O tempo das m達os
luca penteado caiaffa
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agradecimentos
Mãe, pelo equilíbrio. Pai, pela cabeça cheia de minhocas. Igor, pela amizade. Aos três pelo carinho incondicional. Paulo, pela orientação, conversa, liberdade e estímulo. Acima de tudo, pelo processo. Shundi e Gurian, pela influência e generosidade. Fabio, Du, Alê, Ma, Amanda, Dri, Bruno, Igor, Vince, Fe, Leo e todos os amigos, pelas brisas e pelos dias. Nara, especialmente, pelas linhas artesanais. Drs., pela amizade sincera e descontraída. À Lu.
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universidade presbiteriana mackenzie Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduação - Monografia Orientador: Paulo Emilio Buarque ferreira aluno: luca penteado caiaffa Novembro, 2015 9
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índice
o processo
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o tempo das mãos
68
ferramentas e [ programas ]
88
ambiguidades e [ percursos ]
122
resistências e [ escalas ]
164
consciências e [ materiais ]
202
brincadeiras e [ maquetes ]
244
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O processo
“A primeira, a segunda, e a última realidade para ele [artesão ou artista] é o trabalho em si, o próprio processo de trabalho. O processo tem precedência sobre o resultado, mesmo porque o segundo é impossível sem o primeiro.”
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< BRODSKY, Joseph “A cat’s meow” 1997. p.301
> Croquis de Alvar Aalto para a igreja de Lahti, Finl창ndia. 1970 13
O processo introduz o trabalho, ele acompanha todo o desenvolvimento em uma linha do tempo. É tratado aqui de forma independente com a intenção de ressaltar suas principais características, a curiosidade, as experiências, as tentativas, equívocos, progressos e retrocessos. O trabalho, então, foi guiado pelo processo. Falar do início de um processo é sempre algo distante e pessoal, mas posso dizer que neste caso ele se deu em questionamentos, em dúvidas principalmente. O tema, antes de mais nada, é a arquitetura: O que fazer? Como fazer? Por onde começar? Como estudante essas dúvidas se mantêm constantes na minha cabeça, esse questionamento é sempre o ponto de partida e a incerteza, a mais fiel companheira. As ideias começaram a convergir quando olharam para a vida na cidade, uma relação essencialmente arquitetônica, entre o homem e o ambiente construído. Pensar o que me intriga ou chama atenção na cidade foi um início para o trabalho. Mas as questões que eram levantadas sempre se apresentavam de uma forma muito abrangente; As relações humanas e o funcionamento da cidade ou a desarticulação entre as pessoas e certos lugares da cidade eram situações que sempre geraram interesse.
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> PRANCHETA A prancheta abriga o processo, seus momentos e suas dúvidas. Na bagunça da mesa fica claro que o processo não acaba, se mantém em transformação. Perguntando e testando.
[ o processo ]
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Mas aqui, no início de um processo, falar em desarticulação entre pessoas e cidades é pouco esclarecedor no mínimo, e pode ser rebatido com inúmeros fatos que comprovam o contrário. Paralelamente pensar o que articula ou como as coisas podem ser articuladas também eram questões nebulosas. Portanto esse início, que parte das dúvidas, se mantem em um ambiente abstrato. É mais ligado e sentimentos e emoções do que a conhecimentos racionais ou fatos concretos. O que, para o processo, foi muito bom já que a dúvida é cheia de energia enquanto a certeza é muito mais estática. Esses questionamentos, mesmo pouco definidos, foram convergindo em possibilidades de trabalho; se as desarticulações intrigam, o trabalho pode tentar encontra-las para, então, propor articulações. Essa busca elencou elementos típicos de São Paulo, como a intersecção entre infraestruturas de grande porte com a malha urbana existente. Cenários em que elementos com características fortes e distintas tomam o protagonismo e inibem a ocupação humana. A transformação de um rio de fundo de vale como o Saracura em uma avenida expressa para automóveis como a Nove de Julho cria um desses elementos. Em seguida, a chegada do viaduto Júlio de Mesquita Filho cria um desses cenários, nos quais construções tendem a inibir ocupações. 16
> croqui Paulo Mendes da Rocha Novo embasamento para o edifício da FIESP São Paulo Os croquis perguntam e testam possibilidades, guiam o percurso e direcionam o processo.
[ o processo ]
O processo parte desses questionamentos e busca se aproximar, aos poucos, de análises, entendimentos e proposições. A partir daqui os desenhos, maquetes e fotos pretendem contar essa história, respeitando a sua sequencia temporal, que começou no final de 2014 com os questionamentos acima e se prolongou por um ano com o desenvolvimento do trabalho.
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primeiras impressões
O território a ser estudado seria a extensão do Viaduto Julio de Mesquia Filho, seu baixio e seu entorno. Desde o início essa foi uma área de muito difícil aproximação. Os diferentes elementos urbanos, suas escalas e características, se cruzam, esbarram, passam por cima ou por baixo uns dos outros. Alem disso o relevo é muito acidentado variando 17 metros entre os pontos mais altos – R. Augusta e R. Santo Antonio – e o mais baixo – Av. Nove de Julho. Se aproximar e entender o lugar passou a ser primordial para o início do processo. As fotos revelam as impressões das visitas, a maquete do terreno na escala 1:1000 foi essencial para entender os relevos e a relação do viaduto com as ruas e lotes. Os croquis buscam interpretações e possíveis estratégias para iniciar o pensamento e o desenvolvimento do projeto. Nessa primeira etapa de apropriação do território, nós já tínhamos que propor uma ocupação, primeiros esboços de uma lógica para o projeto, que culminaria mais pra frente em um partido consolidado. Aqui, então, possibilidades de programa foram pensadas juntamente à possibilidades de ocupação. Os croquis a seguir revelam essa etapa e suas investigações.
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> Maquete Escala 1:1000 A maquete destaca o relevo, as ruas e os viadutos Derante o processo foram recortados do relevo os lugares apropriáveis buscando entender suas características.
[ o processo ]
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< Os Croquis mostram a relação do viaduto com o solo, A nova intervenção deveria manter os níveis do terreno sob o viaduto graças as suas fundações. Os croquis mostram a possibilidade de ocupação em nívies. Um novo chão escalonado para acomodar o futuro projeto. 20
[ o processo ]
A seguir, a ideia de criar um eixo organizaria as infraestruturas e conectaria os percursos aos programas.
Desenvolvendo essa ideia viu-se a possibilidade do eixo se tornar uma rua pĂşblica, um caminho para as pessoas. 21
Ao longo do eixo, o programa responderia aos locais da cidade. A Rua Augusta e a Rua Avanhandava receberiam programas eventuais, para o público, como um cinema, cafés e áreas livres para expressões espontâneas. A ideia de rua, aqui, se transformaria em uma galeria, com lojas e exposições. O cinema ocuparia o espaço sob o viaduto sendo acessado pela Rua Avanhandava de forma a complementar o conjunto de restaurantes que existem mais acima - Os Mancini.
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[ o processo ]
Vinculado a Rua Santo Antônio - área mais ampla do território escolhido para a intervenção - o programa assumiria um caráter mais cultural, com museu, praça e “auditório aberto”. A possibilidade de ocupação da área lateral ao viaduto abrigaria, em projeto, a nova rua, aqui com a característica de calçadão, possível feira, ou local de eventos. Sob o viaduto, respeitando o solo existente a ideia era desenvolver ateliers do trabalho manual - o programa mais específico do projeto. O croqui mostra os ateliers dispostos transversalmente ao viaduto como forma de se conectarem ao eixo e aproveitarem os espaços entre pilares.
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< MAQUETE esc.: 1:1000
> FOTO Alça de acesso aoViaduto Julio de Mesquita Filho em direção ao centro.
Esse primeiro momento buscou entender o lugar, suas dinâmicas e caracteríticas. As visitas, desenhos e maquete foram fundamentais para, aos poucos, entender como as coisas aconteciam ali e como um projeto poderia ser desenvolvido.
< FOTO Passagem extreita que liga a R. Avanhandava à Av. Nove de Julho. As grades presentes nas laterias ampliam a sensação de corredor. 24
[ o processo ]
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o plano horizontal
“As horizontalidades são tanto o lugar da finalidade imposta de fora, de longe e de cima, quanto o da contra finalidade, localmente gerada. Elas são o teatro de um cotidiano conforme, mas não obrigatoriamente conformista e, simultaneamente, o lugar da cegueira e da descoberta, da complacência e da revolta”.
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[ o processo ]
< SANTOS, Milton apud. BUCCI 2010, p. 45
O entendimento do plano horizontal de Milton Santos como o espaço no qual a vida e as dinâmicas assumem todas as suas relações públicas foi muito interessante. A leitura do livro de Angelo Bucci ampliou as possibilidades de trabalho. Somadas as ideias anteriores, as formas de agir no território por meio do projeto criaram novas estratégias. O plano horizontal, entendido como esse espaço da vida urbana poderia ser pensado como uma multiplicação de camadas, ou níveis:
> BUCCI, Angelo São Paulo, razões de arquitetura 2010, p. 47
< MAQUETE esc.: 1:1000 Mostra o vale do Saracura com a atual Av. Nove de Julho e os desníveis de suas margens.
“Esse plano horizontal movediço, em São Paulo, é espesso. Sua espessura matriz está na geografia em que a cidade se implantou e por isso tem cerca de vinte metros, ou seis pavimentos, de altura. As pontes [e viadutos] consagram essa espessura incomum.” O olhar atento de Bucci impulsionou uma nova tentativa no processo. A de ocupar, quando possível, todo esse chão público. Para isso a cota zero do projeto – da Avenida no fundo do vale – infiltraria o território transversalmente como mostram os croquis.
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Cota zero infiltrando o território.
Os dois cortes expressando as duas ações projetuais, uma com relação ao baixio do viaduto, outra com relação à ampliação do “chão” público.
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[ o processo ]
A marcação do perímetro das áreas mostra a ampliação da cota zero infiltrando o território. O aumento transversal da cota da Av. Nove de Julho amplia o vale para suas ruas paralelas. Essa ação fez necessária a aproximação entre fluxos, níveis e programas, uma nova relação que seria investigada a partir daqui.
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Com esses desenhos, as ideias anteriores foram apresentadas. A intenção aqui era explicar o partido do projeto, com as estratégias de ocupação e o desenvolvimento do programa. Nesse momento o projeto se explicava com duas plantas e dois cortes, mostrando o eixo, a infiltração do nível zero, a disposição do programa e ideias de circulação vertical.
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[ o processo ]
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A próxima etapa começou a desenvolver os desníveis. Esquematicamente, o programa estaria disposto nesses quatro níveis públicos. O percurso, então, deveria ligar esses programas e manter uma característica livre, aberta. Os primeiros desenhos mostram escadas ligando patamares cheios ou vazios, representando praças abertas ou programas específicos.
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[ o processo ]
parede de circulação
espaços públicos conectores
programas ocupando os diferentes nívies
A malha que guia o desenho acima e o segundo da página anterior ja mostra uma tentativa de juntar essa circulação vertical ao eixo inicial. O eixo ou percurso público do projeto poderia se transformar em uma parede de circulação [a malha dos desenhos] que conectaria os programas e a circulação. 33
andaimes
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[ o processo ]
Essa etapa completaria um primeiro momento do processo, o primeiro semestre do ano. Antes de Julho deveríamos entregar o projeto consolidado, ou um estudo preliminar completo. Os desenhos aqui deveriam mostrar a organização, disposição do programa, relação com a cidade e intenção plástica e estrutural. O processo, então, passou a tentar materializar as ideias anteriores. A ideia de andaimes apareceu como uma resposta a duas questões: a escala e a construção. A parede infraestrutural, pensada anteriormente, já estava vinculada ao módulo como parte de sua concepção, o módulo respondia a uma ideia de construção no tempo, de possíveis alterações, se necessário. Nesse momento a parede modular já se assemelhava ao andaime, com sua racionalidade construtiva e estética. Mas no campo das ideias o andaime apareceria de outra forma também. Desde o começo, lidar com o viaduto e sua “presença” na conformação do espaço urbano foi muito importante para o trabalho. Como aproximar usos humanos às escalas de objetos metropolitanos? Essa ideia de aproximar escalas levou aos andaimes - ferramentas que aproximam os trabalhadores dos objetos construídos. O andaime, então, surgiu como a inversão de uma lógica. De ferramenta de construção o andaime passaria a ser uma ferramenta de apropriação e do mesmo modo que permitiu a construção do viaduto, agora permitiria a apropriação dos espaços deixados às suas margens. 35
Os desenhos mostram essas investigações entre escalas e construções. Acima, o percurso passando pelos módulos explora possiveis organizações. Assim como os módulos se juntando de diferentes maneiras. Ao lado os desenhos buscam aproximar os andaimes da cidade e entender como eles podem se relacionar com o ambiente construído. Os lotes em diferentes patamares poderiam se conectar por essa malha. No último desenho, os andaimes lançariam as pessoas em um vôo sobre a paisagem do mesmo modo que o viaduto faz com os carros. A linha do viaduto se misturaria com a nova malha para as pessoas. 36
[ o processo ]
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> CROQUI O corte mostra a parede de circulação articulando os diferentes níveis do vale.
> MAQUETE Esc.: 1:500 Os andaimes levariam os percursos até a cota do viaduto em ambos os lados.
< FOTO tirada da Avenida Nove de Julho em direção aos dois viadutos em sequência. Os carros são lancados em um voo entre os prédios e por cima do vale. 38
[ o processo ]
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[ o processo ]
< MAQUETE Esc.: 1:500 O acesso pela Rua Santo Ant么nio teria apenas um andar de altura, e o projeto se desenvolveria para baixo
O corte mostra esse desenvolvimento da Rua Santo Ant么nio (esquerda) at茅 a Av. Nove de Julho (direita)
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A maquete mostra os ateliers das práticas manuais sob o viaduto se acomodando nos diferentes níveis e atrás a parede de circulação.
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[ o processo ]
Do lado da Rua Augusta o andaime materializa a galeria que ocupa a faixa lateral ao viaduto.
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A MADEIRA
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[ o processo ]
A última etapa do processo diz respeito ao segundo semestre do ano, no qual deveríamos desenvolver o projeto.
> O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012
Durante as “férias” o tema do trabalho e suas referências começaram a ficar mais claros. A leitura do livro O Artífice explicou e referenciou muitas das emoções e sentimentos que iniciaram o processo. A articulação inicial ganhou um novo recorte, agora buscaria aproximar as práticas dos pensamentos, ou o fazer do pensar. Nesse momento o trabalho de pesquisa começou a ganhar corpo, o tema foi dividido em quatro partes que seriam explicadas, referenciadas e culminariam no projeto final. Como o processo de projeto já estava avançado, essa divisão teórica buscou incorporar todo o trabalho já produzido. As primeiras impressões, o plano horizontal e os andaimes seriam explicados e exemplificados por três dessas partes. A última, que começa aqui, seria a relação com o material. A ideia de desenvolver o projeto em madeira se apresentou como uma nova experiência prática, obrigando uma investigação e desenvolvimento novos. O desenvolvimento em madeira buscou seu em seu caráter construtivo, as possibilidades de usar o material de diferentes formas. 45
< CROQUI A parede de circulação agora com uma proteção em seus encaixes estruturais.
O desenvolvimento do projeto em madeira manteve as intenções e ações anteriores, a madeira permitiu que o desenho fosse mais elaborado e a relação com o material, mais intensa.
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[ o processo ]
> CROQUIS Primeiros esboços de possíveis encaixes da estrutura.
Croqui mostra o desenvolvimento do projeto e sua relação com a circulação
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anto
R. S onio Ant
parede de circulação
espaço aberto para eventos
pr
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ma ogra
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O corte transversal mostra a relação com o viaduto (esquerda). A parede de circulação se juntaria a um espaço aberto para possíveis eventos - um teatro aberto.
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ível
desn
[ o processo ]
O corte acima e planta ao lado mostram o novo desenvolvimento da parte sul do projeto - junto à R. Santo Antônio. A madeira venceria o desnível por patamares próximos ao limite do terreno e transversais a parede modular de circulação.
Longitudinalmente o desnível seria vencido por uma arquibancada pública, para descanso, platéia, ou até apresentações. O nível do teatro seria o teto do nível zero que abrigaria uma biblioteca e um espaço cultural.
teatro
espaço cultural
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Primeiro esboço da acupação sob o viaduto em madeira. A estrutura da passarela teria que ser reforçada para vencer o vão. O corte abaixo mostra a tentativa de vagonar as vigas longitudinais.
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[ o processo ]
Os desenhos mostram o programa cultural em baixo do teatro aberto e a parede de circulação ao fundo.
A ocupação do terreno faz com que o nível da Avenida chegue quase no limite do terreno, na R. Santo Antonio.
Os ateliers ainda pousariam sobre os diferentes patamares do terreno.
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A planta da Avenida até a R. Sto Antonio mostra a ocupação do terreno. A rua pública que vai até o limite e vira um espaço cultural vinculado à uma biblioteca. No caminho da rua, junto à Avenida foi proposto um museu, independente do resto do programa, com dois andares que subiriam encostados na empena cega do edifício vizinho. Rua pública
térreo do museu
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[ o processo ]
Os cortes mostram experiĂŞncias com as coberturas inclinadas.
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A planta do térreo mostra o acesso, um café, o núcleo de circulação vertical e uma loja junto a avenida 54
[ o processo ]
O desenvolvimento do Museu como um embasamento para a rua pública e o edifício de madeira subindo independente.
A circulação externa daria aos visitantes vistas da Av. Nove de Julho e da cidade.
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[ o processo ]
Desenhos mais aproximados buscam soluções para as fachadas mais ensolaradas com brises de proteção.
< O telhado inclinado vinculado à fachada e uma estrutura interna mais leve nivelando o ambiente e criando um “forro aberto” para as infraestruturas.
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os ateliers
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[ o processo ]
< Estudos da acomodação no terreno em patamares e a relação com a parede de circulação.
O desenvolvimento dos ateliers começou a partir dos desníveis e de sua disposição em planta. A ideia dos ateliers possuírem espaços internos e externos tornava a disposição mais dinâmica, com mais visibilidade e acesso para o público externo. A presença imponente dos pilares do viaduto e a passagem estreita entre eles levou o desenho a concentrar as áreas infraestruturais dos ateliers nas suas proximidades - corte acima e os ateliers poderiam se desenvolver nos vãos entre pilares.
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[ o processo ]
Os núcleos de infraestruturas com áreas molhadas e depósitos fariam a conexão entre um atelier e outro e ocupariam as áreas próximas aos pilares do viaduto.
Os telhados inclinados foram uma forma de aproveitar a área entre o viaduto e o solo. Para se desenvolver nos patamares, cada atelier teria dois meioníveis de 1,25 m cada. Um seria o acesso e outro o espaço de trabalho. 61
O corte mostra o início do partido estrutural e o desenvolvimento em dois meio-níveis.
< > As áreas externas aos ateliers seriam livres e aproveitariam a proteção que o viaduto oferece. Poderiam abrigar aulas, comercialização ou funcionar como extensões dos mesmos.
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[ o processo ]
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As plantas acima mostram ensaios dos n煤cleos de infraestrutura de cada atelier, com banheiros, lavat贸rios e dep贸sitos. 64
[ o processo ]
A estrutura seria uma malha com dois vãos, um principal e outro secundário - 5m e 3,75m - No principal as vigas seriam o conjunto de caibros com pranchas enquanto no secundário apenas pranchas com um espaçamento menor. O módulo estaria vinculado às fachadas e essas seriam o mais transparentes possível para aproveitar o máximo de luz natural, já que o baixio do viaduto tende a ser muito sombreado.
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Com o desenvolvimento dos ateliers, o corte longitudinal sob o viaduto passa para o outro lado da avenida onde começa a desenvolver o cinema da rua avanhandava. O cinema se dividiria pela rua com a intenção de incorporá-la ao projeto. De um lado a sala de cinema e o acesso se encaixariam sob o viaduto, do outro lado uma praça com o café e o espaço de convivência do cinema - foyer - convidariam as pessoas a ocupar todo o espaço da planta a baixo.
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[ o processo ]
O processo contado por croquis, maquetes e fotos se encerra aqui, mas continua pelo resto do trabalho que será apresentado na sequencia. Separar esse processo do resto do trabalho e apresentá-lo de maneira independente foi uma forma de introduzir o tema geral - A Prática. O tema busca, nesse momento de formação, entender as influências e pensamentos e relacioná-los com o fazer, busca maneiras de transformar dúvidas e sentimentos em projeto. Talvez a maior questão presente seja entender esse processo, avaliá-lo constantemente para seguir praticando a arquitetura e a vida. 67
O Tempo das M達os
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> PALLASMAA, Juhani. Mãos inteligentes, Bookman, Porto Alegre, 2013 p.154
“Em vez de participar do processo de acelerar ainda mais a experiência do mundo, a arquitetura deve diminuir a velocidade da experiência, parar o tempo e defender a vagarosidade natural e a diversidade de experiências”
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M達os
< Chirogram, Chirologia, Natural Language of the Hand John Bulwer, 1644. 70
[ o tempo das mãos ]
O processo do trabalho foi contado a partir de desenhos, maquetes e fotos. Esses três elementos são expressões, são instrumentos de análise, interpretação e conhecimento. Desse modo o processo é seu próprio combustível, ele mesmo influencia o progresso e a direção do trabalho.
> O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012
As mãos são uma analogia, por vezes muito concreta, dessa ideia de expressão e de instrumento. São nossos primeiros instrumentos de contato com o mundo. O ato de pegar, na evolução do homem pode ser o inicio da consciência; Primeiro a mão aprende a segurar, depois a pensar sobre o que está segurando e, por fim, a modificar o que segura por meio do trabalho. Nessa sequência, a mão é analítica, consciente e instrumental.
> As mãos inteligentes Juhuani Pallasmaa Porto Alegre: Bookman, 2013
As mãos estabelecem vínculos com a realidade, são nossas ferramentas de troca com o mundo. Assim como os olhos, as mãos podem nos informar sobre a realidade, no tato ou no contato, mas a troca acontece justamente na dimensão instrumental da mão, na possiblidade que ela nos dá de interagir ou modificar o mundo físico. Desse modo, o aprender com as mãos está ligado ao experimento e ao empirismo. Elas buscam suas conclusões na realidade e, portanto, mantém um forte compromisso com a verdade. As mãos criam vínculos com o mundo e possibilitam que o homem se expresse e materialize suas intenções. 71
Outra dimensão que as mãos dão ao trabalho é a coordenação – associada aos trabalhos manuais – que pode ser interpretada como cooperação entre partes distintas. A coordenação das mãos do pianista, por exemplo, necessita um equilíbrio entre elementos distintos (diferentes dedos, e diferentes mãos) o que implica numa capacidade de cooperação. As intensidades – podemos supor que uma mão possui mais intensidade que outra assim como o polegar possui mais que o mindinho – devem ser equilibradas para que todos os elementos trabalhem em conjunto. A coordenação, então, parte da cooperação. As ideias acima foram extraídas dos livros O Artífice, de Richard Sennett e As Mãos Inteligentes, de Juhani Pallasmaa, o primeiro sociólogo e o seguindo arquiteto. Ambos buscam esse vínculo entre o fazer o pensar, entre a consciência e a prática. A partir dessas leituras o processo – que já avisa se iniciado – passou a ser autoconsciente, se tornou um tema em si mesmo e as mãos pegaram para si um novo papel, o de pensar ou influenciar o pensamento.
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> Escher, M.C. Drawing Hands 1948
[ o tempo das m達os ]
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Linhas
“A linha feita com carvão, lápis ou caneta é uma linha expressiva e cheia de emoções, assim
hesitaçã
o e certez
74
a, julgamen
to e paixão,
tédio e anim
ação, afeiçã
o e repulsão . Cada movim
ento,
[ o tempo das mãos ]
como uma maquete construída pelas mãos humanas. Ela consegue expressar
peso, tom, espessura e velocidade da linha traçada à mão possui um significado particular.” < PALLASMAA, Juhani. Mãos inteligentes, Bookman, Porto Alegre, 2013 p.102
< THE LINE Saul Steinber 1954 75
< UTITLED, Saul Steinber, 1948
“Cada confirmação ou negação o aproxima do objeto, até o momento que é como se você estivesse dentro dele: os contornos que você desenhou já não marcam os limites daquilo que você viu, mas os limites daquilo no qual você se tornou.” 76
< BERGER, John. Berger on Drawing, Occasional Press, Ireland, 2007, p.3
[ o tempo das m達os ]
> GRAPH PAPER ARCHITECTURE Saul Steinber, 1954
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< > CROQUIS SESC Fábrica Pompéia Lina Bo Bardi, 1977
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[ o tempo das mãos ]
A capacidade de expressão das mãos se aproxima, com as linhas, da intenção. Para exemplificar essa ideia foram analisados os trabalhos de Saul Steinberg e de Lina Bo Bardi. Ambos são contemporâneos e começaram sua carreira fazendo ilustrações, os dois em Milão. Não é certo que tiveram contato lá mesmo, ou só depois, mas o fato é que estavam no mesmo ambiente ao mesmo tempo, quando suas linhas começaram a aparecer para o mundo, em trabalhos muito particulares e próximos entre si. > lines Nicholas Lobo Brennan Conferência realizada na faculdade de arquitetura de Lausanne - 2014
As linhas de ambos não conformam apenas desenhos, elas também nos mostram uma postura, um olhar. Essa postura é muito analítica, parte fundamentalmente da realidade, mas não a reproduz como uma cópia; Nas linhas, a realidade é transformada, escolhida, contada. Desse modo a análise se junta a uma intenção. A linha intencional transforma a expressão em investigação 79
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[ o tempo das mãos ]
< CROQUIS SESC Fábrica Pompéia Totem Sinalizador Lina Bo Bardi 1977
e crítica, aproxima o sujeito do trabalho e, portanto expressa emoções. Os desenhos, nos quais as linhas parecem voar pelo papel, se apresentam como uma história, uma observação ou até um passeio por determinadas situações do mundo e da vida. A linha se torna um jeito de olhar, uma nova perspectiva, uma ação. O traço em ambos os desenhos mostra uma relação aberta com possíveis equívocos e erros, está interessado mais na ação do que no resultado, a linha importa mais que o desenho, já que esta que se mantém fiel à realidade e a intenção de quem a traça. O olhar dos dois artistas questiona: Como o mundo funciona? Como as coisas se relacionam? O que quero ou devo mostrar? A matéria prima dos trabalhos parece não ter fim, mas não por acaso. Essa é sempre extraída do mundo circundante – sua natureza, espacialidades ou relações. O olhar está sempre em busca de uma nova realidade ou da mesma vista por outro ângulo e assim continua a gerar novas perguntas e novas intenções. As linhas de Lina e Steinberg descrevem movimentos infinitos que podem subitamente desaparecer, esses são reflexos da existência humana; talvez a principal investigação de ambos. 81
TÉCNICAS
< CROQUIS Casa Elza Berquó Vilanova Artigas, 1967
< CROQUI Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Vilanova Artigas, 1961-69
< CROQUI Edifício Louveira Vilanova Artigas, 1946 82
[ o tempo das mãos ]
> Caminhos da Arquitetura Vilanova Artigas São Paulo: Cosac & Naify 1999 p. 69
As ideias anteriores sobre as linhas remetem à aproximação etimológica entre o desenho e o designo explorada por Vilanova Artigas em seu livro Caminhos da Arquitetura. Enquanto o designo faz às vezes da intenção ou do desejo, o desenho está relacionado à materialização de uma ideia e, consequentemente, às técnicas que a tornam possível. Aproximando as duas palavras em significado, Artigas relaciona essas duas etapas da expressão humana: da intenção e da materialização. A técnica passa a ser uma ponte, uma ferramenta, com a qual alcançamos objetivos e realizamos intenções. Na aproximação de Artigas a técnica não se separa da arte, sendo ambas ferramentas de expressão.
O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012 >
< Os desenhos ao lado mostram a primeira etapa do processo que materializa intensões. Como croquis, eles tendem a mostrar as intensões do arquiteto, mas ja investigam passíveis materializações. O da FAU, por exemplo, ja mostra a intensão estrutural técnica - que vai viabilizar a construção.
A aproximação do desenho e do designo de Artigas traz a tona a proposta do livro O Artífice, no qual Sennett investiga maneiras de articular o fazer e o pensar, a partir das formas do trabalho e das suas relações. As duas aproximações buscam um mesmo ideal, que acredita ser essencial cada indivíduo possuir os meios necessários para sempre avaliar e criticar suas próprias práticas. Em outras palavras, a aproximação fala sobre a importância de cada mão possuir uma consciência.
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ARTICULAÇÕES A articulação está presente em todas as ideias expressas acima. A mão nos articula com o mundo circundante, a linha articula nossas identidades e intenções com a mesma realidade, a técnica consciente promove a articulação entre o fazer e o pensar, entre o desenho e o designo. Como foi explicado no início do processo, o trabalho já havia começado com a busca por desarticulações, para promover, por meio do projeto, novas articulações. O foco, que começou abstrato e pouco explicativo, achou suas referências nas ideias expostas anteriormente. A intervenção, então, buscou apropriar-se dessas ideias, praticá-las e promove-las por meio da arquitetura. Desse modo não só o projeto seria desenvolvido, mas a própria prática seria um elemento de pesquisa. A arquitetura proposta busca o caráter desses mesmos elementos; busca incorporar as ideias de mãos, linhas e técnicas, espalhá-las pela cidade e, assim, promover esse tipo de articulação entre os habitantes e suas cidades de forma mais concreta. Essa intenção foi se formando, se descobrindo e se desenvolvendo durante o processo, como foi dito começou ampla e abstrata e foi achando suas bases a partir do desenvolvimento do projeto e das leituras paralelas. 84
> “Uma ponte” Alexander Brodsky & Ilya Utkin Os arquitetos russos participavam de um grupo de arquitetos auto-intitulado “paper architects” e buscavam expressões e formas de arquitetura contra o cenário extremamente realista da época do socialismo soviético. O caráter teórico do desenho exemplifica a ideia de articulações que engloba as mãos, as linhas e as técnicas - busca pensar e instigar. Além disso a “ponte” cruzando os dois lados do “penhasco” é uma articulação física, uma peça que se junta a outras duas e cria um novo conjunto.
[ o tempo das m達os ]
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[ o tempo das mãos ]
Como forma de explicar e exemplificar essas intenções e suas proposições práticas, as etapas do processo arquitetônico foram articuladas às ideias expostas por Sennett em sua busca por aproximações entre o fazer e o pensar. As principais ideias que se relacionam mais diretamente com a arquitetura e com o presente processo projetual são as de ferramentas, ambiguidades, resistências e consciências. As quatro se apresentam como formas de ações humanas e têm um caráter ideológico. O uso e entendimento das ferramentas, a percepção a partir de ambiguidades, a relação com as resistências e o desenvolvimento da consciência são posturas humanas que buscam um cenário mais articulado no qual cada indivíduo tem uma responsabilidade maior sobre suas ações. As quatro relações se transformaram em capítulos e apresentam a pesquisa e o projeto desenvolvido. Cada uma contém um tema de pesquisa ou análise e uma investigação projetual. Desse modo, sua sequência apresenta as leituras, as referências e o projeto.
< City, Ben Tolman, 2013 87
Ferramentas e [ Programas ]
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â&#x20AC;&#x153;ferramentas estimulantesâ&#x20AC;?
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[ ferramentas e programas ]
A ideia de ferramenta, aqui, está ligada as ideias de ação e relação, as mesmas presentes quando falamos sobre as mãos. Não a toa ao pensarmos em ferramentas logo pensamos em mãos. Ao usar uma ferramenta o sujeito se engaja em uma ação e estabelece relações físicas e mentais tanto com a ferramenta quanto com o objeto produzido. A arquitetura pode ser pensada desse mesmo modo, como sujeitos estabelecendo relações, uns com os outros ou com os espaços. > Architecture and Disjunction Bernard Tschumi MIT press, 1996 p.122
Tschumi aborda esse tema em seu livro e chama de violência essa relação entre corpos e arquiteturas. O termo denota a intensidade da relação e seu potencial de romper barreiras e quebrar paradigmas. Contrapondo as tradições teóricas da arquitetura, as quais defendiam que os espaços produzidos deveriam conduzir as ações e, portanto, que a forma seguia a função. Tschumi defende que as ações são independentes dos espaços, os dois objetos devem responder a ordens distintas.
< Hans Hollein Man Transforms
A arquitetura, então, passa a ser o encontro, ou conflito dessas duas ordens. Do espaço para acontecimentos, a arquitetura passa a ser os acontecimentos no espaço - que pressupõe a entrada de corpos e ações . E essa invasão de uma ordem em outra é a violência na arquitetura ou o evento, explorados pelo arquiteto 91
Fazendo uma analogia às ideias anteriores, podemos imaginar a arquitetura como uma ferramenta. Desse modo, quem a usa ou habita é o sujeito da ação, e o objeto a ser criado são as dinâmicas do espaço. Quando a arquitetura se torna uma ferramenta, as pessoas se tornam mãos e as dinâmicas, objetos.
> “Follies” Bernard Tschumi Parc La Villatte 1983 Os Follies exemplificam as ferramentas ambiguas. A palavra Folly significa “loucura” “disparate”. Na arquitetura são construções sem uma função específica ou funcional. São construções mais expressivas do que práticas. Tschumi espalha sobre a planta do parque vários follies, que assumem diferentes formas e são encarregados de atrair as pessoas e reuni-las, criando dinâmicas e ocupações.
< Implantação do parque Bernard Tschumi Parc La Villatte 1983 92
[ ferramentas e programas ]
93
“consertos dinâmicos” folly for a flyover
O projeto Folly for a Flyover, do coletivo inglês Assemble, cria outro Folly e mais uma vez exemplifica as ideias de ferramentas e ambiguidades. O projeto se apropria de um espaço residual, sob um viaduto e busca ativar novas dinâmicas. Como os follies de Tschumi, não possui um programa específico, varia conforme horário e época dependendo principalmente dos seus usuários. De dia possui um café e um espaço comunitário para reuniões e outras formas de interação. De noite abriga peças, eventos, apresentações e outros tipos de reuniões. < Folly for a flyover Assemble Studio Hackney Wick Londres De dia o espaço fica aberto para que as pessoas sentem, parem ou e encontrem.
94
[ ferramentas e programas ]
Sua materialidade também se assemelha a uma ferramenta, possui um caráter inacabado que, justamente, engaja qualquer um com qualquer habilidade a se envolver em sua construção e mantimento. O espaço pertence e serve às pessoas que o usam e seu foco principal são as novas relações estabelecidas.
> Folly for a flyover Assemble Studio Foto mostra o projeto sendo construído.
95
< O projeto permite aos usuários inventar novas relações entre si e com a cidade. Assim como as ferramentas difíceis, a arquitetura pretende quebrar os moldes de finalidades específicas e estimular novas tentativas.
< Relação com o viaduto e com o canal.
96
[ ferramentas e programas ]
Ao falar sobre ferramentas, Sennett as relaciona com a intuição e com o estímulo. As “boas” ferramentas devem estimular quem as usa e suas respectivas intuições. A diferença entre construção e conserto exemplifica essas ideias. Muitas vezes a construção inicial se baseia no uso específico de uma ferramenta, o mesmo pode acontecer com o “conserto estático”, aquele que conserta o antigo reconstruindo-o igual ao que era antes.
> O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012
Mas nem sempre o conserto é estático. Outro tipo de conserto cria um novo objeto a partir do velho. Esse é o “conserto dinâmico”. A relação com as ferramentas está intimamente relacionada a essa outra forma de consertar. Sennett diz que as ferramentas “difíceis”, aquelas que não apresentam uma função específica e abrem espaço para novas e diferentes interpretações são essenciais para os concertos dinâmicos. No ato de consertar, os objetos são repensados, e desse modo as ferramentas devem se adaptar as novas formulações. Portanto, quanto mais abrangentes são as ferramentas, mas estimulantes elas podem ser, ajudando a ativar intuições e criar inovações e, assim, consertar de maneira dinâmica. Voltando a relação anterior entre ferramentas e arquitetura, os programas assumem essa característica de adaptação e abrangência. Assim como no caso do projeto Folly for a flyover. 97
mon oncle jacques tati
“Entre o mundo do construído e o mundo do habitado existe um campo fértil para cálculos e erros, para intenções e acasos. Nesse campo existe um potencial para a expressão que engaja não o comediante nem a expressão autoconsciente da arquitetura pós-moderna, mas, como acontece com Jacques Tati, o acontecimento de situações e o desenvolvimento de habilidades.”
< Never Modern Irénée Scalbert & 6a architects Switzerland: Park Books 2013
> Cena do filme Mon Oncle
< Jacques Tati (1907 - 1982) Tati começou sua carreira artística como mímico, mas logo começou a escrever roteiros e a atuar em filmes. Seus filmes trazem muito do mundo da mímica e do teatro. Têm um caráter improvisado que requer habilidade e ousadia. Essa característica se aproxima da vida e do mundo, por isso ele se torna um exemplo para o trabalho. 98
[ ferramentas e programas ]
O filme Mon Oncle, de Jacques Tati ilustra de maneira muito espirituosa e cômica essa distinção entre o mundo moldado pelas finalidades e o mundo das ferramentas estimulantes. O protagonista do filme, interpretado pelo próprio Tati, é o Meu Tio, ou do menino que durante o filme transita entre dois mundos, o do tio e o dos pais. O filme mostra as duas vidas; ou quando o tio visita sua irmã ou quando pega o sobrinho para passarem o dia juntos.
99
Na vida dos pais, a casa é super moderna, tudo parece novo e ter um porquê: o caminho de pedras no chão deve ser seguido a risca, mesmo sendo sinuoso e longe de ser o mais prático. A disposição dos móveis se mantém fiel durante todo o tempo, cada equipamento da cozinha tem o seu específico propósito, todos automatizados e independentes. A fonte, um enorme peixe em pé no meio do jardim, é ligada rigorosamente após a campainha tocar, mas se não for um vizinho ou alguém a ser impressionado é logo desligada. O próprio tio, por exemplo, nunca tem o privilégio de ver a fonte funcionando por muito tempo, logo que veem apenas ele chegando desligam a fonte fazendo uma cara de desapontamento. As “ferramentas” presentes na casa moderna dos pais do menino exercem a sua função e apenas isso, são estáticas nesse sentido, e fazem da vida algo programado, sem graça nem invenção, já que matam qualquer estímulo possível. O menino, então, adora passar os dias com o tio, que o busca de bicicleta e o leva para outra parte da cidade. Na cidade “desprogramada” tudo pode acontecer, só depende da sua imaginação. As brincadeiras são feitas nas ruas e envolvem pessoas. O mundo menos específico se torna muito mais interativo e tudo pode ser estimulante. 100
[ ferramentas e programas ]
> A cena do filme mostra a mão do menino recebendo uma visita em sua casa. Apesar de estarem indo de encontro uma à outra, devem seguir o caminho do chão . A fonte aparece ligada no meio do caminho.
> Contrariamente, a vila do tio é um ambiente livre, sem marcações ou caminhos. As pessoas viram as protagonistas do espaço.
101
102
[ ferramentas e programas ]
< Na cena Tati aparece no último andar, entrando na sua casa, após ter percorrido todo o edifício; suas escadas e janelas.
> Never Modern Irénée Scalbert & 6a architects Switzerland: Park Books 2013
> Never Modern p.95
Diferente das ferramentas que ordenam a vida, na cidade do tio as ferramentas se adaptam a ela tornando-a mais importante que as ordens ou prédefinições. Nessa cidade, as relações e as dinâmicas são protagonistas. Essa intenção fica clara no edifício no qual o Tio mora. A primeira vista nada do edifício faz sentido, este parece uma junção de elementos que não se alinham nem se conectam. Quando o personagem entra pelo pátio no térreo e percorre todo o edifício até chegar a sua residência fica clara a intenção de Tati na qual “prazer é o motivo e fantasia é a regra” O edifício se materializa no movimento do personagem, nas suas ações. Nenhuma janela é igual, mas o que fica evidente não é essa distinção, e sim o que cada uma mostra do personagem durante seu percurso; uma seus pés, outra seu corpo ou sua cabeça, uma mostra o descer da escada e a última parece estar ali apenas para refletir a luz do sol sobre o passarinho e fazê-lo cantar. E a música, então, rouba a cena e continua mostrando a vida na vila do Tio. “Em Mon Oncle, a comédia humana vem em primeiro e o cenário em segundo, como um suporte literal para as ações.”
103
o teatro oficina lina bo bardi
“Passado e presente, velho e novo, arquitetura e cidade, atores e público encontram-se em uma proximidade e promiscuidade total nesse teatro sem bastidores nem cortinas, uma perfeita réplica do palco italiano. Aqui não há lugar para espectadores, mas apenas para atores; o público, os técnicos, a arquitetura e os objetos entram literalmente em cena lado a lado com os atores. A proposta revolucionária dissolve o mito do teatro “caixa dos sonhos” para sugerir um modo de vida real e possível, muito próximo ao dia a dia da gente simples que não forja sua existência e vive a vida sem representações.”
< Olivia de Oliveira Lina Bo Bardi Obras construídas p.184
> Edson Elito Croquis do projeto original de Lina Bo Bardi 1987
104
[ ferramentas e programas ]
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< Lina Bo Bardi. Croquis para o cenário da peça Na selva das Cidades
< Lina Bo Bardi. Croquis para o cenário da peça Na selva das Cidades
“A concepção da atual restauração do teatro nasceu, em parte, do cenário imaginado para a peça Na selva das cidades, que pressupunha praticamente a demolição do teatro anterior. Naquele momento, havia nascido também a ideia de varar o edifício, como se uma rua atravessasse o teatro desde sua entrada, na rua Jaceguai, até a rua Japurá, situada nos fundos. A ideia era de criar uma via de passagem potencializada pela característica pedestre do bairro do Bixiga, um dos mais antigos da cidade de são Paulo.” 106
< Olivia de Oliveira Lina Bo Bardi Obras construídas p.184
> Teatro Oficina Foto: Melissa Aidar
[ ferramentas e programas ]
107
108
[ ferramentas e programas ]
< Teatro Oficina cortes do projeto
O edifício da companhia do Teatro Oficina construído na década de 20, sofreu um incêndio em 1966. Nos anos seguintes Lina conhece José Celso Martinez Corrêa, diretor do grupo e um de seus fundadores. A partir dai, Lina faz o projeto de cenários para algumas das realizações do grupo. De um desses cenários, nasce a concepção que gerou o atual Teatro Oficina, projeto de Lina com Edison Elito. O novo teatro se constitui pela apropriação integral do espaço. Tudo é palco, tudo é cenário e tudo é plateia. O chão se torna uma “rua” e a ideia de percorrer o espaço prevalece sobre a própria construção. Assim como no edifício de Jacques Tati e nos projetos de Bernard Tschumi, o percurso dos personagens é a própria arquitetura. > Architecture and Disjunction Bernard Tschumi MIT press, 1996
< Teatro Oficina Foto: Nelson Kon
Ao falar sobre as inter-relações entre os eventos e os espaços, Tschumi diz que “as ações qualificam os espaços do mesmo jeito que os espaços qualificam as ações”. O teatro oficina se torna esse cenário para a inter-relação - uma ferramenta dinâmica. As peças são uma co-atuação entre atores e público, cenário e plateia, espaço e acontecimento. Como uma extensão da cidade (prevista em projeto) o espaço do teatro é o palco para todo e qualquer acontecimento. Essa postura aproxima as pessoas da cidade por meio da ação. A cidade entendida como evento pressupõe que seus habitantes sejam atores em seus espaços. E que seus espaços sejam palcos para o evento. 109
O PROGRAMA COMO FERRAMENTA
As intenções iniciais de promover experiências e relações entre as pessoas, agora, tornariam o programa duplo, como forma de articular e ser articulado. Uma primeira parte dele assumiria um caráter informal, faria a conexão das pessoas com a cidade e com as outras partes do projeto. Para tal, essa parte do programa deveria aceitar múltiplas, distintas e inesperadas atividades – assumir um caráter público, dentro do projeto - e ter a flexibilidade necessária para abrigá-las ou suportá-las. Seria um palco para os possíveis eventos ou eventualidades. Nessa parte do programa foram previstos um pavilhão, cafés, espaços multiuso, um teatro aberto, comércio e uma sala de cinema. A segunda parte, mais formal, seria voltada para as práticas manuais. Além da vontade de explorar as diferentes formas desse tipo de prática, fomentando discussões, aulas, encontros, parcerias e outras formas que essas atividades possam gerar, o programa busca atrair para áreas centrais esse tipo de trabalho e, consequentemente, seus produtos, sua comercialização e as interações sociais nas quais ele se desdobra. Essa segundo parte abrigaria ateliers para os diferentes tipos de práticas manuais (metais, madeira, tecidos e
[ projeto - centro de práticas manuais ]
culinária), um museu do tema, uma biblioteca voltada a pesquisas e um espaço multiuso para possíveis workshops, exposições ou encontros. A disposição do programa buscou relacioná-lo com os locais da cidade. A rua Augusta e a rua Avanhandava receberiam programas para o público - o pavilhão, o cinema, cafés e as áreas livres para serem ocupadas. Nessa porção do projeto grande parte do terreno estaria na projeção do viaduto, com exceção de um trecho estreito e longo que liga a Rua Avanhandava à Rua Augusta. A ideia de eixo aqui, se transformaria em uma galeria, lateral ao viaduto - juntaria o percurso à lojas, um pequeno mercado e cafés. Vinculado a Rua Santo Antônio - área mais ampla do território escolhido para a intervenção - o programa assumiria o caráter mais formal, abrigando os ateliers, o museu, biblioteca, e espaço multiuso. A ideia de ampliar o “chão público”, que apareceu no capítulo do processo, seria aplicada à esse trecho do projeto - entre a R. Santo antonio e a Av. Nove de Julho - e criaria um térreo dividido em quatro andares.
111
[ pavilhão ]
rua augusta
[ percurso e café ]
[ praça e foyer ]
rua avanhandava
[ comércio e cinema ]
a
viaduto julio de mesquita filho
b
implantação
[ projeto - centro de prĂĄticas manuais ]
[ ateliers ]
[ percurso ]
[ museu ]
[ acesso e cafĂŠ ]
[ teatro e cultura ]
rua santo antonio
av. nove de julho
[ passarela ]
N
a
b
0
5
10
20
113
[ pavilhĂŁo ]
corte a
[ cinema ]
[ praça e foyer ]
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
[ atelier metais ] [ passarela ]
[ atelier tecidos ]
[ acesso ]
[ atelier madeira ]
0
5
10
20
115
[ comércio ] [ pavilhã ]
corte b
[ café ]
[ percurso ]
[ elevador ]
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
[ biblioteca e espaรงo multiuso ] [ passarela ]
[ elevador ]
[ percurso ]
[ teatro ]
0
[atelier culinรกria]
5
10
20
117
[ galeria ]
acesso r. augusta
acesso viaduto
corte c
- cinema
[ percurso ]
[ mercado ]
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
[ viaduto ]
[ cinema ]
[ รกrea externa do cinema ]
0
1
2
5 119
[ biblioteca]
[ espaço cultural ]
[ restaurante ]
corte d
- atelier e teatro
[ percurso ] [ possível palco ]
[ possível platéia ]
[ teatro aberto ]
[ nível de acesso ao atelier ]
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
[ รกrea externa ao atelier ] [ viaduto ]
[ atelier ]
[ jardim ]
0
1
2
5
121
AMBIGUIDADES E [ PERCURSOS ]
122
123
AMBIGUIDADES aldo van eyck
124
[ ambiguidades e percursos ]
A ambiguidade está sendo relacionada à falta de definições claras. É oposta às definições, rótulos ou especificações. As especificidades, como foi descrito no capítulo anterior, assumem o papel de pensar por nós e fazem com que nossa relação com o mundo seja muito mais passiva do que ativa. Os dois mundos do exemplo anterior - Mon Oncle - podem ser entendidos também como um mundo “concreto” e outro “ambíguo”. As diferenças analisadas por meio da ideia de ferramentas podem ser transferidas para cá. E podemos dizer que é justamente a ambiguidade das “ferramentas difíceis” que ativam a intuição e a relação intensa com os objetos ou com o mundo.
< Parque do Jogo Aldo Van Eyck Dijkstraat Amsterdam, 1954 O arquiteto aproveita espaços não utilizados e cria praças para o convívio e a interação das pessoas.
As ambiguidades, então, interferem na nossa percepção, na forma com que interagimos com as coisas. Elas ativam a curiosidade e o engajamento. Ao nos relacionarmos com situações, pessoas, espaços ou objetos ambíguos somos forçados a ativar uma postura questionadora e buscamos entender cada parte da situação para podermos nos situar. Desse modo as ambiguidades, além de fortalecerem as relações, fortalecem a nossa posição. Se algo concreto é apresentado à nós não precisamos pensar “o que é?” “pra que serve?” “como posso usá-lo ou interagir com ele?”. Contrariamente, quando nos deparamos com algo ambíguo somos forçados a estabelecer todas as relações e consequentemente estabelecemos uma posição dentro dessas relações. 125
Após a segunda guerra mundial o arquiteto Aldo Van Eyck se tornou um exemplo da possível materialização da ambiguidade por meio da arquitetura. O arquiteto passou a ocupar espaços vazios de Amsterdam criando pequenos parques e praças. Os espaços sem uso definido ganharam equipamentos, pisos, desenhos e materiais. Mas o mais interessante são os limites nos projetos do holandês, ou a falta deles.
> Aldo Van Eyck. Buskenblaserstraat, 1955
Nas praças, os limites não são demarcados propriamente. Às vezes o que define um lugar é uma mudança do material do piso; caixas de areia se juntam com o piso público ou a grama e a apropriação e utilização do espaço, então, recai sobre os usuários. A falta de limites e determinações servia como convite para que as pessoas decidissem como iriam se relacionar umas com as outras e com o espaço da cidade, mas o mais importante era gerar esse relacionamento. Em Buskenblaserstraat a falta de limites entre a rua e a praça fazia com que as próprias crianças ajudassem umas as outras na ocupação do espaço e nas suas atividades. Cabia ao outro avisar se um corria perigo, por exemplo. Ou se essa ou aquela brincadeira era melhor aqui ou ali. A palavra tátil remete ao primeiro capítulo e às mãos. A diferença tátil gera a experiência tátil que, por sua vez, culmina no conhecimento tátil – aquele adquirido de forma empírica, diretamente da curiosidade e das relações com o mundo físico. Sennett dá ênfase à esse tipo de experiência, uma que articula nossas práticas à nossa consciência. 126
>
Sennett, Richard p.259
[ ambiguidades e percursos ]
“A ausência de uma divisa nítida entre a areia e a grama era deliberada, permitindo ao bebê explorar essa diferença tátil.” 127
PERCURSOS richard serra
< “Tilted Arc” Richard Serra Manhattan- Federal plaza 1981 128
[ ambiguidades e percursos ]
>
As Obras de Richard Serra também proporcionam uma relação ambígua, agora relacionando a percepção ao percurso. A percepção de suas obras decorre do percurso de quem as visita - sua visita é seu percurso. As obras não se definem como um objeto, para descobrilas é necessário se relacionar com elas. Ao criar um obstáculo no chão público, por exemplo, Serra está nos desafiando, nos convidando – de forma ambígua – a estabelecer uma relação com o objeto, percorrelo de diferentes maneiras, sentir sua presença em seus diferentes momentos. A ambiguidade aparece nessa postura que questiona que cria perguntas ao invés de dar respostas.
Rem Koolhass em palestras concedias comenta sobre essa postura do artista para exemplificar a diferença entre desafio e conforto que, para ele é fundamental no Ele afirma em uma entrevista que as formas curvas, entendimento da vida por exemplo, permitem diferentes interações e percepções. Uma parede curva, se percorrida no contemporânea. Atualmente o mundo valoriza o conforto ao invés do desafia o concreto ao invés do ambíguo.
interior de sua circunferência permite a percepção de toda sua extensão de uma só vez. Mas, se percorrida pelo exterior da circunferência, não revela em nenhum momento sua totalidade. A mesma peça permite diferentes percepções e interações, e quem as percorre tem a liberdade de se relacionar e criar seu próprio entendimento.
A ambiguidade relacionada ao percurso, então, tem a ver com a percepção e o relacionamento estabelecido com o espaço. E, como mostram as obras de Richard Serra e de Aldo Van Eyck essa relação pode ser instigada pelos espaços, pela sua falta de definições ou pelas múltiplas leituras permitidas. 129
VELOCIDADES
< “There is no front facade, only a front door. The weekend house is conceived as a passage from physical entry to optical departure or, simply, a door to a window.” Diller Scofidio + Renfro memorial da Slow House, 1991 O projeto da casa de fim de semana - Slow House - está muito relacionado às ideias de percurso e velocidade. A concepção parte de um percurso que começa na porta de entrada e termina em uma janela voltada ao mar. As sessões do percurso formam os espaços da casa. e a percepção criada a partir do movimento e das vista se torna o conteúdo principal do projeto. 130
[ ambiguidades e percursos ]
Tanto a percepção quanto o percurso acontecem no tempo. Para percorrer ou perceber precisamos nos engajar em uma relação que se prolonga por determinado tempo e que, consequentemente, tem uma determinada velocidade. A velocidade aproxima essas ideias ao trabalho e se torna uma ferramenta para análise da área estudada; de seus elementos e das possíveis proposições em projeto. As diferenças entre o “concreto” e o “ambíguo” tanto no espaço quanto no percurso, se forem aplicadas à ideia de velocidade, a dividem em duas – uma concreta outra ambígua. Para exemplificar chamaremos a primeira de Velocidade de origem e destino e a segunda de Velocidade da percepção. O trabalho defende a percepção por acreditar na sua capacidade de criar relações mais fortes e vínculos mais profundos nas pessoas. Desse modo a primeira velocidade será exemplificada a partir dos elementos que conformam a área de estudo, busca entendê-los a partir de sua percepção. O segundo tipo de velocidade será analisada partir de exemplos. Seus possíveis desdobramentos serão explorados no desenvolvimento do projeto.
131
velocidade de origem e destino av. nove de julho e radial leste - oeste < A foto mostra a Av. Radial Leste sobre o Viaduto do Café próximo à entrada do túnel sentido centro.
132
[ ambiguidades e percursos ]
> Conexões Urbanas: Avenida Nove de Julho Eduardo Colonelli
“Do ponto de vista da circulação e do transporte, significou a opção por um sistema de transporte coletivo de superfície, do momento de transição do bonde para o ônibus, e do incremento do uso do transporte individual através do automóvel”. Na lógica de Prestes Maia, para a implantação do plano de melhoramentos para São Paulo, as diretrizes destacadas acima faziam do fundo de vale estreito a situação geográfica perfeita para a funcionalidade buscada pelo projeto. A Avenida Radial Leste-Oeste também respeita e mesma lógica; fluxo rápido e livre de cruzamentos. Para tal também se transforma em túnel, viaduto ou via expressa na superfície, dependendo do relevo nos seus vários trechos. Em ambos os casos, a velocidade é a diretriz e a finalidade do projeto, a velocidade de mobilidade urbana, principalmente individual pelo carro. Essa velocidade cruza o território, não permite relações com cada lugar da cidade, é uma velocidade de passagem. Respeita sua função apenas - levar os carros de A até B.
> SENNETT, Richard, 2001:28
“A ideia de espaço público como derivação do movimento corresponde exatamente às relações entre espaço e movimento produzidos pelo automóvel particular. (...) As ruas da cidade adquirem então uma função peculiar: permitir a movimentação.” 133
134
[ ambiguidades e percursos ]
< Foto tirada da praça Roosevelt olhando para a extensão do viaduto do café no sentido leste
> Entrada do túnel.
> Espaço aberto para o viaduto com vidro. Ao passar de carro é quase impossível percebê-lo. 135
136
[ ambiguidades e percursos ]
> Após a construção da avenida e do loteamento de sua extensão, o vale foi dividido em duas cotas apenas, a alta e a baixa. As escadarias fazem essa conexão direta, entre o ponto A e B - alto e baixo.
< Na extensão do viaduto o percurso se torna um corredor com muro de um lado e grade de outro. Do outro lado da avenida um muro bloqueia a passagem, obrigando o pedestre a cruzar pelo viaduto ao lado - Martinico Prado - ou pela calçada do próprio viaduto do café. 137
velocidade da percepção Witchcraft Trials Memorial, Peter Zumthor
< Peter Zumthor, Witchcraft Trials Memorial, 2007-2011 A foto mostra o interior do pavilhão, com as placas para cada vítima, as janelas em diferentes alturas e as lâmpadas vindas do teto.
< Peter Zumthor, Witchcraft Trials Memorial, 2007-2011 As janelas iluminadas ao entardecer reproduzidas pelo arquiteto em seu pavilhão.
138
[ ambiguidades e percursos ]
> Peter Zumthor, Buildings and Projects Vol. 4
Na apresentação de seu projeto para o memorial, Zumthor começa falando do lugar – Vardo – e da percepção que ele gera. Conta que a falta de árvores e o solo rochoso aparentam não revelar nada, mas sob um olhar mais atento se percebe pequenas plantas com diferentes formas criando um carpete vivo sobre as rochas. A antiga vila de pescadores atualmente parece deserta, restam poucos barcos, alguns decks que se alongam para o horizonte e muitas casas abandonadas. Antigamente, segundo o arquiteto, cada janela de cada casa se acendia com uma lâmpada ao entardecer e a vila se iluminava pelas janelas. O projeto parece partir em grande medida dessas observações. O programa se desenvolve em um pavilhão alongado, como decks de madeira, só que paralelo ao mar. Ao longo do percurso interno cada mulher, vítima das acusações de bruxaria, ganha um placa contando sua história. Cada uma dessas placas acompanha uma janelinha e uma lâmpada em seu interior de modo a criar uma parede de janelas iluminadas, como na antiga tradição da vila.
139
o ritmo
140
[ ambiguidades e percursos ]
< Peter Zumthor, Witchcraft Trials Memorial, 2007-2011 foto: Helene Binet
O pavilhão dá forma às ideias acima a partir de um corte transversal que se repete até atingir o comprimento necessário para abrigar todas as vítimas. Desse modo, o ritmo da estrutura é o que gera a percepção do projeto - seu volume.
A estrutura se prolonga no eixo a partir da sua própria repetição. O ritmo estrutural da ao memorial sua forma e volume.
> Peter Zumthor, Witchcraft Trials Memorial, 2007-2011 Corte transversal mostra a estruturua que se repete e o percurso interno com lâmpadas, placas e janelas. 141
Sennett também trata do ritmo, sob outra perspectiva - a da prática sendo aperfeiçoada. O ritmo na prática acontece com a aproximação da mão e dos olhos, ou “no olho ocupado em disciplinar a mão”. A repetição é inevitável para o aperfeiçoamento das práticas e o prolongamento das mesmas vem junto com uma consciência e um engajamento maiores. Para conseguir manter um ritmo é necessário um grande domínio da prática e quando isso acontece, a constante percepção passa a avaliar e variar a ação. Aqui o ritmo também está relacionado a percepção e ao prolongamento das ações, ou à velocidades menores e mais perceptivas. Tanto o ritmo de Zumthor quanto o de Sennett nos convida a uma intensa aproximação e percepção, proporciona uma relação intensa entre nós e o mundo físico – ou no pavilhão ou nas práticas. O ritmo, então, passa a ser um dos fatores da velocidade de percepção e será explorado no desenvolvimento do projeto.
142
< O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012
[ ambiguidades e percursos ]
> Peter Zumthor, Witchcraft Trials Memorial, 2007-2011
> Peter Zumthor, Witchcraft Trials Memorial, 2007-2011 Maquete do projeto
143
ocupação transversal
A partir das análises e exemplos expostos anteriormente, o desenvolvimento do projeto buscou duas formas de ocupação que explorassem novas percepções e maiores relações entre os espaços e as pessoas. A primeira se relaciona diretamente com a ambiguidade, fazendo um contraponto à velocidade de origem e destino. Essa ideia se materializa em “ocupações transversais”. O local do projeto é delimitado por ruas e avenidas; acontece ao longo de um viaduto e cruza quatro vias na sua extensão. As plantas, então, foram desenvolvidas de forma a gerar ocupações adjacentes à essas ruas transversais. Nesses pontos o programa se apresenta ambíguo, apropriável e livre. Ao lado o corte do pavilhão junto à Rua Augusta exemplifica essa relação. A rua se extende para dentro do terreno e proporciona um espaço coberto - mas ainda público - para as pessoas. Nas próximas páginas a sequência das plantas mostrará como essa intenção foi desenvolvida nas diferentes porções do projeto.
[ projeto - centro de prĂĄticas manuais ]
corte pavilhĂŁo rua augusta
145
03.
01.
02.
04. 05.
planta nĂvel
761.00 - acesso rua augusta
[ projeto - centro de práticas manuais ]
01. 02. 03. 04. 05. 06.
rua augusta pavilhão apoio percurso café elevador
06.
147
a 01.
b
02. 03. 04.
planta nĂvel
757.50 - acesso radial leste
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
01. 02. 03. 04. 05. 06.
radial leste acesso jardim escadarias percurso elevador
05. 06.
149
02.
01.
03.
07.
04. projeção viaduto
05. 06.
planta nível
761.25 - rua avanhandava
[ projeto - centro de práticas manuais ]
10.
01. 02. 03. 04. 05. 06. 07. 08. 09. 10. 11. 12.
cinema área externa bilheteria mercado galeria elevador rua avanhandava praça café w.c.
acesso à avenida passarela
09.
08.
12.
11.
151
03.
01.
02.
04.
05.
05.
06.
07.
planta nĂvel
745.00 - av. nove de julho
[ projeto - centro de práticas manuais ]
01. av. nove de julho 02. ponto de ônibus 03. rampa de acesso 04. centro de apoio 05. elevadore 06. box de comércio 07. museu 08. “rua” pública 09. w.c. 10. espaço cultural 11. biblioteca 12. acervo 13. jardim 14. terraço
05.
08.
09.
10.
13.
11.
13.
14.
12. 153
01.
02.
03.
07. 07. 08.
09.
planta nĂvel
751.25 - teatro aberto
[ projeto - centro de práticas manuais ]
04.
05.
06.
06.
01. av. nove de julho 02. passarela 03. praça de acesso 04. atelier tecidos 05. atelier metais 06. “atelier externo” 07. elevador 08. percurso 09. museu 10. teatro aberto 11. arquibancada 12. restaurante 13. atelier culinário 14. acesso ao atelier 15. terraço
07. 14. 10.
11.
13.
12. 15.
15. 155
15.
02.
07. 08.
09.
planta nĂvel
757.50 - rua santo antonio
03.
04.
06.
06.
[ projeto - centro de práticas manuais ]
01. passarela 02. praça de acesso 03. atelier tecido 04. atelier metal 05. atelier madeira 06. “atelier externo” 07. elevador 08. percurso 09. museu 10. teatro aberto 11. arquibancada 12. plateia 13. praça de acesso 14. café 15. terraço 16. rua santo antônio
05.
02.
06.
02.
07. 08. 10.
11.
13.
12. 14. 15.
157
ritmo
A segunda estratégia diz respeito a percepção e ao ritmo exemplificados anteriormente com o projeto de Peter Zumthor. O eixo proposto em projeto, que articularia os percursos e os programas, tomaria forma a partir de uma estrutura leve com vãos reduzidos. A parede de circulação, articuladora dos diferentes níveis do projeto, ganharia seu volume a partir da repetição de um corte transversal típico - ao lado. A tentativa foi criar percepção a partir do ritmo. O percurso, mesmo linear e funcional, busca uma aproximação com quem o percorre, um maior envolvimento. O ritmo marcaria a parede em suas diferentes situações; apenas circulação, extensão de espaços mais amplos, café, palco ou plateia para o teatro aberto. Os desenhos a seguir mostram alguns desses momentos onde a circulação busca um caráter menos funcional e mais lúdico a partir de seu ritmo.
[ projeto - centro de práticas manuais ]
0 corte típico da parede de circulação
1
2
5 159
elevação
planta
- trecho da parede de circulação
- trecho da parede de circulação
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
0
1
2
5 161
elevação
- trecho da parede de circulação
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
0
1
2
5 163
RESISTÊNCIAS E [ ESCALAS ]
164
> East - West / West - East Richard Serra 2010 -2014 165
A FIELD OF WALLS (2012)
166
[ resistências e escalas ]
> DOGMA - 11 projects Pier Vittorio Aureli, Martino Tattara
“Se a cidade tradicional é feita de paredes e ruas, a cidade moderna é, cada vez mais, formada pela circulação (...). A circulação não apenas movimenta corpos, mas subitamente, os força a seguir trajetórias pré-definidas. Não mais nos movemos de lugares em lugares, mas de A a B” O trecho acima se assemelha às ideias do capítulo anterior, mas agora o interesse recai sobre a proposta do escritório Dogma para reverter esse cenário dos fluxos contínuos e das trajetórias pré-definidas. O projeto A Field of Walls, de Pier Vittorio Aureli, Martino Tattara e sua equipe, é uma pesquisa sobre o Campo Marzio de Giovanni Battista Piranesi. Foi realizado para a exposição The Piranesi Variations organizada por Peter Eisenman para a Bienal de Veneza de 2012. O projeto parte dos estudos e desenhos de Piranesi, como o trecho acima revela. A proposta da pesquisa é uma nova cidade, que deixa de ser formada pelas circulações e passa a adotar formas e limites como seus definidores. A intenção é subverter a ideia de movimento.
< Field of Walls Dogma, 2012
No trabalho de Piranesi existe um grande interesse na parede como arquétipo. Várias “placas” são dedicadas ao entendimento da parede; como objeto construído na escala mais próxima ou como definidor de limites urbanos em uma escala mais afastada. A cidade podia 167
< Le AntichitĂ Romane I Giovanni Battista Piranesi The Roman antiquities Plate VIII Aurelian Walls 1756
< Le AntichitĂ Romane I Giovanni Battista Piranesi The Roman antiquities Plate XI. Porta Tiburtina 1756
168
[ resistências e escalas ]
ser entendida como um sistema de paredes. Esse sistema se interseccionava com outro sistema infraestrutural - os aquedutos de Roma – que também se materializava em paredes. Piranesi se interessava por essa intersecção. Sua busca pelo desenho dos aquedutos revelou as fronteiras, portões e ruas das futuras porções urbanas da cidade. A cidade feita de paredes do escritório Dogma, então, parte dessa ideia de um sistema de formas cheias - as paredes - desenhar uma cidade. A cidade de formas e limites. > DOGMA - 11 projects Pier Vittorio Aureli, Martino Tattara
“O que é enfatizado é o caráter obstrutivo da parede, como algo que contem, define, separa, reprime, limita, para, articula e divide.” O trecho extraído do memorial se apresenta ambíguo, como o caráter obstrutivo do elemento chave da nova cidade é, justamente, o articulador capaz de gerar novas dinâmicas no espaço urbano?
> O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012
Novamente, Sennett dedica um capítulo a ideia de resistência. E, assim como no trecho do memorial acima, aproxima as palavras limite e articulação.
169
Planta da proposta.
â&#x20AC;&#x153;Nosso projeto radicaliza esse aspecto de Campo Marzio superimpondo quinze paredes sobre a planta originalâ&#x20AC;? 170
[ resistências e escalas ]
Cortes das paredes habitáveis
DOGMA - 11 projects Pier Vittorio Aureli, Martino Tattara < >
“ O corte da parede é organizado como uma sequencia de nichos habitáveis. Estes não são nem casas nem outras tipologias; oferecem espaços para formas de habitação definidas apenas por aberturas e fechamentos.” 171
RESISTÊNCIAS – DIVISAS E FRONTEIRAS
< Planta de uma das mais antigas cidades ou formas urbanas segundo Pier Vittorio Aureli. Extraida de apresentação “The Possibility of an Absolute Architecture” O início da urbanização esteve fortemente vinculado aos limites. A cidade era conformada pelo seu limite e as áreas mais pulsantes, de mais troca se aglomeravam perto de seus portãos; nas fronteiras com o exterior.
172
[ resistências e escalas ]
> O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012
> O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012 p.254
O Artífice Richard Sennett R.J: Record, 2012 p.254 >
As resistências são fatos que antepõem à vontade imediata. “Se apresentam de duas maneiras, as que são encontradas e as que são produzidas.” O autor explora as maneiras de lidar ou trabalhar com as resistências. Podemos, basicamente, trabalhar com ela ou contra elas. Uma primeira relação pode ser feita com a intenção do presente trabalho: A cidade feita de paredes, ou de barreiras engaja os cidadãos, os insere em uma relação com o território, mais do que a cidade sem limites, ou sem barreiras. “Os muros merecem em si um pouco mais de atenção, pois na história das cidades os que foram erguidos para funcionar como divisas inertes transformaram-se eventualmente em fronteiras mais ativas.” Tanto as divisas quanto as fronteiras são barreiras, mas a diferença entre as duas aproxima a ideia de resistência à prática arquitetônica. As divisas mantém um território vedado, sem transmissão nem troca de um lado para outro. A fronteira mantém um território interativo entre os lados, se apresenta como barreira, mas permite que haja trocas e interações. Usando os muros das cidades medievais como exemplo, a extensão de um muro seria uma divisa, enquanto seus portões ou pontos de passagem, fronteiras. “Trabalhar com a resistência significa, no urbanismo, transformar divisas em fronteiras.” 173
O trabalho das resistências como fronteiras e, consequentemente, como articuladoras está relacionado à ideia de membranas. A cidade sem limites, voltada para os fluxos - a mesma subvertida por A field of walls - cria ambientes lisos, sem aderência, sem troca. Cada lugar é feito para ser apenas o que é, ou A ou B ou C ou passagem direta. No capítulo anterior essas características foram exploradas sob outro ângulo, mas não deixam de ser semelhantes. O limiar ativo proporcionado pela membrana está justamente na sua porosidade, na sua eficiência em permitir trocas. Esse caráter poroso também aparece no ritmo analisado anteriormente. Nas cidades que trabalham suas resistências como membranas, as dinâmicas tomam para si o protagonismo e as pessoas se engajam em dinâmicas e relações. “A continuidade é a essência do espaçolixo; este aproveita qualquer invento que permita a expansão, revela uma infraestrutura ininterrupta.” O “junkspace” de Koolhaas é um contraponto ao espaço poroso da fronteira. A “infraestrutura ininterrupta” citada tem por finalidade romper, ignorar ou esconder os limites para que seus usuários não percebam o entorno.
174
> Planta para a futura urbanização de Barcelona Ildefonso Cerdá in 1859
< KOOLHAAS, Rem. Tres textos sobre a cidade. GG, 2013:70
[ resistências e escalas ]
A “cidade moderna”, com uma de suas principais raízes no plano de Cerdá, é pautada na ideia de fluxo contínuo, de um plano infinito. Se baseia em uma lógica sem fim, sem fronteiras nem limites. que pode sempre se expandir e abrigar novos espaços. Nesse sentido se assemelha ao “junkspace” e sua infraestrutura ininterrupta.
A percepção é novamente o fio condutor. As resistências, quando trabalhadas, criam espaços com maior interação – troca – maior porosidade e, consequentemente, maior percepção. Os espaços lisos, criados para o fluxo contínuo não incentivam essas características e acabam se distanciando das pessoas.
175
escalas no territ贸rio
176
[ resistências e escalas ]
< Foto tirada do viaduto Martinho Prado mostrando a relação entre os dois viadutos, os edifícios e as pessoas que passam.
Em primeira análise, a área escolhida para desenvolvimento do projeto arquitetônico pode ser identificada como uma intersecção entre elementos resistentes. A resistência, nesse caso, está muito atrelada às escalas desses elementos e à lógica que resultou nessas escalas. Seguindo as ideias expostas acima, o trabalho busca trabalhar com as resistências presentes, transformando divisas em fronteiras. Para tal, os fatos urbanos serão analisados pelas suas escalas, e a futura articulação buscará transitar entre a escala da divisa e a da fronteira, buscando criar porosidades no território. O trabalho Conexões Urbana: Avenida Nove de Julho de Eduado Colonelli usa um trecho da avenida como recorte para estudar possíveis intervenções urbanas que visam esse carater articulador ou de conexão. O primeiro momento da tese se dedica a uma pesquisa dos elementos e características do local, como a implantação do plano de avenidas, os viadutos e os edifícios. Essa pesquisa servirá de base para as seguintes análises e propostas.
> Conexões urbanas: avenida 9 de julho Eduardo Colonelli 2003 p.1
“A área da cidade despertou interesse como objeto de presente estudo devido à peculiaridade do sítio original, da sua inserção estrutural no contexto da cidade e do seu significado como espaço simbólico.” 177
avenida avenida nove nove de de julho julho
178
[ resistĂŞncias e escalas ]
179
Na página anterior
A avenida de fundo de vale foi construída sobre um córrego com a mesma característica, o Saracura. Desse modo seu projeto e inserção urbana estão fortemente vinculados ao território – solo e relevo – preexistente. Graças a essas características do território, construir a avenida significaria uma obra muito mais complexa tanto em termos técnicos como judiciais. Em 1930 seu projeto foi desenvolvido pelo “Plano de avenidas para a cidade de São Paulo”, de Prestes Maia e futuramente realizado. Maia, assim descreve o projeto da futura avenida que ligaria a região central à porção sul da cidade – em crescimento. “A Avenida Anhangabaú mede entre o parque Anhangabaú e a rua Esther, 2270 ms.; o tunnel, 390 ms.; entre o tunnel e a avenida Brasil, 1569 ms. Entre o tunnel e o parque Anhangabaú o desnível é de 50,50ms.; Entre o tunnel e a rua Estados Unidos é de 35,47 ms. De acordo com o projeto em execução a largura da avenida é de 30 ms. (40 entre edifícios) e de 10 a das rampas de ligação à avenida Carlos de Campos. O rond-point S.Manoel mede 100 ms. de diâmetro. À área necessária à abertura da avenida foi de 71.2277,41 ms². Dos quais 7.576,23 doados, 45.035,34 adquiridos por acordo, 11.023,49 adquiridos judicialmente e 7.542,33 dependentes de solução. Volume de terraplanagem executada: 105.000 ms.3.”
180
Trecho do mapa Sara Brasil 1930
< Descrição do plano de melhoramentos para São Paulo. Prestes Maia 1930
> Mapa de São Paulo 1951
[ resistĂŞncias e escalas ]
181
182
[ resistências e escalas ]
A descrição de Prestes Maia para a nova avenida reflete o caráter técnico e funcional que encabeçou o projeto. A partir dessa descrição, podemos dividir a avenida em duas escalas distintas. Uma do eixo longitudinal e outra do eixo transversal. A primeira com uma extensão de aproximadamente 4 km e a outra com 30 m, como diretriz de projeto. Isso reflete a mentalidade funcionalista e pragmática de seus idealizadores – aproveitar ao máximo o córrego existente e ignorar suas margens e terrenos lindeiros, apropriando somente o necessário para a construção das vias de trafego. Desde seus primeiros esboços a avenida possui uma escala que diz respeito à metrópole, visa o fluxo intenso, rápido e de grandes distâncias. Sua idealização funcional com relação ao relevo existente fez necessárias grandes obras urbana, de drenagem, de terraplanagem e de transposições – Os viadutos e o túnel. Essas características indicam uma escala que podemos chamar de macro, pensada sobre o mapa da cidade inteira, o qual não distingue rua de calçada nem lote de quarteirão. Dentro do plano horizontal, podemos relacionar a avenida a uma “finalidade imposta de fora” a qual só se explica vendo do mesmo lugar – “de fora”. < Avenida Nove de Julho vista do viaduto Martinho Prado sentido Centro 183
viaduto julio de mesquita filho
184
[ resistĂŞncias e escalas ]
185
186
[ resistências e escalas ]
Ainda sobre o projeto da avenida, Colonelli diz: > Conexões urbanas: avenida 9 de julho Eduardo Colonelli 2003
“O projeto urbanístico limitou-se a calha da via, cuja concepção privilegiou as questões de fluxo e circulação radial. Os fluxos e circulações transversais e, até mesmo, as perspectivas visuais foram apenas parcialmente considerados. A integração ficou restrita aos viadutos propostos pelo sistema de circulação de veículos, e aos poucos espaços públicos concebidos como complemento das suas escadarias. Espaços com caráter eminentemente de circulação.” Portanto, as duas escalas da avenida foram tratadas de maneira diferente, a longitudinal foi privilegiada e projetada enquanto a transversal ficou ao cargo de projetos independentes. Os primeiros viadutos e suas escadarias, aos quais Colonelli se refere, garantiam, pelo menos parcialmente, uma costura entre as cotas altas e a cota baixa do vale.
< acesso à escadaria do viaduto Martinho Prado que conecta o nível da avenida à cota alta do vale.
Em grande medida os viadutos estão diretamente relacionados às cotas altas do vale, ligam diretamente um lado a outro, como se amarrassem as duas pontas do mesmo. Enquanto às escadarias recai o papel de conectar as cotas no eixo vertical, lembrando-nos da parte baixa do vale e possibilitando seu acesso. Nesses casos, apesar do caráter funcional dos viadutos, sua execução não ignora o vale existente. 187
188
[ resistências e escalas ]
< Viaduto Julio de Mesquita Filho Apenas os pilares chegam ao chão, lançando o viaduto e os carros num voo sobre o vale.
O Viaduto Julio de Mesquita Filho, diferente dos relatados acima, foi inaugurado em um cenário já construído, em 1969. Sua função infraestrutural também é muito diferente, ele faz parte do anel de ligação Leste-Oeste, não está respeitando a mesma escala transversal do vale que cruza, mas sim a escala da metrópole – macro - do mesmo modo que a avenida. Isso fica claro na sua proporção e nas suas extremidades. As oito pistas lançadas sobre a avenida não se encontram com as bordas do vale – na sua cota alta – de um lado o viaduto se transforma em túnel, e do outro ele continua voando sobre a cidade, agora sobre a Rua Santo Antônio. Essas características afastam o viaduto do terreno existente da cidade, do vale e de suas bordas, pela diferença de escala ele apenas ignora esses outros fatos urbanos que já estavam lá.
> Conexões urbanas: avenida 9 de julho Eduardo Colonelli 2003
“(...) uma obra com forte caráter rodoviário que estabelece pouco, ou nenhum, vínculo com o tecido existente.”
189
aproximação de escalas andaimes
< Inside Outside Michael Kirkham Arper’s Brief Magazine 190
[ resistências e escalas ]
Como foi descrito, as escalas da avenida e do viaduto respeitam uma lógica metropolitana e seus respectivos desenhos tem um caráter funcional muito forte. Seu tamanho, sua organização e realização estão afastados das pessoas que possam vir a dividir o mesmo espaço. O viaduto quase não toca o solo, reservando uma calçada estreita para quem quiser se aventurar na travessia. A Avenida, no fundo do vale, possui calçadas largas, mas não permite nenhuma ocupação de suas bordas. Não existe espaço para eventualidades, apenas carros passando, entrando em garagens ou estacionando em alguma loja. Esses elementos se materializam na cidade com uma principal finalidade; proporcionar fluxo, circulação, prioritariamente de veículos. Para tal, suas escalas e limites se tornam impositivos tanto nas dinâmicas quanto no desenho da cidade e do local. Impõe um fluxo direcionado, e deixam pequenos espaços residuais esquecidos. O projeto parte dessa intersecção. Na busca de articular as pessoas com o território se depara com uma necessária articulação entre essas escalas existentes no local. Como, então, se aproximar dessas escalas que se explicam no plano metropolitano?
191
No desenvolvimento do capítulo anterior - programas - o plano horizontal foi interpretado como uma potencialidade no centro, permitindo uma ocupação em diferentes níveis desse “chão” voltado para as pessoas. Agora, a materialização dessa ideia se inicia a partir da relação com as escalas pré-existentes no local. Para realizar a construção dos grandes elementos urbanos comumente são utilizados andaimes, estruturas modulares que podem crescer e atingir a forma desejada. Essas construções levam a escala do operário até a escala da construção. O módulo serve como uma referência fixa da escala humana e a leva para qualquer lugar, independente da forma que o andaime assumir. Essa ideia pareceu interessante para pensar o projeto nesse lugar específico. Talvez os andaimes que assumiram a forma do viaduto e se apoiaram sobre as diferentes cotas do vale para sua construção, possam ser utilizados para construir espaços ocupaveis nesse mesmo entorno. O andaime que construiu o grande objeto, pode ser o andaime que ocupa o espaço residual.
192
[ resistĂŞncias e escalas ]
> Maddaloni Carmelo Baglivo 2013
> Physical Graffiti Foto: Konstantin Gribov] Os andaimes levam a escala humana para qualquer forma que assumirem.
193
[ cafĂŠ ] [ pavilhĂŁo ]
corte da r augusta atĂŠ a r avanhandava
[ escadarias ]
[ acesso viaduto ]
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
[ escadarias ]
[ percurso ]
[ elevador ]
195
[ “rua” pública] [ carros voando ]
corte da av.
[ pessoas voando ]
9 de julho até a r santo antonio
[ percurso ]
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
[ espaรงo cultural ] [ teatro ]
[ atelier - culinรกria ] [ arquibancada ]
[ praรงa de acesso ]
197
[ acesso ao atelier ] [ elevador ]
corte da parede de circulação
[ box de comércio ]
[ projeto - centro de práticas manuais ]
[ acesso ao atelier ] [ elevador ]
[ acesso ao atelier ] [ w.c. ]
[ w.c. ]
[ praça de acesso ]
[ café ]
199
[ jardim ]
[ restaurante ]
corte biblioteca e restaurante
[ biblioteca ]
[ projeto - centro de práticas manuais ]
[ bilheteria teatro ] [ jardim e terraço ] [ atelier - culinária ]
[ café santo antonio ]
201
ConsciĂŞncias e [ Materiais ]
202
203
A PRÁTICA
“O pintor Edgar Degas teria comentado certa vez com Stéphane Mallarmé: “Tive uma ideia maravilhosa de poema, mas parece que não consigo desenvolvê-la”, ao que Mallarmé replicou: “Meu caro Edgar, poemas não se fazem com ideias, mas com palavras.”
<
sennett,
Richard. O Artífice, p.137
< Richard Serra. Splashing, 1969 204
[ consciências e materiais ]
Todo trabalho, pensamento ou intenção humana, se manifesta no mundo por meio de práticas. O trecho ao lado mostra a distância entre a “ideia de um poema” e “um poema”. Para atingir o poema é necessário desenvolver uma relação com as palavras - escolher, combinar, avaliar, reavaliar, alterar, e assim por diante até chegar a um poema escrito. Essas relações e processos são a prática. A arquitetura, como manifestação, não foge à regra e se materializa no mundo por meio da prática. Para a realização de um trabalho consciente é indispensável o engajamento com a prática e, no caso da arquitetura, com os materiais que permitem sua realização. O engajamento com os materiais na arquitetura é equivalente ao com as palavras na poesia, e assim por diante nas diferentes manifestações humanas. Essas relações nos forçam a pensar sobre o que estamos fazendo e sobre como vamos fazer. Consequentemente, nos engaja em um conhecimento prático sobre os materiais, suas características e as formas de trabalhar com cada um deles - as técnicas. Em outro âmbito, o da pintura e escultura, Richard Serra é um grande exemplo de engajamento prático com os materiais.
205
206
[ consciências e materiais ]
< Richard Serra. Verb List. 1967–68. Graphite on paper, 2 sheets, each 10 x 8” (25.4 x 20.3 cm). The Museum of Modern Art, New York.
Desde o começo de sua carreira, o artista americano Richard Serra mantem uma forte relação com as práticas, ferramentas e técnicas que permitem criar suas obras. Na sua obra Verb List, ao lado, fica claro o interesse inicial do artista em uma maneira de materializar uma ideia. A ideia, ou os verbos listados, são a intenção inicial que vai influenciar uma estratégia de produção de um novo objeto. Desse modo, o processo de materialização se torna mais importante que o objeto final - resultado do mesmo processo. Essa ordem de trabalho cria uma forte relação com o material nas obras de Serra. O processo de criação conscientiza o artista sobre as características dos materiais que ele está usando. A maneira pela qual Serra realiza suas obras demostra o engajamento prático e a consciência material que serão investigados nesse capítulo.
207
< Richard Serra. To Tear, 1968
< Richard Serra. To Lift, 1967
> Richard Serra. To Roll, 1968 208
[ consciências e materiais ]
> Richard Serra in video: Tools & Strategies. Art21
“Acho que o que os artistas fazem é inventar estratégias que os permitam ver de maneiras que ainda não tenham visto, estendendo sua visão. [...] inventando ferramentas, técnicas ou processos que os permitam entender uma manifestação material de um jeito que não aconteceria se estivessem lidando com maneiras padronizadas ou acadêmicas de pensar [...] Você constantemente tenta inventar maneiras de ver o que está fazendo para não adotar uma visão viciada de como faz o que faz.”
209
CONSCIÊNCIAS MATERIAIS
210
[ consciências e materiais ]
> Citado em Mãos inteligentes, Juhanni Pallasmaa. Tapio Wirkkala: Eye, Hand and Thought, Taideteollisuusmuseo, 2000, p. 21
“Fazer as coisas com minhas mãos significa muito pra mim. Poderia até mesmo dizer que quando esculpo ou modelo os materiais da natureza, isso tem um efeito quase terapêutico. Os materiais me inspiram e me conduzem a novos experimentos. Eles me transportam a outro mundo. Um mundo no qual, se minha visão falha, as pontas de meus dedos veem os movimentos e a emergência contínua das formas geométricas.”
< Tapio Wirkkala. Pipes, 2000
211
Sennett propõe que existem três principais formas de consciência material, a metamorfose, a presença e a antropomorfose, sendo todas elas formas de relações entre os homens e os materiais.
< O Artífice Richard Sennett RJ: Record, 2012
A metamorfose nas práticas materiais se percebe com a passagem do tempo – nas mudanças dentro de cada prática, ou na influência de uma prática em outra. Essas mudanças, ou diferenças geram estímulos mentais. “[...] são justamente as diferenças (Bateson 1972) que constituem um extraordinário instrumento de informação, pois estas, uma vez selecionadas, articuladas e registradas segundo um método explícito, podem contribuir para desenhar um novo tipo de mapa.” O mapa de Canevacci pode ser comparado à prática de Sennett e, dentro da relação com os materiais, as mudanças convidam os trabalhadores a pensar sobre os produtos, as práticas e a cultura que os rodeiam. A metamorfose de uma prática somada a relação engajada com os materiais aproxima a prática e a razão – as mãos e a cabeça. Enquanto a metamorfose está relacionada com a prática, a presença tem um caráter político. É a representação do homem no material. Materiais feitos artesanalmente, como os tijolos antigos possuíam essa característica, nos seus defeitos e irregularidades 212
< A Cidade Polifônica Massimo Canevacci São Paulo: Studio Nobel 2004 p.17
[ consciências e materiais ]
individuais, cada tijolo mostrava que havia sido feito por uma mão humana. Na construção, os tijolos também levam em si a presença dos operários. Graças ao seu tamanho, fortemente relacionado ao tamanho da mão, cada tijolo evidencia que passou pela mão de um operário para se instalar no seu devido lugar. Finalmente, a antropomorfose tem um caráter metafórico, sendo a representação de características humanas no material, como a virtude ou a honestidade. O artifício da antropomorfose pode driblar a padronização industrial. O uso de tijolos nas obras de Alvar Aalto busca justamente remontar a presença ou a honestidade perdida quando a industrialização faz todos os tijolos idênticos. A alternância de cores e texturas leva os usuários de suas obras a pensar e perceber o tijolo, e o arquiteto a estabelecer uma intensa relação com o material. > Säynätsalo Town Hall Jyväskylä Alvar Aalto 1949-1951
213
< implantação
Alvar Aalto Experimental House Muuratsalo 214
[ consciências e materiais ]
EXPERIÊNCIAS Experimental House, Alvar Aalto
A metamorfose nas técnicas acontece a partir de investigações práticas. Novas necessidades, dificuldades ou referências estimulam a transformação de uma prática. Durante o processo de investigação, a proximidade entre o pensamento e a prática, aguça a consciência material. Dentro do tema tratado nesse caso específico, dos materiais na arquitetura, a investigação muitas vezes se traduz em experimentações. Experiências que buscam novos arranjos, potencialidades, estéticas ou relações entre os materiais. > Alvar Aalto Experimental House Muuratsalo Jyväskylä, 2013
“Not until architecture’s structural elements, the forms logically derived from them, and our empirical knowledge are modified by what we seriously can call play, or art, will we be proceeding in the right direction. […] In our playhouse we wanted to experiment even with things whose practical content no one has yet measured.”
> croqui
Alvar Aalto Experimental House Muuratsalo
215
< parede do atelier
Alvar Aalto Experimental House Muuratsalo
< patio externo
Alvar Aalto Experimental House Muuratsalo
< tijolos
Alvar Aalto Experimental House Muuratsalo
216
[ consciências e materiais ]
A casa ou “playhouse” do arquiteto Finlandês, Alvar Aalto, em Muuratsalo, projetada e construída pelo mesmo, é um grande exemplo da experimentação com os materiais na arquitetura. Tendo sido concebida já com o princípio de ser uma “obra-experiência”, na qual o arquiteto testaria diferentes formas de trabalhar com os materiais - principalmente a madeira e o tijolo - e com as técnicas construtivas, a casa ficou conhecida internacionalmente como experimental house ou “casa experimental”. Por ser o proprietário, projetista e, em grande medida, construtor da casa, Aalto teve grande liberdade no processo, o que permitiu que a experimentação chegasse a seu limite. O trecho acima, extraído de seu livro, deixa claro seu interesse nas ideias de experimentar e modificar. Ele relaciona essa postura de experimentador à brincadeira, descoberta e liberdade. Assim como Serra, o arquiteto busca fugir de padrões pré-definidos. Predefinições que, justamente, vão contra a consciência prática. Essa lógica aparece nos fechamentos, texturas, soluções estruturais, fundações, disposição programática, e sempre está intimamente ligada ao material que responde a cada solução. Fugindo das “soluções padrão” ou às experimentando com as próprias mãos, o arquiteto consegue as avaliar, propor alternativas e, principalmente, alcança um conhecimento empírico sobre o que está fazendo. 217
A casa não tem a intenção de acertar. Por outro lado, busca pensar, mesmo que seja de maneira prática, permitindo equívocos, erros e reviravoltas no processo, e o resultado é uma gama de novas possibilidades e novos conhecimentos sobre arquitetura, suas técnicas e materiais. As fotos nas páginas anteriores evidenciam a experimentação com os tijolos cerâmicos. O piso externo e as paredes do pátio mostram experiências de assentamento, texturas, encaixes e tipos de tijolo que podem ser realizados. O resultado é a possibilidade de avaliação de diferentes formas de trabalhar com o material. < interior
Alvar Aalto Experimental House Muuratsalo
> - estrutura apoiada sobre pedras do terreno Alvar Aalto Experimental House Muuratsalo
anexo
218
[ consciências e materiais ]
Internamente a madeira assume o papel experimental. Nas vigas paralelas e aparentes que sustentam o telhado e no mezanino estruturado por uma sequencia de perfis funcionando como tirantes, fica clara a intenção de brincar e descobrir o material. O projeto completo do arquiteto previa a construção de 5 experiências, enumeradas no croquis de implantação. A casa principal, mostrada nas fotos anteriores, foi a primeira construção. Em seguida o arquiteto investigou outras formas de construir a partir de outras experimentações; Uma construção anexa à casa principal, por exemplo, usa pedras existentes como fundação.
219
detalhes
the black maria, gruppe e richard wentworth
220
[ consciências e materiais ]
Graças às suas características e sua história, o tijolo é um ótimo exemplo da ideia de presença humana nas construções. Desde sua criação até a revolução industrial os tijolos foram fabricados de maneira artesanal. Durante esse período, sua composição, molde e cozimento estiveram intimamente relacionados aos trabalhadores responsáveis pelo mesmo. No caso do império romano, esses trabalhadores eram escravos e, como tal, não possuíam nenhuma presença política ou social pelas normas. Seu trabalho, no entanto, tinha o poder de representá-los no que podemos chamar de “universo formal” Esse é um exemplo de presença modesta - as marcações dos escravos nos tijolos que produziam. Os trabalhadores estavam muito mais interessados em mostrar que existiam, como coletivo do que em representar a individualidade de cada um, apesar de cada um possuir sua individualidade. É uma articulação entre o individual e o coletivo, uma associação. Essa característica da presença humana nas construções será exemplificada com o trabalho Black Maria realizado por Richard Wentworth e o escritório Gruppe.
221
O trabalho fotográfico de Wentworth Making do and getting by pode ser descrito como uma coleta de presenças humanas em situações cotidianas, em detalhes. As fotos foram realizadas em Londres no ano de 2000. A intenção do artista se manifesta no enquadramento das fotos; todos estão focadas em situações próximas e diretas. Ao contrário das fotos que buscam o horizonte e nas quais tudo que se encontra no caminho, essas estão interessadas nos detalhes. As fotos buscam situações nas quais o ambiente construído - cidade, rua, calçada, escada, janela, etc. - é transformado por uma intervenção humana. Algumas situações mostram a criatividade, inventividade e resolução simples de problemas comuns. Outras mostram articulações entre fatos urbanos e práticas humanas, como vencer o desnível da calçada com um bloco e uma tábua. No ano de 2012 Wentworth foi convidado para realizar um projeto expositivo dentro do átrio que divide a nova faculdade de artes e design Central Saint Martins do antigo edifício Granary Building no bairro de King’s Cross em Londres. A maioria das fotos da sua coleção Making do and getting by foi realizada no mesmo bairro, no qual o artista habita.
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[ consciências e materiais ]
> making do and getting by
Richard Wentworth 2000
A foto mostra uma rampa improvisada para subir na calçada.
> making do and getting by
Richard Wentworth 2000
Uma xicara mantém a janela aberta e a circulação de ar.
> making do and getting by
Richard Wentworth 2000
Uma bota presa sob a porta não deixa ela fechar.
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Wentworth, então, convidou o Gruppe, um grupo formado por três jovens arquitetos, para projetar uma estrutura de suporte para exposições, espetáculos ou outros eventos ocasionais. Juntos eles realizaram o Black Maria. O projeto, como contam os arquitetos, parte de uma intensa investigação sobre o local.
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[ consciências e materiais ]
> O antigo edifício na região de King’s Cross foi incorporado no projeto da nova faculdade de artes e design.
O estúdio de filmagem idealizado e construido por Thomas Edison em 1893 é um edifício móvel. Se conforma por uma montagem de peças, cada uma com uma função. Para abrigar os diferentes arranjos necessários para cada produção, o edifício varia, suas partes se movimentam e conformam espaços distintos. No projeto atual realizado pelo gruppe não só o nome é igual, mas o antigo Black Maria é uma grande referência. A montagem de distintas partes, para distintos usos trabalhando juntas é um ponto de partida para o atual Black Maria. thomas edison, black maria,
<
1893
No primeiro momento eles saíram pelos arredores da faculdade buscando situações de maneira muito parecida com as investigações de Wentworth em Making do and getting by. Os arquitetos encontraram uma área em intensa transformação, com andaimes, galpões efêmeros montados para abrigar trabalhadores das construções e outras situações que definiam uma “região em construção”. Nesse cenário foram encontradas inúmeras soluções práticas para problemas funcionais, como cavaletes montados artesanalmente, desvios nas calçadas, entre outras. Essas soluções foram catalogadas e estudas a partir de fotos - muito parecidas com as de Wentworth.
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> black maria
Gruppe e Richard Wentworth 2013
A partir dessas ideias o projeto se baseia no antigo Balck Maria e busca dividir-se em “peças” funcionais, como a escada aos fundos, a arquibancada, a cobertura e a parede de exibições. As peças funcionam em conjunto mais se explicam individualmente, como os detalhes. E seguida, para se materializar, busca incorporar soluções encontradas nos arredores da área, principalmente detalhes construtivos – da mesma maneira que Wentworth procuras situações de inventividade - como a chapa cortada em triângulo que funciona como mão francesa e trava a estrutura, muito usada em bancadas de marcenaria temporárias, construídas nos canteiros de obras.
<
> black maria
Gruppe e Richard Wentworth 2013 Elementos distintos funcionando em conjunto. A escada, o telhado, o auditório. Os detalhes ficam claros na construção, aparentes para o público.
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[ consciĂŞncias e materiais ]
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industrialização
hélio olga e marcos acayaba.
< Croquis de Marcos Acayaba Residência Hélio Olga
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>
[ consciĂŞncias e materiais ]
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Um primeiro aspecto a ser destacado sobre a residência de Héio Olga, e sobre a lógica construtiva e projetual a qual ela deu início no Brasil, é seu forte caráter de adaptação. A adaptação está presente na escolha do terreno, no partido do projeto e no desenvolvimento do mesmo com a madeira. “Para aprender a “falar uma nova língua”, a da estrutura de madeira modulada e padronizada, aproveitei para realizar o antigo sonho de fazer uma casa japonesa” No trecho extraído do livro, Acayaba está se referindo ao projeto da residência Oscar Teiman (1986-87) sua primeira casa projetada em madeira - e o início de sua relação com Hélio Olga, a ITA e a madeira industrializada. No início do processo Acayaba vai buscar referências da “nova língua” na cultura oriental. A casa de Hélio Olga mantém os mesmos princípios e avança o processo já que, como no caso da experimental house de Aalto, Hélio era o proprietário e, junto com Acayaba, realizador do projeto.
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< Marcos Acayaba. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 176
[ consciências e materiais ]
> Marcos Acayaba Residência Helio Olga Modulação na construção e referências na arquitetura japonesa. 231
Hélio Olga comprou um terreno de 900m² em um bairro nobre de São Paulo por uma pechincha, como conta Acayaba. A explicação era a declividade de mais de 100% do local e, portanto, e dificuldade de se construir uma casa. O processo de adaptação começa aí. Em seguida, o partido assume uma forma radical, de se lançar independente ao terreno sobre apenas quatro apoios, outro exemplo de adaptação. A adaptação, então, fica clara em todo processo construtivo, o qual parte do módulo. O módulo, como divisor e construtor do espaço, vem da cultura japonesa. No país oriental acredita-se que o espaço e o tempo “constituem uma única entidade, ao contrário da cultura ocidental que distingue espaço de tempo”. Na arquitetura, essa concepção filosófica implica em espaços não acabados. Se o espaço é formado pelo tempo e vice e versa ele não pode acabar em si mesmo, já que o tempo vai continuar “em movimento”. O módulo então vem como resposta prática a essa questão filosófica, sempre permitindo adaptação como ampliações, reduções, reorganizações, de um espaço mantendo a mesma lógica de concepção. A metáfora oriental do tempo no espaço e vice e versa traz à tona o caráter da adaptação na industrialização, que pode ser exemplificada nos tijolos de Alvar Aalto assim como nas soluções desenvolvidas no projeto de Acayaba e Hélio Olga.
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< Marcos Acayaba. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 176
[ consciências e materiais ]
> Craig Ellwood Smith House Crestwood Hills Los Angeles 1958 Acayaba usou a casa como referência para exemplificar a implantação perpendicular à rua e construção independente da inclinação do terreno.
> Marcos Acayaba Residência Helio Olga
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A madeira pré-fabricada entra no processo como forma de realizar um projeto seco, sem canteiro e sem interferências no terreno, além de proporcionar uma forma de experimentação para a empresa de Helio Olga, a ITA construtora. A industrialização produz as peças na fábrica e cria a possibilidade de apenas “montar” a casa no local.
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[ consciências e materiais ]
A partir dessa industrialização o arquiteto junto com o engenheiro criam soluções e detalhes específicos para o projeto. Esse caráter singular nos detalhes imprime características humanas ao processo industrial, do mesmo modo que fala a antropomosfose de Sennett.
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ateliers de práticas e experiências
Sob o viaduto, acompanhando o desnível do terreno, os ateliers de diferentes práticas manuais foram desenvolvidos. A intenção foi trazer um novo uso ao local, que pudesse atrair as pessoas à ocupação e ao desenvolvimento da área. A ideia de fazer isso por meio do trabalho tem a ver com as referências anteriores. As referências mostram uma relação intensa e engajada com o trabalho. O trabalho manual pode ampliar a consciência material. Os ateliers buscam proporcionar essas novas relações e consciências.
[ projeto - centro de práticas manuais ]
Seu desenvolvimento também buscou a relação com os materiais e com as experiências. A madeira e o bloco de concreto, sempre aparentes, evidenciam a construção e direcionam o desenho. Os espaços de trabalho seguem uma malha estrutural de 5 x 3,75m e se desenvolvem em madeira. Os núcleos de infraestrutura abraçam os pilares do viaduto com blocos de concreto aparente. Essa concentração das infraestruturas nos blocos, libera toda a área entre os grande pilares do viaduto para o trabalho, suas relações e dinâmicas.
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[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
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[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
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[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
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[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
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brincadeiras e [ maquetes ]
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brincadeiras jacques tati
A brincadeira aqui busca exemplificar uma postura. Uma forma muito particular de relação com o mundo. Jacques Tati é um exemplo dessa postura. Existe muita seriedade em suas brincadeiras, mas isso não precisa ser estranho. As brincadeiras tem um papel fundamental para o desenvolvimento das crianças, a sua aparente falta de seriedade cria um ambiente no qual a curiosidade e a vontade de interagir reinam. Quando crianças, todos nós somos capazes de brincar. Ainda não aprendemos sobre o erro ou o perigo. A postura brincalhona é a mesma que se atreve a experimentar, que faz questão de interagir com os outros e com o ambiente à volta. Ao brincar somos obrigados a questionar, a se envolver. Não se brinca sem se envolver, sem a vontade de mergulhar nas ações e nos estímulos.
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> Jacques Tati no MoMa de Nova York Jardim de Esculturas 1958 Foto: Yale Joel
[ brincadeiras e maquetes ]
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< Jacques Tati no MoMa de Nova York Jardim de Esculturas 1958 Foto: Yale Joel
As duas fotos mostram Tati se relacionando com uma escultura - ou seu entorno naquele momento mostram a mesma situação sobre dois ângulos. Uma foca o olhar, outra a postura. Mas ambas mostram um grande envolvimento com a situação, um engajamento corporal e intelectual com o objeto. Mostram curiosidade e concentração. O comediante nos entretém com o aparente absurdo; imitando a postura da escultura e questionando-a com os olhos. Mas, assim como a brincadeira, não existem preocupações, apenas ações - apenas envolvimento. O caráter improvisado de seus filmes representa a mesma postura de brincar. Não são necessárias regras, apenas momento e situações. A brincadeira se adapta ao mundo, é articulada e livre. Faz parte de um desenvolvimento sem fim, sempre curioso e engajado. 250
> Cena do filme Mon Oncle mostra Tati regulando o reflexo do sol para acertar o passarinho e fazê-lo cantar. A brincadeira como interação e adaptação ao mundo.
[ brincadeiras e maquetes ]
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maquetes de papel
> Maquete de papel Projeto para o reservatório elevado de Urlândia Paulo Mendes da Rocha
paulo mendes da rocha
Ao contar sobre a importância das maquetes de papel para o desenvolvimento de seu trabalho, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha as relaciona à brincadeiras. Nos lembra que as brincadeiras contém os lados lúdico e erótico da vida ao mesmo tempo. Nelas, a independência de pensamento e a criatividade aproximam as crianças dos cientistas; experimentando e descobrindo. A seriedade e dignidade das brincadeiras podem ser aplicadas a qualquer processo humano de trabalho, experiência, formação ou aplicação de conhecimento. A ideia de brincadeira traduz um pouco a investigação apresentada, assim como o processo de trabalho. A busca por relações, estímulos e referências se manteve durante todo o tempo e o processo envolvido foi sempre o protagonista. A brincadeira reflete uma relação com o mundo, com os estímulos, com a curiosidade e a motivação; Está nas linhas de Lina e Steinberg, nos desenhos de Artigas, nos filmes de Tati, nas experiências de Acayaba e Richard Serra ou nas maquetes de Paulo Mendes da Rocha. O trabalho buscou investigar e praticar essa relação, que sempre questiona e experimenta. 252
< Maquete de papel Paulo Mendes da Rocha São Paulo: Cosac Naify 2007
> Maquete de papel Projeto para o novo campus da univercidade de Vigo Paulo Mendes da Rocha
[ brincadeiras e maquetes ]
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maquetes
As maquetes, presentes durante todo o ano, se tornam a conclusão do projeto. Mostram seu lado investigativo e tátil, seu interesse pelo fazer e pelo pensar simultâneos. Os mesmos presentes nas brincadeiras. Aqui, ao final desse processo, elas contam aonde ele chegou, mas não como ele acaba. A maquete materializa o caráter contínuo do processo, sua relação aberta com o tempo e com o aprendizado. Ela não mostra um ponto final, mas indica infinitos novos caminhos e possibilidades. O Centro de Práticas Manuais, ao longo do Viaduto Julio de Mesquita Filho busca formas de articular maquetes à cidades e brincadeiras à cidadãos.
[ projeto - centro de prĂĄticas manuais ]
> Maquete do trecho ao sul da Avenida Nove de Julho mostrando os ateliers sob o viaduto e a parede de circulação paralela ao mesmo. Escala: 1:250 255
[ projeto - centro de práticas manuais ]
<
> Os ateliers das práticas manuais acompanhando o desnível do terreno. Escala: 1:250
< > Relação dos “andaimes” de madeira com o viaduto e com a cidade. Escala: 1:250 257
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
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[ projeto - centro de práticas manuais ]
< > Maquete de um trecho da parede de circulação representando seu caráter “vivo” com pessoas passando e interagindo. Escala: 1:100
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[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
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[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
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O processo se encerra com o andaime e as pessoas voando por seus módulos. Ou, simplesmente, com pessoas em maquetes. Essas representam a busca inicial do trabalho por articulações e experiências. O foco nas relações humanas e no desenvolvimento da prática chega nessas imagens e nesse projeto. Como tentativas de se aproximar à novas formas de praticar e pensar a cidade, os espaços e a vida. As maquetes representam a postura da brincadeira, da experiência e do envolvimento tátil. Ao mesmo tempo, o projeto busca proporcionar brincadeiras urbanas e humanas, articulando-as à lugares inicialmente “diretos”, “sérios” ou “esquecidos” da cidade. As brincadeiras, com toda sua seriedade, estão presentes tanto no fazer, quanto no pensar. Talvez sejam uma das mais intensas formas de nos relacionarmos com o mundo e com a vida.
[ projeto - centro de prรกticas manuais ]
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