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Diversão&Arte
FESTIVAL
• Brasília, quinta-feira, 15 de maio de 2014 •
Wim Wenders/Divulgação
Parceria produtiva
Filme dirigido por Juliano Salgado e Wim Wenders estreia dia 20 em Cannes e retrata as jornadas de um dos principais fotógrafos do mundo
Cena de A luz e a sombra: oito anos de imagens colhidas nos mais inóspitos lugares do planeta
» LUANA BRASIL
ESPECIAL PARA O CORREIO
P
or 40 anos, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado atravessou os cinco continentes acompanhando os passos da humanidade. Com singeleza única e um olhar poético, testemunhou e registrou os principais eventos da nossa história recente, como os conflitos internacionais, a fome, a miséria e a migração. Nada do que é intrinsecamente humano escapou às lentes do fotojornalista mineiro, nascido na região do Vale do Rio Doce. Impossível não lembrar do preceito fundamental de Cartier-Bresson quando se fala em Sebastião: “Para conhecer o mundo é necessário ser um andarilho inveterado”. No entanto, assumir o papel de legítimo peregrino teve como preço o isolamento e o pungente distanciamento da família e dos filhos. Destaque na 67ª edição do Festival de Cannes, com exibição marcada para o próximo dia 20 na mostra paralela, Um Certo Olhar (Un Certain Regard), o documentário A luz e a sombra (The salt of earth, no original) narra as aventuras fotográficas de Sebastião Salgado, mas traz em cenário de fundo uma relação distante entre pai e filho que procuram reaproximar linguagens. Codirigido pelo cineasta franco-brasileiro Juliano Salgado (filho de Sebastião), o filme tem como elo entre os dois extremos o diretor alemão Wim Wenders, realizador veterano conhecido por Asas do desejo (1987), Paris, Texas (1984) e Pina (2011).
Juliano Salgado sabia que era preciso uma terceira pessoa para ajudá-lo nas entrevistas com o próprio pai. “Queria alguém que pudesse ter conversas neutras com ele, que não fossem permeadas pela nossa relação.” Foi então que o cineasta alemãoWim Wenders entrou na jogada. Admirador do fotógrafo desde que se deparou com as imagens do livro Outras Américas, em 1986, Wenders assumiu de pronto a responsabilidade de fazer uma direção compartilhada. O encontro de três poetas da imagem foi bastante proveitoso, e o trabalho foi divido.“WimWenders dirigiu as entrevistas com base nas inflexões que tínhamos. Criou uma mise en scène bastante original para contar a história do meu pai. Coube a mim selecionar as fotos que serviriam de base para essas conversas.”
Dimensões
Umolharentrea presençaeaausência Donata Wenders/Divulgação
Curiosamente, não raras as vezes a cinematografia de Wim Wenders tratou de relações paternas e reencontros, como em Paris, Texas. Sobre esse aspecto do documentário, o diretor alemão comenta: “É um filme de muitas dimensões. A relação pai e filho claramente é parte de tudo, mas também poderia ser uma armadilha. Tanto Sebastião quanto Juliano acertaram em me levar para o trabalho, evitando esse risco. Ainda assim, a relação entre eles é uma dimensão muito comovente do documentário”. A mediação de Wim Wenders deixou as coisas bem mais fáceis para Juliano. “Hoje, eu e Tião temos uma relação muito boa, muito melhor que antes do filme. Não que brigássemos, mas estávamos afastados e, definitivamente, o filme nos reaproximou”, revela. A luz e a sombra será lançado no Brasil em novembro.
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Sebastião Salgado/Amazonas Images
MINUTOS
Influência
Tempo de duração do documentário
Duas perguntas// Wim Wenders
Juliano: “Sentia falta (do pai), pois nunca estava em casa. Ao mesmo tempo, sabia que seu trabalho era algo muito importante”
Wim Wenders e Sebastião Salgado: documentário sobre a transformação do fotojornalista em um artista à procura do ser humano pelo planeta
Amazônia A relação entre eles (pai e filho) é uma dimensão muito comovente do documentário” Wim Wenders, codiretor do filme
Na Sibéria, ficaram 46 dias expostos a temperaturas tão baixas que mal podiam tomar banho. Logo, partiram para Papua Nova Guiné, onde fotografaram por três semanas a triboYalis. Na Amazônia, viajaram quatro horas em um teco-teco antes de caminharemdoisdiasmataadentro, ao encontro dos índios Zo’é, uma pequena e isolada tribo que vive nas profundezas da Floresta Amazônica. “Estava fazendo essas saídas para lugares inóspitos com ele. No meio das reportagens, notei que era possível
desenvolver um outro tipo de comunicação entre a gente. Percebi que nossa relação, até então comum, de pai e filho, poderia ser de outro tipo. A ocasião era propícia para falarmos sobre assuntos que nunca comentávamos”, explica Juliano, emocionado. Sebastião também teve a oportunidade de descobrir como era o olhar do próprio filho a seu respeito. “Ele se emocionava ao notar como era visto por mim”, contou. O material captado, além de muito sensível, foi suficiente para fazer o filme. A luz e a sombra se empenha em contar as experiências e histórias subjacentes às
viagens, desconhecidas do grande público. “Antes de Gênesis, ele foi um fotógrafo socialmente engajado, embrenhava-se em lugares onde as pessoas estavam passando por situações muito difíceis. Com elas, aprendeu muito sobre a humanidade. Mas algo mudou em seu íntimo depois da experiência em Ruanda. O homem que fora um fotojornalista de confronto com a realidade e de denúncia de injustiças, após testemunhar tantos horrores, transformou-se em um artista, oferecendo uma proposta muito delicada e positiva do que o mundo pode ser ou do que ele já foi”, revela.
Princesa ofuscada Yves Herman/Reuters - 14/5/14
Uma onda de insatisfação parece ter alcançado a Cote d’Azur francesa. O primeiro dia da 67ª edição do Festival de Cannes começou aos esbarrões, reunindo reclamações dentro e fora das telas. Sobram críticas à curadoria do festival: espanhóis e portugueses reclamam da ausência de filmes de seus respectivos países na edição. A sessão de Grace: a princesa de Mônaco, o tão esperado filme sobre a atriz Grace Kelly (1929-1982) destinado a abrir os trabalhos na Croissete deixou a imprensa especializada decepcionada. Ao longo do dia, surgiram análises negativas do filme dirigido por Olivier Dahan, conhecido pelo trabalho em Piaf — Um hino ao amor, em 2007. A atriz Nicole Kidman (ffoto) disse ter reunido as próprias experiências de solidão e consagração para compor o papel. “Quando ganhei o Oscar pelo meu trabalho em As horas, lembro-me de chegar em casa carregando aquele troféu que me deixou tão feliz e olhar para os lados e me sentir completamente sozinha”, Yale Gontijo) declarou a estrela. (Y
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Por isso, A luz e a sombra é, entre tantas coisas, um esforço de aproximação entre Juliano e seu pai. Em Paris para a realização da mostra, Salgado explica que o fato de seu pai viajar tanto influenciou muito a relação dos dois. “Sentia falta (dele), pois nunca estava em casa. Ao mesmo tempo, sabia que seu trabalho era algo muito importante e que precisava ser feito”, relembra. Em 2009, Juliano resolveu acompanhar de perto a vida de Tião (forma com que se refere carinhosamente ao pai), fazendo uma observação íntima do modo como Salgado trabalha, desdobrando as histórias por detrás das fotos e compreendendo as transformações que o pai sofreu no decorrer do tempo. Passaram a viajar juntos. “A arte de Sebastião sempre foi muito relacionada à forma como via as pessoas que encontrava pelo caminho. Até que, em 1995, foi para Ruanda e lá se deparou com os horrores do genocídio de mais de 800 mil pessoas. Esse momento trágico da história africana abalou definitivamente meu pai, tanto do ponto de vista da experiência humana quanto da falta de esperança que este testemunho deixou em sua alma”, destaca o cineasta. De algum modo, o fotógrafo conseguiu dar a volta por cima, livrando-se da energia negativa de tudo o que observou. Juliano revela que este ponto de mutação na vida de seu pai é o eixo narrativo do filme. “A luz e a sombra descortina a conversão de um fotojornalista em um artista, após ter vivenciado uma série horrores”, diz. Uma das artimanhas para se livrar do pessimismo após a experiência na África foi elaborar o Projeto Gênesis. Durante oito anos, Sebastião explorou e fotografou os recantos mais selvagens, isolados e extremos do planeta. Juliano filmou o pai em várias de suas expedições. Juntos, foram à Península de Chukotka, nas ilhas russas de Wrangel, acompanhar os índios Nenets na condução de 6 mil renas em direção ao Círculo Polar Ártico.
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Lindamente produzido, mas tão dramaticamente inerte quanto os músculos rígidos das bochechas de Nicole Kidman.” Scott Foundas, Variety
Uma das marcas registradas de Sebastião Salgado é o uso exclusivo do preto e branco. Em seus filmes, a percepção que os anjos têm do nosso mundo é também em preto e branco (em Asas do desejo e em O estado das coisas). Essa semelhança monocromática aproxima vocês dois? Eu me identifico completamente com o uso que ele faz do preto e branco. E mais, a parte do filme que fizemos é também em preto e branco, o que se encaixa perfeitamente no tipo de fotografia que ele utiliza. Num momento, nós, inclusive, tocamos nesse assunto durante as entrevistas, mas acabamos por não incluir na edição final. Sinto que esse aspecto do trabalho pode ser entendido sem necessidade de explicações adicionais. Existiu alguma dificuldade em fazer esse documentário de direção compartilhada com Juliano Salgado? O maior problema, na verdade, foi a abundância de material. Juliano já havia acompanhado o pai numa série de viagens pelo mundo, horas e horas de imagens. Eu havia planejado acompanhar Sebastião em pelo menos duas viagens, uma ao norte da Sibéria e outra numa expedição de balões sobre a Namíbia, mas tivemos que desmarcar, pois adoeci e não pude viajar. Então comecei a me concentrar em seu trabalho fotográfico e nós gravamos algumas entrevistas em Paris. E, quanto mais eu descobria seu trabalho, mais questões eu tinha a seu respeito. Tive que acessar um superabundante arquivo de imagens…