Legenda10 2018

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ÍNDICE 6 > Editorial

68 Inside the Favelas e Inside the Maré

HQ 8 14 22 30 36 44 50 54 60 64

DOSSIê temÁTICO Janie K. Pacheco e Adriana Kurtz

Fabiano Barroso Rodrigo Rosa Marcelo D’Salete João Antonio Macambira Camaleão Augusto Paim e MauMau Francisco S. Vilachã Zé Wellington Weaver Lima Vitor Batista

93 Um dia uma morte: uma graphic novel lírico-brasileira de realismo fantástico Gazy Andraus

110 O olhar dos ilustradores e quadrinistas a partir de fotografias tiradas de aglomerados brasileiros Eliane Meire Soares Raslan

128 Os Discursos Sobre a Favela: Uma Trajetória em Arte Sequencial Nílbio Thé

ENTREVISTAS 160 André Diniz 162 Zé Wellington 165 Marcello Quintanilha

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MISSÃO

LEGENDA QUADRINHOS Revista Brasileira de Pesquisa e Divulgação dos quadrinhos. Legenda Quadrinhos é uma publicação semestral do NIQ Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design da UEMG. ISSN 2447-2638 Publicação Online

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Divulgar artigos que abordem temas relacionados as ilustrações e histórias em quadrinhos correlatos aos vários nomes de quadrinistas nacionais, anônimos e consagrados que passaram a publicar suas produções autorais. Legenda Quadrinhos é uma revista interdisciplinar, criada com o objetivo de dinamizar a pesquisa, a produção e a divulgação dos quadrinhos, bem como contribuir com a documentação histórica e o estudo de novas técnicas de produção de imagens. Sentados lado a lado, quadrinistas e designers gráficos, debateram e contemplaram, pela primeira vez no espaço acadêmico, as possibilidades e os resultados da aproximação entre estas duas áreas do conhecimento humano, sempre com o intuito de promover vocações e estimular processos criativos, permitindo que estudantes de graduação e de pós-graduação também possam enviar artigos que abordem sobre estes diversos talentos artísticos brasileiros presentes no mercado nacional e/ou com sucesso no exterior. Em especial, busca publicar a produção dos alunos de graduação. A revista recebe artigos e resenhas em fluxo contínuo e funciona apenas no formato digital. Além do dossiê temático que permite aprofundar em áreas específicas. As submissões dos textos devem estar em sintonia com a Missão da Revista.

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Editorial:

Eliane Meire Soares Raslan

Coordenador do Centro de Imagem: Rosemary Portugal

Coordenador do NIQ:

Profa. Dra. Eliane Raslan ED-UEMG

Eliane Meire Soares Raslan

Conselho Editorial Científico:

Gazy Andraus (FIG – UNIMESP) Nílbio Thé (UNIFOR) Janie Kiszewski Pacheco (UFRGS e ESPM)

“A linguagem é como uma pele: com ela eu entro em contato com os outros” Roland Barthes

Conselho Gráfico:

Mariana Misk – LDG ED/UEMG Silvestre Rondon – ED/UEMG

Nesse número 1 do ano de 2018, estamos publicando nossa 10ª edição da Revista Legenda Quadrinhos. Em homenagem ao nosso 10º número de publicação, convidamos nosso Conselho Editorial Científico para participar desse número com a participação na publicação de artigos. Nosso dossiê temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros Contados em Quadrinhos, busca levantar discussões nas diversas formas de representações destas comunidades nos quadrinhos brasileiros. Verificar, como os artistas brasileiros estão publicando e interessando pelo tema favelas, ainda, como o público está reagindo ao mesmo. O discurso sobre a favela foi abordado na trajetória da arte sequencial, resgatando a história de como surgiu as favelas e o discurso utilizado das HQs – Histórias em Quadrinhos, averiguando a questão estética, política e social. Discute a autonomia autoral dos quadrinistas em torno de artistas, como: Priscila Arantes, Homi Bhabha e Noran Fairclough. A transição de cor nas estampas de negros, a invenção de artes, a resistência e os embates políticos nos quadrinhos vão sendo relidos de um texto para o outro. As experiências do jornalismo em quadrinhos também foram colocadas em questão, abordando as intituladas Inside the Favelas e Inside the Maré, publicações que retratam a realidade das favelas cariocas na cidade do Rio de Janeiro. As estruturas de reportagens, assim como a teoria do jornalismo, são básicas para análise dessa renovação da linguagem utilizada para retratar as favelas nos quadrinhos, que vai do percurso e gênero ao entretenimento, espetacularização e informação jornalística. A graphic novel líricobrasileira é discutida em seu realismo fantástico, foi analisada em torno dos quadrinhos “Um dia uma morte”, criada por Fabiano Barroso e Piero Bagnariol. Fantasmas que dialogam sobre a favela de nome fictício: Farofa. A história gira em torno de dois amigos que buscam um baú apontado no mapa. Com tons suaves e a marca da violência, assuntos que vão sendo tratadas no ambiente social da favela e por outro lado levantando questões de esperança da vida e da beleza da amizade. A novela gráfica serve de referência para leitura desses quadrinhos. Além disso, foi retratado o olhar de ilustradores que ainda não tem experiência no mercado profissional, sendo, que utilizam como base as fotos tiradas dos aglomerados da cidade de Belo Horizonte. Alunos do curso de ensino superior em Artes Visuais criam quadrinhos a partir do ambiente registrado com fotos das favelas. A dominação social e a busca pelo esclarecimento são temas que geram repercussão na análise desse material e para isso foi utilizado as teorias de Theodor Adorno e Max Horkheimer, que servem de apoio para análise dessas criações ilustrativas de personagens e de quadrinhos.

Projeto Gráfico: Luiza de carvalho Ferreira Produção: Eliane Meire Soares Raslan; e Luiza de Carvalho Ferreira Capa:

André Diniz

Apoio:

Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica. Edital 09/2015 PIBIC / UEMG / FAPEMIG

Data de publicação:

03.02.2017 Edição 10 ISSN 2447-2638 – Publicação Online - V. 5. N. 1 Primeiro semestre de 2018

Artigos e Resenhas: Fluxo contínuo Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos

A Revista Legenda Quadrinhos é uma publicação sem fins lucrativos do NIQ - Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos do Centro de Estudos em Imagem da Escola de Design / UEMG. Periódico com duas publicações anuais de artigos científicos, como também, ilustrações e histórias em quadrinhos produzido por brasileiros. As opiniões emitidas e imagens são de inteira responsabilidade de seus autores. Os direitos de todas as imagens pertencem aos respectivos Ilustradores e/ou quadrinistas de cada seção. O conteúdo dos artigos publicados é de inteira responsabilidade dos seus autores.

ILUSTRAÇÃO: Marcelo D’ Salete

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Contato: Av. Antônio Carlos, 7545. 7º andar - sala 53, Bairro São Luís. Belo Horizonte. MG. Brasil. Cep: 31270-010. (55) (31) 3439-6517. E-mail: <legenda-niq@hotmail.com>; Link: <https://revistalegenda.wordpress.com/>

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Fabiano Barroso Quadrinista, roteirista e escritor, foi editor da Graffiti 76% Quadrinhos por dezoito anos. Publicou também o álbum Um dia uma morte (em parceria com Piero Bagnariol) e o fanzine A Memória, dentre outros. As ilustrações são da HQ Crime Premeditado (quadrinização de conto de Tchecov), publicada no fanzine Skazki, lançado em 2015.

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Rodrigo Rosa E trechos da obra ilustrada: O Cortiรงo

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Marcelo D'Salete 22

A Rainha da Bateria

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A Rainha da Bateria

Ai de ti Tietê

Ai de ti Tietê

Da Cabula

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Duas Casas

Noit Luz

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Joao Antonio Macambira A linha da Pobreza

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CAMALEAO 36

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Augusto Paim Mau Mau

Jornalismo em quadrinhos com Inside the Favelas

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Francisco S. Vilacha Biografia Nasci no Rio de janeiro, 1953, em pleno verão carioca... Nos anos 1970, publiquei minha primeira HQ na revista O Bicho e passei a colaborar com HQs de suspense e terror na revista Spektro e nas séries eróticas e fantásticas da editora Grafipar, ocasião em que me transferi para São Paulo, vindo a trabalhar como ilustrador. Em meados dos anos 1980, junto com o roteirista Ronaldo Antonelli, editei a histórica InterQuadrinhos, revista exclusivamente feita por artistas nacionais. Com o fim da revista,

passei a trabalhar como freelancer para diversas publicações, como o jornal O São Paulo e a revista Alô Mundo, e a ilustrar livros didáticos e paradidáticos. No final de 2004, fui convidado pela Editora Escala Educacional para ilustrar a Coleção Literatura Brasileira em Quadrinhos. Atualmente venho produzindo novas adaptações de Clássicos da Literatura para o formato e-book e impressão sob demanda. Esses novos projetos e portifólio, estão disponíveis nos seguintes endereços:

https://plus.google.com/u/0/100890396619506360046/posts https://www.tumblr.com/blog/vila53cha19 http://www.franciscovilacha.com.br/ http://www.escalaeducacional.com.br/livrosLiteratJuvenil. asp?secao=colecao&classe=110&colecao=302

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Ze Wellington Zé Wellington é administrador por formação, atuando como técnico do Sebrae desde 2009 em várias áreas, incluindo Economia Criativa, e também professor da Faculdade Luciano Feijão na disciplina de Jogos Empresariais. É o roteirista de Quem Matou João Ninguém? e de Steampunk Ladies: Vingança a Vapor, este último vencedor do Troféu HQ MIX 2016 como Novo Talento Roteirista. Tem participado de diversas coletâneas e revistas especializadas em literatura fantástica e quadrinhos. É colaborador e podcaster dos sites Iradex e Avantecast. Mais informações em www. zewellington.com André Pinheiro é desenhista e ilustrador freelancer e professor de desenho focado no mercado internacional, com trabalhos para editoras norteamericanas e para sites de camisetas como a Gutter Brudderz.

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Weaver Lima 60

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VITOR BATISTA 64

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Inside the Favelas e Inside the Maré:

séculos e se configura como um aspecto crucial – senão fundante – das modernas

Duas experiências em Jornalismo em Quadrinhos *

sociedades ocidentais. Embora a imprensa de massa, com a profissionalização dos

Janie K. Pacheco Adriana Kurtz 2 1

Resumo O presente artigo analisa o chamado “Jornalismo em Quadrinhos” a partir de duas publicações que tem como tema a realidade das favelas cariocas, intituladas Inside the Favelas e Inside the Maré, ambas publicadas em 2011, no portal internacional Cartoon Movement. Tendo como eixo de análise a questão da hibridização do jornalismo com outros gêneros ou formatos da cultura de massa, o trabalho recupera a histórica relação entre as Histórias em Quadrinhos (HQs) e o jornalismo, a tensão entre a seriedade do campo jornalístico em oposição ao entretenimento de massas e os polos de disputa entre estas duas mídias na configuração do novo conceito. Defendemos que tal discussão teórica e suas nuances conceituais são relevantes para a própria recepção dos dois trabalhos aqui apresentados.

jornalistas, criação das reportagens e manchetes, utilização da publicidade e consolidação da economia de empresa seja alcançada apenas no que Marcondes Filho (2000) denomina de Segundo Jornalismo (1830 a 1900), vale notar que o encontro entre jornalismo e estética – ou se quisermos jornalismo e literatura – já é uma característica da fase anterior, na qual escritores, políticos e intelectuais protagonizam as práticas do período. Mais do que buscar uma ampla história do jornalismo, o que se quer aqui é ressaltar seu papel fundamental no âmbito dos meios de comunicação de massa (MCM) e da imprensa enquanto seu mais nobre veículo 3, papel que ainda busca conservar num quadro de enormes mudanças provocadas pelo desenvolvimento exponencial das tecnologias de comunicação e informação. Como bem disse Luís Sá Martino (2009, p. 19) O ritmo com que os meios de comunicação ocuparam a vida cotidiana pegou de surpresa os pesquisadores no início do século 20. O crescimento das mídias não encontrava paralelos na história e alternavam a dinâmica da sociedade em diversos níveis, da tomada de decisões políticas até as relações de poder na hierarquia familiar. O jornal, o rádio e o cinema permitiam a uma mesma mensagem ser captada por milhões de pessoas ao mesmo tempo.

Palavras-chave Jornalismo em Quadrinhos; Hibridização; Histórias em Quadrinhos; Inside the Favelas; Inside the Maré.

O desenvolvimento dos MCM, desta forma, assombra não apenas o homem Notas introdutórias sobre Jornalismo e História em Quadrinhos

comum como os pesquisadores do campo, já a partir do século XX. E o jornalismo, seja por seu pioneirismo, seja pela “aura” de uma mídia ilustrada e estruturante da

Acatando o quadro evolutivo da história da imprensa traçado por Ciro

opinião pública, consolida seu papel de destaque, auxiliada inclusive por outros meios

Marcondes Filho (2000), teríamos um ciclo que vai da primeira metade do século

que não deixavam de ser duros concorrentes, como o cinema, formalmente

XVII até os dias de hoje. Assim, ainda que descartemos a chamada Pré-história do

inaugurado em 1895. Prova disso é a intensa glamorização do jornalismo no

Jornalismo (1631 a 1789) e consideremos apenas o período do Primeiro Jornalismo

Newspaper Movie, conforme estudo de Christa Berger (2002). Todavia, o jornalismo

(1789 a 1830), marcada por uma natureza tanto literária quanto política, a atividade

se abre para outros atores coadjuvantes. As histórias em quadrinhos (HQs),

caracterizada pela produção e divulgação de informações e opiniões ultrapassa dois

popularmente chamada de “tirinhas”, são muito conhecidas das pessoas, pois há

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As autoras agradecem as preciosas sugestões dadas por Isabel Alencar de Castro na elaboração deste artigo. 1 Membro do Conselho Editorial. Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutoranda em Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing/Sul, Porto Alegre, Brasil, e-mail: janiekpacheco@yahoo.com.br 2 Mestre e Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing/Sul, Porto Alegre, Brasil, e-mail adrianakurtz@terrra.com.br

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Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 68 – 92, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

bastante tempo, pelo menos desde o final do século XIX, já se fazem presentes nos jornais impressos, afirmam Carlos Patati e Flávio Braga (2006). O personagem emblemático desse período chama-se The Yellow Kid, criado por Richard Outcault em 3

O jornalismo que conhecemos hoje nas sociedades democráticas tem as suas raízes no século XIX. Foi durante esse período, dirá Nelson Traquina (2005, p. 34), que “se verificou o desenvolvimento do primeiro mass media, a imprensa”.

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1895, cujas aventuras podiam ser acompanhadas nas páginas do New York World.

drástica: as cores e traços mais acadêmicos de representação dão lugar a uma estética

Nesse momento as principais características de uma HQ já se evidenciavam: presença

underground que privilegia o preto sobre branco (em função da impressão em off-set)

de texto na imagem, uso de balões indicando fala e pensamento, etc. A lembrança

comportando um amplo espectro de estilos de representação pictográfica diferentes.

acerca das relações entre jornalismo e cinema tem a sua razão de ser: a óbvia relação

Abordagens pouco comportadas de temas polêmicos permitem aos artistas inovar nas

entre a estética das HQs e do cinema, também destacada por diversos atores é

deformações intensas da figura humana e num estilo “sujo” que se opõe à estética

reforçada pela coincidência histórica entre o lançamento de The Yellow Kid e a

clean dos quadrinhos de consumo. “Ainda que vinculadas ao humor, à sátira e à

primeira sessão pública dos irmãos Lumière, em Paris, ambos em 1895.

crítica social, as histórias baseiam-se mais na realidade social que em fantasias criadas

Segundo a definição de Scott McCloud (2005, p.9), as HQs são “Imagens

especificamente para o consumo” (SOUZA JÚNIOR, 2009, p.10). Num segundo

pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir

momento, esta fase transgressora – que embora esteticamente rica não colabora para a

informações e/ou produzir uma resposta no espectador”. Os quadrinhos, ao contarem

respeitabilidade dos quadrinhos em função de suas ousadias “marginais” – será

uma história por meio de imagens e texto, garantem sua vocação massiva pela

substituída por uma estética pós-underground até a chegada num novo marco: a grafic

utilização de linguagem e narrativa simples e humor. Durante muito tempo, as HQs

novel (capaz de fazer as pazes, por assim dizer, com o grande público e com uma aura

eram tidas como passatempo, entretenimento para o público, sobretudo infantil

adulta e ao mesmo tempo mais respeitável.

(PATATI; BRAGA, 2006). Posteriormente as HQs foram ganhando vida própria: os

Assim, na década de 1980 ocorre um fato que marcaria de forma indelével a

personagens que noutros momentos eram lidos somente nas páginas dos jornais

história das HQs: Art Spiegelman lança Maus, que receberia o prêmio Pulitzer na

diários passaram a ter publicações próprias e os temas começaram a ser

década seguinte, relembram Marciano Queiroz Neto e Tiago Parente (2015).

diversificados, surgindo daí histórias infantis, de aventura, fantasia, ficção científica e,

Influenciado pela ficção realista de Will Eisner, Contrato com Deus, um novo

não menos importante, de heróis. A partir da década de 1930 e nas décadas seguintes,

formato que seria denominado de grafic novel (“romance gráfico”), Spiegelman

nos Estados Unidos, são criados os super-heróis como Super-Homem, Capitão

abordou uma das grandes tragédias humanas do século XX – o Holocausto – sob a

América, Batman, dentre outros. No decorrer do século XX, acentua-se a diversidade

linguagem dos quadrinhos, o que pareceu, no mínimo, insólito.

de temas, personagens e estilos das HQs, ainda que no âmbito dos produtos industriais dos MCM, como assinala Souza Junior (2009). Segundo o autor:

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A narrativa constituída nos volumes 1 (My father bleeds history) e 2 (And here my troubles began) recupera a história do pai do autor, judeu polonês, sobrevivente do

A indústria de quadrinhos norte-americana, europeia e japonesa (as três maiores e mais influentes) sempre esteve vinculada a [certas] tendências, mesmo que alguns produtos apresentem um alto nível de qualidade, sendo inclusive alçado ao status de arte, quase sempre estão desvinculados da realidade social e política. Há, contudo, determinadas unidades autônomas de discurso que, ao mesmo tempo em que exploram ao máximo o potencial expressivo da mídia, vinculam-se a uma tradição narrativa mais realista. (2009, p. 02)

holocausto nazista. Uma das inovações da obra, na fronteira entre a literatura e o

Já consolidado, o Comics norte-americano terá duas inflexões relevantes. Os

elementos da linguagem jornalística, como a entrevista e a integridade com a

temas ligados ao mundo ficcional e marcadamente infantil ou adolescente serão

transmissão dos fatos, chamando a atenção para seu conteúdo, porém sem

tensionados pelo chamado Comix. Não apenas mudam os temas, mas também o

desvalorizar o estilo pessoal e único do quadrinista, aproximando-a da reportagem”

público, notadamente adulto. Em termos de forma e narrativa a mudança é igualmente

(2015, p.9). Não por acaso, Maus terá enorme influência na estrutura narrativa

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jornalismo, foi retratar os judeus como ratos, os nazistas como gatos, os poloneses como porcos e os americanos como cães. Maus sinalizou um novo caminho para os quadrinhos: uma relação estreita com o realismo e, portanto, com o próprio jornalismo. Como assinalam Queiroz Neto e Parente (2015, p.9): “A obra carrega [...]

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adotada posteriormente, pelo ícone do Jornalismo em Quadrinhos (ou JHQ), Joe Sacco, inclusive na forma de introduzir o autor como personagem da história. Figura 1 - Capa da HQ Maus de Art Spiegelman

Os autores notam em Maus um estilo frio e documental de construir os quadrinhos. Como destaca McCloud (2005, p.181), “a obra experimental de Art Spiegelman, nos anos 70 e 80, deixou a todos boquiabertos com o estilo “relatório” de sua obra biográfica”. Estão lançadas as bases para o que será chamado de Jornalismo em Quadrinhos. Este termo será cunhado de fato pelo jornalista e ilustrador Joe Sacco, maltês nascido em 1962 e radicado nos Estados Unidos, mediante a publicação de Palestina: uma nação ocupada (1993) e Palestina: na faixa de Gaza (1995), volumes produzidos após viagens a Jerusalém, à Cisjordânia e à Faixa de Gaza. Figuras 2 e 3 – Capas das edições brasileiras das obras de Joe Sacco

Fonte: retratosdeumconflito.blogspot.com.br

Acerca da originalidade dessa obra, Souza Júnior (2009, p.4) assinala que: Fonte: vertigemhq.com.br

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Apesar de estar vinculada à tradição realista dos quadrinhos, a obra de Sacco constitui sua originalidade por transportar um gênero tradicional do jornalismo para uma nova mídia. Até então o jornalismo relacionava-se com os quadrinhos e com a imagem artística pelo viés do humor, através dos gêneros pictóricos tradicionais: a charge e a caricatura. [...] A Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 68 – 92, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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reportagem em quadrinhos introduz uma nova perspectiva por relacionar uma manifestação vinculada à arte com uma prática jornalística calcada na ideologia da objetividade.

Conforme Juscelino Souza Júnior (2009), Sacco utiliza-se de vários expedientes para conferir credibilidade jornalística a sua atividade, entre as quais a já citada inserção do autor como uma das personagens da reportagem realizada. Numa lógica que não condiz frequentemente – e infelizmente – com o padrão mais tradicional do jornalismo oferecido pela chamada grande mídia, o autor de Palestina explicita o processo de investigação jornalística ao retratar a atividade de aferição da informação. Instaurando uma metanarrativa que agrupa os variados depoimentos, a inserção do autor/jornalista/quadrinista em seu relato funcionaria com uma espécie de salvo-conduto, “já que garante que o autor tentou reproduzir o paradigma de reportagem exemplar, checando com diversas pessoas as mesmas informações e duvidando sempre dos relatos apresentados”, dirá Souza Júnior, não sem um tom romântico acerca do que seria uma conduta jornalisticamente ideal. Para construir o quadrinho-reportagem, Joe Sacco faz uso de dois pilares fundamentais: os aspectos visuais e a estrutura narrativa. É sobre estes que a estratégia discursiva de cada reportagem será constituída (SOUZA JÚNIOR, 2009). A breve recuperação das obras fundantes do que se convencionou chamar de JHQ chama a atenção para o caráter de hibridização dos meios de comunicação de massa em geral e, em particular, do jornalismo com demais formatos e gêneros não informativos (pelo menos em seu sentido clássico). Tal fenômeno, cuja face mais visível hoje está sob a rubrica do neologismo infotenimento, sugere uma reflexão sobre o hibridismo entre jornalismo e histórias em quadrinhos. Afinal, qual dos dois polos narrativos deve ganhar prioridade para uma melhor caracterização das reportagens Inside the Favelas e Inside the Maré, entre outras narrativas deste novo gênero? Tais questões, de ordem eminentemente mais conceituais, serão abordadas – nos limites deste texto – na próxima seção.

Os quadrinhos no jornalismo (ou o jornalismo nos quadrinhos?) Segundo Juvenal Zanchetta Júnior (2004, pp. 12-13), uma das palavras chaves para a imprensa é credibilidade, um valor que – mesmo marcado por evidente subjetividade – pode ser potencializado a partir de determinados procedimentos: estratégias de comunicação que conferem objetividade às informações: abrangência, atualidade e atenção diante do amplo universo de questões sociais; simultaneidade, já que é preciso sugerir ao leitor que o jornal dispõe das informações acerca dos fatos; imparcialidade (é necessário aparentar distanciamento, dando espaço aos diversos agentes ou ângulos envolvidos em determinado fato); concretude, que exige uma desapaixonada seleção de elementos para a composição das notícias e a utilização de dados e aspectos visíveis e observáveis; apuro na linguagem, já que a expressão em linguagem, culta seria a prova da correção da própria mensagem. Zanchetta Júnior (2004, p. 13) ainda ressalta que a “notícia justa” exige expedientes profissionais “isentos e desprovidos de interesses pessoais, optando-se pela verdade a qualquer custo”. Por mais idealizadas que pareçam as características do jornalismo sistematizadas pelo autor, vale lembrar que a Teoria do Espelho, com sua noção de notícia como reflexo da realidade social, ainda vive de fato no ideário da “tribo jornalística”. Pois conforme Traquina (2005, p. 34), os valores instaurados desde o século XIX e ainda hoje identificados com o jornalismo são “a notícia, a procura da verdade, a independência, a objetividade, e uma noção de serviço ao público”. Integralmente afetada pela norma da veracidade, o jornalismo deve fabricar e distribuir notícias; ou seja, narrativas sobre eventos reais, dirá Wilson Gomes (2009, pp. 10-11), acrescentando que, desta forma, o jornalismo não se compromete apenas “a ser honesto e sincero, mas a trabalhar objetiva e metodicamente para afastar do que diz o risco de engano ou erro” 4. Ao avaliar a mudança de paradigma do jornalismo ocorrida no século XIX – de instrumento de luta política e ideológica a mero produtor da mercadoria informação –, Leonel Azevedo de Aguiar (2008, p.16) também destaca o novo papel do profissional jornalista como “mediador neutro e imparcial que

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Lembremos que Gomes (2009) destaca criticamente estas características que ele atribui à lógica jornalística. Assim, sua reflexão vai relativizar tais pressupostos.

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observa a realidade social e produz um relato com base no método da objetividade,

de-rosa”, criticando a incorporação pela imprensa de inovações de linguagem e um

semelhante ao rigor metodológico do Positivismo”.

excesso de cores nas páginas, textos condensados, design agradável e sedutor,

Todas estas considerações sobre o estatuto do jornalismo explicam a reação

infográficos, ilustrações, fotografias coloridas e em grandes formatos, títulos atraentes

negativa que muitos profissionais da imprensa e acadêmicos do campo têm mostrado

e pequenos boxes. Por sua vez Marshall (apud AGUIAR, 2008) cunha o termo

em relação ao já citado fenômeno de hibridização, termo que se consolida como

“jornalismo transgênico”, que busca agradar a todos os setores aumentando a

objeto de estudo na primeira década deste século. Não é livre de certo moralismo ou

cobertura de notícias sobre comportamento, interesse humano, esportes, moda e

de desconfianças mais ou menos confessas que os profissionais da imprensa (que se

produtos midiáticos, que abrem espaço para o entretenimento em detrimento de

pretendem sérios), a própria Teoria do Jornalismo e seus pensadores se debruçam

notícias sérias.

sobre a crescente gama de formatos híbridos relacionados ao jornalismo, produtos

Vale lembrar, entretanto, que esta é uma falsa questão. Como bem pontuou

ainda novos inclusive para o público consumidor. Em que medida isso pode ser

Aguiar (2008), recuperando teóricos tão diversos quanto Altheide, Amaral ou Medina,

aplicado a narrativas como Inside the Favelas ou Inside the Maré é uma questão que

a capacidade de entretenimento se constitui numa fundamental valor-notícia e

ainda está para ser respondida, mas o fato de a publicação ter sido assumida por um

inclusive numa das quatro funções da imprensa, junto à política, econômica-social e

portal sediado na Holanda talvez seja indicial de uma resposta pouco otimista.

educativa (não estariam, aliás, estas quatro funções reunidas em publicações híbridas

Lembremos que a questão da hibridização que envolve o jornalismo está quase que

como as duas aqui em foco?). De mais a mais a própria consolidação do padrão de

automática – e equivocadamente – presa à noção de infotenimento, neologismo criado

jornalismo como produtor de uma nova mercadoria – a informação 5 – busca um

a partir da fusão entre as expressões “informação” e “entretenimento” e que parece vir

público ampliado e, assim, abre espaços cada vez maiores para a questão do

na contramão da mística em torno do jornalismo e sua função social. Como lembra

entretenimento, o que incluirá entre diversos outros aspectos a introdução das charges,

Wilson Gomes (2009, p. 70-71), o jornalismo como todas as instituições possui um

caricaturas e, posteriormente, os quadrinhos em suas páginas.

discurso cujo propósito é afirmar sua legitimidade social, tendo como mantra e

Para horror dos puristas, os processos de hibridização são irreversíveis e o

conceito nuclear uma suposta vocação “para servir, da maneira mais completa, ao

sucesso e reconhecimento de Palestina de Joe Sacco constituiu um marco a partir do

interesse público”, sugerindo assim sua importância vital na formação, proteção e

qual não há volta. Cabe, portanto, buscar uma melhor caracterização destas obras que

defesa da opinião pública. Mas o fato é que essa imprensa que nasce burguesa,

fazem um jornalismo relevante, ampliam públicos e, por que não?, também suprem a

iluminista e liberal tem suas contradições. Como diz Gomes (2009, p. 70), citando

necessidade de entretenimento. Muitos autores aceitam de bom grado o termo

McQuail:

“jornalismo em quadrinhos” e tratam destas obras dentro dos marcos referenciais do O importante é assegurar que o jornalismo não deve ser concebido como um ramo de negócios ou de serviços industriais quaisquer, pois “comporta certas tarefas essenciais para o mais amplo benefício da sociedade, especialmente no que respeita à vida cultural e política”.

jornalismo. Roberto Santos e Deise Cavignato (2013) chamam a atenção para a renovação da linguagem jornalística no JHQ, sugerindo que o mesmo se apropria de

O discurso de autolegitimação da imprensa como watchdog – o cão de guarda do “interesse público” – naturalmente entra em contradição com a crescente incorporação do infotenimento como estratégia para a ampliação das audiências. Assim, autores como Kurtz (apud AGUIAR, 2008) vão falar de um “jornalismo cor-

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Aliás, a passagem do jornalismo de opinião para o jornalismo de informação vai propiciar a criação de novos formatos jornalísticos como a entrevista – que se torna comum a partir de 1870 – e a reportagem, principal gênero que marca a hibridização do sempre nobre jornalismo com as histórias em quadrinhos, mídia que ainda sofre um preconceito por parte dos meios intelectuais e acadêmicos (e mesmo do jornalístico “de referência”).

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elementos literários numa clara mostra de hibridismo entre os discursos literários e

acabou aparecendo na lista dos mais vendidos da New York Times Bestseller List na

jornalísticos.

categoria de ficção.

Iuri Barbosa Gomes (2009) sustenta que o jornalismo em quadrinhos já é visto

Mas Souza Júnior (2009), ao refletir sobre a linguagem dos quadrinhos e o

e reconhecido como uma vertente jornalística inclusive pela grande mídia. Em que

jornalismo, chama a atenção para um aspecto que nem sempre é notado pelos autores

pese a obra de Joe Sacco ser mais reverenciada e conhecida por parte do público, o

que tomam a expressão “jornalismo em quadrinhos” sem maiores questionamentos ou

autor sustenta que em países como Itália e França a aceitação deste gênero híbrido é

rigor conceitual. O autor faz notar a diferença entre obras aparentemente similares do

bem mais visível, citando como exemplo a “história de investigação em quadrinhos”

híbrido, questionando a capacidade de todas em conjugar de forma efetiva os campos

que o jornalista francês Philippe Cohen realizou acerca do presidente francês Nicolas

do jornalismo e dos quadrinhos. Conforme suas palavras:

Sarkozy. Gomes (2009) ainda nota que numa época de grande rapidez provocada

A falta de clareza teórica acerca da linguagem dos quadrinhos permite que, em análises superficiais e descontextualizadas, denomine-se a reportagem em quadrinhos de Sacco como um novo gênero ou ainda com esse conceito amplo de “jornalismo em quadrinhos”. A percepção dos quadrinhos como uma mídia e forma artística autônoma nos permite inferir que a introdução da prática jornalística não cria novos gêneros e, ainda menos, uma nova forma de expressão. As HQ’s simplesmente conseguem comportar alguns gêneros tradicionais do jornalismo impresso (reportagem, coluna e resenha, até o momento) adaptando-os à nova mídia e utilizando-se de sua linguagem e potencialidades. Um caso análogo ao que acontece com o audiovisual. (SOUZA JÚNIOR, 2009, p.3)

pelas tecnologias de comunicação e informação e que interferem nas práticas da imprensa, o JHQ se apresenta como um produto jornalístico lento, com ritmo próprio, propiciando justamente a sugestão de uma pausa na fruição das imagens. No entanto, Souza Júnior (2009) faz notar que a expressão JHQ abarca todas as manifestações onde há aproximação entre o jornalismo e quadrinhos, incluindo gêneros como a resenha, a coluna e o editorial (cujas experiências nem sempre exitosas já foram estudadas no campo da comunicação), para além de sua versão mais bem-sucedida, a reportagem. Frente a esta variedade de subgêneros, alguns autores vão preferir a expressão “reportagem em quadrinhos” em detrimento do termo mais genérico “jornalismo em quadrinhos”, especialmente diante de produções clássicas e fundantes como as de Joe Sacco. Já Antônio Dutra (2003), ao refletir sobre os quadrinhos de não-ficção, destaca a dificuldade do formato em se descolar de sua característica seminal – ligada ao

Ou seja, há muitos formatos jornalísticos que encontraram nos quadrinhos uma opção híbrida, mas nem todas as publicações hoje saudadas como “jornalismo em quadrinhos” ou “reportagem em quadrinhos” mereceriam este nome. Tendo em vista esse breve apanhado sobre jornalismo e HQs, a próxima seção enfoca duas reportagens em Jornalismo em Quadrinhos em favelas cariocas. A outra realidade das favelas cariocas no Jornalismo em Quadrinhos

universo ficcional – mesmo diante de uma ampla produção de documentários em quadrinhos, quadrinhos autobiográficos, quadrinhos educativos e cartilhas em quadrinhos, além de seus híbridos jornalísticos como colunas de revistas, ensaios,

Com o propósito de desmistificar a Ocupação do Morro do Alemão 6, o jornalista Augusto Paim e o ilustrador MauMau 7

publicaram em 2011 duas

prefácios e editoriais. Lembremos que as HQs comerciais são centradas em histórias infantis, de aventura, ficção ou de heróis e durante décadas foram vistas como um gênero menor, típico da Indústria Cultural ou da Cultura de Massa, voltado para públicos infantis – ou infantilizados. Dutra (2003) sustenta que as HQ não ficcionais têm dificuldades para assegurar seu espaço e lembra que Maus, embora centrado na biografia do pai de Spiegelman e tendo recebido um Pulitzer especial em 1992,

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A Ocupação do Morro do Alemão, complexo de favelas localizado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 2010, é o nome dado à ação conduzida por integrantes da polícia militar, civil e as Forças Armadas com o propósito de pôr fim àquele que era considerado o maior ponto de tráfico de drogas da região. Esta operação faz parte de um projeto ambicioso da Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro que visa à “pacificação” das favelas iniciado em 2008. O ponto alto da grandiosa e midiática Ocupação do Morro do Alemão culminou com o hasteamento das bandeiras do Brasil e do estado do Rio de Janeiro no alto de teleférico do Morro do Alemão. Tal gesto simbolizava a retomada daquela área pelo aparato de Estado. No ano seguinte uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) seria ali instalada.

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reportagens em quadrinhos Inside the Favelas (em tradução livre: Dentro da favelas)

deixa claro o propósito de apresentar uma visão distinta daquela que a mídia tem

e Inside the Maré (em tradução livre: Dentro da Maré) no portal internacional

retratado: a guerra entre os “bons” policiais e “maus” traficantes de drogas. Tal ponto

Cartoon Movement 8, sediado na Holanda e que reúne cartuns e reportagens em

de vista sugere que a população teria celebrado sua “libertação” diante da presença

quadrinhos.

ostensiva do aparato policial. Na verdade, argumentam os autores da reportagem, o

Segundo Paim, o objetivo era oferecer ao leitor uma visão ampla sobre como vivem os moradores das favelas e dos problemas por eles enfrentados. Ao contrário

foco de tais iniciativas seria preparar a capital carioca para sediar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016.

do que reza qualquer manual de redação, o jornalista entrevistou apenas moradores.

Figura 4 – Inside the Favelas

Não entrevistei policiais. A visão da polícia já é muito mostrada e também não falei com ninguém ligado ao tráfico porque é uma situação muito delicada. Queria mesmo saber como é viver na favela para aqueles moradores. Encontrei fontes que queriam fazer propaganda, aqueles ligados ao turismo, o desconfiado que não queria falar muito. Rendeu uma reportagem bem diversificada (apud CARVALHO, 2011).

Para escrever o roteiro para os quadrinhos, Paim menciona ter usado técnicas à Truman Capote (autor do livro reportagem A sangue frio de 1966). “Todos os personagens têm nome, endereço, idade e são reais. Na hora da entrevista, eu escrevi o mínimo possível, prestei bastante atenção e sequer levei gravador. Em casa, na hora de escrever, eu usei a memória”, finaliza (apud CHAVES, 2011). Esta não foi a primeira reportagem de Paim nas favelas cariocas, diferentemente do cartunista Maumau cuja estréia se deu neste tipo de produção. O jornalista e o ilustrador estiveram em várias favelas no período de uma semana. Na visão de Paim, o Rio de Janeiro retratado em quadrinhos é mais realista. “Mostramos [que] o dia a dia das favelas cariocas é muito mais próximo do Tropa de Elite 1 e 2 [filmes dirigidos pelo cineasta brasileiro José Padilha] do que da polícia como ‘salvadora’, como é mostrado na TV” (apud CHAVES, 2011). Predominantemente nas cores preto e branco, Inside the Favelas (fig. 4) trata de aspectos relacionados à vida nas favelas a partir do processo de “pacificação”. A primeira sequência de quadros em que aparecem um traficante de drogas, um policial Fonte: Cartoon Move 9

e um cinegrafista – cada um empunhando seu respectivo instrumento de trabalho – já 7

Augusto Paim é jornalista e tradutor de graphic novels escritas em alemão para o português. O ilustrador MauMau editou a revista Adeus, Tia Chica juntamente com outros ilustradores, obra que concorreu, na categoria publicação independente, em 2010, ao HQMix, maior prêmio no gênero quadrinhos no Brasil. 8 Portal colaborativo que reúne cartuns, charges e reportagens em quadrinhos produzidos por profissionais de vários países. A intenção é possibilitar a esses profissionais um espaço de publicação fora dos grandes veículos de comunicação.

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Após essa sequência inicial, o quadro seguinte ocupa toda a extensão da página e nele vemos uma repórter de tevê agachada, dois policiais armados, uma mulher acompanhada de um menino, fachadas de casas atingidas por balas e um 9

Fonte: Cartoon Move. Disponível em: <cartoonmovement.com> Acesso em 20 setembro 2016.

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helicóptero sobrevoando o local. Na parte inferior do quadro o título em vermelho da

Figura 5 Inside the Favela

obra. Inside the favelas não se organiza sob uma narrativa linear, tampouco trata de única favela. Dessa forma, os grupamentos de quadros, embora possuam relativa autonomia, podem ser vistas como retrancas 10 que compõem a reportagem. Os recuos temporais são acionados a fim de expor ao leitor, que não conhece tais lugares e suas peculiaridades, não só as informações necessárias, como também uma cronologia de acontecimentos importantes e suas consequências. Esses esclarecimentos provêm das entrevistas realizadas com os moradores, os quais são bastante heterogêneos entre si: há, por exemplo, fotógrafos, guias turísticos, líderes comunitários, residentes estrangeiros, universitários. Com esta pauta 11, a reportagem nos conduz a um cotidiano particular no qual há violência e insegurança – embora tais condições não se façam presentes o tempo todo. Somos informados sobre a complexa dinâmica que envolve as relações entre traficantes (e as facções às quais pertencem), policiais (e os policiais corruptos), milícias (constituídas por ex-policiais que cobram pelos serviços que oferecem aos moradores, supostamente protegendo-os dos traficantes) e os próprios moradores. A imagem que sintetiza a difícil comparação das vantagens e desvantagens da “pacificação” das “comunidades” 12 cariocas (Figura 5) é possivelmente a mais impactante da reportagem. Ela é uma das poucas nas quais a cor vermelha se faz Fonte: cartoonmovement.com

presente e de forma muito intensa, acentuando sua dimensão simbólica, uma vez que se vincula ao sangue derramado nesta guerra. Temos a seguinte composição: à esquerda da página, as vantagens da “pacificação” estão sob um fundo branco, à direta, as desvantagens aparecem sob um fundo preto e sobre estes dois fundos o contorno do mapa da cidade do Rio de Janeiro em tons avermelhados, mais claros de um lado, mais escuros de outro.

É possível notarmos na composição dessa reportagem uma mistura de recursos estéticos. Chama a atenção tanto as silhuetas dos personagens quanto das casas que são vazadas e preenchidas. Os quadrinhos trazem figuras, ora de estilo expressionistas com o uso de caricaturas, ora de tipo realista com passagens suaves de luz e sombra, possibilitando que os volumes fiquem definidos. A paisagem das favelas remete à estética do filme noir 13, na qual se destaca a perspectiva forçada dos planos.

10

Retranca “é a palavra que identifica um texto. ‘Samba” pode ser uma retranca que identifica um texto sobre as escolas de samba. O ideal é que a retranca tenha uma só palavra” (GLOSSÁRIO...). 11 Pauta “é uma ordem de serviço transmitida pelos chefes de reportagem. A pauta normalmente indica a pessoa que deve ser entrevistada, local, horário e até mesmo o tamanho da reportagem que deve ser produzida. A pauta também deve indicar os temas principais que devem ser abordados no texto” (GLOSSÁRIO...). 12 Observamos que este termo não é usado pelos autores das duas reportagens. No entanto, a palavra “comunidade” é empregada notadamente pela mídia para se referir às favelas. Ver o site Agência de Notícias da Favela.

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13

Noir é um estilo estético com origens no Expressionismo Alemão, que em Hollywood ganhou a conotação (dada pelos críticos franceses) para filmes que se referiam ao submundo sombrio e triste do crime e da corrupção (KEMP, 2011).

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Figura 6 Inside the Maré

Embora a reportagem mencione situações de violência e insegurança geradas pelo tráfico de drogas, como em Inside the Favelas, estas condições não resumem o cotidiano dessas pessoas, como sugere um morador: “Por favor, olhe ao redor e me responda: quantas pessoas agora estão apenas trabalhando ou fazendo suas coisas em uma tarde normal de sábado?” À parte a constatação in loco dessa incerteza, a reportagem nos fornece uma breve biografia de Jorge Negão, controvertido traficante local, de modo a assinalar os limites nem sempre claros entre o “bem” e o “mal” nas favelas. No “tempo de Jorge Negão”, recordam os moradores, havia uma moralidade relacionada ao consumo de drogas: por exemplo, os traficantes não fumavam maconha em lugares públicos, diferentemente do que ocorre nos dias de hoje. Além disso, ele promovia a Folia de Reis 14, iniciativa até hoje lembrada, apesar de sua morte ter ocorrido há bastante tempo. A ambiguidade identificada nos relatos sobre Jorge é realçada pelo ponto de vista de um morador quando expõe o raciocínio raso dos policiais acerca dos residentes e traficantes: se os primeiros forem vistos conversando com os segundos será que necessariamente estão conectados com o tráfico? Será que eles não têm direito de falar com amigos que por ventura estejam no tráfico? E se houver o intuito de tentar dissuadi-los a abandonar a atividade criminosa essa conexão não seria boa? Há um contraste nos aspectos visuais desta reportagem em relação à anterior,

Fonte: cartoonmovement.com

Em Inside the Maré, a narrativa está centrada em três incursões a favelas que compõem o Complexo da Maré. Nesta reportagem a sensação de insegurança rondou seus autores durante o período que lá estiveram e se apresenta logo ao início do texto. O temor de Paim e MauMau está evidenciado sobretudo na terceira vez em que estiveram no Complexo. À conversa telefônica entreouvida pelo cartunista no ônibus de que um possível traficante “mandava” prestar atenção em dois indivíduos que ali chegavam somam-se alguns acontecimentos corriqueiros, mas que naquela

contudo, uma exceção ao longo da obra. O tratamento pictórico é realçado por manchas aquareladas de cinzas que ultrapassam as linhas do contorno das figuras, sejam personagens ou cenário, criando contrastes de luzes e sombra. Esse tratamento pictórico também pode ser classificado como expressionista denotando certa espontaneidade, como uma anotação rápida – o que corrobora a sensação de insegurança presente destacada por seus autores. Identificamos tanto em Inside the Favelas quanto Inside the Maré a presença de uma tipografia Pop 15 em seus 14

amostra do sentimento de incerteza que acompanha o dia a dia dos moradores.

Manifestação cultural praticada pelos adeptos e simpatizantes católicos com o propósito de rememorar a atitude dos Três Reis Magos que empreenderam longa jornada em busca do menino Jesus a fim de prestar-lhe homenagens e dar-lhe presentes (WIKIPEDIA). 15 Esta tipografia foi reproduzida durante a Arte Pop por Roy Lichtenstein em seus quadros, que se apropriou das figuras que “estouravam” nos quadrinhos (FARTHING, 2011).

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circunstância sugerem que algo sério poderia acontecer: uma operação de pacificação ou um tiroteio entre facções rivais ou facções e policiais. Tal situação oferece uma

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embora também seja em preto e branco. A presença da cor vermelha no título é,

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respectivos títulos cuja forma impactante com contorno preto é preenchida mediante

(2009). Dessa forma a reportagem não apenas quadriniza os relatos acerca dos

cores fortes chapadas e circundadas por uma moldura estrelada.

acontecimentos narrados pelos entrevistados, mas também aqueles protagonizados pelos autores das duas reportagens, Augusto Paim e MauMau, como notamos

Uma análise possível

principalmente em Inside the Maré. Tal procedimento confere credibilidade jornalística àquilo que é narrado, uma vez que se trata de uma narrativa calcada no

Inside the Favelas e Inside the Maré mostram claramente sua filiação ao

factual. Assim, em lugar de termos uma mera “reconstituição dramatizada” dos

grande ícone do que se convencionou chamar de “entrevista em quadrinhos”. As

depoimentos obtidos, nas palavras de Souza Júnior (2009), a experiência do autor na

favelas cariocas são o palco de um tema que ocupa lugar central na agenda da mídia

apuração dos fatos é explicitada no próprio processo de investigação jornalística que

brasileira sobre a violência urbana. Do jornalista Augusto Paim e do ilustrador

foi realizado. De maneira similar àquela efetivada por Joe Sacco, nas duas obras em

MauMau, guardadas as devidas proporções, poderíamos dizer o que foi dito acerca da

foco há duas narrativas paralelas: uma composta por micronarrativas decorrentes dos

obra do autor de Palestina:

depoimentos e outra pela metanarrativa da própria construção da reportagem. É em

Joe Sacco prova que não só é possível, como, em certos aspectos, sua reportagem em quadrinhos é bem mais eficaz do que o tradicional texto jornalístico ou mesmo histórico/acadêmico. E este é o ponto mais fascinante: com muita ousadia, Sacco demonstrou a potência de uma linguagem que, aparentemente, é inadequada para tratar de um tema tão grandioso e terrível como é o conflito na Palestina. Resta explicar a fonte dessa potência: de onde a história em quadrinhos extrai a legitimidade para reivindicar para si o estatuto e a dignidade de reportagem jornalística (ARBEX, 2000, p.8)

O jornalismo em quadrinhos em Inside the Favelas e Inside the Maré igualmente trata – com uma “linguagem aparentemente inadequada” – de um tema “grandioso e terrível”: a saber, o(s) conflitos que, diariamente, envolvem as populações das favelas – ou “comunidades”, como a imprensa brasileira prefere chamar, há alguns anos. Vale notar outra questão fundamental, relacionada à eficácia do formato híbrido JHQ diante, sobretudo, de sua matriz jornalística. Mas a comparação entre o trabalho de Sacco com as duas obras de Paim e MauMau encontram limites dignos de nota. Lembremos que o jornalista Paim não entrevistou policiais (cuja visão já é “muito mostrada” pela mídia tradicional) e, tampouco, traficantes (pelas implicações relativas à segurança e certas considerações legais ou morais, como se pode supor). Os autores queriam saber, afinal, como os moradores enfrentavam a realidade de viver na favela, em meio a tantos grupos em disputa. A utilização de entrevista e a introdução do autor na reportagem apoiam-se na

vista da explicitação de todos os procedimentos para a realização que tais obras, que os autores, além de perseguir o paradigma da reportagem exemplar, conseguem alcançar o status de prática jornalística. No que tange à representação pictográfica esses dois trabalhos – seguindo a obra referencial de Sacco – apresentam certas características do quadrinho underground norte-americano – o Comix – a começar pela valorização das cores preto e branco, a qual se soma o uso de deformação da figura humana e um certo estilo “sujo”. Conforme assinala Souza Júnior (2009), tal estilo opõe claramente à estética clean dos quadrinhos de consumo norte-americanos (Comics) e propicia uma identidade autoral à obra. Além disso, em lugar de se ter uma narrativa amparada no estilo folhetinesco, busca-se uma abordagem mais realista e ao mesmo tempo experimental. E como o criador do que se convencionou chamar de reportagem em quadrinhos, Paim e MauMau escolhem claramente um lado da realidade em foco e uma angulação para sua reportagem em quadrinhos. E, neste sentido, são mais radicais que Sacco, pois suas fontes – e, portanto, principais protagonistas – visam mostrar como é afinal viver numa favela. Os autores também obedecem a procedimentos jornalísticos, mas aqui talvez tenhamos os principais pontos de

proposta de jornalismo em quadrinhos desenvolvida por Joe Sacco, antecipada pela estrutura narrativa de Art Spiegelman ao produzir Maus, como aponta Souza Junior

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ruptura. Ainda que seja charmoso a referência ao New Journalism 16 e as técnicas à

jornalismo oferecido pela chamada grande mídia, o autor de Palestina explicitou o

Truman Capote, a opção de Paim por privilegiar a memória, não usar gravador e

processo de investigação jornalística ao retratar a atividade de aferição da informação.

escrever o mínimo possível escandalizaria qualquer seguidor dos muitos Manuais de

Instaurando uma metanarrativa que agrupa os variados depoimentos, a inserção do

Redação e Estilo que determinam a conduta ideal na prática jornalística dos principais

autor/jornalista/quadrinista em seu relato funcionaria com uma espécie de salvo-

veículos da imprensa. Ana Negri (2003) faz um apanhado interessante das técnicas da

conduto, “já que garante que o autor tentou reproduzir o paradigma de reportagem

grande reportagem passíveis de uso no híbrido jornalismo em quadrinhos inaugurado

exemplar, checando com diversas pessoas as mesmas informações e duvidando

pelo pai do gênero, Joe Sacco, cujo panorama pode ser aplicado às obras sobre a

sempre dos relatos apresentados”, como disse Souza Júnior (2009, p.13), não sem um

realidade cotidiana da vida nas favelas brasileiras em análise.

tom romântico acerca do que seria uma conduta jornalisticamente ideal. Aqui, como

Quanto à formulação de pauta e a captação das informações, é notável o grau de liberdade que Paim e MauMau exerceram em suas narrativas, ainda que a opção

já foi sugerido, as obras de Paim e MauMau não alcançariam, numa análise mais ortodoxa, o mesmo rigor já demonstrado pelo gênero híbrido JHQ.

por privilegiar as vozes dos moradores possa destoar da formulação mais ortodoxa do

Restaria notar que, ao abordar o cotidiano muitas vezes violento das favelas

jornalismo. Quanto à angulação, a JHQ mostrou uma rara possibilidade de ignorar as

cariocas, Inside the Favelas e Inside the Maré podem ser vistos como uma resposta

restrições da linha editorial dos veículos que costumam engessar mesmo os trabalhos

abertamente contrária às concepções de um jornalismo objetivo e imparcial, em busca

de reportagem mais dedicados. Os autores também tiveram liberdade na escolha do

de uma verdade supostamente absoluta ou isenta de contradições. Ambas as

estilo de divulgação das informações coletadas. Em relação à entrevista como

reportagens desvelam as figuras de um jornalista-autor e de um cartunista, que faz as

elemento central na confecção da reportagem, notam-se dois autores em campo,

vezes de fotógrafo, que se colocam claramente num lugar de luta política e/ou

tomando notas mínimas e privilegiando a versão dos moradores – em tensão clara

ideológica – ou pelo menos de alguém que assume uma posição clara – abandonando

com os preceitos não apenas do jornalismo tradicional, mas do próprio modelo de

o confortável (ou alienado) papel do “mediador desinteressado” tão bem

Palestina. Inside the Favelas e Inside the Maré dão conta da exigência de uma visão

caracterizados por Aguiar (2008), Traquina (2005) e Gomes (2009) e que se alinha,

pluridimensional do fato especificamente no sentido de que o relato não se configura

historicamente, à Teoria do Espelho.

como a simples oposição entre “mocinhos e bandidos”, como as referências ao respeitado (e até saudoso) traficante Jorge Negão evidenciam. Os quadrinhos ainda

Considerações Finais

conseguem evidente sucesso nas questões da humanização do relato e na tentativa de contextualização dos fatos, que o formato noticioso é incapaz de oferecer ao público.

Diante das poucas iniciativas de se avaliar criticamente o Jornalismo em

Conforme Souza Júnior (2009), Sacco utilizou-se de vários expedientes para

Quadrinhos, como uma forma de hibridização, este artigo buscou tecer algumas

conferir credibilidade jornalística a sua atividade, entre as quais a já citada inserção

considerações sobre a prática jornalística neste suporte midiático, bem como sua

do autor como uma das personagens da reportagem realizada. Numa lógica que não

pertinência para abordar temas importantes da vida social, como é o caso das favelas

condiz frequentemente – e infelizmente – com o padrão mais tradicional do

em nosso país nas obras Inside the Favelas e Inside the Maré. Para muitas pessoas, as HQs, de maneira geral, associam humor e aventura,

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Este termo surgiu na imprensa dos Estados Unidos, na década de 1960, e tem como principais expoentes Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer e Truman Capote. Sua característica principal é misturar a narrativa jornalística com a literária, sendo classificado como romance de não-ficção (GLOSSÁRIO...).

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apresentando frequentemente um caráter infantil. Todavia sua trajetória e diversificação temática, narrativa e de personagens no decorrer do século XX deixa Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 68 – 92, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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claro o quanto esse produto da cultura de massa se solidificou e que na esteira desse processo valeu-se do espaço conquistado nos jornais impressos para se tornar conhecido e apreciado pelo grande público. Entendemos as HQs como uma mídia dotada de linguagem própria e que, portanto, mantém aproximações estreitas com o cinema e o audiovisual e também com o jornalismo em seu formato de reportagem. Todavia nem toda manifestação em quadrinhos que se apresenta como jornalística pode ser aceita como tal. Há requisitos que precisam ser atendidos, tais como: o objetivo de elaborar um produto informativo que esteja relacionado à realidade de uma forma particular, no qual se façam presentes marcas temporais específicas e obviamente as técnicas da grande reportagem, como a formulação de pauta, captação das informações, humanização do relato, etc. – ainda que o emprego destas técnicas nesta modalidade possa por vezes

FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte: os movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. FURTADO, Fred. Notícia em quadrinhos. Ciência Hoje. Disponível em <http://www.cienciahoje.org.br/noticia/v/ler/id/4111/n/noticia_em_quadrinhos/Post_p age/9>. Acesso em 10 de julho de 2016. GLOSSÁRIO de Jornalismo. Disponível em <www.neteducação.com.br> Acesso em 15 de julho de 2016. GOMES, Wilson. Jornalismo, Fatos e Interesses: ensaios de Teoria do Jornalismo. Florianópolis: Insular, 2009.

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Um dia uma morte: uma graphic novel lírico-brasileira de realismo fantástico Gazy Andraus 1

Resumo Este artigo trata da graphic novel "Um dia uma Morte", obra autoral em forma de história em quadrinhos de Fabiano Barroso e Piero Bagnariol, cuja trama se passa numa favela brasileira. O roteiro lírico, que mescla realismo com fantasia, expõe um grupo de jovens residentes da favela ao traçarem um plano de resgate a um tesouro cujo mapa é encontrado no corpo de "Sô Antão", da mesma favela que Farofa (protagonista da HQ), quando este apronta o corpo de seu ex-conhecido, no IML. O tom fantástico fica por conta dos fantasmas que aparecem e dialogam com outro personagem, Luís, enquanto ambos e mais dois amigos buscam realizar o plano para a obtenção do baú apontado pelo mapa. Em meio a tais ações, transparece nessa arte quadrinhística de tons suaves, a favela, a violência, a crueza da vida deste tipo de sítio social, demonstrando que em meio a tais fatalidades, permanece a beleza da amizade, do companheirismo e da esperança numa vida que pulsa. Palavras-chave História em Quadrinhos; HQ; Graphic Novel; favela; realismo-fantástico.

Introdução Uma revista, uma Graphic Novel As Histórias em Quadrinhos (HQs) de longe são dos veículos de expressão, comunicação e artes menos conhecidos conquanto à sua estrutura e linguagem, e potencial. De toda maneira, a partir das décadas de 1970 começaram a melhor ser desvendados por teóricos do mundo todo, e atualmente uma gama de pesquisadores brasileiros os fez serem cada vez melhor reconhecidos, sendo então utilizados como ferramenta de educação em diversas áreas, mesmo porque são interdisciplinares. De toda maneira, o fator principal das HQs são as imagens desenhadas que se 1

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Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, professor de artes no Centro Universitário Metropolitano de São Paulo (FIG-UNIMESP), Guarulhos/SP, Brasil. E-mail: yzagandraus@gmail.com

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 93 – 110, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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sequencializam e se locupletam formando intrínseca qualidade entre desenhos e textos

chegando à area de educação com obras didáticas. Há uma classificação possível

(quando inseridos) numa independente forma de linguagem autônoma e ainda plena

também que distingue as HQs de entretenimento e as de divulgação científica (em

de descobertas conquanto a seu potencial. Ademais, a cada página ou duas de HQ

que, embora ambas sirvam didaticamente, estas últimas mais especificamente a isso,

numa revista ou publicação gráfica se compreende um todo indiviso, que pode ser

já que elaboradas com esse objetivo):

visualizado factualmente como um pedaço de uma obra de arte, que se completa, à

Assim, tais como os livros, que existem em forma de caráter ficcional e também científico, é possível categorizar as histórias em quadrinhos em dois grupos: 1) De entretenimento: quando seus roteiros trazem, em primeira instância, ficcionalidades autorais, do artista para o leitor, sem a prioridade do segundo item, porém imbuídas de caráter informacional – uma vez que as próprias imagens desenhadas são também “informação”. 2) De divulgação informacional: quando seus roteiros trazem como prioridade fundamental a divulgação de temas científicos propostos; (ANDRAUS, 2006, p. 215)

medida que a leitura avança, contemplando-se suas páginas, e por conseguinte, o tomo inteiro. O potencial deflagrado quando os olhos perscrutam as imagens, não é endereçado apenas às crianças ou aos adolescentes, como é explicado aqui, já que os desenhos ativam o hemisfério direito, que é o criativo, o intuitivo; e as histórias em quadrinhos são parte de um processo expressivo que caminha desde a préhistória, mas também desde que o ser humano começa a aprender a ver, é categórico que se passe a utilizá-las na educação. E não somente no processo educacional básico, já que, por ser a mente neuroplástica, o adulto está também sujeito às influências de tudo o que existe ou é criado e elaborado. Dessa forma, uma educação universitária, que não mais privilegie a informação estritamente racional, necessita de recursos outros, que podem ser por meio da utilização, além dos livros, das histórias em quadrinhos, já que estas não existem apenas ao público infantil. (ANDRAUS, 2006, p 269)

É assim que as Histórias em Quadrinhos se elevaram a patamares nunca antes alcançados, no Brasil, a partir do início da década de 2000, principalmente, até a atualidade. De gibis (revistas simples) em bancas, ganharam status para álbuns, ou graphic novels 2, edições mais caprichadas no conteúdo e para serem guardadas como

Neste caso, a obra analisada seria de entretenimento, mas como todas as histórias em quadrinhos, e tendo um caráter interdisciplinar serviria claramente a outros propósitos, como sociologia, geografia, língua portuguesa, arte, dentre outras disciplinas, ajudando a sensibilizar melhor o ser humano que a lê, pois estimula a inteligência sistêmica: racional e intuitivo/sensível (ANDRAUS, 2006). Assim, o mais importante é deslindar sua trama, roteiro e arte e explanar per si o potencial imagético e sensível que tal obra propõe ao leitor, como se verá. Uma realidade, uma fantasia

itens de coleção, mas acima de tudo, obras autorais, já que A novela gráfica contemporânea representa, portanto, e mais do que qualquer outra coisa, essa consciência de liberdade do autor, um movimento - seguindo Campbell - que estabelece uma tradição irmã das demais, porém distinta. Falemos claramente: nem melhor, nem pior, apenas diferente. Não é, por conseguinte, um formato nem um gênero, nem tampouco um conteúdo. Não é necessário desenhar duzentas páginas para fazer uma novela gráfica, assim como o fato de fazer um gibi de duzentas páginas não o converte numa novela gráfica. (GARCÍA, 2012, p. 305)

Há ainda, tal qual na literatura (embora as HQs não sejam literatura, pois têm

Os autores, Bagnariol 3 e Barroso (roteiro), foram editores da revista mineira Graffiti 76% Quadrinhos 4 (Fig. 1), dedicada "à publicação, difusão e experimentação das histórias em quadrinhos" (lombada da edição), e com "Um dia uma morte" inauguraram a "Coleção 100% quadrinhos", como um formato Graphic Novel para suportar histórias maiores exclusivamente completas de HQ, já que na revista, publicavam HQs mais curtas de diversos autores (e ilustrações e textos, fazendo jus ao título dos setenta e seis porcento de quadrinhos na revista):

sua própria estrutura de linguagem que é pertinente a elas e única), variados temas, para todos os públicos e idades, que abordam desde humor, passando por ficção, ficção-científica, super-heróis, romances, biografias e filosofias dentre outros, 2

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Pode-se traduzir como novelas gráficas, ou então, romances gráficos.

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Barroso leciona em escolas formais e com projetos sociais, atuando sempre na área de desenho e de quadrinhos. Ano passado, junto com Bagnariol lançaram uma revista chamada Skazki - microantologia do conto russo. 4 A revista findou em 2013 e a Coleção de Graphic Novel 100% Quadrinhos teve mais cinco publicações, dentre as quais O relógio Insano de Guazzelli, que ganhou o prêmio HQMIX em 2007.

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Fig. 01: Capa da revista Graffiti 76% Quadrinhos

Pedreira Prado Lopes, aqui de BH" 5, incluindo os desenhos que, segundo o autor, foram inspirados nessa favela. A arte de Bagnariol contempla a linha clara européia com desenhos "soltos" e traços realistas, com pinturas aquareladas, lembrando a técnica da escola franco-belga européia (cujos exemplos aparecem em HQs como as de Tim-tim, Asterix e Moebius além de outros). Abaixo, na figura 02, a frase que abre o álbum, de Jorge Luis Borges: Fig. 02: Na página 4 à esquerda, abertura com frase de J. L. Borges.

Fonte: Graffiti 76% Quadrinhos Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abril de 2007, ps. 4 e 5.

A HQ Um dia uma morte, lançada graças ao edital de Incentivo e Cultura de Belo horizonte/MG, é um trabalho poético, embora verse sobre situações típicas de áreas mais carentes de cidades, como uma favela. Não situa nomes de cidade e/ou Estado, mas denomina alguns locais, e, segundo Barroso "a inspiração veio da

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Entrevista de Barroso a esse autor por Facebook em 24/08/2016.

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O cerne desse trabalho é demonstrar que o tema se coaduna perfeitamente com o lirismo que os autores intentaram passar, já que o local retratado é passível de violência, mas não só, pois há personagens de todo o tipo, incluindo um que conversa com fantasmas (eis aí um ponto-chave da obra a ilustrar seu realismo fantasioso). O contexto, embora realista, traz elementos fantásticos que interagem, como os dois fantasmas de ex-moradores da favela que vez ou outra "conversam" com Luís, o

dia-a-dia violento (mas lírico ao mesmo tempo) da vida cotidiana na favela, e se (masaolírico ao tempo) mesmo da tempo) vida cotidiana na efavela, e se dia-a-diadia-a-dia violento violento (mas lírico mesmo vida da cotidiana na favela, se divide em capítulos: "Um", "Luís", "Três", "Farofa", "Sô Antão", "Seis", "Jaimelúcio divide em capítulos: "Um","Três", "Luís","Farofa", "Três", "Farofa", "Sô "Seis", Antão","Jaimelúcio "Seis", "Jaimelúcio divide em capítulos: "Um", "Luís", "Sô Antão", e Gilciclênio", "Oito" e "Epílogo". e Gilciclênio", e "Epílogo". e Gilciclênio", "Oito" e "Oito" "Epílogo". Figs. 03: Capa da Graphiq Novel Figs.da 03:Graphiq Capa daNovel Graphiq Novel Figs. 03: Capa

único que tem tal dom. Essa interação entre realidade e fantasia encontra eco na literatura 6 chamada Realismo Fantástico 7, em que são conhecidos grandes expoentes da américa latina, como Bioy Casares 8 e Jorge Luis Borges (Fig. 02), e outros como Franz Kafka e Edgar A. Poe. Todorov nos explica um pouco mais acerca do fantástico na literatura: Depois deste exame da função social do sobrenatural, voltemos para a literatura e observemos esta vez as funções do sobrenatural dentro da obra. Já respondemos uma vez esta pergunta: com exceção das alegorias, nas que o elemento sobrenatural trata de ilustrar com mais claridade uma idéia, distinguimos três funções. Uma função pragmática: sobrenatural comove, assusta ou simplesmente mantém em suspense ao leitor. Uma função semântica: o sobrenatural constitui sua própria manifestação, é uma auto-designação. Por fim, uma função sintática: o sobrenatural intervém, como dissemos, no desenvolvimento do relato. Esta terceira função está ligada, de maneira mais direta que as outras duas, à totalidade da obra literária; (TZVETAN, 2016, p. 84-85)

Acerca da terceira função, a vemos claramente na HQ Um dia uma morte (fig. 03), conforme se perceberá pela sinopse, a seguir. Sinopse A história gira em um provável "tesouro" indicado por um mapa encontrado no corpo de um idoso assassinado na favela. Um dos protagonistas, Farofa, trabalhando no IML, encontra no bolso do defunto um mapa, e, compartilhando-o aos amigos Luís, Jaimelúcio e Gilciclênio, resolve tentar desvendar a localização do tesouro que o mapa aponta. O roteiro de 88 páginas vai trabalhando com esta premissa, mostrando o 6

Ainda que as HQs tenham sua própria linguagem, não são literatura, mas como tal linguagem, possuem temas e gêneros tão ricos quanto, e pontos em comum, incluindo ao cinema. 7 Lembrando em muito, literaturas e filmes de realismos fantásticos, como os livros de Jorge Luis Borges e Franz Kafka, ou roteiros de novelas brasileiras como Saramandaia, escrita por Dias Gomes. 8 Há uma versão em quadrinhos, também graphic novel, adaptada por J.P. Mourey, sobre o livro A Invenção de Morel de Casares, lançado no Brasil em 2014 pela L&PM editores.

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Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abril de 2007, capa. Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abrilcapa. de 2007, capa. Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abril de 2007, Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 93 – 110, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Temático: Histórias dos10, Aglomerados em Quadrinhos. –ISSN 2447Revista Legenda Quadrinhos. Belo Edição Horizonte, Edição 10,1,Brasileiros vol. 5, –n.110, 1,contados p.1º93semestre/2018. – 110, 1º semestre/2018. RevistaDossiê Legenda Quadrinhos. Beloe Representações Horizonte, vol. 5, n. p. 93 ISSN NIQ 2447Núcleo de Ilustrações e Histórias Quadrinhos da Escolae de Design, vinculado ao Centro decontados Estudosem em Designem da Quadrinhos. Imagem 2638. Dossiê Temático:e Representações Histórias Representações dos Aglomerados Brasileiros contados NIQ – 2638. Dossiê Temático: dos Aglomerados Brasileiros Quadrinhos. NIQ – da UEMG. Disponível <https://legendaniquemg.wordpress.com/> Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos daDesign, Escola de Design,ao vinculado aoEstudos Centro de Design da Imagem Núcleo de Ilustrações eem: Quadrinhos da Escola de vinculado Centro de emEstudos Design em da Imagem UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/> da UEMG. da Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Aos capítulos enumerados, a narrativa está no tempo presente, enquanto que aos nomeados (e dedicados aos personagens), as narrativas mostram seus passados até chegar ao momento atual. São destacadas as particularidades das vidas de cada um

Fig: 04 e 05: Luís dialoga com o fantasma de seu avô, travando uma conversa filosófica.

dos personagens e reveladas ao leitor, desde seus passados até o momento presente enquanto se desenrola a história e a busca pelo tesouro com um plano arquitetado por "Farofa", o jovem a quem "Sô Antão" confia a busca pelo tesouro pós-morte. Lirismo e vidas (em mortes): Os quatro amigos Os aspectos mais transparentes desta graphic novel são os cuidados com que o autor e roteirista Barroso tece ao desfiar o desenrolar da trama, envolvendo os personagens. Nos capítulos apontados, percebe-se que Farofa era um recém-chegado sem emprego, que vai angariando amigos e que já trabalhou como pesquisador do IBOPE, posteriormente ingressando como funcionário do IML, com a ajuda de sua irmã que é enfermeira. Possui três amigos principais na favela, dentre os quais estão Luís, Jaimelúcio e Gilciclênio. Estes dois últimos, ao que o roteiro mostra, tinham um pai severo que os queria na linha trabalhando. Porém, Jaime entra no tráfico como entregador, ainda que à revelia do pai. Luís é o mais interessante de todos os

Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abril de 2007, ps. 20 e 21.

personagens, pois consegue ver e conversar com algumas pessoas mortas (almas penadas), e enquanto ele o faz pelas vielas do morro, as pessoas o vão tendo como um

Um ponto importante é o capítulo destinado a Farofa, em que, já trabalhando

maluco. No capítulo a ele destinado, mostra-se que desde a infância ele tem esse

no IML, auxilia na "operação" de retirada de órgãos de um defunto (fig. 06). Ao que

"dom" (ou maldição) e seu avô era seu interlocutor do além, tendo em alguns

parece na HQ, pela reação do personagem, essa atividade por ele auxiliada é ilegal e

momentos, diálogos filosóficos, como o que travou com o pai de seu pai, acerca da

feita um tanto à revelia, e mostra a questão da venda criminosa de órgãos, que são

vida e da morte (vide figs. 04 e 05). Muitas vezes, Luís pede conselhos aos espíritos e

"surrupiados" de algumas pessoas falecidas em IMLs pelo país, como o descrito nessa

em determinado momento de sua vida, seu progenitor é assassinado. Daí passa a

reportagem:

9

conversar com os fantasmas de seu pai e do assassino de seu genitor .

O Ministério Público de Belo Horizonte, em Minas Gerais, investiga a retirada ilegal de órgãos da estudante Thaís Braga, 21 anos, para a venda. De acordo com os responsáveis da exumação do corpo da jovem, existia serragem ao invés dos órgãos. (DIÁRIO DO GRANDE ABC, 17/12/2001)

9

No Brasil, esta questão e a maneira com que a HQ tece o tema dos fantasmas, aponta para uma semelhança à religião Espírita, embora o autor não a denomine, assim como deixa em aberto que esta favela poderia ser qualquer uma brasileira, apesar de nesse caso, ele ter afirmado que se baseou numa de Belo Horizonte/MG.

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Fig. 06: Farofa no IML, provavelmente sendo coagido a retirar um órgão do defunto (pág. à esquerda) e seu "trauma" psicológico (na página à direita).

Fig. 07: vista da favela e o mapa (repare-se o uso criativo do balonamento no segundo quadrinho, entremeado às linhas do mapa).

Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abril de 2007, ps. 42 e 43.

No mesmo capítulo, Farofa, pouco tempo depois e já recuperado, tem a tarefa de aprontar mais um corpo, que é do "Sô Antão" (o pai de sua ex-namorada, uma das três filhas do falecido), mostrando ao leitor que foi ali que encontrou o mapa (cujas cenas foram mostradas antes nas páginas iniciais da graphic novel). O plano de Farofa Para a elaboração do plano de resgate do tesouro, Farofa conta com os três amigos para conseguirem determinar onde este se localizaria. Graças ao mapa que aponta estar dentro da casa do "Zé Vesgo" (Fig. 07), outro personagem da HQ, Luís, é incumbido de conseguir dados específicos de como se divide o barraco de Vesgo, já que ele tinha certa familiaridade com o morador, pois sua mãe já fora amiga da mãe

Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abril de 2007, p. 12

dele.

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A história mostra que Luís vai obter os dados com minúcia, ajudado pelos

Fig. 08: a leitura da carta encontrada no baú.

fantasmas de seu pai e do assassino (que no além revela já terem feito as pazes), trazendo-lhe as informações de onde fica cada cômodo da casa de Vesgo. Com a localização, os quatro amigos seguem um plano de Farofa para desenterrarem o baú (tesouro) descrito na carta de Antão, enquanto farofa entretem Zé entrevistando-o à porta. Este plano, ao ocorrer, vai demonstrando ao leitor, numa sucessão dos capítulos já apontados na sinopse, como era a vida dos amigos, entremeado ao presente cotidiano da favela, enquanto vislumbram-se os passados de cada um dos personagens principais. Ao final, conseguem oter o baú, mas com uma baixa: Luís, que fica sem conseguir escapar da casa de Vesgo a tempo, morre assassinado por ele, enquanto os dois outros irmãos saem antes com o baú. A polícia chega e prende Zé Vesgo e sua mãe, Dona Zica, que se revela uma chefe de tráfico. Ao abrirem o baú, Farofa e os dois irmãos, Jaime e Gil, acham apenas alguns objetos antigos em lugar de um "tesouro", além de uma carta de Antão. Ela descreve que foi endereçada a Farofa, que surpreso junto aos outros, vai lendo-a e descobrindo que seu autor planejou cuidadosamente isso para que, quando Farofa encontrasse e resgatasse o baú, entendesse que o "tesouro" não é o material, mas sim, "uma sensação, uma impressão. Um sopro." (fig. 08). Na verdade, o tesouro a que "Sô Antão" se referia era o sonho, a oportunidade que não deve ser desperdiçada, tal qual essa dele de arriscar fornecer uma pista e contar com que Farofa (a quem depositou confiança e potencial) a encontrasse e seguisse até o final. Para Antão (cuja carta também revela que ele teve uma relação com Dona Zica, da qual resultou um quarto filho não reconhecido, que aparentemente seria Zé Vesgo), ambos, ele e Farofa arriscaram cada um à sua maneira, e era essa vontade que ele queria ver retomada no jovem Farofa, como uma redenção, um auxílio no empuxo cuja poética nessa HQ se reflete nesses simbolismos transformando os personagens da favela em algo mais, no paradoxo lírico de viverem em meio a atribulações e violências. Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abril de 2007, p. 86.

A Homenagem Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 93 – 110, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Um dado curioso nessa Graphiq Novel é a interessante homenagem que os

O que demonstrava que Sô Antão era culto e que guardara, provavelmente,

autores Barroso e Bagnariol prestam às histórias em quadrinhos, mais especificamente

exemplares de O Tico-Tico que lia na sua infância (já Careta era destinada ao público

às publicações antigas, quando os personagens, na página 85, ao abrirem o baú e

adulto).

retirarem algumas peças, se deparam, no quinto quadrinho da página (Fig. 09), com as revistas Careta - uma publicação ilustrada de charges e caricaturas que documentava

Considerações

a vida sócio-cultural do Rio de Janeiro, tendo circulado do início aos meados do século XX (NOGUEIRA, 2010) e O Tico-Tico - a primeira revista de histórias em

Nota-se que a HQ elaborada por Barroso (roteiro) e Bagnariol (arte) trazem

quadrinhos (mixadas a jogos e passatempos) publicada no Brasil desde 1905 até o

um forte lirismo a se contrapor com a rudeza da vida de uma favela brasileira. Mostra

início da década de 1960 (VERGUEIRO, 2005).

também que há pessoas comuns, mas com ideais, embora cada um tenha seus defeitos

Fig. 09: No quinto quadrinho, a homenagem às revistas Careta e O Tico-Tico.

(Antão era também um alcoólatra). Além disso, expõe mazelas e fatos, muitos deles ilegais (como a retirada de órgãos humanos sem a anuência de familiares do morto, e tráfico de drogas e violência), de certa forma corriqueiros em nosso país e mais ainda em espaços urbanos como as favelas. Com relação à arte, Bagnariol traz desenhos limpos, cujos traços finos e cores suaves expõem leveza ao tom dramático em alguns momentos, similar à linha clara européia de histórias em quadrinhos. Assim é que esta graphic novel traz um roteiro intricado, subdividido em capítulos, com uma organização temporal entremeada pelo passado que vai, a cada capítulo, levando ao presente, por um viés de narrativa histórica de cada personagem 10, tornando essa HQ rica de detalhes que se completam intercambiandose entre os requadros dos quadrinhos, as imagens e os textos. Ademais, o realismo contundente da narrativa é transformado em surreal, ou em realismo fantástico ao jogar com os fantasmas que dialogam a todo o instante com o personagem Luís. Esta é uma obra que, sem dúvida, poderia ser adaptada para filme ou literatura escrita (fazendo um caminho invertido das obras literárias que muitas vezes são tornadas em filmes ou em HQs). Segundo Barroso, há um roteiro para continuidade dessa HQ, que ele elaborou, com o título A casa da Porta Rosa, e que traz mais alguns elementos

Fonte: BARROSO; BAGNARIOL, abril de 2007, p. 85.

fantásticos relacionados à questão extraterrestre, mas que apesar do bom retorno 10

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Assemelhado ao roteiro de Alan moore em algumas de seus narrativas, como nas do Monstro do Pântano da editora DC Comics.

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midiático de Uma Vida, Uma Morte, ainda não despertou interesse dos editores brasileiros. Teço algumas razões para tal: quando Um dia uma morte foi lançada (em 2007) o cenário da produção de álbuns ainda estava se ampliando. Atualmente há uma miríade de publicações autorais e graphic novels, sejam independentes, sejam patrocinadas por editais, ou publicadas por dezenas de editoras, dentre as quais muitas sequer existiam há alguns anos. Isso sem falar que o mercado editorial de quadrinhos aumentou bastante não somente com relação ao número de leitores, mas também de leitoras, bem como de autores e autoras, e isto tudo, no Brasil. Dessa forma, como a concorrência está bastante prolífica, as chances de publicação diminuem dado o grau de atenção que os editores precisam dar a tantos projetos concomitantes. Ainda assim, Barroso deve continuar tentando, pois sua obra tem qualidade e uma densidade de personagens e de roteiro muito enriquecedoras conquanto à sensibilidade lírica (e ao realismo fantástico nela contidos).

http://www.dgabc.com.br/(X(1)S(1di22e2mdtbyyzumwqiydpv4))/Noticia/277312/mi nisterio-publico-apura-retirada-ilegal-de-orgaos-em-iml-de-mg> Acesso em 30/08/2016. GARCÍA, Santiago. A Novela Gráfica. São Paulo: Martins Fontes, 2012. NOGUEIRA, Clara Asperti. Revista Careta (1908--1922): Símbolo da Modernizaçâo da Imprensa no século XX. In MISCELÂNEA - Revista de Pós-Graduação em Letras. UNESP – Campus de Assis. Assis, vol.8, jul./dez. 2010. < http://www.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/RevistaMiscelanea/v8/clara.pd f> Acesso em 20/08/2016. TZVETAN, Todorov. Introdução à Literatura Fantástica. México: Premia (Versão brasileira a partir do espanhol: Digital Source), 1981. <http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/2260559.pdf> Acessado em 28/08/2016. VERGUEIRO, Waldomiro. O Tico-Tico completa 100 anos. Omelete. 11/10/2005. <https://omelete.uol.com.br/quadrinhos/artigo/io-tico-ticoi-completa-100-anos/> Acesso em 20/08/2016.

E é por isso que espera-se com esse artigo, que se compreenda o valor cultural e informativo dessa graphic novel, e que possa alguma editora perceber tais qualidades nela e em sua continuidade de projeto, auxiliando no enriquecimento do universo das histórias em quadrinhos, não só nacionais, como universais, pois assim é a mensagem que Um dia uma morte quer passar: indo além do local que ela retrata (a

Texto recebido: 03.09.2016. Texto aprovado: 06.09.2016

favela) a um humanismo (sendo este universal), e ao encontro dos anseios, bem como dizia a carta de Sô Antão, de que o "tesouro é uma sensação, uma impressão. Um sopro"! Então, uma continuidade de vida! Referências Bibliográficas ANDRAUS, Gazy. As Histórias em Quadrinhos como Informação imagética. 2006. 304 pgs. Tese de doutorado - Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). BARROSO, Fabiano; BAGNARIOL, Piero. Um dia uma morte. Coleção 100% quadrinhos. Belo Horizonte: Graffiti 76% Quadrinhos, abril de 2007. DIÁRIO DO GRANDE ABC. Ministério Publico apura retirada ilegal de órgãos em IML de MG. 17/12/2001. <

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O olhar dos ilustradores e quadrinistas a partir de fotografias tiradas de aglomerados brasileiros Eliane Meire Soares Raslan 1 Resumo O objetivo deste artigo é verificar os diferentes olhares sobre as fotografias tiradas dos aglomerados em Belo Horizonte, Minas Gerais. Alunos do curso de Artes Visuais estão ilustrando personagens e criando quadrinhos a partir do ambiente desses aglomerados, em especial, da favela Santa Lúcia. As fotografias mostram uma ideia parcial da comunidade dessa favela e através das fotos temos a pretensão de verificar a visão desses alunos sobre essa comunidade. O local e as pessoas registradas nessas fotos vão sendo analisadas por eles e em seguida produzem através de ilustrações o que enxergam nessas fotografias. Buscamos como apoio os estudos sobre o processo de conhecimento do ser humano e sua dominação social a partir de Theodor Adorno e Max Horkheimer.

As possibilidades de abordagem de um ilustrador ao ver uma fotografia, são das mais variadas, ele pode imaginar situações surpreendentes vivenciadas pelo fotógrafo. Como ambos, podem usar das informações e circunstâncias, de quem fotografa ou de quem ilustra, como improviso ou mesmo sugerir situações que o surpreenda. Não vamos descrever aqui técnicas de fotografia ou mesmo de ilustração e sim o olhar sobre os ilustradores e quadrinistas sobre suas ideias geradas para criação, após olharem as fotografias. Eles vão apenas desenhar, não vão dizer o que pensam de cada ilustração criada a partir das fotografias das favelas. Tanto as fotografias quanto os desenhos foram realizados por estudantes do ensino superior de Artes Visuais da Escola de Design da UEMG, nenhum deles tem experiência no mercado profissional em suas áreas, mas gostam do que fazem. Interagem simplesmente pelo gosto de envolver e desmitificar a realidade muitas vezes não mostrada. De acordo com o site Olhar de Fotógrafo 2: Ver o mundo através da sensibilidade da luz e as nuances que ela provoca na paisagem. Registrar essa imagem. Eternizar uma história pelo seu olhar particular. Cada fotógrafo tem suas percepções, seu repertório, experiências, pesquisas, emoções. Seu olhar é único e provoca reações únicas em quem compartilha de seu trabalho.

Palavras-chave Comunicação Visual; Favela e HQ; Fotografia e Ilustrações; Cultura e Sociedade

Na fotografia e nas ilustrações o interesse de comunicar e registrar o gosto Temos várias formas de comunicar, mas a arte ainda é um dos meios mais

particular são uma vontade recíproca. As modalidades dos profissionais vão sendo

usados pelo homem, seja em seu modo abstrato ou real, as imagens falam por si e

percebidas aos poucos e se diferenciam pelo gosto. Abaixo, na figura 01 e 02,

deixa o imaginário por conta do espectador. Dentro desse contexto, buscamos a

percebemos a diferença dos artistas e ao mesmo tempo a proximidade. Como afirma

fotografia e a ilustração como técnica de compreensão do ser humano. Através de

Adorno e de Horkheimer (1985), a história vai sendo passada por nós através dos

fotografias tiradas das favelas brasileiras, neste caso, em especial, do Aglomerado da

mitos e o próprio saber do homem, como podemos ver nestas figuras, vão sendo

Barragem Santa Lúcia, na Cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Sem

desencadeadas a forma de olhar o mundo através da fotografia (fig. 01-03) e da

nenhum motivo especial da escolha, apenas por ser o aglomerado onde mais passei

ilustração (fig. 02-04). O fato de associar ainda faz com que o espectador busca ainda

em frente.

mais sua bagagem de conhecimento para entender a história local. A barreira de dominação pode ser quebrada e os elementos, neste caso artísticos, podem ser

1

Doutora em Comunicação. Professora da ED - Escola de Design da UEMG. Coordenadora e pesquisadora pelo NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da ED. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: elianest2002@yahoo.com.br Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 111 – 127, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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2

Fonte: olhar de Fotógrafo. Disponível em: <http://olhar-de-fotografo.blogspot.com.br/> Acesso em: 20 março 2016.

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 111 – 127, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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utilizados para quebra-la. O desconhecido causa medo, mas através da razão o homem

Abaixo (fig. 05-11), algumas das ilustrações criadas por Kaique, também, por

pode buscar sua libertação, encontrar o objeto da natureza, está nesta relação do

algum motivo não transparente, optou em retratar o lado alegre das crianças do

homem com a natureza.

aglomerado. Estilo diferente, dentro de uma mesma ideia.

Fig.01-03: Foto tirada de um dos becos do aglomerado Barragem Santa Lúcia em BH/MG

Fonte: Kaique Marcos de Paula Fernandes 3

Fig. 02-04: Ilustração a partir da foto tirada do aglomerado ao lado, Por Henrique Nogueira

Fig.05-11: Ilustrações por Kaique Marcos de Paula Fernandes, inspiradas nas fotos tiradas da Barragem Santa Lúcia em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

Fonte: Henrique Nogueira, 15 agosto de 2016 4

O espaço vazio do aglomerado da Barragem santa Lúcia, acima (fig. 01-03), foi preenchido por Henrique Nogueira (Fig. 02-04), que buscava, de algum modo inserir seus registros, mesmo que não perceba, de outras fotografias presentes em seu momento de criação, como a figura 11 a 12 e 17 a 20. Ao analisar as diversas fotografias, momentos ficaram presentes em sua memória e optou em recriar espaços com colagem de seus próprios desenhos em uma das fotografias. Fonte: kaique Marcos de Paula Fernandes, 22 fevereiro 2016 5

3

Fotos tiradas e/ou ilustrações criadas a partir das fotos exclusivas para o Projeto de Pesquisa e Extensão ARTE NA “BARRAGEM SANTA LÚCIA: Discurso entre Universitários da Escola de Design e Jovens da Vila Através de Pinturas nas Casas do Aglomerado” da ED/UEMG. 4 Idem. E-mail: Henriquenogueira95@gmail.com

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5

Idem

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Fonte: Henrique Nogueira, 20 agosto de 2016 6

Os olhos esbugalhados das crianças (fig. 03-04) trazem um brilho e confiança. Kaique consegue nos passar tranquilidade e prazer do modo como retrata a comunidade. Sem preconceito e sem diferenciar as crianças do aglomerado com outras comunidades, ele vai nos levando para o mundo delas, de brincadeiras e pura imaginação (fig. 07). Contexto que pode ser refletido com os estudos de Adorno e de Horkheimer (1985), quando abordam que não encontramos o esclarecimento na verdade ou mesmo na forma de pensar do ser humano ao buscar a natureza, já que, ocorre neste desejo de auto conservação a cegueira. A natureza é o que sou e está dentro de mim e não tenho como controlar a lógica da relação emocional, é algo passível de dominação. O quadrinho abaixo criado por Henrique (12), também nos leva para essa forma de retratar a comunidade que vive no aglomerado de forma agradável.

Tanto Kaique quanto Henrique nos passa a calmaria do ambiente, enquanto noticiários ou mesmo algumas das fotos, nos passa a pobreza e a exclusão. Esse lado de escolha, não quer dizer que tenham menos conhecimento ou querem ignorar o que ocorre e sim a instância da lógica na referência da razão, é não violentar o outro para não se violentar. A dominação, como afirmam Adorno e de Horkheimer (1985), está quando se escolhe abandonar a vida em sua relação racional, o processo de civilização, também pode ser demonstrado em sua reforma de novos povos sociais, em que uma comunidade ameaçadora pode olhar com outros olhos a materialidade provocada sobre os outros povos exteriores. As fotografias abaixo (fig. 13-14) foram enviadas para os ilustradores Kaique e Henrique, com certeza provocaram instintos para criação. Fig.13-14: Fotos tiradas da Barragem Santa Lúcia em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

Fig. 12: Quadrinhos a partir das fotos tiradas do aglomerado Barragem Santa Lúcia em BH/MG, por Henrique Nogueira

Fonte: Google Imagens. Fotógrafo desconhecido

Abaixo (fig. 13-16), outras ilustrações criadas por Kaique a partir das fotografias (fig. 01, 11-13, 17-21) dos aglomerados. Nesses trabalhos percebemos alguns detalhes não presentes nas ilustrações anteriores. Os olhos grandes é um estilo do artista e o brilho realça os personagens, algo já presente nos demais trabalhos de Kaique, a diferença está nos pequenos detalhes, como na figura 13 que nos faz buscar o contexto cultural da presença da bola como brincadeira de criança nas favelas e as cores que estão cada vez mais presentes no aglomerado brasileiro, ainda, na figura 16 6

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Idem. E-mail: Henriquenogueira95@gmail.com

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que a bandeira brasileira traz a representação de nacionalidade, presente na massa do aglomerado. Questionar e reconstituir a humanidade é algo que o tempo todo Adorno e de Horkheimer (1985) trazem em discussão, estas novas traduções e olhares da comunidade atual são buscadas neste desenrolar do progresso do esclarecimento da sociedade, que tem como exemplo o esclarecimento histórico. A modernidade do esclarecimento busca elementos primitivos para esclarecer o que ocorre no atual. Esses trabalhos reivindicam a compulsão de dominação moderna, descritas em passagens. O artista tenta desvincular do mundo pré-histórico para colocar um olhar a frente e esquecer do passado.

Fonte: kaique Marcos de Paula Fernandes, fig. 12-13: 04 junho 2016 e fig. 14-15: 24 março de 2016 7

Fig.13-16: Ilustrações por Kaique Marcos de Paula Fernandes, inspiradas nas fotos tiradas da Barragem Santa Lúcia em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

Abaixo (Fig. 17-21) fotografias tiradas pelo aluno de Artes Visuais da ED, Horacius de Jesus, que reside em um dos aglomerados da Cidade de Belo Horizonte e através do seu olhar particular, registra o modo de vida da comunidade que vive nestes aglomerados. Essas fotos, assim como as figuras 26 a 29, foram as fontes de inspiração enviadas para os artistas que ilustraram os desenhos e quadrinhos presentes neste artigo. Fig.17-21: Fotos tiradas do aglomerado em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

7

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Idem

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Fig.22-25: Ilustrações por Kaique Marcos de Paula Fernandes, inspiradas nas fotos tiradas da Barragem Santa Lúcia em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

Fonte: Fotógrafo Horacius de Jesus 8

Essas fotos retratam a realidade e o progresso do conhecimento do homem para benefício próprio e quanto a desigualdade e a força do poder ainda é utilizada para qualidade de vida de poucos. Dentro das ideias de Adorno e de Horkheimer (1985), sobre o progresso do pensamento do ser humano, no que abordam a sociedade ocidental e seu avanço quanto ao esclarecimento, podemos levar em conta, que esses alunos de Artes Visuais buscam nas fotografias retratar seu conhecimento desde seus antepassados – até mesmo os primórdios – até sua passagem pela arte dentro e fora da universidade. Suas bases racionais sobre o ser humanos em muitos séculos atrás até a

Fonte: kaique Marcos de Paula Fernandes, 03 fevereiro de 2016 9

contemporaneidade e as questões pós-moderna são abordadas em suas ilustrações.

Temos como exemplo o trabalho na figura 23, que pode representar rebeldia,

Abaixo (Fig. 22-25), ilustrações de Kaique a partir das fotografias (fig.01,11-13,17-

mas como artista e homem atual, quer dizer muito mais, grito de liberdade e

21).

expressão que busca de ideais – mesmo que ilusórias – de uma libertação política que ainda se encontra marrada no controle dos regimes passados, como as forças

8

Fotógrafo Horacius de Jesus, morador de uma das favelas em Belo Horizonte registra fotos incríveis da comunidade no seu dia-a-dia. Disponível em: < https://www.facebook.com/Favela-Uma-Foto-porDia-264453113741709/photos?ref=page_internal> E-mail: mphoracio@yahoo.com.br

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religiosas e regimes controlados por uma minoria. Ou ainda, na figura que retrata a versão do morador da favela no personagem Simpsons, ilustrado pelo cartunista norte-americano Matt Groening, que nos leva a ser sarcástico com a ideia do humor, do qual esta versão troca o homem branco de cabelos lisos e louros pelo homem da favela com seus cabelos cacheados pretos e de cor de pele negra. Entro da dialética do pensamento Adorno e de Horkheimer (1985), a dominação é propagada e a crítica só ocorre quando tradicionalmente o esclarecimento tem seu conceito compreendido. Ainda, o sentido das fotografias em seu âmbito mais descontraído e inocente (Fig. 17 a 21) e em outros momentos lugares inapropriados ou em tempos maduros e

Fonte: Fotógrafo Horacius de Jesus 10

esperançosos (Fig. 26-29) o homem ainda tem o objetivo de não mais ter medo, representam uma realidade vivida por uma comunidade, que mesmo excluída, ainda

As fotografias 28 e 29 o fotógrafo Horacius de Jesus titulou por “Linha do

são vistas por fotografias e ilustrações, representadas por moradores e artistas, no ato

Tempo” e foram representadas nas ilustrações de Sofia Martino (Fig. 30-34), abaixo.

de fotografar e desenhar. Essa calamidade da falta de conhecimento é reconhecida e

Fig.30-34: Ilustrações por Sofia Martino, inspiradas nas fotos tiradas da Barragem Santa Lúcia em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

esclarecida, esta ideia dos autores se resplandece sobre o significado dessas fotografias que são cheias de características presentes no esclarecimento de modo de vida e são desencadeadas nas ilustrações dessa revolução do homem moderno. Fig.26-29: Fotos tiradas da Barragem Santa Lúcia em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

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Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 111 – 127, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Fotógrafo Horacius de Jesus, morador de uma das favelas em Belo Horizonte registra fotos incríveis da comunidade no seu dia-a-dia. Disponível em: < https://www.facebook.com/Favela-Uma-Foto-porDia-264453113741709/photos?ref=page_internal> E-mail: mphoracio@yahoo.com.br

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 111 – 127, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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questões de morte e vida desses personagens através do seu olhar a partir das fotografias (fig.01,11-13,17-21). Diferente de Kaique e Henrique, ela não aborda o lado infantil e inocente dos diversos personagens, Sofia nos faz refletir sobre outros assuntos, como saúde (drogas) e escuridão (individualismo e assombração). Retornando aos atores, Adorno e Horkheimer (1985), afirmam existir no homem essa contraditória autoconservação do antes para conhecer melhor o presente, porém sempre em busca pela sua libertação com a destruição da dominação, que está em toda sua trajetória da história da civilização. Progresso do esclarecimento que vai sendo percebida em etapas e novamente ocorrem na adoração de novas formas de dominação. Sofia nos passa a ideia de desesperança, como se não houvesse outro fim se não a morte (Fig. 30-34), como se raízes (Fig. 33-34) estivessem entrelaçados em nossos pulmões e não tivesse outro meio se não aceitar a dominação. Também, nos passa a mensagem de protesto, ilustrações que brigam com esse processo histórico que não altera e que mantém o homem sem conhecimento. Abaixo, os trabalhos artísticos também representam essa angústia (Fig. 35) e luta por direitos (Fig. 36). Fig. 35-37: Trabalhos artísticos inspirado nos aglomerados brasileiros, alunos de Artes Visuais

Fonte: Sofia Martino, aluna do curso de Artes Visuais da ED/UEMG, 26 agosto de 2016 11

Sofia demonstra em seu olhar o lado obscuro e ao mesmo tempo distorcido das fotografias, ela ao mesmo tempo que busca o seu lado artístico, também aborda as 11

Idem. Email: sofiamartnoo@gmail.com

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Ermida 14, o desenho (fig. 36) foi criado por Luiz Felipe de Faria Ermida, Matheus Paiva Rosa e Fabiano Silva Araújo da Cruz. Representa a Vila Corumbiara, ocupação no Bairro Barreiro. Ambas em Belo Horizonte. Os trabalhos 35 a 37, buscam mostrar esse lado de reinvindicação pela liberdade de igualdade e voz. Se retornamos aos atores Adorno e Horkheimer (1985), afirmam que: engana-se quem acha que conhecendo o passado pode articular historicamente o que ocorreu e apropria-se do mesmo como verdade, pode até mesmo torna-se instrumento de classes dominantes. Entendem que conhecer a verdade pode ser um fato a mais que sustenta a indiferença dos “vencedores” (dominantes) e logo materializa o horror vivenciado nesse processo que passa de geração em geração como transmissão da cultura que perpetua. Considerações Finais Percebemos através dos trabalhos, que independente da classe social desses artistas, eles abordam o lado da igualdade e qualidade de vida da comunidade que Fonte: Alunos do curso de Artes Visuais da ED/UEMG, 26 agosto de 2016 12

através dos estudos de Adorno e de Horkheimer (1985), percebemos que o material e

As figuras 35 e 36 foram criadas em grupo por estudantes do ensino superior do

espiritual continuam sendo abordados e cultivados na arte, fazem parte desta busca

3º período de Artes Visuais da Escola de Design da UEMG, primeiro semestre de

pelo processo de esclarecimento numa trajetória de dominação. O ser humano se

2016. No caso do trabalho da figura 37 representa a comunidade do aglomerado

alimenta de “lótus”, algo que os autores sugerem que ele neste momento tem um

Morro das Pedras, foi inserida a foto tirada, pelo aluno de Artes Visuais, Fotógrafo

sabor divino que hipnotiza e que entorpece em felicidade. O meio faz com que o

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Horacius de Jesus , de uma moradora muito conhecida no aglomerado – Dona

homem tenha uma relação de felicidade entre harmonia e trabalho autoconsciente, que

Fininha. Colocam uma tarja nos olhos do outro personagem, uma criança, insinuando

vai contra a racionalização. Mantém esse processo em aberto, da qual não é

manifestação e revolta. Depois de tirar a foto a aluna Joyce Cristina de Lima Serpa

justamente a qualidade das condições, já que não é uma ilusão e sim a verdade está no

faz o trabalho de colagem. A vila do Morro das Pedras é constituída por sete vilas. Na

negativo, fundamentado em um sofrimento geral. Essa contradição não pode ser

figura 35, foi um trabalho usando o material biscuit, pelo aluno Luiz Felipe de Faria

mudada simplesmente com a razão, ela sozinha não resolve essa fatalidade.

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Idem. Email: sofiamartnoo@gmail.com Nome completo: Marcos Paulo de Jesus Horácio

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vive nesses aglomerados. Os lados alegres e sombrios foram colocados em destaque e

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Facebook: Luiz Felipe Ermida

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Os Discursos Sobre a Favela: Uma Trajetória em Arte Sequencial Referências Bibliográficas

Nílbio Thé 1

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antônio de Almeida, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1985. RASLAN, E. M. S. Expressão Gráfica B: Quadrinhos. Escola de Design da UEMG. Sala 24, 64hs, 1º semestre de 2016. RASLAN, E. M. S. A Linguagem dos Quadrinhos: traço, expressão, roteiro e narrativa. Escola de Design da UEMG. Sala 64, 40hs, 1º semestre de 2016.

Resumo A intenção do artigo é fazer um breve e crítico resgate histórico de como a favela se inseriu ao longo do tempo, desde os primórdios da arte sequencial até os dias atuais de que forma ela aparece no discurso estético, político e social em obras diversas e distintas dos quadrinhos. Seja de forma mais realista ou de modo mais fantasioso. Também apontamos de forma sucinta possibilidades de autonomia autoral dos artistas de quadrinhos a partir de referenciais de Priscila Arantes, Homi Bhabha e Norman Fairclough. Palavras-chave

Texto recebido: 01.09.2016. Texto aprovado: 07.09.2016

Favela; História em Quadrinho; Indústria Cultural; Poéticas da Resistência; Superheróis. Quadrinhos: do centavo ao milhão, da senzala à favela As histórias em quadrinhos, por se constituírem uma linguagem essencialmente dependente dos mecanismos da chamada Indústria Cultural (vide Adorno e Horkheimer) tem um alcance de público amplo. Isso significa que elas estão potencialmente acessíveis a todos os extratos socioeconômicos de uma sociedade. E, de fato, isso se percebe não somente hoje em dia, com publicações de fanzines que são vendidos por poucos reais ou distribuídos gratuitamente e com publicações encadernadas especiais que só são encontradas em livrarias como também era evidenciado no início da arte sequencial. Não porque tivesse muita oferta, mas porque 1

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Nílbio Thé. Mestre em Políticas Públicas e Sociedade, professor, ilustrador e roteirista. Curso de Jornalismo, Audiovisual e Novas Mídias. Universidade de Fortaleza (Unifor), Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: nilbiothe@gmail.com

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sua circulação era ampla e praticamente irrestrita por se basear na distribuição dos

submetidos. As duras condições de vida na senzala, espécie de espécie de condição

periódicos jornalísticos.

social “pré-favela” eram expostas com intensidade.

Temos aí o começo da arte sequencial fortemente atrelado à indústria

Abaixo, na figura 01, uma cena forte reproduz relatos de negros que eram

jornalística. Aquilo que usualmente se convencionou chamar de início dos quadrinhos

queimados vivos em fornos de senzalas. Além das evidentes questões sobre a

tem por marco a publicação de Yellow Kid, iniciada em 5 de maio de 1895. O fato de

crueldade humana, o modelo escravocrata não condizia com a nova conjuntura do

termos essa vinculação ao jornal dá um pouco de seriedade ao quadrinho. O coloca,

final do século XIX, calcada já em trabalho livre e assalariado. Historicamente, após a

ainda que não queira, ou ainda que de forma equivocada, numa perigosa proximidade

abolição, os escravos libertos não tiveram condições de ocupar outros locais senão

com a realidade (obviamente se partimos do pressuposto de que a realidade é o

morros e localidades afastadas dos centros urbanos mais movimentados. Essa

objetivo da imprensa jornalística). Temos então, com o “garoto amarelo” uma história

população aos poucos foi gerando o que no Brasil se convencionou chamar “favela”.

de um menino de nuances asiáticos que mora nas favelas de Nova Iorque 2. Ali Fig.01: Ilustração de O Diabo Coxo por Angelo Agostini

percebemos que o jornal, barato e acessível a todos, muitas vezes endereçado aos ricos, também retratava os pobres e os marginalizados, ainda que de forma estereotipada ou forçosamente engraçada. Contudo, embora Yellow Kid seja o marco mais conhecido, outros artistas fizeram trabalhos anteriores a ele e igualmente (ou mais) importantes como Wilhelm Busch na Alemanha em 1865 3 e Gilbert Dalziel na Inglaterra em 1884 4. Além deles, Ângelo Agostini no Brasil é nosso principal precursor tendo se antecipado a todos os artistas acima citados publicando suas histórias ilustradas a partir de 1864 5 à frente da revista Diabo Coxo, considerado o primeiro periódico ilustrado do país, publicando no estado de São Paulo. Nas obras de Agostini era comum que o tema da escravidão fosse retratado de maneira ácida, como uma conjuntura econômica atrasada e anacrônica, além de ter um forte apelo sentimental para a condição de vida sub-humana à qual os negros eram

Revista Illustrada, 427, 18 de Fevereiro de 1886.

2

CAGNIN, Antônio Luiz, 1994, em 130 anos do Diabo Coxo, o primeiro periódico ilustrado de São Paulo. Existe divergência sobre o ano da publicação de Agostini. Antônio Cagnin cita 1864 enquanto Odilon Neto (também citado neste artigo) fala em 1884, mesmo ano das publicações inglesas de Gilbert Dalziel. Essa dúvida, contudo, é facilmente dissipada ao se consultar a edição em fac símile do próprio Diabo Coxo publicado pela USP em que as datas vão de 1864 a 1865. 3 NETO, Caldeira Odilon, 2009, em Memória e HQ: a representação do anti-semitismo nas Histórias em Quadrinhos 4 Idem nota 3. 5 Idem nota 2.

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Apesar de publicamente abolicionista, Agostini não tinha um traço realista e fidedigno em relação aos negros, por exemplo. Marcelo Balaban em seu artigo Transição de Cor: raça e abolição nas estampas de negros de Angelo Agostini na Revista Illustrada . Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Chama a atenção, num primeiro olhar, que os personagens negros são muito genéricos. Raros são os desenhos em que podemos detalhar características do personagem com algum grau de certeza. Via de regra, apenas observando o desenho, não é fácil identificar a condição dos personagens, especialmente para libertos e livres. (BALABAN, Marcelo, )

Isso mostra como, apesar de ter ideias progressistas, ainda era difícil se libertar de um discurso visual estereotipado. Normal, já que havia uma forte segregação social e econômica presente na época. Hoje, apesar de ainda existir segregação, as possibilidades criativas (como veremos mais adiante) não são mais monopólio exclusivo do mainstream. Voltando assunto em questão, podemos pensar que tanto com Diabo Coxo como com a revista Illustrada (também publicada por Agostini a partir de 1876) e Yellow Kid, duas evidências nos são colocadas, ainda que superficialmente: o apelo fortemente popular em relação às classes menos favorecidas economicamente, como uma potencial energia subversiva em relação ao status quo da sociedade. Não seria de estranhar, portanto, que, em algum momento, as favelas, as periferias e os cortiços voltassem a povoar as bandas desenhadas das bancas de revista como faziam no começo de sua história. Sim, porque, de certa forma, embora quadrinhos e periferia andassem juntos em seu início, aos poucos, a temática das HQ vão ficando, ao longo da primeira metade do século XX, cada vez mais “mainstream”, saindo do universo das favelas para o espaço sideral, laboratórios, fábricas, universos míticos ou grandes metrópoles norteamericanas. Essa mudança paulatinamente faz com que aqueles centavos gastos com jornais ou revistas de baixa qualidade gráfica passassem a render milhões em uma indústria símbolo do capitalismo cultural e que, embora tenha seu valor (inclusive eventualmente abraçando diversas causas sociais), acaba por não representar de forma direta os diversos estratos sociais de uma geopolítica excludente. O subúrbio como cenário Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Como dissemos, Yellow Kid retratava o cotidiano de um garoto que morava em um bairro pobre novaiorquino. Como podemos perceber na Figura 01, a quantidade de personagens em cena simplesmente transborda o desenho do cenário revelando um local com alta densidade demográfica, pouca organização urbana, inclusive imiscuída a elementos rurais, como um bode, pás e um machado. As crianças, em sua grande maioria, estão descalças e com roupas sujas, remendadas ou maltrapilhas denotando pobreza, além dos traços caricatos ressaltando, pretensamente, características étnicas daquela população de forma depreciativa, uma vez que todos os traços que pudessem fugir do padrão de beleza eurocêntirco eram utilizados. A favela, contudo, ainda assim era um mero desenho de “pano de fundo”, quase. Uma justificativa diegética para a aparência desleixada dos personagens. Algo que promovia ao mesmo tempo uma aproximação com a população de baixa renda e um estranhamento caricato para a elite que passava a ver o pobre como uma espécie de bobo da corte daquela nova sociedade urbanizada. A graça, o cômico, estariam ali vinculados à pobreza e à favela, pois a elegância não estava reservada a eles, e sim à classe alta, exclusivamente. Sabemos, contudo, que esta não deixa de ser uma visão estereotipada, criada a partir de um outsider, um artista que vivia fora da favela e sem pretensões de aproximação. E se na intimidade percebemos as diferenças, à distância só percebemos as semelhanças. E isso força o discurso estereotipado do quadrinho em relação àquela população específica destas condições sociais. O discurso da estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma linguagem que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga ao direito de dizer o que é o outro em poucas palavras. O estereótipo nasce de uma caracterização grosseira e indiscriminada do grupo estranho, em que as multiplicidades e as diferenças individuais são apagadas, em nome das semelhanças individuais do grupo. (ALBUQUERQUE, 2009, p.30)

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Ou seja, se em Ângelo Agostini temos uma potencial contestação, nas histórias

Os inúmeros movimentos de contracultura corridos a partir dos anos 60 vão

criadas por Outcault temos uma ratificação da conjuntura social retratada a partir de

reverberar, também, na arte sequencial. Diversos quadrinistas independentes norte-

estereótipos negativos conforme se percebe na figura abaixo.

americanos como Harvey Pekar, vão mostrar de forma mais contundente e realista, mas ainda assim numa perspectiva de fabricar personagens, muitas vezes

Fig.02: Yellow Kid por George Luks

desajustados. Contudo, uma pequena revolução ocorre a partir da publicação do livro Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço de Will Eisner. Fig.03: Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço de Will Eisner

Fonte: Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço, Ed. Brasiliense, 1995. Fonte: Jornal New York World, setembro de 1896.

Quando o conceito de cenário é usado aqui é porque a favela não passa disso, um pano de fundo. Contudo, anos mais tarde, o subúrbio, a periferia e as favelas voltarão a ocupar, mas numa outra perspectiva. O subúrbio como personagem Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Eisner traz para o leitor de quadrinhos, pela primeira vez, uma história de nuances realistas com personagens moldados por um cortiço. Como se fossem títeres de uma condição social de miséria, não somente financeira, mas miséria moral, também. Na apresentação do trabalho, escrita pelo próprio Eisner, ele faz uma reflexão de como o livro foi concebido e da necessidade de reflexão sobre o espaço urbano das cidades, sempre desigual. Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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As pessoas e eventos apresentados são pessoas e eventos que gostaria de ver recebido como verdadeiros. É claro que, na criação, nomes e feições foram alterados. É importante compreender também os lugares e a época em que essas histórias se passam. Em essência não são diferentes do mundo de hoje para as pessoas que moram em lugares apertados, em prédios sem personalidade e abarrotados de gente, A importância de saber lidar com altos e baixos da existência nas cidades e a eterna necessidade de escapar parecem não mudar nunca para seus habitantes. Ao contar essas histórias tentei permanecer dentro das regras do realismo, limitando as caricaturas e os exageros aos fatos. (EISNER, P. 6, 1995)

Saímos então de um discurso calcado no estereótipo para entrar num discurso que se pretende mais realista e mais verossímil. A exemplo da literatura de cunho realista, surgida nos fins do século XIX, temos o pior da humanidade. Personagens cínicos, violentos e amorais. O “discurso da realidade” é carregado de pessimismo na maioria das vezes. Contudo, o recurso da memória, de serem histórias que fazem Fonte: O Menino do Kampung, Conrad, 2006.

parte da memória pessoal de Eisner, nos força ainda mais a um sentimento de realidade. Eisner também vai renovar os quadrinhos (juntamente com os artistas underground do quadrinho independente norte-americano que haviam lançado suas publicações alguns anos antes de Contrato com Deus) justamente por isso: usar suas própria vida para conceber as quatro narrativas que compõe o livro. Isso vai ajudar a consolidar a trajetória dos quadrinhos biográficos com resultados muito interessantes. Inclusive no quadrinho contemporâneo. Um caso interessante de autobiografia de sucesso e que se relaciona ao tema do subúrbio e da pobreza e simplicidade, é O Menino do Kampung do artista Lat, um dos principais quadrinistas do sudeste asiático. Figura 04. Fig.04: O Menino do Kampung, de Lat

Kampungs, na Malásia, são bairros pobres com diversas características rurais que tem semelhanças estruturais com outros tipos de bairros ao redor do mundo, como as favelas brasileiras, os bidonvilles na África francófona ou as bustee na Índia (DRAKAKIS-SMITH, GILBERT e GUGLER, apud BOOMGAARD, KOOIMAN, NORDHOLT, 2008). Nesta obra, que teve uma enorme repercussão não somente na Malásia, mas em também em países como Tailândia e Vietnã, virando até mote para uma animação infantil homônima para a TV, Lat, nome artístico de Mohammad Nor Khalid, conta fatos marcantes de sua infância. Até seu ritual de circuncisão vira uma passagem leve e bem humorada. Interessante é perceber que a intimidade com o tema e o ambiente de ambos os autores, Lat e Eisner, contudo, não garante a unicidade dos discursos. As experiências culturais são distintas (Perak e Nova Iorque) e as experiências subjetivas também. Cada história tem sua particularidade. E o discurso gráfico muda de uma para a outra de forma drástica para a criação de um stimmung apropriado a cada uma das obras.

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Muito embora exista uma base caricatural nos traços, a obra de Lat é nostálgica, mas também alegre e festiva, a de Eisner tem uma carga pesada de tristeza, tragédia e violência. Interessante também é perceber a proximidade de datas nas publicações. Lat publicou sua obra mais famosa pela primeira vez em 1979 enquanto Eisner criou a primeira graphic novel da história em 1978. Sinal que tanto no oriente quanto no ocidente os quadrinhos precisavam renovar suas temáticas. Uma perspectiva brasileira Fonte: site casadadublagem.com, 2015.

Outro exemplo interessante que usa a favela, embora a coloque apenas como um mero cenário de pano de fundo sem maior relevância (ainda que suavemente

Na Figura 06, uma reprodução de uma página desenhada pelo cartunista gaúcho

romantizado) é nas histórias do personagem Zé Carioca. Sobretudo nas publicações

Renato Canini, onde percebemos ao fundo a silhueta do que seria a sugestão de uma

que datam dos anos 70, principalmente. O personagem do papagaio sambista e

favela no morro carioca. Mesmo sendo majoritariamente uma silhueta escura, a

malandro foi criado por Walt Disney em uma visita ao Brasil, por ocasião da política

colorização dada nas brechas de preto sugere alegria, beleza, suavidade. A favela é

6

da boa vizinhança nos anos 40. Ao se deparar com um desenho do cartunista J Carlos

extremamente colorida, sempre que possível o que ajuda a criar um clima de

de um papagaio abraçando o Pato Donald ele teve a ideia de criar o personagem que,

constante festa e alegria, sem disfarçar a simplicidade de suas construções. Contudo,

apesar de ser licenciado pela Disney, atualmente só é publicado (e de certo modo

não pensamos em pobreza ao ver os desenhos. Não que ela não esteja ali, presente.

conhecido) no Brasil. Figura 05.

Mas o discurso gráfico e visual da alegria suplanta o da vulnerabilidade social. Aqui o aspecto “favela” é ressaltado pela textura de remendos de madeira nas

Fig.05: J. Carlos, Zé Carioca, Pato Donald e Walt Disney

pequenas construções que vemos, em partes, nos quadrinhos, mas em nenhum momento o nome “favela” (hoje em dia quase pejorativo) aparece. Nem elementos estereotipados clássicos, como assuntos marginalizados ou menções à pobreza. Isso porque se trata de um quadrinho infantil. Fig.06: Zé Carioca por Renato Canini

6

Durante o período da II Guerra Mundial os EUA, sob o comando do presidente Truman, temendo uma aproximação do Brasil, país geograficamente estratégico para ataques à África e à Europa, se aproximasse dos países do eixo devido às tendências fascistas de Getúlio Vargas, promove uma verdadeira incursão cultural entre os dois países. Vide, por exemplo, o artigo Imagens projetadas do Império: o cinema hollywoodiano e a construção de uma identidade americana para a política da boa vizinhança do historiador Rodrigo Medina Zagni.

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Um dado interessante: o próprio Canini afirmou em algumas entrevistas que desenhou Zé Carioca sem nunca ter ido ao Rio de Janeiro. Trata-se, portanto, de uma favela totalmente criada. Mas isso não é de se estranhar Todas as obras citadas até agora no presente artigo foram feitas por forasteiros, por outsiders. Quando Adorno e Horkheimer em sua obra Dialética do Esclarecimento substituem o termo “cultura de massa” por “indústria cultural” a intenção era deixar claro que a cultura de massa não era produzida pela massa, mas apenas consumida. Num mercado hoje milionário como o de HQ, a possibilidade de inserção é, de certa foram, somente pela via da resistência. Fig.07: Zé Carioca por Renato Canini

Fonte: Revista Mestres Disney, Novembro de 2005.

A página foi retirada de um especial publicado pela editora Abril intitulado Mestres Disney. Trata-se de uma série que homenageia grandes artistas que deixaram sua marca no referido estúdio de quadrinhos. O volume número 5 é justamente o volume dedicado a Canini. Na capa da edição, Figura 07, se pode perceber nitidamente essa questão da cor e da eterna festividade que brota dos morros cariocas. Como as publicações do personagem do Zé Carioca são majoritariamente para o público infanto-juvenil, o tratamento visual dado por Canini ao cenário de favela funcionou bem, dando leveza e ajudando, talvez, a afastar o estereótipo negativo que a favela ainda tem, embora com uma ideia irreal e nenhum pouco verossímil, de que tudo é alegria, festa e cor ali. Mas o objetivo da publicação é alcançado justamente por um discurso, também estereotipado, mas de forma positiva, desta vez. Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Fonte: Revista Mestres Disney, Novembro de 2005. Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Atualmente, com novas tecnologias de produção e distribuição, é cada vez

não percebe a sutileza das minorias. Contudo, sobretudo a partir de processos de

mais fácil produzir bens simbólicos com poucos recursos financeiros como no

globalização e popularização de tecnologias diversas de informação e comunicação,

exemplo a seguir.

como os computadores, em especial, cada vez mais possibilidades se abrem para financiamento de trabalhos (via crowdfunding, por exemplo) e distribuição pela

Poéticas da Resistência

internet. Um bom exemplo disso pode ser encontrado na obra do indiano Sharad

Priscila Arantes em seu artigo Poéticas da Resistência fala da necessidade e

Sharma, Figura 08.

possibilidade (cada vez mais intensa com os meios digitais) dos chamados artistas

Fig.08: Grasroots Comics por Sharad Sharma

independentes criarem obras que vão de encontro à estética “mainstream”. Apontar o ato de resistência como a interface comum entre a arte e a comunicação numa sociedade de controle parece fundamental para entender as linguagens contemporâneas, particularmente as novas possibilidades estéticas que despontam da interpenetração da arte com as mídias digitais e as novas formas de criação on line. [...]A arte como resistência, contudo, não é exclusividade das mídias digitais. Diversos projetos, desde o início do século 20, foram justificados por essa prerrogativa. Resistência aos paradigmas da estética convencional, resistência à simplificação das linguagens, resistência à exposição em espaços e lugares ditos tradicionais, tais como museus e galerias de arte, resistência aos suportes tradicionais do fazer artístico. (ARANTES, Priscila,online)

Do ponto de vista de Arantes a arte midiática sempre terá uma possibilidade de ser subversiva, de marcar um movimento de contra-corrente, de contra informação. Nos quadrinhos temos muitos exemplos disso. Desde os quadrinhos undergound das décadas de 60 e 70 com Robert Crumb e o já citado Harvey Pekar, por exemplo, que apresentou a mídia sequencial para um novo público ao mesmo tempo em que

Fonte: Thebetterindia 7

apresentou um novo público através da mídia sequencial. Deste ponto de vista temos a possibilidade do quadrinho de romper com os paradigmas impostos pela indústria cultural que o criou e, como um filho rebelde, dar voz a minorias potencialmente sem acesso aos meios, não produtivos, mas de distribuição das obras. Porque o a problemática do Mainstream é muito na questão da

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Sharma criou o conceito de grassroots comics para designar quadrinhos feitos por artistas de quadrinho não profissionais, pessoas de vilarejos rurais e pobres. Tais quadrinhos são feitos de forma independente, tendo a xerox como base reprográfica e distribuídos (ou colados na parede como cartazes) nas ruas e comércio locais. Nada

distribuição, e não apenas na produção. Uma distribuição hegemônica e massiva que

7

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

Fonte: Thebetterindia. Disponível em: <www.thebetterindia.com/1057/comics-for-a-cause> Acesso em: 04 agosto 2016.

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muito diferente do que acostumamos a chamar de fanzine. Sharma conseguiu,

comprovando a premissa de Homi Bhabha sobre o potencial da produção

inclusive montar uma ONG de alcance global atuando em diversos países além da

contemporânea de uma maneira geral.

Índia, indo do Nepal ao Vietnã, da Finlândia a Coréia do Sul, do Brasil aos Estados Unidos, da África do Sul ao Reino Unido. Os temas abordados dizem respeito a

A Realidade bate à porta, ou melhor, à página

direitos da criança, das meninas (visto os altos índices de violência sexual contra o Os quadrinhos como produção cultural podem mudar todo um ciclo vicioso de

sexo feminino do país) e do adolescente, visibilidade Lgbt, distribuição de renda,

preconceito e indiferença dos outsiders para com os moradores das favelas e a

corrupção entre outros. Essa utilização política e social do quadrinho por Sharma e sua ONG, se

grandes exemplos desta prática como A Voz do Morro , Figura 09, abaixo: Fig.09: A Voz do Morro

alinha tanto com o conceito de Arantes de resistência, como evoca uma prática discursiva que nenhum exemplo citado até agora possui de forma contundente ou majoritária. O potencial dos discursos, sobretudo quando difundidos, mediatizado, pode ser transformador, de acordo com Norman Fairclough, por exemplo: A prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e crença) como é, mas também contribui para transformá-la. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 92)

E de fato, o discurso aqui muda radicalmente por propor uma mudança que vai além do próprio discurso. Ele se propõe a mudar a própria sociedade. O engajamento aqui, não somente se faz evidente e explícito, como se torna a essência da estética deste tipo de quadrinho. O fato dos artistas não profissionais não terem o virtuosismo técnico de um Will Eisner, por exemplo, não impede que suas obras tenham impactos tão profundos, ainda que num âmbito mais local, quanto Contrato com Deus, por exemplo. Homi Bhabba fala desta possibilidade da prática cultural quando afirma que: A cultura se torna uma prática desconfortável, perturbadora, de sobrevivência e suplementaridade – entre a arte e a política, o passado e o presente, o público e o privado – na mesma medida em que seu ser resplandecente é um momento de prazer, esclarecimento ou libertação. (BHABHA, 1998, p. 245)

Fonte: Jornal Folha 8

A produção cultural, portanto, é vista também como uma ferramenta para a melhoria das condições de vida. Temos uma produção que media e impõe conflitos a Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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8

Fonte: Jornal Folha. Arte. Disponível em: <http://arte.folha.uol.com.br/tudo-sobre/rio-emtransformacao/a-voz-do-morro/> Acesso em: 25 agosto 2016.

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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O quadrinho (fig.09), feito para a Folha de São Paulo, com desenhos de Allan Rabelo e roteiro de Bruno Maron, que conta o processo histórico de formação das

Contudo, no universo dos quadrinhos, diversos agentes da justiça (ou injustiça) já visitaram as favelas para além da polícia, dos políticos e dos juízes... Fig.10: Inside the Favelas

favelas do Rio de Janeiro desde a abolição da escravatura até episódios recentes como o sumiço de Amarildo e o processo de dismitificação de favelas como ambientes desagradáveis para locais hypes de grande concentração cultural. A apresentação do quadrinho,que possui pequenas animações, recurso exclusivo do chamado quadrinho digital, é um registro da história das favelas, que pode atrair desde o leitor mais socialmente engajado e conhecedor da luta da periferia carioca, ao mais leigo no assunto que se vê diante da possibilidade de perder seu preconceito ao aprender mais da via sacra da população da periferia. Isso é bem demonstrado no texto de Rodrigo Casarin que cita Augusto Paim: Muitas vezes ela (a história em quadrinhos) atinge em cheio a sensibilidade do leitor, mais do que notícias frígidas que são veiculadas cotidianamente nos jornais. O quadrinho talvez seja um meio adequado para tratar de questões sociais e políticas, para as quais em geral a mídia tradicional não serve mais, pois criou uma espécie de embotamento da nossa sensibilidade. (PAIM apud CASARIN, 2015, online)

Inclusive, Paim junto com o desenhista MauMau foram responsáveis pelo Inside de Favelas, Figura 10, quadrinho dividido em duas partes, que conta , baseado em mais de 15 relatos de habitantes das favelas do Rio como foi a ação das Unidades da Polícia Pacificadora nas periferias quando o Brasil se preparava para sediar a copa do mundo de 2014 e posteriormente as Olimpíadas de 2016. O objetivo do quadrinho é mostrar a realidade dos moradores das favelas pacificadas e as ainda não pacificadas do Rio, tal qual , fazer uma comparação com a situação dos residentes antes e depois da operação. O fato da história ser contada com depoimentos só deixa o fator da sensibilidade e empatia mais forte, se sente o medo da época desesperadora da favela

Fonte: Cartoonmovement 9

Os super-heróis no subúrbio: Wolverine e o Pirambu

sem a pacificacação com guerras dos grupos de tráfico, ao mesmo tempo que é mostrada a constante vigilância e abuso dos moradores pela forças pacificadoras , que

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9

agem como o Legislativo, Judiciário e Executivo das favelas.

Fonte: Cartoonmovement. Disponível em: <http://www.cartoonmovement.com/comic/18> acesso em: 01 setembro 2016.

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Em 2006 a Marvel Comics contratou dois artistas franceses para pensar uma

Na história, Logan conhece um garoto chamado Xexéu, que faz parte de um

publicação especial para um de seus personagens mais famosos: Wolverine. Com

grupo de trombadinhas que tenta roubar sua motocicleta, e desconfia que ele

roteiro de Jean-David Morvan e desenhos de Philippe Buchet a HQ Saudade, Figura

provavelmente seja um mutante. Houve uma preocupação por parte dos autores em

11, tem pretenções de uma graphic novel,com uma história fechada feita na tradição

realmente retratar de forma não estereotipada, mas sem fugir do realismo na medida

dos álbuns de quadrinhos europeus, como Asterix ou Valentina e conta uma aventura

do permitido para uma história de super-heróis. Ainda assim é uma história feita por

do mutante Logan na favela do Pirambu, região suburbana de Fortaleza, capital do

outsiders, com um olhar estrangeiro, embora numa tentativa de ser minimamente

Ceará.

“antropológico” e verdadeiro. Abaixo, outro artista que detalha seu trabalho. Fig.11: Saudade por Morvan e Buchet

Fonte: Saudade, março de 2007, Marvel Comics, Panini Comics Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Fig.12: Saudade por Morvan e Buchet.

Fonte: Saudade, março de 2007, Marvel Comics, Panini Comics. Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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fortemente as tragédias mitológicas gregas mesclando o universo dos super-heróis Os traços de Buchet, figura 12, não são limpos como usualmente vemos nos

com as favelas.

comics americanos evidenciando seu alinhamento com o quadrinho francês

Tanto Gian como Benett moravam perto de uma baixada, como são

contemporâneo, como os assinados pelo artista Moebius. São traços trêmulos que

conhecidas as construções pobres feitas em áreas alagadas em Belém do Pará. Tinham

evocam a imagem de um “cartum sério”. Os desenhos tiveram uma colorização com

amigos e parentes que moravam no bairro, o que dava a eles um conhecimento

uma paleta de cores bem vivas e quentes, em grande parte numa tentativa de se evocar

praticamente nativo sobre aquela realidade.

o calor e a tropicalidade. Logan/Wolverine é retratado praticamente como uma pessoa comum, e não um herói uniformizado.

em Tribuno, Vésper e Centurião. A premissa é simples em sua dinâmica dramática,

A história escrita por Morvan realmente se estrutura em cima de elementos pertinentes

à

realidade

brasileira,

Na história, três jovens catadores de lixo ganham poderes e se transformam

especificamente

de

Fortaleza

e,

mais

mas complexa nos sentimentos evocados: O que três pessoas que nunca receberam nada de bom da sociedade fariam se ganhassem super-poderes?

especificamente ainda do Pirambu. E isere neles os elementos do universo Marvel de

A história era uma homenagem aos personagens da Família Marvel,

forma consonante. Até mesmo o nome do garoto, Xexéu, tem uma sonoridade

licenciados hoje pela DC Comics e, de fato, tem uma premissa essencial que liga

brasileira e nordestina. Um outro mutante, um pai de santo chamado Kuhrra (de fato,

ambos os universos: a transformação mágica (ou tecnológica) de crianças em seres

um nome incomum) que também tem poderes mutantes, mostra esse processo

praticamente onipotentes. No caso da Família Titã, um artefato alienígena é

transcultural de transportar toda uma diegese de super-heróis americanos para um

encontrado no lixão onde vivem as três crianças protagonistas. E é isso que acarreta

universo que normalmente exige uma outra atmosfera, um outro stimmung.

na transformação deles. Só que o conflito principal surge quando um dos três resolve

Claro que isso não foi totalmente bem recebido. Trata-se de uma publicação em certos aspectos polêmica. Houve quem reclamasse que a geografia da cidade não foi respeitada (Fortaleza é uma cidade extremamente plana, mas vemos algumas elevações irreais no decorrer da história).

usar os poderes para aquilo que ele considera o “bem”, enquanto os outros dois querem ficar famosos e ricos. Percebe-se que o mote principal, num primeiro momento, não é a favela ou o lixão. Mas os valores morais que deveriam nortear as ações de todos. Como em Watchmen, clássico de Alan Moore e Dave Gibbons, os super-heróis são confrontados

Os super-heróis no subúrbio: A Insólita Família Titã No início dos anos 90, no Brasil, uma despretensiosa história foi publicada em algumas revistas pornográficas da Editora Sampa. Apesar de aparecer dentro de revistas de sexo, o foco da história era totalmente outro. A convite da editora, Joe Benett, nome artístico de Bené Nascimento (como, aliás, ele assinava na época), convidou Gian Danton, roteirista, para juntos criarem uma narrativa que evoca Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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com a realidade. E é aqui que os elementos do lixão, da favela, da miséria se tornam essenciais para a trama, pois seus personagens a carregam dentro de si. E é essa experiência que vai transformá-los, ou não, moralmente. Trata-se de uma favela já incrustada no âmago de cada um, para além do espaço físico ou social, ela se torna existencial. Fig.13: Insólita Família Titã. Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Os super-heróis no subúrbio: Quem Matou João Ninguém? Graphic Novel com roteiro de Zé Wellington e arte de Wagner Nogueira, Wagner de Souza, Cloves Rodrigues, Ed Silva, Alex Lei e Rob Lean, publicada em 2014, conta uma história de drama e vingança envolvendo um vigilante encapuzado. A história, baseada em fatos vividos por Wagner Nogueira, desenhista principal, em um bairro pobre da cidade de Limoeiro do Norte, interior do Ceará. A primeira versão da história retratava alguns momentos da vida do Wagner, que teve uma infância barra pesada. Apesar de não exatamente uma pessoa de classe média alta, eu nunca vivi numa favela, mas sempre fui fascinado pela dinâmica delas. Uma das minhas obras brasileiras prediletas é Cidade de Deus e foi isso que me trouxe para escrever o roteiro para o Wagner. E aí tem também o segundo elemento da história: ela é uma homenagem ao gênero dos super-heróis. Para tentar escapar um pouco de todos os clichês do gênero, pensamos que o cenário poderia ser algo que diferenciasse nossa história de outras produções do gênero. Apesar de outros países apresentarem aglomerações muito semelhantes às favelas brasileiras, a forma como elas acontecem no Brasil é única e daria um aspecto singular pra história. (WELLINGTON, Zé, entrevista concedida em 21/08/2016)

A história, de narrativa não-linear, conta a amizade de Sandro, Nina, João e Roberto na infância e na vida adulta no morro de Santa Edwiges, uma localidade fictícia, mas com elementos suficientes para ser uma comunidade pobre de praticamente qualquer lugar do Brasil. O elemento fantástico é quando João é assassinado e recebe uma segunda chance, volta à vida e assumindo a identidade de um herói chamado Sujeito-Homem. Para Zé Wellington, em entrevista concedida para este artigo, a questão de inserir a favela nos quadrinhos, ou um arquétipo típico dos quadrinhos, o super-herói, numa favela não é estranha, e até combina bem com isso, apesar de ser muito pouco explorada.

Fonte: Insólita Família Titã, Opera Graphica,2014. Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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A primeira relação que me vem a cabeça é que o quadrinho é uma arte marginalizada. Mesmo tendo tudo para seguir os caminhos da literatura, sua prima rica, os quadrinhos ainda não são compreendidos além das obras que Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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estão no mainstream (aqui no Brasil representado por Turma da Mônica e os heróis norte-americanos). E aí chegamos na favela, um lugar de aspecto visual único, de perspectiva irregular e morais não muito bem definidas, elementos que permitem contrapontos interessantes com a produção de quadrinhos (ou de arte como um todo) atual. Mesmo assim, penso que a favela é muito pouco explorada como elemento cultural brasileiro. (WELLINGTON, Zé, entrevista concedida em 21/08/2016)

O que se percebe é uma história que mescla drama, realismo subvertendo, em alguns aspectos, um dos elementos mais típicos do quadrinho que é o personagem em

O resultado é delicado, inovador e divertido, justamente por ter um fundo de realidade (baseado em fatos da vida de um de seus criadores) e por buscar ser fiel àquela realidade sem, no entanto, se prender a estereótipos. Tanto que Wellington afirma que uma das obras que julga mais interessantes e que retratam a favela é o filme 5x Favela, Agora por Nós Mesmos. Eu gosto bastante de 5x Favela - Agora por Nós Mesmos. Boa parte do filme deixa de lado (ou trata de forma mais natural) as relações óbvias entre favela e tráfico de drogas. E eu acho que isso funciona por que é feito por jovens cineastas que realmente viveram em favelas. . (WELLINGTON, Zé, entrevista concedida em 21/08/2016)

estilo super-herói. Fig.14: Quem Matou João Ninguém?

A história foi indicada ao prêmio HQ Mix, um dos mais importantes do Brasil na categoria roteiro em 2015, o que mostra não somente o talento de seus criadores, mas também a favela é uma excelente matéria-prima para boas histórias. Percebe-se que, embora conte uma história impossível, o cenário não é idealizado ou suavizado. O stimmung da favela é latente nos traços, um dos motivos que garantiu uma boa recepção da crítica. Família Favela Como nem tudo são flores, enquanto diversos trabalhos, de nacionalidades distintas, feitos fora e dentro da favela, tentam trazer humanidade e fidedignidade para este nicho social, econômico e geográfico ou mesmo melhorias através de articulação política e popular como citado nos trabalhos de Sharad Sharma, existem também exemplos de como a favela ainda é retratada de forma depreciativa. E este é o caso do último exemplo a ser analisado. Trata-se de um quadrinho pornográfico de cunho incestuoso chamado Família Favela. Os quadrinhos são disponibilizados para leitura online para assinantes de sites diversos. Família Favela possui um visual bastante colorido e alegre, com um desenho Fonte: Quem Matou João Ninguém? Draco Editora, 2014. Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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tecnicamente excepcional, bem como suas técnicas de colorização que não devem em Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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nada ao quadrinho mainstream, contudo, como usual, tem uma narrativa simplória cujo objetivo é tão somente o sexo incestuoso entre os membros da família título que,

O que é bastante conveniente quando não se quer modificar o status quo social destes espaços geográficos e, sim, ratificar e aprofundar seu abismo de desigualdade.

por sua vez, é formada totalmente por tipos caricatos e estereotipados nas favelas

Se a premissa do pornográfico é expor as taras mais recônditas da alma

cariocas (o traficante, o pai de família desempregado, a funkeira), como se percebe na

humana, e o incesto, conforme vimos, é das mais proibitivas do ponto de vista

Figura 15, capa da edição cuja história se desenrola no momento em que o pai de uma

antropológico, mesmo, no momento em que uma história insere o incesto num

das personagens resolve seguí-la secretamente até um baile funk. Os órgãos sexuais

contexto jocoso e dentro da favela, temos aqui a necessidade de se associar o

são todos ressaltados e detalhados de forma sexista (pênis avantajados e vaginas

abominável aos desfavorecidos economicamente. Os consumidores deste tipo de

delicadas). A autoria dos quadrinhos é desconhecida, mas os direitos autorais

mídia seriam apenas “espectadores” da selvageria sexual dos pobres.O lugar do

pertencem ao site www.tufos.com.br.

abominável é no outro. O que infelizmente não é novidade, sobretudo ao se analisar a

O que espanta é a temática do incesto estar associada ao universo da favela e ainda assim de forma jocosa, ignorando a realidade de muitos casos de abuso sexual sofridos dentro da própria casa das vítimas. Mas isso vai além. Freud, em sua obra Totem e Tabu afirma que a civilização como a

história da saúde, vindo desde a medicina social, como explanado por Foucault em O Nascimento da Medicina Social. Este exemplo apenas intensifica que não é a mídia em si, mas o que se faz dela e com ela que acarreta consequências positivas e negativas.

conhecemos só foi possível graças à proibição do incesto na sociedade. Assim, pois, esses selvagens nos mostram um grau insolitamente alto de horror, ou de sensibilidade, ao incesto, vinculado à peculiaridade, que não compreendemos muito bem, de que substituem o parentesco de sangue efetivo pelo parentesco totêmico. Entretanto, não podemos exagerar por demais essa oposição, e queremos lembrar que as proibições totêmicas incluem o incesto real como caso especial (FREUD, 2013, P. 43)

Partindo-se do pressuposto freudiano, portanto, o quadrinho Família Favela retrata pessoas incivilizadas, selvagens incapazes de viver em sociedade. Fig.15: Família Favela, autoria desconhecida.

Uma possível conclusão Como toda linguagem potencialmente artística, os quadrinhos têm inúmeras possibilidades a depender a subjetividade de seus autores, meio social, público a que se destinam, mercado editorial, habilidades técnicas dentre infindáveis variáveis. Assim como a favela, que é múltipla. Um cenário tão complexo é ainda pouco explorado, apesar de inúmeras obras tergiversarem sobre este cenário de forma direta ou indireta, favela ainda é sinônimo de tráfico, violência e até incesto e está longe de ser sinônimo de quadrinho, arte, inovação, reinvenção, criatividade. Este breve dossiê simplesmente coloca na mira algumas obras interessantes que mostram a potencialidade crítica não só do significante favela, como de seus inúmeros significados ao longo de diversos períodos da arte sequencial.

Fonte: site tufos.com.br, setembro de 2016. Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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Referências Bibliográficas.

FREUD, Sigmund, Totem e Tabu, L&PM Pocket, Porto Alegre, 2013

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FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Medicina Social. In:____. Arte, Epistemologia, Filosofia e História da Medicina. NETO, Caldeira Odilon, 2009, em Memória e HQ: a representação do anti-semitismo nas Histórias em Quadrinhos

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009. ARANTES, Priscila. Poéticas da Resistência. Disponível em: <http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2395,1.shl>.Acesso em : 02 de setembro de 2016. BALABAN, Marcelo, “Transição de cor”: Raça e abolição nas estampas de negros de Angelo Agostini na Revista Illustrada. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2237101X2015000200418&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em : 20 de agosto de 2016.

PAIM, Augusto; Mau Mau, Inside the Favelas. Disponível em: <http://www.cartoonmovement.com/comic/18>. Acessado em: 28 de agosto de 2016. RABELO, Allan. et al. A Voz do Morro. Disponível em: <http://arte.folha.uol.com.br/tudo-sobre/rio-em-transformacao/a-voz-do-morro/>. Acessado em : 28 de agosto de 2016. ZAGINI, Rodrigo Medina, “Imagens Projetadas do Império”, O Cinema Hollywoodiano e a Construção de uma Identidade Americana para a Política da Boa Vizinhança.

BHABHA, H. K. O pós-colonial e o pós-moderno - a questão da agência. In: _____. O local da cultural. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. p.239-273. BOOMGAARD,P.; NORDHOL,S.H.;KOOIMAN,D. Linking Destinies: Trade, Towns and Kin in Asian History. Disponível em: <https://books.google.cm.br/books?id=TXphAAAAQBAJ&pg=PA159&lpg=PA159 &dq=kampung+favela&source=bl&ots=sL8hVgyK0f&sig=sJkfv6CPOkk4MmToCtZAuXGnLk&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwiOnOyvoNHOAhUEI5AKHRyoCmYQ6AEIITAA#v=on epage&q=favela&f=false>. Acesso em : 20 de agosto de 2016.

Agradecimentos Este artigo não seria nenhum pouco possível sem a inestimável contribuição de Lays Antunes Girão e Maria Emilly Guilherme. Muito obrigado por tudo!

CAGNIN, Luiz Antônio. 130 Anos do Diabo Coxo. Disponível em: <http://revistas.univerciencia.org/index.php/comeduc/article/view/8217/7578>. Acesso em : 26 de agosto de 2016. CASARIN, Rodrigo. O encontro da política com os quadrinhos. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/o-encontro-da-politicacom-os-quadrinhos/>. Acesso em : 26 de agosto de 2016.

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FAIRCLOUGH, N. Teoria social do discurso. In: _____. Discurso e mudança social. Tradução de Izabel Magalhães. Brasília: Editora da UnB, 2001. cap. 3, p. 89- 131

Texto recebido: 03.09.2016. Texto aprovado: 05.09.2016

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

Revista Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Edição 10, vol. 5, n. 1, p. 128 – 159, 1º semestre/2018. ISSN 24472638. Dossiê Temático: Histórias e Representações dos Aglomerados Brasileiros contados em Quadrinhos. NIQ – Núcleo de Ilustrações e Quadrinhos da Escola de Design, vinculado ao Centro de Estudos em Design da Imagem da UEMG. Disponível em: <https://legendaniquemg.wordpress.com/>

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ENTREVISTAS

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Entrevista com REVISTA LEGENDA:

passou fazendo quadrinhos?

Ze Wellington Naturalidade: Sobral Nacionalidade: Brasil Página Facebook: http://www.facebook.com/zewellington Outros endereços eletrônicos: www.zewellington.com

Quais foram as maiores dificuldade por que

ZÉ WELLINGTON:

Como roteirista, viabilizar um quadrinho é bem complicado. Primeiramente preciso de um desenhista. Do dia em que comecei a fazer quadrinhos até o meu primeiro álbum impresso foram quase 10 anos. Só consegui viabilizar o processo por que venci um edital do Governo do Estado do Ceará e pude pagar aos profissionais.

REVISTA LEGENDA:

Quais dicas você têm para roteiristas que buscam ingressar nesse cenário profissionalmente?

ZÉ WELLINGTON: Diferente do ramo de ilustração, não existem

muitas perspectivas profissionais diretamente ligadas a roteiro para quadrinhos. Mas existem alguns ramos parecidos, como roteiro para audiovisual e publicidade. São bons planos A, enquanto o roteiro para quadrinhos se solidifica como mercado.

REVISTA LEGENDA: Como foi o apoio de sua família ao longo

de sua carreira?

ZÉ WELLINGTON:

Depois que consegui um emprego que me sustentava, veio muito apoio para fazer quadrinhos (risos).

REVISTA LEGENDA: O que você tem a dizer sobre a valorização

do mercado dos quadrinhos?

ZÉ WELLINGTON:

REVISTA LEGENDA: O que te levou a se interessar por quadrinhos?

É sua principal atividade?

ZÉ WELLINGTON: Sou leitor de histórias em quadrinhos desde os 13

anos de idade. Em algum momento já no fim da minha adolescência eu fazia eventos que juntavam outras pessoas que também gostavam de HQs. Num evento surgiu a ideia da criação de um mascote e uma história em quadrinhos dele. Como não sabia desenhar, assumi o roteiro sem saber que era algo que eu continuaria fazendo durante toda a minha vida. Hoje trabalho no Sebrae e sou professor universitário. Os quadrinhos não me sustentam financeiramente, mas são um pedaço importante da minha vida. Uma válvula de escape.

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O mercado ainda está longe do ideal, mas já é muito melhor do que era há dez anos atrás. Devagarzinho vão surgindo editoras e o público vai crescendo. Na verdade o grande pulo do gato do quadrinho nacional passa por consolidar um público que consumo o produto nacional da mesma forma que consome o produto internacional (em especial o norte americano e o japonês).

ENTREVISTA INDIVIDUAL

Por: Revista Legenda e-mail: legenda-niq@hotmail.com Membro da equipe Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil Data da entrevista: 09 de setembro de 2016, 09:09

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Entrevista com

Marcelo Quintanilha REVISTA LEGENDA: O que te levou a se interessar pelo

trabalho que tem hoje?

MARCELO QUINTANILHA: Provavelmente uma necessidade no sentido de reinterpretar, de plasmar, de traduzir em forma de quadrinhos uma realidade com a qual estive relacionado durante muitos anos, notavelmente durante minha infância e adolescência. Tendo nascido em um antigo bairro operário da cidade de Niterói (RJ), meus anos ali representaram estar em contato com uma série de coisas e valores em constante desaparecimento, ecos de um passado economicamente mais exuberante, quando diversas fábricas garantiam a atividade local até o final dos anos 50. Creio que essa relação entre passado e presente é o principal ponto de sustentação do meu trabalho, na forma como ele se desenvolve hoje em dia. REVISTA LEGENDA: Quais foram as maiores dificuldade

por que passou?

MARCELO QUINTANILHA:

A escassez de veículos de publicação na década de 90 foi um fator de extrema dificuldade, não só para mim, mas creio que para toda minha geração. Por outro lado, o fato de meu trabalho representar uma proposta, por assim dizer, fora dos parâmetros editoriais então vigentes, tampouco foi um facilitador, uma vez que parecia impossível para muitos editores encontrar uma forma de classificá-lo, de forma a poder apresentá-lo ao público.

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Assim, durante muitos anos, me era repetido de forma quase mântrica um conjunto de frases que continham a idéia de que “sim, nós gostamos do seu trabalho, ele é muito interessante; mas não sabemos como colocar isso para o público ou sequer temos subsídios para avaliar se ele poderia ser bem aceito…”. Enfim…

REVISTA LEGENDA:

Quais dicas você têm para ilustradores que buscam se tornar quadrinistas?

MARCELO QUINTANILHA:

De minha parte, posso garantir que nunca houve, em nenhum momento, sob nenhuma circunstância, qualquer conselho que me tenha sido dado e que, sob alguma hipótese, tenha sido útil sob um único aspecto sequer no que se refere à forma como realizo meu trabalho. Logo, eu realmente evito entrar em uma ceara tão pessoal como essa, porque qualquer dica que eu possa dar, a quem quer que seja, diz respeito unicamente à forma como eu, particularmente, vejo os quadrinhos, baseado na experiência que tive unilateralmente, o que não tem porque coadunar com nenhum conjunto de experiências ou objetivos que correspondem a uma outra pessoa, de modo que me sinto muito desconfortável se me coloco na posição de quem aconselha ou recomenda procedimentos.

REVISTA LEGENDA: Como foi o apoio de sua família ao longoe sua

carreira?

MARCELO QUINTANILHA:

Eu cresci em um entorno que lamentavelmente não é estranho a nenhum de nós, brasileiros, dentro dos parâmetros em que se estruturou uma imensa parcela da população, que identifica o fato de alguém se interessar por livros, quadrinhos ou arte em geral como um traço de fraqueza de personalidade e, em casos mais acentuados, até mesmo demência. Some-se a isso a mentalidade oriunda do macarthismo, que, entre outras atividades culturais, vitimou também os quadrinhos, tanto no âmbito norte americano como também no de seus… países reserva — como nos explicava Eduardo Coutinho em “O homem que comprou o mundo”—, e que, infelizmente, encontrou terreno fértil para sua entronização por praticamente todas as camadas sociais da sociedade brasileira. Apesar disso, nunca encontrei uma oposição efetiva dentro da família e, sob certos aspectos, o fato de ter começado a publicar tão cedo, aos 16 anos, inevitavelmente contribui para um equilíbrio de forças nesse aspecto.

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REVISTA LEGENDA: mercado de quadrinhos?

O que você tem a dizer sobre a valorização do

MARCELO QUINTANILHA:

Vejo como o resultado da retomada de um processo que foi interrompido muitas vezes, tanto por fatores políticos como — e principalmente — econômicos, o que nos conduziu ao refluxo dos anos 90, do qual só começamos a nos recuperar timidamente na década seguinte. Teremos que esperar para ter uma ideia clara de se a retomada do processo de produção efetivamente se pode consolidar através da efetiva ampliação do público consumidor.

REVISTA LEGENDA:

Qual técnica você utiliza?

MARCELO QUINTANILHA:

Basicamente, sempre sobre papel, grafite sobre base de guache; grafite tratado digitalmente com separação de porcentagem de cinza; nanquim sobre papel, com aplicação de retículas digitais.

REVISTA LEGENDA: técnica que usou nela.

ANDRE DINIZ

Por Paulo Floro Editor da Revista O Grito!

Conte sobre uma de suas obras favoritas e a

MARCELO QUINTANILHA:

Creio que meu trabalho favorito continua sendo a história “Dorso”, publicada no álbum “Sábado dos meus amores”, de 2009. Transcorrendo em 1958, uma época particularmente sedutora para mim, ela trata do direito inalienável que tem o ser humano de dispôr de sua vida da maneira como bem entender, mesmo que isso signifique arruiná-la. A técnica empregada é a de grafite sobre base de guache.

ENTREVISTA INDIVIDUAL

Por: Luiza de Carvalho Ferreira e-mail: legenda-niq@hotmail.com Membro da equipe Legenda Quadrinhos. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil Data da entrevista: 23 de setembro de 2016, 21:33

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Entrevista com

REVISTA LEGENDA:

Você é um dos autores brasileiros de quadrinhos com uma das maiores produções, com obras em diversas editoras. Como consegue ser tão produtivo?

ANDRÉ DINIZ: Bom, tem dois fatores aí. Quanto às ideias, elas não param de vir um segundo sequer. Acho a linguagem dos quadrinhos tão rica que não consigo olhar pra nada sem imaginar uma HQ partindo dali. Quanto à produção em si, o processo de transformar ideia em roteiro e depois em páginas desenhadas, aí é outra coisa. Quando falase dos “inimigos” que o autor de HQs enfrenta, falase de tudo: pagase mal, a divulgação é difícil, tem editora que não é séria, essas coisas (e todos com certa base, infelizmente). Mas, desde 2008, eu elegi como o meu vilão o tempo que se gasta para criar uma página de HQs no método tradicional. Diferenciei criação de execução, e vi que 90% do tempo é gasto com a execução. Ou seja: você já sabe a história que vai contar e como vai desenhála, mas leva um ano pra colocá-la no papel. O que eu fiz foi trabalhar em métodos próprios para mudar isso, gastando muito menos com a execução, o que me permite dedicar mais tempo à criação da história e à concepção dos desenhos e da linguagem gráfica. E produzir mais HQs, com isso.

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REVISTA LEGENDA: de quadrinhos hoje?

A pergunta é inevitável: como você vê o mercado

ANDRÉ DINIZ:

Maravilhoso no seguinte sentido: há uns oito anos atrás, não tínhamos mercado nem esperança de termos um. Hoje, estamos na mídia, nas maiores e melhores editoras e em destaque nas livrarias. Tá perfeito? De forma alguma, temos muito o que melhorar ainda. Mas olha quanta evolução em tão pouco tempo! E tudo sinaliza que vai ficar ainda melhor, várias portas continuam se abrindo. Isso é uma bola de neve (no bom sentido!) pois os autores amadurecem seus trabalhos, os leitores buscam cada vez mais as nossas HQs e nos fortalecemos cada vez mais. Sem falar na descoberta, até tardia, dos quadrinhos como um excepcional recurso pedagógico, o que foi importantíssimo nessa consolidação do mercado.

REVISTA LEGENDA:

Você lançou sua própria editora, a Nona Arte, depois de passar alguns anos publicando fanzines. A autopublicação ainda é um bom caminho para autores de quadrinhos no Brasil?

ANDRÉ DINIZ: A autopublicação por vários anos foi a minha universidade, pósgraduação, mestrado e doutorado. Aprendi muito, muito mesmo. Não tem melhor forma de começar. Você erra, acerta, erra de novo e pode errar várias outras vezes sem grandes responsabilidades, e nessa você aprende e descobre o seu caminho. Se hoje eu sei como lidar com um editor e a não exigir o que ele não pode me dar, é porque passei por essa etapa. Mas eu acho que, como tudo na vida, é importante dar passos à frente e hoje já nem tenho mais pique pra encarar a autopublicação. Se bem que, por mais que o mercado se abra, ainda há estilos e propostas mais marginalizados, e tanto a web como as edições independentes continuam sendo um ótimo caminho para experiências nesse sentido. REVISTA LEGENDA:

Como surgiu a ideia para fazer O Morro da Favela? Quando teve contato com o trabalho do Maurício?

ANDRÉ DINIZ:

Conheci o Maurício Hora através do meu cunhado, Neko Pedrosa. Puxei com ele o assunto dessas pessoas cuja vida daria um filme, um livro (ou um quadrinho!) e ele, no ato, me falou no Maurício. Peguei o telefone dele e em poucos dias já estávamos na nossa primeira entrevista. Deve ter sido esquisito receber a ligação de um estranho perguntando se ele não quer ver a vida dele transformada em uma história em quadrinhos, e acho que ele só conseguiu visualizar exatamente a minha proposta já com as primeiras páginas prontas!

REVISTA LEGENDA:

O livro chega numa hora em que as favelas do Rio de Janeiro passam por um processo de transformação social. Como é fazer uma HQ que dialoga com algo tão recente da realidade brasileira?

ANDRÉ DINIZ:

Quando a UPP – Unidade de Polícia Pacificadora – ocupou a Providência, acabando (torçamos que de vez) com o domínio do tráfico no morro, a HQ já estava pronta. Portanto, todos os nossos encontros foram em uma favela repleta de armas,

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com traficantes andando pra lá e pra cá com armas de guerra nas mãos, rádios e granadas na cintura. Ao mesmo tempo, os moradores de lá me recebiam com muito carinho sem nem saberem ainda quem eu era ou o que estava fazendo ali, e o clima entre eles, ultraparadoxalmente, era o de total tranquilidade. Daí, deu um nó na minha cabeça, que nasce e cresceu em apartamento da zona sul do Rio. Foi uma aula de vida e como roteirista também, e uma tremenda responsabilidade: foi um desafio retratar aquele cenário complexo e contar a vida de Maurício e sua família, personagens de carneeosso com uma vida difícil e com passagens duras e controversas. Até demorei um pouco para ficar à vontade em colocar palavras nas bocas deles, mas depois tudo fluiu bem.

REVISTA LEGENDA:

O que você tinha em mente em relação ao desenho quando começou a trabalhar no álbum?

ANDRÉ DINIZ: O meu traço bebe bem de duas fontes: a arte africana e a xilogravura. Eu já tinha feito algumas pequenas passagens em outras histórias nessa linha claro X escuro. Foram sempre as páginas mais elogiadas! Fiz alguns testes antes e acabei tomando coragem de fazer uma HQ toda nessa linha, meio receoso de errar na mão. Mas o Lobo e o Christiano, editores da Barba Negra, gostaram da ideia desde o começo, me encorajando. No final, fiquei bastante satisfeito com o resultado, e a recepção tem sido muito boa também. Acho que caiu como uma luva na minha proposta de passar o clima da favela, com formas icônicas e expressionistas. A história já tem uma carga muito forte de realidade, não vejo porque reforçála ainda mais com um desenho realista. REVISTA LEGENDA:

Vemos muitos trabalhos retratando o Rio, como carioca, como foi colocar a sua visão da cidade nas páginas do livro?

ANDRÉ DINIZ:

A questão é que o Rio de Janeiro que eu retratei no livro era um Rio de Janeiro que eu só conhecia por cartãopostal (e cartãopostal da favela, infelizmente, ainda é a página policial dos jornais). Não foi como retratar um Rio que eu já conhecia desde a infância, ali é a face do Rio que o resto da cidade quer esconder debaixo do tapete. O meu desafio foi retratar a favela sem preconceitos, mas sem também errar a dose e transformar em algo lindo e irreal. Por isso, visitei a favela várias vezes e fui extremamente fiel ao depoimento do Maurício este, sim, pode falar da Providência com propriedade.

REVISTA LEGENDA:

Você já chegou a afirmar que sua carreira mudou após o livro Quilombo Orum Aiê. Por que?

ANDRÉ DINIZ:

Ele foi um marco para mim em vários aspectos. O principal foi que, a partir dele, eu defini o meu estilo de desenho, encontrei a minha expressão gráfica e criei o meu próprio método de trabalho, bem particular, que me permite produzir mais e com mais qualidade do que antes. Quanto à história, nenhuma me deu tanto prazer até então, e acabei aproximando mais a minha narrativa a partir daí com uma grande paixão minha, que é o cinema. O fato de ter sido publicado por uma editora como a Record também foi um grande passo.

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REVISTA LEGENDA:

Qual a lembrança mais remota que você tem em querer trabalhar com quadrinhos?

ANDRÉ DINIZ: Nossa, eu nem sabia ler ainda e já fazia as minhas HQs! Não é exagero, nasceu mesmo comigo. E não sei a explicação, pois nunca tive ninguém próximo que desenhasse ou que sequer fosse leitor de quadrinhos. Os primeiros quadrinhistas eu conheci lá pelos 16 anos, já fazendo os meus primeiros fanzines (que eu nem sabia que tinham esse nome!). REVISTA LEGENDA:

detalhes sobre seu trabalho?

Como é seu cotidiano, pode nos dar mais

ANDRÉ DINIZ: Pra quem vê de fora, o meu cotidiano é a coisa mais sem graça do mundo (e ainda bem!)… Trabalho em casa, a maior parte do tempo no computador. Não tem nada muito interessante pra falar, uso tablet, Photoshop, apago uns SPAMs da minha caixa postal. É um trabalho muito introspectivo, principalmente na etapa em que estou buscando as ideias pra uma história nova. Aí, você pode me ver um dia inteiro na cama ou andando na rua, meio sem rumo, como se não estivesse fazendo nada. Pois acredite: essa é a etapa mais desgastante! REVISTA LEGENDA:

Pode nos antecipar qual seu próximo trabalho?

ANDRÉ DINIZ:

Nesse mês, junto com o Morro da Favela, acaba se ser lançado também A Cachoeira de Paulo Afonso, uma adaptação que fiz do poema de Castro Alves. Até o fim do ano, sai a HQ Mwindo, a adaptação de uma lenda africana divertidíssima, onde pela primeira vez eu desenho o roteiro de outra pessoa – no caso, da roteirista Jacqueline Martins. Além desses, uma outra HQ juvenil envolvendo folclore brasileiro, uma HQ infantil prontinha, uma série de webcomics inspiradas na psicanálise de Jung, um roteiro pronto que vai começar a ser desenhado por outro desenhista e umas seiscentas outras ideias, em diferentes estágios, desde roteiros e sinopses prontas até algumas que só têm os primeiros esboços rabiscados. Ufa! Só que dessas eu não posso adiantar nada ainda.

ENTREVISTA INDIVIDUAL Realizado por: Paulo Floro Editor da Revista O Grito! Data da entrevista: 11 de julho de 2011

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