PUC/SP FACULDADE DE FILOSOFIA COMUNICAÇÃO LETRAS E ARTES
CINEMA E QUADRINHOS: a evolução da arte sequencial de Will Eisner e Frank Miller através do fenômeno noir
Lucas Fonseca de Araújo
SÃO PAULO 2011
Lucas Fonseca de Araújo
CINEMA E QUADRINHOS: a evolução da arte sequencial de Will Eisner e Frank Miller através do fenômeno noir
Monografia
apresentada
para
a
conclusão da disciplina “Projeto em Multimeios
II”
do
curso
de:
Comunicação e Multimeios FAFICLA PUC/SP. Orientador: Marcelo Prioste
SÃO PAULO 2011
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Marcelo Vieira Prioste
_______________________________________________ Prof.ª Dra. Ane Shyrlei de Araújo
_______________________________________________ Prof. Francisco C. Camêlo
Dedico esta obra a minha namorada, que, graças a minha perseverança, se tornou uma leitora e apreciadora das obras em quadrinhos. Que esta arte continue por muitos anos, sempre em constante evolução
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, que me incentivaram na leitura e na formação da minha arte, mesmo sendo obrigados a aturar pilhas de quadrinhos pela casa. Ao meu irmão, que incentiva até hoje o desbloqueio e a evolução do meu traço, sempre apresentando novos projetos para me dedicar. Ao orientador Marcelo Prioste, pelo incentivo, competência, paciência e as diversas boas referências apresentadas. Aos meus velhos amigos, pelo amor incondicional e a amizade, que sempre incentivaram a minha arte, participando na elaboração das minhas primeiras histórias em quadrinhos, acompanhando, por sete anos, cada etapa de minha aprendizagem, como pessoa e como pseudo-artista. Aos meus novos velhos amigos, que fizeram como que estes quatro anos passassem de forma rápida e proveitosa. Quatro marcantes anos que farão falta pelo resto de nossas vidas. E por último, agradeço ao maior bem que poderia ter ocorrido em todos estes quatro anos de história: a amizade inicial e o amor verdadeiro na figura de Tamyris Müzel. Agradeço pela dedicação e pelo carinho que sempre provou ter por mim, pelos puxões de orelha por eu não me empenhar tanto em minha arte, pela paciência em me aturar e pelas certezas que me passa. Agradeço pelas horas, dias e anos que estamos juntos, por ser quem você é e por ser perfeita para mim. Te amo. Cross my heart.
RESUMO
Pretende-se estudar a evolução dos quadrinhos através do olhar do cinema, principalmente a influência estética e narrativa herdada pelo movimento noir, do início dos anos 1940 até 1950, que serviu de inspiração para os mais diversos artistas e comunicadores do período, que ajudaram a estabelecer aquele fenômeno em um gênero único, cultuado e perpetuado por gerações. Estabelecida esta relação de influências, esta monografia pretende demonstrar o impacto feito pelo artista Will Eisner, que, após criar uma releitura gráfica do cinema policial de 1940, a obra de quadrinhos The Spirit, consolidou uma nova forma de ser narrar quadrinhos, concebendo um híbrido entre o cinema e as narrativas gráficas, a arte sequencial, dando, assim, o primeiro grande passo para a construção das graphic novels, que elevaram os quadrinhos ao grau de entretenimento adulto, influenciando, pelo seu estilo, o autor e desenhista Frank Miller, que difundiu o neo-noir em narrativas clássicas do quadrinho, tais como Batman – Ano Um e Sin City, e que continuam, através do tempo, a evoluir e homenagear este gênero, hoje já estabelecido, criando novas formas de ser realizar a arte sequencial.
Palavra-chave: Filme Noir. Quadrinhos. Arte Sequencial. Will Eisner. Hibridismo
ABSTRACT
This paper aims to study the evolution of comics through cinematic view, especially by the narrative and aesthetics influences inherited by noir movement, that began in the early 1940s until the 1950s, inspiring various artists and communicators of its time. These intellectuals helped establish the phenomenon into a unique genre, worshiped and perpetuated by generations. Once the relations between influences era established, this paper aims to demonstrate the impact of artist Will Eisner, after creating a graphic reinterpretation of 1940s police film (the graphic novel The Spirit). Eisner consolidated a new perspective of comic´s narrative, creating a hybrid between the cinema and the graphic storytelling, called sequential art, determining the graphics novel beginning and establishing comics as adult entertainment. Will Eisner also influenced the author and artist Frank Miller, who spread the genre neo-noir through classic comics’ narratives such as Batman: Year One and Sin City. Those influences still evolve and honor the genre, already established nowadays, creating new ways of crafting sequential art. Keywords: Film Noir, Comics, Sequential Art, Will Eisner, Hybridity
LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Figuras pictóricas e simbólicas, que, representadas na parede de uma caverna, retratam um meio de vida rupestre. (Fonte: Desvendando os Quadrinhos). ............................................................................................. 17 Figura 2 - Figura 2: Exemplo de comunicação escrita por meio de imagens familiares. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial). .................................... 17 Figura 3 ............................................................................................................ 18 Figura 4: As figuras 3 e 4 mostram a utilização iconográfica da forma humana nos frisos egípcios. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial). ..................... 18 Figura 5 - Figura 5: Imagem representada por McCloud, com o fim de ser reproduzida em preto e branco. (Fonte: Desvendando os quadrinhos). ... 19 Figura 6 - Figura 6: narrativa épica sobre o herói “8-Cervos”. (Fonte: Desvendando os quadrinhos). .................................................................. 20 Figura 7 - Tapeçaria inglesa datada de 1066, que desenvolve a construção de uma direção visual da “Conquista normanda". (McCLOUD 1993, p.12). (Fonte: Desvendando os quadrinhos). ...................................................... 21 Figura 8 - A série de figuras que servem como narrativa para a obra As torturas de Santo Erasmo (1460), detalhando cada um de seus sortilégios. (Fonte: Desvendando os quadrinhos). .................................................................. 22 Figura 9 - Ppintura da série Adão e Eva (séc. XVI), que retrata a passagem da bíblia através de outros quadros postos em sequência. (Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br) ............................................................. 23 Figura 10 - Frontal do retábulo de Cranach na igreja de São Wolfgang. (Fonte: http://pt.wikipedia.org) .............................................................................. 24 Figura 11 - Vitral na Catedral de Chartres (séc XIII). (Fonte: http://pt.wikipedia.org). .............................................................................. 24 Figura 12 - A segunda gravura – de um total de seis - da obra “O progresso de uma prostituta” (1731). (Fonte: http://it.wahooart.com). ............................ 25 Figura 13 - O almálgama entre figura e texto, de Gillray (1972). (Fonte: http://upload.wikimedia.org). ..................................................................... 26 Figura 14 - Vista da janela em Le Gras (1826), primeiro registro fotográfico da história. (Fonte: http://upload.wikimedia.org)............................................. 27 Figura 15 - O trote do cavalo captado por Muybridge (1878). (Fonte: http://gteans.blogs.com). ........................................................................... 28 Figura 16 - O cinematógrafo, considerado uma evolução do cinetoscópio, de William Kennedy Laurie Dickson. (Fonte: http://upload.wikimedia.org) ..... 28 Figura 17 - O filme “Viagem à Lua” (1902), de George Mélies. (Fonte: Viagem à Lua). .......................................................................................................... 29 Figura 18 - Cena do filme “O nascimento de uma nação” (1915), de Griffth. (Fonte: O nascimento de uma nação). ...................................................... 30 Figura 19 - Página da obra Les Amours de monsieur Vieux-Bois. (Fonte: http://gallica.bnf.fr) ..................................................................................... 31
Figura 20 - Página 25 da obra Les Amours de monsieur Vieux-Bois. (Fonte: http://gallica.bnf.fr) ..................................................................................... 32 Figura 21 - Ilustração publicada no jornal alemão Fliegende Blätter, em 1859. (Fonte: http://www.sagen.at) ..................................................................... 33 Figura 22 - Painel da obra “Juca e Chico”, de 1993. (Fonte: http://www.sagen.at) ................................................................................. 33 Figura 23 - A personagem Nhô-Quim. (Fonte: http://www.universohq.com) .... 34 Figura 24 - Página de Zé Caipora. (Fonte: http://www.universohq.com) .......... 35 Figura 25 quadro de The Little Bears. (Fonte: http://lambiek.net/artists/s/swinnerton.htm) ............................................... 36 Figura 26 - The Yellow Kid. (Fonte: http://cartoons.osu.edu) ........................... 37 Figura 27 cena da obra Katzenjammer Kids. (Fonte: http://curiositedequalite.blogspot.com/2011/04/katzenjammer-kids.html) . 38 Figura 28 - Cena da obra Litte Nemo in Slumbersland .................................... 39 Figura 29 - Cena da obra Litte Nemo in Slumbersland .................................... 40 Figura 30 - Cena da obra Litte Nemo in Slumbersland. (Fonte: http://asleiturasdopedro.blogspot.com/2010/10/little-nemo-inslumberland.html) ...................................................................................... 41 Figura 31 Trecho da obra Flash Gordon. (Fonte: http://madinkbeard.com/archives/flash-gordon-review) ............................. 42 Figura 32 A obra brasileira Garra Cinzenta (Fonte: http://hqquadrinhos.blogspot.com) ............................................................ 43 Figura 33 - A personagem Harry Carey, criada por Eisner para publicação na revista WOW!, de 1936. (Fonte: http://www.willeisner.com/biography/) .... 47 Figura 34 - Spirit e comissário Dolan em uma cena de investigação. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial) .................................................................. 51 Figura 35 - Quadro de Scott McCloud. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial) 53 Figura 36 - Passagem presente na graphic novel New York (1986). ............... 56 Figura 37 - Quadrinho do cartunista norueguês Jason. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial) ......................................................................................... 57 Figura 38 - O uso das expressões faciais como “guia” dos sentimentos, emoções e acontecimentos da breve narrativa, exemplificando o bom uso da anatomia expressiva de Will Eisner. (Fonte: Desvendando os quadrinhos) ............................................................................................... 57 Figura 39 - Cena do mangá Travel (2005), de Yuichi Yokoyama. (Fonte: http://www.artnet.com) .............................................................................. 58 Figura 40 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986)........................................... 67 Figura 41 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986)........................................... 68 Figura 42 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986)........................................... 69 Figura 43 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986)........................................... 70 Figura 44 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986)........................................... 71 Figura 45 - A arte de Juanjo Guarnido: uso de low-key profile na iluminação, figuras antropomórficas e estética da década de 1950, aliada ao forte clima noir. (Fonte: http://olhosacesos.blogspot.com/)......................................... 73
Figura 46 - Exemplo de utilização da iluminação low-key, realçando detalhes de uma forma sutil. (Fonte: Metropolis). ......................................................... 78 Figura 47 - Empreitada noir de Fritz Lang (1944), demonstrando a utilização da iluminação barroca, fruto da bagagem de sua origem no expressionismo alemão. (Fonte: Quando Desceram as Trevas). ....................................... 80 Figura 48 - A utilização do hard ligth cria uma sombra bem definida na parede. (Fonte: O Falcão Maltês)........................................................................... 81 Figura 49 - Neste misto de técnicas, podemos observar a o uso da highlighting (luz de destaque) no rosto da personagem, criando uma imagem atmosférica de claro e escuro. (Fonte: A Força do Mal)........................... 81 Figura 50 - O uso da top lighting (luz superior) resulta na imagem sombria e misteriosa da silhueta, que pode, posteriormente, recair sobre a trama como uma força maligna (Fonte: O Grande Golpe). ................................. 82 Figura 51 - O realce da imagem gerada pelo close-up de luz não difusa. (Fonte: O Anjo Diabólico). ..................................................................................... 83 Figura 52 - Exemplo de storyboard para uma peça publicitária de tevê, com o filme resultante abaixo. Fonte: Quadrinhos e arte sequencial................... 90 Figura 53 - A ausência de tons de cinza na obra Sin City, de Frank Miller. (Fonte: Sin City – A Dama Fatal). ............................................................. 92 Figura 54 - exemplo de montagem cena-a-cena. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). ........................................................................... 93 Figura 55 - A. mise-en-scène carregada de informações da arte de Geof Darrow. (Fonte: Hard Boiled). ................................................................... 93 Figura 56 - A sempre constante movimentação do Coringa, realçando sua frieza em um plano aproximado que, a cada quadro, como em uma ação de zoom in, nos deixa mais intimidados com a sua quieta presença. (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas).................................................... 95 Figura 57 - Visão em plongée, oferecendo uma panorâmica do ambiente em que o detetive Blacksad se encontra. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). .................................................................................... 96 Figura 58 - A ação do plano e contra plano ocorre nos dois últimos quadros da cena. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). .......................................... 97 Figura 59 - A estréia de Batman, na edição #27 da Detective Comics (1939). (Fonte: http://www.dc.wikia.com/) ............................................................. 99 Figura 60 - Frame retirado do filme The Bat (1926). (Fonte: The Bat) ........... 100 Figura 61 - Momento em que evidencia alguns dos utensílios carregados na bolsa do criminoso. (Fonte: http://www.headinjurytheater.com). ............. 101 Figura 62 - Passagem do filme em que o criminoso avisa e desafia a polícia sobre seu próximo roubo, se identificando como “o Morcego”. (Fonte: http://www.headinjurytheater.com). ......................................................... 102 Figura 63 Edição #28 da Detective Comics. Fonte: http://www.headinjurytheater.com ........................................................... 102 Figura 64 - O coringa de Bob Kane ................................................................ 103 Figura 65 - O ator Conrad Veidt, no filme O Homem que Ri (1928) ............... 104
Figura 66 - O “ornitóptero”, de Leonardo Da Vinci. (Fonte: http://100grana.wordpress.com).............................................................. 105 Figura 67 - Projetos originais para a capa da personagem Batman, amplamente inspirados na criação de Da Vinci. (Fonte: http://www.dc.wikia.com/) .... 105 Figura 68 - O rosto marcado da personagem Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) .............................................................................................. 107 Figura 69 - Cena de desolação e desespero, com a personagem Dwight. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) ................................................... 107 Figura 70 - A figura do tentente, na obra Sin City. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) ................................................................................................... 108 Figura 71 - Na imagem acima podemos ver um dos antagonistas de Sin City, o pedófilo e psicopata Roark Junior (That yellow bastard, 1996). (Fonte: Sin City – Aquele bastardo amarelo) ............................................................. 108 Figura 72 - alguns jovens lagartos sentados em uma escadaria, em frente ao bar. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) .................... 110 Figura 73 - Dois capangas ladeando o detetive Blacksad. (Fonte: Blacksad Em algum lugar entre as sombras) ......................................................... 110 Figura 74 - A raposa demonstra o raciocínio rápido, a astúcia e a “esperteza” do tenente. (Fonte Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) ......... 111 Figura 75 - O dono do bar onde Blacksad busca por informação. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)........................................ 112 Figura 76 - A camareira é representada como uma pequena rata, que se intromete em assuntos e locais alheios. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) .......................................................................... 113 Figura 77 - A utilização das onomatopéias de forma expressionista, guiando o leitor através da ação. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) ................................................................................................. 114 Figura 78 - Ângulo holandês em contra-plongeé e uso de contraluz. (Fonte: The Spirit - Hildie). .......................................................................................... 115 Figura 79 - Plano de conjunto com a presença da luz dura, que constrói sombras fortes e bem desenhadas. (Fonte: The Spirit - Hildie). ............. 116 Figura 80 - O uso da contraluz por David Mazuchelli. (Fonte: Batman – Ano um) ................................................................................................................ 117 Figura 81 - A movimentação da personagem Batman. (Fonte Batman – Ano um) .......................................................................................................... 117 Figura 82 - Mazuchelli cria esta iluminação atmosférica de alto contraste (highcontrast lighting). (Fonte: Batman – Ano um) .......................................... 118 Figura 83 - luz chave em alto contraste em uma cena de contextualização. (este tipo de tomada é chamada de establishing shot). (Fonte: Batman – Ano um)................................................................................................... 119 Figura 84 - A cena da tragédia que marcou a vida de Bruce Wayne. (Fonte: Batman – Ano um) .................................................................................. 119 Figura 85 - Guarnido se utiliza do plano médio, da câmera subjetiva e do plano americano. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) ......... 120
Figura 86 - Miller inicia está cena com um plano médio com voice over . (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas). ............................................................. 120 Figura 87 - a divisão das luzes: o contraste entre Spirit (a ação fora da lei) e o comissário Dolan (a lei e a justiça em sua legalidade). (Fonte: Quem é The Spirit?) ..................................................................................................... 121 Figura 88 - presença de uma divisão moral na face de Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). .............................................................................. 122 Figura 89 - iluminação dura e atmosférica, que passa da representação iconográfica de silhuetas puras para a iluminação direta e dura, com realce para a sombra de Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) ............ 123 Figura 90 - o assassinato dos pais do jovem Bruce. (Fonte: Batman – Ano um) ................................................................................................................ 124 Figura 91 - o acontecimento que inicia toda a narrativa da história: o assassinato de Goldie. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).............. 125 Figura 92 - o assassinato de um antigo amor de Blacksad marca as primeiras páginas de sua primeira história. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). ................................................................................................................ 126 Figura 93 - o clima fatalista de Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). .................................................................................. 127 Figura 94 - a volta de Bruce a Gotham, enquanto caminha pela sujeira, rodeado por prostituição infantil, drogas e corrupção. (Fonte: Batman – Ano um). ................................................................................................................ 128 Figura 95 - a justiça fora da lei cometida por Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). ............................................................... 128 Figura 96 - o senso de justiça bruto de Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). .................................................................................................. 129 Figura 97 - a revelação do codinome The Spirit: ação por debaixo dos planos e sem a presença direta da lei. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). ................................................................................................ 129 Figura 98 - Dwight sofre forte represália pelo envolvimento amoroso com uma femme fatale de seu passado. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). ................................................................................................ 130 Figura 99 - Batman em seu início: sujeito a falhas e erros banais. (Fonte: Batman – Ano um). ................................................................................. 131 Figura 100 - a corrupção e violência da polícia, presenciada por Gordon. (Fonte: Batman – Ano um). ..................................................................... 131 Figura 101 – a primeira tentativa de boa ação de Bruce ocorre de maneira errada e é frustrada pela polícia. (Fonte: Batman – Ano um).................. 131 Figura 102 - a represália e o castigo físico imposto ao tenente Gordon, como um modo de botar o “bom” policial na linha. (Fonte: Batman – Ano um). 132 Figura 103 - a vingança fora da lei e por conta própria realizada por Gordon contra seus agressores. (Fonte: Batman – Ano um). .............................. 132 Figura 104 – as mulheres fatais da Cidade do Pecado (Fonte: Sin City – A dama fatal). ............................................................................................. 133
Figura 105 – a femme fatale mortal, que manipula e destrói o homem protagonista (Fonte: Sin City – A dama fatal).......................................... 134 Figura 106 – os bares podem ser um reduto de malfeitores, informantes, policiais corruptos e belas e perigosas mulheres. (Fonte: Blacksad – Em algum lugar entre as sombras). ............................................................... 135 Figura 107 – a presença da Mulher-Gato no universo de Batman: a femme fatale essencial, que representa, ao mesmo tempo, o perigo e o relacionamento impossível. (Fonte: Batman – Ano um). ......................... 135 Figura 108 – o abatido detetive Blacksad, após confronto com malfeitores que tentaram impedir sua investigação. (Fonte: Blacksad – Em algum lugar entre as sombras). .................................................................................. 136 Figura 110 – a ação em plano e contra plano mais o enquadramento de contextualização nos dão detalhes importantes do crime cometido, que será desenvolvido com o andar da história. (Fonte: The Spirit – O retorno de Satin) .................................................................................................. 136 Figura 111 – Marv solicita o casaco. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) 137 Figura 112 – a decupagem de cenas da sequência, revelando detalhes importantes, em uma ação em diversos planos, com diveros ângulos, com movimentação incessante e ritmo empolgante. ...................................... 138 Figura 113 – o caos urbano de Hard Boiled. (Fonte: Hard Boiled). ................ 139 Figura 114 – a construção de uma narrativa peculiar, que envolve a libertação de robôs escravos sexuais e femme fatales metálicas, entre a ação descontrolada e o violência explosiva. (Fonte: Hard Boiled). .................. 140 Figura 115 ...................................................................................................... 142 Figura 116 ...................................................................................................... 143 Figura 117 ...................................................................................................... 144 Figura 118 – Fontes: http://www.comicartfans.com........................................ 144 Figura 119 – arrojada subdivisão de acontecimentos da ação, esmiuçado em mini acontecimentos (que acontecem em tempo real) separados por quadros de espaço físico. (Fonte: http://www.bookalicious.net).............. 145 Figura 120 – a onomatopéia. A personificação dos quadrinhos (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas) ............................................................................ 145
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 15 2 A ARTE POSTA EM SEQUÊNCIA ............................................................... 16 2.1 A história dos quadrinhos ................................................................... 30 3 WILL EISNER ............................................................................................... 43 3.1 The Spirit ............................................................................................... 48 3.2 Arte Sequencial ..................................................................................... 52 4 LEGADO DE EISNER ................................................................................... 60 4.1 Frank Miller............................................................................................ 61 4.2 Canales e Guarnido .............................................................................. 72 5 film noir ........................................................................................................ 73 5.2 O cinema obscuro................................................................................. 74 5.3 Decifrando o noir: Estética .................................................................. 76 5.4 Narrativa ................................................................................................ 84 5.5 Decifrando o noir: Estereótipos .......................................................... 86 5.6 Consolidando o fenômeno noir ........................................................... 88 6 a conexÃo do cinema na arte sequencial ................................................. 89 6.1 A origem expressionista de Batman ................................................... 98 6.2 Identidade expressionista: Sin City e Blacksad ............................... 106 6.4 Reinterpretação estética .................................................................... 114 6.5 Reinterpretação da narrativa ............................................................. 123 6.6 Análise de estereótipos noir .............................................................. 132 7 Arte sequencial refinada ........................................................................... 137 7.1 A abordagem neo-noir de Frank Miller e o neo-clássico de Blacksad .................................................................................................................... 138 7.2 A evolução da sequência ................................................................... 141 8 Considerações finais ......................................... Erro! Indicador não definido. bibliografia ............................................................. Erro! Indicador não definido.
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa visa analisar e estudar a importância do artista Will Eisner na concepção da arte sequencial, assim como suas semelhanças com o cinema noir, demarcando os passos que constituíram a evolução dos quadrinhos ao estudar as referências artísticas e narrativas do autor, assim como seu legado para o artista Frank Miller, que, juntos, se tornaram dois dos maiores nomes da arte sequencial noir, estabelecendo uma ponte entre o cinema e os quadrinhos, principalmente ao abordarem a relação da disposição da narrativa nas páginas dos quadrinhos como uma adaptação da mise em scène presente na linguagem cinematográfica. No primeiro capítulo deste estudo, será possível vislumbrar o início da representação da ação feita pelo homem, partindo do pressuposto de que o imaginário é o principal propulsor para representação do que se vê, seja pelas figuras rupestres do período paleolítico, ou pela “persistência da retina” e o cinematógrafo. O que se destaca é que, inevitavelmente, o registro do movimento sempre esteve presente na cultura, demonstrando que a arte gráfica sempre esteve presente como forma de comunicação, assim como o cinema. Em sua sequência, será abordado o início dos quadrinhos, passando brevemente por suas origens com o fim de contextualizar a sua evolução futura para a arte sequencial. No segundo capítulo será feita uma breve biografia do artista Will Eisner, destacando seu início de carreira e referências, assim como as inspirações que tornaram possível a criação da obra The Spirit, passando pelo impacto da personagem no cenário dos quadrinhos, fato que acabou por se transformar, mais tarde, na arte sequencial, elevando a forma de se ler uma ação estática disposta em quadros. Tal importância na indústria será salientada no capítulo II, que tratará do legado garantido por Eisner, destacando os artistas Frank Miller, Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido, em uma breve biografia do autor de Sin City e da dupla responsável por Blacksad. Estabelecido os alicerces desta pesquisa, o estudo seguirá para o capítulo IV, que se propõe a exemplificar o cinema noir, passando por um processo de decantação, com o fim de garantir uma linguagem concisa e simples do que vem a ser o movimento noir, através dos tópicos: estética, 15
narrativa e estereótipos, garantindo, assim, a presença não só de um gênero de cinema, mas um verdadeiro fenômeno cultural, responsável por diversas obras multimidiáticas. Entre estas linguagens para qual o noir foi adaptado se encontra o quadrinho, do qual o estudo se seguirá pela convergência de mídias, constatando as similaridades entre o cinema e os quadrinhos, traçando uma linha narrativa e visual nestes dois meios de comunicação diversificados, que se tornaram, ao mesmo tempo, uma forma de arte e de entretenimento para as massas. Será feito um estudo evolutivo destes meios, demonstrando as diversas similaridades que dividem entre si, desde a raiz expressionista encontrada na personagem Batman, até o trato do nanquim tal qual a iluminação do cinema noir, além das similaridades narrativas partilhadas, entre contos policiais e pulp fictions. Por final, após todas as comparações técnicas terem sido devidamente estabelecidas,
tanto
pela
semelhança
da
luz,
de
personagens
e
enquadramentos e ângulos cinematográficos, será feito um apanhado de diversas obras de Frank Miller, as traduzindo em uma linguagem neo-noir, mais aproximada do pop, enquanto o Blacksad se encontra em um meio clássico noir. A conclusão levará para o caminho dos quadrinhos contemporâneos, abordando a utilização e a importância do enquadramento na arte sequencial, tal qual uma nova evolução desta linguagem, se estabelecendo como uma forma de expressão única. 2 A ARTE POSTA EM SEQUÊNCIA
A fim de contextualizar a abrangência que engloba a arte sequencial, é interessante voltarmos ao princípio das representações artísticas de nossos ancestrais, seguindo um caminho exemplificado através das primeiras representações figurativas do cotidiano, que contribuíram na construção da própria palavra escrita. Segundo McCloud, (1993), “de acordo com a história, as figuras antecedem em muito a palavra escrita.” (figura 1).
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Figura 1 - Figuras pictóricas e simbólicas, que, representadas na parede de uma caverna, retratam um meio de vida rupestre. Esta peça, datada em 15 mil anos, demonstra o início da representação humana através de uma linguagem iconográfica. (Fonte: Desvendando os Quadrinhos).
A linguagem corporal do indivíduo logo se tornou uma ferramenta para se decodificar signos figurativos que, quando justapostas, são capazes de narrar uma sequência de acontecimentos. O corpo humano, a estilização da sua forma, a codificação de seus gestos de origem emocional e de posturas expressivas são acumuladas e armazenadas na memória, formando um vocabulário não verbal de gestos. (EISNER, 1989, p. 103)
Este “vocabulário não verbal de gestos” pode ser encontrado nas formas figurativas realizadas nos primórdios, com o fim de decodificar a forma humana. (figura 2).
Figura 2 - Exemplo de comunicação escrita por meio de imagens familiares. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial).
Esta decodificação se deve a forma do homem em “universalizar imagens da experiência humana comum” (EISNER, 1989, p. 106), fato que contribuiu na criação da primeira forma de linguagem escrita, baseada na figuração estilizada. (figuras 3 e 4). 17
Figura 3
Figura 4: As figuras 3 e 4 mostram A utilização iconográfica da forma humana nos frisos egípcios e a construção dos hieróglifos, que “codificaram as imagens em símbolos em repetição para formar uma linguagem escrita viável”. (Eisner, 1989, p. 104). (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial).
Como apontado por McCloud, a imagem é instantânea, pois é uma informação recebida, que não necessita de uma “educação formal” para ser compreendida. Enquanto a escrita é “informação percebida”, que acarreta um “conhecimento especializado para decodificar os símbolos abstratos da linguagem”. (McCLOUD, 1993). O que temos então, na transição deste período, em que figura se transforma em linguagem, é a concepção dos “ícones não pictóricos”, que constituem um “significado fixo e absoluto. Sua aparência não afeta seu significado porque representa idéias invisíveis”. (McCLOUD, 1993). O que ocorre é um “amálgama de imagem visual pura e símbolo derivado uniforme”, elaborados “a partir de imagens que têm origem em formas comuns, objetos, posturas e outros fenômenos reconhecíveis”. (EISNER, 1989). Quanto mais se refina a linguagem, mais abstrata a mesma se torna. O símbolo acaba por se transformar em caligrafia, que, representada a mão, evoca a sua origem artística e figurativa. Para Eisner, “a caligrafia acrescentou outra dimensão ao uso do pictograma”, criando uma “certa similaridade com a tira de quadrinhos moderna, se consideramos o efeito que o estilo do desenhista tem sobre o caráter do produto total” (EISNER, 1989, p.8). Porém, seguindo a lógica de McCloud, os hieróglifos não podem ser considerados como o primórdio dos quadrinhos, mas sim da palavra escrita.
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Embora exista uma “certa semelhança com os quadrinhos”, os grifos egípcios representam sons - assim como nosso alfabeto -, não imagens. Assim sendo, passando esta concepção da linguagem, encontramos alguns antecessores que se aproximam, de uma forma muita mais direta, com a arte sequencial em si. McCloud desvenda uma cena, pintada há 32 séculos no Egito (figura 5), composta por imagens – mais aproximadas de uma representação pictórica, - justapostas em sequência, que, quando lidas em ziguezague e de baixo pra cima, são capazes de construir uma narrativa visual.
Figura 5 - Imagem representada por McCloud, com o fim de ser reproduzida em preto e branco. (Fonte: Desvendando os quadrinhos).
Na pintura acima, podemos compreender todo o processo da colheita do trigo, o deslocamento do mesmo até a debulhadora local, a separação do trigo e da palha, a supervisão do imperador e de seus escribas, - registrando a produção em seus papiros -, a medição da terra e a representação de fazendeiros sendo espancados por representantes do imperador. Nesta mesma imagem é possível ver traços sociais (duas garotas brigando por pedaços de trigo), faces do lazer (operários tocando flauta ao fundo) e de regimes políticos (o imposto medido em trigo e a punição sofrida para aqueles com impostos atrasados). Esta representação, que serve como uma antecessora primária das 19
histórias em quadrinho serve, além de tudo, como a compactação de toda a cultura de um povo. Estes traços culturais, porém, não são exclusivos de somente uma nação. A construção de imagens como estas podem ser encontradas em diversos momentos da história e em culturas extremamente diversificadas, tais como na pintura épica “Garras de Tigre”, dos manuscritos pré-colombianos (figura 6) e nas tapeçarias inglesas do século IX (figura 7).
Figura 6 - Narrativa épica sobre o herói “8-Cervos”. (Fonte: Desvendando os quadrinhos).
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Figura 7 - Tapeçaria inglesa datada de 1066, que desenvolve a construção de uma direção visual da “Conquista normanda”, através de “eventos da conquista em ordem cronológica deliberada”. (McCLOUD 1993, p.12). (Fonte: Desvendando os quadrinhos).
Avançando no tempo, se alcança o período mais importante para as histórias em quadrinho: a invenção da imprensa. (McCLOUD, 1993). Com a invenção da imprensa, a forma de arte que servia aos ricos e poderosos agora poderia ser desfrutada por todos. (McCLOUD, 1993, p. 16)
Pela facilidade da reprodução, a imprensa tornou a arte um meio mais social, viabilizando a expansão de outras formas de linguagem, como a série “As torturas de Santo Erasmo” (figura 8), do ano 1460. Inclusive, “dizem que o personagem (Santo Erasmo) era muito popular”. (McCLOUD, 1993, p. 16). Talvez essa grande popularidade seja exatamente o “mal” relegado aos quadrinhos. Em trecho retirado do livro Desvendando os Quadrinhos (McCLOUD, 1993), o artista Rudolphe Topffer (1845) chega a comentar que as obras de arte em sequência, que o mesmo produzia, “atraem sobretudo crianças e as classes inferiores”. (McCLOUD, 1993, p. 201, apud TOPFFER, 1845). Tanto As torturas de Santo Erasmo, como Os amores do senhor Jacarandá (1842), por terém caído em gosto popular, acabam por ser relegadas a uma arte mais descartável e menos apreciada. 21
Contudo, como será destacado a seguir, a arte de se estabelecer uma narrativa através do movimento e da sequência alçou vôos maiores, inclusive chegando as “belas artes”, como no caso da obra Adão e Eva (figura 9) e o altar de São Wolfgang (figura 10), ambos do pintor renascentista Lucas Cranach (séc. XVI).
Figura 8 - A série de figuras que servem como narrativa para a obra As torturas de Santo Erasmo (1460), detalhando cada um de seus sortilégios. (Fonte: Desvendando os quadrinhos).
Este tipo de representação sequencial foi amplamente utilizado pelas igrejas católicas, que se apoiavam neste tipo de arte com o fim de informar e catequizar a plebe, retratando passagens inteiras aos fiéis, com belos e exuberantes vitrais (figura 11) e pinturas renascentistas, que, divididos entre si, apresentavam uma leitura compreensível e abrangente para a população:
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Os afrescos continuaram a ser utilizados como o principal ofício pictográfico narrativo nas paredes de igrejas no sul da Europa como continuação de antigas tradições cristãs e românicas. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Pintura_do_gótico)
Figura 9 - Pintura da série Adão e Eva (séc. XVI), que retrata a passagem da bíblia através de outros quadros postos em sequência. (Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br)
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Figura 10 - Frontal do Retábulo de Cranach na igreja de São Wolfgang. As cinco pinturas postas em conjunto, aliadas ao uso do texto guia, são capazes de construir uma interessante narrativa visual e literária, muito comum neste tipo de representação sacra, onde passagens da bíblia são abordadas. Fonte: http://pt.wikipedia.org
Figura 11 - Vitral na Catedral de Chartres (séc XIII). (Fonte: http://pt.wikipedia.org). Na Idade Média, quando a arte sequencial passou a se ocupar de contos edificantes ou histórias religiosas sem muita profundidade ou nuances, o público-alvo era aquele de pouca educação formal. Desta forma, a arte sequencial se tornou uma espécie de taquigrafia, que se valia de estereótipos para abordar as questões humanas. (EISNER, 2010, p. 149)
Em 1731 a “sofisticação da história com imagens atingiu seu apogeu nas mãos de William Hogarth”. (McCLOUD, 1993, p. 16). Em sua série de gravuras, “O progresso de uma prostituta” (figura 12), Hogarth conseguiu estabelecer 24
uma nova forma de leitura da bela arte, separando uma narrativa completa em seis breves quadros. “Essas e outras séries de Hogarth são citadas por Will Eisner como uma demonstração pioneira de arte sequencial”. (AZÊDO; UCHA, 2009, p. 4). Apesar de ter poucos quadros, essas figuras contam uma história rica em detalhes e motivada por fortes preocupações sociais (...). As histórias de Hogarth foram mostradas pela primeira vez como uma série de pinturas (...), que era para ser vistas lado a lado, em sequência! “O progresso de uma prostituta” e sua continuação se tornaram tão populares que novas leis de direitos autorais foram criadas para proteger essas nova forma de arte. (McCLOUD, 1993)
Figura 12 - A segunda gravura – de um total de seis da obra “O progresso de uma prostituta” (1731). Seis quadros diferentes, que, mesmo contendo momentos únicos, são capazes de formar uma só narrativa se expostos em conjunto. A separação das cenas do quadro, através do espaço físico de sua moldura, pode ser interpretada como o início do vazio de leitura do “entrequadros” (McCLOUD, 1993), que serve como a cola da ação, permitindo à imaginação do leitor a função de conectar a narrativa. (Fonte: http://it.wahooart.com).
Com o passar do tempo, a técnica da junção entre figura e texto encontrou um parâmetro que é cultivado até hoje: o da charge política. Isto se deve ao artista James Gillray, que, em 1972, criou a tira French Liberty, British Slavery (figura 13), um retrato crítico social e político da relação entre França e Inglaterra. O detalhe mais interessante desta obra, talvez, seja o uso de balões de fala, uma linguagem extremamente característica dos quadrinhos. Ao que
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tudo indica, Gillray seria o elo perdido definitivos dos quadrinhos. Bem, não exatamente, pois, como citado por Amorim (2011): A disposição das informações é semelhante à dos quadrinhos, utilizando-se de quadros e balões, no entanto a charge não traz um enredo, apenas remete a uma situação, satirizando-a. (AMORIM, 2011, p. 4)
Figura 13 - O almálgama entre figura e texto, de Gillray (1972). (Fonte: http://upload.wikimedia.org).
Esta relação mais profunda seria encontrada alguns anos depois, com Rodolphe Topffer, em 1827. Porém, esse assunto será melhor abordado no próximo capítulo. A fim de finalizar a busca humana pela “captura de movimento” entre os séculos XIX e XX, temos uma etapa fundamental, dada em 1826 pelo francês Joseph Nicéphore Niépce: o primeiro registro fotográfico da história (figura 14).
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Figura 14 - Vista da janela em Le Gras (1826), primeiro registro fotográfico da história. (Fonte: http://upload.wikimedia.org).
Embora a técnica que envolve a fotografia já fosse utilizada desde o sécuo XVI, foi com a “heliografia” (uma câmera exposta a oito horas de luz solar) de Niépce que a fotografia veio ao mundo. Com a evolução do registro fotográfico, pesquisas a cerca do movimento foram realizadas. Ao se registrar uma ação em diversos fotogramas separados, conseguimos criar a ilusão do movimento. Eadweard Muybridge foi o maior responsável pelos estudos seqüenciais. Por motivos de uma dúvida da época, levantadas pelo governador da Califórnia, Leland Stanford, Muybridge foi convocado a descobrir como se dava o trote de um cavalo, já que os animais eram retratados, quando em movimento, como cães: com suas quatro patas acima da chão enquanto galopavam. Para isto, Muybridge desenvolveu uma série de grandes câmeras, postas em linha e disparadas assim que o cavalo por elas passassem. O resultado foi o “estágio intermediário entre fotografia e cinema” (Wikipédia – Figura 15).
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Figura 15 - O trote do cavalo captado por Muybridge (1878). (Fonte: http://gteans.blogs.com).
Esta ilusão do movimento se dá através do efeito chamado “persistência da retina”, que se consolidou, em 1895, pelas mãos dos irmãos Lumière e a invenção do cinematógrafo (figura 16).
Figura 16 - O cinematógrafo, considerado uma evolução do cinetoscópio, de William Kennedy Laurie Dickson. (Fonte: http://upload.wikimedia.org)
Os filmes são feitos de uma série de imagens individuais chamadas fotogramas. Quando essas imagens são projetadas de forma rápida e sucessiva, o espectador tem a ilusão de que está ocorrendo movimento. A cintilação entre os fotogramas não é percebida devido a um efeito conhecido como persistência da visão, pelo qual o olho humano retém uma imagem durante uma fração de segundo após a fonte ter sido removida. Os espectadores têm a ilusão de movimento devido a um efeito psicológico chamado movimento beta. (Wikipédia)
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A partir do cinematógrafo, a ilusão do movimento foi se aprimorando cada vez mais. Em grande parte ao envolvimento do mágico Georges Méliès, que pretendia utilizar esta nova invenção para seus truques de mágica. Embora sua tentativa de compra tenha sido refuta pelos irmãos Lumière (principalmente pelo fato do cinematógrafo se tratar muito mais de um objeto cinetífico), Mélies consegiu adquirir um aparelho parecido, vindo da Europa, criando, assim, o início do cinema de entretenimento (figura 17). Porém, a consolidação do cinema como o conhecemos hoje se deve a figura de David W. Griffith, que, com o filme “O nascimento de uma nação” (1915 – Figura 18), construiu a figura cinematográfica mais próxima do que conhecemos hoje, com a adição da montagem em suas cenas. Griffith construiu o cinema contemporâneo de uma forma mais certeira, alçando o mesmo ao nível de arte que hoje conhecemos, com a captura de movimento padronizada em 24 frames por segundo. Mas e quanto ao quadrinho? A quem se deve a real criação desta arte?
Figura 17 - O filme “Viagem à Lua” (1902), de George Mélies. Passo fundamental na criação dos “efeitos visuais” do cinema. (Fonte: Viagem à Lua).
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Figura 18 - Cena do filme “O nascimento de uma nação” (1915), de Griffth. (Fonte: O nascimento de uma nação).
2.1 A história dos quadrinhos
Como pôde ser observado, a humanidade criou diversas formas de se representar o movimento, seja para fins narrativos, ilustrando uma passagem bíblica em vitrais de igreja, ou para fins científicos e de estudo (transformados em artísticos, posteriormente), que, através da evolução da fotografia, acarretaram a invenção do próprio cinema, em 1895, com a criação do cinematógrafo pelos irmãos Lumière. Porém, embora todos os passos citados desempenhem uma importante função de estudo na compreensão da arte posta em sequencia, nenhum deles acaba por se fundamentar, verdadeiramente, como “quadrinho”. O primeiro grande passo para a fundamentação da linguagem dos quadrinhos se deve ao escritor, pedagogo e desenhista Rodolphe Topffer, que em 1827, na Suíça, desenvolveu os primeiros elementos marcantes que estruturariam os quadrinhos, com a obra Histoire de M. Vieux Bois (ou, como foi traduzido em 1842, Os amores do senhor Jacarandá), contando com elementos de linguagem únicos (Figuras 19 e 20). 30
Esses elementos que tornam os Quadrinhos uma arte específica foram reunidos pela primeira vez há exatos 180 anos, quando Rodolphe Töpffer criou a obra ficcional Les Amours de Monsieur Vieux-bois (Os Amores do Senhor Jacarandá em sua edição brasileira). O que diferenciava a criação de Töpffer das outras era uma narrativa visual em que imagens e palavras combinam-se no espaço da página, mas possuem funções distintas. Em sua obra, as imagens não são mera ilustração de um texto escrito, enquanto as palavras não servem simplesmente para explicar os desenhos. Com um traço bastante sintético e inovador para a época, em suas “histoires des estampes” Töpffer inventou uma nova linguagem artística, prontamente aclamada pelo poeta Johann Goethe como uma revolucionária forma de comunicação. (SRBEK, online)
Figura 19 - Página da obra Les Amours de monsieur Vieux-Bois. Importante notar o desenvolvimento de personagem, com uma anatomia muito mais próxima do estilo utilizado nos quadrinhos, expressão simplificada e sensação de movimento, além da incorporação do texto à imagem, em uma relação mútua de linguagem: somente a junção do texto e da ilustração são capazes de narrar o acontecimento da forma correta. (Fonte: http://gallica.bnf.fr)
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Figura 20 - Página 25 da obra Les Amours de monsieur Vieux-Bois. Nesta imagem já é possível visualizar uma concepção do movimento aprimorada, oferecendo a história uma ritmo interessante, que consegue até mesmo agir de forma independente ao texto. (Fonte: http://gallica.bnf.fr)
Acompanhando os quadros acima, já é possível constatar o elemento principal na construção dos quadrinhos, definido por Scott McCloud como um apanhado de “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”. (McCLOUD, 2003, p. 9). Estes elementos narrativos, unificados nesta publicação de 1827, já podem ser identificados como o primórdio da arte sequencial contemporânea, principalmente pela presença do texto e da imagem em uma relação de sincronia e dependência pelo bem da narrativa, que é expressa em um certo número de ações, representadas em quadros separados, com a intenção de transmitir uma noção de conexão visual e movimentação, gerando, assim a falsa impressão da ação contínua, tal qual fotogramas justapostos no cinematógrafo. Seguindo a ordem cronológica dos quadrinhos, outros artistas desempenharam papéis importantes na história. Um deles foi Wilhelm Bush, um poeta alemão nascido em 1832, que acabou por ganhar destaque em 1859 ao publicar, no jornal Fliegende Blätter, a série de charges Die kleinen Honigdiebe (figura 21), que acabariam por se transformar, em 1865, na tirinha Max and Mortiz (no Brasil, a obra foi traduzida pelo poeta Olavo Bilac, ganhando o título de Juca e Chico – História de dois meninos em sete travessuras – figura 22). Em suas histórias, Juca e Chico são dois meninos que 32
moram em uma pequena aldeia, e cujo maior passatempo é o de infernizar a vida de seus moradores, aprontando, ao longo da narrativa, as sete travessuras que dão nome ao título nacional. Por fim, a história é carrega pelo humor das ilustrações (que cativava as crianças) e o cruel modo germânico de apresentar lições de moral.
Figura 21 - Ilustração publicada no jornal alemão Fliegende Blätter, em 1859. (Fonte: http://www.sagen.at)
Figura 22 - painel da obra “Juca e Chico”, de 1993. (Fonte: http://www.sagen.at)
Busch, assim como todos precursores, foi amplamente copiado e serviu como inspiração para gerações futuras. Segundo trecho retirado do livro História da Histórias em Quadrinhos (MOYA, 1993), o autor destaca uma crítica 33
feita por um profissional não identificado, do jornal francês Le Figaro: “Wihelm Busch foi um dos maiores inventores da síntese cômica que já existiu (...) muitos fazedores de desenhos ‘simplificados’ se inspiraram nele. Infelizmente, não copiaram sua profundidade de observação”. Poucos anos depois, aproximadamente em 1855, o Brasil ganhou seu primeiro quadrinho: “Namoros, quadro ao vivo”. (SISSON, 1855). A arte foi criada pelo francês radicado no Brasil, Sebastian August Sisson, que era especialista em retratos e caricaturas, além de exímio litógrafo. (AZÊDO; UCHA, 2009). Porém, o nome nacional que merece um destaque muito maior é, com certeza, o de Angelo Agostini. Foi em 1869, publicado na revista ilustrada “Vida fluminense”, que a obra “As aventuras de Nhô-Quim” (figura 23) veio à tona.
Figura 23 - A personagem Nhô-Quim, que, em uma caricatura bem humorada, demonstra sua ingenuidade e “ignorância” ao brigar com a própria imagem, refletida em um espelho. (Fonte: http://www.universohq.com)
As trapalhadas aventuras da personagem simples e caipira, Nhô-Quim, renderam a incorporação da sua data de publicação, dia 30 de janeiro, como o “Dia do quadrinho nacional”. (AZÊDO; UCHA, 2009, p. 16). Contudo, Agostini voltou a se destacar, mais uma vez. Em 1886, “Angelo Agostini compila em fascículos as aventuras de Zé Caipora (...). Essa edição é considerada a primeira revista com um personagem fixo publicada no Brasil”. (AZÊDO; UCHA, 2009, p. 11). Ou seja, Agostini acaba por inventar, em 1886, o primeiro gibi do mundo (figura 24). Athos Eichler Cardoso vai ainda mais longe, ao afirmar que Angelo Agostini foi também o inventor da revista de quadrinhos, pois, em 1886, relançou as aventuras de Zé Caipora em fascículos individuais,
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com seis capítulos cada. "Nessa época, havia publicações parecidas, mas que incluíam quadrinhos de personagens diversos, caricaturas, contos e folhetins. Zé Caipora foi o primeiro personagem a ter uma revista só sua. Isto só voltaria a acontecer na década de 1930" (GUSMAN, online, apud ATHOS)
Athos continua seu texto, complementando o valor artístico e a importância como documento histórico da obra de Agostini, principalmente pelo traço realista do autor, que se utilizava de perspectiva e profundidade de campo, retratando costumes, veículos e arquitetura daqueles dias. (GUSMAN, online, apud ATHOS)
Figura 24 - Página de Zé Caipora, com diagramação ousada para a época. É interessante se atentar a utilização do enquadramento, que, com o intuito de abordar a cena da descida, se estica, junto à personagem. (Fonte: http://www.universohq.com)
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Nos Estados Unidos, o “gibi”, tal qual realizado por Agostini, só veio a aparecer em 1892, pelas mãos de James Swinnerton, com sua primeira série diária de personagens fixos, publicada no jornal Examiner sob o nome de The Little Bears (figura 25). Não tarda a aparecer, em 1895, uma nova peça essencial e marcante para os quadrinhos mundiais. Richard Felton Outcault e sua personagem Yellow Kid (figura 26) rapidamente conquistaram a consagração, elevando o status do artista de quadrinhos. Em sua obra, Outcault transforma um menino pobre, morador de uma favela, em personagem principal, que utilizava a sua própria roupa como meio de expressão, com falas e dizeres escritos na mesma. O interessante desta obra foi a utilização experimental das cores, com foco no amarelo da vestimenta, que tinha como intenção atrair um maior número de leitores. (AZÊDO; UCHA, 2009).
Figura 25 - O traço simplificado e a utilização de balões de fala logo se tornaram “regras” do estilo. (Fonte: http://lambiek.net/artists/s/swinnerton.htm)
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Figura 26 - A utilização de cores presente em The Yellow Kid evidencia uma preocupação em se criar uma nova linguagem, transformando a cor amarela em um componente essencial na construção da personagem e pontuação do relevante para a narrativa. (Fonte: http://cartoons.osu.edu)
Em 1896, o cartunista Rudolph Dirks lança outra série de quadrinhos, uma que, desta vez, já continha todos os elementos de linguagem que são característicos a este meio. Com a obra Katzenjammer kids (traduzida no Brasil como “Os sobrinhos do capitão”), publicada em seu suplemento próprio de quadrinhos coloridos, Dirks homenageia Busch (Juca e Chico) e estabelece muitos dos elementos tradicionais desta arte, sendo, inclusive, “a mais antiga história em quadrinhos em circulação”. (AZÊDO; UCHA, 2009, p. 14).
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Figura 27 - Nesta página, do início do século XX, podemos presenciar que a estrutura mais básica dos quadrinhos (balões de fala, estruturação dos quadros e recursos estilísticos) já estava presente, forma esta que não sofreu grandes alterações com o passar dos anos. (Fonte: http://curiositedequalite.blogspot.com/2011/04/katzen jammer-kids.html)
A partir de 1900, o mercado dos quadrinhos começou a engrenar de uma forma marcante. Por se tratar de um período de enorme produção, a abordagem completa da desta evolução exigiria de um estudo muito mais detalhado. Com a proximidade da chamada “época de ouro dos quadrinhos” (1920/1940), é interessante citar alguns autores importantes, que se destacaram no período anterior a grande guinada dos super-heróis. Talvez um dos maiores nomes para a narrativa sequencial seja o de Winsor McCay, criado da “primeira obra prima dos quadrinhos, Litte Nemo in Slumbersland”. (AZÊDO; UCHA, 2009, p. 17).
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A arte de McCay é exuberante e fluída, com passagens que estavam à frente do seu tempo, demonstrando um grande domínio da narrativa fantástica, se utilizando fortemente da anatomia expressiva, termo que seria utilizado somente décadas depois, por Will Eisner. Talvez o maior triunfo de McCay seja o apreço aos detalhes, principalmente na preocupação do mesmo na continuidade da ação e do movimento, sempre destilando, por diversos quadros, os gestos e posturas de suas criaturas e personagens. (figuras 28, 29 e 30). Sua contribuição é essencial para o desenvolvimento da arte sequencial.
Figura 28
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Figura 29
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Figura 28 à figura 30 - Com histórias curtas, narradas
em apenas uma página, podemos encontrar a personagem Nemo, uma criança que vive em meio a seus sonhos. O lúdico universo de McCay está sempre em constante movimento, seja pelos persistentes flocos de neve, da figura 28, ou pelo andar do elefante em direção ao leitor, que é direcionado para dentro da boca do animal, na figura 29, ou pelo uso da perspectiva e da inversão de ângulos da figura 30. A narrativa gráfica e visual de McCay guia o leitor pela sonhar da criança, que, assim como a mesma, é obrigado a terminar a história, por cair da cama e acordar deste universo. (Fonte: http://asleiturasdopedro.blogspot.com/2010/10/littlenemo-in-slumberland.html)
Terminada esta passagem essencial pelo universo de McCay, citarei alguns autores importantes, que direcionaram o universo dos quadrinhos até a nossa realidade contemporânea. Entre eles, podemos evidenciar a importância nacional da obra “O Tico-Tico” (Luís Bartolomeu de Souza e Silva, 1905); A primeira aventura da personagem Tarzan (1914) de Edgar Rice Burroughs; Herge e sua criação máxima, Tintim (1929); a estréia de Mickey Mouse nas tiras de quadrinho em 1930 (ocorrendo, assim, a transição de um personagem animado famoso para sua contraparte estática nos quadrinhos); as primeiras 41
histórias policiais dos quadrinhos, com a personagem Dick Tracy (Chester Gould, 1931) e a inauguração do gênero de ficção científica, com Flash Gordon (Alex Raymond, 1934), guiando, também, a abordagem anatômica (posturas, feições e biotipos) e de roteiro que seria utilizado nos próximos anos (figura 31).
Figura 31 - Trecho da obra Flash Gordon, na qual é possível perceber o modelo anatômico utilizado na série, recorrente até os dias de hoje. (Fonte: http://madinkbeard.com/archives/flash-gordonreview)
A partir deste momento, estamos consolidando a fase de ouro dos quadrinhos, com roteiros leves, voltados para a aventura, com personagens que mais heróicos, seguindo bons modelos de caráter e moral. Ocorre também uma
ramificação
nos
quadrinhos,
desenvolvendo
uma
linguagem
de
entretenimento advindo de romances clássicos (Tarzan), sci-fi (Flash Gordon) e policiais pré-noir (Dick Tracy). Entre outros, deve-se destacar Mandrake e O Fantasma, amos de Lee Falk (1934 e 1936, respectivamente). Ao que tudo indicava, o mercado de quadrinhos se voltava cada vez mais para estas figuras 42
heróicas, tendo influenciado até mesmo no Brasil, com a criação da personagem de terror, Garra Cinzenta, em 1937 (figura 32).
Figura 32 - Pelo fato da obra brasileira ter sido influenciada pela vertente do terror, podemos perceber a utilização de elementos do expressionismo alemão - que seriam posteriormente amalgamados ao gênero noir -, tal qual a utilização da iluminação e a trama sombria. (Fonte: http://hqquadrinhos.blogspot.com)
O auge foi alcançado, definitivamente, em 1938 e 1939, com a criação das personagens Superman e Batman, frutos da época de pré Segunda Guerra, iniciando, assim, todo o modelo de quadrinhos como conhecemos hoje. Porém, esta intensa busca por figuras heróicas e sobre-humanas distanciou os quadrinhos da realidade. Foi em 1940, influenciado pelo cinema policial da época, que Will Eisner lançou sua personagem mais famosa: The Spirit. Iniciava-se uma nova abordagem para os quadrinhos, mais séria e humanizada, elevando-se a arte sequencial.
3 WILL EISNER
A vida e o trajeto profissional de Will Eisner se confundem com a própria concepção e ascensão das histórias em quadrinho: das tirinhas semanais dos jornais de sua infância até a criação das graphic novels, Eisner sempre esteve presente em momentos crucias da nona arte, fosse como simples espectador ou como principal responsável e criador de uma nova linguagem. Assim sendo, é difícil se narrar a vida e obra de um artista desta magnitude sem, ao menos, acompanhar o desenvolvimento da indústria de quadrinhos no século XX e
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como a arte desempenhou, desde cedo, um papel fundamental no jovem William Erwin Eisner. Filho de imigrantes judeus, Will Eisner teve uma infância pobre no bairro do Brooklyn. Nascido em 6 de março de 1917 e criado no gueto nova iorquino, o jovem Eisner vivenciou os primeiros passos do que se tornaria a era de ouro dos quadrinhos, uma época em que as famosas tirinhas e charges de jornais norte americanos se encontravam em seu auge - tanto na qualidade de seus artistas como na aceitação do público. Era exatamente nesta forma de entretenimento lúdico que o pequeno Will Eisner se refugiava. Vivia-se numa época interessante para aqueles que se aventuravam como cartunistas, já que era ainda algo novo a ser explorado, com mentes criativas e talentosas por trás de algumas das maiores obras do gênero. Eisner acompanhava avidamente cada um deles, tanto que desde novo já pensava em se dedicar a área. Tal ímpeto artístico devia-se muito a seu pai. Nascido em Vienna, dedicava-se a arte como pintor de murais, com peças realizadas nas famosas vaudeville do final do século XIX e em teatros judaicos. Eisner contava com o apoio de seu pai, que prezava a criatividade de seu filho como algo a ser cultivado. Porém, a aceitação não era bem vinda pela parte de sua mãe, mulher simples, nascida no navio de imigração que a trouxe da Romenia. Era pragmática e lamentava a escolha de seu filho, argumentando que o mesmo estava sofrendo de “quixotismo” e que deveria voltar à razão de seus pensamentos. Sua maior preocupação era o de retirar Eisner do caminho da arte, já que a família vivia no cortiço do Brooklyn e necessitava de uma renda extra para sobreviver. Para ajudar a família, Eisner passou um período de sua infância com vendedor de jornais, o que, ironicamente, somente contribuiu para o seu interesse nos quadrinhos. Foi neste período que Eisner passou a entrar em contato diário com as tirinhas dos jornais, lendo constantemente todas as publicações de todos os jornais de Nova York. Alguns dos maiores mestres do gênero estavam em plena atividade, servindo como ícones e inspiração para Will Eisner, tais como E.C Segar, criador do notório personagem Popeye, além da dupla George Garriman e Lyman Young, que criaram a tirinha Tim Tyler’s Luck. Embriagado com a possibilidade de se tornar um grande cartunista, Eisner decidiu se dedicar a sua futura profissão - afinal de contas, alcançar a notoriedade de um artista como Sidney Smith (criador da tirinha The Gump) 44
significava alcançar prestígio e riqueza, ambas oferecidas pelas grandes editoras, que faziam de tudo para atrair novos talentos e artistas de grande porte. Eisner começou a desenvolver suas habilidades artísticas e de escrita quando entrou na renomada DeWitt Clinton High School, uma das escolas públicas mais reconhecidas dos Estados Unidos. Localizada no Brox, próximo a Cozinha do Inferno, DeWitt foi de suma importância para o jovem Eisner, lhe providenciando todos os meios possíveis para sua evolução artística. Não há de se surpreender que tal instituição tenha servido, também, como berço de outros grandes artistas e personalidades, com destaque para um dos grandes colegas e amigos, além de primeiro colaborador de Eisner, o futuro criador da personagem Batman, Bob Kane, apenas dois anos mais velho. Foi neste período da juventude que Eisner se tornou responsável por diversas tiras em quadrinhos, revistas de arte, ilustrações e até mesmo design de peças de teatro, todas voltadas para a escola. Entre suas primeiras publicações, uma que merece destaque foi a concebida com seu colega de classe, Ken Ginniger, na intenção de se realizar uma revista literária mais intelectualizada, chamada de The Lion and Unicorn. Recheada de versos, poesias, erotismo e ricas ilustrações, além de fragmentos das obras dos escritores Marcel Proust e Albert Camus, esta primeira publicação “importante” serviu para demonstrar o desenvolvimento artístico pelo qual Eisner passava, tendo que, inclusive, aprender gravura em madeira Após sua passagem pela DeWitt Clinton High School, Eisner ingressou na concorrida Art Students League, uma cara instituição de arte. Eisner recebeu ajuda financeira de seus colegas, que contribuíram com a mensalidade, incentivando o crescente talento do jovem rapaz. Este período estabeleceu um passo importante para a vida profissional de Eisner, na qual o mesmo teve a oportunidade de contar com alguns dos melhores professores de sua época: George Bridgman e Robert Brachman, que lecionavam anatomia e pintura, respectivamente. Com 19 anos, Eisner entrou para o departamento de publicidade no famoso jornal New York American. Eisner conta que utilizava suas horas de almoço para observar o movimento das pessoas trabalhando, observando personagens e aprendendo sobre luz e sombra (HEINTJES, online). 45
Por não apreciar inteiramente o ramo em que trabalhava, Eisner começou a procurar por serviços de freelancer. Entre estes serviços, merece destacar a sua primeira história em quadrinhos, realizado para uma empresa de sabote líquido, no período de 1936. Esta primeira experiência em criar quadrinhos de maneira “profissional” rendeu a Eisner algumas outras tentativas na área, embora todas tenham sido rejeitadas pelo pressuposto principal de que seu traço não combinava com as tiras de humor que reinavam nas revistas especializadas. Pouco tempo depois, Eisner foi contratado como diretor de arte da revista Eve, que tinha como alvo o público feminino judeu. Porém, sua função não durou muito. Eisner utilizava a revista como veículo de sua arte, com ilustrações de embates violentos entre pugilistas. Esta “violência inapropriada” acabou custando a Eisner o seu emprego na revista. O direcionamento rumo aos quadrinhos na vida de Eisner iniciou quando o mesmo conheceu Samuel Maxwel “Jerry” Iger, seu futuro parceiro de negócios. Iger era o editor chefe da revista Wow! What a magazine, que publicava quadrinhos diversos. Eisner trabalhou como editor assistente e realizador de algumas das histórias publicadas, sendo que, no período em que a revista Wow! durou (quatro edições), Eisner publicou diversas de suas tiras, com as personagens Harry Carey e The Flame, além de ter feito duas das capas da revista (figura 33). Após esta primeira parceria infrutífera, Iger e Eisner partiram para a produção de material próprio. Assim nasceu o Eisner & Iger Studio. Com uma produção maciça de tiras e quadrinhos, o Eisner & Iger Studio ainda contava com a presença de ilustres e jovens talentos, como: Bob Kane (criador do Batman), Lou Fine (um de melhores cartunistas de sua época), Jack Kirby (co-criador de todo universo Marvel, junto de Stan Lee) e Mort Meskin (importante artista das eras de ouro e prata dos quadrinhos).
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Figura 33 - A personagem Harry Carey, criada por Eisner para publicação na revista WOW!, de 1936. (Fonte: http://www.willeisner.com/biography/)
Neste bem sucedido período, Eisner concebeu diversas personagens e histórias importantes para os quadrinhos. Ente estes quadrinhos de aventura, com super-heróis e personagens pulps, se destacam: Hawks of the Seas, Sheena, Yarko the great, Dollman e Blackhawk. Com apenas 22 anos, Will Eisner já havia conseguido alcançar o sucesso que muitos de seus colegas tanto sonhavam e invejavam. O ano era 1939, os Estados Unidos ainda se recuperavam da Grande Depressão, enquanto o jovem e promissor artista Will Eisner crescia cada vez mais no mercado. Mesmo com este crescente sucesso, o seu maior passo ainda estava reservado para o ano seguinte: era o nascimento de um marco dos quadrinhos.
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3.1 The Spirit
O ano de 1940 foi especialmente importante tanto para os quadrinhos quanto para o cinema. Para os que vivenciaram esta época, crescendo com a literatura pulp barata e o cinema policial de gênero, esta nova área “artística” que surgia apresentava um leque de possibilidades tremendas. Entre os mais importantes exemplos deste movimento (que seria reconhecido somente anos depois, através do fenômeno noir) se encontra o livro “O Falcão Maltês” (Dashiell Hammett, 1930) que ajudou a estabelecer algumas das idéias principais que se repetiriam na caracterização do estilo noir: personagens obscuros, que caminhassem em um tom “cinza”, sem a personificação do bem e do mal, ladeados por intrigas policiais, mulheres fatais e crimes. Podemos dizer que a influência foi tamanha que acabou por contribuir em outra indústria que ganhava força na época, vivendo sua era de ouro: os quadrinhos. Foi em 1940 que, concebido através das mãos e do imaginário fértil de um jovem e bem sucedido cartunista, vindo de um caminho de sucessos nas histórias em quadrinhos, que uma figura marcante do noir clássico foi criada. Um detetive marcado por um acontecimento trágico, vivendo em um ambiente urbano, ciente de suas próprias falhas e de suas limitações como humano, agindo como um benfeitor com um senso próprio de justiça, mas, ao mesmo tempo mais próximo ao povo (logo, ao público), sujeito a sangrar e sofrer como um homem comum. Além do que, com uma preferência muito maior em utilizar chapéu fedora e sobretudo do que capa e colante. Tal descrição cairia muito bem para qualquer personagem de um romance policial da época. Porém, Denny Colt não era interpretado por nenhum ator nem descrito nas linhas de um livro, mas sim desenhado e “interpretado” pelo futuro mestre da arte sequencial, Will Eisner. Em dois de junho de 1940 nascia “The Spirit”, uma frutífera fusão entre literatura policial, cinema pré-noir e quadrinhos. De seus compatriotas super-humanos dos quadrinhos, Spirit herdou a perseverança pela justiça e a máscara que contorna seus olhos (baseada no design da máscara utilizada pela personagem de faroeste, Lone Ranger), mas foi do cinema (e em parte da literatura) que saíram seus pontos principais.
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A personagem Spirit surgiu em um momento de mudança do jovem Eisner. Sua parceria de quadrinhos, a Eisner & Iger, foi quebrada, por escolha do próprio Eisner, em prol de um novo caminho profissional mais pessoal. Deslumbrado pela possibilidade de alcançar novos níveis criativos, Eisner aceitou a proposta do empresário Everett M. Arnold, dono da Quality Comics, uma das mais importantes empresas de quadrinho da época. No contrato firmado, Eisner deveria desenvolver um novo tipo de narrativa: uma publicação de quadrinhos semanal, com um total de 16 páginas, que alcançasse níveis altos de qualidade, mesmo sendo altamente comerciável. Alguns
de
seus
“empregados”,
da
antiga
Eisner
&
Iger,
o
acompanharam, contribuindo na criação desta nova publicação, que seria vinculada nos jornais da cidade. Foi em janeiro de 1941 quando a personagem criada por Eisner, The Spirit, começou a ocupar metade desta publicação de quadrinhos semanal. Com oito páginas semanais, Eisner fez algo inédito na indústria: patenteou sua criação, demonstrando uma visão de mercado muito maior do que a que cabia a maioria de seus parceiros. Spirit, esta importante figura dos quadrinhos, é na realidade o alter-ego do policial Danny Colt, dado como morto logo nas três primeiras páginas de sua primeira história. Contudo, é revelado que Danny havia somente entrado em um estado de animação suspensa causada por um de seus inimigos, o cientista louco “Doutor Cobra”. Ao acordar dentro de um cemitério, Danny descobre que foi dado como morto pelo departamento de polícia. Percebendo na situação uma oportunidade de agir por fora do “sistema”, Danny decide avisar seu amigo, o comissário Dolan, que havia sobrevivido ao ataque do Dr. Cobra. Contudo, Danny decide permanecer no anonimato, encoberto pela falsa notícia de sua morte e criando o disfarce perfeito para suas ações heróicas. Como último passo do estabelecimento da figura heróica, Danny monta sua base secreta no mesmo cemitério onde havia se recuperado de seu breve coma, se transformando em um “espírito” protetor para a cidade. O intuito de se criar a personagem veio pelo desejo de Eisner em escrever histórias curtas, na qual o autor poderia desinibir sua criatividade, já que estaria desenvolvendo quadrinhos para um público mais adulto. The Spirit foi escolhido como uma figura coringa, um detetive que poderia se adaptar a qualquer situação e aventura. (HEINTJES, online). Um dos conceitos pré49
estabelecidos, logo no início de sua criação, seria o fato do protagonista operar por fora da lei, gerando, assim atrito com Dolan, o comissário de polícia e parceiro de Spirit. (HEINTJES, online). Porém, ao avisar seu empresário, Eisner não teve a melhor das reações. Tanto o empresário quanto os empregadores (os jornais) esperavam por algum tipo de abordagem mais fantasiosa, com personagens fantasiados que lembrassem Batman e Superman, grandes sucessos da época. Foi neste momento que Eisner fez algumas alterações na vestimenta de Spirit: a adição da máscara e das luvas, combinadas com seu terno azul marcante. Fortemente inspirado pelo movimento noir, The Spirit não abrangia arcos de história sobre a salvação direta do planeta ou servia como propaganda antinazista e bélica norte-americana, mas sim se envolvendo em pequenas narrativas a cerca da fragilidade humana, enfrentando, muitas vezes, os perigos presentes no cotidiano de um cidadão comum: furtos, extorsão, sequestros e homicídios. Não existia somente uma inovação na narrativa: As inovações introduzidas por Spirit estão em todos os aspectos. (...) O aspecto noir das histórias, os enquadramentos inspirados no cinema, o humor sutil e as técnicas narrativas refinadas garantem o grande sucesso da série (...) (CENTRO DA CULTURA JUDAICA, online)
Este aspecto cinematográfico é muito presente na obra de Eisner, principalmente quanto ao refinamento técnico empregado em sua narrativa gráfica. A figura a seguir (34) servirá como exemplo destes elementos:
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Figura 34 - Spirit e o comissário Dolan em uma cena de investigação. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial)
Diversos pontos deste quadro podem ser destacados. “Expressões faciais que afetam a narrativa exigem clouse-ups. A placa da porta e o chapéu suspenso nas linhas do vácuo da velocidade são recursos narrativos. O relógio na parede define o lapso de tempo”. (EISNER, 1989, p. 15). Na área do cinema, podemos separar o uso do enquadramento presente no sexto painel, que separa e evidencia uma cena chave para a trama, através de um close que consegue, em um só quadro, compreender o objeto do crime e a prova que o conecta. Outro enquadramento interessante, que demonstra o compromisso de Eisner com os detalhes, ambientação e contextualização, é a vista para o cemitério da janela de Spirit, revelando que o mesmo se encontra em sua base de operações ou, ainda, o quinto e sétimo quadro, no qual, com grande sutileza, é demarcado um tempo físico estabelecido na ação entre quadros (o relógio pendurado na parede). Do ponto de vista estilístico, a arte final desempenha um papel fundamental, com utilização de luz e sombra em 51
alto contraste, criando figuras obscuras e pontos focais característicos que, somados a falta de diálogo, criam e ajudam a estabelecer um clima de suspense a investigação. Por final, há ainda a própria linguagem dos quadrinhos, com as já destacadas linhas de movimentação do terceiro quadro, guiando a visão do leitor rumo à interpretação de que a personagem (Spirit) passara em grande velocidade. Estas técnicas todas levaram Eisner a conceber um novo conceito em quadrinhos. Era a vez da “arte sequencial”. 3.2 Arte Sequencial
A HQ é uma narrativa essencialmente recreativa com um aspecto informativo secundário e mais ou menos involuntário, com base nessa finalidade lúdica, orientada para o humor, os americanos batizaram o gênero inteiro de comics e funnies. (ANSELMO, 1975, p. 34).
Eisner foi, sem dúvida, um dos mais habilidosos e criativos artistas do meio. Sua contribuição para os quadrinhos é sem precedentes. O merecido destaque se dá, principalmente, pela criação da “arte sequencial”, que aproximou a linguagem dos quadrinhos com o cinema de uma forma muito mais abrangente, sendo copiada e repassada até os dias de hoje. Tanto o traço de Eisner, como sua narrativa, eram diferenciados, da expressão de suas personagens e a construção das cenas de ação até o uso do enquadramento e da iluminação. (...) como forma de ampliar a duração de uma cena, aumentando a dramaticidade dela, Eisner abusa de um método bastante utilizado pelos cineastas: a fixação por diversos quadros (ou quadrinhos) de uma mesma imagem em vários momentos temporais seguidos, onde o desespero, terror, espera, angústia e outros adjetivos similares são reconhecidos e cada vez mais categorizados. (FEDEL, online)
O tempo é uma dimensão essencial nas histórias em quadrinhos: “O tempo se combina com o espaço e som em uma composição de interdependência,
na
qual
as
concepções,
ações,
movimentos
e
deslocamentos possuem um significado e são medidos através da percepção que temos da relação entre eles”. (EISNER, 1989, p. 23). Eisner explica que “é essa dimensão da compreensão humana que nos torna capazes de reconhecer e de compartilhar emocionalmente a surpresa, o humor, o terror e todo o 52
âmbito da experiência humana”. (EISNER, 1996, p. 26). A compreensão de tempo na arte sequencial é o que torna a “ilusão” do movimento algo satisfatório, pois, se existe uma linguagem bem estabelecida e demarcada na ação entre os quadros (como a presença de sons e falas), a leitura estabelecida flui de forma coerente, amarrando à narrativa e a figura. Para McCloud, o tempo nos quadrinhos não pode ser visto apenas como a representação de um único momento representado a cada painel. “A fotografia condicionou a gente demais a perceber imagens únicas como momentos únicos” (McCLOUD, 1993, p. 97). A introdução do som exige que haja o movimento (já que uma fala inteira não pode se encontrar em momento único), forçando, assim, a mente do leitor a completar a ação, que terá sua resolução no próximo quadro. McCloud vê a representação do enquadramento como um “indicador geral de que o tempo ou espaço está sendo dividido”, embora a “duração do tempo e as dimensões do espaço” sejam definidas mais pelo “conteúdo do quadro do que pelo quadro em si”. (McCLOUD, 1993, p. 99). Esta leitura essencial para compreensão da arte sequencial aparece, tanto em Eisner como em McCloud, sob o título de “timing”. Enquanto o tempo pode ser considerado uma ação simples, cujo resultado é imediato, o timing seria a prolongação deste tempo, realçando o resultado pelo bem da emoção. “Para expressar o timing (...), a disposição dos quadrinhos passa a ser elemento fundamental” (EISNER, 1989, p. 23).
Figura 35 - A pausa feita na cena, utilizando a extensão do quadro como demarcador de tempo, fornece a narrativa uma linguagem direcionada e uma quebra na leitura, construindo um uma situação de respiro que demarca a movimentação da passagem e, até mesmo, conexão emotiva. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial) Deste modo, a relação entre tempo e espaço torna-se relevante para adentrar em uma arte híbrida como os quadrinhos que, além fundir imagem e escrita, se utilizam de vários elementos a fim de fazer um
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amálgama estruturas Cirne, os amálgama 1970)
que interaja criativamente com a percepção do leitor. As que mais caracterizam os quadrinhos, segundo Moacy quadros e os balões de fala, evidenciam bem esse (CIRNE, 1970, p.16). (AMORIM, 2011, apud, CIRNE,
Para Will Eisner, as histórias em quadrinhos não eram somente os comics americanos, mas sim uma forma de expressão que necessitava do conhecimento prévio tanto do emissor quanto do receptor, envolvendo a compreensão de elementos como: anatomia, perspectiva, gramática e sintaxe, que, quando montadas em harmonia com o fim de exercer uma função verbal e visual, acabam por apurar a percepção estética do leitor, assim como a recreação intelectual (CAMPOS, 2007). Logo, quadrinhos não poderiam ser tratados,
erroneamente,
como
uma
simples
distração
e
forma
de
entretenimento barato, mas sim como uma forma de arte devidamente respeitada. Para Scott McCloud, a arte pode ser encontrada em qualquer forma de “atividade humana que não se desenvolve a partir dos dois instintos da nossa espécie: sobrevivência e reprodução”. (McCLOUD, 1993, p. 164). Além da abrangência conceitual de McCloud, o quadrinho pode e deve ser considerado arte, também, pelo ponto de vista das “belas artes”. Não é raro identificar os quadrinhos como uma representação da arte menor, sofrendo o mal de toda nova mídia, sendo julgado por padrões antigos. (McCLOUD, 1993). Para criar uma história é preciso aperfeiçoar a observação dos ambientes. Alguns elementos básicos de fenômenos e imagens devem ser compreendidos, como a figura humana, perspectiva, luz e sombra, objetos, mecanismos, gravidade, composição, balões e os quadros. Para desenhar a figura humana é preciso entendê-la e saber suas limitações e movimentos (...). O corpo humano, a estilização de suas formas, a codificação de sua gesticulação emocional e suas posturas expressivas, tudo isso está armazenado e registrado na memória, formando um repertório de gestos. (CAMPOS, 2007, p. 27 e 28)
Seguido o texto de Campos (2007), compreende-se que, por trás de toda história em quadrinho, existe um alto grau de técnica empregada, abrangendo estudos diversos, como anatomia, composição de imagem, 54
literatura, luz e sombra, etc. Todos estes elementos observados são carregados por simbolismos, que, quando juntos, desempenham a função principal de comunicar, criando uma ponte entre as experiências comuns entre artista e leitor. Para McCloud, os quadrinhos podem ser considerados como o fruto da “colisão” entre a semelhança (a figura) e o significado (a palavra). Ambas as partes, quando conectadas graficamente, principalmente através da abordagem dos quadrinhos, geram um compartilhamento de experiências comuns. Não se sabe muito sobre o local ou o modo de armazenamento no cérebro dos incontáveis fragmentos de lembrança que se tornam compreensíveis quando dispostos em certa combinação. Mas é óbvio que, quando uma imagem é habilidosamente retratada, ao ser apresentada ela consegue deflagrar uma lembrança que evoca o reconhecimento e os efeitos colaterais sobre a emoção. Trata-se, obviamente, da memória comum da experiência. (EISNER, 1996, p. 100)
Talvez um dos maiores e mais importantes elementos da arte sequencial de Will Eisner seja a presença deste reconhecimento da memória comum. “Se a habilidade com que um ator finge uma emoção é, em grande parte, o critério para avaliar seu desempenho, da mesma forma se avalia o trabalho do desenhista, que fará o mesmo com seu personagem, porém, com tinta e papel”. (CAMPOS, 2007). As personagens de Eisner não somente existiam, mas se expressavam, comunicando através de sua postura corporal, gestos e expressões faciais, transmitindo diversas impressões e emoções ao leitor, sem que
fosse
necessário
recorrer
à
utilização
de
cenários
e
detalhes
desnecessários. (CAMPOS, 2007 – Figuras 36, 37 e 38). A ausência de diálogo do intuito de reforçar a ação serve para demonstrar a viabilidade de imagens extraídas da experiência comum (EISNER, 1989, p. 18)
Deste modo, não é exagero pensar em Eisner como um diretor, sendo diretamente responsável pelas atuações necessárias na trama (e na “construção” dos atores), assim como na direção de fotografia e na cenografia de suas cenas, sendo, ao mesmo tempo, roteirista, câmera e editor. Na realidade, boa parte das realizações contemporâneas dos quadrinhos exige o 55
emprego de técnicas e ramificações de trabalho parecidas com o cinema, com cada parte responsável pelo encaminhamento de uma sequência. Quadrinhos e cinema, afinal estão conectados. Porém, há produções que se destacam, possibilitando uma autonomia criativa, na qual não é necessária o referencial cinematográfico. (figura 39).
Figura 36 - Passagem presente na graphic novel New York (1986), que, em uma história curta, estabelece uma narrativa fluente e constante, se utilizando somente da anatomia expressionista da personagem para se construir a ação, sem recorrer ao texto. (Fonte: http://pichaus.com)
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Figura 37 - Neste quadrinho do cartunista norueguês Jason, podemos perceber a poética da narrativa (a fuga da morte) sem que seja necessário a presença do texto, bastando o bom uso das imagens e da experiência comum para que seja preenchida esta lacuna da narrativa. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial)
Figura 38 - o uso das expressões faciais como “guia” dos sentimentos, emoções e acontecimentos da breve narrativa, exemplificando o bom uso da anatomia expressiva de Will Eisner. (Fonte: Desvendando os quadrinhos)
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Figura 39 - Cena do mangá Travel (2005), de Yuichi Yokoyama. O traço estilizado e expressionista do artista conta com o próprio meio do quadrinho para estabelecer sua ligação com autor, usando a separação dos quadros como um elemento de comunicação iconográfica. Além disso, os traços que demarcam o efeito de movimentação são característicos da linguagem única dos quadrinhos. (Fonte: http://www.artnet.com)
Segundo Eisner, a “arte sequencial é o ato de urdir um tecido”. (EISNER, 1989, p. 127). Nos quadrinhos, o responsável pela imaginação do leitor é o próprio autor, já que “uma vez desenhada, a imagem torna-se um enunciado preciso que permite pouca ou nenhuma interpretação adicional”. (EISNER, 1989, p. 127). De fato, este é mais um ponto no qual a arte sequencial se equipara
mais
ainda
com
o
cinema.
De
todas
as
comparações
cinematográficas estudadas, talvez o fato de que os quadrinhos entreguem uma história “pronta” para o leitor seja a maior delas. Tanto quadrinho, como 58
cinema (e, obviamente, animação) trabalham com a concepção de que o leitor deve aceitar aquela informação conforme lhe foi passada, não permitindo devaneios pessoais a cerca da obra. Claro que existem ressalvas, pois, embora o cinema e a arte sequencial se aproximem em entregar esta realidade “pronta” a seu espectador, os dois estão completamente alheios as interpretações de seu público. Porém, somente o quadrinho permite que a criatividade do leitor interaja em absoluto com a obra. Sim, o cinema pode ser sensorial e altamente interpretativo, mas, de uma maneira mais comum, a única “suspensão de descrença” que cometemos está na assimilação da realidade da tela como a realidade plausível. Já na arte sequencial, devemos ler aquelas imagens como um todo, aprendendo que, entre o espaço vazio que preenche a ação de um quadro para o outro, existiu um movimento, uma resolução nos fatos. McCloud chama isto de “conclusão” (1993, p. 63). A leitura dos quadrinhos sempre foi a partir da conclusão: nós concluímos que, por a+b, c se torna plausível. A grande graça da arte sequencial de Eisner, que guia nosso olhar se espelhando em muitos momentos do cinema, utilizando da anatomia expressiva, enquadramento e timing, é o refinamento que nos leva até o caminho da conclusão entre a+b. McCloud defende que a conclusão ocorre também no cinema, “continuamente, vinte e quatro vezes por segundo – enquanto nossas mentes transformar uma série de imagens paradas numa história em movimento contínuo”. (McCLOUD, 1993, p. 65). A conclusão que tiramos durante a leitura dos quadrinhos é, basicamente, a mesma do cinema. Enquanto o projetor nos obriga a construir essa movimentação, nos mostrando a ação contínua, 24 vezes por segundo, o quadrinho permite que o leitor direcione esta leitura, em um ritmo próprio. Seguindo o raciocínio de McCLOUD, existem seis tipos de conclusões que tiramos no espaço entrequadros: 1 – A transição quadro-a-quadro, na qual a ação é seguida a cada detalhe do movimento. (No cinema, compara-se a projeção habitual, sem cortes). 2 – Transição ação-para-ação, com “um único tema em progressão distinta”. (McCLOUD, 1993, p. 70). (Em se tratando de cinema, esta transição 59
se aproximaria mais de uma montagem clipada, rápida. A sequência permanece, mas o ritmo acelera). 3 – Transição tema-para-tema. Neste tipo de transição, exige-se do leitor certo “grau de envolvimento” (McCLOUD, 1993, p. 71), já que a ação ocorre dentro da mesma cena ou idéia, mas em situações e locais diferente. (A linguagem que mais se aproxima com o cinema seria a edição de campo, contracampo e plano geral ou ainda de plano detalhe, todos com a intenção de ligar e contextualizar os temas submetidos). 4 – A transição cena-a-cena exige um certo “raciocínio dedutivo”, já que as imagens “nos levam através de distâncias significativas de tempo e espaço”. (McCLOUD, 1993, p. 71). (Esta transição é facilmente encontrada no cinema, representando o momento em que o filme muda o tópico estabelecido, partindo para outros acontecimentos. Basicamente, a transição entre cenas; assuntos, a elipse cinematográfica). 5 – Um modelo mais abrangente de transição fica por conta do aspectopara-aspecto, que é responsável por fornecer um olhar atípico na narrativa, passando informações da atmosfera, do ambiente e, de certo modo, dos sentimentos envolvidos na cena. (Transição muito utilizada em obras independentes, de arte e que prezam pela sutileza, principalmente produções orientais. Transição que cadencia o ritmo da projeção). 6 – Por último, a transição non-sequitur, que não estabelece nenhuma “sequência lógica entre os quadros”. (McCLOUD, 1993, p. 72). (Esta transição é muito presente em obras experimentais, como projetos de vídeo-arte, produções surrealistas e obras nonsense).
4 LEGADO DE EISNER
Todos estes conceitos estabelecidos por Will Eisner nos guiaram até o quadrinho contemporâneo. Eisner foi o responsável por desenvolver e evoluir os quadrinhos adultos, em um período no qual estas narrativas gráficas eram essencialmente de entretenimento infantil e juvenil. A construção de personagens mais humanas, capazes de sofrer com a derrota e de se ferir em situações de ricos ofereceu novas oportunidades de abordagem, que não dependiam mais da divina e perfeita figura do super-herói. 60
Quando Will Eisner começou a trabalhar em The Spirit em 1940, ele já estava em terreno inexplorado. Seu trabalho (...) era enraizado em um estilo realista, já mostrando sua inventividade e inovação da qual ele seria reconhecido. Eisner recebeu a tarefa de criar um herói, em uma indústria (...) onde era a única coisa valorizada. Não desejando isso, ele simplesmente desenhou uma máscara e luvas no detetive em que estava trabalhando, nomeado Denny Colt (...). Embora ostensivamente um super-herói, Denny Colt era mesmo um detetive (...), e, como era atípico de super heróis, essencialmente humano. (THE COMICS CUBE, online)
Após o primeiro grande passo ter sido dado por Eisner, foram necessárias duas décadas para que esta abordagem mais realista tenha sido absorvida (de uma forma mais sutil) para dentro do mercado e do pensamento das grandes editoras, realizando adaptações neste universo essencialmente fantástico dos heróis. Temas como a desigualdade social (X-men, 1963), o consumo de drogas (Arqueiro Verde, 1970) e até mesmo a identificação entre o leitor e o herói (Homem-Aranha, 1968) começaram a se tornar algo recorrente nos quadrinhos de sucesso. Porém, não foi somente o impacto diante deste novo público adulto que tornou Eisner uma influência para as gerações seguintes, mas também a própria forma de se realizar quadrinhos, entregando obras que, mesmo tratando de temas realistas, apresentavam um traço cartunizado, incorporando o texto a sua arte em uma situação harmônica, agindo em conjunto com suas anatomias expressivas e o ousado uso de enquadramentos. Todos estes nuances se destacam quando incorporados a estética noir de sua primeira criação, que serviu como base para importantes artistas, que cresceram com este novo tipo de quadrinho. São eles Frank Miller, Díaz Canales e Juanjo Guarnido.
4.1 Frank Miller
Assim como Will Eisner, Frank Miller também soube utilizar sua infância simples como um atributo positivo para sua arte. Ambos os autores sempre colocaram suas adversidades como um instrumento de superação e foco criativo, possibilitando desenvolturas narrativas únicas baseadas no convívio mais urbano e próximo da realidade pobre americana, transformando detalhes 61
reais de um início difícil em uma linguagem crível que transmitia sensações únicas para os leitores dos quadrinhos adultos. Frank Miller, filho de imigrantes irlandeses, nasceu em uma pequena cidade rural de Maryland, chamada Olney, em 1957, mas logo se mudou com seus pais para Montepelier, em Vermont, onde cresceu e passou a maior parte de sua juventude. Seu pai era eletricista e carpinteiro, enquanto sua mãe trabalhava como enfermeira no hospital local. Vermont era (e continua sendo) um dos estados mais rurais dos Estados Unidos, local esse que não esbanjava oportunidades para um jovem criativo interessado em romances noir e aventuras pulps, mas com uma baixa renda familiar, que o impedia de almejar o que desejava. Miller, a princípio, não desejava ser um desenhista/roteirista de quadrinhos de super-heróis propriamente ditos, mas sim transformar seus heróis pessoais em personagens de quadrinhos. Tais como a personagem criada pelo autor e roteirista noir Mickey Spillane, o detetive Mike Hammer, protagonista de uma série de livros, rádio-novelas, filmes e adaptações diversas. Com o intuito de realizas suas próprias adaptações noir para os quadrinhos, Miller tomou a grande decisão de sua vida: deixar sua cidade natal rural e partir para a cidade grande. Foi em 1975, como apenas 18 anos, que Miller chegou em Nova York. Jovem e morando sozinho, seu começou foi difícil na cidade. Enquanto conhecia o ambiente mais urbano e depressivo de Nova York, (do qual ficaria enraizado em seu estilo), Miller procura emprego em pequenas editoras. Seu primeiro trabalho na cidade foi pela editora Gold Key Comics, na qual desenhou a história “Royal Fest”, na edição #84 de 1978. A partir deste ponto, o talento de Miller começou a ser reconhecido. Ainda em 1978, Miller conheceu o diretor de arte Vinnie Colleta, da DC Comics, que reconheceu seu talento e arranjou um pequeno trabalho como desenhista em uma história em quadrinhos chamada “Deliver me from D-Day”, publicada na revista Weird War Tales. Durante todo o período de 1978, Frank Miller trabalhou exclusivamente nesta publicação, que tinha como tema a Segunda Guerra Mundial, em histórias curtas que variavam entre duas e seis páginas. O reconhecimento do talento de Miller veio no ano seguinte, quando começou sua parceria com a editora Marvel Comics. Logo em sua estréia, 62
Miller teve a tarefa de trabalhar com a personagem mais rentável e conhecida da editora, o Homem-Aranha, na revista Peter Parker, the Spectacular SpiderMan. A frente das edições 27 e 28 desta publicação, Miller trabalhou pela primeira vez com uma das personagens que mais marcariam sua carreira: O Demolidor. Nesta época, Demolidor era somente um figurante na história, já que suas revistas solo vendiam pouco e a personagem não era querida pelo público. Porém, Miller gostou e se interessou pela personagem, tanto que solicitou a seu editor chefe, Jim Shooter, se ele podia trabalhar no título regular da série. Jim aceitou a proposta, encarregando Miller ao cargo de desenhista. Quando cheguei pela primeira vez em Nova York, eu apareci como um monte de quadrinhos e amostras de caras vestindo sobretudo e carros antigos e coisas do tipo. E todos (editores de quadrinhos) diziam “onde estão os caras de collant?”. Então tive que aprender a fazer isso. (…) quando Gene Colan deixou Demolidor, eu percebi que o segredo seria realizar histórias em quadrinhos de crime, mas com super-heróis nela. (WIKIPEDIA, THE FREE ENCYCLOPEDIA, online, apud SPIRIT GUIDE: FRANK MILLER ADAPTS WILL EISNER'S CULT COMIC, online)
Com um início muito parecido com o de Will Eisner, podemos dizer, inclusive, que Demolidor foi para Frank Miller o que The Spirit foi para Eisner. O debute de Miller ocorreu na edição Daredevil #158 (maio de 1979), com roteiro de Roger McKenzie. Embora ainda preso ao tradicionalismo das histórias em quadrinho de heróis, o Demolidor de Frank Miller já apresentava alguns traços da estética noir que o autor tanto almejava (falarei mais sobre no capítulo V), gerando uma enorme resposta positiva da crítica. Seguindo os conselhos do artista Neal Adams (amigo de Will Eisner e um dos mais influentes representantes da arte sequencial), Miller decidiu se aproximar mais da realidade nova yorkina, desenhando, por horas, os telhados das casas, prédios e edifícios da cidade, com o fim de conseguir atingir uma estética verossímil e autêntica para o principal ambiente de suas narrativas. O sucesso a frente de Demolidor foi tão grande que logo se tornou o desenhista e roteirista oficial de suas histórias, desempenhando uma das mais importantes contribuições entre personagem e autor, com uma longa e aclamada parceria, que durou de 1979 até 1983.
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Em 1982, Frank Miller trabalhou em conjunto com o roteirista Chris Claremont, produzindo a mini-série Wolverine, contando com o integrante homônimo dos X-men como estrela principal. Com uma arte altamente influenciada pelo estilo rápido dos quadrinhos japoneses, esta mini-série ajudou a expandir os horizontes de Wolverine como personagem - base para o grande sucesso do qual o mesmo é reconhecido atualmente -, garantindo a Miller um posto de estrela na indústria dos quadrinhos. A influência dos quadrinhos japoneses se mostrou ainda mais presente em sua primeira série própria, de 1983, chamado Ronin. Esta narrativa híbrida de cyber-punk em estilo oriental e quadrinhos europeus (como, por exemplo, Moebius), com história centrada em um samurai que viaja ao futuro, apresentou alguns relances da arte sequencial fluída, rápida e de ação, com momentos cinematográficos. Esta publicação rendeu a Miller um convite feito DC, que ofereceu a oportunidade de readaptar três grandes ícones da editora, que seriam escolhidos a gosto do autor: Batman, Mulher Maravilha ou SuperHomem. Mas, ao invés de aceitar a proposta, Miller decidiu, antes, voltar a Marvel e realizar a edição #219 do Demolidor, toda baseada no filme Por um punhado de dólares (Sergio Leone, 1973). Porém, foi em 1986 que a carreira de Miller colidiu diretamente com a personagem responsável pelo seu derradeiro estrelato, o marcando para sempre como um dos nomes essenciais dos quadrinhos. Embora o seu primeiro contato a frente de uma revista de Batman foi em um curto conto de natal, chamado "Wanted: Santa Claus - Dead or Alive" (1980), roteirizado por Denny O’Neil, foi somente com a obra “Batman, o cavaleiro das trevas” (1986) que Frank Miller realmente abordou a personagem com sua visão própria, tanto de estética quanto narrativa. Embora O Cavaleiro das Trevas tenha causado muito impacto pela brilhante história, o desenho caricatural até então inédito de Miller e pelo subtexto político e social, a grande contribuição dessa mini-série para as Histórias em Quadrinhos foram as novas fórmulas narrativas que Miller apresentou naquelas página. (SOUZA, online).
A história trata da volta de Batman de sua aposentadoria, causada pela morte de seu segundo Robin, sendo obrigado a enfrentar um futuro distópico, de caos e violência. Este retorno de Batman também é simbólico, já que a 64
imagem do mesmo tinha caído com o passar dos anos, muito pelo livro “A sedução do inocente” (Fredric Wertham, 1954), que apresentava a visão da dupla Batman e Robin como um casal gay, um forte estigma que perdurou por décadas, contribuído pela colorida série de TV da década de 1960. Portando, mais uma vez, coube a Miller reerguer um importante personagem dos quadrinhos, apresentando sua versão de um futuro Batman de 55 anos, cansado, violento e sarcástico, confinado em um perturbante universo de um futuro caótico, de clima tenso, sombrio e pesado. Sua contribuição, assim como a de Eisner na época de The Spirit, foi a forte influência passada para toda a indústria: logo após esta importante publicação, ocorreu uma profusão de anti-heróis sombrios e violentos. A seqüência do assassinato dos pais de Bruce Wayne até hoje é copiada e recopiada nas HQs do Batman, tamanha sua força. Tudo em “câmera lenta”, com em “O Encouraçado Potemkin”. Mas se os quadrinhos já são estáticos, como podemos sabê-lo? Simplesmente está lá! Miller criou a câmera lenta em quadrinhos! (SOUZA, online).
Entre outros trabalhos de destaque deste produtivo período de Miller, estão: Demolidor: amor e guerra (Frank Miller, 1986), Daredevil and Born Again (Frank Miller; David Mazzuchelli, 1986), Elektra: Assassina (Frank Miller, 1986) Batman – Ano um (Frank Miller; David Mazzuchelli, 1987). Com este glorioso passado, Frank Miller pôde, finalmente, se dedicar a alguns projetos mais pessoais. Já consagrado pela indústria, Miller decidiu investir
completamente
na
narrativa
noir.
Embora
seu
estilo
fosse
completamente impregnado por uma narrativa digna dos filmes policiais da década de 1940 (principalmente quanto a onipresente narração em off e constante aparição de mulheres fatais), nenhuma destas obras era realmente parte do gênero conhecido como noir. Sua primeira realização no gênero ocorreu em 1990, quando, em parceria com Geof Darrow (um dos mais brilhantes e talentosos artistas dos quadrinhos) realizou um misto cyber punk de Blade Runner, com uma dose tripla do humor negro caótico de Batman, o cavaleiro das trevas, aliado com a ultraviolência e ação desenfreada dos filmes de ação de John Woo. Este era Hardboiled, o primeiro experimento narrativo de Miller no universo neo-noir concreto dos quadrinhos.
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Miller se estabeleceu como um autor de quadrinhos adultos, sempre carregados de sátira política, ironia e violência. A recepção de Hardboiled rendeu a Miller importantes trabalhos, como Give me liberty (Frank Miller; Dave Gibbons, 1990) e a roteirização dos filmes Robocop 2 (1990) e Robocop 3 (1993), que, infelizmente, não renderam um produto final bom, havendo uma má recepção da crítica especializada (embora pouco do material original de Miller tenha sido utilizado na produção dos filmes). Sin City, o clássico neo-noir dos quadrinhos, foi realizado em 1991, oferecendo uma homenagem estética aos clássicos dos 1940 e 1950. Feita completamente em preto e branco – embora com a presença de uma outra cor durante a edição, gerando contraste a imagem -, Sin City tomou grande parte da carreira profissional do artista, resultando, mais uma vez, na revitalização do gênero nos quadrinhos, como já havia sido feito anteriormente por Will Eisner, em 1940, com The Spirit. Outros trabalhos de destaque ficam por conta da história de origem do Demolidor, em Demolidor, o homem sem medo (Frank Miller, 1995), a reencenação da batalhas das Termópilas na novela gráfica 300 (Frank Miller, 1998) e a continuação de uma de suas principais obras, com O cavaleiro das trevas 2 (2001), muito mal recepcionado pela crítica. Por fim, embora seus trabalhos recentes estejam em uma vertiginosa queda de qualidade (entre eles, a mal sucedida adaptação cinematográfica da obra The Spirit, de Will Eisner, da qual o mesmo foi diretor, em 2008), Miller já está com o seu nome guardado na história da arte sequencial, principalmente pela sua forte contribuição na relação entre quadrinhos e cinema, principalmente quanto ao gênero noir.
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Figura 40
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Figura 41
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Figura 42
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Figura 43
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Figura 44 Figura 40 à figura 44: A consagrada estética em câmera lenta criada por Frank Miller, utilizada na HQ Batman, o cavaleiro das trevas (1986), ressalta a importância do cinema na realização artística e narrativa do autor, além de um brilhante refinamento do conceito de “timing”, proposto por Will Eisner e Scott McCloud. A análise desta sequência é repleta de detalhes: que vão da diagramação dos quadros até a disposição do texto. Arte sequencial em seu melhor estado, com uma imagem que não deve só ser lida, mas também “assistida”. (Fonte: http://goodcomics.comicbookresources.com)
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4.2 Canales e Guarnido A dupla de artistas premiada é responsável pela obra de vanguarda, Blacksad, uma graphic novel (ou novela gráfica, termo utilizado por Eisner na definição de obras adultas, de tratamento diferenciado e histórias fechadas) iniciado em 2005 e que conta, até o momento, com quatro edições publicadas entre 2000 e 2010. Nascido em Madri, na Espanha, em 1972, Juan Díaz Canales é o roteirista e co-criador da série de noir Blacksad. Embora Canales tenha mostrado interesse em quadrinhos desde cedo, sua principal vocação é a animação, na qual o mesmo atua como diretor. Envolvido na área desde os 18 anos, Canales fundou, em 1996, em conjunto com outros três artistas, a empresa Tridente Animation, realizando, em parceria com companhias norteamericanas e européias, roteiros para quadrinhos e animações, além de dirigir séries animadas para TV e filmes de animação; Quando conheceu Guarnido, Canales já tinha em mente a base para a sua história: uma narrativa antropomórfica em torno de um detetive particular chamado Blacksad. Após contato feito com diversas editoras, a dupla fechou com a francesa Dargaud, em novembro de 2000. A primeira obra em conjunto da dupla foi Quelque part entre les ombres (2000), o volume 1 da série Blacksad. Com uma recepção calorosa da crítica e do público, a graphic novel foi agraciada com o prêmio Prix de la Découverte do festival internacional de quadrinhos de Sierre, além do prêmio “Avenir”, no festival de Lys-lez-Lannoy. Com o volume 2 publicado (Arctic Nation, 2003), Guarnido e Canales já garantiam o seu espaço no nome dos quadrinhos contemporâneos, recebendo, entre outras premiações, o Angoulême Audience Award, no Festival Prize for Artwork, em 2004. Esta reação não foi diferente com o penúltimo volume, chamado Âme Rouge (Red Soul, 2005). Mais uma vez, a dupla levou uma vitória para casa: o prêmio Angoulême, por melhor série. Publicado em 2010, o último (até então) volume da série se chama The hell, the silence. Centrada no mundo do jazz de New Orleans, The hell, the silence é mais uma obra prima da arte sequencial contemporânea.
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Muito deste sucesso de deve a arte de Juanjo Guarnido. Nascido em Granada, na Espanha, em 1967, Guarnido é formado na Escola de Arte de Granada. Entre seus primeiros trabalhos estão uma série de fanzines produzidos em conjunto com a Marvel Comics. Infelizmente, devido ao pouco espaço dos quadrinhos no mercado espanhol, Guarnido foi obrigado a procurar outras fontes de renda. Em 1990 o artista deixou sua cidade natal, Granada, e mudou-se para Madrid, onde trabalhou em séries de TV por três anos, período este que acabou rendendo a amizade e futura parceria entre Díaz Canales. Muito do estilo de Guarnido vem do seu envolvimento com o Walt Disney Studios - principalmente pela facilidade em criar personagens antropomórficos extremamente expressivos -, onde trabalhou como animador entre 1993 e 2000, no estúdio da Disney de Montreuil, na França. Entre seus trabalhos de destaque está a desenho para o cinema Tarzan, de 1999.
Figura 45 - A arte de Juanjo Guarnido: uso de lowkey profile na iluminação, figuras antropomórficas e estética da década de 1950, aliada ao forte clima noir. (Fonte: http://olhosacesos.blogspot.com/)
5 Film noir Segundo o francês Marc Vernet, em seu livro “Film noir on the edge of doom”, o gênero noir vem sendo “regularmente resgatado e renovado por sucessivas gerações”. Embora Marc Vernet faça parte de um seleto grupo de acadêmicos céticos, que apontam o fim noir como um gênero inexistente, é
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possível utilizar o trecho acima, retirado de um de seus livros, como um dos fatores que mais contribuíram para o crescimento e criação, enfim, do gênero aqui estudado. O noir é um objeto de culto para diversos cinéfilos, estudiosos e artistas que, seduzidos pela elegância e estética do cinema de suspense policial dos anos 40, acabam por sempre reintroduzir o fascínio por estes contos para a contemporaneidade, apresentado para as novas gerações modos diferentes de se tratar o já clássico esquema exemplificado por Fernando Mascarello (2006, p. 178), em seu livro História do Cinema Mundial, com “policiais dos anos 1940, de luz expressionista, narrados em off (sic), com uma loira fatal e um detetive durão ou um trouxa, cheios de violência e erotismo etc.” Tal reintrodução se vale, também, para dois dos principais e mais importantes autores de quadrinhos de todos os tempos, Will Eisner e Frank Miller, que contribuíram diretamente para a divulgação do gênero que tanto apreciavam, principalmente com as obras The Spirit (Will Eisner, 1940) e Sin City (Frank Miller, 1991), abrindo, cada um a seu modo, um novo leque de possibilidades intermidiáticas para o gênero. 5.2 O cinema obscuro Antes de adentrarmos em algumas especificações desta mixagem de mídias (quadrinhos e cinema), é importante compreender do que se trata o filme noir. Assim como foi colocado no início deste capítulo, existe uma ala de estudiosos e críticos que não entram em consenso sobre a criação do termo aqui estudado, referenciando o noir como “o gênero que nunca existiu”. Film Noir é, na realidade, uma expressão francesa que faz alusão a literaruta hardboiled, e que foi utilizada para identificar algumas das obras hollywoodianas que chegaram à França após o fim da Segunda Guerra Mundial. Privados por quase cinco anos do cinema norte-americano, os franceses perceberam uma mudança estética admirável, tanto na narrativa como na fotografia destes novos filmes. Ao perceber as semelhanças recorrentes em películas como Relíquia Macabra (John Huston, 941), Pacto de Sangue (Billy Wilder, 1944) e Um retrato de mulher (Fritz Lang, 1944), o crítico e cineasta Nino Frank, em 1946, utilizou pela primeira vez o termo film noir, que pode ser interpretado 74
como filme negro. De fato, a representação crítica e fatalista da sociedade americana obscureceram a outrora estabilidade clássica de Hollywood, do qual o mercado já havia se acostumado. Foi somente em 1955, na França, que o termo noir começou a ganhar a forma que conhecemos hoje. Escrito pelos críticos Raymonde Borde e Etienne Chaumeton, o livro Panorama du film noir américain trazia uma interessante exemplificação de sete elementos essenciais deste novo gênero do cinema. Seriam eles:
- Um crime; - A perspectiva dos criminosos, não da polícia; - Uma visão Invertida das tradicionais fontes de autoridade, tal como a corrupção policial; - Alianças e lealdades instáveis; - A femme fatale (fêmea fatal): a mulher que causa a ruína e/ou morte de um bom homem; - Violência bruta; - Motivação e mudanças em complôs bizarros.
Contudo, a dificuldade de se estabelecer noir como um gênero é muito mais complicado do que aparenta. Pelo menos do ponto de vista técnico. Afinal, assim como colocado por Emerson Paubel, em seu artigo Film Noir, “quantos elementos são necessários para se fazer um noir? (...) um noir pode ter apenas um único elemento, enquanto que outro filme que possua três não seja considerado um noir” (PAUBEL, online). Por princípio, como destacado em História do Cinema Mundial, “noir como gênero nunca existiu: sua criação foi retrospectiva (...) trata-se de uma “categoria crítica”” (Neale 2000, p. 153). A realidade é que o termo só foi utilizado nos Estados Unidos pela primeira vez no fim de 1960, sendo referenciado primariamente como “Black cinema”. Não demorou muito para que o conceito de noir começasse a ser abraçado por Hollywood, preferencialmente após a crítica norte-americana receber de bom grado o elogio europeu, aceitando o termo cunhado originalmente, mesmo que indo de encontro com problemas teóricos a respeito do que era, de fato, o cinema noir, estabelecido 75
através de uma categoria francesa. Afinal, havia uma falta de precisão categórica e acadêmica. Contudo, com a crescente popularização deste novo termo cinematográfico, o conceito noir rapidamente ultrapassou qualquer barreira estabelecida pela academia, tornando-se absolutamente popular entre os cinéfilos da época. Deste modo, com um terreno mais propício para a exploração, grandes estúdios de Hollywood começaram a produzir obras de jovens cineastas que, em busca de algo novo, revisitavam antigos clássicos na era noir, de 1941 a 1958. Jovens como Martin Scorsese e seu realista e sombrio estudo da sociedade americana, em Taxi Driver (1976), ou a repaginação do período clássico noir feito por Roman Polanski, com Chinatown (1974). Esse período se estende até hoje, com formas diferentes de narrar o já conhecido, desde a passagem cyber punk de Ridley Scott (Blade Runner, 1982) ou a criação de uma linguagem mais pop, feita por Quentin Tarantino (Cães de Aluguel, 1992). Assim sendo, encontramos um paradoxo: se o noir não existiu, como exemplificar o aparecimento de um neo-noir? (MASCARELLO, 2006). Antes de partirmos para uma definição de gênero mais refinada, tanto estética quanto narrativa, é interessante notar que o noir não evoluiu somente no cinema, mas que essa evolução de gênero também esteve presente em outra mídia. Neste caso, o quadrinho. É possível decifrar The Spirit (1940) como o marco estético e narrativo da arte sequencial noir clássica, Sin City (1991) como a reestruturação do noir na contemporaneidade, abrindo as portas para o neonoir impresso e, finalmente, de um modo que estendeu ainda mais a relação narrativa gráfica, cinema e estética noir, temos Blacksad (2005), de Juan Dias Canales e Juanjo Guarnido, que garante com maestria um hibridismo de mídia, juntando o melhor que o cinema de gênero e os quadrinhos têm a oferecer (voltarei a falar mais desta obra nos próximos capítulos).
5.3 Decifrando o noir: Estética Embora muitos ainda considerem o noir não como um gênero de cinema, mas sim como um estilo visual, o noir está profundamente enraizado em momentos mais “negros” da história americana e mundial. 76
Para o roteirista e cineasta Paul Schrader, o film noir existe somente em um período específico – de 1941, iniciado pelo filme, O Falcão Maltês (dir. Humphrey Bogart), até 1958, quando o gênero se encerra com A Marca da Maldade (dir. Orson Welles). Ele argumenta que o noir é literalmente preto. Cenas noturnas, iluminação de alto contraste e sombras fazem parte do estilo noir. Além disso, o filme noir trabalha com tempo não-linear, disjuntivo. (PAUBEL,online). Muitos atribuem o fim do cinema noir a invenção da tv em cores, já que, ao se colorir uma película, o gênero acaba por perder uma de suas mais valiosas preciosidades estéticas: a iluminação preto e branca. Quando necessário um estudo estético sobre o cinema noir, antes é preciso se estender um pouco mais quanto à iluminação do mesmo. Para Alain Silver e James Ursini (2004), em seu livro Film Noir, “a luz e a sombra competem entre si tanto em ambientes interiores quanto em exteriores. Luzes duras e marcantes mapeiam os contornos, dando ênfase a uma parte do rosto e criam uma tensão darmática (...)”. Esta leitura, proporcionada pela utilização da iluminação, normalmente cai muito bem para suspense. Ao escurecer uma imagem, principalmente a ponto de deixar somente seu protagonista visível, tudo se torna parte do perigo, criando a tensão perfeita em meio ao jogo de luz. Para se compreender melhor esta estética de imersão e, até mesmo, de sufocamento, devemos nos lembrar de dois termos, apresentados por Mattos (2001): low-key e hard ligth (além de outros termos técnicos introduzidos por Mattos, em seu livro O outro lado da noite – filme noir, que serão apresentados futuramente). Primeiramente, uma parte conscistente da realização do filme noir está no modo conhecido como low-key, notoriamente utilizado pelo Expressionimos Alemão (figura 46).
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Figura 46 - Exemplo de utilização da iluminação lowkey, realçando detalhes de uma forma sutil. (Fonte: Metropolis).
Assim como apontado por Campos (2009), havia uma iluminação bem especial,
bastante
insólita,
que
estava
atrelada
à
maquiagem,
que
transformava o rosto dos atores em máscaras, cujo tratamento repleto de exageros podia levar à caricatura e ao grotesco. O cinema expressionista alemão é rebento de um momento entre guerras extremamente conturbado na Alemanha, chegando a ser descrito como extremo, decadente e com doses cavalares de violência, uma apologia ao nazismo que viria logo depois (Campos, 2009). Embora com forte temática fantástica, personagens sombrios, de cunho psicanalítico e com uma atmosfera opressora, o expressionismo acabou por influenciar, esteticamente, o film noir. Este fato se deu, principalmente, pelos motivos da guerra, que forçaram que uma grande massa cultural ligada ao cinema alemão imigrasse em direção aos Estados Unidos da América, entre eles os diretores Fritz Lang, Billy Wilder e Robert Siodmak, que contribuíram na construção da estética noir, baseada na bagagem técnica que desenvolveram em seu país de origem. Entre estes novos meios de se realizar cinema, estava à utilização da iluminação de baixo perfil, a low-key, que retirava o brilho excessivo da película, trazendo a imagem um sutil ar barroco, cabendo muito bem a profusão de sombras, empregada em diversas obras.
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Tal definição cuidadosa sobre a iluminação empregada se deve ao forte conteúdo estilístico do noir, sempre carregado de informações visuais e estilísticas importantes, fruto de um dos seus principais criadores, o Expressionismo Alemão: "A sombra é a metáfora do inconsciente, do lado obscuro da mente, do material reprimido. Ela é atributo daqueles personagens proscritos pela lei, pela natureza e pelo Bem, obrigados a viver na clandestinidade, nas trevas, num sono intermitente" (FEDEL, online, apud NAZÁRIO, 1983, p. 25)
Embora considerado por alguns como uma prova consistente de que o noir não seja, em si, um gênero de cinema, mas somente um modelo visual, é impossível retratá-lo sem destacar seus pontos estilísticos mais importantes. Entre todos estes merecidos destaques, que relacionam o noir e o expressionismo alemão, acaba por faltar um de extrema importância para o movimento vanguardista, tanto no cinema como em sua origem na arte: “a distorção
emotiva
da
forma”
(MASCARELLO,
2006,
p.59).
O
signo
expressionista ressalta as experiências emocionais do artista, convidando o espectador a “experimentar um contato direto com o sentimento gerador da obra” (CARDINAL, 1988, p.34). Tal simbolismo artístico se fez presente também em sua versão cinematográfica, principalmente na obra O gabinete do dr. Caligari (Robert Wiene, 1920), que contava com uma cenografia produzida em painéis pintados ao estilo expressionista, evocando a fisionomia de um mundo tortuoso e imprevisível, além do impacto visual gerado pelos protagonistas, que atuavam com uma pesada maquiagem deformadora, criando, assim, uma atmosfera que traduzia os conflitos emocionais (MASCARELLO, 2006, p. 67). Por fim, esta abstração simbólica criada pelo expressionismo, embora não se encontre tão aparente no noir, está mais do que presente nos quadrinhos, que se utilizam das liberdade artística como um modo de se enriquecer a narrativa: (...) traduzir simbolicamente pelas linhas, formas e volumes, a mentalidade dos personagens, seu estado de alma, sua intencionalidade, onde a decoração se torna a tradução plástica de seu drama. (EISNER, 1985)
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Seguindo a continuidade, além da iluminação e da ambientação noturna,o expressionismo alemão ofereceu algumas outras referências importantes ao gênero noir, tal qual o emprego de lentes grande-angulares, que deformam a perspectiva, causando um clima de estranheza, levando a distorção da personagem ou do ambiente projetado. Entre outros movimentos característicos do cinema noir, está o corte do big close-up para o plano geral em plongeé e ângulo holandês, que é costumeiramente utilizado em um contexto de estranheza e deslocamento. É importante observar que os movimentos de câmera estão ligados a idéia soturna que envolve o noir, sempre direcionando um caminho que se relaciona com o suspense, em um clima paranóico e claustrofóbico. Além da forma estilística bem definida, há ainda uma série de motivos iconográficos, tal qual exemplificados por Mascarello (2006): espelhos, janelas, escadas e relógios, além da ambientação urbana noturna, com ruas desertas e escuras.
Figura 47 - Empreitada noir de Fritz Lang (1944), demonstrando a utilização da iluminação barroca, fruto da bagagem de sua origem no expressionismo alemão. (Fonte: Quando Desceram as Trevas).
Ainda quanto à iluminação, existem outros padrões adotados pelo estilo noir. O bom uso da luz dura (hard light) é capaz de criar um clima de tensão muito característico, ora pela estruturação da narrativa, escondendo fatos sigilosos a trama pelo bem do suspense, ora como realce estilístico, definindo contrastes e demarcando espaços no ambiente. (Figuras 48 e 49).
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Figura 48 - A utilização do hard ligth cria uma sombra bem definida na parede. (Fonte: O Falcão Maltês).
Figura 49 - Neste misto de técnicas, podemos observar a o uso da highlighting (luz de destaque) no rosto da personagem, criando uma imagem atmosférica de claro e escuro. (Fonte: A Força do Mal).
Esta demarcação de tons e ambientes pode ser chamada de chiaroscuro - termo italiano que significa “claro-escuro” -, muito utilizado para a “tonalização” da atmosfera noir e expressionista. O clima de suspense e terror, herdados da iluminação expressionista alemã, cabe ao alto contraste da contraluz, capaz de gerar silhuetas e semblantes de estruturas, objetos e personagens, priorizando o suspense e apreensão pelo que é desconhecido (figura 50).
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O posicionamento das luzes na fotografia noir também tem suas características, como o uso de “ariações no posicionamento da luz chave (key light), atenuante (fill light) ou contra-luz (back light) para produzir esquemas inusitados de luz e sombras adequados à criação do clima de paranóia, delírio e ameaça (...) (MATTOS, 2001, p. 46).
Figura 50 - O uso da top lighting (luz superior) resulta na imagem sombria e misteriosa da silhueta, que pode, posteriormente, recair sobre a trama como uma força maligna (Fonte: O Grande Golpe).
Além da iluminação, há de se destacar a utilização dos movimentos de câmera e de ângulos, marcas registradas do fenômeno noir: Para Mattos (2001), os ângulos exagerados, primeiríssimos planos, câmera oblíqua e linhas horizontais cruzadas com verticais aumentam a impressão de clausura psicológica e física. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 50, apud MATTOS, 2001).
A experimentação de ângulos se deve a criação de uma estética de clausura opressora. Entre os maiores destaques, temos a utilização do plongeé (plano superior, que demonstra inferioridade ou trabalha através da revelação, abrindo-se um plano de visão maior para o ambiente), contra-plogeé (plano que gera a impressão de superioridade, espanto ou apreensão, dependendo de seu contexto e da forma utilizada) e ângulo holandês (plano inclinado, que transmite deslocamento, estranheza, desconforto e abalo psicológico).
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Por outro lado, o cinema noir se revela sutil. A vasta utilização de planos sequência e travelings demonstra um compromisso em se prender o espectador através da expectativa do acontecimento. A chave do suspense: o emprego de uma linguagem contínua e familiar a realidade, em demérito ao uso exacerbado do corte cinematográfico. No cinema noir a utilização de travellings, gruas e panorâmicas eram bastante comuns. Aliado a um plano de longa duração, essa qualidade de fluidez nos movimentos intensifica o suspense de forma sutil. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 73, apud SILVER; URSINI, 2004)
Outra referência estética essencial está no uso dos close-ups. Uma destas técnicas vinha na contramão do que era recorrente na época. Pela justificativa do “glamour”, as atrizes principais de Hollywood tendiam a ter uma iluminação difusa para os momentos de close-up, gerando uma imagem suave e limpa, realçando a beleza de suas faces, quase angelicais. Porém, na estética noir esta iluminação ocorria de forma contrária, com close-ups de luz não difusa (luzes duras, capazes de produzir sombras bem definidas e realçar detalhes – Figura 51).
Figura 51 - O realce da imagem gerada pelo close-up de luz não difusa. (Fonte: O Anjo Diabólico).
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Podemos encontrar ainda a utilização do foco profundo (deep focus), que mantém, através da distância focal e da iluminação, dois objetos distintos em um mesmo enfoque. A profundidade de campo é utilizada pelo noir, principalmente, em ambientes onde ocorre mais de uma ação, sendo preservados vários elementos desta mesma cena, mas em camadas diferentes de informação. 5.4 Narrativa
Quando a expressão “cinema noir” vem à mente, não é raro de logo ligarmos ao tema do crime, estipulado como elemento central da trama. Para muitos autores, esta afeição ao crime deve-se ao resultado da crise econômica norte-americana, impulsionado pelo mal-estar provocado pelo pós-guerra, exercendo, assim, um papel simbólico que sintetiza a problematização social do período (MASCARELLO, 2006). Se nos mantivermos ainda mais nesta possível interpretação simbólica e metafórica, o noir serviu como uma aparente denúncia da corrupção ética que se manifesta nas relações entre indivíduos, permeadas por violência e hipocrisia, introduzindo o crime da obra noir como uma representação fatalista da desestruturação do indivíduo (tanto social como psicologicamente), causada por um poder maior que o próprio. Ao seguirmos por esta lógica, o crime cria um espaço simbólico que serve como uma manifestação metafórica do clima de pós-guerra. Porém, do ponto de vista estritamente narrativo, o noir acaba por demonstrar uma ligação muito mais contundente com a literatura policial, que, assim como o film noir, partilha de diversos elementos narrativos de destaque. Tais quais como:
- Complexidade da trama - Caracterização ambivalente das personagens - Utilização do flashback como ferramenta narrativa - Narração em over feita pela própria personagem - Totalidade de protagonistas masculinos
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Muitas destas características são adaptações diretas da literatura hardboiled, berço dos principais ideais do conceito noir. Literatura criminal norte-americana por excelência, o hardboiled (pode ser traduzido como algo de “caráter duro”) começou a ser publicado “após a Primeira Guerra Mundial, traçando um retrato realista da população urbana dos Estados Unidos” (JEHA, 2011, p. 3): Os escritores de ficção hard-boiled criaram o investigador particular e o detetive americano heroico, que tanto bate quanto apanha, se abstém de relações pessoais e forma o seu próprio código moral, que, em geral, é mais severo e inflexível do que o do resto da população. Sam Spade e Continental Op, de Hammett, e Philip Marlowe, de Chandler, seguem a própria cabeça, mesmo quando ela vai contra a lei. Uma busca inabalável pela verdade e a expulsão do indesejável são os princípios que guiam o detetive. O código moral costuma implicar sofrimento físico, dificuldades e sacrifício para ele, ao isolá-lo de outras pessoas, mas ele adere às suas regras ferrenhamente. (JEHA, 2011, p. 3)
Como características essenciais, o gênero hardboiled apresenta sempre a cidade como um centro maligno e perverso, do qual a personagem principal (comumente um investigador policial ou detetive particular) analisa e observa, enfrentando este mal social somente com um rígido código de moral próprio. A atmosfera hardboiled é cínica e repleta de desilusão, se apoiando na selva urbana como o caos de desordem a ser enfrentado. Ao contrário da história de detetive tradicional, que deposita uma enorme confiança nos mecanismos da justiça, na ficção hard-boiled essa confiança desaparece quando esses mecanismos da lei e da ordem mostram que não merecem a confiança pública. (JEHA, 2011, p. 3)
Este estranhamento da justiça acaba gerando a figura do detetive marginal, que opera, muitas vezes, avesso a lei, buscando subterfúgios para estabelecer a justiça pelos seus próprios meios pessoais e códigos de ética, moral e honra. Embora esta figura se mostre como uma salvação neste meio corrupto, a protagonista, antes de tudo, é um anti-herói, que acaba por não encontrar o sucesso em suas ações, gerando uma forte sensação de impotência diante deste universo, sofrendo com suas próprias escolhas.
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Dois grandes nomes que se destacam nesta literatura policial, amplamente adaptada pelo cinema, são os autores Dashiel Hammett e Raymond Chandler.
5.5 Decifrando o noir: Estereótipos
Dentre os vários padrões definidos do gênero noir, provavelmente a figura da femme fatale* seja o mais recorrente e importante, muitas vezes influenciando diretamente na trama. Inclusive, o papel que a mulher desempenha, em diversos casos, retrata uma questão de grande sexualidade e posicionamento social. Seguindo trecho transcrito por Mascarello (2006), o noir se caracteriza por: (...) um tratamento distintivo do desejo sexual e dos relacionamentos sexuais, um conjunto distintivo de personagens-tipos masculinos e femininos e um repertório distintivo de traços, ideais, aspectos e formas de comportamento masculinos e femininos (NEALE, 2000, p. 160)
Mascarello ainda justifica a tendência abordada pelo cinema da época (40 e 50) através dos motivos do pós-guerra, que reposicionaram a mulher tanto no patamar social quanto no profissional, criando uma “cultura da desconfiança”, encabeçada por uma grande rivalidade entre o masculino e o feminino. Para Richard Dyer (1978), o que se existia era uma tensão sexual manifesta por “uma ansiedade com relação à existência e definição da masculinidade e da normalidade”, que acabou por culminar na construção da “problemática” noir, tanto pelo papel do homem (ambiguidade moral, solidão, sujeito a falhas) e o da mulher (papel sexual atenuante, sensualidade, forte personalidade e, corriqueiramente, causadora do mal definitivo para a protagonista masculino). No gênero noir, é possível encontrarmos dois tipos de papéis femininos marcantes: a mulher fatal e a redentora. Enquanto a femme fatale metaforiza a independência feminina do período pós-guerra, a personalidade “redentora” da mulher, como descrita por Deborah Thomas, simboliza a ameaça e tentação da “domesticação do herói”. Se a mulher fatal representada pode ser interpretada como uma metáfora a libertação feminina da imposição masculina, além da luta por 86
direitos iguais, o homem noir é anti-herói Hollywoodiano, se saindo muito mais como um espelho do cidadão comum, sujeito a falhas, do que a visão narcisista e idealizadora comum atribuída, por exemplo, ao justiceiro de um western*. Segundo Mascarello (2006), o anti-herói noir é constituído por uma inversão do ego ideal, sendo representado, muitas vezes, por uma ótica derrotista, egocêntrica e isolada, buscando uma re-identificação com o masculino. Ou, como colocado por Florence Jacobowitz, em trecho retirado do livro História do Cinema Mundial (Mascarello, 2006), o noir é “um gênero onde a masculinidade compulsória é apresentada como um pesadelo” (1992, p. 153). É interessante informar que, embora o gênero noir seja fortemente marcado pela presença de um protagonista masculino, alguns filmes considerados representantes clássicos do noir, como Sonha, meu amor (Douglas Sirk, 1948), Correntes ocultas (Vincente Minneli, 1946) e Fogueira da Paixão (Curtis Bernhardt, 1947), são centrados em personagens femininos. Porém, é exatamente neste protagonista masculino que o filme noir se centra: uma personagem que sofre da falta de atributos e características de herói típico, mas que, mesmo assim, a audiência é capaz de se identificar. (FILM NOIR STUDIES, online). Esta personagem é comumente confusa e conflituosa, capaz de transmitir sensações de ambiguidade moral, defeitos, excentricidades e, por volta, até mesmo falta de coragem, honestidade e honra. Contudo, não raramente este anti-herói é capaz de gerar uma forte simpatia com o público, indiferente do que fato de que se trate de um investigador durão ou de um detetive particular vulnerável e fracote. Uma
característica
marcante
e
puramente
estilística
está
nas
vestimentas das narrativas noir, puro fruto de seu templo, mas que mesmo assim se guardaram no imaginário popular. Os traços mais reconhecidos são: o chapéu italiano fedora, ternos e gravatas (surrados ou bem cortados) envoltos por capotes e sobretudos de tons escuros e os longos e sensuais vestidos das femme fatales. Além disso, é recorrente a constante presença de cigarros e charutos em cena (e da cigarrilha, para mulheres), além da necessária utilização do escapismo através do álcool, em bares escuros e esfumaçados, onde gangsteres, mafiosos, policiais corruptos, mulheres de vida fácil e detetives particulares se encontram e se esbarram. 87
Por final, um dos mais famosos e reconhecidos estereótipos do noir é a utilização do “voice over”, a familiar narração em off, normalmente servindo pelo propósito de esclarecer detalhes obscuros da trama. Narrados sempre pelo protagonista, este recurso de linguagem, que transmite os pensamentos da personagem para o espectador, demonstrando algumas características marcantes, opiniões e traços de sua personalidade, tem como finalidade impor ritmo próprio a narrativa, revelando momentos únicos e licenças poéticas de dados momentos através do ponto de vista do anti-herói, que nos esclarece e traduz o que se passa.
5.6 Consolidando o fenômeno noir
Embora o noir ainda seja, para alguns, considerado uma “sucessão de clichês e definições precárias” (MASCARELLO, 2006, p. 183), principalmente pelo seu modo de invenção francês (é bom lembrar que, em momento algum, entre a década de 40 e 50, o cinema de gênero feito foi conscientemente produzido seguindo uma cartilha noir, sendo somente referenciada tal expressão anos depois dos mesmos serem realizados), é inegável que exista uma forte influência de toda esta “atmosfera”, como define Paul Schrader, nas obras contemporâneas. Obviamente que, ao procurarmos por atributos específicos marcantes em todas as obras consideras cânones do gênero, estaremos fadados à incoerência (MASCARELLO, 2006, p. 183, apud NEALE, 2000, p. 153-154) e, por isso mesmo, o mais correto é atribuí-lo como um “fenômeno”. (MASCARELLO, 2006, p. 184, apud KRUTNIK, 1991, p. 24). (...) o noir não [e gênero, nem tom, nem estilo. É um fenômeno, e acima de tudo social (espectatorial). A maior prova de que existe? A fascinação que produz, o desejo que desperta: a “mística noir”. (MASCARELLO, 2006, p. 185)
Nota-se que, por causa de diversas divergências fundamentais definidoras de gênero, o noir se mostre este caos definicional, acolhendo uma multiplicidade de gêneros cada vez mais crescente. Talvez seja exatamente por esta característica tão abrangente e difundida em nosso imaginário que o noir se sobressaia tão bem em quase todos os modos em que é adaptado. É 88
um gênero criado a partir da identificação de uma série de características cinematográficas e narrativas tão marcantes e bem construídas que, na realidade, acaba por ganhar vida por conta própria, influenciando toda uma geração de escritores, artistas e diretores. Um real fenômeno. Vivenciamos uma constante evolução do noir, e até mesmo do neo-noir, que, despreocupado em se definir, avança por todas as mídias e contribuí, graças ao carinho cultivado por grande parte dos realizadores destas novas obras e homenagens, tanto cinematográficas e gráficas como digitais (diversos games, como L.A. Noire (2011) e Deus Ex: Human Revolution (2011) demonstram uma presença constante do fenômeno, inclusive nos “novos” meios), na evolução e amadurecimento do quadrinho moderno, elevado à arte sequencial e entretenimento adulto pelas graphic novels.
6 a conexÃo do cinema na arte sequencial
Antes do noir, o próprio cinema deve ser referenciado em conjunto ao quadrinho. Assim como a fotografia representa uma tomada individual de um acontecimento, como um momento único no tempo captado pela lente da câmera, o cinema faz parte de uma sequência de diversos momentos únicos que, quando postos em movimento, representam uma passagem de tempo que mais se aproxima com o que estamos acostumados a vislumbrar. Acontece o mesmo com a arte sequencial dos quadrinhos. Se pegarmos somente um momento figurativo individual, esta imagem se aproximará muitos mais da fotografia, já que será somente uma figura congelada em seu próprio momento. Mas, uma vez colocada esta mesma imagem em sequência, com adição de, por exemplo, outros dois quadros, temos um vislumbre de uma narrativa gráfica, de uma história em quadrinhos. Cada quadro de um filme é projetado no mesmo espaço – a tela -, enquanto, nos quadrinhos, eles ocupam espaços diferentes. O Espaço é pros quadrinhos o que o tempo é pro filme. (McCLOUD, 1993, p. 7)
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Figura 52 - Exemplo de storyboard para uma peça publicitária de tevê, com o filme resultante abaixo. Fonte: Quadrinhos e arte sequencial.
McCloud continua sua comparação ao destacar que, quando não projetado, “o filme é somente um gibi muito, muito lento” (McCLOUD, 1993, p. 8). De fato, a maior diferença entre o cinema e os quadrinhos se encontra no modo como lemos suas imagens: estáticas, observando a página de uma história como um todo, mas que deve ser dividido em “cenas” para que haja compreensão; ou em movimento contínuo, havendo, diante de nossos olhos, a divisão de cenas já pronta pela edição cinematográfica, transmitida pelo instrumento de projeção da obra (um projetor ou a tela de um monitor). Segundo Bordwell (2005), o cinema é uma “imagem pictórica, já que a tela, como um quadro, apresenta ao espectador um plano vertical emoldurado”. (BORDWELL, 2005, p. 20) É exatamente nessa projeção de imagens que os quadrinhos compartilham a estética do cinema. Indiferente da ausência ou presença da ilusão
do
movimento,
a
linguagem
cinematográfica
(iluminação
e
enquadramentos) pode ser visivelmente traduzida para os quadrinhos, principalmente na obra “The Spirit”, de Will Eisner. Em geral, os quadrinhos utilizavam-se sempre do plano médio, The Spirit foi pioneiro no uso de diversos planos, inclusive o plongé, o contra-plongé e o plano detalhe, que aumentam a tensão da história. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 70 e 71)
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Depois do retorno de Eisner da Segunda Guerra Mundial (onde o artista, inclusive, criou e ilustrou livros tutoriais no formato de quadrinhos), houve uma perceptível melhora técnica em seu traço, refletida na composição de cena de seus trabalhos. Impulsionado pela estética noir da época (1945), Eisner começou a utilizar a iluminação como um “tonalizador” da atmosfera, que era capaz de transmitir sensações e efeitos emocionais para o leitor. “Esta iluminação lembrava o film noir ou o cinema Expressionista. Eram utilizadas técnicas de iluminação claro-escuro e sombra e luz”. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 72)
A montagem das cenas nos quadrinhos também está relacionada com o cinema. Assim como boa parte da crítica de 1910 e 1920 tentava provar que o cinema era uma arte distinta, que nada ficava devendo ao teatro - partilhando de técnicas de montagens teatrais, assim como encenações advindas do teatro -, foi a montagem fílmica que gerou a identidade cinematográfica, permitindo a liberdade de jogar o espectador “de um lugar ao outro, saltar de um tempo a outro, fazer comparações metafóricas ou simplesmente imprimir ritmo, jogando com a duração de planos”. (BORDWELL, 2005, p. 29). E é esta exata montagem de cenas que ocorre na arte sequencial.
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Figura 53 - A ausência de tons de cinza na obra Sin City, de Frank Miller, cria uma estética de dualidade extrema e permanente, elevando a estética chiaroscuro a outros níveis, criando uma identidade própria, de estética exagerada e saturada. (Fonte: Sin City – A Dama Fatal).
Um ponto interessante da análise dos quadrinhos relacionada ao cinema, é que ocorre uma forte aproximação do cinema mudo. Para que estas montagens de cena ocorram de forma satisfatória, tanto na mise-en-scène (tudo aquilo que ocorre em cena e sua relação com o que se vê) quanto na mise-em-shot (o processo de “tradução” da mise-en-scène em sequência, envolvendo todos os processos técnicos da produção cinematográfica), depende das “associações simbólicas” (figura 54):
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(...) dentro da própria imagem, no desenvolvimento da narrativa, em cada gesto dos personagens, em cada fala do diálogo, nos movimentos de câmera que relacionam objetos a objetos e personagens a objetos. (BORDWELL, 2005, p. 32).
Figura 54 - Exemplo de montagem cena-a-cena, que apresenta uma sequência de imagens distantes em espaço e assunto, mas presentes em um mesmo universo e que necessitam do conhecimento do leitor para que seja contextualizada. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).
Figura 55 - A mise-en-scène carregada de informações da arte de Geof Darrow. (Fonte: Hard Boiled).
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É essa associação imagética que permite a leitura dos quadrinhos, assim como a do cinema. A mise-en-scène é essencial para a compreensão completa dos acontecimentos, já que ela é responsável pela “posição da câmera, o ângulo selecionado, a duração da tomada, o gesto do ator (...), a história que está sendo contada e a maneira de contá-la” (BORDWELL, 2005, p. 35, apud TRUFFAUT, 1977). Se o artista responsável pela arte sequencial compreende todas estas etapas fílmicas, uma vez adaptado este conceito para os quadrinhos, a chance de se criar uma obra híbrida de sucesso entre estas duas mídias é garantida. Estes conceitos amalgamados são muito mais visíveis sobre a ótica de Andrew Sarris (1973): A leitura dos quadrinhos deve ocorrer como a leitura do cinema, com “o ênfase no espetáculo em si e não na relação dialética entre planos e imagens separadas”. (BORDWELL, 2005, p. 35, apud SARRIS, 1973).
Em tons de finalizar, o que se compreende é que, de fato, a mise-enscène é um fator presente em ambas as mídias, representando o emprego do sentido técnico, cenário, iluminação, figurino, maquiagem e atuação dentro dos quadros. A principal diferença na produção destas etapas é que, enquanto o cinema divide os afazeres deste processo, muitas vezes o artista dos quadrinhos é diretamente responsável por todas estas etapas, utilizando este “plano vertical emoldurado” (BORDWELL, 2005) como a projeção de seu filme estático. Porém, como apontado por Bordwell, existe uma diferença que separa a mise-en-scène do cinema da mise-en-scène dos quadrinhos. A falta de um plano sequência na arte sequencial acaba se afastando do conceito principal da mise-en-scèn, principalmente naquela presente na estética noir, que se define em “planos alongados, nos quais os corpos se moviam como graça pelo quadro (...), em planos sequência com grande profundidade de campo ” (BORDWELL, 2005, p. 38).
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A realidade é que a montagem dos quadrinhos segue uma linguagem muito mais “clipada, com um recurso aproximado da montagem fílmica em tomadas menores”, apresentando, em muitos casos, uma “composição em profundidade” (gradação de ênfase, com uma imagem em vários tons dramáticos, que reverbera com a ação principal da cena). (BORDWELL, 2005, p. 40). Porém, em alguns casos é possível se representar esta sutiliza do cinema, como na movimentação lenta da personagem Coringa, em um processo de decantação de suas reações (figura 56):
Figura 56 - A sempre constante movimentação do Coringa, realçando sua frieza em um plano aproximado que, a cada quadro, como em uma ação de zoom in, nos deixa mais intimidados com a sua quieta presença. (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas).
Uma “regra” do cinema muito utilizada por Frank Miller é a aproximação da câmera em direção a personagem em cenas que se desenrolam, atenuando a dramaticidade do acontecimento (BORDWELL, 2005) como no exemplo da figura 55. 95
A
“encenação
cinematográfica”
também
está
presente
no
enquadramento das cenas da arte sequencial, já que, muitas vezes, os quadrinhos seguem a “lógica de projeção perspectiva das lentes da câmera”. (BORDWELL, 2005, p. 42). Ou seja, alguns ângulos de visão do cinema só são possíveis através da lente de uma câmera, conseguindo pontos de vista e distorções próprias (figura 57). Esta é uma evolução iniciada após o cinema mudo, que, anteriormente, mostrava somente a perspectiva de uma “visão monocular da câmera” (BORDWELL, 2005, p. 42), como um teatro.
Figura 57 - Visão em plongée, oferecendo uma panorâmica do ambiente em que o detetive Blacksad se encontra. Este tipo de ângulo introduz uma maior contextualização da personalidade da personagem, explorando detalhes de um local pessoal. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).
Esta multiplicidade de visões, ângulos e enquadramentos, acaba relegando a segundo plano a coreografia de cena, criando-se um método de edição e movimentos de câmera que dão andamento a diálogos parados e conversações em atividade. (BORDWELL, 2005, p. 42).
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A utilização do “campo – contracampo” é recorrente tanto nos quadrinhos como no cinema. Este tipo de montagem normalmente aparece no pretexto de nos informar as reações de figuras distintas diante uma ação (um diálogo, por exemplo), mudando a perspectiva da cena para uma melhor informação. Normalmente se utiliza o ângulo na altura dos ombros e planos únicos. Segundo Bordwell (2005), “ao mudar de posição dentro de um espaço, ocorre um novo plano para nos informar” (figura 58).
Figura 58 - a ação do plano e contra plano ocorre nos dois últimos quadros da cena. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).
Todos estes movimentos realçam a relação recíproca estabelecida na arte sequencial e nos cinemas, impulsionada por Will Eisner, em 1940:
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Devido a esse surgimento contemporâneo dos quadrinhos e do cinema, as características de cada um se entrelaçam. Entre elas, podemos citar: iluminação, plônges e contraplônges, enquadramento, profundidade de campo, elipses, entre outras. Existem muitas dúvidas sobre o que teria surgido primeiro em qual das linguagens. Mas é fato que todas existem nas duas narrativas. Francis Lacassin diz que procedimentos "cinematográficos" como plongê e profundidade de campo já existiam em quadrinhos de 1889, portanto anterior ao cinema. Já Umberto Eco afirma que "no plano do enquadramento os comics sempre estiveram na dependência da linguagem cinematográfica." De qualquer forma, o cinema determinou ideologicamente o emprego dos recursos expressionais nos quadrinhos. Mas o que pode se observar é que as duas linguagens se influenciaram reciprocamente, graças à contemporaneidade de suas criações. (PARDINHO, online).
Tal reciprocidade ocorre no próprio espaço físicos dos quadros da arte sequencial (como já abordado, por exemplo, no uso do timing), contribuindo diretamente na leitura da cena e como se deve lê-la, diagramando os quadros tal qual uma montagem fílmica, com ritmo e imersão (ou claustrofobia). Tais quadros também são responsáveis pela definição de dimensão que a história receberá. Eles devem obedecer as páginas, mas possuem liberdade dimensional, podendo mudar de tamanho naturalmente, respeitando as preferências e atendendo ao objetivo que o autor está tentando atingir. Um plano que necessite de profundidade de campo, por exemplo, será reconhecido mais facilmente pelo leitor se o autor o desenhar em um quadro que lhe ofereça um maior espaço ou utilizar até uma página inteira. Já para representar um plano detalhe, o tamanho do quadro pode ser menor. No cinema, estas diferenças são conseguidas através do enquadramento da câmera, já que as dimensões são obrigadas a obedecer a tela. (PADRINHO, online)
6.1 A origem expressionista de Batman Em 1938 a DC Comics (na época conhecida como The National) lançou, com grande sucesso, a hq fantástica Superman, na edição histórica Action Comics #1. O sucesso foi tremendo, preenchendo uma “necessidade” do público da época, com um personagem perfeito, com força e velocidades muito acima do homem comum e que se mostrava pronto para defender os ideias americanos, em um momento que a Grande Depressão já começava a ser superada pela nação. Porém, um acontecimento se destacou em 1939, quando, em sua publicação mais antiga, a Detective Comics, foi revelada pela 98
primeira vez a personagem Batman, do ilustrador Bob Kane e do roteirista Bill Finger. Pela época de sua criação, Bat-Man (como era referenciado) sofreu de uma importante influência do Expressionismo Alemão e da arte gótica. Segundo Fedel: Dois dos personagens de comic books criados nessa época, The Spirit (1940) e The Batman (1939), figuraram como casos expressivos desse movimento nos EUA, não com a postura política, social ou até mesmo psicológica, provocadora, que os artistas alemães tiveram, mas apresentando e valorizando, apenas, os traços estéticos, veiculados por esse meio de comunicação de massa: as revistas em quadrinhos, consumidas em larga escala pela massa norte-americana nas décadas de 30, 40 e 50. (FEDEL, online)
Figura 59 - A estréia de Batman, na edição #27 da Detective Comics (1939). (Fonte: http://www.dc.wikia.com/)
Retirando, novamente, um trecho do estudo de Agnelo Fedel, o estilo da personagem Batman, desde o princípio, prevaleceu condizente com o expressionismo alemão: 99
Para um outro personagem, The Batman, também foi escolhida como identidade a figura da sombra do morcego e como cenário de suas ações a caverna, a noite e as trevas urbanas para o combate, ainda que ilegalmente no início, ao párias da sociedade. Nas suas primeiras histórias, o que se tornaria marca registrada da personagem, outros elementos seriam ainda mais redundantes: os jogos de luz e sombra e as deformações dos antagonistas, principalmente, além dos cenários que nos remetem ao jogo estético expressionista. (FEDEL, online)
É sábio reconhecer a importância visual que Batman impôs em sua criação,
sendo
considerada
uma
obra
esteticamente
baseada
no
expressionismo e na cultura gótica em sua concepção, transformando-se, a partir das décadas de 70 e 80 (principalmente pelas mãos de Frank Miller) um ícone do neo-noir. Em sua autobiografia, o artista Bob Kane (KANE, 1994) revela que, enquanto concebia, acompanhado do roteirista e ilustrador Bill Finger, as principais características da personagem Batman, a dupla se inspirou fortemente em um filme mudo, de traços expressionistas, chamado The Bat (Roland West, 1926 – figura 4). O filme se passa em uma antiga mansão, onde um grupo de pessoas saqueia seus bens escondidos, enquanto um criminoso fantasiado (o “Morcego” do título) as assassina uma por uma, desafiando a polícia local (figura 60).
Figura 60 - Frame retirado do filme The Bat (1926), que ajudou a inspirar a criação da personagem Batman, em 1939. Nesta imagem podemos observar um comportamento típico do Expressionismo Alemão, destacando um momento chave através da utilização de um forte contraluz. (Fonte: The Bat)
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Um fato pouco conhecido é que, eu sua primeira história, Batman se utilizava de armas. Na realidade, a pistola que assassinou seus pais, evidenciando o caráter fatalista de sua personalidade. Tanto a característica de sua identidade como a de um morcego, como o fato do mesmo portar armas em sua origem, se devem ao filme de 1926. Entre outras similaridades, se encontram o cinto de utilidades, aperfeiçoado a partir da “bolsa de utilidades” (figura 5), carrega pelo Morcego do título, além da forma como a personagem Batman assinou o seu primeiro comunicado com o Comissário Gordon, inspirado na assinatura feita no filme The Bat (figuras 61 e 62).
Figura 61 - Momento em que evidencia alguns dos utensílios carregados na bolsa do criminoso. (Fonte: http://www.headinjurytheater.com).
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Figura 62 - Passagem do filme em que o criminoso avisa e desafia a polícia sobre seu próximo roubo, se identificando como “o Morcego”. (Fonte: http://www.headinjurytheater.com).
Figura 63 - Na edição #28 da Detective Comics, podemos ver o mesmo sinal utilizado no filme de 1926, mas desta vez servindo como um comunicado direto para a polícia, informando de uma ação justiceira feita pela personagem principal. Fonte: http://www.headinjurytheater.com
Porém, estas semelhanças com o universo do cinema expressionista não terminam por aí. O maior vilão do universo de Batman, o palhaço Coringa (figura 64), foi amplamente inspirado por uma personagem do expressionismo, assim como afirmado por Fedel, “O Coringa (The Joker), um bandido com cara de palhaço maldito, foi baseado em personagem de outro filme: "The Man Who Laughs", de 1928, com Conrad Veidt, um dos maiores atores expressionistas da época” (figura 65).
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O Coringa estreou na primavera de 1940, na primeira revista solo de Batman, a Batman #01 (agora já devidamente acompanhado do menino prodígio, Robin, em uma estratégia de marketing para atrair um público mais jovem e amenizar o antigo clima sombrio). Suas características principais foram retiradas do ator Conrad Veidt, em sua interpretação no filme “O Homem que Ri” (Paul Leni, 1928), por sua vez inspirado no livro de Victor Hugo, de mesmo nome. O fato de o vilão Coringa ter se inspirado em uma personagem tão tortuosa, que teve sua face propositalmente desfigurada, marcando-a com um macabro e imutável sorriso (acontecimento que o torna uma atração de circo), evidencia o profundo caráter sombrio e malévolo do universo de Batman, contando com protagonistas e antagonistas cercados por fatalidades, injúrias e traumas diversos, dignos da narrativa cinematográfica oferecida nos anos 1920 e 1930, principalmente pelo movimento expressionista.
Figura 64
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Figura 65 Figuras 64 e 65: O sorriso marcado, a pele pálida, o cabelo para trás e olha sinistro da primeira versão do Coringa (1940), desenhada por Bob Kane, são compatíveis com os traços de Conrad Veidt, em sua interpretação no filme “O Homem que Ri” (1928). (Fonte: http://carolinaregion.com).
Além do cinema expressionista, Batman sofreu influência, também, do filme A Máscara do Zorro (Fred Niblo, 1920), no qual Kane se baseou para a criação de uma identidade dupla para sua personagem, e em uma invenção de Leonardo Da Vinci, chamado de ornitóptero (figura 66), no qual Kane se influenciou na abordagem original feita para a capa utilizada pela personagem (figura 67).
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Figura 66 - O “ornitóptero”, de Leonardo Da Vinci. (Fonte: http://100grana.wordpress.com)
Figura 67 - Projetos originais para a capa da personagem Batman, amplamente inspirados na criação de Da Vinci. (Fonte: http://www.dc.wikia.com/)
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6.2 Identidade expressionista: Sin City e Blacksad
As referências expressionistas de Sin City (MILLER, 1993) e Blacksad (CANALES; GUARNIDO, 2000) estão na caracterização distorcida das personagens da Cidade do Pecado e na relação antropomórfica na caracterização dos personagens de Blacksad em animais, servindo como um espelho para a personalidade de cada um. E não é só neste expressionismo mais “identificável” que se concentra tal identidade. Na realidade, os quadrinhos utilizam a capacidade criativa de seus autores como mote, atribuindo a liberdade total na criação, estruturando formas caricaturais e cores de alto contraste para se criar uma figura expressionista por direito, capaz de “expressar” os sentimentos sem que seja necessário nenhum tipo de texto. Os quadrinhos são capazes de sintetizar os traços do desenho em reais “traços” de personalidade. Em O Cavaleiro das Trevas, Miller faz um desenho caricatural evocando um clima até de humor negro, para contar uma história pretensamente “séria”. Isso para criar um clima a primeira vista do leitor, sem que ele precisasse ler nada. Batman parece ter três metros de altura, o Coringa é esquelético e andrógino, nunca Robin pareceu tão criança, a Comissária Yindel tem o queixo quadrado dos conservadores, o Superman é olímpico (...). (SOUZA, online)
Podemos encontrar alguns exemplos mais diretos na obra Sin City, de Frank Miller (1993):
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Figura 68 - O rosto marcado da personagem Marv demonstra uma profusão de linhas - que se misturam entre cicatrizes e rugas - rígidas e demarcadas, que ajudam a estabelecer sua personalidade sofrida e violenta. Marv é a caricatura da violência hard boiled: bruta e ríspida, mas por horas, justa. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)
Figura 69 - Nesta cena de desolação e desespero, Dwight se encontra perdido e ferido, sufocado pelos acontecimentos recentes de sua vida. Frank Miller realça este momento em três pontos: a face da personagem, que transmite a impressão de um grito, com seus olhos vislumbrando o nada; as linhas
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expressionistas do seu rosto são usadas com parcimônia em realces de detalhes mais facilmente reconhecíveis, como se uma forte luz demarcasse cada ruga e expressão de sua face; e os balões de narração / pensamento ocupam uma grande área do quadro e se assemelham a pontos de luz, transmitindo a idéia de urgência. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)
Figura 70 - Enquanto a grande maioria das personagens de Sin City conta com um grande leque de traços, linhas e sombras em suas formas, encontramos a figura deste tenente: uma representação mais sóbria e “fria”, que se distancia do caricatural a que estamos habituados na obra. Sua personalidade é representada em suas linhas rígidas, econômicas e quase geométricas, que indicam um temperamento correto, calmo, ríspido. A arte pode servir como a representação da nulidade desta personagem, que segue ordens sem questionar, agindo sem personalidade própria. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)
Figura 71 - Na imagem acima podemos ver um dos antagonistas de Sin City, o pedófilo e psicopata Roark Junior (That yellow bastard, 1996), conhecido
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como “o Bastardo Amarelo”. Em seu título original, “yellow bastard” pode ser interpretado como alguém sacana, nojento. Miller utilizou deste joguete do nome na forma da personagem, transformando-a em uma figura asquerosa e de aparência podre – principalmente pelo uso da cor amarela, que referencia tanto seu “apelido” como sua podridão. (Fonte: Sin City – Aquele bastardo amarelo)
Enquanto que, na obra Blacksad (CANALES; GUARNIDO, 2000), o que temos é o expressionismo na relação antropomórfica das personagens. Não existe, exatamente, uma “cadeia alimentar” vigente, os animais não representam a fauna evoluída em um mundo de fábulas. Na realidade, são personagens comuns de uma narrativa de investigação noir. O mundo que habitam é igual ao nosso, inclusive com diferenças raciais (animais “negros” versus animais albinos) e presença de ordens políticas iguais as nossas (o Nazismo, por exemplo). A diferença é que estas personagens têm em sua composição a formação da própria personalidade. Eles não significam exatamente os animais que são, mas sim a personalidade e estereótipo que aquela personagem representa na narrativa. É algo parecido com o que ocorre na obra “Maus: a história de um sobrevivente” (SPIEGELMAN, 1986), na qual o autor ilustra e narra lembranças da época do nazismo, utilizando uma representação puramente metafórica: em seu mundo, os judeus são ratos, os nazistas gatos e os americanos cães. Ocorre esta mesma interpretação do mundo de Blacksad. O próprio protagonista (o detetive Blacksad) é a metáfora do típico protagonista hardboiled: um gato preto. Esta simples simbologia já expressa a leveza e agilidade do felino, aliado as suas muitas vidas (o risco que o detetive sempre corre), o jogo de sorte e azar e, ainda, a sensualidade de um felino, sempre se envolvendo com belas mulheres. As comparações continuam. Em outros casos, ainda temos a figura do leal e justo comissário de polícia (um pastor alemão), o astuto e inteligente tenente (uma raposa), o corpulento e forte delegado racista, sulista e conservador (um urso polar), o enorme bem humorado boxeador (um gorila), o jornalista jovem, esperto e atrevido (uma fuinha) ou o corrupto político (um sapo velho), etc. 109
Figura 72 - Alguns jovens lagartos sentados em uma escadaria, em frente ao bar. Os répteis, na narrativa de Blacksad, representam os moradores dos guetos tipicamente norte americano do fim dos anos 50. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)
Figura 73 - Nesta cena vemos dois capangas ladeando o detetive Blacksad. As suas formas animalescas significam os atributos de cada e não exatamente o animal em si. Logo, os brutamontes representam as características físicas da resistência (rinoceronte) e da força (urso). (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)
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Figura 74 - A raposa demonstra o raciocínio rápido, a astúcia e a “esperteza” propriamente dita, atributos que recaem como uma luva em uma das cenas chave do desfecho da narrativa. (Fonte Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)
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Figura 75 - O dono do bar onde Blacksad busca por informação. A figura do porco representa o estereótipo de “sujo” que recai neste tipo de personagem. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)
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Figura 76 - A camareira é representada como uma pequena rata, que se intromete em assuntos e locais alheios, personificando uma pessoa “fuxiqueira”. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)
Voltando para Frank Miller, podemos separar outro exemplo de expressionismo - em bem típico dos quadrinhos, na realidade. O uso de onomatopéias é recorrente e próprio da arte sequencial e é utilizada com a intenção de expressar sons de forma gráfica, muitas vezes mesclando texto e arte em caráter estético ou pelo bem da narrativa.
Na figura 77 podemos ver uma utilização muito bem realizada do valor estético e do envolvimento com a narrativa que pode ser conectado ao uso das onomatopéias. Com letras que fluem pelo quadro, crescendo rumo ao leitor (como um som que cresce em volume na mesma proporção de uma ação que ocorre ao longe e que se aproxima). O “volume” da onomatopéia (tamanho) está ligado com o “volume” do som propriamente dito (altura do som), que segue a direção do veículo, causando um efeito de velocidade e movimentação “ensurdecedor”.
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Figura 77 - A utilização das onomatopéias de forma expressionista, guiando o leitor através da ação. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)
6.4 Reinterpretação estética
Após a separação feita entre os diversos níveis do gênero noir, a estética é a que se destaca. A utilização dos conceitos da iluminação noir está presente em todas as obras citadas, seja pelo alto contraste do preto e branco (The Spirit, Sin City) ou pelo leve toque barroco da iluminação low-key (Blacksad). Podemos encontrar iluminações diversas, que servem para envolver o leitor nas narrativas densas e sombrias, onde o uso das sombras demonstra a dualidade das personagens e a claustrofobia opressora do universo que partilham.
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A partir da obra de Eisner, é possível encontrar os primeiros detalhes estéticos que relacionam os quadrinhos com o cinema noir. Percebe-se o apreço pela qualidade técnica, principalmente quanto à utilização de diversas características cinematográficas em suas narrativas gráficas, criando cenas com ângulos que só são possíveis através das lentes de uma câmera. Há o uso de contra-plongeé, aliado ao ângulo inclinado (ângulo holandês), que transmite estranheza e desconforto, vistas de plano superior (figura 78) e simulações de grua (figura 79), além da forte utilização da hard light (luz dura).
Figura 78 - Ângulo holandês em contra-plongeé e uso de contraluz: características do cinema adaptadas por Eisner (quadro um). Vista superior com profundidade de campo (quadro dois). (Fonte: The Spirit - Hildie).
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Figura 79 - Will Eisner representa, na figura acima, um plano de conjunto em um ângulo que só seria possível com a utilização de uma grua para a câmera (crane shot). Destaca-se ainda a presença da luz dura, que constrói sombras fortes e bem desenhadas. (Fonte: The Spirit - Hildie).
Após o recorrente uso de todas estas linhagens do cinema nos quadrinhos, Eisner acabou sendo enormemente copiado, transmitindo sua influência cinematográfica para outros autores e artistas. O uso do referencial do cinema já é presente em quase toda produção da arte sequencial, sendo o maior destaque para a montagem de cenas e para os ângulos de visão, que partilham de diversas semelhanças com os ângulos de uma câmera de cinema. Contudo, tanto Miller e Mazuchelli como Guarnido utilizaram da estética noir de iluminação atmosférica como um fator diferencial em suas narrativas, como exemplificado a seguir:
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Figura 80 - o uso da contraluz por David Mazuchelli ajuda a criar a presença iconográfica do perigo, representado nos semblantes mistérios das negras figuras: a tensão através da presença do desconhecido (Fonte: Batman – Ano um)
Figura 81 - a movimentação da personagem Batman, também em contraluz, dessa vez realça não o perigo, mas o mistério de seu semblante, que se mistura as sombras da cidade, tal qual um detetive que investiga a cena de um crime. (Fonte Batman – Ano um)
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Figura 82 - Mazuchelli cria esta iluminação atmosférica de alto contraste (high-contrast lighting), que rodeia a figura em contraluz do homem-morcego (back light) em uma interpretação do desconhecido. Desta vez, a contraluz volta a aparecer como elemento de perigo, de uma força superior que deve ser temida. Detalhe para a luz de destaque (highlighting), advinda do fogo da panela, que cria uma iluminação atenuante (fill light) na cena em contra plano. (Fonte: Batman – Ano um)
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Figura 83 - Luz chave em alto contraste em uma cena de contextualização, que serve para iniciar uma narrativa ou demarcar a mudança de um espaço físico (este tipo de tomada é chamada de establishing shot). (Fonte: Batman – Ano um)
Figura 84 - A cena da tragédia que marcou a vida de Bruce Wayne, “filmada” em plano americano e montado em um plano sequência de alto contraste. Novamente a presença da contraluz em um significado de perigo e morte. (Fonte: Batman – Ano um)
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Figura 85 - Aqui Guarnido se utiliza do plano médio, da câmera subjetiva e do plano americano, em uma montagem que demonstra o descontentamento e a tristeza da personagem. Além do que, há a presença de uma luz chave de baixa intensidade, que não provoca imagens de alto contraste, mas sim uma sutileza de cores e tons, que se juntam para criar uma iluminação atmosférica de melancolia. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)
Figura 86 - Miller inicia está cena com um plano médio com voice over (narração em off quase sempre presente nas obras noir) (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas), utilizando a luz superior (top
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lighting) como um foco do desamparo do velho Bruce Wayne. Há, ainda, a presença da contraluz na figura dos bandidos que rodeiam o protagonista, trazendo, novamente, a sensação do perigo eminente através do desconhecido.
Eisner também utilizava a hard light (luz dura) como elemento narrativo, proporcionando a suas personagens o simbolismo da ambivalência de caráter (figura 89), uma característica marcante do cinema noir, em que o desenho feito pela sombra da luz dura criava uma imagem de alto contraste, podendo ser modelada no rosto dos atores, normalmente os dividindo em duas partes (negra e branca), em simbolismo a tênue diferença entre o bem e o mal.
Figura 87 - A divisão das luzes: o contraste entre Spirit (a ação fora da lei) e o comissário Dolan (a lei e a justiça em sua legalidade). (Fonte: Quem é The Spirit?)
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Figura 88 - Presença de uma divisão moral na face de Marv: a luz branca representa a bondade das ações da personagem, enquanto a sombra (recheada pelas linhas de suas cicatrizes e marcas da face) nos passa a informação de sua violência e brutalidade. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).
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Figura 89 - Iluminação dura e atmosférica, que passa da representação iconográfica de silhuetas puras para a iluminação direta e dura, com realce para a sombra de Marv. Destaque para os dois momentos díspares: a bebida, a perdição e o desconhecido (quadro um) em contraste com reencontro da felicidade e da segurança (quadro dois). (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)
6.5 Reinterpretação da narrativa
A já clássica e trágica origem da personagem Batman expõe bem suas características fatalistas. Afinal, testemunhar, ainda quando muito jovem, a morte de seus pais, é algo que já conecta Bruce Wayne (a personalidade “real” de Batman) com um universo que já é realista e violento até mesmo em seu estágio embrionário. Seu mundo não foi destruído por uma catástrofe ou foi 123
criado por divindades, mas sim batizado por um crime comum, cometido por um assaltante comum, em uma cidade comum (embora fantasiosa). Bruce cresceu atormentado e movido por um senso próprio de justiça, buscando na imagem do morcego, uma figura das sombras, sua própria identidade. Se traçarmos uma linha de raciocínio nas ações desta personagem, Batman se mostra inteiramente noir, utilizando como ambiente próprio as trevas urbanas, combatendo o crime (mesmo que de forma ilegal), em um enredo que envolve investigações e inimigos mais “realistas”, sem super-poderes e baseados em gângsteres, mafiosos e figuras marcantes do cinema dos anos 20 e 30.
Figura 90 - O assassinato dos pais do jovem Bruce. (Fonte: Batman – Ano um)
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Ou seja, logo de partida já encontramos na origem de Batman a origem de grande parte das narrativas noir: um crime. (figura 91) Tanto Blacksad (2000) como The Spirit (1993) iniciam através da perspectiva de um crime, um mistério que deve ser estudado, investigado e descoberto, se tornando o ponto principal para o desenrolar de toda a narrativa.
Figura 91 - O acontecimento que inicia toda a narrativa da história: o assassinato de Goldie. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).
Por exemplo, no filme À Beira do Abismo (Howard Hawks, 1946), somos apresentados ao detetive Philip Marlowe, uma pessoa de péssimos hábitos que trabalha nos bairros chineses de Los Angeles. Pelo fato do mesmo ser um detetive, compreende-se que o crime (qualquer que seja) será o ponto de partida de todos os acontecimentos. A trama se inicia com duas tarefas solicitadas pelo general Sternwood, que contrata os serviços de Marlowe: dar um fim as chantagens sofridas por sua filha, Carmen, além de descobrir o paradeiro de seu guarda costas desaparecido há um mês. Se o início já é ladeado pela ocorrência de dois crimes, há ainda a presença da femme fatale Carmen, que apresenta um comportamento ninfomaníaco e autodestrutivo, desenvolvendo um interesse amoroso pelo protagonista. O seu título original “The Big Sleep” é de caráter fatalista e retrata “o fim que aguarda a todos, em um escoadouro imundo ou em um mausoléu de mármore”. (JULLIER; MARIE, 2009, p. 107) 125
Assim como A beira do abismo, Sin City e Blacksad partilham de títulos fatalistas que são conectados pela atmosfera da trama, representando o pecado (Sin City) e a tristeza (Blacksad, figura 93) que rodeia as personagens. Voltando ao filme, é possível destacar um acontecimento em comum com várias obras da época. A beira do abismo é uma adaptação do romance homônimo de Raymond Chandler, publicado na revista Black Mask, especializada nos hard-boiled detective mysteries (enredos com investigadores destemidos). (JULLIER; MARIE, 2009) Em comparação com o livro hard boiled e o universo dos quadrinhos, podemos encontrar semelhanças entre Marlowe e Marv, mesmo que singela. Embora muito melhor apanhado, Marlowe tem um relacionamento com mulheres que difere de toda a série noir da época, se mostrando sentimental e romântico, somente se deitando com belas damas se estiver apaixonado. Marv, até pela sua aparência, acaba relegado aos serviços de uma prostituta (Goldie, sua femme fatale), mas que, porém, não cobra por seus serviços, gerando nele um sentimento de amor e apego que revela seu lado sentimental (transformando-se, mais tarde, em uma máquina de matar incessante). O filme acabou por mudar esta característica, tornando Marlowe um homem incrivelmente sedutor e irresistível, que lembra mais a figuração de The Spirit ou Blacksad.
Figura 92 - O assassinato de um antigo amor de Blacksad marca as primeiras páginas de sua primeira história. O momento acima se trata de um flashback, estrutura narrativa comum em obras noir. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).
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Figura 93 - O clima fatalista de Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).
Outra característica narrativa esta na forma em que as cidades são retratadas: o caos urbano e a estilização da cidade como um ser-vivo, um inimigo que deve ser combatido (Batman), berço de injustiças, crimes e divisões sociais (Sin City) envoltas pelo pecado e pela perdição (Sin City, Batman), em ambientes opressores, escuros e claustrofóbicos (Sin City, Batman). Em muitos filmes noir, como no caso de O Falcão Maltês, as histórias acontecem em centros urbanos, com seus círculos de luz sob os candeeiros dos passeios, becos sombrios, uma multidão de pedestres indistintos e as ruas molhadas e sujas (...). Porém, o cenário do filme, na maioria das cenas, é filmado em ambiente interno. Todo este cenário é perfeito para os acontecimentos assustadores do film noir, o contraste idílico com a corrupção urbana pode-se tornar tanto um santuário quanto um campo de morte. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 50, apud SILVER; URSINI, 2004)
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Figura 94 - A volta de Bruce a Gotham, enquanto caminha pela sujeira, rodeado por prostituição infantil, drogas e corrupção. (Fonte: Batman – Ano um).
Por último, um detalhe da narrativa amplamente utilizada é o protagonista anti-herói, sujeito a falhas e com um código de moral próprio. O mesmo ocorre em O Falcão Maltês. Até então, os heróis do cinema seguiam o estilo clássico dos filmes westerns, de ação e de aventura, representados como uma figura idealizada de identificação narcisista, promotora da ideologia da onipotência e invulnerabilidade masculina. Spade representa um dos típicos heróis do film noir e, para salvar seu cliente ou, em muitos casos, a sua própria pele do perigo, conta apenas com sua astúcia. Ao contrário dos heróis clássicos, Spade é extremamente vulnerável, principalmente quando o assunto envolve dinheiro, o que coloca, muitas vezes, seu caráter em discussão. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 58)
Figura 95 - A justiça fora da lei cometida por Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).
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Figura 96 - O senso de justiça bruto de Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).
Figura 97 - A revelação do codinome The Spirit: ação por debaixo dos planos e sem a presença direta da lei. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).
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Figura 98 - Dwight sofre forte represรกlia pelo envolvimento amoroso com uma femme fatale de seu passado. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).
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Figura 99 - Batman em seu início: sujeito a falhas e erros banais. (Fonte: Batman – Ano um).
Figura 100 - A corrupção e violência da polícia, presenciada por Gordon. (Fonte: Batman – Ano um).
Figura 101 – A primeira tentativa de boa ação de Bruce ocorre de maneira errada e é frustrada pela polícia. (Fonte: Batman – Ano um).
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Figura 102 - A represália e o castigo físico imposto ao tenente Gordon, como um modo de botar o “bom” policial na linha. (Fonte: Batman – Ano um).
Figura 103 - A vingança fora da lei e por conta própria realizada por Gordon contra seus agressores. (Fonte: Batman – Ano um).
6.6 Análise de estereótipos noir Outra característica presente em The Spirit e O Falcão Maltês é o uso de personagens estereotipadas, como ferramentas narrativas. Em ambas as tramas, existem ambivalência moral nestas personagens, a fim de melhorá-las. Esta ambivalência moral cria um clima de tensão, em que a fronteira entre o bem e o mal nunca está clara. As personagens parecem não ser o que aparentam e têm comportamentos dúbios. Isto ocorre, principalmente, com as personagens femininas (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 52)
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Entre todos os estereótipos do noir, o mais forte é a presença constante da figura da femme fatale: a mulher sedutora e sensual que pode significar a ruína para o protagonista.
Figura 104 – As mulheres fatais da Cidade do Pecado (Fonte: Sin City – A dama fatal).
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Enquanto The Spirit desfila com uma grande quantidade de beldades e interesses amorosos, que por volta e meia se mostram perigosas e manipuladoras, Blacksad nos apresenta uma linguagem mais “cordial”, da femme fatale redentora, que poderia significar a paz e o amor ideal para o protagonista noir, mas que, infelizmente, sempre acaba por se envolver em alguma trama que dificulta ou impossibilita este relacionamento, obrigando o detetive Blacksad a correr grandes perigos para garantir a proteção de quem ama, sendo que, como é recorrente neste tipo de narrativa, acaba descobrindo alguma forma de traição inusitada e trágica. Isto ocorre em Sin City, principalmente na história “A dama fatal” (1994), que gira em torno do relacionamento perigoso com uma mulher que leva o protagonista a ruína, impulsionando o mesmo a vingança e a derradeira solidão. Além da tragédia da traição e dos perigos de um amor proibido ou perigoso, há sempre o crime, que acaba envolvendo ou alguma femme fatale do passado (Blacksad – Em algum lugar entre as sombras, 2000), ou do presente (Sin City – A cidade do pecado, 1993), que impulsiona toda a busca pela verdade, a investigação e o direcionamento da narrativa, tendo o ponto de vista do anti-herói em momentos de flashback (outro estereótipo do cinema noir).
Figura 105 – A femme fatale mortal, que manipula e destrói o homem protagonista (Fonte: Sin City – A dama fatal)
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Figura 106 – Os bares podem ser um reduto de malfeitores, informantes, policiais corruptos e belas e perigosas mulheres. (Fonte: Blacksad – Em algum lugar entre as sombras).
Figura 107 – A presença da Mulher-Gato no universo de Batman: a femme fatale essencial, que representa, ao mesmo tempo, o perigo e o relacionamento impossível. (Fonte: Batman – Ano um).
Outro ponto importante na obra noir é a figura do anti-herói, que, muitas por conta de uma mulher fatal, se encontra fisicamente machucado e psicologicamente abalado, normalmente por motivos ligados a sua investigação e a colisão com forças maiores, deslanchando para um confronto direto onde quase sempre a protagonista acaba levando a pior ou se ferindo no processo (figura 108). Além disso, os protagonistas das obras noir estão sempre com alguma escolha ou decisão moral difícil a ser tomada, carregando um semblante entristecido e, não raramente, carregado em vícios (mulheres, bebidas e cigarros).
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Figura 108 – O abatido detetive Blacksad, após confronto com malfeitores que tentaram impedir sua investigação. (Fonte: Blacksad – Em algum lugar entre as sombras).
Ainda temos, como já discutido, a perspectiva de um crime (figura 110), que normalmente é o “pontapé inicial” para a construção de toda a narrativa.
Figura 109 – A ação em plano e contra plano mais o enquadramento de contextualização nos dão detalhes importantes do crime cometido, que será desenvolvido com o andar da história. (Fonte: The Spirit – O retorno de Satin)
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E por último, a escolha estilística das vestimentas, como é deixado claro por Marv (figura 111), que reclama sobre o desperdício que é sangrar em um “sobretudo tão bom”.
Figura 110 – Marv solicita o casaco. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)
7 Arte sequencial refinada Após tantas desenvolturas narrativas e estilísticas, os quadrinhos graças em grande parte a influência do noir na vida de grandes autores -, conseguiram se estabelecer como uma linguagem própria, adaptando o cinema ao seu gosto, construindo imagens em movimento que não podem ser simplesmente lidas, mas que devem, também, ser “assistidas”, como a um filme. A evolução da arte sequencial foi tanta, que hoje é capaz de construir a impressão da ação e do movimento através da fluidez do traço bem construído e da montagem clipada de seus quadros, revelando o grande compromisso com a qualidade do produto final, pensado em cada detalhe, em cada disposição de sequência posta em cada quadro, como pequenos filmes estáticos (figura 112).
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Figura 111 – A decupagem de cenas da sequência, revelando detalhes importantes, em uma ação em diversos planos, com diveros ângulos, com movimentação incessante e ritmo empolgante.
7.1 A abordagem neo-noir de Frank Miller e o neo-clássico de Blacksad Por fim, ocorre uma separação nos gêneros destes autores de épocas tão distintas. Guarnido e Canales reconstroem a sequência noir clássica, da década de 1940, com tramas bem elaboradas, personagens profundos, interessantes, ambíguos e ironicamente humanizados. É o cinema de vanguarda nos quadrinhos, mas que se desenrola, ao mesmo tempo, em uma profundidade de gênero neo-noir, com momentos que se conectam com Chinatown (Polanski, 1974), principalmente pelo fato de ser uma obra que é consciente do seu gênero e do que pretende transmitir. O cuidado com a ambientação, o apreço pelo realismo, o envolvimento com
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narrativa e a qualidade estética elevam Blacksad ao status de um neo-clássico, uma obra que deverá ser estudada e apreciada ainda mais com o tempo. Já com Frank Miller nós temos o neo noir absoluto, estabelecido em uma linguagem pop inexistente em qualquer outra mídia. Sin City é o neo-noir anabolizado ao extremo, com tons e sacadas pop que se aproximam muito mais da linguagem do diretor Quentin Tarantino do que o cinema noir em si. De certo modo, da mesma forma que Tarantino presta homenagem a seus gêneros favoritos em seus filmes, readaptando a sua maneira diversas obras de diferentes épocas e estilos, Miller homenageia o noir, readaptando todo este universo a sua forma, atuando em um tom de “remixagem”, em que acata ao hibridismo do cinema e dos quadrinhos em prol da construção de algo novo, alucinado, violento e satírico. Desde o princípio, nas histórias do Demolidor até o fim de sua carreira (com trabalhos altamente criticados pela mídia, como Holly Terror, de 2011), Miller vem se mostrando como um adepto do seu próprio estilo noir, criando, quem sabe, um sub-estilo de exploitation noir. Entre as obras desse gênero híbrido e alucinado está o tech-noir gênero que se encontra a obra cyber-punk Blade Runner, o caçador de andróides (Ridley Scott, 1982) -, Hard Boiled, uma HQ que se passa em um futuro distópico não muito distante, mas que conta com uma altíssima proliferação de tecnologia avançada de design retro e forte desigualdade social (marcas registradas do cyber-punk).
Figura 112 – O caos urbano de Hard Boiled. (Fonte: Hard Boiled).
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A trama se concentra na personagem Carl Seltz, um investigador de seguros que descobre ser uma ciborgue homicida programado pelo governo, que tem como principal diretriz coletar o imposto da população. Além da comparação com Blade Runner, Carl ainda descobre ser a única esperança para a libertação de toda uma raça de robôs escravos. Esta narrativa apresenta alguns detalhes interessantes do noir, contendo, até mesmo, uma femme fatale robótica (figura 114)
Figura 113 – A construção de uma narrativa peculiar, que envolve a libertação de robôs escravos sexuais e femme fatales metálicas, entre a ação descontrolada e violência explosiva. (Fonte: Hard Boiled).
Depois de todas estas etapas, quais serão os caminhos seguidos pela arte sequencial, elaborada por Will Eisner? 140
7.2 A evolução da sequência A fim destas considerações e avaliações entre estas mídias distintas, é possível perceber que muitas das estratégias midiáticas presentes nos quadrinho
estão
abertamente
relacionadas
com
outras
formas
de
manifestações artísticas, como o cinema, a literatura e a fotografia. Os produtores de quadrinhos, em função dessa assimilação, possuem uma vasta relação de técnicas narrativas adaptadas para essa mídia, como os enquadramentos do cinema, o texto da literatura, os recursos gráficos da fotografia e os procedimentos de edição e corte da televisão. Esse leque de recursos é adaptado com o intuito de alcançar com êxito o objetivo proposto pela hq, ou seja, é uma remediação. (CAMPOS, 2007)
Porém, nesta releitura do cinema noir da arte sequencial, promovida neste estudo, há de ser feita uma ressalva importante, pois embora relacionados, cinema e quadrinhos contam com símbolos únicos que devem ser considerados, apreciados e vistos de formas separadas. Por exemplo, a arte e ação presente no entrequadro dos quadrinhos, a sua composição gráfica única de cenas e o uso de balões são características que pertencem, de forma exclusiva, as narrativas da arte sequencial. Tomarei por exemplo um trecho da obra “Do inferno”: (1991, CAMPBELL; MOORE – Figura 115).
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Figura 114
O delírio – que coincide ironicamente com o futuro apelido que o médico receberá – é marcado pela torção das letras, pelo balão de fala irregular e, por fim, pela inversão da letra “k” do nome “Jack” no quadro 6, como se representasse a confusão mental em seu discurso. A anormalidade da fala da paciente torna-se mais evidente no contraste das linhas precisas e organizadas dos outros personagens que dialogam com ela. O efeito sinestésico desse elemento dos quadrinhos pode ter grande alcance se atentarmos aos seus detalhes: do quadro 7 ao 9, o contorno do balão é desfragmentado, o que remete a uma voz falha, desarmônica e desconcertada. (AMORIM, 2011)
A utilização gráfica do balão para representar a instabilidade mental da personagem é um recurso simples e muito sutil que requer o desenvolvimento de uma mídia como os quadrinhos para funcionar.
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Outro importante diferencial se encontra no espaço de leitura dos quadrinhos. Como já foi estudado, enquanto o cinema nos obriga a ver tal informação em tal ordem de acontecimentos, os quadrinhos são livres na leitura, tanto no manuseio das páginas como na absorção dos acontecimentos de uma página, que não é lida como uma cena separada por vez, como um grande mural de arte, que contém diversas manifestações e interpretações. Já o hiato, outro elemento básico, também conhecido como sarjeta, é o espaço em branco entre um quadrinho e outro que separam as bordas. Enquanto o requadro representa as variedades de moldura que envolvem a vinheta, geralmente usadas dentro dos quadrinhos ou seguindo o formato deles, sendo muito utilizado para dar emoção à narrativa (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 70)
É esta leitura entre quadros que é especial que torna o quadrinho uma mídia que se separa do cinema. Afinal, a moldura do quadro não é somente simbólica, mas também pode funcionar como uma moldura mesmo, propriamente dita, se encarregando de uma informação adicional que complementa a virtuose artística. (Figuras 116, 117 e 118).
Figura 115
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Figura 116
Figura 117 – Fontes: http://www.comicartfans.com
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A exuberante construção de cenas feita por J.H. Williams III. Williams transcende todos os limites impostos pelo cinema, elevando a própria arte sequencial a um nível em que somente ela é equivalente. A continuidade entre os quadros que formam a página de uma revista em quadrinhos também se apresenta diferente do cinema. Nestes, os planos obedecem uma continuidade geralmente rigorosa, onde os parâmetros de ordem temporal e espacial definem mudanças de plano. Nos quadrinhos não existe continuidade rigorosa; essa continuidade funda-se sobre a descontinuidade gráfico-espacial. Os quadros da história em quadrinhos, portanto, são os responsáveis por sua "continuidade". (PADRINHO, online)
Outro representante importante nesta modalidade é o artista Frank Quitely (figura 119) que apresenta uma disposição de enquadramentos também inovadora, traçando alguns limites entre as semelhanças do cinema e da arte sequencial.
Figura 118 – arrojada subdivisão de acontecimentos da ação, esmiuçado em mini acontecimentos (que acontecem em tempo real) separados por quadros de espaço físico. (Fonte: http://www.bookalicious.net)
Figura 119 – a onomatopéia. A personificação dos quadrinhos (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas)
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8 Considerações finais Ao analisar as diversas relações apresentadas entre o cinema noir e a evolução dos quadrinhos a status de arte sequencial, principalmente pelo impacto da obra “The Spirit”, de Will Eisner, assim como a benéfica influência em autores como Frank Miller, este estudo demonstrou que a relação de convergência entre duas mídias distintas pode render frutos interessantes tanto para o público como para a própria indústria, que acaba recebendo um apanhado de obras adultas e consistentes, com o ímpeto de elevar a qualidade do entretenimento vinculado. Além disso, não só a estética noir ajudou a consagrar dois dos maiores autores dos quadrinhos de todos os tempos, que, cada um a sua forma, moldaram o mercado de sua época, mas também o cinema como um todo foi um grande responsável pela evolução da arte sequencial contemporânea. Eisner, afinal, foi influenciado pelo período em que viveu, crescendo com películas policiais e de suspense que moldaram seus ideais artísticos, tanto na forma de construção de cena, como na construção de seus personagens. Ou seja, o cinema de sua época, considerando que o noir só seria estabelecido realmente como “noir” anos depois. Se Frank Miller e Guarnido podem ser considerados abertamente noir, isso se deve a uma geração que já vivenciava uma consolidação maior deste gênero, já transcendido a objeto de culto, homenageando, posteriormente, o movimento tão amado e a linguagem clássica em suas obras. Na realidade, o cinema como um todo é o grande responsável pela evolução dos quadrinhos, tanto que sua aproximação cada vez mais crescente exigiu que artistas, como Frank Quitely e J.H. Williams III, evoluam, mais uma vez, a arte sequencial, utilizando o próprio enquadramento como uma forma de narrativa e vislumbre estético, ultrapassando a barreira estabelecida na linguagem formal de quadros ao juntar o “espaço vazio entrequadros”, como dito por Scott McCloud, em um meio de comunicação próprio e não mais somente uma forma de ligação entre ações feitas pela mente do leitor. A arte está sempre em evolução, e arte sequencial demonstra, mais uma vez, que a sua ação através do estático é uma linguagem relativa, única e em constante mudança, seja no meio digital ou no impresso.
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