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2: memória: a luta contra o poder e o esquecimento

02. memória: a luta contra o poder e o esquecimento

Quando se fala em memória, a primeira coisa que vem à cabeça é algo passado em nossas vidas, próximo a capacidade de lembrar acontecimentos pessoais. Mas esse aspecto individual, quando inserido em um recorte social onde pessoas compartilham momentos em comum, transforma a memória individual em memória coletiva. Juntamente com a memorização de alguns acontecimentos, vem o processo de esquecimento de outros, processo este que não é espontâneo, mas sim determinado a partir da escolha de qual narrativa será a dominante, ou seja, qual é considerada relevante ser lembrada ou esquecida, de ser marcada no tempo ou não. (LE GOFF, 1990, p. 423)

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Apesar da memória remeter ao passado, é o presente que a constrói para resistir aos esquecimentos do tempo, e o que é escolhido para se memorizar é sempre atado aos desejos políticos que visam a manutenção do poder. Com isso, se tem a história que foi escolhida ser memorizada e amplamente disseminada, e, todas as outras que a rodeiam e são deixadas ao esquecimento. São nessas lacunas que se encontram as memórias dos grupos marginalizados e dominados, tratados como objeto da história e não como agentes ativos na mesma. (SILVA, M. A. M., 2011, p. 16)

Em São Paulo, a narrativa que a cidade construiu sobre seu desenvolvimento

está fortemente atrelada ao movimento bandeirista, ao ciclo do café e ao desenvolvimento moderno do fim do séc. XIX em diante, jogando no esquecimento o seu passado escravista e tudo que está ligado a ele. Ignorar esse passado diz muito sobre a narrativa que se quer criar, além de mostrar a tentativa de invisibilizar os grupos oprimidos e de não responsabilizar os opressores. Ao nomear rodovias com nome de bandeirantes, criar monumentos para estes, nomear elevados com nome de ditadores, etc., fica claro qual história São Paulo quis contar nesses quase cinco centenários de fundação.

Ao escolher dar visibilidade positiva a essa história de genocidio e tortura, e excluir a participação das “vítimas”, de pessoas negras e indígenas no desenvolvimento e contribuição ativa da cidade, é escolhido tirar desses grupos a possibilidade de pertencer a memória coletiva da cidade, enfrequecendo e tirando-lhes o direito de ter e de participar da memória social. O que se tem nessas lacunas de esquecimento? O que perdemos e temos que resgatar? Quais são essas histórias esquecidas propositalmente? Memória é poder (LE GOFF, 1990, p.10), o que é escolhido ser memorizado vai exercer isso por um tempo incalculável. Qual memória essa cidade quis preservar?

Nos lugares de histórias difíceis, como o professor Renato Cymbalista, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, chama os locais que ocorreram acontecimentos violentos (CYMBALISTA, 2019), a preservação desses lugares de memória é importante pois os locais atuam como testemunhos da história, e sua permanência possibilita a interpretação individual, além de denunciar eventos que não devem se repetir. Quando os administradores da cidade decidem concretála por inteiro, em um processo acelerado de urbanização que além de não visar a preservação desses lugares, demonstra o desejo de desaparecer com os resquícios da escravidão e criar uma narrativa de cidade moderna, demonstra-se a falta de interesse de São Paulo em se responsabilizar e denunciar a escravatura como algo que não deve se repetir.

A identidade de uma sociedade se forma através do conhecimento de sua história. Fatos históricos que pertençam à memória coletiva não podem ser apagados, esse direito precisa ser garantido para possibilitar a inserção dos grupos

marginalizados na memória coletiva. O Direito à Memória aparece na Constituição Federal da seguinte forma:

“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]” BRASIL. Constituição (1988).

Dessa forma, o Direito à Memória é tão importante quanto qualquer outro, pois a inclusão na memória coletiva de uma sociedade possibilita a identificação pessoal e conhecimento de sua própria história, e com isso, assegura a humanidade. Quando se descaracterizam seus antigos bairros de moradia, queimamse seus documentos, tiram sua árvore genealógica, criminalizam sua cultura, esse direito passa a ser negado a um dos povos formadores da sociedade brasileira, o africano, e seus descendentes.(SILVA, M. A. M., 2019.)

Por isso, resgatar essas memórias, essas pessoas e os antigos territórios negros da área central da cidade de São Paulo do Periodo Colonial até a Proclamação da Lei Áurea, com a demarcação desses lugares na cidade, cartograficamente e através de uma rede consolidada de lugares identificados e administrados por um Museu Memorial, materializa-se assim essa memória na história da cidade e traz a luz a contribuição desse povo pra sociedade brasileira.

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