu que não se adaptava aos meus planos. Ele queria casamento, sr. Holmes, casamento... veja bem, com um plebeu sem vintém. Só isso lhe servia, nada mais. E então fez-se teimoso. Como eu fosse boa e liberal com ele, pareceulhe que ainda devia ser mais e somente com ele. Era uma coisa intolerável. Por fim, tive de lhe fazer ver isso. — Contratando rufiões para espancá-lo sob as janelas desta própria casa. — O senhor realmente parece que sabe tudo! Sim, é verdade. Barney e seus companheiros conduziram-no para longe daqui e foram, reconheço-o, um tanto rudes com Douglas. Mas que fez ele então? Poderia eu acreditar que um cavalheiro procedesse daquela forma? Escreveu um livro descrevendo sua própria história. Eu, naturalmente, era o lobo; ele, o cordeiro. Estava tudo lá, com nomes diferentes, é claro. E quem, em Londres, deixaria de reconhecer os fatos e personagens? Que diz a isso, sr. Holmes? — Ele estava no seu direito.
— Douglas me escreveu e remeteu-me uma cópia de seu livro, para que eu pudesse ter a tortura da antevisão. As cópias eram duas, disse ele, uma para mim, outra para o editor. — Como soube a senhora que a destinada ao editor não lhe tinha chegado às mãos? — Eu sabia qual era o seu editor. Não é esse, como o senhor não ignora, o único romance de Douglas. Verifiquei que o editor não recebera nada da Itália. E eis que sobrevem a morte súbita do pobre rapaz. Enquanto existisse no mundo esse outro manuscrito, não podia haver tranqüilidade para mim. Naturalmente, o manuscrito devia se achar entre seus objetos, e estes seriam remetidos à mãe de Douglas. Pus o bando em campo. Desejava fazer a coisa de maneira honesta. E foi o que realmente fiz. Estava disposta a comprar a casa com tudo o que nela havia. Não fiz a menor questão de preço. Só lancei mão do outro expediente quando o primeiro falhou. Depois, sr. Holmes, que tratei Douglas com excessiva dureza (e Deus sabe como disso me arrependo!), que mais podia eu fazer com meu futuro em evidente perigo? Sherlock Holmes encolheu os ombros. — Bem, bem — fez ele —, suponho que terei de arranjar uma saída, como de costume. Quanto custa uma viagem de primeira classe em volta do mundo? A dama encarou-o com espanto. — Seria possível fazê-la com cinco mil libras? — Sim, creio que seria. — Muito bem. Penso então que a senhora não se negará a assinar um cheque para esse fim, e eu providenciarei para que ele chegue às mãos da sra. Maberley. A senhora deve-lhe um pouco de mudança de ar. Quanto ao resto, cara sra. Klein — e acenou-lhe com o dedo em riste —, tenha cuidado, muito cuidado! Não é possível andar sempre brincando com ferramentas afiadas sem cortar essas belas mãos.
Arthur Conan Doyle
O Vampiro de Sussex Título original: The Sussex Vampire
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1924
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Sussex Vampire publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VII, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Hamílcar de Garcia.
Holmes tinha lido atentamente um bilhete que o último correio lhe trouxera. Então, com um ruído seco produzido na garganta e que nele era o que mais se aproximava do riso, atirou-o a mim. — Como mescla do moderno e do medieval, do prático e do puramente fantástico, penso que isso é certamente o limite a que é possível chegar. Que diz a isso, Watson? Li o que se segue: "Old Jewry, 46. 19 de novembro. Assunto: Vampiros. Prezado senhor: O sr. Robert Ferguson, nosso cliente, sócio da firma Ferguson & Muirhead, vendedores de chá, de Mincing Lane, em memorando desta data fez-nos uma consulta relativa a vampiros. Como nossa firma é especializada estritamente na avaliação de maquinarias, o assunto da consulta foge à nossa alçada, e por isso sugerimos ao sr. Ferguson que procurasse V. Sa. e lhe expusesse o caso. Não esquecemos o triunfo obtido por V. Sa. no caso Matilda Briggs. Com elevado apreço, subscrevemo-nos, Morrison, Morrison, and Dodd E. J. C." — Matilda Briggs não é nenhum nome de mulher, Watson — disse Holmes, com voz que traía uma recordação. — Era um navio cuja sorte andou ligada à do gigantesco rato de Sumatra, uma história para a qual o mundo ainda não se acha preparado. Mas que sabemos nós acerca de vampiros? Isso não escapa também à nossa alçada? Antes isso que a estagnação dos charcos, mas parece que fomos transportados para o mundo encantado onde se desenrolam as histórias de Grimm. Estenda o braço para esse livro, Watson, e veja o que nos diz a letra V. Eu me inclinei para trás e retirei da estante o grande volume de registro a que ele se referia, Holmes equilibrou-o sobre o joelho, e seus olhos moveram-se vagarosamente e com amor pêlos seus casos antigos, que se misturavam com a informação acumulada de toda uma vida. — Viagem do Gloria Scott — leu ele. — Mau negócio foi esse. Tenho uma vaga lembrança de que você tomou apontamentos sobre o caso, Watson, embora eu não pudesse me congratular com você pelo resultado obtido. Victor Lynch, o falsário. Veneno de lagarto ou
do gila monster. Caso notável, esse! Vittoria, a beldade de circo. Vanderbilt e o vagabundo criminoso. Víboras. Vigor, a maravilha de Hammersmith. Sim, sim. Belo índice este! É realmente insuperável. Escute isto, Watson: vampirismo na Hungria. E ainda: vampiros na Transilvânia. — Folheou as páginas com avidez, mas, após uma leitura atenta e rápida, pôs de lado o grande livro com um gesto de desapontamento. "Tolices, Watson, só tolices! Que nos importam cadáveres ambulantes que só podem ser mantidos no túmulo por estacas que lhes atravessem o coração? Puro desvario. — Mas com certeza — disse eu — o vampiro não era necessariamente um morto, não é verdade? Um vivo podia muito bem pegar-lhe o costume. Eu, por exemplo, já li a respeito de certos velhos que sugavam o sangue dos moços a fim de conservar a juventude. — Tem razão, Watson. Numa dessas referências vem mencionada a lenda. Mas iremos dar atenção a tais coisas? Esta agência tem grande solidez e reputação, e assim deve se manter. O mundo é bastante grande para nós. Não precisamos recorrer a fantasmas. Receio que não possamos levar muito a sério esse Robert Ferguson. É provável que esta carta tenha sido escrita por ele e lance alguma luz sobre o problema que o aflige. Pegou uma segunda missiva, que estava em cima da mesa e na qual não reparara enquanto se ocupava da primeira. Começou a lê-la com um ar sorridente, mas esse sorriso foi aos poucos cedendo lugar a uma expressão de intensa concentração e interesse. Terminada a leitura, ficou por algum tempo mergulhado em pensamentos, com a carta esquecida entre os dedos. Finalmente, com um estremeção, despertou do devaneio. — Cheeseman's, Lamberley. Onde fica Lamberley, Watson? — Fica em Sussex, ao sul de Horsham. — Não muito longe, hein? E Cheeseman's? — Conheço a região, Holmes. Está cheia de velhas casas cujas denominações se prendem aos homens que as construíram há séculos. Assim é que você encontra por lá Odley's e Harvey's e Carriton's... As pessoas estão esquecidas, mas seus nomes perduram nas casas. — Precisamente — disse Holmes com frieza. Uma das singularidades de sua natureza orgulhosa e pouco comunicativa era que, embora arquivasse no cérebro com grande rapidez e cuidado qualquer nova informação, raramente manifestava agradecimento ao informante. — Desconfio de que antes de chegarmos ao fim saberemos muita coisa mais a respeito de Cheeseman's, Lamberley. A carta é, como eu esperava, de Robert Ferguson. A propósito, ele diz que o conhece. — A mim? — É melhor que você a leia. Holmes entregou-a a mim. Encimava-a o citado endereço. "Prezado sr. Holmes: [dizia a carta] Escrevo-lhe a conselho de meus advogados. Porém, o assunto que me traz à sua presença é tão delicado que nem sei como encetá-lo. Diz respeito a um amigo que aqui represento. Esse cavalheiro casou-se há uns cinco anos com uma senhora peruana, filha de um negociante do Peru, que ele conheceu numa transação de importação de nitratos. A dama era muito formosa, mas sua nacionalidade estrangeira e sua religião diferente
ocasionaram uma divergência de interesses e de sentimentos entre marido e mulher, de modo que, depois de algum tempo, seu amor por ela talvez tenha esfriado, chegando ele provavelmente a considerar sua união como um erro. Meu amigo descobriu no caráter da esposa certos aspectos que nunca chegou a sondar ou entender. Isso era tanto mais penoso quanto ela se mostrava a esposa mais dedicada que um homem podia ter, segundo todas as aparências, absolutamente devotada a ele. Passo agora ao ponto que esclarecerei melhor quando nos encontrarmos. É que a presente missiva tem exclusivamente por fim dar-lhe um apanhado geral da situação e saber se o senhor gostaria de se envolver pessoalmente no assunto. A senhora começou a exibir algumas facetas curiosas, inteiramente alheias à sua índole, em geral branda e delicada. O cavalheiro foi casado duas vezes, tendo um filho do primeiro matrimônio. O rapazinho tem agora quinze anos e é um adolescente encantador e muito meigo, embora infelizmente aleijado em conseqüência de um acidente que sofreu quando era criança. Duas vezes a esposa foi apanhada maltratando o pobre rapaz, sem qualquer provocação da parte deste. Uma vez, bateu-lhe com um pau, deixando-lhe um grande vergão num braço. Isso, entretanto, foi coisa sem importância em comparação com o procedimento dela para com seu próprio filhinho, uma linda criança que ainda não conta um ano de idade. Em certa ocasião, há cerca de um mês, a criança ficara sozinha por alguns minutos, sem a assistência da ama. Um grito estridente, soltado pelo bebé, como que provocado por dor aguda, fez a ama voltar para junto dele. Ao entrar correndo no quarto, viu a patroa inclinada sobre o bebé, aparentemente no ato de lhe morder o pescoço. Havia nesse ponto um pequeno ferimento do qual corria um fio de sangue. A ama ficou tão horrorizada que teve vontade de chamar o pai da criança, porém a senhora implorou-lhe que não o fizesse, e chegou a dar-lhe cinco libras como paga de seu silêncio. Não foi apresentada nenhuma explicação para o caso, e daquela vez a coisa ficou por ali. Todavia, o incidente deixou uma terrível impressão no espírito da ama, e daí por diante ela começou a observar a patroa com maior atenção e a vigiar mais de perto o bebê, a quem amava ternamente. Pareceu-lhe que, assim como ela observava a mãe, também a mãe a observava, e que cada vez que era obrigada a deixar o bebê sozinho, a mãe ficava à espera para se aproximar dele. Dia e noite a ama protegia a criança, e noite e dia a mãe, silenciosa e vigilante, parecia estar à espreita, como o lobo espera o cordeiro. O caso talvez se lhe afigure incrível, e contudo rogo-lhe que o leve a sério, porque a vida de uma criança e a sanidade mental de um homem podem depender dele. Chegou afinal o dia em que já não foi possível conservar oculta do marido a terrível realidade. Os nervos da ama haviam cedido; a pobre mulher não suportou por mais tempo tamanho esforço e fez uma confissão franca e completa ao homem. A este, a história pareceu tão absurda como talvez pareça agora ao senhor. Ele sabia que a esposa era uma mulher amorosa e, excluindo suas agressões contra o enteado, uma mãe afetuosa. Como admitir, então, que ela ferisse o próprio filhinho? Disse à ama que ela devia estar sonhando, que suas suspeitas eram próprias de uma demente e que não era possível tolerar acusações daquele tipo contra a patroa. Enquanto os dois conversavam, ouviu-se de súbito um grito lancinante. Ama e patrão correram ao quarto do bebê. Imagine os sentimentos do marido, sr. Holmes, ao ver a esposa, que estivera de joelhos, levantar-se de junto do berço, e ao ver sangue sobre o pescoço descoberto do bebê e o lençol. Com um grito de horror, virou o rosto de sua mulher para o lado da luz e viu-lhe sangue nos lábios. Fora ela — ela, sem sombra de dúvida — quem tinha bebido o sangue da pobre criança. É essa a atual situação do caso. Ela agora não sai do quarto. Não foi dada nenhuma explicação. O marido está quase desnorteado. De vampirismo, tanto ele como eu pouco mais sabemos que o nome. Pensávamos que era alguma lenda estrangeira. E todavia aqui, bem no coração do Sussex inglês... Bem, tudo isso pode ser discutido com o senhor pela manhã. É possível? Estará disposto a usar suas grandes faculdades para ajudar um homem aflito? Em caso afirmativo, queira telegrafar para Ferguson, Cheeseman's, Lamberley, e aí pelas dez horas eu estarei em sua casa. Com grande estima e apreço, Robert Ferguson. P.S. — Creio que seu amigo Watson jogou rúgbi para o Black-heath quando eu era jogador do Richmond. É a única apresentação da minha pessoa que posso oferecer."
— Claro que me lembro dele — disse eu ao largar a carta. — O imenso Bob Ferguson, o melhor jogador que o Richmond já teve. Foi sempre um sujeito de bom coração. Por isso não admira que se preocupe tanto com a aflição de um amigo. Holmes olhou pensativo para mim e abanou a cabeça. — Ainda não cheguei a compreender aquilo de que você é capaz e aquilo de que não é, Watson — disse ele. — Há na sua pessoa possibilidades inexploradas. Como bom companheiro, mande-lhe um telegrama. "Examinarei seu caso com prazer." — Seu caso? — Não vamos consentir que ele pense que esta agência é um asilo de papalvos. É claro que o caso é dele. Mande-lhe o telegrama e deixe o negócio descansar até amanhã. No dia seguinte, precisamente às dez horas da manhã, Ferguson entrou no nosso aposento. A lembrança que eu conservava dele era a de um homem alto e esguio, de membros ágeis, que lhe conferiam movimentos fáceis e rápidos, capazes de fazer face a qualquer adversário no campo. Nada na vida é mais penoso do que topar com a ruína de um belo atleta que conhecemos na flor da idade. Sua enorme compleição tinha descaído, seu cabelo louro-claro estava ralo e os membros, encurvados. Receio ter despertado nele emoções correspondentes. — Olá, Watson — disse, e sua voz ainda era grave e cordial. — Você já não parece mais o homem que era quando eu o atirei por cima das cordas, no meio da multidão, no Old Deer Park. Também devo ter mudado um pouco. Porém, envelheci ainda mais nestes dois últimos dias. Vejo pelo seu telegrama, sr. Holmes, que é inútil fingir que represento alguém. — É mais simples tratar sem intermediário — disse Holmes. — Não há dúvida. Mas o senhor deve calcular como é difícil falar da única mulher que temos obrigação de proteger e ajudar. Que posso fazer? Como referir à polícia uma história destas? E, contudo, os pequenos têm de ser protegidos. Será loucura, sr. Holmes? Será qualquer coisa no sangue? O senhor tem algum caso semelhante em sua experiência? Pelo amor de Deus, dê-me qualquer conselho, pois estou quase a ponto de perder a cabeça. — É muito natural, sr. Ferguson. Agora sente-se e acalme-se e dê-me algumas respostas claras. Posso lhe assegurar que, quanto a mim, estou longe de perder a cabeça, e tenho confiança em que arranjaremos uma solução. Antes de mais nada, fale-me das providências que tomou. Sua esposa ainda se encontra perto das crianças? — Tivemos uma cena medonha. Ela é uma mulher muito afetuosa, sr. Holmes. Se já houve mulher que amou um homem de todo o coração e com toda a alma, minha esposa é essa mulher. Sentiu no mais íntimo de seu ser a descoberta que fiz desse horrendo, desse incrível segredo. Nem ao menos quis falar. A única resposta que deu às minhas censuras foi fitar-me com uns olhos em que se lia uma espécie de desespero selvagem. Depois, dirigiu-se arrebatadamente para o seu quarto e fechou-se lá dentro. Desde então, recusou-se a me ver. Ela tem uma criada que já a servia antes do casamento, chamada Dolores... uma amiga, mais que uma criada. Dolores leva-lhe a comida. — Então a criança não se acha em perigo imediato?
— A sra. Mason, a ama, jurou que não a abandonará nem de dia nem de noite. Ela me merece absoluta confiança. Mais inquietação me causa o pobre do pequeno Jack, pois, conforme lhe disse em minha carta, ele foi duas vezes agredido por minha mulher. — Mas nunca foi gravemente ferido? — Não. Ela bateu nele desapiedadamente. Isto é muito mais terrível porque ele é um inofensivo aleijadinho. — As feições descarnadas de Ferguson abrandaram-se quando ele começou a falar do menino. — Era de esperar que o estado do pobrezinho enternecesse qualquer coração. Foi uma queda na infância, sr. Holmes, que lhe ocasionou um defeito na espinha. Mas aquele corpo abriga o coração mais terno e afetuoso. Holmes pegara a carta da véspera e leu-a toda outra vez. — Quantas pessoas há em sua casa, sr. Ferguson? — Duas criadas que estão lá há pouco tempo. Um moço de cavalariça, Michael, que dorme em casa. Minha mulher, eu, o meu rapazinho Jack, o bebê, Dolores e a sra. Mason. Aí tem todos. — Segundo depreendo, o senhor não conhecia bem sua esposa na época do casamento. — Conheci-a apenas umas semanas antes. — Há quanto tempo essa criada Dolores estava com ela? — Havia alguns anos. — Então ela devia conhecer a índole de sua esposa melhor que o senhor, não é verdade? — Sim, é provável. Holmes tomou um apontamento. — Imagino — disse ele — que poderei ser mais útil em Lamberley do que aqui. O caso é essencialmente de investigação pessoal. Se a senhora permanece no quarto, nossa presença decerto não a molestará. Ficaremos, evidentemente, na estalagem. Ferguson teve um gesto de alívio. — É o que eu esperava, sr. Holmes. Se o senhor puder ir, há um trem excelente, que parte da Estação Vitória às duas horas. — É claro que iremos. Tenho agora umas férias, e posso dedicar ao seu caso todas as minhas energias. Watson sem dúvida vai conosco. Há, porém, um ou dois pontos sobre os quais desejo ter mais certezas antes de partirmos. Segundo compreendi, a infeliz senhora foi vista agredindo ambas as crianças, a dela e o seu filho, não? — Exatamente. — Mas os ataques tomam formas diferentes, não é verdade? Ela bateu no seu filho. — Uma vez com um pau e outra, ferozmente, com as mãos. — Ela não explicou por que fez isso? — Não. Disse apenas que o odiava. Disse-o repetidas vezes. — Bem, não é coisa muito rara nas madrastas. Chamaríamos a isso ciúme póstumo.
Sua mulher é de natureza ciumenta? — Muito ciumenta, um ciúme tão forte quanto o seu ardente amor tropical. — Mas o rapazinho tem, segundo me parece, quinze anos, e é provavelmente de inteligência muito desenvolvida, uma vez que o corpo ficou tolhido no seu desenvolvimento. Ele não lhe deu nenhuma explicação a respeito dos ataques de que foi vítima? — Não. Declarou simplesmente que não havia razão para isso. — Antes disso eles eram amigos? — Não. Nunca houve afeição entre os dois. — Contudo, o senhor diz que ele é afetuoso. — Jamais houve filho mais afeiçoado. Minha vida é a sua vida. Ele se interessa extraordinariamente por tudo quanto eu digo ou faço. Holmes tornou a tomar nota. Durante algum tempo esteve mergulhado em cogitações. — O senhor e o menino eram sem dúvida muito amigos antes do segundo matrimônio. A solidão uniu-os muito, não é assim? — Sim. — E o menino, tendo uma índole tão afetuosa, com toda a certeza era devotado à memória de sua mãe, não é verdade? — Muito devotado. — Parece realmente ser uma criança bem interessante. Mais um esclarecimento a propósito desses ataques: coincidiam no tempo essas estranhas agressões contra o bebê e o ataque contra o seu filho? — No primeiro caso, sim. Era como se a invadisse uma fúria incontrolável e ela se sentisse forçada a descarregá-la em ambos. No segundo caso, foi apenas Jack a vítima. A sra. Mason não teve queixa a fazer a respeito da criança. — Isso certamente vem complicar o caso. — Como assim, sr. Holmes? — É que nós formulamos teorias provisórias e esperamos até que o tempo ou um conhecimento mais pleno do assunto as desmintam. É um mau hábito, sr. Ferguson; mas a natureza humana é fraca. Receio que seu velho amigo aqui tenha uma opinião um tanto exagerada dos meus métodos científicos. Contudo, direi somente que seu problema, nesta primeira fase, não me parece insolúvel, e que certamente nos encontraremos na Estação Vitória às duas horas. Era uma tarde tristonha e brumosa de novembro quando, depois de deixarmos nossa bagagem no Tabuleiro de Xadrez, em Lamberley, nossa carruagem entrou por uma estrada sinuosa, onde se notava a argila de Sussex, e finalmente chegamos à isolada e vetusta casa de fazenda em que Ferguson morava. Era uma construção enorme e irregular, muito velha no centro, muito nova nas alas, com altas chaminés da época dos Tudors e com um telhado de lajes de Horsham, em bico e manchado de liquens. Os degraus da soleira estavam gastos pelo uso, e os antigos ladrilhos que forravam o vestíbulo traziam a marca de um signo icônico, representando um queijo e um homem, do nome do primitivo construtor. No interior, as pesadas vigas de carvalho davam ao teto um aspecto ondulado, e os soalhos irregulares formavam curvas sensíveis. Um cheiro de antigüidade e deterioração desprendia-se de todo o prédio em ruínas. Havia uma sala central muito espaçosa para a qual Ferguson nos conduziu. Ali, numa
imensa lareira antiquada, com uma grade de ferro que tinha na parte de trás a data de 1670, ardia uma esplêndida fogueira, alimentada pela lenha, que crepitava. O aposento era, conforme verifiquei com um relancear de olhos, um misto singular de datas e de lugares. As paredes almofadadas até certo ponto bem podiam ter pertencido ao primitivo proprietário rural do século XVII. Eram, entretanto, ornadas na parte inferior por uma linha de aquarelas modernas e bem escolhidas; ao passo que em cima, no ponto onde o estuque amarelo substituía o carvalho, estava pendurada uma bela coleção de armas e utensílios sul-americanos, que sem dúvida tinham sido trazidos pela dama peruana do andar superior. Holmes ergueu-se, com aquela rápida curiosidade que brotava do seu espírito irrequieto, e pôs-se a examiná-los com certo cuidado. Voltou-se, com seus olhos sonhadores. — Olá! — gritou ele. — Pst! Um cãozinho spaniel estivera deitado num cesto ao canto. Veio andando vagarosamente na direção de seu dono. Caminhava com dificuldade. Suas pernas traseiras moviam-se irregularmente, e o rabo arrastava-se pelo chão. Lambeu a mão de Ferguson. — O que é, sr. Holmes? — O cão. Quem tem ele? — É o que deixou o veterinário perplexo. Uma espécie de paralisia. Segundo ele, trata-se de meningite dorsal. Mas está melhorando. Em breve ele estará bom, não é verdade, Cario? A cauda pendente foi sacudida por um tremor equivalente a uma aprovação. Os olhos macilentos do animal passearam de um de nós para o outro. Ele sabia que estávamos discutindo o seu caso. — Isso apareceu sem mais nem menos? — Numa única noite. — Há quanto tempo? — Deve ter sido há quatro meses. — Muito notável. Bastante sugestivo. — Que é que o senhor vê nisso, sr. Holmes? — Uma confirmação do que já pensava. — Pelo amor de Deus, que pensa, sr. Holmes? Pode ser que para o senhor seja um simples quebra-cabeça intelectual, mas para mim significa vida ou morte! Minha mulher, uma assassina virtual... meu filhinho em constante perigo! Não graceje comigo, sr. Holmes. O assunto é demasiado sério. O colossal jogador de rúgbi tremia dos pés à cabeça. Holmes pôs-lhe mansamente a mão sobre o braço. — Temo que o senhor vá sofrer, sr. Ferguson, seja qual for a solução — disse ele. — Preferiria poupá-lo de tudo, se pudesse. No momento, não posso dizer mais nada; porém, antes de deixar esta casa, é possível que disponha de alguns dados mais positivos. — Praza a Deus que assim seja! Desculpem-me, senhores, mas vou subir até o quarto de minha mulher para ver se houve alguma mudança. Esteve ausente alguns minutos, que Holmes aproveitou para retornar ao exame das curiosidades que havia na parede. Quando o dono da casa voltou, via-se claramente no seu semblante abatido que não houvera qualquer progresso. Acompanhava-o uma jovem
morena, alta e esbelta. — O chá está pronto, Dolores? — perguntou Ferguson. — Não deixe que falte seja o que for à sua patroa. — Ela está muito doente — exclamou a jovem, olhando para o patrão com olhos indignados. — Não quer comer. Está muito doente. Precisa de um médico. Tenho medo de ficar sozinha com ela sem um médico. Ferguson dirigiu-me um olhar quase de súplica. — Teria grande prazer se pudesse ser útil em alguma coisa. — Quem sabe se sua patroa receberia o dr. Watson? — Eu o levo lá sem pedir licença. Ela precisa de médico. — Então vamos imediatamente. A jovem tremia de emoção; subi com ela a escada, e depois percorremos um corredor antigo, ao fim do qual havia uma porta maciça, chapeada de ferro. Veio-me à ideia que, se Ferguson tentasse entrar à força no aposento da esposa, tal coisa não lhe seria muito fácil. A moça tirou uma chave do bolso, e as pesadas pranchas de carvalho rangeram nos velhos gonzos. Passei, e ela me seguiu logo, fechando a porta imediatamente. Na cama, jazia uma mulher que tinha, evidentemente, febre alta. Estava apenas meio acordada, mas, assim que entrei, ergueu os olhos, aterrorizados mas formosos, e fitou-os em mim apreensivamente. Ao ver um estranho, pareceu tranqüilizar-se, e com um suspiro de alívio deixou-se cair sobre o travesseiro. Acerquei-me dela, dizendo algumas palavras de consolação, e a enferma permaneceu imóvel enquanto eu lhe tomava o pulso e a temperatura. Ambos estavam altos, e o pulso, descompassado, e contudo minha impressão era de que o estado dela era resultado mais de uma excitação mental e nervosa do que de uma enfermidade real. — Ela está aí deitada há dias — disse a moça. — Receio que morra. A mulher voltou para mim seu belo rosto afogueado. — Onde está o meu marido? — Está lá embaixo e queria vê-la. — Eu não quero vê-lo. Não quero vê-lo. — E, dizendo isso, parecia que ia entrar em delírio. — É meu inimigo, não é meu marido! Oh, que hei de fazer com esse demônio? — Posso ajudá-la de alguma maneira? — Não. Ninguém pode me ajudar. Está acabado. Tudo está destruído. Faça eu o que fizer, está tudo destruído. Aquela mulher devia ser vítima de alguma alucinação. Não me era possível pensar no honrado Bob Ferguson sob as vestes de inimigo ou de demônio. — Minha senhora — disse-lhe eu —, seu marido lhe dedica o maior afeto. Ele está profundamente penalizado com o que houve. Ela tornou a voltar para mim aqueles lindos olhos.
— Ele me ama. Sim. Mas, e eu, não o amo? Não o amo a ponto de antes querer me sacrificar do que lhe destruir o bondoso coração? É assim que eu o amo. E, contudo, ele foi capaz de pensar isso de mim, de afirmar isso de mim. — Ele está cheio de mágoa, mas não consegue compreender. — Sim. Não consegue compreender, mas devia ter confiança. — Não quer vê-lo? — propus. — Não, não. Não me esqueço daquelas palavras terríveis e da expressão de seu rosto. Não quero vê-lo. Agora pode ir embora. O senhor nada pode fazer por mim. Diga-lhe somente uma coisa: quero o meu filho. Tenho direito a ele. É o único recado que lhe mando. — Dito isso, virou-se para a parede e nada mais acrescentou. Desci a escada e voltei para a sala, onde Fergurson e Holmes ainda permaneciam sentados, junto do fogo. Ferguson ouviu com tristeza o relatório da entrevista. — Como posso lhe mandar a criança? — disse ele. — Sei lá se a invade de repente algum estranho impulso? Como poderei esquecer a cena em que a vi levantar-se de junto de nosso filhinho com o sangue dele na boca? — Estremeceu a essa recordação. — Com a sra. Mason a criança está segura, e com ela deve ficar. Uma mocinha elegante, a única coisa moderna que tínhamos visto na casa, trouxera o chá. Enquanto ela o servia, a porta abriu-se, e entrou um jovem. Era um adolescente notável, de semblante pálido e cabelos louros, com vivos olhos azul-claros nos quais cintilou de súbito uma centelha de emoção e alegria, quando se fixaram no pai. Caminhou para a frente e atirou os braços em redor do pescoço dele com o abandono de uma jovem amorosa. — Oh, papai — exclamou —, não sabia que ia chegar agora! Se soubesse, estaria aqui à sua espera. Oh, como estou contente de vê-lo! Ferguson desembaraçou-se brandamente do abraço, não sem certo constrangimento. — Meu querido — disse, alisando delicadamente com a mão a cabeça loura do filho. — Vim mais cedo porque consegui convencer estes meus amigos, o sr. Holmes e o dr. Watson, a passarem uma noite conosco. — Este é o sr. Holmes, o detetive? — Sim. O jovem lançou-nos um olhar penetrante e, segundo me pareceu, pouco amistoso. — E seu outro filho, sr. Ferguson? — indagou Holmes. — Podemos conhecê-lo? — Peça à sra. Mason que traga o bebé aqui — disse Ferguson. O rapazinho saiu, arrastando a perna com um passo curioso, que revelou ao meu olho clínico que sofria da espinha. Voltou pouco depois, e atrás dele vinha uma mulher alta e magra, trazendo nos braços uma linda criança de olhos negros e cabelos dourados, uma admirável mistura do saxão e do latino. Era evidente o afeto que Ferguson lhe dedicava, pois tomou-a nos braços e afagou-a carinhosamente. — É preciso coragem para magoar um anjinho destes — disse ele entre dentes, ao mesmo tempo em que pousava os olhos na pequena dobra muito vermelha que se via no pescoço da criança. Foi nesse momento que eu, por acaso, olhei para Holmes e vi no seu olhar uma atenção
pouco comum. Seu rosto estava imóvel, como se tivesse sido esculpido em marfim antigo, e seus olhos, que tinham passado por um momento do pai para o filho, haviam se fixado agora, com intensa curiosidade, em alguma coisa que se encontrava do outro lado do aposento. Acompanhando-lhe o olhar, pude apenas conjecturar que estava olhando para fora, pela janela, para o jardim melancólico, que gotejava. Verdade é que uma das folhas da janela estava fechada e tapava a vista, mas apesar disso era certamente na janela que Holmes fixava sua concentrada atenção. Nisso, sorriu, e seus olhos tornaram a pousar no bebê. Lá estava, no seu pescocinho rechonchudo, aquele pequeno sinal enrugado. Sem dizer palavra, Holmes examinou-o com cuidado. Finalmente, abanou um dos punhozinhos roliços, que se mexiam na sua frente.
— Então, meu homenzinho? Você fez uma estranha entrada no mundo. Sra. Mason, eu gostaria de lhe dar uma palavrinha em particular. Chamou-a à parte e falou-lhe sério, durante alguns minutos. Ouvi somente as últimas palavras, que foram as seguintes: "Sua preocupação vai acabar em breve, segundo espero". A mulher, que parecia uma criatura azeda e calada, afastou-se com a criança, — Como é essa sra. Mason? — perguntou Holmes. — Aparentemente não é muito simpática, como o senhor vê, mas tem um coração de ouro, e é toda dedicação para a criança. — Você gosta dela, Jack? — Com essa pergunta, Holmes voltou-se de repente para o rapazinho. O rosto expressivo do interpelado cobriu-se de sombra, e ele abanou a cabeça. — Jack tem fortes simpatias e antipatias — balbuciou Ferguson, enlaçando o rapazinho com o braço. — Felizmente, sou uma das suas simpatias. O menino arrulhou e escondeu meigamente a cabeça no peito do pai. Ferguson, com brandura, desembaraçou-se dele. — Agora pode sair, Jack — disse, e com olhos amorosos ficou observando o filho até ele desaparecer. — Então, sr. Holmes — prosseguiu depois —, quase me convenço de que o trouxe a um beco sem saída, pois que mais poderá o senhor fazer senão sentir pena de mim? De seu ponto de vista, este deve ser um assunto extremamente delicado e complexo. — Delicado é, por certo — confirmou meu amigo, com um gracioso sorriso —, mas até agora não lhe notei nenhuma complexidade. É um caso para dedução intelectual; mas quando essa primitiva dedução é confirmada ponto por ponto por um bom número de episódios independentes, então o subjetivo passa a objetivo e podemos dizer com certeza que atingimos nosso intuito. De fato, eu o atingira antes de sairmos da Baker Street, sendo o resto mera observação e confirmação. Ferguson pôs a enorme mão na testa vincada. — Por caridade, Holmes — disse ele com voz rouca —, se sabe a verdade, não me deixe mais tempo na incerteza. Qual é a minha posição? Que devo fazer? Pouco me importa o modo como descobriu os fatos, uma vez que realmente os sabe. — Devo-lhe certamente uma explicação, e o senhor há de tê-la. Mas espero que me permita conduzir o assunto a meu modo. Watson, a senhora se acha em condições de nos receber? — Ela está doente, mas em seu perfeito juízo.
— Muito bem. É somente na presença dela que podemos esclarecer esta questão. Subamos ao seu quarto. — Ela não vai querer me ver! — gritou Ferguson. — Oh, sim, vai vê-lo, sim — disse Holmes. Rabiscou algumas linhas numa folha de papel. — Pelo menos você, Watson, tem entrada. Quer ter a bondade de lhe entregar este bilhete? Tornei a subir e entreguei o papel a Dolores, que abriu cautelosamente a porta. Um minuto depois, soou lá dentro um grito, um grito em que parecia haver um misto de alegria e de surpresa. Dolores apareceu. — Ela vai recebê-los. Disse que quer ouvi-los. Quando lá de cima os chamei, Ferguson e Holmes subiram. Ao entrarmos no quarto, Ferguson deu alguns passos na direção da esposa, que havia se erguido um pouco no leito, mas ela levantou a mão como que para detê-lo. O pobre homem afundou-se, sucumbido, numa cadeira de braços, enquanto Holmes se sentava ao lado dele depois de fazer um leve cumprimento à senhora, que olhou para ele cheia de espanto. — Creio que podemos dispensar Dolores — disse Holmes. — Oh, muito bem, senhora; se prefere que ela fique, não ponho objeção. E agora, sr. Ferguson, como sou um homem ocupado e devo atender a muitos chamados, meus métodos têm de ser breves e diretos. A intervenção cirúrgica, quanto mais rápida, menos dolorosa. Deixe-me primeiro dizer-lhe algo que o confortará bastante. Sua esposa é uma mulher muito boa, muito amorosa e muito mal-tratada. Ferguson soergueu-se da cadeira com um grito de alegria. — Prove-o, sr. Holmes, e meu débito para com o senhor será eterno. — Vou provar, mas, ao fazê-lo, tenho de magoá-lo profundamente em outro sentido. — Não importa, contanto que isente minha mulher de qualquer responsabilidade. Tudo o mais na terra é ínfimo, comparado a isso. — Deixe-me então transmitir-lhe o fio do raciocínio que passou por meu espírito na Baker Street. A idéia de um vampiro era para mim absurda. Tais coisas não acontecem na prática do crime, na Inglaterra. E, todavia, sua observação foi exata. O senhor viu sua esposa levantar-se de junto do berço da criança com sangue nos lábios. — Vi realmente. — Não lhe ocorreu que uma ferida que sangra pode ser sugada com outro fim que não seja o de tirar o sangue? Não houve até uma rainha na história da Inglaterra que sugou uma ferida para dela extrair veneno? — Veneno! — Estamos numa casa sul-americana. Meu instinto sentiu a presença dessas armas na parede antes que meus olhos as vissem. Podia ter sido outro veneno, mas isso foi o que me ocorreu. Quando vi aquele pequeno carcás vazio ao lado do arco, era justamente o que eu esperava ver. Se a criança fosse atingida por uma dessas flechas embebidas em curare, ou qualquer outra tisana infernal, a morte seria certa, se o veneno não fosse logo sugado. "E o cão? Se alguém ia usar tal veneno, não o experimentaria primeiro, a fim de se certificar de que a terrível droga não perdera sua eficácia? Eu não podia prever a existência do cão, mas pelo menos adivinhei-a, e ele enquadrou-se perfeitamente na minha reconstrução.
"Compreende agora? Sua esposa temia um desses ataques. Viu-o realizado e salvou a vida da criança, e no entanto esquivou-se de lhe contar toda a verdade, porque sabia que o senhor ama o seu filho e receava dilacerar o coração do marido. — Jacky?! — Ainda há pouco eu o observei, enquanto o senhor fazia carinho no bebé. Seu rosto refletia-se com nitidez no vidro da janela, no ponto em que a respectiva veneziana formava um bom fundo de quadro. Vi-lhe um tal ciúme, um ódio tão cruel, como poucas vezes tenho visto num semblante humano! — O meu Jack! — É preciso coragem, sr. Ferguson, para aparar o golpe. E isso é tanto mais penoso quanto o fato de que o que lhe sugeriu tal ação foi um amor deformado, um amor exagerado e maníaco para com o senhor e provavelmente para com sua falecida mãe. Sua alma está até o íntimo consumida de ódio por essa esplêndida criança, cuja saúde e beleza formam um contraste com a debilidade dele. — Santo Deus! Mas é incrível! — Disse a verdade, minha senhora? Ela soluçava, com o rosto enterrado nas almofadas. Nesse momento, virou-se para o marido. — Como podia eu dizer-lhe isso, Bob? Eu sentia o golpe que seria para você. Era melhor que eu esperasse e que você soubesse por outra boca que não a minha. Quando este cavalheiro, que parece ter poderes mágicos, me escreveu dizendo que sabia tudo, fiquei contente. — Creio que o que eu aconselharia ao jovem Jacky seria passar um ano no mar — disse Holmes, levantando-se. — Apenas uma coisa ainda está envolta em mistério, minha senhora. Podemos perfeitamente entender os seus ataques contra o jovem Jacky. A paciência de uma mãe tem limites. Mas como a senhora teve coragem de abandonar a criança nos dois últimos dias? — Contei tudo à sra. Mason. Ela sabia. Ferguson estava junto ao leito, sufocado, com as mãos estendidas e trémulas. — Creio que é hora de irmos embora, Watson — disse Holmes num cochicho. — Se você pegar num dos cotovelos da fidelíssima Dolores, eu pegarei no outro. E agora — acrescentou ele, fechando a porta depois de passar —, creio que podemos deixá-los decidir o resto entre eles. Tenho apenas mais um apontamento sobre este caso. É a carta que Holmes escreveu em resposta final àquela com que abre a presente narrativa. Diz: "Baker Street, 21 de novembro. Assunto: Vampiros. Prezados senhores: Com referência à sua carta de 19 do corrente, comunico-lhes que me interessei vivamente pela questão proposta pelo cliente de V. Sas., sr. Robert Ferguson, da firma Ferguson & Muirhead, vendedores de chá, de Mincing Lane, e que o assunto foi resolvido satisfatoriamente. Com meus agradecimentos pela recomendação d V. Sas., seu, com elevado apreço, Sherlock Holmes."
Ilustraçþes: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar
Arthur Conan Doyle
Os Três Garridebs Título original: The Three Garridebs
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1925
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Three Garridebs publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume VII, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Hamílcar de Garcia.
Tanto podia ter sido uma comédia como uma tragédia. A um homem custou a perda da razão, a mim custou um pouco de sangue e a um terceiro custou as penas da lei. Entretanto, houve em tudo um elemento de comédia. O leitor que julgue por si mesmo. Recordo-me bem da data, pois foi no mesmo mês em que Holmes recusou um título honorífico que lhe foi oferecido por serviços que talvez algum dia sejam descritos. Só me refiro ao assunto de passagem, porque na minha qualidade de sócio e confidente vejo-me obrigado a evitar qualquer indiscrição. Mas repito que isso me habilita a fixar a data, que foi em fins de junho de 1902, pouco depois do término da Guerra dos Bôeres. Holmes passara vários dias na cama, como fazia de vez em quando, porém, naquela manha, apareceu com um longo documento em papel almaço na mão, piscando divertidamente os olhos cinzentos, de resto geralmente austeros. — Amigo Watson — disse-me —, há uma oportunidade para você ganhar dinheiro. Já ouviu alguma vez o nome Garrideb? Confessei que nunca tinha ouvido esse nome. — Pois bem. Se puder pôr as mãos num Garrideb, ganha dinheiro. — Por quê? — Ah, essa é uma história comprida e também um tanto estrambólica. Creio que, em todos os mergulhos que temos dado nas profundezas da alma humana, ainda não deparamos com nada tão singular. O sujeito virá aqui para o interrogatório, por isso não quero encetar o assunto antes que ele chegue. Mas, no entanto, é esse o nome de que precisamos. A lista telefônica estava em cima da mesa, a meu lado, e eu folheei-a sem grande esperança de encontrar o que desejava. Mas fiquei admirado de ver no devido lugar o estranho nome. Dei um grito de triunfo. — Aqui o tem, Holmes! Ei-lo. Holmes tirou-me o livro das mãos. — "Garrideb, N." — leu —, "Littie Ryder Street, 136, W." Sinto causar-lhe uma decepção, meu caro Watson, mas este é o próprio homem. É o endereço que vem na carta. Precisamos de outro para emparelhar com ele. Nesse momento entrou a Sra. Hudson com um cartão numa bandeja. Peguei-o e olhei-o. — Epa, olhe para isto! — exclamei, admirado. — Trata-se de uma inicial diferente. John Garrideb, advogado, Moorville, Kansas, EUA.
Holmes sorriu ao olhar para o cartão. — Creio que você vai ter de fazer mais um esforço, Watson — disse ele. — Este cavalheiro também já está na trama, embora eu não esperasse vê-lo esta manhã. Todavia, acha-se em condições de nos revelar muita coisa que precisamos saber. Um minuto depois, ele estava no aposento. O sr. John Garrideb, advogado, era um homem robusto, de baixa estatura, de rosto redondo, fresco e escanhoado, característico de tantos americanos que se dedicam aos negócios. O efeito geral que aquele indivíduo causava era o de uma coisa roliça, quase infantil, parecendo-nos bastante jovem e sorridente. Contudo, seus olhos eram cativantes. Raramente vi numa criatura humana olhos que revelassem uma vida interior tão intensa, tão vívidos eles eram, tão vigilantes, tão prontos em responder a cada mudança de pensamento. O sotaque era americano, sem que no entanto fosse acompanhado de qualquer excentricidade de linguagem. — Sr. Holmes? — indagou, olhando de relance para um e outro de nós. — Ah, sim! Seus retratos parecem-se bastante com o senhor, se assim posso dizer. Acredito que o senhor tenha recebido um carta de meu homônimo, o sr. Nathan Garrideb, não? — Queira sentar-se — disse Sherlock Holmes. — Creio que teremos muito o que conversar. — Pegou suas folhas de papel almaço. — O senhor é, sem dúvida, o sr. John Garrideb mencionado neste documento. Mas certamente está na Inglaterra há algum tempo, não? — Por que diz isso, sr. Holmes? — Pareceu-me ler uma sombra de suspeita naqueles olhos expressivos. — Seu traje é todo inglês. O sr. Garrideb esforçou-se por sorrir. — Pela leitura dos jornais, conheço suas artimanhas, sr. Holmes, mas nunca pensei que seria objeto delas. De onde o senhor tirou essa conclusão? — O corte do ombro do seu casaco, o bico dos sapatos... alguém poderia ter dúvidas a esse respeito? — Bem, bem, eu não fazia idéia de estar assim tão inglesado. Mas os negócios me trouxeram para cá há algum tempo, e por isso, segundo o senhor me diz, meu traje é quase todo londrino. Todavia, o seu tempo é, como suponho, valioso, e não nos encontramos aqui para falar de moda. Que diz esse papel que tem na mão? Holmes tinha aborrecido de algum modo o nosso visitante, cujo rosto rechonchudo tomara uma expressão bem menos amável. — Tenha paciência, Sr. Garrideb! — disse meu amigo em tom conciliatório. — O Dr. Watson aqui lhe dirá que essas minhas pequenas digressões às vezes, no fim, mostram ter algum valor com referência ao assunto. Mas por que é que o Sr. Nathan Garrideb não veio com o senhor? — E por que é que o envolveu neste negócio? — perguntou nosso visitante, num súbito assomo de ira. — Que diabo tinha o senhor a ver com isto? Só havia aqui um pequeno negócio profissional entre dois cavalheiros, e afinal, por que iria um deles pedir ajuda a um detetive? Estive com ele hoje de manhã, e ele me falou nessa louca jogada que me armou, e é por isso que estou aqui. Mas, mesmo assim, não achei
graça. — Não houve segundas intenções a seu respeito, Sr. Garrideb. Foi simplesmente zelo da parte dele, a fim de atingir o objetivo comum aos dois... objetivo esse que é, segundo me consta, de capital importância para ambos. Ele sabia que eu tinha meios de obter informações, e, portanto, era muito natural que se dirigisse a mim. O semblante irado de nosso visitante pouco a pouco foi se desanuviando. — Bem. Se é assim, a coisa se modifica — disse. — Quando o procurei, hoje de manhã, e ele me disse que tinha mandado chamar um detetive, imediatamente lhe perguntei seu endereço e vim aqui. Não quero que a polícia se intrometa num negócio particular. Mas se o senhor se dispõe a descobrir o homem, não vejo nenhum mal nisso. — Pois é exatamente o que acontece — disse Holmes. — E agora, cavalheiro, uma vez que o senhor se encontra aqui, gostaríamos muito de ouvir, de sua própria boca, informações exatas. Meu amigo aqui não sabe de nenhum dos pormenores. O Sr. Garrideb examinou-me com um olhar não muito amistoso. — E precisa saber? — perguntou. — Nós geralmente trabalhamos juntos. — Bem. Não há razão para que se faça segredo do assunto. Vou lhes referir os fatos o mais sucintamente que puder. Se o senhor fosse do Kansas, eu não precisaria lhe dizer quem era Alexander Hamilton Garrideb. Ele fez fortuna em imóveis e depois ganhou dinheiro na venda de trigo em Chicago, mas empregou-o comprando tanta terra, ao longo do rio Arkansas, a oeste de Fort Dodge, que daria para formar um condado inglês. É terra de pastagem, terra de madeira, terra arável, terra de minerais, enfim, toda espécie de terra que rende dólares ao homem que a possui. Não .tinha parentes nem amigos, ou se os tinha, nunca ouvi falar deles. Mas nutria certo orgulho pela extravagância de seu nome. Foi isso o que nos reuniu. Eu estava advogando em Topeka, e um dia recebi uma visita do velho, que dava um dedo da mão para encontrar outro homem com o mesmo nome. Era uma fantasia sua, e ele estava resolvido a descobrir se havia no mundo outros Garridebs. "Encontre-me outro", disse ele. Respondi-lhe que era um homem ocupado e que não podia passar a vida correndo mundo à procura de Garridebs. "Seja como for", acrescentou, "é justamente o que meu amigo vai fazer, se as coisas saírem de acordo com os meus cálculos." Pensei que o homem estivesse brincando, mas suas palavras foram ditas a sério, como não tardei a descobrir, pois ele morreu um ano depois de tê-las proferido e deixou um testamento. Era o testamento mais estapafúrdio que já deu entrada nos cartórios do Estado do Kansas, Suas propriedades estavam divididas em três partes, devendo tocar-me uma delas, com a condição de que eu encontrasse dois Garridebs para partilharem o restante. São cinco milhões de dólares para cada um, nem um cent menos, mas não podemos pôr um dedo neles enquanto não estivermos os três em fila. "Era uma oportunidade tão tentadora que pus de lado minhas causas e saí em busca de Garridebs. Nos Estados Unidos não há um sequer. Meti-me nisso, Sr. Holmes, como quem procura agulha num palheiro, e nunca cheguei a descobrir um único Garrideb. Vim então tentar a sorte no Velho Mundo. Pois não é que lá estava o nome, na lista telefônica de Londres? Fui procurá-lo há dois dias e expliquei-lhe o caso tintim por tintim. Ele, porém, é como eu, um homem solteiro, com alguns parentes, mas todos mulheres. No testamento está estipulado: três homens adultos. Como o senhor vê, temos ainda uma vaga, e, se o senhor puder nos ajudar a preenchê-la, estaremos prontos a pagar-lhe por isso. — Muito bem — disse Holmes, sorridente —, eu não disse que a questão era um tanto fantástica? Não seria boa tática, cavalheiro, o senhor colocar um anúncio nos jornais, na seção de Desaparecidos? — Já o fiz, Sr. Holmes, e não houve resposta.
— Sim, senhor! Trata-se realmente de um probleminha difícil. Em minhas horas de lazer, vou ver se dou um pouco de atenção a isso. A propósito, é curioso que o senhor tenha vindo de Topeka. Tive lá um correspondente já falecido... o velho dr. Lysander Starr, que foi prefeito por volta de 1890. — Excelente pessoa, o velho Dr. Starr! — disse nosso visitante. O nome dele ainda é respeitado. Bem, Sr. Holmes, suponho que o que nos compete é ficar em contato com o senhor e inteirá-lo dos progressos que venhamos a fazer. Calculo que voltaremos a procurá-lo dentro de um ou dois dias. Feita essa última observação, nosso americano inclinou-se e partiu. Holmes acendera o cachimbo, e permaneceu algum tempo pensativo, com um sorriso enigmático nos lábios. — Então? — indaguei por fim. — Estou curioso, Watson, realmente curioso. — A respeito de quê? Holmes tirou o cachimbo da boca. — Estou curioso por saber, Watson, com que intuito esse homem veio aqui desfiar aquele rosário de mentiras. Estive quase para perguntar a ele, pois há ocasiões em que um ataque brutal e direto é a melhor política, mas achei melhor deixá-lo supor que nos tinha enganado. Surge-nos aqui um homem com um casaco gasto no cotovelo e com joelheiras nas calças já com um ano de uso, e contudo, segundo este documento e por seu próprio testemunho, é um provinciano da América recentemente chegado a Londres. Não saiu nenhum anúncio nos jornais. A seção dos Desaparecidos é a minha leitura favorita, é onde descubro a minha caça, e não havia de ser um faisão dourado como esse que iria me escapar. Nunca conheci nenhum Dr. Lysander Starr, de Topeka. Onde quer que o toquemos, o homem é falso. Para mim, é realmente americano, mas já poliu o sotaque com alguns anos aqui à beira do Tamisa. Qual é, pois, o seu jogo, e que motivo se esconde por trás dessa busca de Garridebs? Merece a nossa atenção, porque, supondo que o homem seja um patife, é sem dúvida nenhuma um indivíduo engenhoso. Cumpre-nos agora averiguar se o nosso outro correspondente também é um trapaceiro. Ligue para ele, Watson. Cumpri a ordem, e ouvi do outro lado da linha uma voz fina e trêmula. — Sim, senhor, sou Nathan Garrideb. O Sr. Holmes está em casa? Desejaria muito dizer-lhe duas palavras. Meu amigo pegou o fone, e ouvi o habitual diálogo entrecortado. — Sim, esteve aqui, sim senhor. Suponho que o senhor não o conheça... Há quanto tempo?... Apenas dois dias!... Sim, sim, não há dúvida que é uma proposta tentadora. O senhor estará em casa hoje à tardinha? Espero que seu homônimo não esteja aí... Muito bem, então aí estaremos, pois eu preferiria conversar com o senhor sem a presença dele... O Dr. Watson irá comigo... Pelo seu bilhete, fiquei sabendo que o senhor não sai muito de casa... Pois então apareceremos aí mais ou menos às seis. Não é preciso que diga nada ao advogado americano... Muito bem. Até logo.
Era o crepúsculo de um lindo dia primaveril, e a Littie Ryder Street, uma das menores travessas da Edgware Road, a dois passos da velha Tyburn Tree de funesta memória, parecia de ouro e maravilhosa aos raios oblíquos do sol poente. A casa para a qual nos dirigíamos era um edifício grande, antiquado, da primeira fase da época georgiana, de fachada lisa de tijolos, interrompida apenas por duas janelas salientes no andar térreo. Nosso cliente vivia nesse andar, e as duas janelas baixas formavam exatamente a frente da ampla sala em que ele passava suas horas de vigília. Ao chegarmos, Holmes indicou a pequena placa de latão que ostentava o estranho nome. — Já conta alguns anos, Watson — observou, mostrando a superfície descolorida da placa. — Pelo menos esse é seu nome verdadeiro, o que é digno de nota. A casa tinha uma escada comum, e viam-se vários nomes pintados no vestíbulo, uns indicando escritórios e outros, simplesmente residências. Não era bem um prédio residencial, a moradia de solteirões boêmios. Nosso cliente abriu ele mesmo a porta, desculpando-se com o pretexto de que a criada saía às quatro horas. O sr. Nathan Garrideb era um homem alto e desengonçado, de costas redondas, magro e calvo, de mais de sessenta anos. Sua fisionomia era lívida, tendo a pele sem vida das pessoas para quem o exercício é desconhecido. Grandes óculos redondos e uma saliente barbicha de bode acrescentavam à sua postura encurvada um ar de marcada excentricidade. O efeito geral, entretanto, apesar de estranho, não desagradava. O aposento era tão singular como o ocupante. Parecia um pequeno museu. Era vasto e fundo, rodeado de armários cheios de espécimes geológicos e anatômicos. Caixas com borboletas e mariposas ladeavam a entrada. Uma mesa grande, ao centro, estava abarrotada de coisas, ao passo que o tubo alto de latão de um potente microscópio sobressaía de todo o resto. Dando uma vista de olhos geral, fiquei surpreso com a universalidade dos interesses do homem. Havia aqui uma caixa com moedas antigas, ali um armário com instrumentos de sílex. Atrás da mesa central, via-se um enorme armário com ossos de fósseis. Em cima, alinhava-se uma série de crânios de gesso, com inscrições como "Neanderthal", "Heideiberg", "Cromagnon". Via-se que o homem era um estudioso de vários assuntos. Quando surgiu à nossa frente, segurava na mão direita um pedaço de camurça com o qual polia uma moeda. — Siracusana, e do melhor período — explicou ele, erguendo-a. — Degeneraram notavelmente no fim do período. As do apogeu são as que eu melhor reputo, se bem que alguns prefiram as da escola de Alexandria. Há aí uma cadeira, Sr. Holmes. Deixe-me tirar os ossos que estão em cima dela. E o senhor, cavalheiro... ah, sim, Dr. Watson, tenha a bondade de pôr para o lado o vaso japonês... Os senhores podem ver à minha volta os pequenos interesses da minha vida. O médico ralha comigo porque não saio de casa, mas como sair se há aqui tanta coisa que me prende? Posso lhes garantir que a catalogação adequada de um só destes armários me tomaria uns bons três meses. Holmes lançou os olhos em torno com curiosidade. — O senhor disse que nunca sai? — perguntou ele. — De vez em quando, vou de carro até a Sotheby's ou a Christie's. A não ser isso, raramente deixo meus aposentos. Não sou muito forte, e minhas pesquisas são muito absorventes. Mas deve imaginar, sr. Holmes, que choque terrível, agradável mas terrível, foi para mim saber dessa incomparável boa sorte. Falta apenas mais um Garrideb para completar o trio, e certamente haveremos de encontrá-lo. Eu tinha um irmão, mas morreu, e parentes mulheres não servem. Mas é impossível que não haja outros no mundo. Ouvi dizer que o senhor tem tratado de casos estranhos, e foi por isso que mandei chamá-lo. Naturalmente, esse cavalheiro americano tem razão, e eu devia ter falado primeiro com ele, mas procedi com a melhor das intenções. — Creio que o senhor agiu acertadamente — disse Holmes. — Mas está realmente desejoso de ter propriedades na América?
— Não, de jeito nenhum. Nada no mundo conseguiria me afastar de minha coleção. Mas aquele cavalheiro assegurou-me que adquirirá a minha parte logo que possamos reivindicar o que nos pertence. Falou-se em cinco milhões de dólares. Há presentemente no mercado uns doze espécimes que preencherão lacunas na minha coleção e que não posso comprar por falta de algumas centenas de libras. Imagine o senhor o que eu não poderia fazer com cinco milhões de dólares! Já tenho um bom começo de coleção nacional. Serei o Hans Sloane do meu tempo. Seus olhos cintilaram por trás dos grandes óculos. Era evidente que o Sr. Nathan Garrideb não pouparia trabalho para descobrir um homônimo. — Vim aqui simplesmente para travar conhecimento com o senhor, e não há razão para que eu interrompa seus estudos — disse Holmes. — Prefiro estabelecer contato pessoal com aqueles com os quais trato. São poucas as perguntas que preciso fazer, pois tenho no bolso sua narrativa, que é muito clara, e preenchi as lacunas quando aquele americano foi à minha casa. Pelo que sei, até esta semana o senhor ignorava que ele existia. — Sim. Ele esteve aqui na terça-feira passada. — Ele lhe falou da nossa entrevista de hoje? — Sim. Veio imediatamente falar comigo. Ficou muito zangado. — Por que teria ficado zangado? — Parecia um tanto aborrecido, como se houvessem duvidado de sua palavra. Mas já se mostrava outra vez alegre, quando voltou. — Propôs algum plano de ação? — Não. — Recebeu do senhor ou pediu-lhe algum dinheiro? — Não. — O senhor não vê a possibilidade de ele ter em vista alguma outra coisa? — Nenhuma! A não ser aquilo que declarou. — O senhor lhe falou de nossa conversa telefônica marcando a presente visita? — Sim, falei-lhe. Holmes perdeu-se em cogitações. Percebi que estava embaraçado. — O senhor tem objetos de valor em sua coleção? — Não, senhor... Não sou rico. Trata-se de uma boa coleção, mas não é valiosa. — Não tem medo de ladrões? — Não, nenhum. — Há quanto tempo mora aqui? — Há cerca de cinco anos. O interrogatório de Holmes foi interrompido por uma enérgica pancada na porta. Nem bem nosso cliente a abrira, o advogado americano entrou alvoroçadamente na sala. — Está aqui! — gritou ele, agitando um papel acima da cabeça. — Ainda bem que cheguei
a tempo de apanhá-los. Sr. Nathan Garrideb, meus parabéns! O senhor é um homem rico. Felizmente, nosso negócio está concluído e coroado de êxito. Quanto ao senhor, Sr. Holmes, só podemos dizer que sentimos ter-lhe dado um incômodo inútil. Entregou o papel ao nosso cliente, que fixou os olhos no anúncio sublinhado. Holmes e eu curvamo-nos para a frente e, por sobre o ombro do Sr. Nathan Garrideb, lemos o que se segue:
HOWARD GARRIDEB Construtor de máquinas para a lavoura. Atadeiras, ceifeiras, arados manuais e a vapor, semeadeiras, grades, carretas para trabalhos rurais e agrícolas em geral. Orçamentos para poços artesianos. Grosvenor Buildings, Aston.
— Esplêndido! — exclamou o dono da casa. — Temos então o nosso terceiro homem. — Eu tinha mandado proceder a investigações em Birmingham — observou o americano —, e meu agente naquela cidade mandou-me este anúncio de um jornal de lá. Temos de nos mexer para levar a coisa a bom termo. Escrevi ao homem dizendo que o senhor o procurará em seu escritório amanhã, às quatro horas da tarde. — O senhor quer que eu o procure? — Que diz a isso, Sr. Holmes? Não acha que seria mais prudente? Eu, um americano nômade, com uma história mirabolante... Será que ele acreditaria no que digo? Mas o senhor é um inglês com sólidas referências, e ele seria obrigado a dar atenção ao que o senhor diz. Eu podia ir com o senhor se fizesse questão, mas acontece que amanhã tenho um dia muito cheio. Contudo, poderei ir em seu auxílio, caso haja algum contratempo. — É que há anos não faço uma viagem dessas. — Nada mais simples, Sr. Garrideb. Fiz um roteiro completo de sua viagem. O senhor parte ao meio-dia, e deve chegar lá pouco depois das duas. Assim, pode estar de volta à noite. A única coisa que tem a fazer é procurar o homem, expor-lhe o caso e obter uma certidão oficial de que ele existe. Que diabo! — acrescentou com calor —, considerando que vim lá do coração da América, é bem pouco o senhor andar cento e sessenta quilômetros para terminar o negócio. — De acordo — disse Holmes. — É a pura verdade o que este cavalheiro diz. O Sr. Garrideb encolheu os ombros com ar de desconsolo. — Bem, já que o senhor insiste, irei — disse ele. — Para mim, certamente é difícil recusar-lhe qualquer coisa, à vista do clarão de esperança que o senhor veio acender em minha vida. — Então está combinado — disse Holmes —, e sem dúvida o senhor, logo que puder, vai me dizer como tudo correu. — Eu me incumbirei dessa parte — disse o americano. — Bem — acrescentou, consultando o relógio —, tenho de ir andando. Virei amanhã, Sr. Nathan, à hora do trem de Birmingham, para o seu bota-fora. Saímos juntos, Sr. Holmes? Então, adeus. É possível que amanhã à noite tenhamos novas para o senhor, Reparei que o semblante de meu amigo se desanuviou depois que o americano saiu do aposento, e que sua expressão de perplexidade se desvaneceu.
— Desejaria dar uma olhadela em sua coleção, Sr. Garrideb — disse ele. — Em minha profissão, toda espécie de conhecimentos, ainda que desordenados, é útil, e esta sua é um repositório deles. Nosso cliente ficou radiante, e seus olhos faiscaram por trás das enormes lentes. — Sempre ouvi dizer que o senhor é um homem inteligente — disse ele. — Eu poderia lhe mostrar algumas coisas agora, se o senhor dispuser de tempo. — Infelizmente, não disponho. Mas esses espécimes estão tão bem rotulados e classificados que quase não necessitam de sua explicação pessoal. Se eu puder vir aqui amanhã, presumo que o senhor não se oponha a que dê uma vista de olhos nestes objetos, não? — De modo algum. Estão aqui ao seu dispor. Naturalmente, a sala estará fechada, mas a Sra. Saunders fica no subsolo até as quatro horas, e pode deixá-lo entrar com a chave dela. — Muito bem. Por acaso amanhã à tarde estarei livre. Se o senhor disser uma palavrinha à Sra. Saunders, tudo estará em ordem. Por falar nisso, quem é o locador deste prédio? Nosso cliente admirou-se ao ouvir a inopinada pergunta. — Holioway & Steele, na Edgware Road. Mas por quê? — Também tenho um pouco de arqueólogo quando se trata de casas — disse, rindo, Holmes. — Estava desejoso de saber se este prédio é da época da rainha Ana ou do período georgiano. — Do último, sem dúvida. — Realmente. Eu devia ter refletido um pouco mais. Identifica-se logo. Bem, até outra vez, Sr. Garrideb. Desejo-lhe pleno êxito em sua viagem de amanhã. O escritório do locador ficava próximo, mas já o encontramos fechado, de modo que dirigimos nossos passos para a Baker Street. Holmes só voltou ao assunto depois do jantar. — Nosso pequeno problema está quase resolvido — disse ele. — Você com certeza já delineou a solução. — Para mim, não tem pé nem cabeça. — A cabeça já está à vista, e o pé deverá aparecer amanhã. Não notou nada de especial naquele anúncio? — Notei que estava escrito plow em vez de plough. — Oh, notou realmente? Está melhorando, Watson. Sim, isso é mau inglês, mas bom americano. O tipógrafo pôs como estava. Também havia lá uma buckboard que é puramente americana. Além disso, poços artesianos são mais de lá do que daqui. Era um anúncio tipicamente americano, com a intenção de parecer de uma firma inglesa. Que é que você conclui daí? — Só posso conjeturar que foi esse advogado americano quem o fez publicar no jornal. Qual o seu intuito é que não sei. — Há mais de uma explicação. Em todo caso, o que está fora de dúvida é que ele quis levar aquele bom fóssil a Birmingham. Estive quase para lhe dizer que não fosse, pois ia perder tempo e dinheiro, mas, pensando melhor, pareceu-me preferível que ele se ausentasse, deixando-nos o campo livre. O dia de amanhã, Watson, sim, o dia de amanhã nos dirá tudo.
Holmes levantou-se cedo e saiu. Quando voltou para o almoço, notei que estava preocupado. — O assunto é mais sério do que eu pensava, Watson — disse ele. — Prefiro usar de franqueza, embora saiba que será mais uma razão para que você queira se meter de corpo inteiro no perigo. Já o conheço bem, meu caro Watson. Como quer que seja, há perigo, e é bom que você saiba. — Não é a primeira vez que arriscamos a pele juntos, Holmes, e espero que não seja a última. Que perigo especial há desta vez? — Estamos diante de um caso muito difícil. Identifiquei o Sr. John Garrideb, advogado. Não é outro senão Evans, o Matador, de reputação sinistra e assassina. — Creio que estou na mesma. — É que não faz parte de sua profissão ter na memória uma lista de todos os criminosos de Londres. Estive na Yard com meu amigo Lestrade. É possível que aquela gente não seja um portento de imaginação e intuição, mas não há no mundo quem os ultrapasse em exatidão e método. Lembrei-me de que podíamos procurar nos registros deles a pista de nosso amigo americano. Dito e feito: lá estava, na Galeria de Retratos Célebres, sorrindo para mim, seu rosto gorducho, James Winter, também conhecido por Morecroft, também conhecido por Evans, o Matador, segundo a inscrição abaixo da fotografia. — Holmes tirou do bolso um envelope. — Tirei algumas notas do dossiê dele. Idade: quarenta e quatro anos. Natural de Chicago. Consta haver matado a tiro três homens nos Estados Unidos. Escapou da penitenciária por influência política. Chegou a Londres em 1893. Alvejou um homem com quem jogava cartas num cabaré da Waterloo Road, em janeiro de 1895. O homem morreu, tendo-se provado que foi ele o agressor na briga. O morto foi identificado como sendo Rodger Prescott, famoso em Chicago como moedeiro falso e trapaceiro. Evans, o Matador, foi posto em liberdade em 1901. A partir daí, tem estado sob vigilância da polícia, mas, tanto quanto é possível saber, tem levado vida honesta. Homem muito perigoso, geralmente usa arma, estando preparado para utilizá-la. É esse o nosso pássaro, Watson, um espertalhão, há de convir. — Mas o que é que ele pretende? — Bem. O caso começa a se definir. Estive no escritório dos locadores do prédio. Nosso cliente, conforme ele mesmo nos disse, mora lá há cinco anos. Antes dele, a parte que agora ocupa esteve alugada durante um ano. O inquilino anterior era um cavalheiro, senhor do seu nariz, chamado Waldron. No escritório, recordam-se bem da aparência de Waldron. Desapareceu de repente, e não se teve mais notícias dele. Era um homem alto, usava barba e era muito moreno. Ora, Prescott, o homem a quem Evans, o Matador, assassinou era, de acordo com a Scotland Yard, um homem alto, moreno, de barba. Como hipótese que nada tem de absurda, penso que podemos supor que Prescott, o criminoso americano, residia no mesmo aposento que nosso inocente amigo agora consagra ao seu museu. Dessa forma, obtemos um elo da corrente, como você vê. — E o outro elo? — Bem. Temos de ir procurar agora. Tirou um revólver da gaveta e me entregou. — Levo comigo a minha velha arma favorita. Se o nosso amigo do oeste selvagem não quer deslustrar a alcunha, devemos ir preparados para o enfrentar. Concedo-lhe uma hora para a sesta, Watson. Depois disso penso que terá chegado o momento da nossa aventura na Ryder Street. Eram quatro horas em ponto quando chegamos ao singular apartamento do Sr. Nathan Garrideb. A criada, a Sra. Saunders, estava se preparando para sair, mas não hesitou em nos franquear a entrada, pois a porta fechava-se com um trinco de mola e Holmes prometeu que deixaria tudo em ordem antes de sairmos. Pouco depois a porta da rua foi
fechada, a touca da criada passou pela janela saliente, e verificamos que estávamos sós no andar térreo da casa. Holmes fez um rápido exame no interior. Havia num canto escuro um armário que sobressaía um pouco da parede. Foi atrás dele que nós finalmente nos agachamos, enquanto Holmes, num sussurro, explicava as suas intenções. — Ele precisava afastar o nosso amável amigo deste aposento. Isso é claríssimo. E como o colecionador nunca saía, era necessário descobrir um meio de o fazer sair. Toda essa invenção de Garrideb não tem evidentemente outro fim. Devo dizer, Watson, que há nisso qualquer engenho infernal, mesmo admitindo-se que o nome estrambólico do inquilino tenha oferecido ao americano um ensejo que ele mal podia esperar. O homem armou o seu plano com admirável sagacidade. — Mas que quer ele? — Amigo Watson, é para isso que estamos aqui, isto é, para sabermos o que ele intenta. Segundo interpreto a situação, o plano de Evans nada tem a ver com o nosso cliente. É alguma coisa que está ligada ao homem que ele matou... homem que talvez tenha sido seu aliado no crime. Deve existir neste recinto algum segredo reprovável. Assim interpreto os acontecimentos. De início pensei que o nosso amigo tivesse na sua coleção, sem o saber, algo de mais valor, que chamasse a atenção de um grande criminoso. Mas o fato de ter Rodger Prescott, de infausta memória, morado nestes aposentos indica uma razão mais profunda. Bem, Watson, só nos resta ter paciência e ver o que nos reserva a próxima hora. Essa hora não tardou muito a soar. Ainda nos encolhemos mais na sombra quando ouvimos a porta externa abrir-se e fechar-se. Soou depois o ruído metálico de uma chave, e o americano estava no aposento. Depois de fechada mansamente a porta, o homem relanceou os olhos em redor para ver se estava bem seguro, tirou o casaco e caminhou para a mesa do centro com a desenvoltura de quem sabe perfeitamente o que vai fazer e como fazê-lo. Empurrou a mesa para um lado, puxou o tapete quadrado sobre o qual ela repousava, enrolou-o bem enrolado e, em seguida, tirando do bolso interno um pé-de-cabra curto, ajoelhou-se e pôs-se a trabalhar vigorosamente no chão. Daí a pouco, ouvimos o som de tábuas sendo arrancadas do lugar, e um instante depois estava feito um quadrado no soalho. Evans, o Matador, riscou um fósforo, acendeu um toco de vela e desapareceu da nossa vista. Evidentemente, nosso momento chegara. Holmes deu-me um toque no punho como sinal, e juntos nos dirigimos o mais discretamente possível para junto do alçapão aberto. Apesar de termos andado de mansinho, o velho soalho deve ter estalado debaixo de nossos pés, porque a cabeça do americano, espreitando ansiosamente em torno, emergiu subitamente do espaço aberto. Virou para nós o rosto, em que se estampava ódio e raiva, mas pouco a pouco suas feições foram se abrandando e abriram-se num sorriso cínico, quando ele percebeu que duas pistolas estavam apontadas para a sua cabeça. — Bem, bem! — disse com frieza ao subir com dificuldade para a superfície. — Desconfio que o senhor foi mais esperto que eu, Sr. Holmes. Percebeu o meu jogo, segundo creio, e tratou-me desde o princípio como um trouxa. Dou a mão à palmatória: o senhor me venceu e... Num instante, sacou do peito um revólver e deu dois tiros. Senti de súbito um calor como se um ferro em brasa tivesse passado sobre a minha coxa. Ouviu-se uma pancada na cabeça do homem. Vi-o vagamente estatelar-se no chão, com o rosto banhado em sangue, enquanto Holmes o revistava para desarmá-lo. Em seguida, os vigorosos braços de meu amigo enlaçaram-me e arrastaram-me para uma cadeira. — Você não está ferido, Watson? Pelo amor de Deus, diga que não está ferido!
Valia bem um ferimento — valia vários ferimentos — a constatação da profunda lealdade e da afeição que se escondiam sob aquela máscara de frieza. Seus olhos claros e severos se turvaram por um momento, e os lábios firmes tremiam. Por uma única vez — aquela — eu vi de relance um grande coração e também um grande cérebro. Todos os meus anos de colaboração humilde mas leal culminaram naquele momento de revelação. — Não é nada, Holmes. É um simples arranhão. Ele rasgara as minhas calças com o seu canivete. — Tem razão — disse, com um suspiro de imenso alívio. — É superficial. — O seu rosto parecia de pedra quando fitou o nosso prisioneiro que começava a sentar-se com uma expressão aturdida. — O senhor teve mais sorte do que merece. Se tivesse matado Watson, não sairia vivo deste aposento. E agora, cavalheiro, que tem a dizer para se justificar? Ele não tinha justificação possível. Com a fisionomia carregada, deixou-se ficar onde estava. Apoiei-me ao braço de Holmes e juntos olhamos para a pequena cave que tinha sido descoberta pelo alçapão secreto. Ainda estava iluminada pela vela que Evans levara consigo ao descer. Os nossos olhos deram com uma massa de máquinas enferrujadas, grandes rolos de papel, uma porção de frascos em desordem, e, muito bem arrumadas sobre uma mesinha, várias pilhas de pequenos pacotes. — Uma tipografiazinha manual... os apetrechos de um falsário — comentou Holmes. — Sim, senhor — confirmou o nosso prisioneiro, erguendo-se lentamente e a cambalear, e deixando-se logo cair pesadamente na cadeira. — O maior moedeiro falso que já houve em Londres. Aquilo é a "guitarra" de Prescott e aqueles pacotinhos em cima da mesa são duas mil notas no valor de cem libras cada uma e prontas para circular em qualquer parte. Sirvam-se, cavalheiros. Façamos uma transaçãozinha e deixem que eu vá embora. Holmes riu-se. — Nós não fazemos coisas dessas, Sr. Evans. Para o senhor não há neste país esconderijo que valha. Foi o senhor que atirou contra esse tal Prescott, não foi? — Fui, sim senhor, e por causa disso gramei cinco anos, embora tivesse sido ele quem me provocou. Cinco anos... quando eu devia receber uma medalha do tamanho de um prato de sopa. Não havia quem pudesse distinguir entre Prescott e o Banco de Inglaterra, e se eu não o tivesse eliminado ele inundaria Londres de notas falsas. Era eu a única pessoa no mundo que sabia onde ele as fabricava. É de admirar que, quando descobri esse pobre maníaco de nome extravagante, que não arredava pé daqui de maneira alguma, é de admirar, repito, que eu fizesse tudo para afastá-lo daqui? Talvez tivesse sido mais prudente despachá-lo deste mundo. Nada seria mais fácil, mas sou um sujeito de bom coração, que não tem coragem de dar um tiro, a não ser que o outro homem também tenha uma arma. Mas, afinal, diga-me, Sr. Holmes, que fiz de mal? Não usei isto aqui. Não fiz um arranhão nesse colecionador tonto. Para onde o senhor me leva? — Que me conste, há contra o senhor apenas isto: tentativa de homicídio — disse Holmes. — Isso, porém, não é nosso ofício, pertence a outra alçada. O que queríamos de momento era justamente a sua mansa pessoa. Por favor, Watson, dê um telefonema à Yard. Creio
que não será totalmente inesperado para eles. Foram, então, esses os fatos referentes a Evans, o Matador, e à sua esplêndida invenção dos três Garridebs. Viemos a saber depois que o nosso pobre amigo não se refez mais do choque ao se dissiparem seus sonhos. Quando caiu o castelo que ele tinha erguido no ar, ele o sepultou debaixo das ruínas. A última notícia que tivemos dele é que estava numa casa de saúde em Brixton. Na Yard, foi um dia alegre quando se descobriu o material de Prescott, pois, embora se soubesse da sua existência, nunca se havia conseguido, após a morte do homem, saber onde estava. Evans realmente prestara um grande serviço, contribuindo para que vários dos respeitáveis componentes do Departamento de Investigação Criminal dormissem mais tranqüilos, porquanto o falsário, na sua terrível especialidade, é um perigo permanente para o público. Eles concordariam de boa vontade com a concessão daquela medalha do tamanho de um prato de sopa a que aludira o criminoso, mas o tribunal, que não sabia dar o justo valor às coisas, foi de opinião menos favorável, e o Matador tornou às sombras de onde pouco antes havia emergido.
Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar
Sherlock Holmes em: A ponte de Thor Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
Em algum ponto das abóbadas do banco de Cox & Cia., na Charing Cross, há uma caixa de estanho com vários documentos. Essa caixa, bastante estragada pelas viagens e pelo uso, tem o meu nome pintado na tampa. "Dr. John H. Watson, do Antigo Exército Indiano". Os inúmeros papéis de que está atulhada são quase todos relatórios de casos ou problemas curiosos, nos quais, em várias ocasiões, o Sr. Sherlock Holmes andou envolvido. Alguns, e por sinal não os menos interessantes, foram autênticos fracassos, e como tal quase não merecem ser narrados, uma vez que não oferecem nenhuma explicação final. Um problema sem solução pode interessar ao estudioso, mas dificilmente deixará de aborrecer o leitor casual. Entre esses contos não terminados, está o do sr. James Phillimore, que, voltando à sua casa para buscar o guarda-chuva, nunca mais foi visto neste mundo. Não menos notável é o do navio Alicia, que, numa manhã de primavera, fez-se ao mar penetrando num nevoeiro não muito denso e dele nunca mais emergiu, nada mais se tendo ouvido em tempo algum a respeito dele e de sua tripulação. Um terceiro caso digno de nota é o de Isadora Persano, conhecido jornalista e duelista, que foi encontrado completamente doido, tendo diante de si uma caixa de fósforos que continha um verme notável, que, segundo diziam, era desconhecido da ciência. Exceto esses casos não resolvidos, há alguns que envolvem segredos de família, a tal ponto que só a idéia de divulgá-los em letra de imprensa produziria consternação entre os freqüentadores da alta-roda. É ocioso dizer que tal abuso de confiança está completamente fora das nossas cogitações, e que esses relatórios vão ser separados e destruídos agora que o meu amigo tem tempo para dirigir sua atenção para o assunto. Resta ainda um considerável número de casos, de maior ou menor interesse, que eu já podia ter dado a público, não fosse o receio de afetar a reputação do homem que venero acima de todos. Em alguns, estive diretamente envolvido, e posso falar como testemunha ocular, ao passo que, em outros, ou não estive presente ou desempenhei papel tão insignificante que eles só podem ser narrados como se eu fosse uma terceira pessoa. A história que se segue é extraída da minha própria experiência. Era uma manha desabrida de outubro, e reparei, enquanto me vestia, que as últimas folhas secas caíam rodopiando do solitário plátano silvestre que enfeita o terreno de trás da nossa casa. Desci para a refeição matinal preparado para encontrar meu companheiro um tanto abatido, pois, como todos os grandes artistas, ele se deixava facilmente impressionar pelo meio ambiente. Ao contrário, surpreendi-o quase terminando o repasto, e percebi que estava em excelente disposição de espírito, mesclada àquela alegria um pouco sinistra que era característica de seus momentos de despreocupação. — Vejo que tem um caso para resolver, Holmes — observei. — A faculdade de dedução é certamente contagiosa, Watson — respondeu ele. — Essa faculdade habilitou-o a sondar o meu segredo. Sim, tenho um caso. Depois de um mês de banalidades e estagnação, as rodas começam mais uma vez a entrar em movimento. — Posso ter o meu quinhão?
— Não há muito o que dividir, mas podemos discuti-lo depois que eu tiver consumido os dois ovos cozidos com que hoje nos brindou a nossa nova cozinheira. Pode ser que o estado destes ovos tenha qualquer relação com o número de Family Herald que notei ontem em cima da mesa do vestíbulo. Até mesmo uma coisa tão trivial como cozinhar um ovo exige uma atenção que dá conta da passagem do tempo e que é incompatível com o romance de amor que se publica naquele excelente periódico. Um quarto de hora mais tarde, a mesa estava limpa, e nós nos encontrávamos um em frente do outro. Ele tirara uma carta do bolso. — Já ouviu falar em Neil Gibson, o Rei do Ouro? — perguntou. — Refere-se ao senador americano? — De fato, ele já foi senador por um Estado qualquer do oeste, mas é mais conhecido como o maior magnata do ouro no mundo. — Sim, conheço-o de nome. Ele certamente reside na Inglaterra há já algum tempo. O nome é bastante familiar. — E verdade. Adquiriu uma imensa propriedade em Hampshire há uns cinco anos. Já ouviu falar no fim trágico de sua esposa? — Naturalmente. Agora me lembro. É por isso que o nome dele é conhecido. Mas ignoro os pormenores. Holmes fez um gesto vago na direção de uns jornais que se achavam em cima de uma cadeira. — Não fazia a mínima idéia de que esse caso viesse parar em minhas mãos, do contrário já teria os meus recortes e as minhas notas — disse ele. — O fato é que o problema, conquanto tremendamente sensacional, não parecia apresentar dificuldades. A interessante personalidade da acusada não obscurece a clareza da prova. Foi essa a opinião do júri encarregado do caso, e não divergiu disso o ponto de vista do tribunal de polícia. O caso está agora entregue ao tribunal comum de Winchester. Temo que seja uma tarefa ingrata. Posso descobrir fatos, Watson, mas não posso alterá-los. A menos que surja qualquer outro inteiramente novo e inesperado, não vejo como o meu cliente possa nutrir qualquer esperança. — O seu cliente? — Ah, esqueci que não lhe tinha dito. Já estou adotando o seu velho e complicado hábito de contar uma história começando pelo fim. É melhor você ler isto primeiro. A carta que me entregou, escrita numa letra rasgada e firme, dizia o seguinte:
"Prezado sr. Sherlock Holmes, Meu coração não suporta ver condenarem à morte a melhor mulher que Deus pôs no mundo sem fazer tudo o que for possível para salvá-la. Não consigo explicar os fatos, não consigo sequer tentar explicá-los, mas não tenho a menor dúvida quanto à inocência da Srta. Dunbar. O senhor com certeza sabe o que aconteceu. Não há ninguém que não o saiba. Também não há quem não comente o que sucedeu. E não se ergue uma voz para defendê-la! É a clamorosa injustiça de tudo isso que me põe fora de mim. Uma mulher com um coração tão sensível, incapaz de fazer mal a uma mosca! Pretendo aparecer aí amanhã, às onze horas, para ver se o senhor consegue lançar um raio de luz sobre tanta treva. Eu talvez disponha de algum indício sem o saber. Seja como for, tudo o que sei, tudo o que tenho e tudo o que sou estão ao seu dispor, contanto que o senhor a salve. Se jamais na vida o senhor mostrou seus poderes, ponha-os agora todos no presente caso. Com elevado apreço, J. Neil Gibson". — Aí tem — disse Sherlock Holmes, batendo na beira da mesa com o seu cachimbo, que acabara de fumar após a ligeira refeição matinal, e reabastecendo-o lentamente. — E esse o cavalheiro cuja visita aguardo. Quanto à história, você mal tem tempo de ler todos esses jornais; por isso vou expô-la a você resumidamente, para que se interesse pelo processo. Esse homem é a maior potência financeira do mundo, e é um indivíduo, segundo estou informado, de caráter violento e difícil. Casou-se com uma mulher, a vítima desta tragédia, a respeito de quem nada sei a não ser que já passara da flor da idade, circunstância que ainda mais se agravou quando uma aia muito atraente veio superintender a educação das duas crianças. São esses os três protagonistas, e a cena é um grande e velho solar, centro de uma propriedade histórica inglesa. Agora vamos à tragédia. A esposa foi encontrada no terreno da propriedade, a pouco menos de um quilômetro da casa, a hora avançada da noite, elegantemente vestida, com um xale sobre os ombros e o crânio perfurado por uma bala de revólver. Não foi encontrada nenhuma arma perto da morta, não havendo, no local, qualquer indício relativo ao assassinato. Nenhuma arma perto da morta, Watson, note bem! O crime parece ter sido cometido no começo da noite, e o corpo foi descoberto por um couteiro, mais ou menos às onze horas, sendo nessa ocasião examinado pela polícia e por um médico antes de ser transportado para casa. Está resumido demais ou você entendeu bem? — Está tudo muito claro. Mas por que suspeitar da aia? — É que, em primeiro lugar, existe uma prova direta contra ela. Foi encontrado no guarda-roupa dela um revólver com falta de uma bala do mesmo calibre do
projétil. — Com os olhos parados, repetiu, destacando as palavras: — No guarda-roupa dela. — Dito isso, emudeceu, e percebi que o fio das suas ideias começava a mover-se e que seria tolice interrompê-lo. De repente, com um estremeção, voltou à sua vida ativa. — Sim, Watson, foi encontrado. Não é condenatório? Foi o que pensaram os dois júris. Depois, a morta tinha consigo um bilhete assinado pela aia em que era marcado um encontro naquele mesmo lugar. Que tal? Finalmente, há o motivo. O senador Gibson é um homem atraente. Morrendo-lhe a mulher, quem provavelmente seria sua sucessora senão a jovem dama, que, afinal de contas, já recebera as maiores atenções de seu patrão? Amor, fortuna, poder, tudo na dependência de uma existência já a caminho do declínio. Feio, Watson, muito feio! — Sim, realmente, Holmes. — E nem um álibi ela pôde dar. Pelo contrário, teve de confessar que se encontrava perto da Ponte de Thor (foi esse o teatro da tragédia) mais ou menos àquela hora. Não pôde negar isso, porque um dos aldeões que passou viu-a lá. — Isso na verdade parece definitivo. — E no entanto, Watson, no entanto... Essa ponte, uma larga passagem de pedras com balaústres dos lados, passa por cima da parte mais estreita de um longo lençol de água, profundo, cercado de junco. Seu nome é lagoa de Thor. Na entrada da ponte, jazia o corpo da morta. São esses os principais fatos. Mas aqui está, se não me engano, o nosso cliente, antecipando-se consideravelmente à hora aprazada. Billy tinha aberto a porta, mas o nome que anunciou não era o esperado. O Sr. Marlow Bates era um desconhecido para nós dois. Era um homenzinho magro e nervoso, de olhos espantados, de modos hesitantes e um tanto bruscos, um homem no qual meu olho clínico entreviu um candidato a um completo esgotamento nervoso. — O senhor parece agitado, sr. Bates — disse Holmes.— Queira sentar-se. Receio só lhe poder conceder muito pouco tempo, porque tenho uma entrevista marcada para as onze horas. — Eu sei — volveu o nosso visitante, arquejando, pondo-se a soltar frases curtas como quem estivesse esbaforido. — O Sr. Gibson vem aí. Ele é meu patrão. Sou o administrador da herdade dele. Sr. Holmes, ele é um vilão, um rematado vilão. — Linguagem forte, Sr. Bates. — Tenho de ser rápido, Sr. Holmes, porque o tempo é pouco. Por nada no mundo desejaria que ele me surpreendesse aqui. Deve estar chegando. Mas não me foi possível vir mais cedo. O secretário dele, o Sr. Ferguson, só hoje de manhã me falou na entrevista com o senhor.
— E o senhor é o seu administrador? — Já o avisei de que pretendo deixar o emprego. Dentro de duas semanas deverei acabar com essa escravidão. Homem ruim, Sr. Holmes, ruim para todos quantos o cercam. As caridades que faz não passam de um biombo para esconder as vilanias privadas. Mas a sua principal vítima foi a esposa. Ele era brutal para com ela, sim, brutal! Não sei quem foi que a matou; mas foi ele que transformou a vida dela num suplício. Ela era natural dos trópicos, brasileira de nascimento, como o senhor deve saber. — Não. Isso me escapou. — Tropical de nascimento e de índole. Uma filha do sol e da paixão. Amara-o como só mulheres assim sabem amar, mas, quando os seus encantos físicos se dissiparam (ouvi dizer que foram grandes em outros tempos), não houve mais nada que o detivesse. Todos nós gostávamos dela, tínhamos pena da vida que levava e o odiávamos devido à forma como a tratava. Mas ele tem muita lábia. Só lhe digo isso, Sr. Holmes. Não se fie naquelas aparências. Por trás há muito mais. Agora vou embora. Não, não me detenha! Ele está quase chegando. Lançando um olhar assustado ao relógio, nosso estranho visitante correu para a porta e desapareceu. — Muito bem! — disse Holmes, após um intervalo de silêncio. — Parece que o Sr. Gibson tem uma criadagem leal a toda prova. Mas a advertência tem a sua utilidade. Agora só nos resta aguardar até que o homem apareça. Às onze horas em ponto, ouvimos pesados passos na escada, e o famoso milionário foi introduzido na sala. Assim que olhei para ele, compreendi não somente os temores e a aversão de seu administrador, mas também as pragas que tantos rivais nos negócios lhe têm amontoado sobre a cabeça. Se eu fosse escultor e desejasse idealizar um bem-sucedido homem de ação, de nervos de aço e consciência impenetrável, escolheria o Sr. Neil Gibson como modelo. A figura alta, atlética, angulosa, tinha um não sei quê de faminto e ganancioso. Um Abraham Lincoln que tivesse sido talhado para o mal, em vez de o ser para atos elevados, daria uma idéia do homem. O rosto podia ser esculpido em granito, tão duros eram os traços, anguloso, indiferente ao remorso, com sulcos profundos como marcas de muitas crises. Dois olhos cinzentos e frios, encimados por sobrancelhas eriçadas, examinaram-nos astutamente. Fez uma inclinação superficial, e, quando Holmes mencionou o meu nome, logo, com um ar soberano de quem manda e não pede, puxou uma cadeira para perto do meu companheiro e sentou-se, quase tocando-o com seus joelhos ossudos. — Consinta que lhe diga logo de início, Sr. Holmes — disse ele —, que neste caso o dinheiro é o que menos me preocupa. O senhor pode queimá-lo se a sua chama lhe servir para descobrir a verdade. Aquela mulher está inocente e tem de ser absolvida, e cabe ao senhor fazer com que ela o seja. Diga quanto quer!
— Meus honorários profissionais obedecem a uma escala fixa — tornou Holmes com frieza. — Não me afasto dela exceto quando os dispenso inteiramente. — Bem. Se o dólar não o tenta, pense na sua reputação. Se deslindar essa trama, não haverá jornal aqui e na América que não exalte o seu nome. Será falado em dois continentes. — Obrigado, Sr. Gibson. Não creio que necessite assim de tanta publicidade. Talvez o senhor fique surpreso ao saber que prefiro trabalhar anonimamente e que o que mais me atrai é o problema em si. Mas estamos perdendo tempo. Vamos ao que importa. — Creio que achará os fatos principais nas notícias da imprensa. Não sei se poderei acrescentar alguma coisa que o ajude. Se, porém, deseja algum esclarecimento, aqui estou para lhe prestar. — Pois bem, há apenas um ponto. — Qual é? — Quais eram exatamente as suas relações com a Srta. Dunbar? O Rei do Ouro teve um estremeção e soergueu-se da cadeira. Depois, sua calma voltou. — Suponho que esteja no seu direito... e talvez cumprindo o seu dever, ao fazer-me tal pergunta, Sr. Holmes. — Concordemos em supô-lo — disse Holmes. — Então posso assegurar-lhe que nossas relações foram sempre e exclusivamente as de um patrão com uma jovem empregada com a qual ele nunca conversou e a quem jamais viu, a não ser quando ela estava em companhia de seus filhos. Holmes levantou-se de sua cadeira. — Sou um homem bastante ocupado, Sr. Gibson — disse —, e não tenho tempo nem gosto por conversas sem rumo certo. Passe muito bem. Nosso visitante também se levantara, e sua figura imensa dominava a de Holmes. De sob aquelas sobrancelhas eriçadas, saía um brilho de cólera e nas faces pálidas notava-se um rubor insólito. — Que diabo significa isso, Sr. Holmes? O senhor abandona o meu caso? — Pelo menos, abandono o senhor. Pensei que as minhas palavras tivessem sido claras.
— Claras, mas o que é que se esconde atrás delas? Quererá o senhor valorizar excessivamente o seu serviço, ou receia encarregar-se do caso, ou o que é? Tenho direito a uma resposta também clara. — Sim, talvez o senhor tenha — disse Holmes. — E vou lhe dar. Esse caso já é em si bastante complicado, e não precisa que o atrapalhem ainda mais com uma informação falsa. — Acha que estou mentindo? — Bem. Eu procurava exprimir isso o mais delicadamente possível, mas, se o senhor insiste sobre o termo, não irei contradizê-lo. Pus-me de pé num salto, porque a expressão que se lia no semblante do milionário era maligna na sua intensidade, e ele erguera o punho nodoso. Holmes sorriu languidamente e estendeu a mão para apanhar o seu cachimbo. — Nada de barulho, Sr. Gibson. Acho que depois de uma refeição, ainda que ligeira, qualquer insignificante discussão é prejudicial. Penso que um passeio ao ar da manhã e um pouco de reflexão tranqüila só lhe poderão fazer bem. Com esforço, o Rei do Ouro dominou sua fúria. Não pude deixar de admirálo, pois com um supremo domínio de si mesmo ele passara, num minuto, da mais descabelada ira à mais desdenhosa indiferença. — Bem. O senhor manda; deve saber como dirigir os seus negócios. Não serei eu quem vai obrigá-lo a encarregar-se de um caso. Cometeu hoje um erro, Sr. Holmes, porque eu já amansei homens mais fortes. Ninguém que se pôs no meu caminho lucrou alguma coisa com isso. — Não é o senhor a primeira pessoa que me diz o mesmo, e no entanto aqui estou — disse Holmes, sorrindo. — Bem, até logo, Sr. Gibson. O senhor ainda tem muito o que aprender. Nosso visitante saiu ruidosamente. Holmes, porém, imperturbável, fumava em silêncio, com os olhos sonhadores fixos no teto. — A sua opinião, Watson? — indagou. — Olhe, Holmes, devo confessar que, vendo que esse homem é capaz de arredar qualquer obstáculo do seu caminho, e lembrando-me de que a mulher podia ter sido um obstáculo e era alvo de sua aversão, conforme esse Bates nos revelou, francamente parece-me... — Exatamente. A mim também parece.
— Mas quais eram as relações dele com a ama, e como foi que você as descobriu? — Ora, Watson, eu simplesmente blefei! Quando considerei o tom apaixonado, original e até extravagante da sua carta, comparei esse tom com a sua aparência e os seus modos reservados, tornou-se-me evidente que havia uma profunda emoção que se concentrava mais na acusada que na vítima. Cumprenos compreender as relações exatas dessas três pessoas, se quisermos alcançar a verdade. Você viu o ataque direto que eu lhe fiz e com que tranqüilidade ele o recebeu. Em seguida, iludi-o dando-lhe a impressão de que estava absolutamente certo, quando na realidade estava apenas muitíssimo desconfiado. — Quem sabe se ele ainda volta? — Não há a menor dúvida de que volta. Tem de voltar. Ele não pode deixar a coisa no ponto em que está. Escute! Não é um toque de campainha? Sim, ouço passos. Bem, Sr. Gibson, eu acabara de dizer ao Dr. Watson que o senhor era novamente esperado aqui. O Rei do Ouro entrava na sala com disposição mais branda do que quando dela saíra. O orgulho ferido ainda transparecia nos olhos de um fulgor sinistro, mas o senso comum mostrara-lhe que devia ceder se queria atingir os seus fins. — Refleti melhor, Sr. Holmes, e vi que fui um pouco precipitado ao levar a mal as suas observações. Justifica-se o seu desejo de querer aprofundar os fatos, sejam eles quais forem, e isso fez com que o senhor subisse no meu conceito. Posso, entretanto, garantir-lhe que as relações entre mim e a Srta. Dunbar nada têm a ver com este caso. — Isso cabe a mim decidir, não acha? — Sim, creio que sim. O senhor é como o cirurgião que quer saber de todos os sintomas antes de fazer o diagnóstico. — Isso mesmo. É uma analogia perfeita. E só um doente que tencionasse enganar o médico dissimularia os fatos do seu caso. — Pode ser, mas o senhor há de convir, Sr. Holmes, que muitos homens se retrairiam um pouco por acanhamento quando lhe perguntassem à queimaroupa quais são as suas relações com uma mulher... se há realmente no caso algum sentimento sério. Suponho que a maioria dos homens tenha um lugarzinho reservado, em algum recanto da alma, onde não lhe agrada muito a presença de estranhos. E o senhor forçou de repente a entrada. Mas o fim com que o fez desculpa-o, uma vez que seu objetivo foi tentar salvá-la. Pois bem. Já não há muros vedando a entrada, e o senhor pode explorar à vontade. Que deseja, então? — A verdade.
O Rei do Ouro deteve-se um instante, como quem põe em ordem as suas idéias. Sua fisionomia severa, cheia de sulcos, tinha-se tornado ainda mais triste e sisuda. — Posso contá-la em breves palavras, Sr. Holmes — disse por fim. — Há certas coisas que são ao mesmo tempo penosas e difíceis de dizer, de modo que não as aprofundarei mais que o necessário. Conheci minha mulher quando andava pelo Brasil em busca de ouro. Maria Pinto era filha de um funcionário público de Manaus e muito bonita. Naquele tempo, eu era jovem e fogoso, mas mesmo agora, olhando para o passado com a necessária calma e espírito crítico, vejo que ela era de uma beleza rara e maravilhosa. Era dotada também de uma natureza profundamente rica, apaixonada, tropical, sem grande equilíbrio, muito diferente das mulheres americanas que eu tinha conhecido. Para encurtar: amei-a e casamo-nos. Somente quando o idílio passou... e ele durou anos, foi que percebi que não tínhamos nada, absolutamente nada em comum. O meu amor acabara. Se ela pudesse dizer o mesmo do seu, tudo seria mais fácil. Mas o senhor sabe como são as mulheres! Por mais que eu fizesse, não havia maneira de afastá-la de mim. Se fui rude com ela ou mesmo brusco como alguns disseram, foi porque sabia que, se conseguisse dar cabo do amor que me dedicava, ou se o convertesse em ódio, a coisa seria mais fácil para ambos. Nada, porém, a modificou. Ela me adorava naqueles bosques ingleses como me havia adorado vinte anos antes, nas margens do Amazonas. Fizesse eu o que fizesse, era-me devotada como sempre. "Nisso, vem para nossa casa a Srta. Grace Dunbar, que respondeu ao nosso anúncio e tornou-se ama dos nossos dois filhos. É provável que o senhor tenha visto o seu retrato nos jornais. Todos são unânimes em proclamá-la uma mulher bonita. Ora, não tenho a pretensão de ser mais puritano que os meus semelhantes, e confesso-lhe que não me foi possível viver debaixo do mesmo teto com tal mulher, e em contato diário com ela, sem sentir qualquer coisa que não o simples respeito. O senhor me censura, Sr. Holmes? — Eu não o censuro por sentir o que sentiu. Censurá-lo-ia se o senhor desse forma concreta a esse sentimento, pois evidentemente essa moça, em certo sentido, estava sob a sua proteção. — É possível — disse o milionário, e por um momento a reprovação pôs de novo nos seus olhos uma chama sinistra. — Não quero passar por melhor do que sou. Creio que em toda a minha vida fui um homem que teve tudo o que quis, e nunca desejei mais fortemente uma coisa que o amor e a posse dessa mulher. E disse isso a ela. — Disse mesmo? Holmes, quando estimulado, era capaz de assumir um ar temível. — Disse-lhe que, se pudesse desposá-la, eu o faria, mas que tal coisa não era possível. Disse mais, que o dinheiro não constituía obstáculo e que tudo o que eu pudesse fazer para torná-la feliz seria feito.
— Muito generoso, pode crer — observou Holmes, irônico. — Escute uma coisa, Sr. Holmes. Vim aqui para tratar de uma questão de provas e não de uma questão de moral. Não solicitei as suas críticas. — É apenas em atenção à Jovem que me ocupo do senhor — volveu Holmes gravemente. — Não sei se alguma coisa de que a acusam é pior do que aquilo que o senhor próprio confessou, isto é, que tentou destruir uma jovem indefesa que estava sob o seu teto. Alguns de vocês, os ricos, precisam saber que há muita gente neste mundo que sabe resistir ao suborno e que não perdoa as ofensas que lhes fazem. Admirei-me de ver o Rei do Ouro suportar a censura com impassibilidade. — É essa igualmente a opinião que agora tenho do assunto. Dou graças a Deus pelo fato de os meus planos não terem saído como eu os arquitetara. Ela não só repeliu minha proposta como quis até deixar a casa no mesmo instante. — E por que não o fez? — É que, em primeiro lugar, havia outros que dependiam dela, e não era coisa fácil sacrificá-los de um momento para o outro. Quando jurei... como realmente o fiz, que ela nunca mais seria molestada, consentiu em ficar. Havia, porém, outra razão. Ela sabia que tinha influência sobre mim e que essa influência era mais forte que qualquer outra no mundo. Sabia disso, e quis usá-la para o bem. — De que maneira? — Ela sabia alguma coisa dos meus negócios. Eles são grandes, Sr. Holmes, tão grandes que o homem comum não faz ideia. Posso construir ou destruir, e geralmente destruo. Não apenas indivíduos. Mas também comunidades, cidades, até mesmo nações. Os negócios não são nenhuma brincadeira, e os fracos sucumbem. Eu tratava os negócios como negócios, doesse a quem doesse. Por mim nunca chorei mágoas, e pouco se me dava que alguém chorasse. Ela, porém, via as coisas por um prisma diferente, e creio que tinha razão. Acreditava e dizia que a fortuna de um só homem, imensa, maior do que o razoável, não devia ser construída sobre a ruína de dez mil que ficavam reduzidos à miséria. Era essa a sua opinião, e suponho que ela vislumbrava, além da riqueza, algo mais duradouro. A srta. Dunbar verificou que eu dava ouvidos ao que dizia e julgou estar sendo útil à humanidade influindo nos meus atos. Por isso permaneceu conosco, e de repente aconteceu o que é do domínio público. — O senhor pode prestar alguns esclarecimentos sobre o debatido caso? O Rei do Ouro ficou parado durante um minuto, ou talvez mais, com a cabeça pendida entre as mãos, absorto em profundos pensamentos. — Não há como negar que as evidências são todas contra ela. As mulheres
levam uma vida muito íntima, e são capazes de praticar atos que escapam à apreciação de um homem. A princípio, fiquei tão surpreso, tão abalado que cheguei a pensar que ela se deixara arrastar por um impulso contrário à sua índole. Ocorreu-me uma explicação. Transmito-a ao senhor, pelo que lhe possa valer. Não há dúvida de que minha mulher era extremamente ciumenta. Existe um ciúme da alma que pode ser tão violento como qualquer ciúme do corpo, e conquanto minha mulher não tivesse nenhum motivo (e creio que ela sabia disso) para sentir este último ciúme, percebia perfeitamente que essa jovem inglesa exercia sobre o meu espírito e os meus atos uma influência que ela nunca teve. Era um influência benéfica, mas isso de nada adiantava. Ela estava louca de ódio, e o ardor do Amazonas não lhe saía do sangue. Não é impossível que tivesse planejado matar a Srta. Dunbar ou, quem sabe, a ameaçasse com uma arma para intimidá-la, obrigando-a, assim, a sair de nossa casa. Pode ter havido uma briga, a arma teria disparado e atingido a mulher que a segurava. — Já havia me ocorrido tal possibilidade — disse Holmes. — E é essa, com efeito, a única alternativa evidente, capaz de explicar o assassinato deliberado. — Ela, porém, nega essa hipótese completamente. — Mas isso só não basta, não é verdade? Uma mulher colocada numa posição tão horrorosa bem podia voltar apressadamente para casa, segurando ainda o revólver, invadida como estava por extrema perplexidade. Poderia atirá-lo no meio das roupas, mal sabendo o que fazia, e, quando ele fosse encontrado, ela, para se livrar do embaraço, tentaria mentir negando tudo, uma vez que qualquer explicação seria impossível. Que há contra tal hipótese? — A própria Srta. Dunbar. — Pode ser. Holmes consultou o relógio. — Não tenho dúvidas de que hoje de manhã obteremos a necessária licença e chegaremos a Winchester no trem da noite. Depois de me avistar com essa jovem, é bem possível que eu lhe possa ser útil nesse assunto, embora eu não prometa que as minhas conclusões sejam forçosamente as que o senhor deseja.
Houve certa demora na expedição do passe oficial, e, em vez de chegarmos a Winchester naquele dia, fomos à Vila Thor, a herdade que o Sr. Neil Gibson possuía em Hampshire. Ele não nos acompanhou pessoalmente, mas levounos ao sargento Coventry, da polícia local, que fora o primeiro a examinar o caso. Coventry era um homem alto, magro, de uma palidez doentia, e umas maneiras secretas e misteriosas, que davam a idéia de que sabia ou suspeitava muito mais do que ousava dizer. Tinha também o hábito de baixar a
voz de repente, reduzindo-a a um cochicho, como se fosse tratar de assunto da mais alta importância, embora geralmente fosse uma informação trivial qualquer. Mas, exceto por essas ligeiras excentricidades, logo se revelou um sujeito decente e honesto, que não tinha pejo em confessar que estava no fundo de um buraco e que agradeceria a quem quer que lhe desse a mão. — Seja como for, antes o senhor que a Scotland Yard, Sr. Holmes — disse. — Se a Yard é chamada para examinar um caso, a polícia local perde todo o crédito pelo êxito alcançado e ainda pode ser censurada pelo malogro. O senhor, segundo ouço dizer, faz jogo limpo. — Não preciso aparecer nesse assunto — disse Holmes, para evidente satisfação do nosso melancólico conhecido. — Se conseguir deslindá-lo, não irei pedir que mencionem o meu nome. — Isso muito o honra, Sr. Holmes. E sei que também se pode confiar no seu amigo, o Dr. Watson. Agora, enquanto vamos caminhando para o lugar, há uma pergunta que eu desejaria fazer-lhe. Quero fazê-la em particular. — Olhou em redor, como se lhe faltasse coragem para dizer o que queria. — O senhor não acha que não seria despropositado um processo contra o próprio Sr. Neil Gibson? — Tenho pensado nisso. — O senhor ainda não viu a Srta. Dunbar. É uma mulher maravilhosa em todos os sentidos. É bem possível que ele quisesse afastar a esposa do caminho. E esses americanos são mais rápidos no uso da pistola do que a nossa gente. Como o senhor sabe, a arma era dele. — Isso ficou realmente comprovado? — Sim, senhor. Era uma de um par que lhe pertence. — Uma de um par? E a outra, onde está? — O Sr. Gibson possui grande quantidade de armas de fogo das mais diferentes espécies. Não comparamos as armas, mas o estojo foi feito para duas. — Se a arma fazia parte de um par, o senhor devia ter encontrado a outra. — Bem, temos as duas lá na casa. Se o senhor quiser, poderá examiná-las. — Mais tarde, talvez. Penso que agora convém irmos juntos até o lugar da tragédia. Essa conversa se passara na saleta da frente do modesto chalé do sargento Coventry, que servia de delegacia de polícia local. Uma caminhada de um quilômetro, mais ou menos, através de uma charneca varrida pelos ventos, toda dourada e cor de bronze, com os fetos definhados, levou-nos a um portão
lateral, que dava acesso aos terrenos da Vila Thor. Uma vereda conduziu-nos através dos viveiros de faisões, e logo, de uma clareira, vimos o casarão em estilo meio Tudor e meio georgiano, sobre a crista da colina. Ao nosso lado, havia uma comprida lagoa, coberta de caniços, estreita no centro, onde a principal estrada de veículos passava sobre uma ponte de pedra, lagoa que se estendia de uma banda a outra, formando pequenos lagos. Nosso guia deteve-se à entrada dessa ponte e apontou para o chão. — Aqui foi encontrado o corpo da Sra. Gibson. Marqueio com esta pedra. — Ouvi dizer que o senhor esteve aqui antes que o corpo fosse removido, é verdade? — Sim, senhor. Mandaram me chamar imediatamente. — Quem mandou chamá-lo? — O próprio Sr. Gibson. No momento em que foi dado o alarme, ele acorreu apressadamente com outras pessoas e fez questão de que não se tocasse em nada até a chegada da polícia. — Foi uma medida sábia. Pela leitura dos jornais, concluí que o tiro foi desfechado à queima-roupa. — Sim, senhor, é exato. — Muito próximo da têmpora direita? — Logo atrás da têmpora. — Em que posição foi encontrado o corpo? — Deitado de costas, Sr. Holmes. Não havia vestígio de luta. Nenhuma marca. Nenhuma arma. O conciso bilhete da Srta. Dunbar estava bem seguro na mão esquerda da morta. — Bem seguro, diz o senhor? — Sim. Foi com dificuldade que conseguimos abrir os dedos. — Isso é de grande importância. Exclui a idéia de que alguém tenha colocado ali o bilhete depois de ela morrer, a fim de apresentar um indício falso. Se bem me lembro, o bilhete dizia apenas o seguinte: "Estarei na Ponte de Thor às nove horas. G. Dunbar". Não é? — Exatamente.
— A Srta. Dunbar confessa tê-lo escrito? — Sim, senhor. — Que explicação deu? — Sua defesa ficou reservada para o tribunal. Ela nada quis dizer. — O problema é por certo muito interessante. O pormenor do bilhete é muito obscuro, não acha? — Oh, Sr. Holmes — tornou o nosso guia —, esse pormenor pareceu-me, se me permite dizê-lo, o único realmente claro em todo o assunto. Holmes abanou a cabeça. — Partindo do princípio de que o bilhete seja autêntico e que tenha realmente sido escrito, decerto foi recebido algum tempo antes, digamos, uma ou duas horas antes. Por que motivo, então, essa senhora ainda o segurava fortemente na mão esquerda? Ela não tinha necessidade de se referir a ele no encontro. Isso não parece digno de nota? — Bem, com essa sua explicação, talvez pareça. — Creio que gostaria de ficar sentado sozinho por alguns minutos, para refletir um pouco. Sentou-se na balaustrada de pedra da ponte, e pude ver seus olhos cinzentos movendo-se agilmente em todas as direções, como que à procura de alguma coisa. De súbito, levantou-se e deu uma corrida até o parapeito oposto, tirou a lente do bolso e pôs-se a examinar a obra de alvenaria. — Isto é curioso — disse ele. — Realmente. Vimos o rebordo de pedra lascado. É provável que tenha sido algum transeunte. A alvenaria era cinzenta, mas naquele ponto apresentava-se branca por um espaço não maior que o de uma moeda de tamanho médio. A um exame mais detido, via-se que a superfície fora lascada por um golpe violento. — Foi preciso força para fazer isso — disse Holmes, pensativo. Bateu várias vezes com a bengala no rebordo, sem deixar marca. — Sim, foi uma pancada forte. E num lugar curioso. Não foi de cima, mas de baixo, pois vê-se que está na borda inferior do parapeito.
— Mas está pelo menos a uns quatro metros e meio do corpo. — Sim, está a uns quatro metros e meio do corpo. Pode não ter nada a ver com o caso, mas é um pormenor digno de nota. Parece-me que daqui não levamos mais nenhuma informação. Vestígios não havia, não foi o que o senhor disse? — O terreno estava duro como pedra, Sr. Holmes. Não havia rastro algum. — Então podemos ir. Iremos primeiro à casa examinar as armas a que o senhor se referiu. Depois iremos a Winchester, pois desejo me avistar com a Srta. Dunbar antes de prosseguirmos.
O Sr. Neil Gibson ainda não voltara da cidade, mas encontramos em casa o neurótico sr. Bates, que nos havia visitado pela manhã. Ele nos mostrou, com gesto feroz, o formidável arsenal de armas de fogo, de vários formatos e tamanhos, que o seu patrão tinha acumulado no decurso da sua aventurosa existência. — O Sr. Gibson tem seus inimigos, como era de esperar, sabendo-se quem ele é e quais são os seus métodos — disse o Sr. Bates. — O homem dorme com um revólver carregado, que fica na gaveta da mesinha-de-cabeceira. É um homem violento, sr. Holmes, e há ocasiões em que todos nós temos medo dele. Estou certo de que a pobre falecida ficava muitas vezes horrorizada com o marido, — Alguma vez o senhor presenciou violência física em relação a ela? — Não, isso não posso dizer. Mas ouvi palavras que feriam como pedras, palavras do mais vivo desprezo, até mesmo na presença de criadas. — O nosso milionário não parece ter uma vida doméstica das mais invejáveis — observou Holmes, enquanto íamos andando para a estação. — Bem, Watson, já estamos cientes de um bom número de fatos, alguns deles novos, e, contudo, parece-me que estou um pouco longe da conclusão. A despeito da manifesta antipatia do Sr. Bates pelo seu patrão, soube por ele que, quando foi dado o alarme, o Sr. Gibson estava no seu escritório. O jantar terminara às oito e meia, e, até essa hora, tudo havia corrido normalmente. Verdade é que o alarme foi dado já um pouco tarde, mas a tragédia certamente ocorreu mais ou menos à hora especificada no bilhete. Não há nenhuma prova de que o Sr. Gibson tenha estado fora desde o seu regresso da cidade, que se verificou às cinco horas. Por outro lado, a Srta. Dunbar, conforme me foi dito, confessa haver combinado o encontro com a Sra. Gibson na ponte. A não ser isso, ela não quis dizer mais nada, visto que seu advogado a aconselhou a adiar a defesa. Temos várias perguntas importantes para fazer a essa jovem, e, enquanto eu não a vir, não me darei por satisfeito. Devo confessar que o caso se me afiguraria muito desfavorável para ela se não fosse uma circunstância. — E qual é, Holmes?
— A pistola encontrada no guarda-roupa. — Caramba, Holmes! — exclamei. — Para mim, esse parece ser o pior dos pormenores contra a Srta. Dunbar. — Não é tanto assim, Watson. Aquilo me causou uma impressão muito estranha logo após atenta leitura dos jornais, e agora, que estou tratando diretamente do caso, é a minha única âncora firme de esperança. Devemos procurar coerência nos fatos. Se verificamos que ela falta, temos de desconfiar de alguma armadilha. — Quase não chego a compreender, Holmes. — Ora, meu caro Watson, suponhamos por um momento que você represente o papel de uma mulher. Essa mulher, com frieza e premeditação, está prestes a desembaraçar-se de uma rival. Você planejou o golpe. Foi escrito um bilhete. A vítima chegou. Você está de posse da arma. O crime é praticado. Foi um crime magistralmente executado. Depois de perpetrar um delito tão hábil, você estragaria a sua reputação de criminoso esquecendo-se de atirar a arma para cima daqueles caniços próximos, que para todo o sempre a encobririam, e levando-a com cuidado para casa, para colocá-la no guarda-roupa, justamente o lugar em que primeiro dariam busca? Os seus melhores amigos, Watson, não haveriam de lhe gabar a astúcia, e no entanto eu não seria capaz de imaginá-lo praticando algo tão grosseiro como isso. — No nervosismo do momento... — Não, não, Watson, não admito essa possibilidade. Quando um crime é friamente premeditado, são também premeditados os meios de encobri-lo. Creio, portanto, que estamos diante de um sério mal-entendido. — Mas há tanta coisa a explicar! — Pois então vamos começar a explicar alguma coisa. Uma vez modificado um ponto de vista, a própria circunstância que parecia mais grave converte-se no caminho que conduz à verdade. É, por exemplo, o caso do tal revólver. A Srta. Dunbar nega qualquer conhecimento desse pormenor. De acordo com a nossa nova teoria, ela, ao afirmar isso, diz a verdade. Portanto, a arma foi colocada no seu guarda-roupa. Quem a colocou ali? Alguém que desejava acusá-la. Não seria essa pessoa o verdadeiro criminoso? Vê como de repente chegamos a uma série de indagações frutíferas? Fomos forçados a passar a noite em Winchester, uma vez que ainda não haviam sido completadas as formalidades legais, mas na manhã seguinte, em companhia do Sr. Joyce Cummings, o esperançoso advogado a quem estava confiada a defesa, recebemos permissão para visitar a jovem na sua cela. De tudo quanto eu ouvira dizer, esperava ver simplesmente uma beldade, mas nunca me esquecerei do efeito que em mim produziu a Srta. Dunbar. Não era de admirar que até mesmo o arrogante milionário tivesse descoberto nela
alguma coisa mais poderosa que ele próprio — alguma coisa capaz de dominálo e guiá-lo. Sentia-se também, quando se olhava para aquele semblante forte, de traços firmes e contudo reveladores de alta sensibilidade, que mesmo que ela se deixasse arrastar à prática de algum ato menos pensado, sua profunda nobreza de caráter sempre a levaria de novo à prática do bem. Era morena, alta, tinha uma figura nobre e uma aparência imponente, mas notava-se nos seus olhos negros a expressão quase de súplica do animal que se vê cercado de redes e não descobre maneira de se livrar da armadilha. Agora, ao perceber a presença e a ajuda do meu famoso amigo, suas faces pálidas criaram cores, e um lampejo de esperança começou a brilhar no olhar que nos dirigiu. — Talvez o Sr. Neil Gibson lhe tenha dito alguma coisa do que houve entre nós — disse, em voz baixa e agitada. — Sim — respondeu Holmes. — Não precisa se afligir entrando nessa parte da história. Depois de vê-la, estou inclinado a aceitar a declaração do Sr. Gibson tanto relativamente à influência que a senhora teve sobre ele como quanto à inocência das suas relações com ele. Mas por que não pôr tudo em pratos limpos perante as autoridades? — Pareceu-me incrível que uma acusação dessas pudesse ser levada a sério. Pensei que, se aguardássemos um pouco, tudo se esclareceria por si mesmo, sem sermos forçados a entrar em penosos pormenores da vida íntima da família. Mas, pelo que me disseram, a situação, longe de se aclarar, cada vez se complica mais. — Minha estimada senhora — exclamou Holmes, com voz firme —, rogo-lhe que não tenha ilusões quanto a este ponto. O seu advogado lhe assegurará que todas as cartas presentemente são contra nós e que temos de fazer tudo o que for possível se quisermos sair vitoriosos. Seria um engano cruel virmos aqui dizer-lhe que a senhora não corre grande risco. Dê-me, pois, todo o auxílio que puder para chegarmos à verdade. — Não ocultarei nada. — Fale-nos, então, sobre as suas verdadeiras relações com a esposa do Sr. Gibson. — Ela me odiava, Sr. Holmes. Odiava-me com todo o ardor da sua natureza tropical. A Sra. Gibson era uma mulher que não fazia nada pela metade, e a medida do seu amor ao marido era também a medida do ódio que ela me votava. É provável que tivesse interpretado mal as nossas relações. Não é meu desejo ser injusta com a morta, mas ela amava de uma maneira tão intensa, num sentido tão físico que era quase incapaz de entender o laço mental, e até mesmo espiritual, que prendia seu marido a mim, ou de imaginar que a única coisa que me conservava debaixo do seu teto fosse o meu desejo de dirigir sabiamente o poder dele para uma boa finalidade. Agora reconheço que fiz mal. Nada podia justificar a minha permanência num lugar onde eu era causa de infelicidade, e todavia é certo que a infelicidade continuaria, mesmo que eu saísse de casa.
— Agora, Srta. Dunbar — disse Holmes —, peco-lhe que nos conte com exatidão o que sucedeu naquela noite. — Posso dizer-lhe a verdade, Sr. Holmes, até o ponto em que a conheço, mas não estou em condições de provar nada, e existem pontos, justamente os mais importantes, que não posso explicar e para os quais não posso sequer imaginar qualquer explicação. — Se a senhora contar os fatos, talvez outros possam encontrar explicação. — Quanto à minha presença na Ponte de Thor naquela noite, devo dizer que recebi de manhã um bilhete da Sra. Gibson. Esse bilhete estava em cima da mesa da sala de aula, e talvez ela própria o tivesse deixado lá. Nele, ela me implorava que eu a procurasse depois do jantar, alegando ter uma coisa importante para me dizer, e pedia-me que deixasse uma resposta por escrito sobre o relógio de sol no jardim, visto que desejava que estivéssemos apenas as duas no nosso encontro. Eu não via razão para tanto segredo, mas fiz conforme ela pediu, aceitando a entrevista. Pediu-me ainda que destruísse o seu bilhete, e eu queimei-o na lareira da sala de aula. Ela tinha muito medo do marido, que a tratava com uma rudeza pela qual eu freqüentemente o censurei, e apenas me ocorreu que ela procedia dessa maneira porque não queria que ele soubesse da nossa entrevista. — E no entanto ela conservou cuidadosamente a sua resposta. — Sim. Fiquei surpresa, ao saber que a tinha na mão quando morreu. — E que sucedeu então? — Fui ao lugar designado, conforme prometera. Quando cheguei à ponte, ela estava à minha espera. Até aquele momento, eu jamais avaliara a que ponto a pobre criatura me detestava. Parecia louca. Na verdade, penso que era louca, sutilmente louca, com o imenso poder de enganar que os loucos podem ter. Só assim consigo explicar a calma com que todos os dias se encontrava comigo, nutrindo intimamente um ódio feroz contra mim. Não vou repetir aqui o que ela me disse. Explodiu a sua imensa fúria em palavras candentes e horríveis. Eu nem sequer respondi; não pude fazê-lo. Vê-la era coisa de estarrecer. Tapei os ouvidos com as mãos e fugi dali. Quando a deixei, ela ainda vociferava cobras e lagartos contra mim, à entrada da ponte. — No mesmo lugar em que foi encontrada depois? — A poucos metros dali.
— Presumindo que ela tenha morrido pouco depois que a senhora se retirou, não ouviu nenhum tiro? — Não ouvi nada. Mas, sr. Holmes, a verdade é que eu ficara tão nervosa e horrorizada com aquela súbita explosão de ódio que me apressei a me recolher à tranqüilidade do meu quarto e não pude perceber nada do que aconteceu.
— Diz a senhora que voltou para o seu quarto. Acaso tornou a sair antes do dia seguinte? — Sim. Quando chegou a notícia de que a pobre criatura tinha morrido, saí correndo com os outros. — Viu o Sr. Gibson? — Vi. Ele vinha da ponte. Tinha mandado chamar o médico e a polícia. — Pareceu-lhe muito perturbado? — O Sr. Gibson é um homem muito forte e calmo. Não creio que jamais deixe transparecer suas emoções. Eu, porém, que o conhecia muito bem, percebi que estava seriamente preocupado. — Chegamos agora ao ponto mais importante... a pistola que foi encontrada no seu quarto. Já tinha visto a arma antes disso? — Nunca, juro. — Quando é que ela foi encontrada? — Na manhã seguinte, quando a polícia fez uma busca. — Entre as suas roupas? — Sim. No fundo do meu guarda-roupa, debaixo dos meus vestidos. — Não faz idéia de quanto tempo a arma ficou ali? — Não estava lá na manhã do dia anterior. — Como sabe disso? — Porque eu estive arrumando o guarda-roupa. — Isso é decisivo. Segue-se que alguém entrou no seu quarto e colocou lá a arma para comprometê-la. — Deve ter sido assim.
— E quando? — Só pode ter sido à hora da refeição ou nas horas em que eu estive na sala de aula com as crianças. — Foi onde a senhora estava quando recebeu o bilhete? — Sim. Dessa hora em diante, durante a manhã inteira. — Muito obrigado, Srta. Dunbar. Há mais algum ponto que me possa ajudar na investigação? — Que eu saiba, não. — Há um sinal de violência no parapeito da ponte... uma lasca de pedra, coisa recente, bem em frente do corpo. Quem sabe se a senhora seria capaz de sugerir uma explicação para o fato. — Deve ser decerto mera coincidência. — Coisa curiosa, Srta. Dunbar, muito curiosa. Por que haveria de aparecer isso justamente na ocasião da tragédia e por que iria aparecer exatamente naquele lugar? — Mas qual seria a causa desse pequeno fenômeno? Somente uma grande violência poderia produzir tal efeito. Holmes não deu resposta. Seu rosto pálido adquirira repentinamente aquela expressão absorta que eu me habituara a relacionar com as supremas manifestações do seu gênio. Era tão evidente a crise que se formava no seu espírito que nenhum de nós ousou falar, e ficamos sentados — o advogado, a prisioneira e eu — a observá-lo em concentrado silêncio. De repente, ele pulou da cadeira, vibrando de energia e estimulado pela necessidade de agir. — Venha, Watson, venha! — gritou. — O que é que há, sr. Holmes? — Não se importe, minha estimada senhora. O senhor terá notícias minhas, Sr. Cummings. Com o auxílio de Deus e da justiça, dar-lhe-ei um caso que terá a maior repercussão na Inglaterra. Amanhã será informada, Srta. Dunbar, e por ora só lhe afirmo que as nuvens estão se dissipando e que tenho esperança de que a luz da verdade apareça à superfície.
Não era longo o trajeto de Winchester à Vila Thor, mas foi longo para mim devido à impaciência, enquanto para Holmes era evidente que a jornada parecia interminável. Na agitação nervosa que o dominava, não conseguia ficar quieto; passeava pela carruagem ou tamborilava com os longos dedos
sensíveis nas almofadas a seu lado. Mas, de súbito, quando nos aproximávamos do nosso destino, sentou-se defronte de mim (tínhamos um compartimento de primeira classe reservado para nós) e, pondo uma mão sobre cada um dos seus joelhos, olhou-me fixo, com o ar particularmente divertido que lhe era característico quando se sentia eufórico e folgazão. — Watson — disse ele —, tenho uma vaga lembrança de que costuma andar armado quando me acompanha nestas excursões. E bem fazia eu em andar armado, porque ele pouco cuidava da sua segurança pessoal quando tinha o espírito absorvido por um problema, de modo que mais de uma vez o meu revólver nos prestara bons serviços. Chamei-lhe a atenção para o fato. — Sim, sim, sou um pouco distraído nesses assuntos. Mas você tem aí o seu revólver? Tirei-o do bolso e dei-o a ele. Era uma arma pequena, mas útil. Holmes desmontou-a, tirou os cartuchos e examinou-a cuidadosamente. — É pesado, bastante pesado — comentou. — Sim, é uma peça sólida. Ele refletiu um momento, conservando-o. — Sabe, Watson — disse ele —, parece-me que o seu revólver vai ter uma relação íntima com o mistério que estamos investigando. — Meu caro Holmes, está gracejando? — Não, Watson, falo a sério. Estamos diante de um teste. Se esse teste der resultado, tudo ficará claro. E esse teste está dependendo do comportamento desta pequena arma. Um cartucho fica de fora. Agora vamos repor os outros cinco e ajustar de novo a trava de segurança. Pronto! Assim, aumenta-se o peso e torna-se mais perfeita a reprodução. Eu não fazia idéia do que lhe ia no espírito, e ele não me deu nenhuma explicação, mas quedou-se mergulhado nas suas reflexões até a carruagem parar na pequena estação de Hampshire. Alugamos uma carruagem velha, e em quinze minutos estávamos em casa do nosso amigo, o sargento Coventry. — Um indício, Sr. Holmes? Qual é? — Tudo depende do comportamento do revólver do Dr. Watson — comentou o meu amigo. — Ei-lo. Agora, delegado, é capaz de me arranjar dez metros de barbante? A loja da aldeia forneceu-nos um rolo de barbante forte, de fio duplo.
— Creio que vamos precisar apenas deste — disse Holmes. — Agora, se me dão licença, vamos partir para aquilo que eu espero seja a derradeira etapa de nossa viagem. O sol começava a declinar e convertia a ondulante charneca de Hampshire num maravilhoso panorama outonal. O sargento, com várias olhadelas de crítica e incredulidade, reveladoras das suas profundas dúvidas sobre a sanidade mental do meu companheiro, caminhava um tanto contrafeito ao nosso lado. À medida que nos aproximávamos do local do crime, percebi que o meu amigo, apesar da sua calma habitual, estava na verdade profundamente agitado. — Sim — disse ele, em resposta a uma observação minha —, você já me viu errar o alvo, Watson. Tenho uma espécie de instinto em relação a esses episódios, e contudo ele às vezes me prega peças. A coisa me pareceu simplicíssima, quando primeiro me passou pela idéia na cela de Winchester, mas uma das desvantagens de um espírito atilado é que sempre a gente pode conceber mais de uma explicação, e isso costuma prejudicar o faro. E contudo... e contudo... Bem, Watson, o que nos resta fazer é experimentar. Enquanto andava, tinha atado com firmeza uma ponta do cordel ao cabo do revólver. Chegamos ao local da tragédia. Com grande cuidado, marcou, guiado pelo policial, o ponto exato onde caíra o corpo. Procurou então, diligentemente, por entre a urze e os fetos, até que achou uma pedra bastante grande. Amarrou-a à outra ponta do cordel e pendurou-a por cima do parapeito da ponte, de modo a deixá-la balançando livremente sobre a água. Em seguida tomou posição, ereto sobre o lugar fatal, a certa distância da beira da ponte, com o meu revólver na mão, estando o cordel bem esticado entre a arma e a pesada pedra do lado distante. — Vamos lá! Ditas essas palavras, ergueu a pistola à altura da cabeça e logo a largou. Num instante, ela foi arrebatada pelo peso da pedra, bateu com violento estalo contra o parapeito e sumiu do outro lado, dentro da água. Nem bem a arma se fora, Holmes ajoelhou-se ao lado da alvenaria de pedra e um alegre grito anunciou que encontrara o que esperava. — Já alguma vez houve uma demonstração mais exata? — bradou. — Veja, Watson, o seu revólver resolveu o problema! — Enquanto dizia essas palavras, indicou uma segunda lasca do mesmo tamanho e forma da primeira, que tinha aparecido sobre o rebordo inferior da balaustrada de pedra. — Esta noite ficaremos na estalagem — prosseguiu, ao mesmo tempo em que se levantava e se punha em frente do atônito sargento. — Se o senhor arranjar
um gancho apropriado, com facilidade retirará da água o revólver do meu amigo. Ao lado dessa arma, encontrará a outra, bem como o cordel e o peso com que essa mulher vingativa tentou disfarçar o seu próprio crime e elaborar uma acusação de assassinato sobre uma vítima inocente. Pode dizer ao Sr. Gibson que irei procurá-lo pela manhã, a fim de se tomarem providências para a defesa da Srta. Dunbar. Já muito tarde na noite, enquanto fumávamos juntos os nossos cachimbos na estalagem da aldeia, Holmes recapitulou brevemente os principais lances daquele caso. — Receio, Watson — disse ele —, que você não melhore a reputação que eu possa ter adquirido acrescentando aos seus anais o "Misterioso caso da Ponte de Thor". Mostrei-me lento de intelecto e falho daquela mistura de imaginação e realidade que constitui a base da minha arte. Confesso que a lasca na alvenaria era um indício suficiente para sugerir a verdadeira solução, e que me censuro por não ter atinado antes com ela. "Temos de admitir que a trama urdida pela inteligência dessa desditosa mulher era profunda e sutil, de modo que não era tarefa fácil desvendá-la. Creio que nunca, nas nossas aventuras, deparamos com um exemplo mais estranho daquilo que o amor pervertido é capaz de produzir. Que a Srta. Dunbar fosse sua rival no sentido físico ou no sentido puramente mental parece ter sido igualmente imperdoável a seus olhos. Sem dúvida, ela atribuía à inocente jovem todos aqueles modos rudes e as palavras duras com que seu marido procurava repelir o seu afeio demasiado exuberante. Sua primeira resolução foi pôr termo à própria vida. A segunda, foi fazê-lo de tal maneira que envolvesse a sua vítima numa sorte muito pior que qualquer morte súbita. "Podemos acompanhar perfeitamente as várias etapas, que revelam uma notável sutileza de espírito. A infeliz senhora arrancou muito habilmente da Srta. Dunbar um bilhete que faria parecer que a ama escolhera o local do crime. Desejando ansiosamente que descobrissem o bilhete, excedeu-se um pouco, conservando-o na mão até o fim. Isso, por si só, devia ter despertado as minhas suspeitas desde o início. "Em seguida, tirou um dos revólveres do marido (havia, como você viu, um verdadeiro arsenal na casa) e reteve-o para seu uso. Naquela manhã, escondeu no guarda-roupa da Srta. Dunbar um revólver semelhante, depois de descarregar um cano, o que lhe seria fácil fazer na mata sem chamar a atenção. Dirigiu-se depois para a ponte, onde idealizara aquele método extraordinariamente engenhoso, para se desembaraçar da sua arma. Quando a Srta. Dunbar chegou, utilizou as últimas forças extravasando todo o seu fel, e depois, quando já ninguém a ouvia, levou a efeito o seu terrível propósito. Cada elo agora está no seu lugar, e a cadeia está completa. Os jornais poderão perguntar por que motivo o lago não foi dragado logo no início, mas é fácil adivinhar uma coisa depois de alguém tê-la adivinhado e explicado, e, seja como for, não é fácil dragar toda a extensão de uma lagoa coberta de caniço, a não ser que se tenha uma idéia clara daquilo que se procura e do lugar onde deve estar. Pois bem, Watson, nós ajudamos uma mulher notável e também
um homem não menos notável. Se eles no futuro juntarem suas forças, o que não parece impossível, o mundo das finanças verificará que o Sr. Neil Gibson aprendeu alguma coisa na escola da dor, que é uma grande mestra neste mundo.
Sherlock Holmes em: O homem que andava de rastros Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
O sr. Sherlock Holmes foi sempre de opinião que eu devia publicar os estranhos fatos relacionados com o professor Presbury, com o objetivo de destruir de uma vez por todas os boatos que, há uns vinte anos atrás, agitaram a universidade e repercutiram nos círculos científicos de Londres. Havia, contudo, alguns obstáculos no caminho, e a autêntica história desse curioso caso permaneceu encerrada na caixa de estanho que contém tantos relatos de aventuras do meu amigo. Agora, finalmente, obtivemos permissão para ventilar os fatos que constituíram um dos últimos casos de que Holmes se incumbiu antes de deixar suas atividades. Mas, mesmo agora, têm de se manter certas reticências e certa discrição ao se expor o caso diante do público. Numa tarde de domingo, no princípio de novembro do ano de 1903, recebi mais uma das lacônicas mensagens de Holmes: "Venha imediatamente, se não for incômodo; se for, venha da mesma forma. S. H."
As relações entre nós, naqueles últimos tempos, eram muito especiais. Ele era um homem de hábitos restritos e concentrados, e eu me tornara um desses hábitos. Na qualidade de instituição, eu era como o violino, o tabaco forte, o velho cachimbo preto, os livros de índice, e outras tantas coisas talvez menos desculpáveis. Quando se tratava de um caso de trabalho ativo e se precisava de um companheiro com cujos nervos ele podia contar, eu entrava inevitavelmente em cena. Mas afora isso, eu tinha os meus préstimos. Era o atiçador do seu intelecto. Estimulava o detetive. Ele se comprazia em pensar alto na minha presença. A rigor, não se podia dizer que as suas observações fossem feitas para mim (dir-se-ia que muitas delas eram antes endereçadas à cabeceira da sua cama), mas, sem dúvida, uma vez adquirido o hábito, tornarase de certo modo proveitoso eu intervir com os meus comentários. Se eu o irritava com uma certa morosidade sistemática do meu modo de pensar, essa irritação até servia para fazer com que as suas próprias intuições e impressões, de si já tão brilhantes, cintilassem ainda com mais vivacidade e rapidez. Era esse o meu modesto papel na nossa aliança. Ao chegar à Baker Street, encontrei-o encolhido na sua cadeira de braços, com os joelhos erguidos, o cachimbo na boca e um largo sulco na fronte cismadora. Era evidente que algum angustioso problema lhe atazanava o espírito. Com um aceno de mão, indicou a minha velha cadeira de braços, mas, exceto isso, durante meia hora não deu qualquer indício de ter notado a minha presença ali. Então, com um estremecimento do corpo, pareceu despertar do seu devaneio, e com o habitual sorriso excêntrico, deu-me as boas-vindas por me ver de regresso àquela casa que já tinha sido o meu lar. — Há de me desculpar uma certa abstração de espírito, meu caro Watson — disse ele. — Contudo, foram submetidos à minha apreciação alguns fatos curiosos, que, nas últimas vinte e quatro horas, deram por sua vez origem a algumas especulações de caráter mais geral. Tenho pensado seriamente em escrever uma pequena monografia a respeito da utilidade dos cães no trabalho
do detetive. — Mas isso, Holmes, já é assunto explorado — disse eu. — Cães policiais... — Não, Watson, não. Esse aspecto do assunto é naturalmente conhecido. Mas existe outro muito mais sutil. Deve se recordar de que, no caso que você, no seu estilo sensacional, associou às Copper Beeches, eu consegui, observando o espírito da criança, formular uma dedução relativa aos hábitos criminosos do pai, burguês de respeito. — Sim, lembro-me muito bem. — O curso das minhas idéias relativamente aos cães é análogo. O cão reflete a vida da família. Onde é que já se viu um cão espevitado numa família sorumbática, ou um cão tristonho numa família jovial? Gente rabugenta tem cães rosnadores, gente perigosa tem cães perigosos. E as disposições de espírito passageiras destes talvez reflitam as disposições passageiras dos seus donos. Abanei a cabeça. — Há de convir, Holmes, que isso é um pouco forçado. Ele tornara a encher o cachimbo e sentou-se direito, sem tomar conhecimento do meu comentário. — A aplicação prática do que acabo de dizer prende-se intimamente ao problema que estou investigando. A meada, como vai ver, tem muitas voltas, e ando à procura do fio que provavelmente está na seguinte pergunta; por que é que Roy, o fiel cão do professor Presbury, tem tentado mordê-lo? Enterrei-me na minha cadeira, um tanto desapontado. Então era por uma questão tão trivial que tinham me arrancado do meu trabalho? Holmes olhoume de esguelha. — Sempre o mesmo Watson! — disse ele. — Você não se convence de que as mais graves questões podem depender das menores coisas. Diga-me: é ou não é estranho que um sisudo filósofo, homem de certa idade (você decerto já conhece Presbury de nome, o famoso fisiologista de Camford), cujo cão se tem mostrado seu dedicado amigo, haja agora sido atacado duas vezes pelo seu próprio animal? Que diz a isso? — O cão está doente. — Bem, isso tem de ser levado em conta. Mas o animal não ataca ninguém mais, nem consta que incomode o dono a não ser em ocasiões muito especiais. Curioso, Watson, muito curioso. Mas o jovem sr. Bennett se antecipou, se é que é ele que está tocando a campainha. E eu, que esperava poder conversar longamente com você antes que ele chegasse...
Ouviram-se passos rápidos na escada, uma forte pancada na porta, e logo o novo cliente surgiu diante de nós. Era um homem alto e simpático, dos seus trinta anos, elegantemente vestido, mas com qualquer coisa na atitude que mais fazia pensar no acanhamento de um estudante do que na calma de um homem de sociedade. Apertou a mão de Holmes e depois olhou para mim um pouco surpreso. — O assunto é bastante delicado, sr. Holmes — disse ele. — Basta considerar as minhas relações com o professor Presbury, tanto em particular como em público. Na verdade, eu dificilmente poderia me justificar se falasse disso diante de uma terceira pessoa. — Não tenha receio, sr. Bennett. O dr. "Watson é a própria discrição, e posso lhe assegurar que é um assunto no qual é provável que eu venha a precisar de um ajudante.
— Como quiser, sr. Holmes. Estou certo de que compreenderá o motivo desta minha reserva sobre o assunto. — Você, Watson, poderá compreendê-la bem quando eu lhe disser que este cavalheiro, o sr. Trevor Bennett, é assistente profissional do grande cientista, em cuja casa reside, e é noivo de sua filha única. Certamente, temos de concordar em que o professor tem todo o direito à sua lealdade e dedicação. Mas a coisa se tornará mais patente se entrarmos logo no assunto, a fim de esclarecer esse mistério tão estranho. — Assim o espero, sr. Holmes. Não é outro o meu intento. O dr. Watson conhece a situação? — Não tive tempo de lhe explicar. — Então talvez seja melhor eu recapitular os fatos antes de acrescentar algum ponto mais recente. — Eu me incumbirei disso — disse Holmes —, a fim de provar que tenho os acontecimentos na devida ordem. O professor, Watson, é homem de reputação européia. A sua vida tem sido acadêmica. Jamais pairou perto dele a sombra de um escândalo. É viúvo e tem uma filha, Edith. De acordo com informações por mim colhidas, é homem de caráter viril e positivo, e quase se poderia dizer
combativo. Assim eram as coisas até alguns meses atrás. "Então o curso da sua vida sofreu uma interrupção. Apesar de seus sessenta e um anos, ficou noivo da filha do professor Morphy, seu colega na cadeira de anatomia comparada. Segundo estou informado, não se tratou de um galanteio ponderado de um homem de idade, mas antes do delírio apaixonado de um jovem, pois ninguém seria capaz de se mostrar amante mais devotado. A noiva, Alice Morphy, era uma jovem prendada tanto física como moralmente, circunstância que justificava perfeitamente o entusiasmo que ela inspirou ao professor. Sem dúvida, esse namoro não recebeu plena aprovação da família do próprio professor Presbury. — Julgamos essa paixão um tanto excessiva — comentou o nosso visitante. — Isso mesmo. Excessiva e um pouco violenta e forçada. Contudo, o professor Presbury é rico, e não havia objeção da parte do pai. Quanto à filha, ela tinha outros planos, e pretendentes não lhe faltavam, os quais, se eram menos cotados sob o ponto de vista das conveniências sociais, não tinham contra si a diferença de idade. A jovem parecia gostar do professor, apesar das suas excentricidades. O único óbice era a idade. "Por essa época, um ligeiro mistério estendeu de repente uma sombra sobre a pacata existência do professor. Ele fez uma coisa que antes nunca fizera. Saiu de casa sem deixar nenhuma indicação de seu destino. Esteve ausente durante duas semanas, e ao voltar apresentava sinais de cansaço. Não disse uma palavra sobre o lugar onde estivera, embora fosse em geral um homem muito expansivo. Entretanto, aconteceu que o nosso cliente, o sr. Bennett, recebeu casualmente uma carta de um condiscípulo de Praga, em que este exprimia a sua satisfação por ter visto o professor naquela cidade, embora não tivesse podido falar com ele. Só dessa maneira é que as pessoas da casa souberam onde Presbury tinha estado. "Agora é que entra o ponto principal. Dessa época em diante, operou-se no professor uma curiosa mudança. Ele se tornou esquivo e dissimulado. As pessoas das suas relações tinham sempre a impressão de que ele já não era o homem que elas tinham conhecido, que havia alguma sombra que lhe obscurecia as altas qualidades. A inteligência não fora afetada. Suas preleções eram brilhantes como sempre. Mas havia algo de novo, de sinistro, de inesperado. A filha, que lhe dedicava grande afeição, redobrou os esforços para fazê-lo voltar ao que era ou ao menos para retirar aquela máscara que o pai parecia ter afivelado nas feições. O cavalheiro aqui presente, conforme chegou ao meu conhecimento, fez o mesmo, mas tudo em vão. E agora, sr. Bennett, conte com suas próprias palavras o episódio das cartas. — Devo informá-lo, dr. Watson, que o professor não tinha segredos para mim. Se eu fosse seu filho ou seu irmão mais novo, não poderia gozar de mais confiança do que gozava. Na qualidade de seu secretário, passavam pelas minhas mãos todos os papéis que chegavam para ele. Era eu que abria e separava as cartas. Pouco depois do seu regresso, tudo mudou. Ele me disse que era possível que viessem de Londres certas cartas que trariam como
marca uma cruz logo abaixo do selo. Elas teriam que ser postas de parte, pois só ele deveria lê-las. O que posso dizer é que várias destas cartas passaram pela minhas mãos, traziam a marca E.C. e eram escritas em péssima letra. Se o professor respondeu a essas cartas, as respostas não passaram pelas minhas mãos nem foram depositadas no cesto de cartas onde se juntava toda a nossa correspondência. — E a caixa? — lembrou Holmes. — Ah, é verdade. Ao voltar das suas viagens, o professor trouxe uma pequena caixa de madeira. Foi a única coisa que sugeria a idéia de que tivesse viajado pelo continente, porque a caixinha é um desses objetos curiosamente lavrados que logo nos trazem à lembrança a Alemanha. Colocou-a no armário onde estão os seus instrumentos. Um dia, procurando uma cânula, peguei a caixa. Para surpresa minha, ele se mostrou muito zangado e, com palavras desabridas, censurou a minha curiosidade. Era a primeira vez que tal coisa acontecia, e fiquei profundamente magoado. Esforcei-me por explicar que pegara aquela caixa por mero acaso, mas durante toda a tarde reparei que me olhava com ar carrancudo e que o incidente não lhe saía da memória, tendo-o irritado muito. — Aqui, o sr. Bennett tirou do bolso uma pequena agenda. — Isso foi a 2 de julho — acrescentou. — O senhor é certamente uma testemunha ideal — disse Holmes. — Posso vir a precisar de algumas dessas datas que o senhor tão cuidadosamente assentou no seu diário. — Do meu grande mestre aprendi, entre outras coisas, a observar método em tudo. Desde a época em que notei certo desequilíbrio no seu procedimento, senti que era meu dever estudar o caso. Assim, tenho anotado que foi nesse mesmo dia, 2 de julho, que Roy atacou o professor, quando ele saía do seu gabinete para o vestíbulo. Em 11 de julho, deu-se novamente uma cena semelhante, e trago aqui apontado que a mesma coisa se reproduziu no dia 20. Depois disso, tivemos que mandar o cão para o estábulo. Roy era um animal muito afeiçoado a todos nós... Mas receio fatigá-lo. O sr. Bennett disse essas últimas palavras em tom de censura, porque era evidente que Holmes não lhe prestava atenção. Seu rosto estava rígido, e os olhos fitavam distraidamente o teto. Com um esforço, conseguiu concentrar de novo a atenção. — Estranho! Muito estranho! — murmurou. — Esses pormenores são novos para mim, sr. Bennett. Creio que já dispomos agora de dados inéditos, não é verdade? Mas o senhor disse que ia acrescentar episódios mais recentes. A fisionomia agradável e aberta do nosso visitante anuviou-se, naturalmente com alguma recordação triste. — O que vou narrar passou-se há duas noites — disse ele. — Eu estava deitado mas desperto, por volta das duas horas da madrugada, quando notei um som abafado que vinha do corredor. Abri a porta do meu quarto e espiei.
Devo explicar que o professor dorme no fim do corredor... — E a data?... — indagou Holmes. Nosso visitante aborreceu-se visivelmente com essa interrupção tão impertinente. — Eu disse que o fato se deu há duas noites, isto é, a 4 de setembro. Holmes aprovou com a cabeça e sorriu. — Queira continuar — disse. — Ele dorme no fim do corredor, e tinha de passar diante de minha porta a fim de alcançar a escada. Foi um espetáculo verdadeiramente constrangedor, sr. Holmes. Creio que tenho os nervos em ordem, como qualquer pessoa normal, mas fiquei abalado com o que vi. O corredor estava escuro; apenas uma janela, localizada mais ou menos no meio dele, projetava uma réstia de luz. Pude ver que alguma coisa vinha avançando pelo corredor, uma coisa preta e encolhida. E eis que de repente essa coisa penetrou na claridade, e vi que era ele. Andando de rastros, sr. Holmes...de rastros! Não se arrastava propriamente sobre as mãos e os joelhos. Eu diria antes que caminhava sobre as mãos e os pés, com o rosto enterrado entre as mãos. No entanto, parecia mover-se com desembaraço. Tão fulminado me senti com o que via que só quando ele ia passar pela minha porta é que consegui dar um passo em frente e perguntar-lhe se podia ajudá-lo. Sua resposta foi extraordinária. Pôs-se de pé num pulo, pronunciou um palavrão atroz e passou por mim como um raio, desaparecendo na escada, que desceu a toda a pressa. Esperei mais ou menos uma hora, mas ele não voltou. Deve ter regressado ao quarto já ao raiar do dia. — Então, Watson, que diz a isso? — perguntou Holmes, com o ar do patologista que apresenta um espécime raro. — Lumbago, provavelmente. Sei de um caso grave que obrigou um homem a caminhar exatamente desse modo, e não pode haver nada que ponha uma pessoa mais nervosa. Bravo, Watson! Tem resposta para tudo. Mas dificilmente poderemos acreditar em lumbago, uma vez que Presbury pôde pôr-se de pé num instante.
— O homem nunca esteve melhor de saúde — disse Bennett. — Podem acreditar em mim: conheço-o há anos, e nunca o vi tão bem-disposto. Mas os fatos aí estão, sr. Holmes. Não se trata de um caso em que possamos consultar a polícia, e todavia não temos a mínima idéia do que nos compete fazer, e aflige-nos o pressentimento de que está iminente uma catástrofe. Edith, quer dizer, a srta. Presbury, é, como eu, de opinião que já não devemos aguardar passivamente. — Não há a menor dúvida de que estamos diante de um caso muito curioso e sugestivo. Que pensa você a este respeito, Watson? — Falando como médico — disse eu —, parece ser um caso para um psiquiatra. Os processos cerebrais desse homem idoso sofreram um distúrbio por causa da aventura amorosa em que se meteu. O professor viajou na esperança de se libertar da paixão. As cartas e a caixa podem ter relação com qualquer outra transação privada... um empréstimo, talvez, ou certificados de títulos que estão na caixa. — E o cão sem dúvida reprovou a transação financeira. Não, não, Watson, nessa história há mais do que isso. E o que posso sugerir... O que Sherlock Holmes ia sugerir jamais será conhecido, porque naquele momento a porta se abriu, e uma jovem surgiu na sala. Quando ela surgiu no limiar, o sr. Bennett levantou-se imediatamente com uma exclamação e correu, com as mãos estendidas, ao encontro da recém-chegada, que também lhe estendia as suas. — Edith querida! Espero que não haja nenhuma novidade... — Tive de vir à sua procura. Oh, Jack, fiquei com tanto medo! É horrível ficar lá sozinha. — Sr. Holmes, esta é a jovem de quem falei. É a minha noiva. — Pouco a pouco, íamos chegando a essa conclusão, não é verdade, Watson? — disse Holmes, com um sorriso. — Suponho, srta. Presbury, que haja algum novo aspecto no caso que achou conveniente trazer ao nosso conhecimento. Não é assim? A nossa nova visitante, uma jovem simpática, de um tipo inglês convencional, retribuiu o sorriso de Holmes enquanto se sentava ao lado do sr. Bennett. — Quando verifiquei que o sr. Bennett não estava no hotel, calculei que poderia encontrá-lo aqui. É claro que ele tinha me dito que viria consultá-lo. Mas, oh, sr. Holmes, será que não pode fazer nada pelo meu pobre pai? — Tenho algumas esperanças, srta. Presbury, mas o caso ainda está um
pouco obscuro. Talvez o que a senhorita traz lance uma nova luz sobre o assunto. — Foi a noite passada, sr. Holmes. Meu pai tinha estado muito esquisito o dia todo. Estou certa de que em algumas ocasiões ele não se recorda do que faz. Vive num estranho sonho. Ontem foi um desses dias. Não era meu pai a pessoa com quem eu estava vivendo. O invólucro exterior estava ali, mas não era ele realmente. — Conte-me o que aconteceu. — Acordei de noite com o cão ladrando furiosamente. O pobre Roy agora está amarrado à corrente, perto do estábulo. Durmo sempre com a porta do meu quarto fechada à chave, porque, como Jack, isto é, como o sr. Bennett poderá lhe dizer, temos todos um pressentimento de desgraça iminente. Meu quarto fica no segundo andar. Aconteceu que o estore da minha janela estava suspenso, e havia luar. Enquanto eu, deitada, tinha os olhos fixos no feixe de luz, escutando o ladrar frenético do cão, fiquei assombrada ao ver o rosto do meu pai, olhando para mim. Sr. Holmes, quase morri de susto e de horror. Lá estava ele, seu rosto, colado à vidraça, e uma das mãos parecia erguer-se como que para abrir a janela. Se ela tivesse sido aberta, creio que eu teria enlouquecido. Não era ilusão, sr. Holmes. Não vá pensar que acredito em fantasmas. Ouso dizer que, durante uns vinte segundos mais ou menos, fiquei paralisada, olhando para aquele rosto. Então o rosto desapareceu, mas faltoume ânimo para saltar da cama e seguir meu pai. Continuei deitada, gelada, tremendo até de manhã. Quando nos encontramos para a primeira refeição, ele se mostrou desabrido e rude, sem fazer qualquer alusão à aventura da noite. Eu também não toquei no assunto, mas, dando uma desculpa, vim à cidade e dirigi-me para cá. Holmes pareceu muito surpreso com a narrativa da srta. Presbury. — Minha cara, diz então que seu quarto fica no segundo andar. Existe no jardim alguma escada de mão? — Não, sr. Holmes; aí é que o assombro culmina. Não há possibilidade de se alcançar a janela, e contudo meu pai chegou lá. — E a data foi 5 de setembro — comentou Holmes. — Isso certamente complica a questão. Então quem se surpreendeu foi a jovem. — É a segunda vez que o senhor alude à data, sr. Holmes — disse Bennett. — Será
possível que isso tenha alguma relação com o caso? — É possível, muito possível, e no entanto, presentemente, não disponho de todos os dados de que preciso. — Quem sabe o senhor está pensando na relação entre a loucura e as fases da Lua? — Não, pode ficar certo de que não é isso. O curso das minhas idéias vai bem além desse ponto. Creio que não porá objeção em deixar comigo sua agenda, para que eu possa me orientar quanto às datas. Agora creio, Watson, que nosso rumo já está bastante claro. Esta jovem acaba de nos informar (e tenho a maior confiança na intuição dela) que seu pai pouco ou nada se lembra do que sucede em certos dias. De modo que iremos a sua casa, como se ele nos tivesse marcado uma entrevista em tal data. Ele deve considerar a coisa como falta de memória de sua parte. E assim iniciaremos nossa campanha, observando-o de perto. — Excelente idéia — disse o sr. Bennett. — Previno-o, entretanto, de que o professor às vezes é irascível e violento. Holmes sorriu. — Há razões para irmos imediatamente, razões prementes, se é que minhas teorias têm uma boa base. Amanhã, sr. Bennett, estaremos com toda a certeza em Camford. Lá existe, se bem me lembro, uma estalagem chamada Tabuleiro de Xadrez, onde o porto é acima do medíocre e o asseio, irrepreensível. Estou desconfiado, Watson, de que a nossa sorte, nos próximos dias, está em lugares menos aprazíveis. A manhã de segunda-feira surpreendeu-nos a caminho da famosa cidade universitária — esforço fácil da parte de Holmes, que não tinha coisa alguma que o prendesse, mas nada fácil para mim, que, naquela época, estava com uma clientela que não era de desprezar, sendo-me necessário modificar planos e andar depressa para perder o mínimo de tempo possível. Holmes não fez nenhuma referência ao caso até depois de guardarmos nossas malas na velha hospedaria de que havia falado. — Watson, creio que podemos apanhar o professor pouco antes do almoço. Ele dá aula às onze horas, e aproveitaremos em sua casa o intervalo que se segue. — Que pretexto temos para visitá-lo? Holmes relanceou os olhos pelo seu bloco. — Houve um período de agitação em 26 de agosto. Vamos supor que ela tenha a memória um tanto nublada em relação ao que faz em tais dias. Se insistirmos em que nos encontramos ali de acordo com uma combinação prévia, acho que dificilmente se arriscará a nos contradizer. Você tem o
descaramento necessário para fazer isso? — Vamos experimentar. — Excelente, Watson! Vamos experimentar... será o lema de nossa firma. Não faltará um amável nativo para nos servir de guia. Um deles, empoleirado no alto de um fiacre, transportou-nos velozmente ao longo de uma série de colégios tradicionais, e, finalmente, entrando num caminho de veículos ladeado de árvores, parou à porta de uma casa encantadora, cercada de relva e coberta de glicínias roxas. O professor Presbury sabia rodear-se não só de conforto, mas de luxo. Exatamente no momento em que parávamos à sua porta, uma cabeça grisalha assomou à janela da frente, e vimos dois olhos penetrantes que, debaixo de sobrancelhas bastas, nos examinaram através de grandes óculos de tartaruga. Daí a pouco, penetrávamos no seu lar, e o misterioso cientista, cujos devaneios nos tinham trazido de Londres, estava diante de nós. Não havia indício de extravagância, quer nas suas maneiras quer na sua aparência, pois era um homem imponente, de feições largas, sisudo, alto, trajando sobrecasaca, com aquele porte cheio de dignidade que assenta bem num catedrático. O traço dominante eram os olhos, penetrantes, observadores e tão atilados que raiavam a astúcia. Leu os nossos cartões. — Queiram sentar-se, cavalheiros. Em que lhes posso ser útil? Holmes sorriu delicadamente. — Era essa a pergunta que eu ia lhe fazer, professor. — A mim, cavalheiro? — É possível que haja algum equívoco. Soube por uma pessoa que o professor Presbury, de Camford, precisava dos meus serviços. — Oh, deveras? — Tive a impressão de ver brilhar uma chispa de malícia nos seus penetrantes olhos cinzentos. — Então soube? Posso lhe perguntar o nome de seu informante? — Sinto muito, professor, mas o assunto foi um tanto confidencial. Se houve equívoco da minha parte, não há nenhum mal nisso. Posso apenas apresentar as minhas desculpas. — De maneira nenhuma. Desejo tirar a limpo este caso. É do meu interesse. O senhor não terá qualquer fragmento escrito, uma carta ou telegrama, que confirme sua afirmação?
— Não, não tenho. — Presumo que não vá chegar ao ponto de dizer que eu o mandei chamar. — Prefiro não responder a perguntas — disse Holmes. — Compreendo, compreendo — tornou o professor, com aspereza. — Contudo, a pergunta que lhe faço tem resposta fácil, sem a sua ajuda. Atravessou o aposento para alcançar a campainha. Nosso amigo de Londres, o sr. Bennett, atendeu a chamada. — Entre, sr. Bennett. Estes dois cavalheiros vieram de Londres com a impressão de que foram chamados aqui. O senhor, que trata de toda a minha correspondência, tem algum bilhete dirigido a uma pessoa de nome Holmes? — Não, senhor — respondeu Bennett, corando. — Isso é bastante concludente — disse o professor, encarando enfurecido o meu companheiro. — Agora, cavalheiros — acrescentou, curvando-se para a frente com as duas mãos sobre a mesa —, parece-me que a sua posição é um tanto duvidosa. Holmes encolheu os ombros. — Só posso reiterar as minhas desculpas por ter vindo incomodá-lo desnecessariamente. — É inútil, sr. Holmes — gritou o velho com voz estridente, ao mesmo tempo em que sua fisionomia não deixava dúvidas quanto aos seus propósitos. Interpôs-se, ao falar, entre nós e a porta, e gesticulava com ambas as mãos furiosamente. — O senhor não escapa assim tão facilmente. — Suas feições estavam alteradas; na sua raiva, mostrava-nos os dentes e dizia palavras sem nexo. Estou convencido de que, se não fosse a intervenção do sr. Bennett, só poderíamos ter saído dali usando a violência. — Meu prezado mestre — gritou ele —, pense na sua posição! Considere o escândalo na universidade! O sr. Holmes é um homem bastante conhecido, e não é prudente que o senhor o trate com tanta descortesia. De má vontade, o dono da casa saiu do caminho, franqueando-nos a porta. Demo-nos por felizes quando nos vimos fora da casa e no sossego do caminho
arborizado. Holmes parecia comprazer-se grandemente com o episódio. — Os nervos do nosso douto amigo estão um pouco fora do lugar — disse. — Talvez nossa invasão ao seu lar tenha sido um tanto intempestiva, e contudo lucramos com este contato pessoal, que eu desejava. Mas, caramba, Watson, não será ele que aí vem? O vilão ainda nos persegue. Ouviam-se sons de passos de alguém que corria atrás de nós, mas com alívio verificamos que não era o professor, mas seu assistente, quem emergia na curva do caminho. Chegou ofegante. — Sinto muito o que se passou, sr. Holmes. Desejava apresentar desculpas. — Não se preocupe, meu caro sr. Bennett. São os ossos do ofício. — Nunca o vi com um humor tão insuportável! O homem torna-se cada vez mais sinistro. Creio que o senhor, agora, compreende por que a filha dele e eu andamos tão alarmados. E, no entanto, ele está perfeitamente lúcido. — Lúcido demais! — conveio Holmes. — Aqui é que os meus cálculos falharam. É evidente que ele pode confiar na sua memória mais do que eu supunha. Já que aqui estamos, sr. Bennett, seria possível vermos, antes de partir, a janela do quarto da srta. Presbury? O sr. Bennett guiou-nos por entre arbustos, e daí a pouco víamos uma parte lateral da casa. — É ali. A segunda à esquerda. — Deveras? Parece quase inacessível! E, contudo, o senhor há de notar que existe uma trepadeira embaixo e um cano de água em cima que oferecem algum apoio. — Eu não seria capaz de subir ali — disse o sr. Bennett. — Acredito. Seria uma proeza para qualquer homem normal. — Há outra coisa que eu queria lhe dizer, sr. Holmes. Tenho o endereço do homem de Londres a quem o professor escreve. Parece que ele lhe escreveu hoje de manhã. Consegui o nome no mata-borrão. É uma vileza para um secretário de confiança, mas que mais podia eu fazer? Holmes olhou para o papel e colocou-o no bolso. — Dorak... nome curioso. Eslavo, suponho. Bem, trata-se de um importante elo da cadeia. Voltamos para Londres hoje, depois do meio-dia, sr. Bennett. Não vejo vantagem na nossa permanência aqui. Não podemos prender o professor, porque ele não cometeu nenhum crime, e não podemos interná-lo num manicômio, porque não se pode provar que esteja louco. Por enquanto nada há a fazer.
— Então, em que ficamos? — Tenha um pouco de paciência. As coisas em breve tomarão novo rumo. Ou muito me engano ou na próxima terça-feira se dará uma crise. Nesse dia, certamente estaremos em Camford. Entretanto, a situação geral é, sem dúvida, desagradável, e se a srta. Presbury puder prolongar sua ausência... — Isso é fácil. — Então, ela que fique onde está até que possamos lhe assegurar que o perigo já passou. Nesse meio tempo, ele que faça livremente o que lhe apetecer. Que ninguém o contrarie. Enquanto o homem estiver de bom humor, tudo irá bem. — Lá está ele — disse Bennett num cochicho. Olhando por entre os ramos, vimos o vulto alto, ereto, surgir na porta de entrada e olhar em redor. Inclinavase para a frente, mexendo as mãos diante de si e balançando a cabeça de um lado para o outro. Com um aceno de mão, o secretário esgueirou-se por entre as árvores, e vimo-lo daí a pouco alcançar o seu chefe, entrando ambos em casa em animada, ou melhor dizendo, agitada palestra. — Quero crer que o velho, depois do que se passou, esteja tentando tirar suas conclusões — disse Holmes, ao tomarmos a direção do hotel. — Da rápida visita que lhe fizemos, tive a impressão de que possui um cérebro notavelmente lúcido e lógico. O caráter é violento, sem dúvida, mas afinal, sob o seu ponto de vista, ele tem certa razão para se mostrar assim, por ter verificado que já há detetives e médicos no seu encalço e por desconfiar que quem os chamou foram pessoas da sua própria casa. É bem provável que o amigo Bennett esteja passando um mau quarto de hora. Holmes parou numa agência do correio e mandou um telegrama. A resposta apanhou-nos à tarde, e ele deu-a a mim, para que a lesse. "Visitei Commercial Road e vi Dorak. Bom tipo, idoso, da Boêmia. Dono de grande armazém. Mercer." — O signatário já é do seu tempo — disse Holmes. — É meu factótum quando se trata de negócios em geral. Era importante saber alguma coisa do homem com quem nosso professor se corresponde em tão grande segredo. Coincidentemente, ele é natural do país que o professor visitou. — Ainda bem que alguma coisa coincide com outra — observei. — Presentemente, parece-me que estamos diante de uma série de incidentes inexplicáveis, que não têm nenhuma relação lógica uns com os outros. Por exemplo que relação pode existir entre um cão furioso e uma viagem à Boêmia, ou entre qualquer dessas duas circunstâncias e um homem que se arrasta pelo chão, à noite, num corredor? Mas o que mais espanto me causa, pela sua obscuridade, são as suas datas. Holmes sorriu e esfregou as mãos. Estávamos na velha sala de visitas do
antigo hotel, diante de uma garrafa do famoso vinho a que Holmes se referira. — Bem, vamos falar primeiro nas datas — disse ele, com as pontas dos dedos juntas e com o jeito de quem está se dirigindo a alunos em aula. — O diário daquele excelente sr. Bennett mostra que houve sério transtorno em 2 de julho, e daí por diante parece que a coisa se reproduziu com intervalos de nove dias, com uma única exceção, se bem me lembro. Assim, a derradeira manifestação violenta do fenômeno verificou-se no dia 3 de setembro, que também se enquadra na série, tal como se deu em 26 de agosto, que foi a data precedente. Não se pode dizer que isso seja mera coincidência. Tive de concordar. — Formulemos, pois, para argumentar, a teoria que de nove em nove dias o professor toma alguma droga forte, que produz um efeito passageiro mas altamente prejudicial. A índole do homem, já naturalmente violenta, manifestase ainda mais com a beberagem. Ele soube da existência dessa droga enquanto estava em Praga, e quem agora lhe fornece isso é um sujeito natural da Boêmia, residente em Londres. Há aqui alguma falta de lógica, Watson? — Mas, e o cão, e o rosto na janela, e o homem de rastros pelo corredor? — Bem, bem, estamos apenas começando. Não posso dispor de nenhum novo dado antes da próxima terça-feira. Nesse meio tempo, cumpre-nos não perder contato com o amigo Bennett e ir aproveitando os encantos desta amena cidadezinha. Pela manhã, o sr. Bennett apareceu para nos dar conta das últimas novidades. Conforme Holmes previra, a coisa não tinha sido muito fácil para ele. Sem propriamente responsabilizá-lo por nossa visita, o professor mostrarase bastante áspero e rude em sua linguagem, e evidentemente sentia-se vítima de uma perseguição. Naquela manhã, entretanto, encontrava-se no seu estado normal, tendo feito de maneira brilhante sua preleção habitual a uma classe repleta. — Sem falar naqueles seus esquisitos acessos — disse Bennett —, agora possui mais energia e mais vitalidade do que nunca, e jamais lhe vi tamanha lucidez. Mas já não é o mesmo, não é de forma nenhuma o homem que conhecíamos. — Ao que me parece, o senhor nada terá a recear pelo menos durante uma semana — respondeu Holmes. — Sou um homem atarefado, e o dr. Watson tem seus clientes para atender. Fica combinado que nos encontraremos aqui, a esta mesma hora, na próxima terça-feira, e muito surpreso ficarei, sr. Bennett, se antes de nos irmos daqui novamente não pudermos explicar-lhe o motivo de suas apreensões; digo mais, se não formos capazes de pôr talvez um fim nessas apreensões. Entretanto, queira escrever-nos se houver qualquer coisa de importância. Nos dias seguintes, não vi meu amigo, mas na segunda-feira, à tardinha,
recebi um bilhete dele pedindo-me que nos encontrássemos na terça-feira, no trem. Pelo que me disse durante nossa viagem a Camford, tudo ia bem, mantendo-se inalterável a paz na casa do professor, sendo o seu comportamento perfeitamente normal. Foi essa também a informação que nos deu o próprio sr. Bennett quando nos procurou à tarde, em nosso aposento do Tabuleiro de Xadrez. — Ele hoje teve notícias de seu correspondente em Londres. Chegou uma carta e também um pequeno pacote, ambos com a tal cruz abaixo do selo, para me advertir que não lhes tocasse. Nada mais houve. — Isso deve ser o bastante — disse Holmes, um tanto preocupado. — Sr. Bennett, creio que esta noite havemos de chegar a uma conclusão. Se estão certas as minhas deduções, teremos oportunidade de levar o caso a uma definição qualquer. Para conseguirmos isso, é necessário observar de perto o professor. Eu proporia, portanto, que o senhor ficasse acordado e de vigília. Se o ouvir passar por sua porta, não o interrompa, mas acompanhe-o o mais discretamente que puder. O dr. Watson e eu não estaremos longe. A propósito, onde está a chave da pequena caixa de que o senhor falou? — Ele a leva na corrente do relógio. — Parece-me que nossas pesquisas devem se voltar nessa direção. Na pior das hipóteses, a fechadura não deve ser muito resistente. Há por acaso algum outro homem válido na casa? — Há o cocheiro, MacPhail. — Onde é que ele dorme? — Em cima do estábulo. — É possível que venhamos a precisar dele. Por ora, nada mais podemos fazer até ver o rumo que as coisas tomam. Até logo... mas espero que nos vejamos antes do amanhecer. Era quase meia-noite quando nos instalamos no nosso posto de observação entre uns arbustos, bem em frente à porta de entrada do professor. A noite estava linda mas fria, e folgamos por ter roupa suficiente para nos agasalhar. Soprava uma brisa, e as nuvens galopavam através do céu, tapando de vez em quando o crescente. Seria uma vigília tristonha se não fosse a expectativa e o nervosismo que nos impeliam, e a afirmação de meu camarada de que provavelmente estávamos quase atingindo o fim da estranha seqüência de acontecimentos que vinham prendendo nossa atenção. — Se o ciclo de nove dias se mantiver, hoje à noite teremos o professor no seu pior papel — disse Holmes. — O fato de esses estranhos sintomas terem começado depois de sua ida a Praga, de ele estar se correspondendo secretamente com um negociante da Boêmia estabelecido em Londres, que presumivelmente representa alguém de Praga, e de ter recebido hoje um
pacote, tudo isso mostra um único rumo. O que ele toma e por que o faz são coisas que ainda se encontram fora do nosso alcance, mas que isso de algum modo provém de Praga, parece-me bastante claro. Ele toma a droga seguindo instruções definidas, que regulam esse sistema de nove dias, primeiro ponto que chamou a minha atenção. Mas os sintomas que o professor apresenta são notáveis. Você observou suas articulações? Tive de confessar que não. — Grossas e calosas, de uma forma inteiramente nova para mim. Olhe sempre primeiro para as mãos, Watson. Depois para os punhos da camisa, as joelheiras e o sapato. Articulações muito esquisitas só podem ser explicadas pelo modo de progressão observado por... — Holmes fez uma pausa e de repente bateu com a mão na testa. — Oh, Watson, Watson, que idiota tenho sido! Parece incrível, mas deve ser verdade. Tudo indica um rumo único. Como foi possível que me escapasse tal conexão de idéias? Aquelas articulações... como foi possível que elas não me sugerissem nada? E o cão! E a hera! É tempo de acabar com os meus devaneios. Atenção, Watson! Lá está ele! Vamos ter ensejo de vê-lo com nossos próprios olhos. A porta da entrada tinha se aberto vagarosamente, e no fundo, iluminado por uma lâmpada, vimos a figura do professor Presbury. Vinha vestido com um roupão. De pé, de perfil, à entrada, apresentava-se rígido, mas curvado para a frente, mexendo os braços, como quando o víramos da última vez. No momento em que pôs os pés no caminho destinado aos carros, uma estranha mutação se apoderou dele. Agachou-se e foi se movendo sobre as mãos e os pés, saltitando a espaços como que transbordando de energia e vitalidade. Caminhou assim pela frente da casa e em seguida deu a volta pelo canto. Depois de desaparecer, Bennett esgueirou-se pela porta da entrada e foi seguindo-o mansamente. — Venha, Watson, venha! — disse Holmes. Introduzimo-nos o mais brandamente possível por entre os arbustos, até alcançarmos um lugar de onde podíamos ver o outro lado da casa, banhado pela claridade da lua. Via-se nitidamente o professor, de cócoras, no sopé da parede coberta de hera. Enquanto o observávamos, o homem começou de súbito a subir por ela com incrível agilidade. Pulava de ramo em ramo, sem errar o pé e com mão firme, trepando aparentemente por mera alegria de possuir tais poderes, sem qualquer objetivo definido em vista. Com o roupão esvoaçando de cada lado do corpo, parecia um descomunal morcego grudado à sua própria casa, formando uma grande mancha negra sobre a parede iluminada pela lua. Não tardou a cansar-se da brincadeira, e, deixando-se cair da hera, uma vez no solo, tomou a estranha postura anterior, de cócoras, e assim foi caminhando para o estábulo, sempre de rastros, como antes. O cão já se encontrava do lado de fora, ladrando furiosamente, e ficou mais furibundo que nunca quando avistou o dono. Forçava a corrente que o prendia e tremia de ânsia e de raiva. O professor, propositadamente, conservava-se de gatinhas quase ao. alcance do cão, e começou a provocá-lo de todas as maneiras possíveis. Enchia as mãos de seixos apanhados na estrada e atirava-os ao
focinho do animal, cutucava-o com uma vara que colhera por ali, agitava as mãos apenas a alguns centímetros da boca escancarada do cão, esforçandose de todos os modos para aumentar a fúria do animal, que já não podia se conter de raiva. Em todas as nossas aventuras, não me lembro de ter visto cena mais grotesca do que aquela figura impassível e mesmo assim imponente, numa postura de sapo, no chão, estimulando a ferocidade e a cólera do cão enfurecido (que se encabritava e dava pinotes diante dele) de todas as maneiras que lhe sugeria o engenho e a calculada crueldade. E eis que num momento a coisa aconteceu! Não foi a corrente que se partiu, mas a coleira que escorregou, pois tinha sido feita para um terra-nova de pescoço grosso. Ouvimos o tinir do metal que caía, e no mesmo instante homem e cão se engalfinharam rolando juntos pelo chão, um rugindo de raiva, o outro soltando gritos estridentes de pavor. A vida do professor esteve por um triz. O feroz cão de guarda aferrara-o firmemente pela garganta, cravando-a com seus dentes agudos, e o homem já havia perdido os sentidos antes que os alcançássemos e pudéssemos apartá-los. Para nós, aquela seria uma missão perigosa, porém a voz e a presença de Bennett acalmaram instantaneamente o canzarrão. A algazarra fizera o cocheiro, sonolento e atónito, sair de seu quarto, nos altos do estábulo. — Isso não me surpreende — disse ele, sacudindo a cabeça. — Vi-o, mais de uma vez, provocando o animal. Sabia que este, mais cedo ou mais tarde, haveria de agarrá-lo. O cão voltou à corrente, e juntos carregamos o professor até seu quarto, onde Bennett, que também era formado em medicina, me ajudou a tratar-lhe da ferida. Por pouco os dentes agudos não atingiram a carótida, mas a hemorragia era, não obstante, grave. Dentro de meia hora, o perigo passara, e apliquei no enfermo uma injeção de morfina que o fez cair em profunda letargia. Somente então é que pudemos olhar uns para os outros e avaliar a situação. — Penso que deve ser examinado por um bom cirurgião — opinei eu. — Não, pelo amor de Deus! — exclamou Bennett. — Por enquanto, o escândalo está confinado às paredes desta casa. Só assim o episódio pode ficar em segredo. Mas se transpuser estas paredes, nada mais o deterá. É preciso ter em conta a posição do professor na universidade, sua fama européia, e os sentimentos da filha. — Tem razão — disse Holmes. — Creio que é perfeitamente possível
guardarmos reserva a respeito do caso e também evitar sua repetição, agora que temos ampla liberdade para fazê-lo. Sr. Bennett, a chave que está presa à corrente do relógio! MaçPhail ficará tomando conta do doente e nos avisará se houver qualquer novidade. Vamos ver o que há dentro da misteriosa caixa do professor. Não havia muita coisa, mas era o suficiente: um frasco vazio, outro quase cheio, uma seringa hipodérmica, várias cartas escritas em claudicante ortografia de estrangeiro. Os dados dos envelopes mostravam que eram os mesmos que haviam chamado a atenção do secretário, e todas eram escritas da Commercial Road e traziam a assinatura "A. Dorak". Eram simples faturas comerciais que anunciavam a remessa de um novo frasco ao professor Presbury, ou recibos que acusavam a chegada do dinheiro. Havia, contudo, outro envelope, em letra mais firme, com um selo austríaco e carimbo postal de Praga. — Aqui está o nosso material! — disse Holmes, rasgando o invólucro. "Ilustre colega: [dizia a carta] Desde sua apreciada visita, tenho pensado muito em seu caso, e conquanto em suas circunstâncias existam certas razões especiais que indicam o tratamento, eu recomendaria, no entanto, cautela, uma vez que os resultados por mim obtidos mostram que o tratamento não exclui certo perigo. É possível que o soro do antropóide seja melhor. Conforme lhe expliquei, tenho utilizado o Langur de focinho preto porque tive um espécime ao alcance. O Langur anda sem dúvida de rastros e sabe trepar, ao passo que o antropóide caminha ereto e está, em todos os sentidos, mais próximo de nós. Peço-lhe que use a maior precaução possível para que não haja qualquer prematura revelação do processo. Possuo outro cliente na Inglaterra, e Dorak é meu agente para ambos. Fico-lhe grato se, semanalmente, me enviar informações. Seu, com elevado apreço, H. Lowenstein." Lowenstein! O nome trouxe-me à memória um fragmento qualquer de jornal que falava de um obscuro cientista que andava empenhado em obter o segredo do rejuvenescimento e o elixir da vida. Lowenstein, de Praga! O descobridor do maravilhoso soro que dava robustez, repelido pelos colegas por ter se recusado a revelar seu segredo. Em poucas palavras, disse aquilo de que me lembrava. Bennett tirou da estante um manual de zoologia. — "Langur" — leu —, "o grande macaco de cara preta das vertentes do Himalaia, o maior símio trepador e o mais parecido com o homem." Seguem-se vários pormenores. Bem, graças ao senhor, sr. Holmes, está claríssimo que descobrimos a origem do mal. — A verdadeira origem — disse Holmes — está sem dúvida naquele tardio caso de amor que inspirou ao nosso impetuoso professor a idéia de que só
poderia pôr em prática seu desejo se se transformasse num homem jovem. Quem tenta erguer-se acima de sua natureza arrisca-se a cair abaixo dela. O mais perfeito tipo de homem pode voltar à condição de animal se abandona o caminho reto do destino. — Sentando-se, ficou refletindo um pouco com o frasco na mão, olhando para o líquido claro ali contido. — Quando eu escrever a esse homem e lhe disser que o considero responsável criminalmente pelos venenos que espalha, cessarão os atuais transtornos. Mas talvez voltem. Outros hão de poder encontrar um caminho mais desimpedido. Há nisso um perigo... um perigo real para a humanidade. Reflita, Watson, como os materialistas, os sensuais e os mundanos hão de querer todos prolongar suas vidas desprezíveis. Até mesmo os que vivem pelo espírito talvez não resistam à tentação, julgando-se chamados para coisas mais altas. Seria a sobrevivência do menos apto. Em que espécie de cloaca se transformaria este nosso pobre mundo? De repente, o sonhador desapareceu, e Holmes, o homem de ação, deu um pulo da cadeira. — Creio que não há mais nada a acrescentar, sr. Bennett. Agora, os vários incidentes vão se enquadrar facilmente no esquema geral. É claro que o cão percebeu a mudança muito mais rapidamente que o senhor. Isso se deve ao faro. Não era o professor, mas o macaco, que atormentava Roy. Trepar pelas paredes e árvores era um prazer para o pobre vivente, e só por mero acaso, segundo suponho, é que a brincadeira o levou até a janela da jovem. Watson, há um trem que sai cedo para a cidade, mas creio que ainda teremos tempo de beber uma xícara de chá no Tabuleiro de Xadrez antes de irmos para a estação.
Sherlock Holmes em: A juba do le達o Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
É coisa verdadeiramente singular que um problema tão intrincado e insólito como nenhum outro dos que já se me depararam em minha longa carreira profissional tenha vindo parar em minhas mãos depois de eu ter-me afastado de minhas atividades, e que tenha sido trazido, por assim dizer, à minha porta. O fato ocorreu logo depois de eu me retirar para minha casinha de Sussex e quando estava inteiramente entregue àquela doce vida de natureza pela qual tantas vezes suspirara durante os longos anos passados em meio à melancolia londrina. Nessa época de minha vida, o bom Watson era-me quase completamente inacessível. Só uma vez ou outra eu o via, num fugaz fim de semana. Por isso, tenho de ser meu próprio historiador. Ah! Se ele tivesse estado junto a mim, o que não faria de um fato tão maravilhoso e de meu triunfo final contra todas as dificuldades! Mas, já que isso não é possível, tenho necessariamente de narrar a história à minha maneira comezinha, descrevendo cada passo que tive de dar no árduo caminho que se estendia à minha frente, enquanto deslindava o mistério da juba do leão. Minha casa está situada na vertente sul dos Downs, descortinando-se de lá uma ampla vista do canal da Mancha. Nesse ponto, a linha do litoral é toda de penhascos de pedra, de onde só se pode descer por uma única trilha, longa e tortuosa, íngreme e escorregadia. Ao fundo da trilha há uns cem metros de seixos e calhaus, mesmo quando a maré está cheia. Aqui e ali, entretanto, vêem-se curvas e cavidades que formam esplêndidas piscinas cuja água é renovada com cada fluxo da corrente. Essa praia admirável estende-se por alguns quilômetros em várias direções, menos num ponto onde a pequena angra e a aldeia de Fulworth quebram a linha. Minha casa é solitária. Eu, a velha governanta e minhas abelhas somos os donos absolutos daquelas terras. Todavia, a uns oitocentos metros dali fica a conhecida escola preparatória de Harold Stackhurst, denominada As Empenas, vasto prédio que abriga dezenas de jovens que se preparam para várias profissões, e que dispõe de um numeroso corpo docente. Stackhurst fora na juventude campeão de remo e consumado erudito. Ficamos amigos desde o dia em que cheguei à região, e ele era o único homem cujas relações comigo permitiam, a cada um de nós, ir de noite à casa do outro sem convite prévio. Pelos fins de julho de 1907, um furacão violento açoitou a Mancha, acumulando água no sopé dos penhascos e formando uma lagoa com o baixar da maré. Na manhã de que falo, o vento amainara e toda a natureza se apresentava fresca e limpa. Era impossível trabalhar num dia tão esplêndido, e antes da refeição matinal fui espairecer para respirar aquele ar puríssimo. Eu descia pela trilha íngreme que ia em direção à praia, quando de repente ouvi um grito atrás de mim e vi Harold Stackhurst me acenando jovialmente. — Que manhã, sr. Holmes! Logo vi que ia encontrá-lo fora de casa. — Vejo que vai nadar. — De novo com as velhas proezas, hein? — disse ele rindo e ao mesmo tempo levando a mão ao bolso bojudo.
— Sim. MacPherson foi mais cedo, e espero encontrá-lo lá. Fitzroy MacPherson era o professor de ciências, belo jovem, muito ereto, cuja vida quase fora cortada por uma moléstia cardíaca que se seguiu a uma febre reumática. Era, não obstante, um atleta nato, e distinguia-se em qualquer esporte que não exigisse demasiado esforço. Nadava tanto no verão como no inverno, e, como também gosto de nadar, saíamos juntos muitas vezes. Naquele momento, vimos o homem em pessoa. Sua cabeça surgiu acima da orla do penhasco onde a trilha acaba. Depois, todo o seu vulto apareceu no topo, cambaleando como um bêbado. Quase instantaneamente, ergueu as mãos para o alto e, com um berro terrível, caiu com o rosto no chão. Eu e Stackhurst corremos para acudi-lo (separavam-nos dele uns quarenta e poucos metros) e o viramos de costas. Era evidente que estava morrendo. Não podiam significar outra coisa aqueles olhos vidrados e fundos, e as faces de uma lividez extrema. Por um instante, veio-lhe ao rosto um clarão de vida, e ele pronunciou duas ou três palavras com um ansioso ar de advertência. Foram "a juba do leão". Não podia haver coisa mais fora de propósito e ininteligível, mas não me foi possível distorcer o som para chegar a qualquer outro sentido. Em seguida, ele se soergueu do chão, lançou os braços para o ar e caiu para o lado. Estava morto. Meu companheiro ficou transido de terror perante o fato, mas eu, como bem se pode imaginar, conservei os sentidos completamente despertos. E isso era necessário, pois logo se tornou patente que nos encontrávamos perante um caso extraordinário. O homem estava vestido apenas com seu sobretudo, as calças e sapatos de lona desamarrados. Ao tombar, o sobretudo, que apenas fora atirado sobre os ombros, deslizou, deixando-lhe o tronco exposto. Olhamos com assombro. As costas estavam cobertas de linhas vermelhoescuras, como se MacPherson tivesse sido terrivelmente açoitado com um chicote de arame fino. O instrumento com que esse castigo tinha sido infligido era visivelmente flexível, porquanto os longos vergões se curvavam, contornando-lhe os ombros e as costelas. Escorria-lhe sangue pelo queixo, pois ele mordera o lábio inferior no paroxismo da agonia. O rosto, estirado e disforme, mostrava como havia sido terrível seu derradeiro combate com a morte. Eu estava ajoelhado e Stackhurst de pé junto ao corpo quando uma sombra se atravessou entre nós, e vimos lan Murdoch ao nosso lado. Esse homem era o professor de matemática do estabelecimento. Alto, magro, moreno, era tão taciturno e solitário que, pode se dizer, não tinha um amigo. Parecia viver numa região elevada e abstraía, de números irracionais e de seções cônicas, que pouca coisa tinha a ver com a vida comum. Os estudantes o consideravam um esquisitão, e ele escapou de ser alvo das brincadeiras dos rapazes só por ter no sangue qualquer coisa de estranho, que se revelava não só nos olhos negros como carvão e no rosto moreno, mas também em acessos de fúria,
aliás pouco freqüentes, dos quais apenas se podia dizer que eram ferozes. Em certa ocasião, como o atormentasse um cãozinho pertencente a MacPherson, agarrou no animal e atirou-o pela janela, gesto antipático em razão do qual Stackhurst decerto o teria demitido se ele não fosse um professor de incontestável valor. Tal era o homem singular e complexo que agora surgia ao nosso lado. Pareceu sinceramente abalado com a cena que via, embora o episódio do cão indicasse que não havia grande cordialidade entre ele e o morto. — Coitado! Coitado! Que posso fazer? Em que posso ajudar? — O senhor estava com ele? É capaz de nos dizer o que sucedeu? — Não, não. Hoje eu me atrasei. Não fui à praia. Vim diretamente das Empenas. Que posso fazer? — Pode ir a toda a pressa à delegacia de polícia de Fulworth relatar o que aconteceu. Sem dizer uma palavra, ele partiu o mais depressa que pôde, e eu tratei de me incumbir do caso, enquanto Stackhurst, aturdido com a tragédia, permaneceu junto do corpo. A minha primeira tarefa foi, como é natural, observar quem estava na praia. Do alto da vereda podia-se enxergar a praia em toda a sua extensão, e ela estava completamente deserta. Viam-se apenas, muito longe, dois ou três vultos escuros dirigindo-se à aldeia de Fulworth. Dando-me por satisfeito quanto a esse ponto, fui descendo vagarosamente a trilha. Havia barro ou limo mole misturado com a pedra, e em todo lugar eu via as mesmas pegadas, tanto subindo como descendo. Nenhuma outra pessoa tinha descido à praia por aquele caminho durante a manhã. Em certo ponto observei a marca de uma mão aberta, com os dedos esticados para baixo. Isso só podia significar que o desditoso MacPherson caíra ao subir. Havia também depressões arredondadas, que sugeriam que ele tinha caído de joelhos mais de uma vez. No final da trilha ficava a considerável lagoa que a maré formava ao baixar. MacPherson tinha se despido, pois lá estava sua toalha, sobre uma rocha. Estava dobrada e enxuta, de modo que, segundo as aparências, ele nem chegara a entrar na água. Uma vez ou duas, enquanto eu pesquisava no meio dos seixos duros, notei pequenos trechos cobertos de areia onde se viam as marcas de seus sapatos de lona e até de seus pés descalços. Esta última circunstância provava que ele estivera pronto para o banho, porém a toalha indicava que não chegara a banhar-se. E aí é que o problema se definia claramente — o problema mais estranho com que eu já me havia deparado. O homem estivera na praia por quinze minutos, no máximo. Stackhurst saíra das Empenas pouco depois dele, de forma que quanto a isso não havia dúvida. Ia tomar banho e chegara a tirar a roupa, como o provavam os sinais de seus pés descalços. E eis que, de súbito, tornara a enfiar apressadamente as roupas (elas estavam em desordem e desatadas) e voltara sem tomar banho, ou pelo menos sem se enxugar. E a razão dessa mudança de propósito era devida ao fato de ele ter sido vergastado de uma maneira selvagem e desumana, torturado até morder os
lábios durante a agonia, tendo-lhe apenas restado forças para se arrastar um pouco e morrer. Quem praticara essa bárbara ação? Verdade é que havia pequenas grutas e cavernas na base dos rochedos, mas o sol, ainda baixo, brilhava diretamente sobre elas, não havendo portanto lugar para esconderijo. E os vultos distantes, na praia? Pareciam estar muito longe para terem qualquer relação com o crime. Além disso, a lagoa larga na qual MacPherson pretendia banhar-se ficava entre ele e os vultos, marulhando até os rochedos. Havia no mar, não muito distante, dois ou três barcos de pesca. Os ocupantes podiam ser examinados com toda a calma. Havia vários caminhos para investigação, mas nenhum deles levava a uma meta muito definida. Quando por fim voltei para junto do corpo, vi que se formara ao redor dele um pequeno grupo de pessoas que por ali passavam. Stackhurst ainda estava ali, é claro, e lan Murdoch acabava de chegar com Anderson, o subdelegado da aldeia, um homem enorme, de bigode ruivo, da sólida cepa de Sussex — raça que, por sob um exterior silencioso e pesadão, abriga muito bom senso. Anderson ouviu o relato, tomou nota de tudo quanto dissemos e finalmente me puxou para um lado. — Gostaria de ouvir sua opinião, sr. Holmes. Este assunto é sério demais para mim, e, se andar mal, Lewes vai me dizer o que não desejo ouvir. Aconselhei-o a mandar chamar seu superior imediato e um médico, a não permitir que se mexesse em nada e a evitar que se imprimissem no chão novas pegadas, enquanto eles não chegassem. Entretanto, revistei os bolsos do morto. Encontrei um canivete grande, um lenço e uma pequena carteira. Desta saía um pedaço de papel, que desdobrei e entreguei ao subdelegado. Nele estava rabiscado o seguinte, numa caligrafia feminina: "Lá estarei, pode ficar certo. Maudie". Aquilo cheirava a intriga amorosa, um encontro marcado, embora ninguém soubesse onde nem quando. O subdelegado tornou a pôr o bilhete na carteira e recolocou-a, e aos outros objetos, nos bolsos do sobretudo. Depois, como nada mais me ocorresse no momento, dirigi-me para casa a fim de tomar a refeição da manhã, tendo antes providenciado para que toda a costa dos penedos fosse cuidadosamente examinada. Passadas duas horas, mais ou menos, Stackhurst procurou-me para me dizer que o corpo tinha sido transportado para as Empenas, onde se procederia ao inquérito. Trouxe também uma notícia séria e definida. Conforme eu esperava, nada foi encontrado nas pequenas cavernas situadas abaixo dos rochedos, mas ele examinara os papéis da escrivaninha de MacPherson, vários dos quais mostravam que existia uma correspondência íntima com uma certa srta. Maud Bellamy, de Fulworth. Tínhamos, pois, descoberto a identidade da autora do bilhete. — As cartas estão na polícia — explicou ele. — Não pude trazê-las. Mas não há dúvida de que se trata de uma séria aventura de amor. Não vejo, entretanto, razão para relacionar essa intriga amorosa com o fato horrível que se deu, a não ser, é claro, que a jovem tivesse combinado um encontro com MacPherson.
— Dificilmente, porém, numa lagoa em que todos vocês tinham o hábito de tomar banho — observei. — Foi por mero acaso — disse ele — que no momento não se encontrassem vários estudantes com MacPherson. — Foi mesmo um mero acaso? Stackhurst franziu as sobrancelhas, refletindo. — lan Murdoch os reteve — disse ele. — Queria repetir algumas questões algébricas antes da refeição matinal. O pobre homem está profundamente acabrunhado com o que se passou. — E contudo estou informado de que não eram amigos. — Houve tempo em que não o foram. Mas, de um ano ou mais para cá, Murdoch se aproximara de MacPherson mais do que de qualquer outra pessoa. Ele não é, por natureza, dotado de uma índole muito simpática. — Foi o que me disseram. Lembro-me vagamente de que você uma vez me falou numa briga por causa de um cão maltratado. — Isso são águas passadas. — Mas talvez tenha ficado algum ressentimento. — Não, não. Tenho certeza de que eram amigos de verdade. — Então devemos voltar nossa atenção para a garota. Você a conhece? — Todo mundo a conhece. É a beldade destas redondezas. É realmente bonita, Holmes, e chamaria a atenção em qualquer lugar. Eu sabia que MacPherson se sentia atraído por ela, mas não fazia idéia de que a coisa tivesse chegado ao ponto que essas cartas parecem indicar. — Mas quem é ela? — É filha do velho Tom Bellamy, o dono de todos os botes e cabinas de banho de Fulworth. Começou como simples pescador, mas agora é homem de algumas posses. Ele e o filho, William, dirigem o negócio. — Valerá a pena irmos a Fulworth visitá-los? — Com que pretexto? — Oh, isso é fácil de arranjar. Afinal, o pobre rapaz não iria flagelar a si próprio de maneira tão bárbara. Alguma mão estranha segurou o cabo do chicote, se é que foi um chicote o causador daqueles vergões. O círculo de relações que ele tinha neste lugar ermo não podia deixar de ser limitado. Sigamos esse círculo
em todas as direções, e será quase impossível não darmos com o motivo, que por sua vez nos conduzirá ao criminoso. O percurso através das colunas perfumadas com o cheiro do tomilho teria sido aprazível se não tivéssemos o espírito perturbado pela tragédia que presenciáramos. A aldeia de Fulworth fica na curva de um semicírculo em torno da baía. Atrás da povoação de aspecto antigo foram construídas várias casas modernas, na parte mais elevada. Stackhurst conduziu-me a uma delas. — É aqui o Remanso, nome que Bellamy deu à sua vila. É aquela, de torre quadrada e telhado de ardósia. Nada má para um homem que não tinha um tostão, mas... ora essa, olhe ali! O portão do jardim do Remanso fora aberto e um homem estava saindo. Não havia equívoco possível quanto àquela figura alta e angulosa. Era lan Murdoch, o matemático. Daí a pouco, estávamos defronte dele, na rua. — Olá! — disse Stackhurst. O homem fez um sinal com a cabeça, olhou-nos de viés com seus estranhos olhos negros, e continuaria o caminho se o seu diretor não o detivesse. — O que é que o senhor estava fazendo aí? — perguntou-lhe Stackhurst. Murdoch enrubesceu. — Sr. Stackhurst, sou seu subordinado apenas quando me encontro no colégio. Não me parece que lhe deva contas dos meus atos particulares. Depois da tragédia a que assistira naquela manha, Stackhurst estava com os nervos abalados. Do contrário, talvez fosse menos precipitado. Perdeu inteiramente a calma. — Nas atuais circunstâncias, sua resposta é uma impertinência, sr. Murdoch. — À sua pergunta talvez se pudesse aplicar a mesma qualificação. — Não é a primeira vez que faço vista grossa às suas maneiras insubordinadas. Mas será a última. É favor ir pensando em dar outro rumo à sua vida, e isso sem perda de tempo. — Era o que eu já tencionava fazer. Perdi hoje a única pessoa que tornava o seu estabelecimento habitável. Dizendo isso, afastou-se a passos rápidos, enquanto Stackhurst, enfurecido, foi seguindo-o de olhos arregalados. — Não é mesmo um homem intolerável? — gritou. O que maior impressão me causou foi o fato de o sr. Murdoch ter aproveitado a primeira oportunidade para escapulir da cena do crime. Uma
suspeita vaga e nebulosa começava agora a se delinear em meu espírito. Talvez a ida à casa dos Bellamys pudesse lançar alguma luz sobre o assunto. Stackhurst recobrou a calma, e dirigimo-nos para a alegre vivenda. O sr. Bellamy era um homem de meia-idade, com uma barba vermelha flamante. Parecia estar muito irritado, e seu rosto ficou logo tão vermelho como o cabelo e a barba. — Não, senhor, não desejo entrar em pormenores. Meu filho aqui — disse, indicando um jovem robusto, com ar de poucos amigos, que estava a um canto da sala de visitas — concorda comigo em que as atenções do sr. MacPherson para com Maud eram insultuosas. Pois, cavalheiro, a palavra "casamento" jamais foi mencionada, e contudo havia cartas e encontros e muitas outras coisas que nenhum de nós podia aprovar. Ela não tem mãe, e somos seus únicos guardiões. Estamos resolvidos... Nessa altura, o homem foi interrompido pela chegada da própria jovem. Não se podia negar que ela conquistaria a simpatia de qualquer assembléia do mundo. Quem seria capaz de imaginar que uma flor tão rara brotasse de tal raiz e em tal atmosfera? As mulheres raramente constituíram um atrativo para mim, porque meu cérebro sempre governou o coração, mas não pude olhar para aqueles traços tão perfeitos, com toda a suave frescura daquela região refletida em seu fino colorido, sem pensar que nenhum rapaz passaria por ela completamente indiferente. Era essa jovem que havia aberto a porta e agora estava de pé, com os olhos muito arregalados e atentos, diante de Harold Stackhürst. — Já sei que Fitzroy morreu — disse ela. — Não tenha medo de me contar todos os pormenores. — O outro cavalheiro que esteve aqui contou-nos tudo — explicou o pai. — Não há motivo para envolver minha irmã no assunto — resmungou lá do seu canto o rapaz. A jovem dirigiu-lhe um olhar de fogo. — Isso é comigo, William. Deixe-me tratar do assunto a meu modo. Tudo leva a crer que foi cometido um crime. Se eu puder contribuir para provar quem o cometeu, é o mínimo que posso fazer por aquele que se foi. A jovem ouviu a breve narrativa de meu companheiro com uma atenção tão concentrada que percebi que ela possuía, além de grande beleza, um caráter forte. Maud Bellamy sempre me ficará na memória como a imagem de uma mulher notável. Parece que ela já me conhecia de vista, porque no fim me dirigiu a palavra. — Entregue-os à justiça, sr. Holmes. O senhor tem a minha simpatia e a minha ajuda, sejam eles quem forem.
Pareceu-me que, enquanto falava, relanceava os olhos para o pai e para o irmão num ar de desafio. — Obrigado — respondi. — Aprecio muito o instinto feminino nestes assuntos. A senhora diz "eles", no plural. Pensa que há mais de um envolvido no caso? — Eu conhecia bastante bem o sr. MacPherson, e sei que ele era um homem valente e forte. Jamais uma pessoa sozinha seria capaz de lhe infligir um castigo tão cruel e ultrajante. — Seria possível eu lhe dizer algumas palavras em particular? — Digo-lhe, Maud, que não se meta nesse assunto — gritou o pai, explodindo de irritação. Ela olhou para mim com um ar de súplica. — Que posso fazer? — Dentro em breve todo mundo ficará conhecendo os fatos, de modo que não haverá mal em que eu os discuta aqui — afirmei-lhe. — Gostaria de maior discrição, mas, se seu pai é de opinião diversa, tem de estar presente às deliberações. — Nesse momento, referi-me ao bilhete encontrado no bolso do morto. — Esse bilhete certamente será exibido no inquérito. Posso lhe pedir esclarecimentos acerca dele? — Não vejo razão para mistério — respondeu Maud. — Estávamos noivos, e só guardávamos segredo a respeito desse assunto porque o tio de Fitzroy, que é muito velho e, segundo dizem, está para morrer, talvez o deserdasse se ele casasse contra a sua vontade. Não havia nenhuma outra razão. — Você poderia ter-nos dito isso — grunhiu o sr. Bellamy. — Eu o teria feito, pai, se encontrasse simpatia de sua parte. — Oponho-me a que minha filha trave conhecimento com homens que não são da sua posição social. — Foram seus preconceitos contra ele que nos impediram de lhe dizer tudo. Quanto ao encontro — enquanto falava, remexeu no bolso do vestido e tirou um pedacinho de papel amarrotado —, era uma resposta a isto. "Querida, [dizia o recado] Terça-feira, no antigo lugar, na praia, logo depois
do pôr-do-sol. É a única hora em que consigo escapar. F. M." — Terça-feira é hoje, e eu tencionava me encontrar com ele hoje à noite. Virei o papel do outro lado. — Isto não veio pelo correio. Como foi que chegou às suas mãos? — Preferia não responder a essa pergunta. É que ela nada tem a ver com o caso que o senhor está investigando. Mas estarei pronta a responder a tudo o que se relaciona ao assunto. Ela cumpriu a palavra, mas nada havia que pudesse auxiliar nossa investigação. A jovem não tinha razão para acreditar que o seu noivo tivesse algum inimigo oculto, mas confessou que ela mesma tinha tido vários admiradores calorosos. — Posso perguntar se lan Murdoch era um deles? Ela corou e pareceu atrapalhar-se. — Houve um tempo em que pensei que fosse. Mas tudo se alterou quando Murdoch soube das minhas relações com Fitzroy. Novamente me pareceu que a sombra que pairava em redor desse homem estranho tomava forma mais definida. Era necessário examinar-lhe os antecedentes. Seus aposentos deviam ser minuciosamente revistados. Stackhurst mostrou-se um colaborador espontâneo, pois também em seu espírito iam se formando vagas suspeitas. Voltamos de nossa visita ao Remanso com a esperança de já ter nas mãos um dos fios dessa complexa meada. Passou-se uma semana. O inquérito não lograva esclarecer o caso, e tinha sido adiado até que aparecessem elementos mais positivos. Stackhurst fizera uma discreta investigação a respeito de seu subordinado, e fora dada uma busca superficial em seu quarto, mas sem resultado. Eu tinha procedido a novo exame em todo o terreno, tanto física como mentalmente, mas sem chegar a nenhuma conclusão nova. Em nenhuma de minhas histórias, o leitor poderá encontrar outro caso que me levasse de maneira tão completa até o limite máximo de meus poderes. Nem sequer minha imaginação era capaz de conceber uma solução para o mistério. E eis que veio à baila o episódio do cão. Foi minha velha governanta quem primeiro soube disso por intermédio daquele estranho telégrafo sem fios que transmite às pessoas do campo as notícias da esfera em que vivem.
— É uma história triste, essa, sr. Holmes, a respeito do cão do sr. MacPherson — disse ela uma tarde. Eu não estimulo tais conversas, mas as palavras da velha chamaram minha atenção. — Que houve com o cão do sr. MacPherson? — Morreu, sr. Holmes. Morreu de tristeza pela perda do dono. — Quem lhe disse isso? — Todo mundo comenta o caso. O animal ficou sentidíssimo e passou uma semana sem comer. E eis que hoje dois jovens estudantes das Empenas o encontraram morto; e onde, sr. Holmes? Na praia, no mesmo lugar em que o dono tombou sem vida. "No mesmo lugar." Essas palavras tomaram vulto em minha mente. Uma obscura percepção de que o assunto era importante surgiu em meu espírito. Que o cão morresse era próprio da clássica fidelidade canina. Mas "no mesmo lugar"? Por que lhe teria sido fatal aquela praia deserta? Seria possível que também ele tivesse sido sacrificado pelas malhas de um ódio implacável? Seria possível?... Sim, a percepção era obscura, mas alguma coisa já estava se formando em minha mente. Daí a alguns minutos, eu já me dirigia às Empenas, onde fui surpreender Stackhurst em seu gabinete de trabalho. A pedido meu, ele mandou chamar Sudbury e Blount, os dois estudantes que tinham encontrado o cão morto. — Sim — disse um deles —, jazia à beira da lagoa. O animal deve ter seguido o rastro do dono morto. Vi o fiel cãozinho, um airedale temer, que tinham posto sobre o capacho do vestíbulo. O corpo estava hirto e duro, com os olhos esbugalhados e os membros torcidos. Em cada linha daquele corpo estava estampada a agonia. Saindo das Empenas, dirigi-me à lagoa. O sol baixara, e a sombra do grande penhasco recortava-se com todo o seu negror na água, que tinha um brilho fosco de chumbo. O lugar estava ermo, e não havia ali sinal de vida, a não ser duas aves marinhas que piavam e descreviam círculos no alto. Na luz mortiça, eu mal podia distinguir o vestígio deixado pelo cãozinho sobre a areia, em volta do mesmo rochedo sobre o qual tinha sido posta a toalha do dono. Durante longo tempo fiquei absorto em profundos pensamentos, enquanto as sombras se tornavam cada vez mais densas ao redor de mim. Minha cabeça estava povoada de pensamentos que iam e vinham. O leitor deve se lembrar do que acontece quando, num pesadelo, sente a existência de uma coisa muito importante, que procura e que sabe que está ali, mas fora do seu alcance. Era exatamente o que eu sentia naquela tarde, ali
sozinho, naquele lugar de morte. Então, por fim, voltei-me e vagarosamente dirigi meus passos para casa. Havia atingido o alto da vereda quando a idéia me veio. Como um relâmpago, lembrei-me da coisa que eu queria tão avidamente agarrar e não conseguia. O leitor sabe, ou então Watson escreveu inutilmente, que possuo um vasto cabedal de conhecimentos esparsos, sem nenhuma sistematização científica, mas que me são de grande préstimo para as necessidades de meu ofício. Meu espírito parece um quarto atulhado de pacotes de toda espécie que ali foram guardados; são tantos, tantos, que eu apenas tenho uma vaga idéia do que lá existe. Sabia da existência de alguma coisa relacionada com o presente caso. Era uma coisa ainda muito nebulosa, mas pelo menos eu sabia o modo de torná-la clara. Era qualquer coisa de monstruoso, de incrível, mas não deixava de ser uma possibilidade. Precisava esclarecer aquilo integralmente. Há em minha casinha um bom sótão repleto de livros. Foi ali que penetrei e procurei durante uma hora. Ao cabo desse tempo, saí de lá com um volumezinho cor de chocolate e prata. Avidamente, fui folheando-o até chegar ao capítulo do qual tinha uma obscura recordação. Sim, era realmente um assunto um tanto forçado e de remotas possibilidades, e contudo eu não me resignava a descansar enquanto não o pusesse em pratos limpos. Já era tarde quando me recolhi, com o espírito aguardando ansiosamente o trabalho do dia seguinte. Mas esse trabalho sofreu uma enfadonha interrupção. Mal acabara de tomar minha xícara de chá matinal e saía para a praia quando recebi um chamado do inspetor Bardie, do posto policial de Sussex — homem sólido, pachorrento, de olhos cismadores, que olhou para mim visivelmente embaraçado. — Conheço sua imensa experiência, sr. Holmes — disse ele. — Minha visita é extra-oficial, naturalmente, e não há necessidade de que dela transpire qualquer coisa lá fora. É que, nesse caso MacPherson, estou com uma dúvida cruel. Devo ou não efetuar uma prisão? — Refere-se ao sr. lan Murdoch? — Exatamente. Não há possibilidade de se pensar em mais ninguém. Eis a vantagem desta solidão. Ela nos permite circunscrever bastante o nosso exame. Se não foi ele, quem foi então? — Que tem contra o sr, Murdoch? O policial colhera informações aqui e ali; as mesmas informações que eu. Havia a índole estranha de Murdoch e o mistério que parecia envolvê-lo. Ali estavam os tremendos assomos de seu gênio, de que era exemplo o antigo episódio do cão. Havia o fato de sua velha briga com MacPherson, existindo também razão para se supor que ele não via com bons olhos as atenções de MacPherson à srta. Bellamy. Tudo o que ele colhera era já do meu conhecimento. O inspetor só acrescentou que, conforme lhe parecia, Murdoch
se preparava para se mudar. — Com que cara ficarei se o deixar fugir, já que há indícios contra ele? O corpulento e fleumático oficial via-se seriamente atrapalhado. — Considere — disse eu — todas as falhas essenciais do seu caso. Na manhã do crime, o homem pôde perfeitamente apresentar um álibi. Estivera com os alunos até o último instante, e, alguns minutos depois do aparecimento de MacPherson, ele topa conosco, vindo de trás. Além disso, não perca de vista a absoluta impossibilidade de ele poder, completamente só, infligir aquele tremendo castigo a um homem tão robusto como ele mesmo. Finalmente, há a questão do instrumento com que foram feitos os vergões. — Não pode ter sido outro senão uma vergasta ou algum chicote flexível. — O senhor examinou as marcas? — perguntei. — Vi-as, sim, senhor. Também o médico as viu. — Mas eu as examinei muito cuidadosamente, com uma lente. Têm certas particularidades. — Quais são, sr. Holmes? Fui até minha escrivaninha e trouxe uma fotografia ampliada. — É este o meu método em casos semelhantes — expliquei. — O senhor faz as coisas de uma maneira perfeita, sr. Holmes. — Dificilmente seria o que sou se assim não procedesse. Consideremos agora este vergão, que atravessa o ombro direito. Não observa nada de especial? — Francamente, não vejo nada. — Pois é evidente que é desigual na intensidade. Há aqui um ponto indicando extravasamento de sangue, e outro aqui. Há indicações semelhantes neste outro vergão, aqui embaixo. Que pode significar isso? — Não faço a mínima idéia. E o senhor? — Talvez sim, talvez não. É possível que em breve possa dizer mais alguma coisa. Se pudermos ter uma idéia nítida daquilo que produziu esta marca, estaremos a poucos passos do criminoso. — Talvez esta minha idéia seja absurda — disse o policial —, mas se uma rede de fios de arame em brasa tivesse atravessado as costas aqui, estes pontos mais salientes representariam o lugar onde as malhas ou fios se entrecruzaram.
— Comparação bastante engenhosa. Ou não seria melhor dizer que se trata de um chicote de nove tiras muito sólido, munido de pequenos nós duros? — Caramba, sr, Holmes, penso que o senhor chegou ao ponto! — Pode ser também alguma outra coisa bem diferente, sr. Bardie. Mas o que me parece é que seu caso é fraco demais para autorizar uma prisão. Além disso, temos aquelas últimas palavras: "juba de leão". — Estive pensando se lan... — Sim, também já pensei nisso. Se a segunda palavra tivesse qualquer semelhança com Murdoch... mas não tem. Ele proferiu-as quase num grito. Tenho certeza de que a primeira foi "juba". — O senhor não tem outra alternativa? — É provável que tenha. Mas não me apraz discuti-la enquanto não dispuser de elementos mais firmes. — E isso quando ocorrerá? — Dentro de uma hora... talvez menos. O inspetor coçou o queixo e olhou para mim com ar incrédulo. — Gostaria de descobrir o que lhe vai no espírito, sr. Holmes. Não serão aqueles barcos de pesca? — Não, não; estavam muito ao largo. — Não será então Bellamy, com o colosso do filho? Eles não morriam de amores pelo sr. MacPherson. Não teriam eles feito aquela maldade? — Não, não. De mim o senhor não arranca coisa alguma. Só quando estiver pronto — retorqui com um sorriso. — Escute, inspetor, cada um de nós tem seu trabalho para fazer. Não seria possível o senhor se encontrar comigo ao meio-dia? Tínhamos chegado a esse ponto quando se deu a tremenda interrupção que foi o começo do fim. A porta de fora de minha casa abriu-se com estrondo, ouviram-se no corredor uns passos cambaleantes, e lan Murdoch entrou agitadamente na sala, pálido, desgrenhado, com as roupas no maior desalinho, agarrando-se com as mãos ossudas aos móveis para se manter de pé.
"Aguardente! Aguardente!" — disse com voz rouca, e caiu sobre o sofá, gemendo. Murdoch não estava só. Atrás dele vinha Stackhurst, sem chapéu e ofegante, quase tão aflito como o companheiro. — Sim, sim, aguardente! — gritou ele. — O homem está nas últimas. A única coisa que pude fazer foi trazê-lo aqui. Desmaiou duas vezes no caminho. Meio copo da forte bebida operou uma mudança maravilhosa. Com esforço, ele se ergueu um pouco, firmando-se num braço, e arrancou metade do casaco, descobrindo os ombros. — Pelo amor de Deus! Azeite, ópio, morfina! — gritou. — Qualquer coisa que alivie esta agonia infernal! Eu e o inspetor demos um grito ao vermos o que se passava. Formando ziguezagues sobre o ombro nu do homem, havia o mesmo estranho desenho de linhas vermelhas e inflamadas que tinham sido a marca da morte no corpo de Fitzroy MacPherson. Evidentemene, a dor era terrível, e não era apenas local, porque a respiração do paciente parava durante algum tempo, seu rosto enegrecia, e logo, soltando fortes arquejos, ele batia com a mão no peito, enquanto da testa o suor lhe gotejava em grossas bagas. O pobre homem podia morrer a qualquer momento. Mais e mais aguardente ia sendo entornada por sua goela abaixo, e cada dose fresca do líquido trazia-o de novo à vida. Chumaços de algodão embebidos em azeite de cozinha pareciam aliviar extraordinariamente a dor das estranhas feridas. Por fim, a cabeça pendeu-lhe pesadamente sobre a almofada. A natureza, exausta, refugiara-se em seu derradeiro repositório de vitalidade. Era metade sono e metade desmaio, mas pelo menos era libertação do sofrimento. Interrogá-lo seria impossível, mas, assim que nos tranqüilizamos um pouco a respeito do seu estado, Stackhurst voltou-se para mim. — Deus meu! — gritou ele. — Que é isto, Holmes? Que é isto? — Onde você o encontrou? — Na praia. Exatamente no local onde o pobre MacPherson perdeu a vida. Se este homem tivesse o coração fraco como o de MacPherson, não estaria aqui agora. Mais de uma vez, enquanto o trazia, pensei que fosse o fim. Era longe demais das Empenas, por isso me dirigi para cá. — Viu-o na praia?
— Eu estava andando pelos rochedos quando ouvi o grito dele. Estava na beira da água, cambaleando como um bêbado. Desci, correndo, atirei-lhe alguma roupa por cima do corpo e trouxe-o para o alto. Por favor, Holmes, ponha em campo todos os seus poderes e não poupe esforços para levantar a maldição que pesa sobre este lugar, tornando-o inabitável. Não poderá, com toda a sua fama, que é mundial, fazer algo por nós? — Creio que posso, Stackhurst. Agora venha comigo! Venha também, inspetor! Veremos se podemos ou não entregar esse assassino à polícia. Deixando o homem inconsciente entregue aos cuidados de minha governanta, descemos os três até a lagoa mortífera. Sobre os calhaus, estavam empilhadas toalhas e roupas, deixadas pelo homem agredido. Fui andando vagarosamente pela beira da água, enquanto os meus companheiros me seguiam um atrás do outro. Grande parte da lagoa era bem rasa, mas, abaixo do penedo onde a praia formava um recôncavo, a profundidade atingia mais de um metro e meio. Era para esse lado, naturalmente, que os nadadores se dirigiam, porque a água formava ali um lindo e translúcido poço verde, límpido como cristal. Uma série de rochas alinhava-se acima dele, na raiz do penedo, e ao longo deste fui abrindo caminho, olhando ansiosamente para as profundezas que via a meus pés. Quando cheguei ao poço mais fundo e tranqüilo, meus olhos deram com aquilo que procuravam, e soltei um grito de triunfo. — Cyanea! — exclamei. — Cyanea! Contemplem a juba do leão. O estranho objeto que eu indicava com o dedo parecia realmente uma massa emaranhada que tivesse sido arrancada da juba de um leão. Ali estava, sobre uma prateleira de rocha, mais ou menos um metro dentro da água, um ser curioso, ondeante, vibrátil, cabeludo, com as tranças amarelas salpicadas de prata. Percebia-se que pulsava com uma dilatação e uma contração lenta e pesada. — Já fez demasiado mal. Sua época acabou! — gritei. — Ajude-me, Stackhurst! Vamos acabar com o assassino definitivamente. Havia uma grande pedra logo acima da borda, e nós a empurramos até que ela caiu com tremendo fragor na água. Terminado o redemoinho, vimos que a pedra havia parado sobre a borda inferior. Uma ponta solta da membrana amarela mostrava que nossa vítima estava debaixo da pedra. Uma espuma grossa e oleosa ressumava de sob a pedra e manchava a água ao redor, subindo lentamente à superfície. — Sim, senhor, estou pasmado! — gritou o inspetor. — Que acontece, sr. Holmes? Sou nascido e criado nesta terra, mas nunca vi coisa semelhante. Isso não é de Sussex. — Mas veio para Sussex — observei. — Pode ter sido trazido pela ventania do sudoeste. Venham comigo até minha casa e eu lhes apresentarei a medonha
experiência de alguém que tem boas razões para se lembrar de seu encontro com esse tenebroso ente dos mares. Quando chegamos ao meu quarto de trabalho, verificamos que Murdoch melhorara tanto que podia se sentar. Sentia-se atordoado e de vez em quando era agitado por uma dor aguda. Em palavras entrecortadas, explicou que não tinha idéia do que lhe ocorrera. Somente recordava que de repente se sentira varado de dores atrozes e que lhe custara um supremo esforço alcançar a margem. — Aqui está um livro — disse eu, pegando o livrinho que foi o primeiro a lançar um pouco de luz num caso que poderia ficar para sempre envolto em trevas. — Intitula-se Out of doors e é do famoso observador J. G. Wood. O próprio autor, que esteve prestes a perecer ao contato desse terrível animal, escreve com pleno conhecimento de causa. O nome completo do malvado é Cyanea capillata, e pode ser tão perigoso para a vida e muito mais doloroso do que a mordida de uma serpente. Permita-me que apresente sucintamente um extraio. "Se o banhista vir uma massa solta, arredondada, de membranas e fibras fulvas, algo parecido com uma juba de leão e papel de seda, acautele-se, pois é o terrível picador Cyanea capillata. Poderia haver descrição mais fiel do nosso sinistro conhecido? "O autor prossegue narrando seu encontro com um espécime quando nadava junto da costa de Kent. Verificou que o animal estendia uma rede de filamentos quase invisíveis numa distância de quinze metros, e que qualquer pessoa que estivesse nesse raio mortífero correria perigo de vida. Mesmo à distância o efeito sobre Wood foi quase fatal. Os numerosos fios produziram linhas leves de cor escarlate sobre a pele, que, a um exame mais detido, revelaram-se diminutos pontos ou pústulas, sendo cada um desses pontinhos munido, por assim dizer, de uma agulha em brasa que vai penetrando nos nervos.' A dor local era, como ele explica, a parte mínima do indizível tormento. 'Horríveis agulhadas atravessavam-me o peito, fazendo-me cair como se tivesse sido atingido por uma bala. A pulsação cessava, e logo o coração dava seis ou sete pulos, como se quisesse abrir caminho através do peito.' "O animal quase o matou, embora ele tenha ficado exposto ao seu contato no oceano agitado e não nas águas tranqüilas de uma estreita piscina. Diz que depois mal pôde se reconhecer, de tão branco e encarquilhado que ficou seu rosto. Bebeu muita aguardente, uma garrafa inteira, e parece que foi isso o que lhe salvou a vida. Aí está o livro, inspetor. Deixo-o com o senhor, e creio que encontrará nele cabal explicação para a tragédia que vitimou o pobre MacPherson." — E de passagem retira de mim qualquer suspeita — obtemperou lan Murdoch, com um sorriso contrafeito. — Não o censuro, inspetor, nem ao senhor, sr. Holmes, porque suas suspeitas eram naturais. A verdade é que, justamente na véspera da minha prisão, absolvi a mim mesmo sofrendo o destino do meu pobre amigo.
— Não, sr. Murdoch. Eu já estava na verdadeira pista, e, se tivesse saído de casa à hora em que tencionava sair, poderia tê-lo livrado dessa horrenda experiência. — Mas como sabia, sr. Holmes? — É que sou um leitor único, dotado de uma memória estupenda para reter certas coisas. Aquelas palavras, "juba do leão", não me saíam da cabeça. Eu sabia que já as encontrara antes em algum texto lido. O senhor viu que esse texto descreve o animal. Não tenho dúvidas de que ele estava boiando sobre a água quando MacPherson o viu, e que essas palavras foram as únicas que ele pôde empregar para nos transmitir uma advertência relativa ao animal que lhe causou a morte. — Então eu, pelo menos, estou livre — disse Murdoch, pondo-se vagarosamente de pé. — Cabe-me dizer algumas palavras de explicação... pois sei o rumo que tinham tomado as investigações, com relação a mim. É verdade que amei aquela jovem, mas, desde o dia em que ela escolheu meu amigo MacPherson, meu único desejo foi contribuir para a felicidade dela. Contentei-me em ficar à margem e agir como intermediário entre os dois. Freqüentemente era eu o portador de seus recados escritos, e justamente porque gozava da confiança dos dois, e porque ela me era tão cara, é que me apressei em pô-los ao corrente do triste fim do meu amigo, antes que outra pessoa se antecipasse a mim e lhe dissesse a verdade de uma maneira brutal. Ela não quis lhe revelar nossas verdadeiras relações, sr. Stackhurst, com receio'de que o senhor as desaprovasse e eu viesse a sofrer com isso. Mas peço licença para tentar regressar às Empenas, porque estou ansioso para me estender na cama. Stackhurst estendeu-lhe a mão. — Nossos nervos foram postos às mais rudes provas — disse ele. — Desculpe o que aconteceu, Murdoch. No futuro, haveremos de nos entender melhor. Saíram os dois juntos, de braço dado, como bons amigos. O inspetor ficou, fitando-me em silêncio com seus olhos de boi. — Bem, ao senhor é que se deve tudo! — exclamou por fim. — Eu tinha lido a seu respeito, mas não acreditava. É extraordinário! Fui forçado a abanar a cabeça. Aceitar um elogio assim seria diminuir-me no meu próprio conceito. — Fui lento de início, culposamente lento. Se o corpo tivesse sido encontrado na água, eu dificilmente me enganaria. Foi a toalha que me desorientou. O pobre não pensou em se enxugar, e eu por minha vez fui levado a crer que ele não estivera dentro da água. Como, pois, seria possível eu imaginar que se tratava do ataque de um animal marinho? Daí partiu meu erro. Bem, bem, inspetor. Muitas vezes me atrevi a troçar dos respeitáveis homens da polícia, mas a Cyanea capillata quase vingou a Scotland Yard.
Arthur Conan Doyle
O Mistério do Vale Boscombe Título original: The Boscombe Valley Mystery
Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1891
Sobre o texto em português Este texto digital reproduz a tradução de The Boscombe Valley Mystery publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume II, editado pelo Círculo do Livro e com tradução de Hamílcar de Garcia.
Estávamos almoçando uma manhã, eu e minha esposa, quando entrou a empregada trazendo um telegrama. Era de Sherlock Holmes e dizia: "Tem uns dois dias de que possa dispor? Recebi telegrama agora mesmo do oeste do país, sobre a tragédia do vale Boscombe. Gostaria que pudesse ir comigo. Clima e cenário perfeitos. Saio de Paddington às onze e quinze". — O que acha, querido? — perguntou minha esposa, que me olhava por cima da mesa. — Irá? — Não sei o que responder. Tenho uma grande lista de clientes no momento. — Ora! Anstruther poderá substituí-lo muito bem. Você tem andado muito pálido ultimamente. Uma viagem lhe faria bem, além do interesse que sempre lhe despertam os casos do Sr. Sherlock Holmes. — Seria uma ingratidão se eu não mostrasse interesse, dado o que ganhei com um desses casos — respondi —, mas, se tenho de ir, preciso fazer já a mala, pois só disponho de meia hora. Minha experiência como soldado no Afeganistão pelo menos produziu um bom resultado, que foi o de me tornar mais expedito e sempre pronto para viajar. Minhas necessidades pessoais eram poucas e simples nessa época, por isso, em menos tempo do que dispunha, peguei a mala, apanhei um carro e corri para a Estação de Paddington. Sherlock Holmes já se encontrava lá, andando de baixo para cima na plataforma, parecendo ainda mais alto devido à comprida capa cinzenta de viagem e ao boné apertado na cabeça. — Foi muita bondade da sua parte ter vindo, Watson— disse-me ele —, e é muito importante para mim o fato de ter por companhia uma pessoa da minha inteira confiança; o auxílio local é sempre fraco ou parcial. Se quiser reservar os dois lugares do canto, vou comprar os bilhetes. Viajamos sozinhos no compartimento, acompanhados apenas por um mundo de papéis que Holmes trazia e nos quais remexia, tomando notas nos intervalos da meditação, até que o trem parou em Reading. Então, de repente, ele enrolou os papéis todos, fazendo um enorme rolo, e atirou-os para cima do cabide. — Você já ouviu dizer alguma coisa a respeito desse caso? — perguntou ele.
— Nem uma palavra. Não tive tempo de ler os jornais nestes últimos dias. — A reportagem de Londres ainda não muitos pormenores; estive relendo jornais para me pôr a par particularidades e, a meu ver, é daqueles casos simples mas apresentam muitas dificuldades.
traz os das um que
— Isso parece um paradoxo. — Mas é a verdade pura e profunda. A singularidade é sempre uma chave. Os crimes mais comuns são os mais difíceis de se descobrir. Neste caso, porém, estabeleceram uma complicação gravíssima com o próprio filho do assassinado. — Foi assassinato, então? — Bem, é o que se conjectura. Não aceitaria nada como certo enquanto não tiver oportunidade de estudar pessoalmente o caso. Vou lhe explicar as coisas, segundo o que sei, em poucas palavras. "O vale Boscombe é um distrito rural não muito longe de Ross, no condado de Hereford. O maior proprietário da região é o Sr. John Turner, que ganhou dinheiro na Austrália e voltou há alguns anos para sua terra natal. Uma das fazendas que ele possui, a Fazenda Hatherley, estava arrendada ao Sr. Charles McCarthy, que era também um ex-australiano. Os homens haviam se conhecido nas colônias, por isso é natural que, ao deixarem de trabalhar, fossem residir perto um do outro, tanto quanto possível. Turner era o mais rico dos dois, por isso McCarthy tornara-se seu locatário, mas pareciam viver em grande harmonia, porque eram vistos freqüentemente juntos. McCarthy tinha um filho, rapaz de uns dezoito anos, e Turner, uma única filha da mesma idade, mas ambos eram viúvos. Parece que evitavam a companhia das famílias inglesas das vizinhanças, levando uma vida retirada, embora os dois McCarthy gostassem de esporte e fossem vistos muitas vezes por ocasião das corridas locais. McCarthy tinha dois empregados domésticos, um homem e uma moça. A casa de Turner vivia cheia, tinha pelo menos meia dúzia de empregados. É isso o que pude verificar a respeito das famílias. "Agora vamos aos fatos. Em 3 de junho, isto é, na segunda-feira passada, McCarthy saiu de casa, em Hatherley, cerca das quinze horas, e dirigiu-se ao pequeno lago Boscombe, formado pelo riacho que desce pelo vale do mesmo nome. De manhã havia saído com o empregado para ir até Ross, e dissera ao homem que estava com pressa porque tinha um compromisso às quinze horas. Daquele encontro não voltou vivo. A Fazenda Hatherley dista do lago Boscombe mais ou menos quinhentos metros; duas pessoas o viram passar por lá: uma delas é uma senhora de idade, cujo nome não disseram, e a outra, William Crowder, um guarda-caça ao serviço do Sr. Turner. Ambas as testemunhas disseram que o Sr. McCarthy estava sozinho. Disse ainda o guarda-caça que, uns minutos depois de haver visto passar o velho McCarthy, passou o filho, James McCarthy, caminhando na mesma direção, com uma espingarda debaixo do braço. Ele acredita mesmo que o filho seguia o pai e o vigiava a distância. Mas não pensou mais no caso até a noitinha, quando ouviu falar na tragédia que ocorrera. Os dois McCarthy foram vistos também por outras pessoas. O lago Boscombe é rodeado de mato com apenas uma pequena margem de capim e juncos. Uma menina de catorze anos, Patience Moran, filha de um porteiro da Fazenda do Vale Boscombe e que estava colhendo flores no campo, disse que, quando lá se encontrava, viu-os primeiro na orla da mata e junto do lago, e que pai e filho pareciam empenhados em forte discussão. Ela ouviu mesmo o velho McCarthy usar uma linguagem pesada para com o filho, e este levantou a mão para bater no pai. Ficou com tanto medo do que viu, que correu para casa e, assim que chegou, contou à mãe que havia visto os dois McCarthy discutindo junto ao lago Boscombe e receou que fossem lutar. Mal acabou de contar isso, viu o rapaz correr em direção à casa, pedindo socorro ao
porteiro e dizendo que seu pai estava morto na mata. Estava tremendamente excitado, sem chapéu e sem espingarda, e tinha a manga direita manchada de sangue fresco. Seguindo-o, encontraram o corpo inerte do pai estendido sobre a relva à beira do lago; sua cabeça fora partida por diversas pancadas dadas com instrumento pesado, não cortante. Podiam muito bem ter sido coronhadas da espingarda do filho, a qual descobriram no capim a poucos passos do corpo. Nessas circunstâncias, o jovem foi imediatamente detido, tendo o júri declarado o caso 'assassinato premeditado', e conduzido perante o juiz de Ross na quarta-feira, o qual deixou o caso à decisão do tribunal na sua próxima sessão. São esses os principais fatos do crime, como foram apresentados ao médico-legista no posto policial." — Não consigo imaginar caso mais condenatório — observei eu —, e se a prova circunstancial alguma vez apontou o criminoso, esta é uma delas. — Prova circunstancial é uma coisa ilusória — respondeu Holmes, pensativo; — pode demonstrar claramente determinado pormenor, mas se você alterar o seu ponto de vista, por pouco que seja, poderá notar que a prova aponta de modo comprometedor numa direção completamente oposta. Deve-se confessar, todavia, que os fatos contra o rapaz são muitíssimo graves; é possível que seja ele o culpado. Há diversas pessoas na vizinhança, entre elas a srta. Turner, filha do fazendeiro rico, que, mesmo assim, não acreditam na culpabilidade do rapaz e contrataram Lestrade, cujo nome talvez lhe lembre o caso de Um estudo em vermelho, para trabalhar a favor do rapaz. Lestrade está um pouco intrigado com as coisas e entregou-me o caso; é por isso que dois senhores de meia-idade viajam a caminho do oeste a cinqüenta milhas por hora, em vez de estarem calmamente almoçando em suas próprias casas. — Sinto — disse eu — que os fatos sejam tão óbvios, pois receio que você não vá ganhar grande prestígio neste negócio. — Não há nada mais enganador do que os fatos óbvios — disse ele, rindo. — Além disso, podemos descobrir outros fatos óbvios que não foram notados pelo Sr. Lestrade. Você me conhece bastante bem para achar que não exagero quando digo que hei de confirmar ou destruir a teoria dele com meios que ele é incapaz de empregar ou mesmo de compreender. Para pegar o primeiro exemplo que tenho à mão, vejo claramente que a janela do seu quarto, meu caro Watson, se abre para o lado direito; todavia, duvido que o Sr. Lestrade pudesse notar uma coisa tão evidente para todos. — Como... — Meu caro rapaz, conheço-o bem, conheço seus métodos militares de asseio. Você se barbeia todas as manhãs e, nesta estação do ano, barbeia-se à luz do sol. Mas como sua barba fica menos bem-feita ao chegar ao lado esquerdo, em cima, até parece descuido, é mais do que evidente que aquele lado não está tão bem-iluminado como o outro. Tenho a certeza de que se você se olhasse com a luz bem de frente não haveria de ficar satisfeito com o resultado. Apenas cito isso como exemplo de observação e dedução. Nisso consiste o meu métier, e é possível que me possa servir na investigação do caso que temos em mãos. Há um ou dois pontos de menor importância apresentados no inquérito aos quais vale a pena dar alguma atenção. — Quais são eles? — Parece-me que o rapaz não foi preso logo; só depois de voltar a Hatherley é que o inspetor o informou de que estava preso; ele não ficou surpreso e apenas disse que
merecia aquilo, nada mais. O fato de haver dito isso, naturalmente, removeu qualquer dúvida que pudesse ter ficado na mente do júri. — Foi uma confissão — exclamei. — Não, porque foi seguida de um protesto de inocência. — Vindo logo após uma série de provas tão condenatórias? — Pelo contrário — disse Holmes —, é a abertura mais brilhante que até agora posso imaginar surgida entre as nuvens. Por mais inocente que seja, ele não podia ser um imbecil tão grande que não visse quão negras eram as circunstâncias contra si. Se tivesse fingido surpresa ao ser detido, ou simulado indignação, eu o consideraria bastante suspeito, porque isso não seria natural em tais circunstâncias, embora parecesse a melhor política para um homem intrigante e maquinador. A aceitação franca da situação destaca-o como homem inocente ou com grande autodomínio e firmeza. Quanto à observação de que era o que merecia, não deixa de ser natural se nos lembrarmos que ele estava perto do corpo inerte do pai, e que naquele mesmo dia se havia esquecido dos seus deveres filiais, discutindo com o pai, e até, como diz a garota, cujo testemunho tem valor, levantara a mão para lhe bater. A repreensão e contrição íntimas são demonstradas pela sua observação, e quer me parecer que revelam uma mentalidade sã e não uma pessoa culpada. Inclinei a cabeça. — Muitos homens têm sido condenados injustamente. — Qual é a versão do próprio rapaz sobre o caso? — Creio que não é muito animadora para seus amigos, embora haja um ou dois pontos sugestivos. Mas estão aqui, e você pode vê-los. Dizendo isso, tirou do pacote um exemplar do jornal de Hereford e, depois de dobrar a página e apontar o parágrafo onde estava o depoimento do infeliz rapaz, entregou-o a mim; encostei-me a um canto do banco para ler melhor. Dizia o seguinte: "O Sr. James McCarthy, único filho do falecido, foi então chamado e fez as seguintes declarações: — Estive viajando durante três dias por Bristol e voltei na manhã de segunda-feira passada, dia 3. Meu pai não estava em casa quando cheguei, e fui informado pela empregada de que havia ido para Ross com John Cobb, o cocheiro. Assim que regressou, ouvi o som das rodas do carro no pátio; olhando pela janela, vi-o descer e caminhar rapidamente para fora do pátio, embora não soubesse que direção ia tomar. Peguei minha espingarda e dirigi-me ao lago Boscombe, com a intenção de visitar a coelheira que há do outro lado. No caminho vi William Crowder, o guarda-caça, como ele próprio o declarou, mas que se enganou ao julgar que eu seguia meu pai. Não fazia a mínima idéia de que ele caminhava à minha frente. Quando cheguei a uns cem metros do lago, ouvi o grito 'Cuuiii', que era o sinal habitual entre mim e meu pai. Apressei-me e encontrei-o em pé, próximo do poço. Ele mostrou-se muito admirado ao ver-me e perguntou-me abruptamente o que estava fazendo ali. Houve uma discussão que quase chegou às vias de fato, pois meu pai era homem de temperamento violento. Vendo sua cólera e que ele começava a perder o
controle, deixei-o e voltei para a Fazenda Hatherley, mas não andara ainda uns cento e cinqüenta metros quando ouvi um grito horrível atrás de mim, que me obrigou a regressar. E encontrei meu pai moribundo, estendido no chão, com a cabeça terrivelmente ferida. Larguei minha espingarda e segurei-o nos braços, mas ele expirou imediatamente. Ajoelhei-me ao seu lado alguns minutos e depois fui até a casa do porteiro do Sr. Turner, que era a mais próxima, para pedir auxílio. Não vi ninguém perto de meu pai quando o encontrei, e não tenho a menor idéia de como pôde ter sido ferido. Não era um homem acessível, pois seu temperamento era um tanto frio e arredio, mas não tinha inimigos declarados. Não sei mais nada a respeito do caso. Coroner: — Antes de morrer seu pai lhe fez qualquer declaração? Depoente: — Murmurou algumas palavras, mas só pude perceber uma referência a um rato. Coroner: — O que depreendeu daí? Depoente: — Nada. Pensei que estivesse delirando. Coroner: — O que provocou a discussão com seu pai? Depoente: — Preferiria não ser forçado a dizer. Coroner: — Sinto-me obrigado a insistir. Depoente: — É de todo impossível dizer-lhe. Posso asseverar que nada tinha a ver com a triste tragédia que se seguiu. Coroner: — Isso cabe ao tribunal decidir. Não é necessário dizer-lhe que sua recusa em responder pode prejudicá-lo consideravelmente no futuro. Depoente: — Preciso persistir na recusa. Coroner: — É certo que o grito 'Cuuiii' era um sinal comum entre o senhor e seu pai? Depoente: — Sim, era. Coroner: — Então por que deu ele o grito antes de o ter visto, antes mesmo de saber do seu regresso de Bristol? Depoente (um tanto confuso): — Não sei. Um membro do júri: — O senhor não viu nada de suspeito quando se virou ao ouvir o grito e encontrou seu pai fatalmente ferido? Depoente: — Nada muito definido. Coroner: — Que quer dizer com isso? Depoente: — Estava tão perturbado e nervoso quando corri pelo caminho, que não pude pensar em coisa alguma a não ser em meu pai; todavia, tenho uma vaga impressão de que quando corri havia qualquer coisa no chão à minha esquerda. Parecia-me que era de cor cinzenta, um casaco ou uma capa, talvez. Quando saí de perto de meu pai, já não estava mais lá. Coroner: — Quer dizer que desapareceu antes de o senhor ter procurado auxílio? Depoente: — Sim, desapareceu. Coroner: — Pode precisar do que se tratava? Depoente: — Não, mas tive um pressentimento de que ali havia alguma coisa.
Coroner: — A que distância do corpo? Depoente: — Uns doze metros mais ou menos. Coroner: — E a que distância da mata? Depoente: — Mais ou menos a mesma. Coroner: — Então, se foi retirada, foi enquanto o senhor estava à distância de uns doze metros apenas? Depoente: — Sim, atrás de mim. E assim terminou o depoimento." — Estou vendo que o coroner foi um pouco severo com o jovem McCarthy — disse eu ao terminar a leitura. — Ele chama a atenção, e com razão, para a divergência do fato de o pai ter chamado o filho antes de o ter visto, sobre os pormenores da altercação entre ambos, bem como sobre a história singular das últimas palavras do pai. Tudo isso, como ele nota, são provas contra o filho. Holmes riu de mansinho e estendeu-se preguiçosamente sobre as almofadas. — Tanto você como o coroner tomaram muito cuidado em destacar os pontos mais fortes a favor do rapaz. Não vê que vocês lhe atribuem imaginação ora deficiente, ora excessiva? Deficiente, pois, se pudesse inventar o motivo da discussão, atrairia a simpatia do júri; e excessiva, caso saísse da sua consciência íntima qualquer coisa tão outrée como o fato de um moribundo fazer referência a um rato e o incidente da veste que desapareceu. Não, senhor, abordemos este caso sob o ponto de vista de que o rapaz disse a verdade, e veremos até onde nos leva essa hipótese. Agora, aqui está o meu Petrarca de bolso, e não direi nem mais uma palavra sobre tudo isto até chegarmos à localidade onde vamos trabalhar. Tomaremos um lanche em Swindon, pois que chegaremos lá dentro de uns vinte minutos. Eram quase dezesseis horas quando enfim chegamos, depois de passarmos pelo lindo vale Stroud, acima do largo e brilhante rio Severn, e nos encontrarmos na bonita cidadezinha de Ross. Um homem magro, de feições frias como as de um furão, com um olhar furtivo e velhaco, esperavanos na plataforma. A despeito do seu guarda-pó cor de poeira, e das polainas que usava devido às circunstâncias do lugar, não tive dificuldade em reconhecer Lestrade, da Scotland Yard. Com ele fomos de carro até o Hereford Arms, onde reservara um quarto para nós. — Pedi um carro — disse Lestrade, enquanto tomávamos uma chávena de chá. — Conheço sua natureza enérgica, e sei que não ficará satisfeito enquanto não for ao local do crime. — Foi amável da sua parte; agradeço esse gesto complementar — respondeu Holmes; — é apenas uma questão de pressão atmosférica. Lestrade olhou-o admirado. — Não compreendo bem — disse ele. — Que diz o barômetro? Vinte e nove graus, pelo que vejo. Não há vento e nenhuma nuvem no céu. Tenho uma carteira de cigarros que vou fumar; este sofá é muito mais confortável do que as habituais acomodações nesses abomináveis hotéis rurais. Creio que não precisarei do carro esta tarde. Lestrade riu-se, complacente: — Com certeza já tirou suas conclusões pelas reportagens dos jornais — disse ele. — O caso é tão claro como a luz do dia, e quanto mais o estudamos, mais evidente se torna. Todavia, ninguém por certo pode recusar o pedido de uma senhorita, aliás bastante incisiva.
Ela ouviu falar em você e queria por força a sua opinião, apesar de eu lhe ter dito repetidas vezes que neste caso não havia nada que você pudesse fazer além do que eu já fizera. Ora bolas! Lá está ela à porta. Mal havia acabado de falar quando entrou apressadamente na sala uma das jovens mais belas que eu jamais vira. Os olhos eram cor de violeta, tinha os lábios entreabertos, estava levemente corada pela excitação e esquecera toda a natural reserva ante a enorme aflição. — Oh! Sr. Sherlock Holmes! — exclamou ela, olhando-nos, e com a rápida intuição feminina, continuou dirigindo-se ao meu companheiro. — Estou tão contente com a sua vinda! Vim expressamente para lhe dizer isto. Sei que James não praticou o crime. Sei, e quero que o senhor comece suas investigações sabendo disso também. Não posso duvidar desse ponto. Conhecemo-nos desde crianças, sei dos seus defeitos mais do que qualquer outra pessoa; no entanto, ele é tão sensível que não maltrataria uma mosca sequer. Tal acusação é absurda para quem o conhece bem. — Espero que possamos livrá-lo, srta. Turner — disse Sherlock Holmes. — Pode estar certa de que farei todo o possível para conseguir isso. — Mas o senhor já leu o depoimento e deve ter chegado a alguma conclusão. Não vê nenhuma falha, nenhum erro? O senhor não acha que ele está inocente? — Acho muito provável que esteja inocente. — Então? — exclamou ela, virando a cabeça e olhando para Lestrade: — Ouviu? Ele me dá esperança. Lestrade ombros.
encolheu
os
— Receio que meu colega tenha formulado suas conclusões precipitadamente — ripostou ele. — Mas ele tem razão. Oh! Sei que tem razão. James está inocente. E a respeito da discussão que teve com o pai, estou certa de que a razão pela qual ele nada quis dizer ao júri é porque estou envolvida no caso. — De que maneira? perguntou Holmes.
—
— Bem, já não é tempo de se esconder seja o quer for... James e o pai tiveram muitas desavenças por minha causa. O Sr. McCarthy queria por força que nos casássemos. James e eu sempre nos amamos como irmãos. Ele é jovem, e pouco conhece a vida e... bem, é natural que não quisesse se casar ainda. Por isso houve discussões, e, nessa ocasião, tenho a certeza de que também foi por isso. — E seu pai? — indagou Holmes. — Ele também era a favor de tal união? — Não, era contra. Ninguém, a não ser o velho McCarthy, estava a favor. Um rápido rubor cobriu seu rosto jovem, enquanto Holmes lhe lançava um dos seus olhares penetrantes. — Muito obrigado por essa informação — agradeceu. — Poderei ver seu pai se for até lá amanhã?
— Sinto muito, mas talvez o médico não o permita. — O médico? — Sim, o senhor ainda não soube?... Pobre papai! Não tem tido saúde desde há alguns anos, e este caso abalou-o completamente. Está de cama, e o dr. Willows disse que agora não terá cura e que seus nervos estão esgotados. O Sr. McCarthy era o único homem vivo que conheceu meu pai nos tempos passados em Victoria. — Ah! Em Victoria! Isso é importante. — Sim, isto é, nas minas. — Perfeitamente, nas minas de ouro, onde soube que o sr. Turner, seu pai, fez fortuna. — Sim, é verdade. — Obrigado, Srta. Turner. A senhorita está sendo de grande utilidade para mim. — O senhor me avisará se houver alguma novidade amanhã? Com certeza há de ir à cadeia para visitar James. Oh! Se for, Sr. Holmes, diga-lhe que estou certa da sua inocência. — Direi, Srta. Turner. — Preciso voltar para casa agora, porque meu pai está muito doente e sente muito minha ausência. Até logo, e Deus o ajude em seu trabalho. Saiu apressada da sala, tão impulsivamente como havia entrado, e ouvimos as rodas do seu carro descendo a rua. — Tenho vergonha de você, Holmes — disse Lestrade com dignidade depois de uns minutos de silêncio. — Deu-lhe uma esperança que no fim vai ser um desapontamento. Não sou muito sentimental, mas acho isso cruel. — Creio que já vejo o caminho para livrar James McCarthy — disse Holmes. — Você tem licença para visitá-lo na cadeia? — Sim, mas somente para nós dois. — Então agora vou reconsiderar minha resolução quanto à saída. Haverá tempo para tomarmos o trem de Hereford e vê-lo ainda hoje? — Bastante. — Então vamos fazer isso. Watson, temo que vá achar tudo isto muito calmo, mas estarei fora apenas umas duas horas. Fui à estação com eles, dei um passeio pelas ruas da pequena cidade e finalmente voltei para o hotel. Deitei-me no sofá e esforcei-me para ler algumas páginas de um romance de capa amarela. O enredo do crime era tão simples em comparação com o mistério profundo perante o qual nos encontrávamos, e a minha atenção desviava-se
tantas vezes da ficção para a realidade, que por fim atirei o livro para um canto da sala e entreguei-me inteiramente ao pensamento dos fatos daquele dia. Supondo-se que a história do infeliz rapaz fosse brutalmente verídica, então, que coisa infernal, que tremenda calamidade fora aquela, ocorrida entre o momento em que deixou seu pai e aquele em que, atraído pelo grito, voltou correndo através da clareira! O golpe devia ter sido produzido por uma coisa terrível e mortal. Mas o que poderia ter sido? Os ferimentos não seriam capazes de dar uma indicação ao meu instinto de médico? Toquei a campainha e pedi o semanário local, que trazia o relato do inquérito. A declaração do médico-legista dizia que a terceira parte traseira do osso parietal esquerdo e a parte esquerda do occipital haviam sido esmagadas pela pancada de um instrumento pesado. Procurei imaginar a posição do golpe e concluí que a pancada fora dada por trás. Isso, até certo ponto, vinha em favor do acusado, porque, quando foi visto discutindo com o pai, estavam de frente um para o outro. Mas a verdade é que significava pouco, porque o velho podia ter-se virado antes de receber a pancada; todavia, achei que devia chamar a atenção de Holmes para o fato. Também havia aquela referência do moribundo a um rato. O que se poderia induzir daquilo? Certamente não era delírio. Um homem moribundo devido a pancadas geralmente não delira. Não teria sido uma tentativa de explicar como recebera o ferimento? Mas o que isso poderia indicar? Esforcei-me por descobrir qualquer explicação plausível. E depois havia o incidente da veste cinzenta vista pelo jovem McCarthy. Se isso era verdade, o assassino devia ter deixado cair uma peça de roupa, possivelmente o sobretudo, na pressa da fuga, e devia ter um coração duro para tê-lo ido buscar, no momento em que o filho estava ajoelhado de costas, a poucos passos de distância. Que sucessão de incidentes misteriosos e improváveis! Não me admirei da opinião de Lestrade, mas ao mesmo tempo tinha tanta fé na perspicácia de Sherlock Holmes que não pude deixar de ter esperanças, visto todos os fatos novos que se apresentavam parecerem reforçar sua convicção na inocência do jovem McCarthy. Já era tarde quando Sherlock Holmes voltou. Veio sozinho, porque Lestrade estava alojado na cidade. — O barômetro continua alto — observou ele ao sentar-se. — É importante que não chova antes que examinemos o local. Devemos estar bem dispostos e alerta para um trabalho sutil como este. Não queria fazer o exame cansado, após uma longa viagem. Vi o jovem McCarthy. — E o que lhe disse ele? — Nada. — Não pôde dizer nada? — Absolutamente nada. A certa altura estive inclinado a pensar que ele escondia o nome do criminoso, mas no fim fiquei convencido de que está tão intrigado como qualquer um de nós. Não é um rapaz de inteligência brilhante, embora seja agradável e, segundo penso, honesto. — Não posso concordar com a falta de gosto dele — observei —, se é verdade que não quis casar-se com uma jovem tão atraente como a Srta. Turner. — Ah! Aí está uma história um pouco triste. O rapaz está louco por ela, mas há uns dois anos atrás, quando era ainda garoto, e antes de conhecê-la bem, porque ela esteve internada num colégio durante uns cinco anos, o que foi que o idiota fez senão apaixonar-se por uma garçonete em Bristol e casar-se com ela no registro civil? Ninguém sabe disso, mas imagine como deve ter sido horrível para ele ser repreendido por não poder fazer aquilo que daria tudo quanto possui para realizar, mas que sabe ser absolutamente impossível. Foi a loucura desse fato que o fez levantar a mão, quando o pai, na última entrevista, insistia para que ele pedisse a Srta. Turner em casamento. Por outro lado, não tinha meios para se sustentar, e por aquilo que se ouve dizer, o pai era um homem duro e tê-lo-ia mandado embora se soubesse a verdade. Foi com sua esposa que ele passou esses três dias em Bristol, e o pai não sabia do seu paradeiro. Repare bem nisso. É importante. Pelo menos uma coisa boa resultou de tudo isso, porque a moça, vendo pêlos
jornais que ele estava em grandes dificuldades e em vias de ser enforcado, separou-se dele completamente e escreveu-lhe dizendo que já tem um marido nas docas das Bermudas, e que portanto não há nada que os prenda. Parece-me que essa notícia conformou bastante o jovem McCarthy, apesar de tudo o que tem sofrido. — Mas se ele está inocente, quem praticou o crime? — Ah! Quem? Quero chamar a sua particular atenção para dois pontos. Um é que o falecido tinha um encontro com alguém perto do lago, e que essa pessoa não podia ser o filho, porque este estava fora de casa e não se sabia quando voltaria. O segundo ponto é que o homem assassinado gritou "Cuuiii" antes de saber que o filho estava ali perto. São esses os pontos decisivos do caso. E agora vamos falar a respeito de George Meredith, faça o favor, e deixaremos os outros pontos para amanhã. Não choveu, como Holmes prognosticara, e o dia amanheceu claro e sem nuvens. Às nove horas, Lestrade chegou com o carro e partimos para a Fazenda Hatherley e o lago Boscombe. — Tive notícias sérias esta manhã — observou Lestrade. — Dizem que o Sr. Turner está tão doente que não há esperanças de salvar-lhe a vida. — É um homem de idade, suponho — disse Holmes. — De uns sessenta anos; porém, sua constituição foi prejudicada com a vida fora do país, e tem enfraquecido muito ultimamente; este caso produziu maus efeitos sobre ele. Era um velho amigo de McCarthy e, posso afirmá-lo, seu benfeitor, pois soube que lhe deu a Fazenda Hatherley de graça. — Será possível? Isso é muitíssimo interessante — disse Holmes. — Oh, sim! E ajudou-o de muitas outras formas. Todos aqui falam de sua bondade para com o falecido. — Realmente! Não lhe parece estranho que esse McCarthy, que parece ter possuído muito pouca coisa e devia muitos favores, tivesse a ousadia de falar no casamento de seu filho com a filha do Sr. Turner, presumível herdeira de uma boa fortuna, e insistisse tanto, como se bastasse pedir para ser aceito? O mais estranho ainda é que, segundo sabemos, o próprio Turner não queria o casamento. Foi a filha que nos contou. Não tira nenhuma conclusão disso tudo? — Agora vêm as deduções e conclusões — suspirou Lestrade piscando-me o olho. — Já acho bastante difícil tratar dos fatos, Holmes, sem ir atrás de teorias fantásticas. Em todo caso, arranjei um fato que vai desafiar seu raciocínio. — Então, de que se trata? — Que o Sr. McCarthy foi morto pelo filho, e que todas as suas teorias são meras fantasias lunáticas. — Bem, o luar é uma coisa mais clara do que a neblina — disse Holmes, rindo. — Mas suponho que isso aí à esquerda seja a Fazenda Hatherley. — É, sim. Era uma casa ampla, confortável, de dois andares, coberta de ardósia, com grandes camadas de líquen sobre as paredes sombrias. As cortinas estavam fechadas, e as chaminés sem fumaça davam-lhe um ar de abandono, como se o peso da tragédia a deprimisse. Batemos à
porta, e a empregada, a pedido de Holmes, mostrou-nos as botas que o patrão usava quando foi assassinado e também umas do filho, embora não fossem as que usasse na ocasião. Depois de as examinar de diversas maneiras, Holmes pediu-lhe que nos levasse ao quintal, de onde seguimos o caminho torto que conduzia ao lago Boscombe. Sherlock Holmes ficava transformado quando iniciava pesquisas num caso como aquele. Pessoas que só o conheciam como o pensador sossegado e lógico da Baker Street não o teriam reconhecido agora. O rosto ficava corado, e a fisionomia, fechada. As sobrancelhas pareciam duas linhas pretas, firmes, enquanto debaixo delas os olhos brilhavam como uma chapa de aço. Com o rosto inclinado e os ombros curvos, os lábios pendiam e as veias do pescoço inchavam como as cordas de um chicote. As narinas pareciam dilatar-se com o faro, como puro animal de caça, e o cérebro ficava tão absolutamente concentrado no caso em questão que uma pergunta ou observação de outrem caía em ouvidos surdos ou recebia um inesperado rosnar como resposta. Rápida e silenciosamente, ele caminhou através dos prados e pela mata até o lago Boscombe. Era um terreno úmido e pantanoso aquele, e havia sinais de muitas pisadas, tanto no caminho como entre o capim e a margem do lago. Às vezes Holmes adiantava-se; outras, parava repentinamente; numa ocasião fez um pequeno rodeio até o prado. Lestrade e eu o seguíamos, o detetive, indiferente e desdenhoso, enquanto eu observava o meu amigo com o interesse que vem da convicção de que cada ato dele ia em direção a um fim definido. O lago Boscombe, lençol de água cercado de juncos, com trinta jardas de diâmetro, fica nos limites entre a Fazenda Hatherley e o parque particular do rico Sr. Turner. Acima da mata que o cerca do lado oposto, podem-se ver os cimos vermelhos da residência do fazendeiro. Do lado de Hatherley a mata era fechada, e havia uma estreita passagem de relva molhada a uns vinte passos, que a atravessava entre a beira das árvores e dos juncos que cercavam o lago. Lestrade mostrou-nos o lugar exato onde fora encontrado o corpo, e tão úmido estava o chão que vi muito bem os sinais onde o homem caíra. Para Holmes, como pude perceber pelo seu olhar fixo e olhos penetrantes, muitas outras coisas eram evidentes na relva pisada. Andou ao redor, como um cachorro farejando, e depois, voltando-se para o meu companheiro, perguntou: — Para que você entrou no lago? — Para pesquisar com um ancinho. Pensei que talvez houvesse qualquer arma ou outro sinal. Mas, com todos os diabos, como você... — Oh, chega! Não tenho tempo. Este seu pé esquerdo, metido para dentro, está em toda parte. Até uma toupeira poderia segui-lo, mesmo entre os juncos. Oh, como seria fácil se eu pudesse ter vindo antes que vocês chegassem como uma manada de búfalos, pisando tudo! Aqui está o lugar onde vieram com o guarda-caça. Cobriram todos os vestígios, cerca de dois metros em redor do corpo. Mas aqui há três marcas separadas do mesmo pé. Tirou a lente e deitou-se sobre a capa para ver melhor, falando o tempo todo, mais para si do que para os outros. — Estes são os pés do jovem McCarthy. Por duas vezes andou e uma vez quase correu, tanto assim que as solas dos pés estão bem fundas, mas os saltos, poucos visíveis. Isso corrobora a sua história de que correu quando viu o pai caído. Aqui estão as pegadas do pai quando caminhou de baixo para cima. O que é isto? É sinal da coronha da espingarda do filho enquanto ouvia. E isto? Ah! Ah! O que temos aqui? Sinais de pontas de pés, pontas de pés! Quadrados, sapatos comuns! Os sinais vão e voltam outra vez, certamente em busca da capa. Agora, de onde será que vieram? E Holmes correu para baixo e para cima, às vezes perdendo e outras vezes
achando os sinais, até que chegamos perto da orla da mata, sob a sombra de uma grande faia, a maior árvore da vizinhança. Holmes deu a volta, deitou-se mais uma vez com o rosto perto do chão e soltou um grito de satisfação. Ali ficou bastante tempo, virando folhas e paus secos, colhendo o que parecia ser pó do chão e pondo-o num envelope, examinando com a lente não só o chão, mas também a casca da árvore até onde podia chegar. Um pedra tosca estava caída no musgo, e também esta ele examinou e guardou. Então seguiu o caminho atrás da mata até chegar à estrada pública, onde desapareceram todos os sinais. — Foi muito interessante — observou ele, voltando ao seu habitual bom humor. — Presumo que esta casa cinzenta aqui à esquerda seja a do porteiro; acho que devo entrar e conversar um pouco com o Sr. Moran, e talvez escreva um bilhete. Depois poderemos voltar para almoçar. Vocês podem ir ao carro, que eu estarei lá daqui a pouco. Em cerca de dez minutos chegamos ao carro e voltamos a Ross. Holmes levava consigo a pedra que apanhara do chão, dentro da mata. — Esta talvez o interesse, Lestrade. O assassínio foi praticado com ela — disse ele, mostrando-a. — Mas não vejo marca nenhuma. — Não há marcas. — Então como o sabe? — Porque o capim começava a crescer debaixo dela. Havia poucos dias que ali estava. Não havia sinal do lugar de onde fora tirada. Ela corresponde ao ferimento. Não há sinais de outras armas. — E o assassino? — É um homem alto, canhoto, manco de uma perna, calça sapatos de caça com solas grossas e tem uma capa cinzenta, fuma charutos indianos, usa boquilha e tem um canivete que corta mal no bolso. Há diversas outras indicações, mas essas ajudar-nos-ão bastante nas nossas pesquisas. Lestrade riu-se. — Sinto continuar incrédulo — disse ele. — Suas teorias são boas, mas temos de tratar com as cabeças duras do júri britânico. — Nous verrons — respondeu Holmes calmamente. — Você trabalha à sua maneira, e eu usarei os meus métodos. Estarei ocupado esta tarde, e provavelmente voltarei para Londres pelo trem da noite. — E deixa o caso inacabado? — Não, terminado. — Mas o mistério? — Está resolvido. — Quem é então o criminoso?
— O cavalheiro que descrevi. — Mas quem será ele? — Certamente não deve ser difícil descobrir. Esta vizinhança é muito limitada, com pouca população. Lestrade encolheu os ombros. — Sou um homem prático — disse ele —, e realmente não posso andar aí pelo campo à procura de um homem canhoto e manco. Seria ridicularizado por todos os meus colegas da Scotland Yard. Tendo deixado Lestrade nos seus aposentos, fomos para o nosso hotel, onde encontramos o almoço à mesa. Holmes estava silencioso e perdido em seus próprios pensamentos, com uma expressão angustiada no rosto, como quem se acha numa posição confusa. — Venha cá, Watson — disse ele, depois de terem tirado a toalha da mesa —, sente-se nesta cadeira e deixe-me falar com você um pouco. Não sei bem o que deva fazer e preciso do seu conselho. Acenda um charuto e deixe-me expor o caso. — Por favor, peco-lhe que o faça. — Bem, ao considerar este caso, há dois pontos na narrativa do jovem McCarthy que chamaram nossa atenção logo de início, embora eu haja sido impelido a seu favor, o que não aconteceu com você. Um ponto é aquele quando o pai gritou, conforme ele disse, "Cuuiii", antes de ser visto. O outro ponto é sua referência a um rato. Ele murmurou diversas palavras, compreende, mas foi só isso o que o filho ouviu bem, antes de o velho morrer. Desses dois pontos é que devem partir as nossas pesquisas; em primeiro lugar, comecemos por admitir que o que o rapaz disse é verdade. — O que quer dizer "Cuuiii", então? — É evidente que não era para chamar o filho, que ele supunha em Bristol. Era para chamar a atenção da pessoa com quem tinha um encontro marcado. "Cuuiii" é um grito usado pêlos australianos. Há grandes probabilidades de que a pessoa que McCarthy esperava encontrar também tivesse estado na Austrália. — E o rato? Sherlock Holmes tirou do bolso um papel dobrado e estendeu-o em cima da mesa. — Este é o mapa da colônia de Victoria — disse ele. — Telegrafei para Bristol pedindo que o mandassem ontem à noite. Pôs a mão sobre uma parte do mapa. — O que é que você lê aqui? — perguntou. — ARAT — li eu. — E agora? — disse ele levantando a mão. — BALLARAT. — Justamente. Foi essa palavra que o homem disse e da qual o filho apenas ouviu as últimas sílabas. Sem dúvida pretendia pronunciar o nome do assassino, Fulano de Tal, de Ballarat. — É maravilhoso! — exclamei eu. — É claro. E agora bem vê que diminui consideravelmente o campo das pesquisas. A capa cinzenta é outro ponto que, caso sejam verdadeiras as palavras do filho, torna-se também
verídico. Agora saímos da vaga suposição para a definitiva concepção de um australiano de Ballarat, com capa cinzenta. — Certamente. — É um homem que conhece o distrito, porque o lago só pode ser atingido pela fazenda ou pela herdade, onde é quase impossível a passagem de estranhos. — É isso mesmo. — Depois houve a nossa expedição de hoje. Por um exame profundo do solo, acrescentei os pequenos pormenores que dei àquele imbecil Lestrade, esta tarde, quanto à personalidade do criminoso. — Mas como o conseguiu? — Você conhece o meu método. É baseado na observação das coisas triviais. A altura do homem podia deduzir-se dos passos, e as botas podiam ser reconhecidas pelas suas características. — Sim, eram botas especiais. Mas, e o fato de ser manco? — A impressão do pé direito era sempre menos distinta do que a do esquerdo. Pisava mais leve com ele. Por quê? Porque coxeava. — Mas e o fato de ser canhoto? — Mesmo você ficou surpreso com a natureza do ferimento, conforme foi expressa pelo legista no inquérito. A pancada foi dada por trás. Mas do lado esquerdo. Agora, pergunto, como pode ser isto, a não ser que a pessoa que a deu fosse canhota? Ele tinha ficado atrás daquela árvore durante a entrevista entre pai e filho. Fumara até. Descobri a cinza de um cigarro, a qual, com meus estudos especiais sobre o tabaco, me permitiu dizer que o cigarro era indiano. Você sabe que já escrevi uma pequena monografia a respeito das cinzas de cento e quarenta variedades diferentes de tabaco usado em cachimbos, cigarros e charutos. Tendo descoberto a cinza, olhei em redor e encontrei o toco do cigarro entre os liquens, para onde ele o atirara. Era um cigarro indiano, de uma qualidade que não é produzida em Rotterdam. — E a boquilha? — Vi que a ponta do cigarro não tinha estado na boca, portanto, que ele usava boquilha. A ponta havia sido cortada e não mordida, mas o corte era defeituoso, daí deduzi que o canivete não cortava bem. — Holmes — disse-lhe eu —, você envolveu esse homem de tal forma, que ele não pode fugir, e salvou a vida de um inocente, como se tivesse cortado a corda em que ele estava pendurado na forca. Vejo a direção a que isso tudo leva. O culpado é... — O Sr. John Turner — anunciou o rapaz do hotel, abrindo a porta da nossa sala de estar e fazendo entrar a visita. O homem que entrou era uma figura esquisita e impressionante. Seus passos vagarosos e
hesitantes, seus ombros curvos, davam-lhe a aparência de velhice; todavia, as feições duras e enrugadas, os enormes braços e pernas demonstravam que possuía força física pouco comum, assim como temperamento. A barba em desalinho e o cabelo grisalho, as sobrancelhas longas e caídas, tudo se combinava para lhe dar um ar de dignidade e força, mas o rosto estava branco, os lábios e os cantos das narinas, levemente azulados. Para mim, era mais do que evidente que ele sofria de qualquer moléstia crônica e fatal. — Tenha a bondade de sentar-se — disse Holmes delicadamente. — O senhor recebeu o meu bilhete? — Sim, o porteiro o entregou a mim. O senhor disse que deseja falar comigo aqui para evitar escândalo. — Julguei que o povo repararia se eu fosse à sua propriedade. — E por que queria ver-me? — Ao dizer isso, olhou de modo desesperado para o meu amigo, como se a própria pergunta já estivesse respondida. — Sim — disse Holmes respondendo mais com o olhar do que com as palavras. — É isso mesmo, sei de tudo a respeito de McCarthy. O velho cobriu o rosto com as mãos. — Deus tenha piedade de mim! — exclamou ele. — Mas eu não deixaria o rapaz sofrer, juro-lhe que teria confessado se as coisas fossem contra ele no tribunal. — Regozijo-me por ouvi-lo dizer isso — disse Holmes solenemente. — Teria falado se não fosse minha querida filha. Seu coração se partirá quando souber que estou preso. — Pode ser que não chegue a isso — disse Holmes. — O quê? — Não sou um policial. Foi a sua filha que requereu minha presença aqui, e estou agindo no interesse dela. Todavia, o jovem McCarthy precisa ser posto em liberdade. — Sou um moribundo — disse o velho Turner —, sou diabético há muitos anos. Meu médico disse-me que é duvidoso que eu dure mais que um mês; todavia, preferia morrer debaixo do meu próprio teto a morrer na prisão. Holmes levantou-se e foi sentar-se à mesa com a caneta na mão e um rolo de papéis à frente. — Diga-nos a verdade e eu tomarei nota. Você, Watson, assinará como testemunha. Apresentarei sua confissão só em último caso, para salvar o jovem McCarthy. Prometo que não a usarei, a não ser que seja absolutamente necessário. — Está bem — disse o velho —, é pouco provável que eu viva até o julgamento do tribunal, por isso a mim pouco importa, mas quero poupar o choque a Alice. Agora vou esclarecer tudo; muito tempo se passou até que a tragédia chegasse ao auge, mas não levarei muito tempo a contá-la.
"Vocês não conheceram o falecido McCarthy. Era o diabo encarnado. Isso posso afirmá-lo, e Deus nos livre de cair nas garras de um homem como ele. Todo o seu peso tem estado sobre mim durante os últimos vinte anos. Ele arruinou a minha vida. Vou contar-lhes como caí em seu poder. Foi entre os anos 60 e 70, no quartel. Eu era um rapaz novo então, descuidado e temerário, pronto para lançar mão fosse no que fosse. Aliei-me a maus companheiros, comecei a beber e não tive sorte no trabalho; fugi para o mato e tornei-me salteador. Éramos seis e levávamos uma vida selvagem, assaltando uma estação de vez em quando ou fazendo parar os vagões nas estradas. Black Jack de Ballarat era o nome sob o qual eu era conhecido; eu e o nosso bando somos lembrados ainda hoje na colônia como os gângsteres de Ballarat. "Um dia paramos um trem que ia de Ballarat a Melbourne. Eram seis soldados e nós também éramos seis. Três dos nossos rapazes foram mortos antes que pudéssemos pegar a bagagem. Apontei o revólver para a cabeça do condutor, que não era outro senão McCarthy. Antes o tivesse morto, mas poupei-o, embora tivesse visto os seus olhos vivos de canalha fixos no meu rosto, como que para se recordar sempre das minhas feições. Desaparecemos com o ouro, ficamos ricos e voltamos para a Inglaterra sem nos tornarmos suspeitos. Ali me separei dos velhos camaradas, resolvi fixar residência e ter uma vida calma e respeitável. Comprei esta herdade que estava à venda e procurei fazer algum bem aos outros com o meu dinheiro, tentando redimir-me do modo como o havia ganho. "Casei-me, mas minha esposa morreu nova, deixando-me a minha Alice. Mesmo quando pequenina, a mãozinha dela parecia conduzir-me ao bom caminho, como até então nada o conseguira. Enfim, comecei uma página nova e limpa da minha vida, procurando expiar o passado; tudo ia bem, quando McCarthy me descobriu. "Tinha ido a Londres tratar de um investimento quando o encontrei na Regent Street, malvestido e malcalçado. "— Aqui estamos, Jack — disse ele tocando-me no braço —, seremos uma família só. Somos só dois, eu e meu filho, e você pode sustentar-nos. Se não quiser assim, esta Inglaterra cumpre muito bem as leis, e há sempre um policial por perto. "— Bem, iremos para o oeste — resolvi, pois não havia meios de me livrar deles, e então vieram e se instalaram nas minhas terras. Não havia sossego para mim, nem paz, nem esquecimento. Fosse eu para onde fosse, lá estava aquela cara de velhaco, escarnecendo de mim. Ficou pior quando Alice cresceu, porque ele percebeu que eu tinha mais receio que ela soubesse do meu passado do que da própria polícia. Tudo o que ele pedia era preciso dar, e eu dava sem discutir; terras, dinheiro, casas, até que por fim me pediu algo que não podia atender. Pediu Alice. O filho dele crescera, assim como minha filha, e, como era sabido que eu tinha pouca saúde, parecia-lhe certo que o filho se tornasse proprietário de tudo. Mas fiquei firme, não queria que sua maldita estirpe se misturasse com a minha; não que o rapaz fosse indesejável, mas tinha o sangue do pai, e isso bastava. "Fiquei firme. McCarthy ameaçou-me. Desafiei-o a fazer tudo o que quisesse, até o pior. Havíamos marcado encontro junto ao lago, a meio caminho entre as nossas casas, para tratar do assunto. "Quando cheguei, vi-o conversando com o filho; por isso, fumei um cigarro enquanto esperava, atrás de uma árvore; tudo o que havia em mim de mau e odioso me subiu à cabeça. Ele pretendia convencer o filho a casar-se com minha filha com tão poucos sentimentos pela vontade dela como se se tratasse de qualquer mulher da rua. Fiquei louco ao lembrar-me de que eu e tudo o que me era mais caro estávamos em poder de um homem daqueles. "Não havia jeito de me libertar dele. Eu era um homem moribundo, desesperado. Enquanto mantive as faculdades mentais claras e o físico regularmente forte, vi que estava selado o meu destino. Mas minha honra e a minha filha! Tudo estaria salvo se eu pudesse calar aquela língua vil. E assim o fiz, Sr. Holmes. Eu o faria outra vez. Pequei profundamente e vivi uma vida de martírio para o expiar, mas que minha filha ficasse amarrada às mesmas malhas que eu era demais para que o pudesse suportar. Abati-o com menos relutância do que se fosse uma fera venenosa. O grito dele fez regressar o filho. Eu já chegara à beira da mata, embora tivesse sido obrigado a voltar para apanhar a capa que
havia deixado cair na fuga. Esta é a verdadeira história de tudo quanto ocorreu." — Bem, não sou seu juiz — disse Holmes, enquanto o velho assinava a confissão que fora escrita. — Peço a Deus que nunca sejamos expostos a tal tentação. — Também o desejo, senhor. E o que pretende fazer? — Em vista da sua saúde, nada. Sabe que em pouco tempo deverá comparecer perante um tribunal mais solene que o deste mundo. Guardarei sua confissão, e se McCarthy for condenado, serei obrigado a utilizá-la. Senão, nunca será vista por olhos mortais, é o seu segredo, esteja o senhor morto ou vivo, ficará apenas conosco. — Adeus, então — disse o velho solenemente —, vossos próprios leitos de morte, quando chegar a hora, serão aliviados à lembrança da paz que me cederam. Coxeando e com todo o seu gigantesco corpo tremendo, saiu vagarosamente da sala. — Deus nos ajude! — disse Holmes depois de um longo silêncio. Por que fará a fatalidade diabruras com pobres seres fracos como esses? Quando ouço falar de um caso semelhante, lembro-me das palavras de Baxter e digo: "Onde não está a graça de Deus, aparece Sherlock Holmes". James McCarthy foi absolvido devido às várias objeções apresentadas por Holmes e submetido ao conselho de defesa. O velho Turner viveu mais sete meses após a nossa entrevista, mas agora já faleceu, e há grandes esperanças de que o filho de um e a filha do outro possam ainda chegar a viver juntos durante muitos anos, casados, felizes e sem saber da nuvem turva que lhes enegrece o passado.
Ilustrações: Howard K. Elcock, cortesia The Camden House Voltar
Sherlock Holmes em: A inquilina do rosto coberto Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR (zohar@bol.com.br) CPTurbo.org
Quando se considera que o sr. Sherlock Holmes exerceu suas atividades de detetive durante vinte e três anos e que durante dezessete deles eu cooperei com ele, tomando nota de seus feitos, torna-se evidente que disponho de farto material. O problema sempre foi, não encontrar, mas escolher. Lá está a longa fila de agendas de cada ano, que enchem uma estante, lá estão as caixas pejadas de documentos, uma fonte inestimável para quem quiser estudar não só o crime, mas os escândalos sociais e oficiais dos fins da era vitoriana. Com referência a estes últimos, posso afirmar que aqueles que escrevem cartas aflitivas pedindo que seja poupada a honra de sua família e a fama de seus antepassados nada têm a temer. A discrição e o alto sentido de honra profissional que sempre distinguiram meu amigo presidem, hoje como ontem, à seleção dessas memórias, e jamais haverá abuso de confiança. Por isso é que contam com a minha mais decidida reprovação as tentativas que ultimamente têm sido feitas no sentido de, por qualquer processo, se lançar mão desses papéis e destruí-los. Sabe-se de onde provêm tais insinuações insultuosas, e, se elas se repetirem, estou autorizado pelo sr. Holmes a dizer que será levada a público toda a história referente ao político, ao farol e ao corvo marinho ensinado. Há pelo menos um leitor que entenderá do que se trata... Não é razoável supor que cada um desses casos tenha dado a Holmes a oportunidade de mostrar aqueles curiosos dons de instinto e observação que me esforcei por tornar patentes nestas memórias. Algumas vezes, só a poder de muito trabalho é que ele conseguiu colher o fruto; outras, este veio lhe cair facilmente nas mãos. Mas muitas vezes as mais terríveis tragédias humanas estavam contidas em casos que lhe ofereceram pouquíssimas oportunidades pessoais, e é um desses que eu agora desejo registrar aqui. Narrando-o, fiz uma ligeira troca de nome e de lugar, mas, exceto isso, os fatos são a expressão da verdade. Numa manhã dos fins de 1896, recebi um bilhete de Holmes, escrito às pressas, pedindo o meu comparecimento. Ao chegar, encontrei-o envolvido numa atmosfera impregnada de fumaça, e na cadeira defronte da sua estava sentada uma matrona idosa e rechonchuda com aspecto de estalajadeira. — Esta é a sra. Merrilow, de South Brixton — disse o meu amigo, com um aceno de mão. — A sra. Merrilow não se importa com o tabaco, Watson, de modo que, se quiser, não faça cerimônia; pode se entregar aos seus hábitos pouco asseados de fumador. Ela tem uma interessante história para contar. É provável que essa história seja o prelúdio de acontecimentos nos quais sua presença seria útil. — Tudo o que eu puder fazer... — A senhora compreenderá, sra. Merrilow, que, se eu for visitar a sra, Ronder, preferiria levar uma testemunha. A senhora lhe dirá isto antes da nossa chegada. — Benza-o Deus, sr. Holmes — disse a nossa visitante; — ela anda tão ansiosa por vê-lo que o senhor podia levar até a paróquia inteira.
— Pois então iremos depois do meio-dia. Agora é preciso que, antes de mais nada, tenhamos todos os fatos em perfeita ordem. Se os recapitularmos, o dr. Watson ficará plenamente inteirado da situação. A senhora me disse que a sra. Ronder é sua inquilina há sete anos e que só lhe viu o rosto uma vez. — E antes nunca o tivesse visto! — exclamou a sra. Merrilow. — Estava, segundo entendi, terrivelmente mutilado. — Sr. Holmes, com certeza teria dificuldade em dar àquilo o nome de rosto. É o que lhe digo. Nosso leiteiro viu-a de relance, uma vez, quando ela espiava da janela de cima, e deixou cair a lata, entornando todo o leite na calçada. É assim o rosto de que lhe falei. Quando eu a vi (cheguei de repente, apanhando-a desprevenida), ela cobriu-o depressa e disse: "Agora, sra. Merrilow, já sabe por que é que eu nunca tiro o meu véu". — Sabe alguma coisa de sua história? — Absolutamente nada. — Quando ela chegou, não trouxe referências? — Não, senhor, mas trouxe muito dinheiro, e deu-me boa parte dele. Pagou três meses adiantadamente, sem discutir condições. Nos tempos que correm, uma pobre mulher como eu não pode perder uma oportunidade dessas. — Apresentou alguma razão por ter escolhido sua casa? — A casa fica bastante afastada da rua e quase não é visível. Ademais, só alugo um quarto e não tenho família. Calculo que ela tenha ido a outras e verificado que a minha lhe convinha mais. O que ela quer é isolamento, e paga para ficar sozinha. — Diz a senhora que ela nunca mostrou o rosto, desde sua chegada até hoje, salvo uma única ocasião, acidentalmente. Isso é por certo um caso notável, e não me admiro de que a senhora deseje que o examinem. — Eu não o desejo, sr. Holmes. Dou-me por satisfeita uma vez que receba o aluguel. Não seria possível arranjar um inquilino mais sossegado e que desse menos trabalho. — Então, a que deve essa sua atual resolução? — A causa, sr. Holmes, é a saúde de minha inquilina. Ela parece estar definhando. E tem qualquer coisa de terrível no espírito. "Assassinato!", grita ela. "Crime de morte!" E uma vez ouvi-a dizer em voz alta: "Você é um monstro, uma fera!" Era de noite. A voz ressoou pela casa toda e causou-me arrepios. Então, de manhã, fui procurá-la. "Sra. Ronder", disse eu, "se tem qualquer coisa que lhe pesa na consciência, posso mandar chamar um padre, ou avisar a polícia. Com um ou com outro, a senhora se sentirá aliviada." "Por
caridade, a polícia não!", disse ela. "E o padre não pode modificar o que já se passou. E contudo", acrescentou, "eu me sentiria bem mais tranqüila se alguém soubesse a verdade antes de minha morte." "Bem", respondi, "se quer uma sugestão, há esse detetive de que tanto falam os jornais... ", desculpe, sr. Holmes. E ela concordou imediatamente. "É esse o homem", disse ela. "Não sei como é que ainda não tinha pensado nisso. Traga-o aqui, sra. Merrilow, e, se ele não quiser vir, diga-lhe que sou a mulher de Ronder, o dono do pavilhão de feras. Diga-lhe isso e dê-lhe o nome Abbas Parva." Aqui está como ela o escreveu: Abbas Parva. "Isso o fará vir, se é o homem que penso." — E acertou — disse Holmes. — Muito bem, sra. Merrilow. Gostaria de ter uma pequena conversa com o dr. Watson. Estaremos entretidos até a hora do almoço. Lá pelas três horas, pode nos esperar em sua casa, em Brixton. Nem bem a nossa visitante havia saído da sala, bamboleando-se (é este o verbo que melhor descreve o seu andar), Sherlock Holmes atirou-se avidamente a uma pilha de livros que estava a um canto. Por alguns minutos, só se ouvia o ruído do folhear de páginas. Finalmente, com um grunhido de satisfação, deu com o que procurava. Tão ansioso estava que nem se ergueu, mas sentou-se no chão qual um estranho Buda, de pernas cruzadas, rodeado de calhamaços, um deles aberto sobre os joelhos. — Na época, Watson, o caso não deixou de me preocupar. Prova do que digo são estas minhas notas à margem. Confesso que não pude decifrar o enigma. E todavia estava convencido de que o juiz errara. Você não se lembra da tragédia de Abbas Parva? — Não, Holmes. — No entanto, nessa época você estava comigo. Mas eu mesmo pouco me interessei pelo caso, pois nada havia nele que nos pudesse orientar, e nenhuma das partes contratou os meus serviços. Mas talvez queira ler os jornais. — Não podia me dar os principais tópicos? — Nada mais fácil. Provavelmente, enquanto eu falo, você se recordará do caso. Ronder era um nome que andava na boca de todos. Era o rival de Wombwell e de Sanger, um dos maiores donos de circo do seu tempo. Ficou provado, entretanto, que dera para beber, e na época da grande tragédia tanto ele como o circo estavam em decadência. A caravana pernoitava em Abbas Parva, aldeola de Berkshire, quando se deu o desastre. Dirigiam-se para Wimbledon, viajando pela estrada, e estavam simplesmente acampados, não em exibição, uma vez que o lugarejo é tão insignificante que não valia a pena dar nenhum espetáculo ali.
"Possuíam entre as atrações um belo leão do norte da África. Seu nome era Rei do Saara, e tanto Ronder como a mulher tinham por costume dar exibições dentro da própria jaula da fera. Aqui está uma fotografia do espetáculo. Por ela você verá que Ronder era um tipo corpulento, com qualquer coisa de bestial na aparência, e que a esposa era uma esplêndida mulher. Houve depoimentos, no inquérito, segundo os quais havia indícios de que o leão era perigoso, mas, como sempre acontece, a familiaridade gerou o desprezo, e não se deu atenção ao fato. "Tanto Ronder como a mulher costumavam dar comida ao leão à noite. Ora ia um, ora ambos, mas jamais permitiam que qualquer outra pessoa o fizesse, porque acreditavam que, enquanto fossem eles que levassem o alimento, a fera os consideraria como benfeitores e nunca haveria de molestá-los. Naquela noite, há já sete anos, foram os dois, e aconteceu um fato medonho, cujos pormenores nunca ficaram esclarecidos. "Parece que todo o acampamento foi acordado, cerca da meia-noite, pelos rugidos do animal e os berros da mulher. Os diversos tratadores de animais e os outros empregados saíram correndo de suas tendas, trazendo lanternas, e, à claridade delas, deparou-se-lhes uma cena horrorosa. Ronder jazia por terra, com a parte posterior da cabeça esmagada e fundos sinais de garras no crânio. Isso se dera a pouco menos de dez metros da jaula, que estava aberta. Perto da porta da jaula estava a sra. Ronder, deitada de costas, com o animal agachado e rosnando em cima dela. O leão dilacerara-lhe de tal modo o rosto que ninguém pensou que pudesse escapar com vida. Vários homens do circo, chefiados por Leonardo, o campeão de peso, e Griggs, o palhaço, conseguiram afastar dali a fera e fizeram-na entrar de novo na jaula, que foi fechada imediatamente. Como o leão tinha conseguido evadir-se dali era um mistério. Conjeturou-se que o casal estava para penetrar na jaula, mas que, quando a porta foi aberta, o animal se atirou a eles. Não havia no depoimento nenhum outro ponto de interesse, a não ser que a mulher, delirando, gritava várias vezes 'Covarde! Covarde!', enquanto a transportavam para o grande veículo que lhes servia de morada. Somente seis meses depois é que ela pôde depor, mas deu-se por encerrado o inquérito, sendo proferida afinal a sentença de morte acidental. — Que outra alternativa podia haver? — perguntei. — É o que se dizia. No entanto, havia um ou dois pontos que preocupavam o jovem Edmunds, da delegacia de polícia de Berkshire. Belo rapaz aquele! Posteriormente, foi transferido para Allahabad. Foi aí que eu me enfronhei no assunto, porque ele me fez uma visita, e juntos demos nossas cachimbadas discutindo o caso. — Um homem magro, de cabelo amarelo? — Exatamente. Tenho certeza de que agora você pega o fio. — Mas o que é que o preocupava?
— Ora, estávamos os dois preocupados. Era quase impossível reconstituir um caso como aquele. Consideremo-lo do ponto de vista do leão. O bicho vê-se livre. Que faz ele? Dá uns pulos e alcança Ronder. Este vai fugir (as marcas das garras estavam na parte posterior da cabeça), mas o leão o derruba. Depois, em vez de saltar e fugir, volta-se para a mulher, que estava perto da jaula, deita-a por terra e despedaça-lhe o rosto. Em seguida, aqueles gritos dela parecem dar a entender que o marido não lhe acudira. Que podia fazer o pobre-diabo para ajudá-la? Vê a dificuldade? — Perfeitamente. — E havia mais uma coisa. Vem-me agora outra vez à mente enquanto recapitulo os fatos. Foi dito durante os depoimentos que, justamente no momento em que o leão rugia e a mulher berrava, um homem começou a gritar, tomado de terror. — Com certeza foi o tal Ronder. — Mas se o homem tinha o crânio esfacelado, não estava mais em condições de gritar. Houve pelo menos duas testemunhas que falaram nos gritos de um homem que se misturavam com os de uma mulher. — Quero crer que, numa conjuntura dessas, todo o acampamento andaria aos berros. Quanto aos demais pontos, penso que poderia propor uma solução. — Gostaria de ouvi-la. — Estavam os dois juntos, a uns dez metros da jaula, quando o leão saiu. O homem voltou-se e foi derrubado. A mulher teve a idéia de penetrar na jaula e fechar a porta. Era o seu único refúgio. Encaminhou-se para a jaula, e, justamente quando a alcançava, o animal saltou-lhe atrás e derrubou-a. Ela se irritou com o marido pelo fato de ele, ao voltar-se, ter incitado a raiva do animal. Se ambos o tivessem enfrentado, podiam tê-lo espavorido. Daí ela ter gritado: "Covarde!" — Brilhante, Watson! Há apenas uma falha no seu argumento. — Qual é, Holmes? — Se estavam ambos a dez passos da jaula, como foi que a fera fugiu? — Quem sabe eles tinham algum inimigo que soltou o animal! — E por que é que este havia de atacá-los ferozmente se até costumava brincar com eles e executar, sob a sua direção, números de habilidades dentro da jaula? — É possível que o mesmo inimigo tenha feito alguma coisa para enfurecer o bicho.
Holmes pareceu pensativo e permaneceu em silêncio durante alguns momentos. — Olhe, Watson, há um ponto a favor de sua teoria. Ronder tinha muitos inimigos. Edmunds me disse que ele ficava horrível quando bebia. Era um homenzarrão corpulento, e batia e golpeava a torto e a direito. Quer-me parecer que aqueles gritos a respeito do monstro, de que nossa visitante falou, eram reminiscências noturnas do querido morto. Todavia, enquanto não soubermos dos fatos, todas as nossas especulações são vãs. Em cima do aparador, há uma perdiz fria, Watson, e uma garrafa de Montrachet. Renovemos nossas energias antes de lhes passarmos uma nova revista. Quando o nosso carro nos deixou junto à casa da sra. Merrilow, encontramos a gorda matrona atravancando a porta aberta de sua humilde e afastada residência. Era bem patente que sua principal preocupação era não perder uma inquilina de valor, e rogou-nos, antes de nos fazer subir, que nada disséssemos ou fizéssemos que tivesse um resultado desastroso para ela. Depois de a havermos tranqüilizado, subimos a escada mal-atapetada e fomos introduzidos no aposento da misteriosa inquilina. Era um lugar fechado, abafado, de pouca ventilação, já que a moradora raramente o deixava. Por sempre ter conservado feras presas em jaulas, a mulher parecia, como prêmio que lhe reservara o destino, ter-se tornado ela mesma uma fera numa jaula. Estava sentada numa cadeira de braços, num canto escuro do quarto. Os longos anos de inação haviam estragado as linhas de seu corpo, mas num certo período de sua vida devia ter sido bela, e ainda era cheia e voluptuosa. Cobria-lhe o rosto um espesso véu preto, que descia até o lábio superior, deixando descoberta uma boca bem-feita e um queixo delicadamente arredondado. Calculei que realmente devia ter sido uma mulher notável. Sua voz também mantinha uma modulação agradável. — Meu nome não lhe é desconhecido, sr. Holmes — disse ela. — Pensei que isso seria razão suficiente para o senhor vir. — É exato, senhora, embora eu não saiba como é que pôde descobrir que seu caso me interessava. — Descobri-o quando me restabeleci e fui interrogada pelo sr. Edmunds, o detetive do condado. Receio ter-lhe mentido. Talvez tivesse sido mais prudente ter dito a verdade. — Via de regra, é mais prudente falar a verdade. Mas por que é que lhe mentiu? — Porque dessa mentira dependia a sorte de outra pessoa. Sei que essa pessoa se mostrou indigna, mas nem por isso queria que sua destruição pesasse na minha consciência. Tínhamos vivido em tamanha intimidade!
— E esse impedimento foi removido? — Foi. A pessoa a que me refiro está morta. — Então por que não conta à polícia tudo quanto sabe? — Porque uma outra pessoa deve ser levada em consideração. Essa outra pessoa sou eu. Não podia suportar o escândalo e a publicidade que resultariam de um exame feito pela polícia. Não me resta muito que viver, mas desejo morrer sossegada. E, contudo, queria encontrar um homem de discernimento a quem pudesse contar minha terrível história, de modo que, quando me for desta vida, tudo possa ser bem compreendido. — Obrigado pela parte que me toca. Mas sou uma pessoa com responsabilidades. Portanto, não lhe posso prometer que, depois de a senhora ter falado, não me julgue no dever de referir o caso à polícia. — Pois eu não julgo assim, sr. Holmes. Conheço muito bem seu caráter e seus métodos, porquanto venho acompanhando seu trabalho há alguns anos. A leitura é o único prazer que o destino me deixou, e pouca coisa do que vai pelo mundo me escapa. Mas, em todo caso, não me importo com o uso que o senhor possa fazer de minha tragédia. Narrando-a, aliviarei minha consciência. — Eu e meu amigo gostaríamos de ouvir a história completa. A mulher levantou-se e tirou de uma gaveta o retrato de um homem. Via-se que era um acrobata profissional, um homem de físico magnífico, fotografado com os grossos braços cruzados sobre o peito cheio e com um sorriso despontando debaixo do bigode farto — o sorriso complacente do homem de muitas conquistas. — Este é Leonardo — disse ela. — Leonardo, o acrobata que prestou depoimento? — Exatamente. E este... este é meu marido. Era uma cara horrenda — um porco humano, ou melhor, um javali humano, pois era incrível sua bestialidade. Podia-se imaginar aquela boca abjeta mastigando e espumando de raiva, e aqueles olhos, pequenos e perigosos, dos quais brotava maldade enquanto contemplavam o mundo, Desordeiro, valentão, mau — tudo estava escrito naquele rosto repulsivo. — Estas duas fotografias, cavalheiros, vão ajudá-los a entender a história. Eu era uma pobre menina de circo, criada sobre a serragem e passando por dentro do arco antes dos dez anos. Quando me tornei mulher, este homem me amou, se é que se pode dar à sua lascívia o nome de amor, e num mau momento tornei-me sua mulher. A partir desse dia, vivi num inferno, sendo ele o demônio que me atormentava. Não havia ninguém na troupe que ignorasse o
tratamento que ele me dispensava. Ele me largava para correr atrás de outras, amarrava-me e açoitava-me com o chicote quando eu me queixava. Todos tinham pena de mim e nojo dele, mas que podiam fazer? Todos o temiam, pois era medonho a qualquer hora, e, quando bêbado, chegava a ser sanguinário. Repetidas vezes foi multado por assalto, e por crueldade com os animais, mas tinha muito dinheiro, e as multas nada significavam para ele. Todos os melhores elementos nos deixaram, e a companhia começou a decair. Somente Leonardo e eu a sustentávamos, com o pequeno Griggs, o palhaço. Este... pobrezinho!, não tinha muita graça, mas fazia o que podia para conservar as coisas nos eixos. "Foi aí que Leonardo começou a influir decisivamente em minha vida. O senhor vê como ele era. Sei agora que espírito fraco se escondia naquele esplêndido corpo, mas, comparado ao meu marido, parecia um anjo. Teve pena de mim e ajudou-me, até que por fim nossa intimidade se converteu em amor... amor profundo, apaixonado, o amor com que eu havia sonhado mas que não tinha esperanças de sentir jamais. Meu marido desconfiou, mas creio que era tão covarde como valentão, e que Leonardo era o homem de quem ele tinha medo. Vingou-se a seu modo, torturando-me mais do que nunca. Uma noite, meus gritos atraíram Leonardo à porta do nosso veículo. Naquela noite, estivemos a dois passos da tragédia, e logo eu e meu amante compreendemos que um desfecho trágico era inevitável. Meu marido não podia continuar a viver. Planejamos tirar-lhe a vida. "Leonardo tinha um cérebro engenhoso e inventivo. Foi ele quem planejou a coisa. Não digo isso para me eximir de responsabilidades, pois estava disposta a ir com ele até o fim, sem recuar um milímetro. Mas nunca teria imaginação para idealizar um plano assim. Fizemos uma clava (Leonardo a construiu), e na cabeça de chumbo dessa clava ele fixou cinco longos pregos de aço, com as pontas para fora e apresentando o mesmo formato da pata do leão. Isso se destinava a dar a meu marido o golpe mortal, deixando ao mesmo tempo a prova de que o causador de sua morte fora o leão que íamos soltar. "Aquela noite estava escura como breu. Meu marido e eu, como era nosso costume, fomos dar comida à fera. Levávamos carne crua num balde de zinco. Leonardo esperava no canto do enorme carro pelo qual tínhamos de passar antes de chegarmos à jaula. Atrasou-se um pouco e não teve tempo de desferir o golpe quando passamos por ele, mas seguiu-nos na ponta dos pés e ouvi a pancada da clava esmigalhando o crânio de meu marido. Quando escutei aquele som, meu coração pulou de alegria. Dei um salto à frente e soltei o cadeado que prendia a porta da grande jaula do leão. "E foi então que aconteceu a coisa medonha. O senhor deve ter ouvido dizer que esses animais farejam depressa o sangue humano e que isso os excita. Algum estranho instinto revelou no mesmo instante à fera que um ser humano
tinha sido trucidado. Quando abri a porta de ferro da jaula, o animal pulou para fora e num instante caiu sobre mim. Leonardo podia ter-me salvo. Se ele se atirasse para a frente e batesse na fera com sua clava, tê-la-ia atemorizado. Mas o homem perdeu a calma. Ouvi-o gritar, tomado de terror, depois vi-o voltar-se e fugir. No mesmo instante, os dentes do leão cravaram-se no meu rosto. Seu bafo quente e pestilento já me havia envenenado, e eu mal tinha consciência da dor. Com as palmas das mãos, procurei afastar de mim as enormes mandíbulas fumegantes e sangrentas e gritei por socorro. Percebi que o acampamento se movia e lembro-me indistintamente de um grupo de homens, Leonardo, Griggs e outros, que me arrastavam de sob as patas do animal. Foi essa, sr. Holmes, a última cena de que guardei recordação durante muitos meses de sofrimento. Quando voltei a mim e me olhei ao espelho, amaldiçoei aquele leão... oh, como o amaldiçoei!, não por, na sua fúria, ter me privado da beleza, mas por não ter me privado da vida. Só um desejo eu tinha, sr. Holmes, e possuía bastante dinheiro para satisfazê-lo. Era cobrir-me de tal forma que meu pobre rosto não fosse visto por ninguém, e morar num lugar onde não fosse procurada por ninguém que tivesse me conhecido. Era a única coisa que me restava a fazer, e foi o que fiz. Um pobre animal ferido arrastouse até seu covil para morrer: eis o triste fim de Eugenia Ronder. Depois que a desditosa mulher acabou de narrar sua história, guardamos silêncio durante algum tempo. Em seguida, Holmes estendeu seu comprido braço e afagou-lhe a mão com tal prova de simpatia como eu raramente o tinha visto exibir. — Pobre senhora! — disse ele. — Pobre senhora! Misteriosos são os caminhos do destino! Se depois desta vida não houver uma compensação, então o mundo é um gracejo cruel. Mas que foi feito desse tal Leonardo? — Nunca mais o vi nem ouvi falar nele. Talvez eu não tenha razão em me queixar amargamente dele. É provável que em seguida tenha logo amado uma dessas garotas que levávamos conosco através do país, como antes amara esta coisa que o leão deixou. Mas o amor de uma mulher não é coisa que se abandone assim com tamanha facilidade. Ele me abandonou sob as garras da fera, desamparou-me no momento de maior necessidade, e contudo não tive coragem de mandá-lo para a forca. Quanto a mim, pouco me importei com aquilo a que fiquei reduzida. O que podia ser mais horrível do que minha vida atual? Mas fiquei entre Leonardo e seu destino. — E ele morreu? — Afogou-se o mês passado, quando tomava banho perto de Margate, Vi no jornal a notícia de sua morte. — E que fez ele da tal clava de cinco garras, que é a parte mais singular e mais engenhosa de toda a sua história? — Não sei dizer, sr. Holmes, Havia uma pedreira, perto do acampamento, com um poço profundo. Talvez nas profundezas desse poço...
— Bem, basta. Isso agora pouca importância tem. O caso está encerrado. — Sim — repetiu a mulher —, o caso está encerrado. Tínhamo-nos levantado para sair, mas alguma coisa na voz daquela mulher reteve a atenção de Holmes. Ele se virou rapidamente para ela. — Sua vida não lhe pertence — murmurou ele. — Que utilidade pode ela ter para alguém? — Quem sabe? O exemplo do sofrimento levado com paciência já é em si a mais preciosa das lições para um mundo impaciente. A resposta da mulher foi terrível. Levantou o véu e deu um passo para a claridade. — Eu queria saber se o senhor suportaria isso — disse ela. Era horrível. Não há palavras que possam descrever a configuração de um rosto quando o próprio rosto não existe. Dois bonitos olhos castanhos, muito vivos, olhando tristemente daquela horrenda ruína, tornavam ainda mais atroz o espetáculo. Holmes levantou a mão num gesto de piedade e de protesto, e saímos juntos do aposento. Dois dias depois, ao visitar meu amigo, ele me indicou com certo orgulho uma garrafinha azul em cima do balcão da lareira. Peguei-a. Via-se nela um rótulo vermelho que indicava veneno. Ao destapá-la, exalou um agradável cheiro de amêndoas. — Acido prússico? — inquiri. — Exatamente. Chegou pelo correio. "Aí lhe mando minha tentação. Seguirei seu conselho." Foi esse o recado. Creio, Watson, que podemos adivinhar facilmente o nome da corajosa mulher que o enviou.