11 minute read

4: Museu Memorial da Luta Pela Abolição: administração e educação da memória

04. Museu Memorial da Luta Pela Abolição: administração e educação da memória memória

As cidades têm memórias. Porém, nem todas as memórias estão presentes nas representações sobre a cidade. Não raro, memórias de grupos sociais vão com o tempo desaparecendo, sendo necessária a sua recuperação através de registros escritos, cartográficos, fílmicos, fotográficos, monumentais, entre outros. Como mostrado anteriormente, as relações de poder e embates no território determinam qual história e como ela será contada.

Advertisement

Trazer à tona essas as marcas espaciais apagadas, “rugosidades” presentes num espaço “alisado” na construção de um território funcional e homogêneo (SANTOS RE, 2009, p. 14), implica numa releitura do espaço urbano. A demarcação e conhecimentos destes espaços propõe a construção de referenciais (materiais e simbólicos) do segmento negro para a memória coletiva da cidade, com potencial de ressignificação das representações, muitas vezes restritas e depreciativas,

sobre este grupo étnico-racial.

Novas formas de contar e memorizar a história num contexto decolonial afro-brasileiro começam a ser discutidas, a historiadora sergipense Beatriz Nascimento discorre sobre isso em suas publicações, trazendo a perspectiva das trajetórias de vida individuais com o seu corpo sendo o elo com o território e sua história, que junta de outras histórias corporais individuais constituem um coletivo, que envolve ancestralidade, memória e história.

Na publicação “Eu sou Atlântica”, compilado de textos de Beatriz nascimento organizados pelo geógrafo Alex Ratts, citando Nascimento, Ratts discorre que o corpo é igualmente memória, porque

“Da dor – que as imagens da escravidão não nos deixam esquecer, mas também dos fragmentos de alegria. (...) Rosto e cabelo são marcas da raça social e política. Cabeça – intelecto, memória, pensamento. Cada um tem o direito de fazer essa viagem de volta. Olhar-se no espelho da raça e reconstruir sua identidade e seu corpo, pensando na sua trajetória e nas rotas do povo ao qual se sente vinculado. Na memória corporal ou na difícil construção da cidadania, a linha do corpo negro continua desenhando o espaço. Fio da memória. Fio da identidade. Espelho que nos indaga. Da cabeça aos pés, repleta de signos, a imagem no espelho fala ao corpo que desenha o espaço.” (RATTS, 2006 p. 68 apud NASCIMENTO, 1997).

Sendo assim, ao colocar o corpo como parte do território, traz a ideia de identidades entre os lugares, em trânsito, na diáspora, faz o corpo ser indissociável da memória e território.

A escritora, psicóloga, teórica e artista interdisciplinar portuguesa, Grada Kilomba tem como foco do seu trabalho, o exame da memória, trauma, gênero e racismo no póscolonialismo. Dessa forma, traz para essa discussão que racismo contemporâneo e cotidiano não se fez apenas pela continuidade das práticas do colonialismo, mas também como uma realidade que é negligenciada. Com isso, o “Memórias de Plantação”, seu livro fruto da tese de doutorado, desenvolveu-se sob um compilado de situações vividas, pela perspectiva dela e de outras duas mulheres que tiveram seus nomes preservados, nos dias atuais que se perdem na atemporalidade do racismo cotidiano e procura entender como essas situações transformaram-se no trauma consequente ao racismo cotidiano.

“[...] nossa história nos assombra porque foi enterrada indevidamente. Escrever é, nesse sentido, uma maneira de ressuscitar uma experiência coletiva traumática e enterrada adequadamente. A ideia de um enterro impróprio é idêntica a ideia de um episódio traumático que não pode ser descarregado adequadamente, e portanto, hoje ainda existe vivida e intrusivamente em nossas mentes.” (KILOMBA, 2019 p.223244).

O sujeito passa a ser voz, quando este escreve a própria história, passa a ser narrador da própria realidade, torna-se oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou (KILOMBA, 2019, p.28). A memória aqui é um instrumento de continuidade histórica.

Com isso, a visualização privilegiada de determinadas memórias na cidade determinam o grau de importância que é dado a ela na história. A

monumentalização da memória é uma ferramenta de perpetuação de poder, segundo Jacques Le Goff. (LE GOFF, 1924, p.537). Os monumentos da cidade de maior porte e maior visibilidade, é o Monumento às Bandeiras, construído em comemoração ao IV Centenário da cidade que a narrativa atrelava o desenvolvimento da cidade aos Bandeirantes e atribuía a eles heroísmo, com 50 metros de comprimento e 12 metros de altura, localizado na Avenida Ibirapuera, uma via muito movimentada e com grande fluxo de pessoas diariamente; um outro monumento de grande porte é a estátua do Borba Gato com 13 metros de altura, localizado na Avenida Santo Amaro, outra via movimentada e de grande fluxo de pessoas. Fazendo um breve panorama da situação de monumentos da cidade, São Paulo tem: 367 monumentos, 199 destes são em formas humanoides, 169 do total são figuras masculinas, 24 são figuras femininas. Destes, 155 são monumentos em homenagem a pessoas brancas, 137 homens e 18 mulheres. São 5 monumentos de pessoas negras, sendo 4 deles homens. Outros 4 monumentos representam pessoas indígenas, todos homens. E em dimensão, o maior monumento negro em forma humana tem 3,68 metros de altura, que é a Estátua da Mãe Preta, localizada no Largo do Paissandu, a qual o fluxo e visibilidade de pessoas não se equivale ao fluxo gerado por uma Avenida. (INSTITUTO PÓLIS, 2020).

A escolha por lugares privilegiados e de muito fluxo, a escolha pela dimensão e material construído desses monumentos, e a escolha por ser na forma humana, de maneira a perpetuar uma pessoa ou o grupo a qual ela pertence, não é por acaso. Por isso se é necessário retomar a narrativa e incluir os territórios negros na memória coletiva da cidade, a cartografia é uma forma de se fazer isso, identificalos de forma grandiosa através de memoriais e monumentos é possibilitar que a história dos construtores e trabalhadores que ergueram essa cidade seja conhecida.

Assim como, reconhecer que o centro da cidade é da forma que conhecemos hoje, aparentemente branco, em consequência das disputas que ocorreram nele a qual alisaram o espaço para contar a história que os beneficie, por isso esse trabalho tem como objetivo, desalisar o espaço e trazer a tona as rugosidades que fizeram parte da história de tanta gente. Inserir a população negra na cartografia da cidade através da identificação desses pontos, é essencial para ampliar o debate do desenvolvimento da cidade, para atrelar o desenvolvimento dela, aos negros.

museu

O Museu Memorial da Luta Pela Abolição tem seu projeto sustentado nas políticas públicas para os museus e para a promoção da igualdade racial, promovidas pelo Ministério da Cultura em 2003, que têm como objetivo a superação da exclusividade de uma “alta cultura” e a superação do apoio exclusivo a obras e a manifestações artísticas consolidadas, em favor de um conceito que agregue a valorização da diversidade e o suporte ao patrimônio cultural. Ou seja, procura implementar uma museologia mais preocupada com as questões da sociedade e que se desenvolve como ramo científico. Além disso, “os museus vêm ganhando renovada importância na vida cultural e social brasileira, como processos socioculturais colocados a serviço da democracia, da sociedade e como uma ferramenta de desenvolvimento social” (IBRAM, 2010).

Assim, o que se tem assistido é a ascensão dos museus a instituições de importância nas discussões sobre cultura no Brasil. A ênfase na simples conservação e a velha imagem de um depósito de coisas velhas, que tanto têm assombrado as instituições museais, parecem estar sendo substituídas, paulatinamente, por uma busca por museus dinâmicos e vibrantes, que ocupem seu lugar nas discussões sobre temas como patrimônio cultural, identidade e diversidade. Nessa perspectiva, sempre convém lembrar que os museus são lugares de memória e de esquecimento, assim como são lugares de poder e de silêncios. É preciso ter em mente que “os museus não são inocentes” (CHAGAS, 1998), que não existem instituições museais neutras, que apenas nos dariam vislumbres do passado, mas que toda instituição está sujeita a seus interesses e acepções, assim como estão os profissionais que ali desenvolvem suas

atividades. Muitos museus estão, continuamente, legitimando ou deslegitimando, valorizando ou depreciando diferentes identidades e culturas.

Neste sentido, podese dizer que o museu é um espaço político de disputas de representação, começando pelas representações atribuídas aos objetos pelos próprios técnicos desses espaços culturais, pelos participantes ou não das comunidades onde se encontram inseridos, pelos patrocinadores das exposições e ainda pelos demais públicos que visitam essas instituições. Assim, os museus tanto podem atuar hierarquizando culturas e identidades, quanto contribuindo para colocar em circulação representações alternativas sobre diferentes grupos sociais, étnico-raciais e culturais, sobre suas memórias, histórias e culturas (ZUBARAN; MACHADO, 2013, p. 1).

A Política Nacional de Museus, de 2003, foi um marco para a consolidação de muitas ações hoje efetivas. Não se trata apenas de uma atividade estatal, mas do reconhecimento de anseios nacionais que há muito estavam sendo construídos. Essa premissa, da participação, deu base à metodologia usada para a formulação da política.

Promover a valorização, a preservação e a fruição do patrimônio cultural brasileiro, considerado como um dos dispositivos de inclusão social e cidadania, por meio do desenvolvimento e da revitalização das instituições museológicas existentes e pelo fomento à criação de novos processos de produção e institucionalização de memórias constitutivas da diversidade sócio, étnico e cultural do país (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2003).

O alvo referencial destas políticas são os Pontos de Memória e os Pontos de Cultura, programas que reconhecem e estabelecem diálogo e ações com diferentes grupos sociais do Brasil que não têm, tradicionalmente, oportunidades de narrar e expor suas próprias histórias, memórias e patrimônios nos museus. Nesse processo, destaca-se, desde 2009, a parceria do IBRAM com o Programa Mais Cultura e Cultura Viva, do Ministério da Cultura, o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça, e com a Organização dos Estados Ibero–americanos (OEI), que vem apoiando ações de memória em todo o país e no exterior, em comunidades populares, através do Programa Pontos de Memória. Esta iniciativa tem como objetivo principal contribuir para o desenvolvimento de uma política pública de direito à memória, com base nos já referidos Plano Nacional Setorial de Museus e Plano Nacional de Cultura (IBRAM, 2015).

Muito embora estas iniciativas pareçam atuais, esforços individuais e dos movimentos negros podem ser percebidos ainda no século XX. Uma das principais iniciativas neste sentido surge a partir de 1950, com os trabalhos de Abdias do Nascimento. Dos trabalhos e discussões do Teatro Experimental do Negro surge a ideia de criação de um Museu de Arte Negra. Durante 18 anos, entre 1950 e 1968, Abdias do

Nascimento foi coletando obras de arte de diversos artistas, culminando em uma exposição no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro.

E, apesar de todos os esforços, o Museu de Arte Negra nunca saiu do papel, ficando o acervo sob a guarda de Abdias do Nascimento, que continuou colecionando e, também sob a influência de artistas próximos, dedicou-se à elaboração de obras de sua autoria. Este acervo encontra-se atualmente no Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Seguindo-se ao Museu de Arte Negra, outras iniciativas foram construídas dentro da temática. Atualmente encontram-se registrados no Cadastro de Museus do Ibram, de um total de 3.600 instituições, 31 museus com recorte específico sobre a cultura e memória africana e afrobrasileira. Entre essas instituições podemos destacar: Museu do Negro (Rio de Janeiro/RJ), Museu da Abolição (Recife/PE), Museu Afro-Brasileiro (Laranjeiras/SE), Museu Afro-Brasileiro da UFBA (Salvador/BA), Museu Afro Brasil (São Paulo/SP).

Assim, o Museu Memorial da Luta Pela Abolição baseado nas diretrizes citadas acima, busca montar sua curadoria e disposição museológica de duas formas diferentes, que se complementam, sendo elas: i) na edificação do museu, que terá o seu local justificado e apresentada no capítulo posterior. ii) memoriais identificados com elementos de comunicação visual verticais e/ ou horizontais nos territórios negros apresentados no item “Territórios Negros”.

A edificação será o núcleo desse museu, que se apresentará também pelo centro da cidade inteira por meio de memoriais e/ ou elementos de comunicação visual. O objetivo dessa proposta é utilizar a cidade como espaço museológico, para entender espacialmente os deslocamentos do povo negro, e mostrar que a existência e passagem dessas pessoas não se limitou no passado apenas às atuais periferias atuais da cidade, a fim de mostrar que houveram negras e negros habitando o centro da cidade e essa região também pertence a esse povo. Além disso, rememorar esses espaços que foram invisibilizados, na tentativa de esconder a história da escravidão, para tentar trazer representatividade para as pessoas que passam pelo espaço cotidianamente mostrando que negras e negros usufruíram, construíram, resistiram, criaram e desenvolveram a cidade.

O Museu Memorial da Luta Pela Abolição vem para solidificar e abrigar a história e memória do povo negro de São Paulo, resgatando seus líderes do período, sua trajetória pelo espaço e tempo, ao possibilitar um espaço de repouso dos traumas, um espaço que de visibilidade as vitórias e que vele as dores. E também um espaço de encontro, de sociabilidade, de estudos, de referência em um geral à população afrobrasileira e africana. Espaço que não inviabilize o passado cruel, e que acima de tudo, permita olhar para o futuro sem esquecer do que veio antes, a fim de prosseguir sua narrativa em busca das tecnologias, liberdade de expressão, empoderamento para criar um futuro novo.

This article is from: