Mediações, Tecnologia e Espaço Público

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DIAÇÕES, CNOLOGIA SPAÇO BLICO

MEDIAÇÕES, TECNOLOGIA E ESPAÇO PÚBLICO

A CRÍTICO DA ARTE S MÓVEIS

PANORAMA CRÍTICO DA ARTE EM MÍDIAS MÓVEIS

Lucas Bambozzi, Marcus Bastos e Rodrigo Minelli

Organização: Lucas Bambozzi, Marcus Bastos e Rodrigo Minelli


INTRO 8

Cronologia

coordenação e edição de texto Lucas Bambozzi e Marcus Bastos

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direção de produção Luiza Thesin tradução Marcus Bastos, Juliana Caetano e Noemi Jaffe revisão Lizandra Almeida pesquisa (cronologia) Lucas Bambozzi, Marcus Bastos e Monica Toledo

PARTE 1 35

projeto gráfico Mono_ Julio Dui e Flavia Castanheira capa foto de Paloma Oliveira, 2009

45 51

conrad editora

65

diretor editorial Rogério de Campos coordenação editorial Marcelo Y. Salles

75

edição Vivian Miwa Matshushita

87

preparação Erika Nakahata revisão Naomi Yokoyama Edelbuttel

PARTE 2 4

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Mediações, tecnologia e espaço público: panorama crítico da arte em mídias móveis Organização: Lucas Bambozzi, Marcus Bastos e Rodrigo Minelli São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2009

1. Arte e ciência 2. Arte e tecnologia 3. Espaços públicos 4. Mediação 5. Meios de comunicação 6. Mídias digitais 7. Mídias portáteis 8. Recursos audiovisuais 9. Sistemas de comunicação móvel i. Bambozzi, Lucas ii. Bastos, Marcus iii. Minelli, Rodrigo

Índices para catálogo sistemático: 1. Arte e tecnologia

143 153

Vários autores isbn 978-85-7616-367-1

09-12789

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161 PARTE 3

CULTURA DIGITAL: CONTEXTO E EMERGÊNCIA DAS REDES MÓVEIS Pensando a cultura nomádica: artes móveis e sociedade patrick lichty Apontamentos sobre as mídias locativas drew hemment Fantasmagorias, vitrines, infiltrações: ensaio sobre as tecnologias e a cidade fábio duarte e polise de marchi Aproximações arriscadas entre site-specific e artes locativas lucas bambozzi Cartografias líquidas: a cidade como escrita ou a escrita da cidade priscila arantes Notas sobre a cultura e a arte da mobilidade (pensamentos nômades para hipóteses em fluxo) giselle beiguelman MÍDIAS LOCATIVAS: DESDOBRAMENTOS SOCIAIS E POLÍTICOS 45 revoluções por minuto (história da mídia em alta velocidade) armin medosch Vigilante canalha! Novas manifestações da vigilância de dados no início do século vinte e um preemptive media Geografia experimental: da produção cultural à produção do espaço trevor paglen Por uma arte contra a cartografia da vida cotidiana ryan griffis Arte e mídia locativa no Brasil andré lemos ESTUDOS DE CASO: REDES EM ESPAÇOS URBANOS

cdd 700.105

179 700.105

183 187

Conrad Editora Av. Alexandre Mackenzie, 619, Jaguaré

Era uma vez na tela: breve introdução ao audiovisual na era da portabilidade lucas bambozzi, marcus bastos e rodrigo minelli

203

São Paulo, SP, Brazil CEP 05322-000 Tel: 55 11 2799 7799

O debate sobre propriedade no espaço público sem fio jonah brucker-cohen Transborder Immigrant Tool: um projeto artístico de perturbação da fronteira México/EUA ricardo dominguez e brett staulbam Em busca de uma performance de realidade mista do tamanho da cidade blast theory Kit de ferramentas para um Jardim Sonoro Tático [TSG, Tactical Sound Garden] mark shepard POSFÁCIO

www.conradeditora.com.br

215 218

Um panorama crítico das mídias locativas jorge laferla Glossário

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INTRO 6

INTRO


1891 >A Edison Laboratories, de Thomas Edison, demonstra o protótipo do kinetoscópio (iniciado em 1888), antecessor do projetor de cinema, que permitia ver filmes de forma individualizada.

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CRONOLOGIA Cronologias são sempre recortes parciais

de processos cuja complexidade não pode

ser reduzida a uma simples linha do tempo. Datas e fatos são indicativos de um cenário

1904 >Em Nova York, Landell obtém patente para a transmissão de ondas (radiofone), o telégrafo sem fio e o telefone através da luz, antevendo o princípio da fibra óptica.

1906 >Landell descobre e fotografa a aura radioativa humana.

1895 >Os irmãos Lumière são aclamados pela invenção do cinematógrafo, primeiro sistema de projeção de filmes bem-sucedido. A projeção foi demonstrada com dez filmes curtos realizados pelos próprios Lumière.

> As instalações da Brasinisliche Elektricitats Gesellschraaft (Rio de Janeiro) são destruídas em incêndio que interrrompe o serviço telefônico da cidade por sete meses. Os aparelhos de magneto são substituídos por novos, importados dos EUA. Com sistema de bateria central sem manivela, basta tirar o fone do gancho para acessar a telefonista.

1891/1902

1904/1910

1892

>Edison recebe patente do telégrafo duplex, solicitada em 1874.

>Lars Magnus Ericsson instala um telefone em seu carro. O modelo, semimóvel, ainda depende de cabeamento para se conectar à rede existente. Ao viajar de carro, tornase possível parar o veículo em algum ponto com telefonia, para conectar-se à rede nacional.

1912 >Marcel Duchamp cria o Nu Descendo a Escada nº2, pintura com imagens sobrepostas, simulando efeito estroboscópico. A obra é referência para várias manfestações artísticas contemporâenas. 1913 >Luigi Russolo lança A arte do ruído (The art of noise). 1918 >Inauguradas até 1920 quatro novas centrais telefônicas no Rio de Janeiro: Beira-Mar (hoje Museu do Telephone), Ipanema, Piedade e Jardim do Méier. Em 1922, a cidade tem 5 mil linhas e 30 mil telefones, para 1,2 milhão de habitantes.

1925 >O cinesta russo Dziga Vertov declara que o cinema e o rádio são passos intermediários para uma nova forma de arte (o Radio Eye), que antecipa a televisão e um tipo de cinema-realidade. 1928 >Instalada em São Paulo a primeira central de telefonia automática do Brasil, que funciona sem precisar de uma operadora. 1929 >Vertov finaliza O Homem da Câmera, ensaio documental que consolida muitas possibilidades ainda atuais de montagem. 1931 >Movietone: a película de 35mm combina áudio e imagem por processo de leitura óptica do som no próprio negativo. >O poeta italiano Filippo Marinetti sugere “telas para televisão suspensas por aeronaves”, para exibir a aeropintura futurista.

mais amplo, que se redesenha de formas nem 8

sempre claras e obriga exercícios constantes

1912/1923

1925/1932

de revisão, em busca de novas linhas de

força e genealogias antes não percebidas.

O breve percurso pela história de como arte e telecomunicação foram se aproximando, compilado a seguir, busca solucionar esse

impasse assumindo sua provisoriedade. O material foi compilado tendo em vista sua

relevância para um entendimento um pouco mais contextualizado de como as redes

>Albert Turpain envia e recebe seu primeiro sinal de rádio, usando o código morse e alcançando 25 metros de amplitude.

1896 >Guglielmo Marconi envia e recebe o primeiro sinal de rádio, com amplitude de 6 quilômetros. No ano seguinte, ele testa um sistema econômico de rádio capaz de cobrir pequenas distâncias.

>George Albert Smith patenteia o kinemacolor, primeiro processo comercial para filmes coloridos.

1909 >Marconi (foto abaixo) e Karl Ferdinand Braun ganham o Prêmio Nobel em reconhecimento às suas contribuições para o desenvolvimento da telegrafia sem fio.

sem fio e as tecnologias audiovisuais foram se desenvolvendo, e como o universo da arte e da comunicação as absorve e/ou as subverte. Retrato incompleto de uma história que começa no final do século XIX, com o surgimento de inventos que vão estabelecer as bases da telefonia, e desdobra-se no início do milênio com o surgimento de interfaces cada vez mais aderentes ao mundo físico.

1902 >Landell de Moura inventa o telefone sem fio.

1910 >É inaugurado entre o Rio de Janeiro e Niterói, o primeiro cabo submarino para ligações nacionais. Nessa época, 75% da base de telefones instalada no Brasil pertencia à empresa Rio de Janeiro and São Paulo Telephone Company. O restante dos aparelhos disponíveis distribuía-se por outras 50 empresas menores.

1919 >Walter Ruttman proclama a arte da “pintura com o tempo”, afirmando a emergência de um novo tipo de artista, que se define entre a pintura e a música. >Hans Richter e Viking Eggeling exploram as composições rítmicas visuais baseadas na noção de contraponto e afirmando o uso da música como modelo para a realização de filmes abstratos.

1921 >Velimir Khlebnikov escreve o ensaio “A rádio do futuro” (The radio of the future), sobre a possível evolução dos meios de comunicação de massa. 1923 >É lançada pela Eastman Kodak a película de 16mm, primeiro suporte da história do audiovisual para produção independente, bem mais acessível que o filme de 35mm, com um conjunto de câmera Cine Kodak e projetor Kodascope.

1932 >Inaugurados circuitos radiotelefônicos do Rio para Buenos Aires, Madri e Nova York. >Agora que o fonógrafo e o telefone são de uso doméstico, Bertolt Brecht (que profetizou os usos do rádio um pouco antes de esses aparelhos se tornarem comuns nos lares europeus e da América do Norte) publica o ensaio “O rádio como aparato comunicacional” (The radio as an apparatus of communication). No texto, ele incita o uso interativo e criativo do rádio, e sugere a importância da audiência emancipada e participante, assim como de formas de comunicação dirigidos a ela.

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1933 >Marinetti e Pino Masata publicam o texto “La radia”. 1935 >A Companhia Telefônica Brasileira (CTB) instala o primeiro telefone público na antiga Galeria Cruzeiro (hoje Ed. Avenida Central, no Rio de Janeiro). Em pouco tempo, o aparelho se torna presente em bares, farmácias e mercearias. São importadas do Canadá cabines telefônicas, que são instaladas nos principais pontos públicos, como rodoviárias, praças e estações de trem. Os “orelhões” surgirão em 1972, e as fichas metálicas serão usadas até 1992.

1938 >Orson Welles transmite A Guerra dos Mundos, uma radionovela baseada na obra de H. G. Wells (The War of the Worlds), sugerindo que a Costa Leste dos EUA estaria sendo invadida por alienígenas, causando pânico generalizado e histeria em massa.

> A AT&T propõe ao Comitê Federal de Comunicação dos EUA que um grande número de frequências do espectro de rádio seja reservada para a telefonia celular, para que se torne possível pesquisas na área. >William Schockley, Walter Brattain e John Bardeen, inventam nos laboratórios Bell, o transistor de junção (pelo qual receberão o Prêmio Nobel de Física em 1956).

1948 >Lucio Fontana diz em seu segundo “Spazialismo” manifesto: “Nós veicularemos formas de expressão artística de uma nova espécie, através do rádio e da televisão”.

>Walter Benjamin escreve, em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica: “por volta de 1900,a reprodução técnica atingiu um padrão que permitiu reproduzir todas as obras de arte e, portanto, causar o mais profundo dos impactos no público”.

1939 >A Companhia Telefônica Brasileira (CTB) chega ao número de 200 mil aparelhos automáticos instalados no Brasil.

1949 >Fontana torna vísivel suas intervenções no espaço, usando apenas imagens brancas (“Concetto spaziale”); mais tarde, em 1953, leva adiante o mesmo conceito, ao desenvolver instalações de luz com tubos de neon.

1933/1936

1938/1947

1948/1954

>É criada pela Kodak a película de 8mm, com custo de produção e janela muito menores que a de 16mm. O 8mm consagra-se como formato usual para produções independentes; o filme de 8mm é vendido em cartuchos e facilita a produção cinematográfica (nos anos 1960 diversos cineastas constituem filmografias com essa linguagem, que ainda hoje é utilizada como um formato audiovisual experimental).

1940 >O ano de 1940 foi bastante significativo para a televisão. Foi feita uma das primeiras transmissões ao vivo de longa duração (por meio de cabo coaxial). A W2XBS (NBC de Nova York) cobre a convenção nacional do partido Republicano por 33 horas, em um período de mais de cinco dias. No mesmo ano é anunciada a invenção da televisão em cores.

1951 >John Cage utiliza o rádio como um instrumento musical na composição “Paisagem imaginária 4” (Imaginary landscape n. 4), dentre outras obras.

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1936

>Nas Olimpíadas de Berlim a televisão faz sua estreia para o grande público, 25 emissoras públicas veiculam a informação.

1947 >Douglas Ring e W. Rae Young, da Bell, propõem células hexagonais para telefones móveis em veículos. Philip Porter, da mesma companhia, propõe que torres celulares sejam posicionadas nas pontas dos hexágonos em vez de no centro, permitindo a transmissão em três direções, para células adjacentes. Essa tecnologia ainda não estava disponível, e as frequências não haviam sido alocadas (o que só acontecerá nos anos 1960).

1952

>São criados até 1952 protótipos artísticos para todos os desenvolvimentos subsequentes das três mídias principais mídias na época: rádio, televisão e cinema.

1954

>É criada a primeira fita de vídeo, manufaturada pela Bing Crosby Entertainment.

1955 >Pager torna-se um produto de comunicação via rádio, usado em hospitais e fábricas. >Lançados primeiros vídeos a cores: BCE Coloer, pela Bing Crosby Entertainment; Simplex, desenvolvido comercialmente pela RCA e usado para a gravação de imagens ao vivo pela NBC; e Quadruplex, desenvolvido pela Ampex Corporation, que torna-se padrão de gravação nos próximos vinte anos.

1957 >Começa a Guerra Fria entre as grande potências da época. EUA e URSS disputam a hegemonia em terra e no espaço, com tecnologias similares no lançamento de foguetes e mísseis no espaço. Os soviéticos lançam ao espaço o primeiro satélite. No mesmo ano, lançam o Sputnik II, com o primeiro ser vivo a deixar a órbita terrestre.

>É introduzido o sistema de micro-ondas e de Discagem Direta a Distância (DDD).

1955/1956

>Na década de 1950 são instalados os sistemas conhecidos como push-to-talk. Usado, entre outros, nos carros de polícia e táxis, utiliza um só canal para transmissão e recepção de voz (mas já permite a forma de comunicação bidirecional, mesmo que de modo pontual). >Lançamento do suporte magnético Videotape, inventado pela Ampex. É o primeiro equipamento de VT, que opera com rolos expostos, gradualmente substituídos por cartuchos, até os anos 1970. O Videotape modifica a forma como vai ser feita a televisão, na medida em que permite o uso de imagens gravadas.

1967 >O portapack, primeiro gravador portátil de video, é lançado pela Sony. O equipamento muda a linguagem do cinema e torna-se um marco da videoarte. 1969 >O primeiro CCD é desenvolvido pelos laboratórios Bell, com o nome de 201ADC. O componente tem capacidade de capturar imagens com resolução de 0,01 megapixels (100 pixels).

>Navender Kapany (indiano naturalizado americano) demonstra o uso da fibra óptica como um meio de transmissão de baixa perda usando sinais luminosos.

1956 >É nacionalizada a Companhia Telefônica Brasileira (CTB), no Rio de Janeiro.

1965 >As primeiras imagens digitais são feitas pela sonda Mariner 4, e registram a superfície de Marte. Com resolução de 0,04 megapixels (400 pixels), levaram quatro dias para chegar à Terra.

>A Guerra Fria expande-se também para a área de telecomunicações, por meio de memorandos e prospectos em que EUA e URSS exploram as consequências estratégicas das tecnologias disponíveis.

1971 >Lançamento do formato U-Matic, pela Sony, para gravação em vídeo. O U-Matic (ou ¾ de polegada) passa a ser o padrão utilizado para a produção de imagens em qualidade “broadcast”.

1957/1964

1965/1973

1960 >O Brasil fabrica peças e equipamentos telefônicos. A tecnologia foi melhorada ao longo da década, com a criação do Improved Mobile Telephone System (IMTS).

1972 >Os orelhões aparecem no Rio de Janeiro, no aniversário da cidade (20 de janeiro). Nesta data, a CTB lança este novo tipo de cabine de telefone público, em fibra de vidro, cor de laranja e formato de concha que é usado até os dias atuais.

>Em1963, os EUA lançam a Arpanet, rede de computadores militares e acadêmicos. >Lançado o Echo, primeiro satélite passivo de comunicação. Ele reflete sinais de rádio de volta para a Terra (em 1963, é colocado em órbita o primeiro satélite de comunicação). >A televisão se torna o veículo de massa hegemônico, o que só mudará nos anos 1990, com a internet.

1964 >A RCA cria o primeiro circuito CMOS (Complementary Metal Oxide Semiconductor), embrião do CCD (Charged Coupled Device), até hoje o responsável pela captura digital de imagens.

1973 >Surge a versão comercial do CCD (ver 1969) feita pela Fairchild Imaging. >Martin Cooper, da Motorola, testa um sistema celular real. O protótipo Dynamic Adaptive Total Area Coverage pesa cerca de 1 kg, tem 25 x 3 x 7 cm, e bateria que acaba depois de 20 minutos de uso. O DynaTAC é lançado comercialmente em 1983.

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1975 >A Kodak experimenta uma câmera que captura imagens usando CCD que digitaliza e grava a informação em uma fita cassete. O sistema recebe os dados da fita, interpola as 100 linhas de captura para 400 linhas e gera um sinal NTSC em um televisor (sem filme para capturar e nem cópia impressa para a visualização das fotos). >A Kodak apresenta o primeiro protótipo de câmera sem filme baseado no CCD da Fairchild Imaging. Ele pesa 4 kg e grava as imagens em uma fita cassete.

>Kit Galloway e Sherry Rabinowitz realizam uma performance em telepresença, composta interativamente por imagens transmitidas via satélite. O projeto Satellite Arts Projets foi feito em colaboração com a agência espacial americana NASA. Trata-se de uma performance entre dançarinos de Maryland e Califórnia (EUA). O público vê os dois dançando juntos, apesar de estarem em lugares diferentes. Suas coreografias são transmitidas de um lugar a outro, e mixadas em tempo real.

1976 >A Fairchild lança a primeira câmera sem filme para uso comercial. A MV-101 é um experimento da Universidade de Calgary (Canadá), que obtém o status de câmera digital por ser o primeiro modelo a utilizar um microcomputador, o Zilog Mcz1/25, para processar as imagens capturadas. 12

>Surge a primeira geração de telefonia móvel (1G), com os sistemas NMT e AMPS, que utilizam a modulação analógica de sinais em uma portadora de radiofrequência, e opera sobre redes com tecnologia de comutação de circuito. >Por meio de satélites, Kit Galloway e Sherry Rabinowitz criam Hole in Space, dispositivo com câmeras de vídeo pelo qual o público se comunica entre Nova York e Los Angeles. >Robert Adrian, da ARTBOX, utiliza o I.P. Sharp (“caixa postal” eletrônica, depois chamada de ARTEX). Foi o primeiro veículo que permitiu a artistas realizarem (à distância) intercâmbio de informações por meio de sistemas de telecomunicação. >Primeiro contato via fax entre artistas no Brasil, realizado por Paulo Bruscky, em Recife, e Roberto Sandoval, em São Paulo.

1975/1977

1979/1980

1981

1977 >A AT&T Bell Labs testa em Chicago um protótipo de sistema de telefonia celular. Com dez antenas, constitui uma rede que abrange área de aproximadamente 34 mil quilômetros quadrados.

>É criado o laserdisk, pela LaserVision. Apesar de ter revolucionado os formatos de armazenamento audiovisual, foi uma das várias mídias que teve um curto período de existência.

>Roy Ascott realiza seu primeiro projeto de telemática, o Terminal Consciousness, entre a Inglaterra e os Estados Unidos; é o primeiro projeto de teleconferência a utilizar o sistema interativo informatizado.

>Com a intenção de fazer a conexão entre artistas ao redor do mundo, através de meios eletrônicos, Willoughby Sharp, Liza Bear e Keith Sonnier criam em Nova York o Send/Receive Satellite Network, juntamente com uma rede de artistas em São Francisco. São produzidas 15 horas de transmissão entre as duas cidades.

1979 >O Japão cria a primeira rede de telefonia celular, mas o sistema só será ativado, nos EUA, em 1983.

1981 > Lançamento da primeira câmera digital comercial, a Mavica, criada pela Sony. Ela captura imagens de 0,3 megapixels (300.000 pixels). A Mavica armazena até cinquenta fotos em sua memória interna (os Mavipaks, disquetes de 2 polegadas percursores dos disquetes de 3 ½ polegadas).

>Douglas Davis, em colaboração com Nam June Paik e Joseph Beuys, realiza, na inauguração da Documenta 6, em Kassel (Alemanha), programa de televisão Satellite Telecast. A intervenção criada por Davis foi transmitida ao vivo, via satélite, para mais de trinta países.

1980 >A Arpanet começa a ser comercializada e passa a se chamar internet, tornando-se rapidamente o principal meio de comunicação contemporâneo.

>Tom Klinkowstein, em Amsterdam, e Robert Adrian, em Viena, realizam a Telecommunications Performance via fac-simile. Depois do intercâmbio de imagens previsto, o espaço é aberto para o público, que pode participar com o envio de textos, desenhos e fotos polaroids.

1982

>Telefonmusik é um evento que conecta a BLIX (Robert Adrian e Helmut Mark), em Viena, Rainald Schumacher, em Berlim, e Artpool (J. Galantai), em Budapeste. >Em São Paulo, Julio Plaza coordena o Arte pelo Telefone, no Museu da Imagem e do Som (MIS). O projeto, explora as possibilidades criativas do videotexto, então a forma mais sofisticada de transmitir dados. Participam Carmela Gross, Lenora de Barros, Leon Ferrari, Mario Ramiro, Omar Khouri, Paulo Miranda, Paulo Leminski, Régis Bonvicino e Roberto Sandoval.

1982

1983 >A Motorola lança o telefone portátil, inaugurando a primeira geração de celulares (1G). O telefone celular, que havia surgido na década de 1970, só agora começa a ser comercializado. Surge também a primeira versão de acesso à internet, chamada WAP (Wireless Application Protocol). O WAP surge como um protocolo de comunicação de dados para redes sem fio entre os dispositivos móveis.

>O Electronic Cafe International (Communicions Access for Everybody), rede de criação interativa e de comunicação onde os pontos de acesso são terminais que utilizam vídeo, informática e comunicações, é o primeiro protótipo de um projeto homônimo de Kit Galloway e Sherry Rabinowitz. Mais tarde se tornará um espaço permanente em Santa Monica (Califórnia), onde eles desenvolverão vários projetos.

>É inaugurado pela AT&T o AMPS Advanced Mobile Phone Service, sistema de telefonia móvel que opera na geração 1G, que torna-se o formato principal de telefonia móvel até meados de 2000.

>A Sony lança o formato 8mm (Hi8), para substituir o VHS e o UMatic. Alguns anos depois, ressuscita o sistema de transporte Beta e cria o Betacam, com o propósito de substituir o U-Matic. O Betacam traz um surpreendente avanço na fabricação de fitas, de partículas metálicas, que adicionam o conceito de Performance Superior (SP) nos produtos do mercado, mais notadamente o Betacam-SP.

>Roy Ascott realiza La Plissure du Texte, um recital coletivo por intermédio de telescriptores, com participantes de diversas origens, os quais construíram um texto via IPSA.

1983/1984

1985

>O projeto de Nam June Paik, Good Morning Mr. Orwell (homenagem a 1984, de George Orwell), tem transmissão interativa via satélite entre Nova York – WNET- e Paris – FR3.

1985 >A exposição Arte: Novos Meios/Multimeios – Brasil 70/80 (São Paulo) reúne projetos como Fac-Similarte, de Paulo Bruscky e Roberto Sandoval, e Arte/Videotexto, de Julio Plaza, com a participação de Alex Flemming, Alice Ruiz, Augusto de Campos, Carmela Gross, Leon Ferrari, Lenora de Barros, M. José Palo, Lucia Santaella, Mônica Costa, Nina Moraes, Omar Khouri, Paulo Leminski e Paulo Miranda.

>O formato VHS-C é adaptado para o uso em câmeras compactas. Sua qualidade é igual à do VHS, e funciona em vídeos domésticos. >O uso crescente do U-Matic como equipamento de vídeo profissional reduz os registros em 16mm. >Projeto de comunicação interativa de Fred Forest, La Bourse de l’Imaginaire, no Centre Georges Pompidou (Paris), utilizando telemática, televisão, rádio e telefone. >Intercâmbio de imagens artísticas por slow-scan entre Paris e várias cidades dos EUA, organizado por Don Foresta para a Bienal de Paris.

1984

>Durante a Olimpíada de Los Angeles, a Canon utiliza seu protótipo de câmera de vídeo estático (em parceria com o jornal Yomiuri Shimbum) para transmitir para o Japão, via telefone, fotos de 0,4 megapixels. As imagens levam meia hora para serem enviadas, enquanto os outros jornais dependiam de aviões para levar os filmes.

>Roy Ascott concebe, durante a exposição Les Immatériaux, no Centre Georges Pompidou, Organe et Fonction d’Alice au Pays des Merveilles, um videotexto no Minitel, e Plissure du Texte, parte do programa do Art Access. >A Sony lança o Video8, fita pequena para competir com a VHS-C compacta, com qualidade equivalente ao VHS e ao Betamax. Em poucos anos, torna-se obsoleto.

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1986 >Atualização da Betacam para Betacam-SP. Esse novo formato se torna o padrão para veiculação de imagens de vídeo e TV com qualidade “broadcast”.

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>Mit Mitropoulos apresenta, na Bienal Mediterrânea (Grécia), Line of the Horizon. O projeto de arte geopolítica consiste na criação de uma rede com 27 nós, para a qual os participantes enviam representações de suas respectivas linhas de horizonte, criando um horizonte conceitual de escala global.

> A Sony lança o primeiro formato de vídeo digital, conhecido como D1. Nele, o vídeo era capturado sem compressão. Por isso, o arquivo resultante exigia grande performance dos equipamentos existentes na época.

>Primeira transmissão com slow-scan no Brasil: o Sky Art Conference, entre o CAVS (Center for Advanced Visuel Studies, coordenado por Otto Piene) e a ECA (Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, coordenada por José Wagner Garcia). Participam vários artistas americanos e brasileiros, com a colaboração de Joe Davis.

>A Panasonic lança o MII para competir com a Betacam-SP. Tecnicamente similar ao concorrente, o formato usa fitas de metal para gravar vídeo composto.

>Andreas Raab concebe o evento fax 40000, e Sandro Dernini e Franco Meloni produzem Il Serponte de Pietra para celebrar o 100° aniversário da descoberta do eletromagnetismo, por Nicolas Tesla, nas redes I.P. Sharp, Bitnet and EARN.

1988 >Surge a Radiolinja, primeira rede de GSM (Sistema Global para Comunicações Móveis). >A Sony lança as Mavicas C1 e A10 Sound Mavica, com captura de áudio, tornando a tecnologia digital mais acessível ao consumidor.

1989 >Artur Matuck e Paulo Laurentiz coordenam o Faxarte I, um intercâmbio entre a ECA (USP) e o Instituto de Artes (Unicamp). No mesmo ano acontece o FaxArte II. Coordenado por Artur Matuck, Shirley Miki e Gilbertto Prado, o projeto reúne artisas como Anna Barros, Lucia Fonseca, Marco do Valle, Milton Sogabe, Paulo Laurentiz, Rejane Cantoni e Regina Silveira.

>Mario Ramiro, em São Paulo, e Eduardo Kac, no Rio de Janeiro, estabelecem um diálogo artístico usando o fax.

>Roy Ascott, com a colaboração de Peter Appleton, Mathias Fuchs, Robert Pepperell e Miles Visman, concebe o projeto Aspects of Gaia, no Ars Electronica. Três continentes em rede, em que artistas enviam imagens digitais, textos e sons, gerando uma instalação pública interativa.

1987 >Stéphan Barron produz no Orient Express, 25 fotos polaroids por hora durante viagem de trem de Budapeste a Paris e as envia por modem.

>Lançamento da D2, uma alternativa mais acessível para a fita D1; ela codifica o vídeo digitalmente e suporta transmissão experimental em qualidade HD.

>Mit Mitropoulos realiza na Holanda a instalação interativa Face a Face 4, em que duas pessoas se comunicam interativamente por meio de monitores de televisão.

1986

1987

1988

>Roy Ascott, Don Foresta, Tom Sherman e Tomaso Trini organizam o Planetary Network and Laboratory Ubiqua, e Maria Grazia Mattei coordena as transmissões via fax do projeto Daily News, na Bienal de Veneza. Mais de cem artistas de três continentes interagem em rede de videotexto, slow-scan e fax.

>Lançado o S-VHS, versão compacta que logo fica obsoleta.

>O Bras-de-fer Transatlantique, de Mario Costa e Derrick de Kerckhove, é implementado entre Paris e Toronto. O braço mecânico ativado por computador e modem transmite a sensação da pressão exercida.

>Surgem equipamentos mais portáteis, como o Hi-8. São formatos que se consolidam rápido, pois se tornam mais acessíveis a artistas e pequenos produtores, democratizando a produção. >Hank Bull produz, durante a Documenta 8, uma teleconferência, com participantes do Banff Centre for the Performing Arts (Banff), Massachusetts College of Arts, The Western Front (British Columbia, Vancouver), Carnegie-Mellon University (Pittsburgh) e Electronic Cafe (Nova York).

>Primeiro cabo transatlântico de fibra óptica entre EUA e Europa. >O evento Intercities: São Paulo/ Pittsburgh, realizado pelo IPAT (Instituto de Pesquisas em Arte e Tecnologia, coordenado por Artur Matuck, em colaboração com Paulo Laurentiz, em São Paulo) e o DAX (Digital Art Exchange, Universidade de Carnegie-Mellon, coordenado por Bruce Breland, em Pittsburgh), promove intercâmbio de imagens via slow-scan e tem a participação dentre outros, do projeto Still Life/ Alive de Carlos Fadon Vicente.

1989/1990 >Luiz Monforte organiza, na XX Bienal de São Paulo, o I Studio Internacional de Electrografia. >Surge o D1, sistema que opera com largura de banda integral em componente digital, desenvolvido pela BTS. Até hoje o D1 é um formato de vídeo de alta qualidade. Em seguida, a Sony e a Ampex desenvolvem o D2, sistema de custo mais baixo, em composto digital.

1990

>O Rio de Janeiro é a primeira cidade brasileira a utilizar um sistema de celular real. >Sadie Benning, de 15 anos, realiza os vídeos If Every Girl Had a Diary e Jollies, sobre sua descoberta sexual. Gravados com uma câmera de brinquedo Fisher-Price PXL2000, são os precursores dos videoblogs.

>Em Video Cabines São Caixas Pretas, Sandra Kogut constrói cabines montadas em espaços públicos no Rio de Janeiro, para gravações em vídeo nas quais as pessoas podiam fazer o que quisessem diante da câmera. A mesma estratégia atinge dimensão quase global com cabines em Tóquio, Paris, Nova York, Dakar e Moscou. Essas imagens são inserida em Parabolic people (imagem abaixo). No vídeo, a artista usa colagem e superposição simultânea de fragmentos de imagens para fazer um ensaio antropológico sobre as formas de comunicação planetária permitidas pelas redes de televisão.

>As câmeras digitais se tornam populares. O modelo Dycam I tira fotos em preto e branco (com 320 x 240 pixels), e armazena até 32 imagens em 1 MB de memória. A Kodak lança os DCS (Digital Camera System), inicialmente para câmeras Nikon, com disco rígido. O modelo DCS-200, em seis variações, tem resolução de captura de 1,54 megapixel, quatro vezes mais que as câmeras existentes na época. >A Moving Picture Experts Group cria o MPEG Audio Layer III, formato de áudio conhecido pela sigla MP3 que vai mudar os padrões de distribuição on-line de som. >A US National Science Foundation nomeia a NSI para administrar os domínios .com, .net e .org. >O primeiro sistema de telefonia móvel celular, AMPS, é adotado no Rio de Janeiro,

1991

1992/1993

>Surge a segunda geração de celulares (2G), que implementa várias tecnologias de transmissão. O FDMA é usado para a divisão da faixa de frequência em pequenos blocos, e sua utilização é feita com a adoção de duas tecnologias de acesso digital: TDMA (Time Division Multiple Access) e CDMA (Code Division Multiple Access). FDMA é uma tecnologia air interface analógica, enquanto TDMA e CDMA são digitais. Serviços 2G “puros” oferecem taxa de transmissão de dados de até 14 Kbps.

1992 >A Nokia lança seu primeiro celular GSM, o 1011.

1991 >Os EUA vendem mais de 4 bilhões de videocassetes. >Os EUA têm 10 milhões de assinantes de telefones celulares. >Jean Armour Polly cunha a frase “surfando na net”.

>O serviço de mensagens de texto SMS (Short Message Service) é incorporado ao telefone móvel. Em português, o recurso torna-se popular com o nome de “torpedo”.

1993

> A Toshiba cria o DVD.

>Kodak e Apple lançam a primeira câmera digital still image.

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1994 >A Nokia vende 20 milhões de unidades do modelo 2100. >Primeiro anúncio na World Wide Web (www), para a revista Wired. >A Olympus lança a Deltis VC-1100, câmera com um sistema de transmissão de fotos integrado, que permite enviar as imagens por modem, ligado a telefones fixos ou celulares para outras câmeras ou computadores.

>A Ricoh lança a RDC-1, primeira câmera digital a capturar imagens em movimento com som. >Sony, JVC, Panasonic e outros produtores de câmeras de vídeo lançam a fita DV, com a variação menor MiniDv. Esse formato, logo se torna o padrão para a produção de vídeo doméstico e semiprofissional. As fitas MiniDV democratizam a produção audiovisual, facilitando a participação de diretores e jornalistas independentes. >O DVD se torna padrão entre vários fabricantes, com diversos formatos: DVD vídeo, DVD-R, DVDRW etc. Os discos DVD são vulneráveis a arranhões e desgastes.

>A DirecTV é o primeiro serviço de TV digital, nos EUA. >EUA introduzem a TV interativa.

1994/1995

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>A Sony introduz o D5HD, padrão digital 1080i baseado na fita D1. >É criado o browser Netscape.

>Primeira demonstração do Java. >Acontece a primeira venda on-line, feita pela Pizza Hut.

1995

>Os EUA têm 25 milhões de assinantes de telefone celular. >Criação da primeira loja virtual, a Amazon.com. >Surge a TV de tela plana, da Sony. >É lançado o primeiro disco rígido removível, o Zip Drive da Iomega.

1997 >Sancionada pelo presidente da República a Lei Geral das Telecomunicações (LGT nº 9.472), que regulamenta a quebra do monopólio estatal do setor. Essa lei autoriza o governo a privatizar todo o Sistema Telebrás e cria a Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações, que passa a exercer a função de órgão regulador da área.

1998 >Ativação dos primeiros celulares digitais em São Paulo. >A introdução do protocolo de conexão digital IEE1394 (Firewire ou iLink) se torna padrão em computadores Macintosh e nas câmeras de vídeo padrão DV.

>O Brasil disponibiliza o acesso à internet via celular WAP.

>A Hitachi lança a MP-EG1. É a primeira câmera digital a produzir vídeos no formato MPEG. >A sonda espacial Mars Pathfinder envia de Marte imagens para a Terra. É a primeira transmissão de imagens digitais via satélite.

>Surgem sistemas domésticos de edição: os hard drives IDE, mais baratos que os SCSI utilizados em estações Avid e Media100, mudam a forma de se produzir vídeo.

>A JVC lança a Digital-S, fita digital similar à VHS, que suporta a exibição HD digital. Também chamada D-9, é adotada pela emissora Fox como formato de exibição.

>A Sony lança a Cybershot DSC-MD1. É a primeira câmera que grava imagens a laser, usando pequenos discos plásticos como memória. Com eles, é possível armazenar fotos no formato JPEG.

1996

1997

1998/1999

>Acontece na Casa das Rosas, sob a direção de José Roberto Aguilar, Arte Suporte Computador. Com a performance Time Capsule, de Eduardo Kac, a exposição, com curadoria de Lucas Bambozzi, foi transmitida pela TV Bandeirantes e apresenta trabalhos para a internet.

>A JVC lança a D-VHS, fita de padrão digital que aumenta a resolução da fita VHS. O novo modelo suporta 1080p HD. Muitas unidades também suportam a captação via Firewire (IEEE1394).

1996 >Surge o formato DV de fitas para câmeras profissionais DVCam e DVCPRO. Criado pela Sony, torna-se o formato padrão nas câmeras Panasonic. >Mesmo com o advento da tecnologia digital, a película de 35mm continua sendo utilizada com um processo híbrido de composição digital e analógica, a partir da telecinagem e da kinescopia. O sistema digital passa a adotar os 24 quadros por segundo (FPS), buscando maior equivalência com a película. >Um celular de oito gramas é lançado pela Motorola. O StarTAC inaugura a era dos aparelhos mais leves.

>É realizado o Kino Trem, em São Paulo. Parte do Arte/Cidade II (projeto de intervenções urbanas com curadoria de Nelson Brissac), promove por cerca de oito horas diárias uma comunicação bilateral, móvel e ao vivo entre os espaços expositivos e os bairros adjacentes.

2000 >A terceira geração de celulares (3G) é digital, com recursos como UMTS e maior velocidade na transmissão de informações. O 3G começa com o sistema CDMA e evolui com o decorrer do tempo, transformando toda a rede de telefonia para o sistema GSM.

>A Panasonic lança o primeiro DVD player portátil.

1999

>É lançada a câmera Digital8, que usa fitas Hi8; a maioria dos modelos existentes lê os antigos formatos de fitas analógicas Video8 e Hi8. Ela tem as mesmas qualidades da MiniDv (ambas usam o formato DV) e, ainda que não ofereça recursos profissionais, é utilizada para produzir televisão e cinema. O formato Hi8 mudou a estética do vídeo, por causa de sua portabilidade. >Surgem os primeiros videoblogs na web. O pioneiro é Adam Kontras, que criou The Journey.

>A geração 3G é adotada na Europa; a Anatel alinha-se para definir os padrões no Brasil, denominados UMTS (Universal Mobile Telecommunications System). Essa geração é uma rede de comutação de pacotes (e não de circuitos) para acesso wireless. Seu sistema alcança taxas de transmissão de dados de até 2 Mbps. O Brasil ainda não tem rede de telefonia celular 3G; a Anatel hesita, com a infraestrutura e o modelo ainda em aberto.

2000/2001 2001 >Finalização da rede de fibra óptica Emergia, que conecta Estados Unidos e América Latina. >O grupo inglês Blast Theory realiza a primeira performance pública de realidade mista. Usando recurso de realidade aumentada, Can You See me Now? envolve uma combinação de PDAs, dispositivo GPS e redes sem fio. Encenada em Sheffield como parte do projeto Shooting Live Artists, a obra foi o primeiro projeto de mídias locativas a receber o Golden Nica do Festival Ars Electronica.

>A Sony lança o formato MICROMV, com fita do tamanho de uma caixa de fósforos. O software de edição é propriedade exclusiva da empresa, e disponível apenas para Windows (no entanto, programadores adeptos do código aberto criaram uma versão Linux, não mais disponível no mercado). O hardware não é mais produzido, mas as fitas ainda estão à venda. >Patrick Lichty faz a curadoria da exposição [re]distributions, explorando o potencial expressivo de aparelhos como PDAs, pagers e telefones celulares. >Nessa exposição, Giselle Beiguelman apresenta Wop Art, um dos primeiros trabalhos brasileiros concebidos para celular, e explora as possibilidades da tecnologia WAP. >Em [re]distributions, Mark Amerika cria o primeiro e-book para Palm.

2002 >Comercialização do 3G pela operadora japonesa NTT DoCoMo. >Golan Levin apresenta o projeto Dialtones, no Festival Ars Electronica, e Linz. Trata-se de uma telesinfonia executada em tempo real, e produzida pelo som dos celulares do público, orquestrados a partir do tipo de toque e de sua localização na plateia.

2002 >O primeiro celular com câmera fotográfica, o 7650, é lançado pela Nokia. >Com o aumento da capacidade de produção de fotos e vídeos por meio das câmeras portáteis existentes nos aparelhos celulares, tirar fotos passa a ser uma forma de comentar o presente e de socialização (e não apenas um recurso de registro da memória do usuário).

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2003 >Nacho Durán cria um dos primeiros videoblogs da América Latina, com fotos de webcam. >Sony, JVC, Canon e Sharp introduzem o HDV, o primeiro formato acessível de alta definição que usa as mesmas fitas MiniDV. >Hitachi é a única a produzir as câmeras Blu-ray Disc. >O XDCAM é lançado pela Sony. Similar ao Blu-ray, tenta eliminar a fita, substituindo-a por um disco óptico de 23 ou 50 GB.

2004

>É realizado em São Paulo o Life Goes Mobile, como parte do Sonar Sound. Participam duVa, Lucia Koch, Helga Stein, Giselle Beiguelmam, Spetto, Angelo Palumbo e Izo Levin, dentre outros interessados em explorar os celulares para produção criativa e artística.

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2003/2005 >O Flickr, site de armazenamento de fotos é criado pela empresa canadense Luidcorp. >O formato HDV é capaz de gravar até uma hora de HDTV MPEG-2, com qualidade muito próxima da exibição HD, usando fita MiniDV.

2005 >O Flickr é comprado pelo Yahoo, que, através do Videoblogging Group, alcança mais de mil membros. Hoje já aceita vídeos. >A busca da palavra “Microcinema” revela mais de 160 mil resultados nos sites de busca. >Depois de uma estadia em Nova York, dois amigos franceses criam o Dailymotion, com o propósito de postarem seus vídeos de viagem.

2006 >O YouTube é criado e rapidamente se torna o quinto site mais importante da web, com 100 milhões de vídeos assistidos diariamente e 65 mil novos vídeos publicados por dia. >O número de telefones celulares vendidos no mundo chega a 2,6 bilhões. >Surgem os primeiros festivais dedicados à arte em mídias móveis. O arte.mov acontece de 5 a 8 de outubro em Belo Horizonte. Em novembro acontece o Mobilefest em São Paulo.

2007 >O GSM domina o mercado, atingindo uma fatia de 80%.

>A qualidade da internet banda larga no Brasil é considerada uma das piores no mundo, de acordo com a Folha de S.Paulo, e se mostra insuficiente para atender às necessidades dos usuários diante dos recursos da chamada web 2.0. > Registradas no Brasil 100 milhões de câmeras digitais com capacidade de gravar vídeo e áudio.

2009 >É comercializado o protocolo WiFi 802.11N. A transferência de dados torna-se mais rápida. O acesso de laptops e celulares aproxima-se ao dos terminais fixos, e consolida o uso da internet sem fio.

>Surgem celulares multifunções, com câmera para fotos, vídeo, video conferência, Wi-Fi e GPS integrados. Os recursos de uma central multimídia são democratizados.

>Segundo a Anatel, existem mais de 160 milhões de celulares em operação no Brasil. Esse número, associado ao da telefonia fixa (42 milhões), supera o número de habitantes do país.

2007/2008

2009/2010

> A Anatel realiza leilão para o uso das frequências de telefonia celular de terceira geração (3G), tecnologia que permite acesso à banda larga móvel a partir do celular.

2010 >Após processo gradual, a Nokia abre o código de seu sistema operacional, o Symbian. Dessa forma, torna-se possível a todos os usuários modificar ou criar novos recursos para os aparelhos da marca, o que passa a ser gerenciado pela Linux Foundation. O desdobramento, em sintonia com a febre de criação para aplicativos de iPhone e o surgimento do Android, redesenha o cenário das redes móveis, tornando-o mais complexo e, em certa medida, acenando com possibilidades menos dependentes dos protocolos corporativos típicos da telefonia celular.

2008 > Apple lança o iPhone, smartphone com funções de iPod, câmera digital e internet. A transmissão de arquivos bluetooth e gravação de vídeo são bloqueadas pelo fabricante.

A ser continuado.

Fontes: A cronologia acima foi elaborada a partir de inúmeras fontes, mas vale destacar duas cronologias anteriores que foram imprescindíveis para compilar os dados nela reunidos: Cronologia de Experiências Artísticas nas Redes de Telecomunicações, de Gilbertto Prado http://www.cap.eca.usp.br/wawrwt/version/textos/texto04.htm At a distance. Precursors to Art and Activism on the Internet http://www.fondation-langlois.org/html/e/page.php?NumPage=511

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ERA UMA VEZ NA TELA: BREVE INTRODUÇÃO AO AUDIOVISUAL NA ERA DA PORTABILIDADE LUCAS BAMBOZZI, MARCUS BASTOS E RODRIGO MINELLI

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As linguagens audiovisuais têm passado por modificações intensas. A combinação de redes sem fio e aparelhos portáteis alavanca o surgimento de circuitos de produção e distribuição bastante diferentes daqueles em que salas de cinema ou galerias eram o destino mais evidente de filmes, vídeos e outros formatos audiovisuais. Nesse contexto, a prática de “assistir” tornou-se tão íntima quanto a leitura sempre o foi. Sons e imagens em movimento passam a fazer parte do cotidiano individual, intensificando um processo de audiovisualização da cultura que remonta aos anos 1980, com o aparecimento do videocassete e a crescente proliferação de tecnologias mais acessíveis de captura, transmissão e recepção de imagens. Esse processo leva à popularização de aparelhos de TV em espaços públicos, mas também à invasão de bancos, metrôs e universidades por câmeras de vigilância. No estágio atual, telefones celulares, iPods e os chamados sistemas locativos aproximam do corpo dados e imagens antes mais ligados ao espaço da cidade. De forma análoga, a produção individual ganha possibilidades de distribuição nos novos contornos públicos que se formam nas redes. Existem aspectos positivos e negativos nesse processo, no qual a democratização da mídia está próxima da vigilância e do cerceamento de liberdades individuais. No cenário atual, marcado pelo avanço contínuo da portabilidade, os custos para a criação de filmes e vídeos diminuem significativamente. Como resultado, observa-se o incremento de uma produção doméstica considerada por alguns uma

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espécie de “artesanato digital”, conforme o termo cunhado por Richard Barbrook e Pit Schultz em manifesto publicado na lista de discussões Nettime e multiplicado pela web1. São trabalhos que se revelam bastante distintos da formalidade ou dos compromissos de uma produção anterior, na medida em que flertam com uma linguagem vernacular disseminada em escala global e, ao mesmo tempo, rearticulam-se diante das facilidades digitais, que incluem novas formas de indexação, interação e mesmo reedição, disponíveis atualmente em canais de vídeo como YouTube, Vimeo ou Blinkx. “Internet-based amateur video delivery: the users and their requirements”2, de Pekka Isomursu, Mikko Perala, Lassi Tasajärvi e Minna Isomursu, discute como esse circuito doméstico (antes restrito a cenas específicas, como a dos cineclubes) amplia-se a partir do advento dos celulares com câmera de vídeo embutida. Um fenômeno mais eloquente, desse ponto de vista, é o surgimento de circuitos dedicados ao chamado microcinema, em que as tecnologias digitais permitem distribuir trabalhos com perfil diferente do esperado pelo circuito tradicional. Outro aspecto é o uso da internet como mecanismo de memória do audiovisual, em sites como Ubuweb3, que tem uma área totalmente voltada a filmes e vídeos raros, ou Archive.org4, acervo de trabalhos de televisão, filmes educacionais e vídeos independentes, todos em domínio público ou com licenças open source. Mesmo programas alternativos, assinados por realizadores independentes, vêm sendo veiculados para uma vasta audiência, seja por meio de licenças abertas com selos do tipo Creative Commons ou através de torrents em redes peer-to-peer. São formas de distribuição nem sempre autorizadas, mas com modo de disseminação e alcance sem precedentes. Mas a ampla distribuição de material audiovisual, comumente desvinculada do circuito tradicional, não é o aspecto mais surpreendente no universo das chamadas mídias móveis. O uso de players, seja na internet ou em aparelhos portáteis, corresponde a um regime de exibição ainda modelado pela lógica do cinema ou da TV. São telas menores, em que muitas vezes a perda do efeito imersivo da sala 1 BARBROOK, Richard e SCHULTZ, Pit. “The digital artisans manifesto”. http://www.imaginaryfutures. net/2007/04/16/the-digital-artisans-manifesto-by-richard-barbrook-and-pit-schultz/. O texto também foi publicado na lista de discussão Nettime, em e-mail encaminhado por um usuário anônimo, a partir do endereço “nobody@replay.com”. http://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-9705/msg00120.html. 2 ISOMURSU, Pekka; PERALA, Mikko; TASAJÄRVI, Lassi e ISOMURSU, Minna. “Internet-based amateur video delivery: the users and their requirements”. O artigo, de janeiro de 2004, foi publicado originalmente em http:// www.els.fi/publications/HICSSVideoDeliverywtxt.pdf. Atualmente, está disponível em http://search3.computer. org/search/results?action=authorsearch&resultsPerPage=50&queryOption1=DC_CREATOR&sortOrder=descend ing&queryText1=Lassi Tasaj?rvi. 3 O endereço da Ubuweb é http://www.ubuweb.com. O acervo on-line de filmes disponíveis no site está acessível a partir de http://www.ubu.com/film/. 4 O endereço do Archive.org é http://www.archive.org.

Youku, hospedado em http://www.youku.com: este site chinês para publicação de vídeos permite hospedar longa-metragens; o portal é polêmico por manter on-line filmes de diretores famosos e séries de televisão, burlando a lógica de direitos autorais apenas quando veicula produtos não chineses Imagem capturada do Website Youku.com

escura e, hoje em dia, dos home theaters, não é compensada pela facilidade de acesso. Dessa perspectiva, características como ubiquidade e potencial para compartilhamento oferecem as possibilidades mais contundentes para o uso do vídeo em rede. Em “A arte sem fio”, Giselle Beiguelman resume o cerne desse debate: “definir arte wireless como a arte da cultura da mobilidade é correto, mas demasiado genérico, fazendo com que se diluam particularidades e, com isso, a capacidade de diferenciar arte para dispositivos móveis de arte com dispositivos móveis. A diferença não reside na preposição, mas nos formatos e objetivos de proposição. No primeiro caso — arte para dispositivos móveis — a palavra-chave é compartilhamento. No segundo, cibridismo (interconexão entre redes on e off-line)”5. Na cultura em curso, textos, imagens e sons tornam-se ubíquos com o surgimento de aparelhos portáteis, como os PDAs e os cada vez mais turbinados telefones celulares, explosivos em todos os sentidos da palavra. Na forma de gadgets, itens de consumo fashion, pequenas centrais de produção multimídia, como ferramentas de acesso e gerenciamento de informação ou como código, circulam por todo canto, nas mais variadas camadas sociais. Espalham-se próximos ao corpo, ou distribuem-se pelo espaço físico. Nesta publicação, as possibilidades ligadas ao uso expressivo desses aparatos interessam mais do que os demais usos. Os artigos apresentados oferecem 5

BEIGUELMAN, Giselle. “A arte sem fio”, Revista Trópico. http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2525,1.shl.

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diferentes pontos de vista sobre o contexto em que a arte para dispositivos portáteis está inserida, além de compartilhar estudos de caso relevantes e aprofundar-se em temas mais centrais da discussão. A seguir, encontra-se um breve resumo desse universo, que será progressivamente ampliado pelos demais artigos, organizados em quatro partes, tendo como critério a proximidade temática (Parte 1, Cultura Digital: Contexto e Emergência das Redes Móveis; Parte 2, Mídias Locativas: Desdobramentos Sociais e Políticos; Parte 3, Estudos de Caso: Redes em Espaço Urbano). Em 2001, Patrick Lichty faz a curadoria de [re]distributions6 buscando justamente explorar o potencial expressivo de aparelhos como PDAs, pagers e telefones celulares. O projeto reúne o estado de uma arte de nômades digitais, por meio de textos, imagens e vídeos criados para palms, e trabalhos que experimentam as possibilidades de linguagem dos dispositivos de comunicação sem fio. Um dos destaques de [re]distributions é o projeto Dialtones7 (Golan Levin, Gregory Shakar, Scott Gibbons e outros), , uma telesinfonia produzida pelo som dos celulares do público, coreografados a partir de sua localização e do tipo de toque. Essas informações podem ser conhecidas previamente. Levin usou esse conhecimento prévio como base para compor, em tempo real, uma música que inverte as noções de sons públicos e privados. 24

Dialtones foi apresentada pela primeira vez em dois concertos consecutivos, realizados em setembro de 2001, em coprodução com o Ars Electronica. A telesinfonia fratura os limites entre sons públicos e privados, ao transformar ringtones em fragmentos de uma composição executada em tempo real, conforme o artista telefona para a plateia

em música o burburinho de toques muitas vezes percebidos como incômodo, o espetáculo subverte o aviso de praxe: para assistir a Dialtones, recomenda-se ao público manter os aparelhos celulares ligados. Nas palavras do próprio Levin: “Dialtones inverte nosso entendimento de som privado, espaço público, etiqueta eletromagnética, e a fábrica das redes de comunicação que nos conectam”8. Lichty sustenta, no texto de curadoria de [re]distributions9, que a expansão das mídias móveis “em direção a uma cultura mais ampla parece ser uma forma de intervenção por si só”, na medida em que as redes de tecnologias portáteis conduzem a uma cultura da distribuição, como resultado de um desvio “da tela à palma e ao espaço”10. Essa abordagem será desenvolvida pelo próprio autor em “Pensando a cultura nomádica: artes móveis e sociedade”, contextualizada por artigos como “Fantasmagorias, vitrines, infiltrações: ensaio sobre as tecnologias e a cidade”, de Fábio Duarte e Polise De Marchi, e “Cartografias Líquidas”, de Priscila Arantes. Entre os projetos presentes em [re]distributions, está Wop Art11, de Giselle Beiguelman, uma série de poemas criados para celulares com protocolo WAP. O trabalho explora as limitações da experiência on-line nos celulares da época, sugerindo formatos de leitura que emergem da fricção entre redes fixas e móveis. Beiguelman entende que o estado de dispersão criado pelas situações entrópicas em que são usados aparelhos portáteis, como palms e celulares, não é um problema, mas sim um fator a ser levado em conta. Em vez da leitura concentrada da cultura impressa, atualmente surge um formato de fruição distribuído, no qual o entorno é um elemento incluído que, portanto, precisa ser considerado durante a criação de conteúdo para essas mídias. Outro exemplo de trabalho que explora a relação entre redes on e off-line é Node Runner12, game criado por Yury Gitman e Carlos J. Gómez de Llarena. O jogo transforma a cidade de Nova York num campo onde duas equipes devem se logar no maior número possível de nós de internet wireless — os pontos são somados a partir da publicação de fotos no blog do projeto. Node Runner trata o espaço público como interface e ressalta as conexões entre as redes de informação e o ambiente urbano. Buscando ligações similares, entre espaços virtuais e reais, na configuração de uma espécie de ambiente híbrido, o grupo britânico Blast Theory criou o Can You

Golan Levin, Gregory Shakar, Scott Gibbons, et al.

Dialtones propõe investigar de que forma as redes possibilitam a geração de padrões musicais inesperados e fenômenos sonoros imprevistos. Ao transformar 6 7

[re]distributions está disponível em http://www.voyd.com/ia. Mais informações sobre Dialtones no site de Golan Levin: http://www.flong.com/projects/telesymphony/.

8 Cf. [re]distributions, em http://www.voyd.com/ia/wirelesslevin.htm. 9 Cf. “[re]distributions. Curator’s Statement”, em http://www.voyd.com/ia/curator1.htm. 10 Lichty nos amplia essa visão no artigo “Towards a Culture of Ubiquity”, em link a partir da apresentação de [re]distributions: http://www.voyd.com/ia/essaylichty.htm. 11 O site de wopart é http://www.desvirtual.com/Wop Art. 12 Mais informações sobre o game Node Runner na página do YouTube de Yuri Gitman (http://www.youtube. com/user/YuryGitman#play/all/uploads-all/2/7tz7sVLgoEA) e no site da med 44, em http://www.med44.com/ pages/noderunner.html.

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See Me Now?13. Nesse jogo, desenvolvido em colaboração com o Mixed Reality Lab da Universidade de Nottingham, jogadores on-line participam da ação, que se passa tanto no espaço físico como num mapa virtual da cidade onde a partida acontece. A posição relativa dos jogadores é rastreada por satélites e as informações são enviadas para computadores de mão, conectados a unidades GPS que permitem a localização do adversário. O texto “Em busca de uma performance de realidade mista do tamanho da cidade” detalha as interfaces criadas pelo grupo inglês durante o desenvolvimento deste que é um dos projetos mais celebrados na área da arte com mídias móveis. CYSMK? foi apresentado em versão customizada para o bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte (MG), em 2008, na terceira edição do Vivo arte.mov — Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis. Uma tendência correlata é o mapeamento urbano por meio de dispositivos de localização geográfica. Exemplo disso são os WikiMaps, mapas interativos de cidades, como os de Linz, na Áustria14, e de Madri, na Espanha15. Posteriormente, possibilidades de mapeamento como as sugeridas pelos WikiMaps foram ampliadas por ferramentas como o Google Earth (em que se pese o fato de os WikiMaps serem ferramentas comunitárias, ao contrário do software da Google, que é proprietário). Em mapas criados nesse contexto, é possível inserir textos, imagens e sons, transformando a cartografia num muro de recados distribuídos e possibilitando a inserção de experiências e comentários individualizados, não necessariamente “oficiais”. Por isso, subvertem a lógica dos mapas convencionais. Esse tipo de tecnologia foi usado em ações que se tornaram referência para o uso atual, como a promovida em Manchester, usando como plataforma o sistema de código aberto OpenStreetMap (OSM)16. Em um fim de semana, nos dias de 13 e 14 de maio de 2006, mais de 40 pessoas reuniram-se para coletar informações por meio de receptores GPS — público expressivo naquele período, considerando-se que se tratava de uma tecnologia que se disseminou apenas nos últimos anos. Ao construir paisagens de texto, imagem e som, ou desenhos baseados em rastros de dados, projetos como os descritos indicam algumas das possibilidades narrativas e formas de visualização possíveis com sistemas de informação geográfica. Essa tendência estabelece uma proximidade com práticas da geografia e da geopolítica, conforme explorado em alguns artigos deste livro (especialmente no texto de Trevor Paglen, “Geografia experimental: da produção cultural à 13 A documentação de Can You See Me Know? está disponível em http://www.blasttheory.co.uk/bt/ work_cysmn.html. 14 O endereço do WikiMap de Linz é http://wikimap.hotspotlinz.at/de/index.php. 15 O endereço do WikiMap de Madri é http://www.wikimap.es. 16 O endereço do Open Street Map é http://wiki.openstreetmap.org/index.php/Mapchester.

Imagem Retirada da Wikipedia

Rastros de GPS da cidade de Manchester, apelidada de Madchester quando o Hacienda mostrou ao mundo o som do Happy Mondays, e agora conhecida como Mapchester, devido à ações como o fim-de-semana de mapeamento coletivo organizado por Universidades e institutos locais em maio de 2006, durante o Festival Futuresonic.. (fonte: http://wiki.openstreetmap.org/index.php/Mapchester#OSM_is_mapping_Manchester)

produção do espaço”, e no artigo de Ryan Griffis, “Por uma arte contra a cartografia da vida cotidiana”). Segundo Brett Stalbaum, os artistas da informação que trabalham com sistemas de localização geográfica estão diante do desafio de entender de que forma a paisagem pode ser vista a partir de uma lógica de bancos de dados. O desafio é produzir sentido a partir do conjunto de informações reunidas17. A lógica é sempre a mesma, e foi resumida por Patrick Lichty no texto curatorial de [re]distributions: a importância do que é produzido para dispositivos móveis é relativa, em comparação aos efeitos desses dispositivos na cultura como um todo, que se torna wireless. Nesse contexto de uma cultura sem fio, as redes ganham capilaridade, tornam-se potencialmente mais distribuídas e têm seu alcance multiplicado, o que implica tanto formas alternativas de produzir e circular textos, imagens e sons, como métodos de vigilância cada vez mais intrusivos. Mas a tecnologia celular parece sempre caminhar em sentidos ambíguos, nem sempre complementares. Ao 17 STALBAUM, Brett. “Database logic(s) and landscape art”. http://www.c5corp.com/research/databaselogic. shtml.

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mesmo tempo em que dão nova amplitude aos processos de distribuição de conteúdo, os dispositivos móveis incrementam mecanismos de localização e restringem privacidades — assunto abordado sob vários pontos de vista nesta publicação. Em um momento em que as redes Wi-Fi de banda larga e as possibilidades da rede 3G se ampliam e permitem trocar vídeos com relativa facilidade, tal fenômeno preocupa executivos das indústrias fonográfica e cinematográfica — no que diz respeito a direitos autorais —, os quais buscam controlar seus negócios nesses novos setores. Trata-se de um fenômeno mais complexo do que se supõe. Como exposto nas premissas do início deste texto, tem-se um processo de negociação que incorre em aspectos negativos e positivos. Se em toda negociação há perdas ou ganhos, a distribuição de conteúdo pode ser vista como moeda de troca da vez, mesmo que o material oferecido não seja sempre desejado, mas segue marcado pela perspectiva de fruição de serviços ou customização de produtos adquiridos e inseridos na lógica do capital. No entanto, a noção de consumo assume outras nuances, e elementos complicadores surgem a cada passo. Para Lassi Tasajärvi, por exemplo, um “número crescente de amadores do vídeo opera como ‘atores híbridos’: eles não estão satisfeitos com um único papel, mas atuam como consumidor, artista, desenvolvedor, usuário e criador de conteúdo em vários sites”. Essa facilidade para elaborar vídeos estimula a repensar a fronteira entre o amador e o profissional, e discutir os parâmetros para a produção audiovisual em um contexto de câmeras acessíveis e telas de todos os tamanhos espalhadas pela cidade (e, muitas vezes, conectadas entre si). Entre os aspectos supostamente “saudáveis”, estaria a forma como essas ações descentralizadas perturbam os circuitos de distribuição tradicionais (como já foi sugerido no início deste texto). Videoblogs18 e serviços para publicação e compartilhamento de audiovisual (como sites que seguem a linha do YouTube), bem como os vodcasts19, são bons exemplos. Ainda que muitas vezes tecnologias desse tipo funcionem apenas como cabide de arquivos de vídeo, o simples fato de oferecerem alternativas ao modelo fechado das redes de TV já é relevante. Por outro lado, “uma das vozes mais criativas da emergente vlogosfera, o brasileiro radicado nos EUA, Rick Silva, adverte que ‘os vlogues não são uma forma de integrar web e TV’, mas uma nova linha de ação de performance em rede”20. Essa perspectiva está em sintonia com projetos como o Moblog, do Preemptive Media, e outras vertentes que costumam resvalar em um uso 18 Ver também “O grande vídeo“, artigo de Marcus Bastos, disponível em http://p.php.uol.com.br/tropico/ html/textos/2639,1.shl. 19 Cf. http://vodcasts.tv. 20 Cf. BASTOS, Marcus. Op. cit.

ativista dos aparelhos portáteis (como será discutido em textos como “Vigilante canalha! Novas manifestações da vigilância de dados no início do século vinte e um”, do próprio Preemptive Media, e “45 revoluções por minuto (história da mídia em alta velocidade)”, de Armin Medosch). Resta, mesmo assim, o desafio de produzir conteúdo adequado para ser transmitido em tempo real, um problema que persiste mesmo em conexões 3G ou de banda larga — que ainda não se mostra tão larga no Brasil em termos de velocidade fornecida, de fato, ao usuário, principalmente considerando-se o custo-benefício conforme o usuário se distancia dos grandes centros. No caso da distribuição para celular, permanece o desafio de produzir para telas pequenas, uma vez que nos dispositivos portáteis e sem fio esse tamanho deve se manter pequeno por um bom tempo (e essa é, talvez, uma das poucas propriedades relativamente estáveis nesse meio). Assim, somam-se outras características: ao invés da sala escura e contemplativa, o vídeo enfrenta lugares claros, ruidosos, entrópicos. Onde havia concentração, surge o estilhaçamento. Por um lado fica evidente que os celulares ainda são, em parte, dispositivos de comunicação, em que pesem os recursos cada vez mais sofisticados, que os aproximam de plataformas portáteis para edição e distribuição de áudio e vídeo. Esse aspecto reforça a perspectiva de fruição não exclusiva das mídias móveis atuais, já experimentada, por exemplo, em videoinstalações e em outras situações de estilhaçamento do vídeo em suportes variados (uso de projeções difusas, TVs portáteis e diferentes condições de baixa definição), que já haviam rompido com o formato estático da sala de exibição e/ou com a geometria asséptica do cubo branco. Por outro lado, com a consolidação gradual das tecnologias 3G e a popularização dos smartphones e de aparelhos mais robustos, com capacidade efetivamente multimídia, o uso do celular como plataforma para navegação na internet torna-se recorrente. Em alguns países (caso do Brasil e de Angola), esse fator representa, aliás, uma possibilidade de oferecer acesso a camadas da população que dificilmente conseguiriam conectar-se à rede por meio de computadores pessoais. O preço do celular é mais acessível. E o Brasil nunca superou por completo problemas de infraestrutura de telefonia e algumas defasagens tecnológicas decorrentes das reservas de mercado instituídas no país durante os anos 1980. Ironicamente, em vez de políticas públicas, é o sucesso de um produto como o telefone celular que parece equalizar um pouco esse problema. A perspectiva de deslocamento seria mais um aspecto relevante das mídias móveis. Esse estímulo ou promessa ocorre porque o “telefone celular não é ‘apenas’ um dispositivo de comunicação”, conforme observa Drew Hemment em

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artigo de 200321. Seu uso não se restringe às conversas em trânsito para as quais foram criados. Por isso, é ingênuo pensar as mídias móveis fora do contexto mais amplo de uma cultura de rede que gradualmente se capilariza. Um dos principais debates, nesse âmbito, diz respeito ao surgimento de formas de rastreamento e vigilância cada vez mais sofisticadas. Em vez de tecnologias antipáticas, como as câmeras de circuito interno e os radares dos anos 1980, o rastreamento de informações se dá, atualmente, por meio de aparelhos “amigáveis”, ou em processos prosaicos, como na assinatura de um determinado serviço on-line ou na compra de um livro ou CD com etiqueta RFID. O próprio Hemment coloca em pauta uma das discussões comuns nesse universo: “O que acontece quando se torna fácil para todo mundo monitorar todo mundo, quando a vigilância pode ser afetada por tecnologias de balcão, no contexto de redes peer-to-peer que não podem ser roteadas por um ponto central?” (ver “Apontamentos sobre as mídias locativas”, artigo que abre este volume). Para ensejar respostas, faz-se necessária uma melhor compreensão dos usos imprevistos de handhelds, receptores GPS e telefones celulares. Vários dos trabalhos apresentados e discutidos neste livro exemplificam formas de driblar as definições estritas de uso previstas para essas tecnologias por parte de fabricantes e operadoras. São projetos que em algum momento, no contexto em que foram criados, sugeriram ao mundo um campo de tensão entre localização e deslocamento, entre mobilidade e mobilização, inserindo pelas frestas das estratégias de consumo algumas possibilidades expressivas dissonantes. Cabe ao leitor dos textos a seguir decidir se esse suposto otimismo, presente no discurso de alguns realizadores relevantes para o cenário da produção de audiovisual e arte com mídias móveis, reflete, de fato, os rumos dessas tecnologias, ou se, como acreditam outros, todo e qualquer tipo de uso desses aparelhos está sob suspeita de, em última instância, construir mundos novos nada admiráveis. Os artigos foram selecionados por sua importância no debate sobre a forma como aparelhos portáteis com recursos multimídia e de conectividade, cada vez mais sofisticados, estão modificando a cultura e a sociedade. Por se tratar de um universo que muda com grande velocidade, alguns dos temas abordados precisam ser entendidos no contexto original de publicação. Um exemplo é “Vigilante canalha!”, do Preemptive Media. O texto discute o problema do rastreamento de informações por meio de tecnologias AIDC (ver glossário) e aponta desdobramentos como o RFID, ainda em implementação quando o artigo foi 21 O texto de Hemment está disponível em http://www.drewhemment.com/2003/mobile_phones_and_surveillance.html.

elaborado. Hoje, as práticas descritas acontecem numa paisagem bem mais intrincada, e a discussão ganhou outras nuances, conforme torna-se mais tangível a chamada “internet das coisas”, conjunto de dispositivos físicos, geralmente miniaturizados, como sensores, chips de identificação e nanotecnologia, comandados a partir de redes de computação ubíquas. Os problemas apresentados persistem, e os questionamentos propostos perduram para além da eventual obsolescência ou sucesso das tecnologias abordadas. Um raciocínio semelhante pode ser aplicado aos demais artigos deste livro. São textos cuja capacidade de imaginar futuros não é diminuída pela rapidez com que as tecnologias de que tratam são eventualmente substituídas. O público principal que este livro almeja está no Brasil (e na América Latina): ele terá a oportunidade de se familiarizar, em seu próprio idioma, com debates importantes para o entendimento da cultura contemporânea. Para esse público, também foram preparados uma cronologia e um glossário, que permitem complementar a leitura dos textos com definições de termos especializados e informações históricas capazes de balizar uma compreensão mais ampla dos processos que levaram ao surgimento da arte em mídias móveis. Esse redesenho constante da rede é um aspecto que foi levado em consideração na preparação deste livro. Sempre que possível, as notas que fazem referência a endereços de internet procuram remeter não apenas ao site em que um texto foi originalmente publicado, mas também a uma fonte alternativa de consulta. A volatilidade é uma característica notória da internet. Um livro que trata do universo das redes não pode ser ingênuo ao acreditar que será capaz de solucionar, no tempo expandido da preparação de um volume impresso, a tendência a eventuais mudanças de endereços ou o desaparecimento de textos que algum dia estiveram na rede. Mas, como forma de lidar com a questão, ao menos busca ampliar as fontes de consulta disponíveis, tentando oferecer a seu leitor mais de uma alternativa, na esperança de que ele possa partir do livro para a rede sem os tropeços que fazem parte desse universo em constante reorganização.

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dias locativas

Mídias locativas

spaço público

Arte e espaço público

RTE 2

Portabilidade

Redes sem fio

TÁTEIS

PARTE 1 Portabilidade

Redes sem fio

CULTURA DIGITAL: CONTEXTO E EMERGÊNCIA DAS REDES MÓVEIS

álise, reflexão

Conceito, contexto, análise, reflexão

e dispositivos

Subversão de dispositivos

Site-specific

Site-specific

, artes, mídia

Interconexções_cinema, arquitetura, geografia, artes, mídia


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35 PENSANDO A CULTURA NOMÁDICA: ARTES MÓVEIS E SOCIEDADE PATRICK LICHTY

Desde a invenção das primeiras telemídias, como o semáforo e o heliógrafo, o impacto das tecnologias de comunicação sobre a arte e a cultura foi profundo. Mídias remotas figuram de maneira proeminente no trabalho das vanguardas do início do XX, incluindo o dadá e o surrealismo, assim como o telégrafo, que é “morto por um tiro” na peça Casamento na Torre Eiffel1, de Cocteau. Durante o século XX, de Russolo a Rauschenberg, as tecnologias e mídias desempenham um grande papel na arte contemporânea ocidental. E, à medida que expandimos do desktop aos domínios das artes móveis, locativas e integradas, a evolução da telemídia continua a se refletir nas formas emergentes da arte para dispositivos móveis e da arte locativa. Embora nada me desse mais prazer do que entrar numa exposição histórica da genealogia da arte locativa e da arte para dispositivos móveis, essa discussão provavelmente seria ampla o suficiente para 1 COCTEAU, Jean. “Casamento na Torre Eiffel” (1921). In: A máquina infernal: peça em quatro atos. Petrópolis: Vozes, 1967.

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preencher um livro. Portanto, este ensaio focará a relação entre a sociedade e a cultura móvel, pelo exame de algumas de suas formas artísticas. Ao levar em conta a natureza da malha multicamadas de redes que cria a sociedade móvel, retorno aos escritos de Deleuze, McLuhan e Virilio, e ao trabalho de Duchamp. A partir deles, acredito que a (inter-)rede rizomática expandiu-se em uma malha de múltiplas camadas que consiste nas comunicações na aldeia global. Esta simultaneamente coloca espaços interpessoais em colapso, possivelmente nos pondo em uma armadilha resultante do nível crescente de disponibilidade através das telecomunicações. Em soma aos autores citados, invoco o pensamento de Vilém Flusser2 ao assumir um tom mais controverso em minha escrita e, esperando que este texto receba sua aprovação, peço desculpas ao leitor que anseia por uma tese mais (ou menos) formal.

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DELEUZE: REDES & RIZOMAS Em “Rhizome to tree”3, Gilles Deleuze escreve sobre o “achatamento” do rizoma como uma metáfora da natureza massivamente interconectada da informação na era da internet. A metáfora também descreve estruturas sociais on-line e os primeiros modos de distribuição de conteúdo na rede. No rizoma, as formas societais profundas, incluindo informação, literatura etc., sacrificam qualquer profundidade de reflexão em favor do engajamento superficial da “net”. É possível argumentar que, talvez até o final dos anos 1990, a “net art” ainda estava em seus estágios iniciais, lidando com os gestos e jogos sociais possíveis nesse meio emergente. Até então, ela não tinha o construto de interações, obras de arte e história em geral necessário para constituir um banco de dados cultural como o descrito por Manovich. Uma expansão no tempo do rizoma de Deleuze pode cumprir o papel de atribuir maior “peso” aos nós e caminhos na rede rizomática, como uma metáfora para áreas da rede em que se experimenta maior acúmulo de “história” e quantidade de tráfego. Imagino esse conjunto de nós em que as pessoas deixam algum artefato quando visitam, e esses rastros as conectam. Nessa grande rede de pontos de visitação, alguns rastros serão visitados com mais frequencia, e por isso serão inscritos profundamente na paisagem. Da 2 FLUSSER, Vilém. “Essays”. In: STRÖHL, Andreas (ed.). Writings. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002. 3 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. A thousand plateaus: capitalism and schizophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987. A edição brasileira do livro foi publicada com o título de Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, pela Editora 34, em 1995.

mesma forma, os nós com maior acúmulo de visitantes e colaborações também criam “poços gravitacionais” no terreno. Então, penso que, na medida em que a sociedade em rede é aquela onde há um número mais potencialmente infinito de nós e interconexões, alguns dos nós e caminhos no mundo eletrônico têm maior peso, graças ao seu grau de história e tráfego. McLUHAN, ALDEIAS GLOBAIS & PRÓTESES Para entrar no tipo de espaço social criado pela miríade de redes geradas pela cultura móvel, McLuhan apresenta uma metáfora que pode nos servir. Em seu pronunciamento sobre a aldeia global4, ele pensou originalmente sobre as redes telemáticas consistindo em redes de telefone, satélites de TV, rádio e, provavelmente, vestígios da grande rede telegráfica. Hoje em dia, porém, temos várias redes que estão interconectadas. Há grandes malhas de comunicação entrelaçadas, incluindo IP, televisão, telefonia sem fio, redes ad hoc e diversos tipo de tecnologias híbridas. Se é possível desenhar uma metáfora do crescimento de camadas de redes em que habitamos, basta imaginar cada uma dessas redes rizomáticas razoavelmente achatadas e, em contrapartida, atadas umas às outras pela capacidade dos telefones celulares de receber vídeos ou enviar e-mails, e dos iPods de receber notas, músicas, vídeos, e assim por diante. Dessa forma, talvez a aldeia global de McLuhan seja a malha de redes com vários níveis de convergência de mídias entre essas tecnologias. Não é uma ironia pequena o fato de que, em lugares sem infraestrutura Capa do livro War and Peace in the Global telefônica de cobre, como o sudoeste da Ásia e Village: McLuhan experimentou, em parceria com o designer Quentin Fiore, partes da África e da América do Sul, as redes formatos de publicação em que o uso de sem fio tenham superado a rede terrestre, o imagens e recursos gráficos pretendia resultar em livros em sintonia com a nova que implica um comentário interessante sobre sensibilidade emergente na cultura nomadismo e mobilidade em áreas do mundo em eletrônica estão desenvolvimento.

4 McLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Nacional/ Edusp, 1972.

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Um segundo aspecto do pensamento de McLuhan que se encaixa bem na cultura móvel vindoura é o conceito de prótese tecnológica. Conforme a engrenagem se amplia, talvez o telefone celular seja uma expansão da boca e do ouvido, e o iPod, uma extensão da memória e do ouvido. Talvez as mídias locativas e os equipamentos de GPS sejam extensões da memória semelhantes à das tábuas de memória (lukasa), na África5, que usam mapas e rosários “localizados” como dispositivos mnemônicos. Minha argumentação aqui é quase uma reiteração de McLuhan, e a diferença nas tecnologias que usamos para nos expandir não parece ter mudado tanto na forma, mas no modo e na saturação/pervasividade. Isso me leva à ideia de mídias ubíquas na sociedade contemporânea.

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A CULTURA DA UBIQUIDADE Em 1998, escrevi um ensaio para o simpósio Emotional Architectures do Banff New Media Institute, intitulado “Building a culture of ubiquity”6 [Construindo uma cultura da ubiquidade]. Esse ensaio elabora um cenário possível para a propagação de mídias da tela a uma cultura mais ampla, em uma sociedade na qual mídias ubíquas estariam presentes. Naquela ocasião, eu imaginava que a trajetória lógica era as mídias migrarem para a mão, na forma de tecnologias móveis como PDAs e telefones celulares, depois para o corpo, com tecidos inteligentes e computadores vestíveis, e então para “ambientes” inteligentes, painéis de grande escala e processamento integrado. Desde então, a realidade se tornou bem mais convergente, e aquelas tecnologias volumosas, como telas do tamanho de uma parede, ainda estão distantes. Mais que isso, o uso de etiquetas RFID e processamento integrado é mais predominante do que eu imaginava, criando a chamada “Rede de Coisas”. Esses desdobramentos criam grandes avanços, mas também problemas. Por exemplo, em áreas do mundo onde a infraestrutura de cabos de cobre não existe ou se desenvolveu tardiamente, a tecnologia de telefonia celular causou um efeito “cascata”, superando os métodos tradicionais de comunicação. As comunicações tornam-se mais fáceis, as emergências podem ser resolvidas mais rapidamente, o material escolar pode ficar mais acessível, e assim por diante. Por outro lado, o desenvolvimento de tecnologias móveis e integradas 5 ROBERTS, Mary N. e ROBERTS, Allen F. Memory: Luba art and the making of history. Nova York: Prestel Pub e Museum for African Art, 1996. 6 LICHTY, Patrick. “Building a culture of ubiquity”. http://www.voyd.com. O texto também pode ser encontrado em http://www.intelligentagent.com/archive/ia8_1_SocialFabrics_BuildingaCultureofUbiquity_ Lichty.pdf.

cria uma cultura do acesso constante, na qual está implícita a exigência da disponibilidade 24 horas por dia, sete dias por semana, fazendo com que as pessoas nunca deixem seu local de trabalho. Há ainda a cultura da constante atualização de tecnologia, que criou vários depósitos de dejetos altamente tóxicos, muitos dos quais são consequência do descarte de tecnologias “velhas”, que saíram de moda. Ao considerar esse aspecto, apenas atualizo meu telefone a cada quatro anos e pesquiso suas características com muito cuidado, de modo a manter um conjunto de configurações que perdure por bastante tempo. Além disso, decidi desligar meu telefone por certos períodos, pois acho a mentalidade “sempre on-line” exaustiva para o organismo humano. Isso dito, esclareço que não sou adepto do luddismo7 nem do determinismo tecnológico. A tecnologia é parte da existência humana, e será por milhares de anos. É nossa escolha sermos seduzidos, informados ou deleitados por nossas ferramentas. Pessoalmente, optei pela terceira estratégia deleuziana ao dizer que, no meu caso, a tecnologia é uma escolha, não uma ferramenta ou um meio. Trata-se da cultura em que fui criado, e é tão natural para mim quanto o uso da tábua de memória (lukasa) para a cultura Luba, na África8. É uma extensão cultural (prótese?) de minha cultura. Da mesma forma que são próteses tecnológicas, as mídias também são espelhos, através dos quais a humanidade transmite e armazena sua própria identidade para reflexão futura. Mas é a forma que usamos nossas próteses — e às vezes o modo como nos valemos delas — que nos define, que nos oferece maior riqueza de conhecimento sobre como a cultura tecnológica está nos modelando e para onde pode estar conduzindo a cultura humana. ARTE: OBJETOS, CANAIS, NOMADISMO E PARALISIA Ao considerar os efeitos culturais da mobilidade, no contexto deste ensaio e de meu pensamento anterior, o melhor método de aproximação ao tema é por meio da arte e do pensamento do século XX. Ao usar dispositivos móveis para criar arte, a forma e a função destes, o modo como interagimos com eles e os efeitos sociais resultantes são como seu conteúdo. Os dispositivos móveis desafiam muitos de nossos pressupostos fundamentais sobre arte, além de produzir novos terrenos sociais que estão sendo explorados. Os aparelhos 7 Movimento ocorrido na Inglaterra desde o início do século XIX. Contrário à mecanização do trabalho, tinha como proposta a destruição da máquina, que era responsabilizada pelo desemprego e pela miséria social. 8 ROBERTS, Mary N. e ROBERTS, Allen F. Memory: Luba art and the making of history. Nova York: Prestel Pub e Museum for African Art, 1996.

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de mão e os computadores que podem ser vestidos criam canais de comunicação tanto quanto o estoque de objetos de arte; criam também uma rede pública (ou rizoma), que estimula uma linguagem comum entre seus usuários. Evidentemente, foi Duchamp quem mais recebeu os créditos por destruir o objeto de arte com sua Fonte, de 19179, e seus readymades seguintes, criados a partir de objetos cotidianos, recontextualizados por sua beleza enquanto objetos de arte. Além disso, Caixa-valise10, também elaborada por Duchamp, consistiu em um recipiente com numerosas reproduções de seu trabalho, que punha em debate a própria função do museu ao deixar que o artista viajasse com seu projeto de curadoria. Caixa-valise questiona de maneira precisa o papel da instituição ao permitir que o artista assuma todos os papéis — administrador, curador e artista. A partir dos aparelhos móveis, o recipiente portátil encontra o artista de mídia, com telefones e iPods que armazenam fotos, sons e vídeos com capacidade e qualidade cada vez maiores. Conforme os fabricantes desses aparelhos vendem seus dispositivos como se fossem objetos de design, e esses objetos vão ganhando a capacidade de armazenar arte em mídia, as linhas entre dispositivo e conteúdo se tornam tão problemáticas quanto na obra de Duchamp. Como resposta, criei uma edição de vídeo para iPods, gravada em laser, chamada Valise-iPod11. Esses dois iPods, ambos com a frase “Ceci n’est pas une iPod” (referência à Magritte)12 transformam o iPod em recipiente/exposição para o artista de mídia. No entanto, a modificação física do dispositivo coloca em questão o contexto desse iPod e a dúvida se a gravação recoloca o dispositivo em termos de história da arte. Assim, ao evocar Duchamp e Magritte, será que Valise-iPod, com suas formas físicas recontextualizadas, do mesmo modo como sua coleção de vídeos, sons e imagens de artista — que podem ser duplicados e removidos a gosto —, constitui uma obra de arte ou apenas uma elaborada “moldura para imagens”? O artista brasileiro Eduardo Kac, em seu livro Telepresence and bio art13, descreve o uso de meios tecnológicos na arte como uma criação de canais, por 9 DUCHAMP, Marcel. Fonte, 1917 (original perdido). Urinol readymade de porcelana. Réplicas feitas pelo próprio autor estão expostas em vários museus do mundo. 10 DUCHAMP, Marcel. Box in a valise, 1935-42. Réplicas feitas pelo próprio autor estão expostas em vários museus do mundo. 11 LICHTY, Patrick. Valise in an iPod. http://www.voyd.com/ValiseiPod.html 12 Na obra de Magritte, lê-se “Ceci n’est pas une pipe” (isto não é um cachimbo). (N. T.) 13 KAC, Eduardo. Telepresent and bio art: networking humans, rabbits & robots. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2005.

meio dos quais as pessoas podem compartilhar experiências. Nesse caso, em trabalhos de telepresença com robôs, como Ornitorrinco14, isso é feito à distância, por meio de canais de comunicação, como transmissões de vídeo, internet ou televisão slow scan. O mesmo vale para o artista Otávio Donasci com seu Videocriaturas15, que funde performance ao vivo e aparelhos de televisão que transmitem ao vivo, criando outro canal para esses dispositivos e, dessa forma, descentrando o dispositivo do objeto. Talvez a tradição das artes telemáticas no Brasil, assim como a transmissão nos anos 1970 de arte pela TV nas Américas, possa nos Foto Cedida por Eduardo Kac informar sobre a operação do celular na arte O projeto Ornitorrinco, de Eduardo Kac, contemporânea. De várias formas, são canais explorou as possibilidades da telerobótica que funcionam como condutos para a antes do surgimento da web: o sistema experiência de um ou mais indivíduos, que se permitia, em 1989, a usuários em espaços públicos e privados acessarem remotamente revelam específicos das tecnologias um robô móvel e sem fio para alterar sua envolvidas. Além do mais, isso também localização remota sugere que esses canais são, eles mesmos, mídias, pois abrigam e facilitam vários tipos de comunicação. Portanto, o dispositivo móvel pode ser entendido como tipo de objeto ou de meio, dependendo de seu uso. Mas tão importante quanto a maneira como funcionam a arte e as mídias é a forma como elas afetam o ser humano e suas estruturas sociais. Por exemplo, os trabalhos de Christo e Jeanne-Claude redefinem completamente o espaço público no qual operam, com seus “embrulhos” e pontes que alteram de modo profundo o relacionamento entre comunidade e espaço. Da mesma forma, embora não de maneira análoga, o telefone celular criou eventos como as flash mobs, que permitiram o acontecimento de eventos sociais espontâneos, baseados na interconexão de comunidades que possuem telefones celulares. Mais que isso, torpedos e SMS também mudam o modo como interagimos. É o 14 Ibidem, p. 129-35. 15 Ibidem, p. 41-6.

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caso de um amigo meu, que se recusa a falar ao telefone, mas insiste em enviar torpedos para discutir se há algum assunto importante o suficiente para ser objeto de uma conversa. O indivíduo móvel é um nômade, que se move de um lugar para outro sem perder contato com o coletivo da “aldeia” eletrônica. Desde que estejam em sua rede de recepção, eles ainda se encontram (presumivelmente) disponíveis. Além disso, tecnologias em desenvolvimento permitem ao indivíduo nômade o acesso a mídias locativas através de seus dispositivos móveis, recebendo informações sobre a paisagem local, ou mesmo prosa narrativa relacionada aos arredores. Um exemplo é o Media Portrait of the Liberties [Retrato em mídia da Liberdade], de Valentina Nisi et al.16, em que histórias sobre o bairro da Liberdade em Dublin, Irlanda, são recuperadas por meio de PDAs Compaq iPAQ sem fio, com unidades GPS. O interessante é que o indivíduo móvel está sempre enganchado em um universo mídia paralelo, que ele acessa conforme necessita enquanto viaja ao redor do globo. Mas, de várias formas, o indivíduo móvel também está em estado de paralisia. No ensaio “The third interval”17, Paul Virilio descreve a paralisia do indivíduo em rede. Ele faz uma distinção interessante entre o paraplégico auxiliado por tecnologia e o indivíduo em rede que viaja pelas redes de comunicação. Ambos estão fisicamente paralisados, mas se movem por meio de redes na velocidade da informação, jorrando de caixas de entrada de e-mail, websites, blogs, e assim por diante. Então, de acordo com Virilio, há pouca diferença física entre os indivíduos em rede, na medida em que todos se tornam sujeitos de uma forma de paralisia física. Isso continua no caso do indivíduo móvel. Embora não esteja mais sujeito à paralisia física, ele está enraizado ao lugar onde se encontram seus dispositivos. Não importa onde o indivíduo móvel se encontre, ele estará sempre no mesmo lugar, localizável por seu número de telefone celular e por sua conta de e-mail. Essa é a liberdade e a opressão da cultura móvel, a disponibilidade 24 horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano ali mesmo, no telefone ou endereço IP. E, no meio disso, estão sendo introduzidas as tecnologias GPS geração 2000, que permitem que o indivíduo móvel seja rastreado. Portanto, mesmo em movimento, ele será passível de monitoramento de sua localização, movimentos e hábitos. Se esse rastreamento vai ou não acontecer de fato, ainda não se sabe. 16 NISI, Valentina et al. “Media Portrait of the Liberties”. https://www.cs.tcd.ie/~nisiv/liberties.html. Também disponível em https://www.cs.tcd.ie/publications/tech-reports/reports.08/TCD-CS-2008-34.pdf, p. 116-40. 17 VIRILIO, Paul. “The third interval”. In: CONLEY, Verena A. com apoio do Miami Theory Collective. Rethinking technologies. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993.

Minha esperança é de que os artistas vejam essas mudanças como um terreno fértil para a investigação crítica e criem trabalhos que chamem atenção para esses temas. CONCLUSÃO Nas últimas páginas, refleti sobre temas relacionados aos meus pensamentos a respeito de cultura móvel, sua arte e seus efeitos sociais. Como no caso da maioria das tecnologias, há excitação e ansiedade, mas, com exceção das tecnologias em si, não há muita novidade no campo das novas mídias móveis. Por muitos anos, existiram mídias móveis e redes sociais criadas por tecnologia; foi o modo que mudou e, portanto, se tornou objeto de meu interesse. Além disso, a mudança tecnológica também estimula a transformação social, e, como artistas, escritores, intelectuais, críticos etc., podemos ficar conscientes dessas mudanças de forma a extrair delas o máximo possível de benefícios. Por outro lado, o uso de dispositivos móveis para a criação/distribuição/ posse de arte coloca em questão muitos debates conceituais e formais que estão em cena pelo menos nos últimos cem anos, aproximadamente. Por isso, ainda que eu ofereça poucas “respostas” difíceis, espero que minha discussão apresente alguns insights sobre temas específicos da cultura móvel e suas artes. Conforme a cultura móvel continua a mudar e se desenvolver, as artes que refletem sua natureza continuarão a derivar formas novas, fascinantes e mesmo problemáticas. Caso veja algo interessante, mande-me um torpedo. Eu estarei esperando, onde quer que esteja.

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APONTAMENTOS SOBRE AS MÍDIAS LOCATIVAS DREW HEMMENT

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Em 2001, fiz a curadoria de uma exposição sobre vigilância chamada Broken Channel, como parte da edição de 2003 do festival Futuresonic. Desde então, mantive muitos dos interesses, curiosidades, preocupações e contatos que surgiram na ocasião. Em 2003, tive a oportunidade de iniciar uma pesquisa e propor um projeto nessa área. Como as mídias móveis sugeriam diversas questões ligadas ao tema da vigilância e do controle, decidi me concentrar nesses aspectos do debate. Na época, eu estava interessado no sistema conhecido como Celudar, que é semelhante ao radar, mas usa emissões e infraestrutura de telefonia celular. Tinha também interesse em fenômenos como o rastreamento GSM. Meu primeiro contato pessoal com o grupo das mídias locativas — Ben Russell, Marc Tuters e outros — foi no festival Next 5 Minutes, em Amsterdam, no ano de 2003. De certa forma, nessa época, as mídias locativas, para mim, eram definidas por um grupo de pessoas que povoava a cena, mais do que qualquer outra coisa. Eu estava fazendo essa pesquisa sobre mídias móveis e vigilância, e encontrei um conjunto de pessoas interessadas nas mesmas tecnologias, e basicamente nos mesmos usos dessas tecnologias, mas acentuando o ângulo oposto ao meu: suas possibilidades criativas e benefícios. Na ocasião em que os conheci, eu seria o último a falar na sessão de cartografia colaborativa. Depois do que ouvi, decidi dar à minha apresentação o título de Antimapeamento (não tenho certeza se mais alguém entendeu a piada).

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O que me inspirou foi saber que existia um grupo de pessoas engajadas em descobrir as possibilidades sociais dessas tecnologias, de um jeito construtivo, sem, naquele momento, levar em conta seu lado mais problemático, menos saudável. Desde então, a ambiguidade entre todo o emocionante potencial criativo e social e as perspectivas sinistras, que estão presentes AO MESMO TEMPO nessas tecnologias, foi o que me manteve interessado no campo. A expressão “mídias locativas” é nova e pode ser contestada energicamente, de perspectivas nem sempre construtivas. Tento interpretá-la de maneira solta e distinguir entre o conjunto de dispositivos e aparelhos disponíveis e o movimento tecnológico, social e artístico conhecido como “mídias locativas”. Entender a expressão de modo inclusivo, ao invés de excludente, às vezes implica o risco de não diferenciar as mídias locativas de outras formas de envolvimento mediado com a espacialidade. Ainda assim, é melhor do que engavetar o campo prematuramente.

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Imagem Retirada do Website do Projeto

Um diário em traços: Amsterdam em Tempo Real, de Esther Polak e Jeroen Kee é uma instalação GPS criada com dados coletados por moradores da cidade durante um período de dois meses, resultando num mapa em que, em vez das ruas e casas, só é possível ver o movimento das pessoas http:// realtime.waag.org/

Por muitos anos, estive interessado na relação entre espacialidade, percepção e corpo. Isso vem da minha experiência com som e música. Eu me envolvi com música como DJ e produtor de eventos de acid house, no final dos anos 1980. Os espaços sensórios e envolventes da cultura dance seguiram comigo, como uma metáfora para quando penso sobre arte, instalação, interação etc. Em 1999-2000, desenvolvi um projeto chamado SenseSonic, misturando som e espaço. Havia um componente on-line, com a participação de pessoas como David Toop, Maryanne Amacher, Rolf Gehlhaar, Kaffe Matthews e Ansuman Biswas, e uma “club tour ambisônica” com Cristian Vogel.

Por causa dessas experiências, minha primeira impressão das “mídias locativas” se deu a partir das sensações que elas causam. E claro que são muito frias e distantes. Mas, ao mesmo tempo, oferecem um espaço em que esses meus interesses antigos podem reviver. Muito do meu entusiasmo com as “mídias locativas” veio por perceber as possibilidades de conectar dispositivos locativos a ambientes de programação para redes sociais, ou pelo impacto social do mapeamento coletivo, orientado ao usuário. Mas não há muitas pesquisas desenvolvidas, na esfera das mídias locativas, sobre tatilidade, sobre as dimensões emocionais e hápticas da percepção. Não existe nada parecido com Crank the Web (2001), de Jonah Brucker-Cohen, ou Mobile Feelings (2002-03), de Christa Sommerer & Laurent Mignonneau, que exploram essas questões no contexto da internet. Esse é o motivo por que me interesso por projetos como Sound Mapping (1998), de Iain Mott, ou Bio Mapping (2004), de Christian Nold, que enfatizam o corpo no âmbito, ou para além, da representação visual (apesar de ambos conterem o termo “mapeamento” no título!). Foi por essa razão que, na exposição Mobile Connections, que curei para o Futuresonic em 2004, projetos que não são entendidos como “mídias locativas”, ou pelo menos que não cabem na definição exata do termo, como Oscillating Windows (2003), de Katherine Moriwaki, e Sonic Interface (1999), de Akitsugu Maebayashi, foram colocados lado a lado com projetos que são compreendidos estritamente como “mídias locativas”. NÃO BASTA DESVIAR OS USOS PREVISTOS DAS TECNOLOGIAS Há uma relação ampla entre conhecimento e poder, e quando esse conhecimento se propaga no espaço e envolve a possibilidade de localizar em tempo real indivíduos (ou os aparelhos que eles carregam), isso suscita muitas questões. O modelo clássico de controle em sociedades modernas, industrializadas, é o pan-óptico, sobre o qual Foucault escreveu bastante. Nele, já havia a internalização do controle, em um processo no qual começamos a nos autopoliciar. Mais recentemente, Deleuze argumentou que o controle se deslocou dos instrumentos tradicionais do poder do Estado, tendo se tornado um mecanismo intrínseco à sociedade de consumo. Frequentemente, parte-se do pressuposto (não apenas no universo das mídias locativas) de que o ato de apropriação é suficiente — em outras palavras, que pegar as tecnologias desenvolvidas pelos militares e fazer alguma coisa diferente ou criativa com elas é, por si só, subversivo. No entanto, não tenho certeza se isso pode ser aceito como correto. Em primeiro lugar, os usuários mais qualificados podem, muitas vezes, preparar o terreno para a introdução mais disseminada de algo que era

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previamente considerado suscetível de objeções. Em segundo lugar, os projetos que usam mídias locativas — com suas práticas de documentação (obsessiva ou inadvertida) — contribuem para um processo em que o mundo é progressivamente analisado e mapeado. O problema está em verificar até onde esse conhecimento é aberto, transparente e compartilhado. Uma questão central, portanto, é saber até que ponto é possível confiar no potencial subversivo dos projetos grassroots (desenvolvidos pelos usuários por meio de tecnologias não corporativas e metodologias comunitárias que privilegiam a espontaneidade e a ausência de hierarquia) e até que ponto eles apenas aumentam a Consciência Informacional Total. Será que existe um contínuo no qual prevalecem muitos dos aspectos que podem ser percebidos como perturbadores no uso dessas mídias? Será que esses projetos de base não estão, contraditoriamente, aumentando a eficiência e a resolução do sistema, em vez de perturbar sua operação (conforme eles pretendem)? Estamos assistindo a um desvio fundamental e ao surgimento de todo um novo ambiente para o qual precisamos nos preparar. É central o fato de nos tornarmos os condutores da sociedade da vigilância. Isso é um efeito secundário de várias coisas que, a despeito dos aspectos negativos, nós valorizamos. Ademais, estamos marchando na direção de uma situação em que mais e mais facetas de nossas vidas se tornam, em princípio, potencialmente “conhecíveis”, ainda que quase anônimas. Como há muita informação disponível, torna-se mais difícil que esses fatos sejam, algum dia, processados. A base do pan-óptico consistia em não sabermos se éramos observados ou não, de forma que agiríamos como se estivéssemos sendo vigiados o tempo todo. Com as tecnologias de rede, tem-se um novo conjunto de variáveis que governam esse mesmo cenário, além de algumas questões completamente novas, como o fato de que, agora, deixamos rastros de informação conforme usamos nossos equipamentos favoritos. Existe uma resposta bastante imediata para essa situação. E existem, claro, temas maiores relacionados aos universos da arte, da política e do ativismo, discussões suficientes para preencher vários livros. A resposta imediata é que, por causa de seus campos paralelos e intersecções, o mundo da vigilância e do controle torna-se, de inúmeras formas, muito difícil de ser declarado como um lugar neutro ou sem engajamento. De modo inverso (e por essa mesma razão), surge uma ambiguidade, que a arte está equipada para enfrentar, de certa maneira. Toda vez que há uma ambiguidade como essa, mensagens simples não fazem justiça à complexidade envolvida. Se você é muito direto em suas críticas, as pessoas vão ignorá-lo, porque elas são capazes de perceber o lado positivo da questão. E se você foca apenas no lado positivo (ao desenvolver tecnologia, fazer

arte, ou criar ações sociais), está se expondo ao risco de que seu projeto tenha consequências involuntárias que você vai detestar. A arte, aqui, pode desempenhar um papel importante ao apresentar essa ambiguidade sem tentar fechá-la por meio de declarações simplistas. Sob esse ponto de vista, desempenha um papel utilitário a serviço da questão social. Por outro lado, a ambiguidade política oferece uma oportunidade de, em certo sentido, estimular uma arte bastante interessante. Para muitos, isso pode evocar sinais perigosos. A arte “a serviço de” qualquer coisa é problemática para essas pessoas, nem tanto por geralmente resultar em trabalhos ruins, mas porque a ação política requer declarações simples, que podem mobilizar indivíduos, e não meditações “indulgentes” ou ambiguidades. Para mim, esses perigos gêmeos — e bastante reais — são a motivação que me mantém no eixo. O papel do artista parece ser, por um lado, apontar os perigos e contradições do meio, em termos de liberdades civis, e, por outro, agir como o embaixador involuntário para a percepção das mídias como objetos descolados, o que ajuda sua inserção na consciência do consumo. E claro que isso pode ser dito a respeito de projetos que destacam os temas do controle e da vigilância, tanto quanto sobre projetos que ignoram completamente essas questões. É muito fácil para a indústria cultural deglutir qualquer distância crítica e transformar tudo em um “cool” aguçado, que no final das contas neutraliza o próprio fim que o artista pretende atingir. Isso é, na verdade, um debate que está bastante vivo no projeto Loca1. Estamos tentando sinalizar de que forma as novas práticas de vigilância pervasiva operam e de que modo elas podem ser entendidas como compartilhadas (peer-to-peer) ou sinápticas. De certa maneira, apenas mostramos o que já acontece, em vez de inventar novas técnicas ou ambientes de vigilância. O perigo é que, ao causar uma pequena irritação ou arrepio, o projeto apresente um meio de controle às pessoas. E, assim, as ajude a aceitá-lo, antes que os casos mais perturbadores, que poderiam afetar de fato suas vidas, sejam percebidos. Outro perigo é que o projeto em si seja visto como um tipo de marketing gonzo2. Enfim, não acho que existam respostas fáceis sobre como evitar isso. Há uma longa tradição de tentar produzir arte que não pode ser incorporada, mas a habilidade que a cultura contemporânea tem de deglutir tudo sempre derrotou os esforços dos artistas no sentido de evadir essa lógica. Quando o choque é grande 1 Loca: set to discoverable é um projeto que problematiza questões de vigilância no universo das mídias portáteis, desenvolvido com tecnologias grassroots por John Evans (Reino Unido/Finlândia), Drew Hemment (Reino Unido), Theo Humphries (Reino Unido) e Mike Raento (Finlândia). Mais informações em http://www.loca-lab.org. 2 O conceito estabelece um paralelo com o chamado jornalismo gonzo, remetendo a um marketing engajado, subjetivo e parcial.

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O pan-óptico, prisão projetada por Jeremy Bentham, em 1785, permitia a um único vigia olhar na direção de todos os prisioneiros: como não era possível saber em que momento alguém estava sendo observado, o prédio gerava “um sentimento de onisciência invisível”, capaz de produzir “um novo modo de obter poder sobre a mente” Domínio Público

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demais para ser assimilado — como a pintura de Marcus Harvey, feita a partir de mãos de crianças, retratando a assassina Myra Hindley, por exemplo —, o perigo, claro, é de que nada reste além do choque. A abordagem do Loca é diferente. Queremos dar às pessoas pausas para pensar, mas não estamos tentando chocar: somos cuidadosos para não sugerir que o fenômeno que expomos só apresenta aspectos negativos. Um dos elementos em jogo é ampliar a consciência sobre o problema e estimular o debate. Mas isso, provavelmente, não é suficiente por si só. A aspiração é que o projeto possa ter outro tipo de impacto, seja ao contribuir para discussões sobre políticas e salvaguardas legais, ou (talvez o objetivo mais importante e ambicioso) influenciar a emergência de protocolos do futuro. O bluetooth, por exemplo, é ruim em termos de privacidade, porque permite a varredura anônima. Esse aspecto não é resultado de uma conspiração, mas do fato de o uso corrente não ter sido previsto quando os equipamentos foram desenvolvidos. Por isso, as proteções necessárias não foram construídas. Uma vez que uma plataforma está pronta, não é economicamente factível desativá-la e é fútil tentar argumentar que a desativação deveria ser levada a cabo. O que pode ser feito, no entanto, é uma tentativa de debate econômico sobre como as companhias deveriam investir em medidas para preservar a privacidade dos usuários dessas tecnologias. Esse debate só pode ocorrer se houver demanda, mas provavelmente só acontecerá se as pessoas tiverem conhecimento sobre o dilema das tecnologias de rede atuais. Além disso, o tema tem de ser debatido fora da zona de conforto das galerias. Parte do problema é que, neste momento, a única opção para as pessoas preocupadas com as implicações das recentes tecnologias de rede é desligá-las ou não usá-las. A política da nova mobilidade vai aparecer em algum lugar entre o ligar e o desligar.

FANTASMAGORIAS, VITRINES, INFILTRAÇÕES: ENSAIO SOBRE AS TECNOLOGIAS E A CIDADE

51 FÁBIO DUARTE E POLISE DE MARCHI

INTRODUÇÃO Inovações tecnológicas marcaram momentos decisivos de transformações de espacialidades urbanas no século XX. Os veículos com motores de explosão interna expandiram a cidade, a energia elétrica transformou as temporalidades urbanas, as tecnologias de informação e comunicação, como campo de ação, romperam com a contiguidade territorial para a construção de redes urbanas globais. Mas como representar as mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas que as inovações tecnológicas trouxeram às cidades? E como se posicionar criticamente frente a tais profundas crises paradigmáticas? Não há como entender as espacialidades na cidade contemporânea do mesmo modo como entendíamos, por espaço, no meio do século XX; e o meio do século XX, antes mesmo de consolidar as mudanças paradigmáticas ocorridas na passagem do século XIX para o XX, já portava os agentes das alterações que eclodiram no mundo urbano das décadas de transição para o século XXI. Pensar essas mudanças passa necessariamente por discutir como as alterações espaciais ligadas a inovações tecnológicas foram representadas, trabalhadas enquanto linguagem. Quando Charles Peirce (1977) afirma que o “mais elevado grau de realidade só é alcançado pelos signos”, podemos ler as linguagens como aproximações dialéticas dos fenômenos, nas quais um evento novo desperta articulações nunca feitas entre linguagens já conhecidas, até o ponto em que o absolutamente novo incite explorações internas às próprias linguagens para torná-las aptas à percepção, compreensão e discussão desses fenômenos. O que somos capazes de representar é o que forma, constrói e conforma nossa realidade dentro de nosso pensamento, e o projeta para a concretude de novas experiências de mundo, sejam elas individuais e/ou coletivas.

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Assim, a linguagem é o modo que temos de expressar a realidade a partir de seu potencial de representação. Atuamos incessantemente num terreno por onde trafegam e se misturam diferentes sistemas de signos. Esses diálogos entre linguagens são feitos por meio das interfaces. Segundo sugeriu Siegfried Zielinski (1995), as interfaces devem ser entendidas como instrumentos e modelos conceituais com os quais se possa operar através desses universos de linguagens diferenciadas. Esses instrumentos tecnológicos não mudam apenas a maneira como representamos os espaços, mas alteram completamente o que denominamos espaço. Para pensar essas transformações, gostaríamos de propor justamente uma análise de como elas foram representadas e criaram, por vezes antecipadamente, o urbano que estava para se materializar. Como hipótese inicial de investigação, propomos que as especulações sobre as transformações do espaço urbano ligadas às inovações tecnológicas, mais do que um caminho cronológico linear, poderiam ser agrupadas em categorias conceituais que retornam em momentos específicos. Ou seja, mesmo que as tecnologias se alterem, elas respondem a algumas categorias, que aqui lançamos como sendo fantasmagorias urbanas, cidade vitrine e cidade infiltrada. 52 Na categoria fantasmagorias urbanas vemos momentos tecnológicos tão inovadores para a própria tecnologia que a única possibilidade de representar e pensar a cidade contemporânea em mutação implica a construção de imaginários urbanos nos quais as inovações tecnológicas têm papel seminal. Nessa categoria, analisamos obras cinematográficas que despertam a construção do imaginário de um urbano a se realizar, uma possibilidade de urbano — por vezes assustadora. Na cidade vitrine as próprias representações, as próprias imagens da vida urbana em mutação são apropriadas Recriação moderna de um zootrópio: o disposicomo parte da cidade: são as vitrines tivo desenvolvido por William Horner cria ilusão de movimento pela sucessão rápida de imagens iluminadas, os letreiros de néon, os estáticas prédios-fachadas publicitárias, os imensos painéis digitais. As imagens tecnológicas,

ao mesmo tempo em que refletem um urbano em transformação, tornam-se parte dessa cidade como superfície comunicante. Na cidade infiltrada buscamos as transformações não expostas. A eletricidade, por exemplo, não deve ser vista na visualidade explícita dos letreiros, mas na alteração dos tempos urbanos que mudaram relações socioeconômicas e culturais das cidades. Do mesmo modo, pensar a realidade virtual como nichos no mundo concreto seria intelectualmente cômodo, por se criar um mundo ideal não contaminado pela imprevisibilidade real. O desafio é encontrar modos de evidenciar as transformações urbanas a partir de inovações tecnológicas que se infiltram na materialidade da cidade a ponto de se tornarem invisíveis, mas guardam o potencial de grandes transformações. FANTASMAGORIAS URBANAS Nas artes visuais, principalmente as cinéticas, a fantasmagoria está ligada ao mágico, à produção de imagens sem preocupação com a racionalização moderna da visibilidade, onde regras matemáticas e técnicas antecedem a própria apreensão do objeto por um aparelho. Como esclarece Marino Macedo (2004, p. 64), as fantasmagorias, sempre presentes em atrações públicas no século XVIII, eram “uma forma mais elaborada de entretenimento visual, onde se invocava o sobrenatural projetando imagens de espíritos dos mortos em misteriosos ambientes, com encenações cuidadosamente dirigidas”. Nelas, a sensibilidade se sobrepunha à racionalidade (MIRANDA DA SILVA, 2004) quando os espectadores viam as imagens projetadas sem ter a consciência dos instrumentos que as geravam – o que era típico das máquinas de produzir imagem do século XVIII. O próprio nome de uma dessas máquinas, fenaquitoscópio, como esclarece Miranda, designa, por seu radical grego, aquele que engana. Arlindo Machado (1997) entende que as fantasmagorias, as imagens ilusionistas ligadas ao sensível, foram tão importantes quanto e acompanharam o desenvolvimento técnico dos aparelhos cinematográficos. Narrando a experiência dos primeiros espectadores dessas projeções do pré-cinema, Miranda escreve: As imagens começam a se movimentar. Os espectadores se “maravilham”. [...] Este “maravilhamento” [mantém] uma transparência de seu processo de “iludir” com as imagens. [...] Mesmo hoje, acostumados às imagens em movimento do cinema e televisão, ao vermos um “brinquedo óptico” em funcionamento, esta sensação nos é verdadeira. (MIRANDA DA SILVA, 2004, p. 12)

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Fernando Fuão traz de Max Milner a força que teriam as fantasmagorias de “instalar na percepção a incerteza do sonho ou realidade” (MILNER, 1990, apud FUÃO, 1999, p. 12). Assim, as fantasmagorias podem ser entendidas como a construção imaginária de algo; porém, apesar de se saber imaginária, guarda referências muito próximas com o real experimentado. Distorce-o, exacerbando algumas de suas características, ao mesmo tempo em que busca manter traços tão próximos dele que por vezes induz à confusão entre esse real experimentado e a fantasia — e, por isso, é frequentemente amedrontadora. Apoiando-se em Erick Felinto (2006, p. 12), ao discutir as tecnologias audiovisuais como máquinas fantasmagóricas, poder-se-ia dizer que as fantasmagorias guardam uma “relação de estranheza com aquilo que é mais familiar”. E é justamente nessa sensação de estranheza a algo tão familiar, nessa confusão entre a fantasia e o real experimentado que a fantasmagoria tem sua força de avançar ideias que, ainda não integralmente partes constituintes do cotidiano, já se apresentam, mas ainda são temidas por seu desconhecimento. Pode-se buscar no cinema algumas obras que produziram fantasmagorias sobre as inovações tecnológicas que prenunciam transformações drásticas no mundo urbano, mas que ainda não estavam (ou estão) claras para urbanistas, teóricos ou práticos. Metrópolis, de Fritz Lang (1927), Blade Runner (1982) e Matrix (1999) são alguns filmes de grande sucesso que exploram as transformações do mundo urbano a partir de inovações tecnológicas. Como toda fantasmagoria, Metrópolis, apesar de projetar um futuro urbano, tem como origem a cidade contemporânea. Fritz Lang comentou que a ideia inicial do filme veio de sua visita a Nova York em 1924, cujo trânsito, altas torres e luzes noturnas lhe deram a impressão de ser um mundo ilusório, de “perpétua ansiedade” (LANG apud LEMOS, 2008). Em Metrópolis, Fritz Lang, com base em texto de Thea von Harbou (coautora do roteiro), apresenta sua visão do futuro urbano, no qual uma classe de operários seria subjugada pela classe dominante, e todo contato se faria por máquinas opressoras: a classe dominada vivia no subsolo, sem conexão com o mundo exterior. Máquinas, e depois robôs, substituíam o trabalho humano não para libertá-lo, mas para colocálo em sua inutilidade. No filme, um robô assume o lugar da própria heroína, Maria, para espionar os planos dos operários de uma eventual rebelião. O subsolo sombrio dos operários contrasta com o mundo da superfície, claro e aéreo: altas torres cruzadas por passarelas, grandes avenidas com tráfego intenso (sem humanos caminhando) e aviões pelos céus como transporte urbano.

A relação entre o cenário industrial e a vida das cidades modernas apontava para a construção de um imaginário urbano baseado em imagens que se estabeleciam na fronteira do fantástico e do real. Metrópolis foi projetada como uma fantasmagoria urbana que metaforizava a relação entre espaço e sociedade por meio de um conceito de cidade modelado pela condição urbana imposta pela industrialização.

Metrópolis, de Fritz Lang: 0 clássico do expressionismo leva às telas do cinema as linhas verticais das cidades, antecipando paisagens que o mundo em breve conheceria, a partir do surgimento das megacidades, um cenário de arranha-céus e avenidas se consolidaria em diversos pontos do globo Imagem Retirada da Wikipedia

Embora desde seu lançamento o filme tenha suscitado várias interpretações, seja de cunho político, religioso ou até mesmo erótico, marcou o imaginário urbano de tal modo que é possível encontrar referências em várias outras criações que o sucederam ao longo do século XX, em que a tecnologia era associada a uma visão macabra de uma realidade futura. Pouco mais de 50 anos depois, a mesma cena de altas torres, circulação incessante de carros e aviões na cidade, com um distanciamento entre a cidade aérea e a cidade subterrânea, é retomada como cenário de Blade Runner, de Ridley Scott. No filme de Scott, baseado no livro de Philip K. Dick, a história é centrada na captura de um androide. Os replicantes (como os androides são chamados) foram criados pela Tyrell para substituírem o trabalho humano. Têm como características tornarem-se “inteligentes”, incorporando o aprendizado, inclusive criando memória própria. Para evitar eventuais rebeliões, são programados para viverem apenas quatro anos — e justamente contra essa limitação se insurgem, fazendo com que um caçador de androides seja chamado.

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Apesar da distância no tempo, as cenas urbanas parecem ser retomadas de Metrópolis: um submundo sujo, úmido, sombrio, repleto de máquinas que substituem ou se interpõem às interações humanas, enquanto a cena urbana é tomada por altas torres, trânsito caótico, tanto na superfície quanto no céu. As interposições de mídias às interações humanas e urbanas, nesse filme, alcançam os próprios edifícios: a cidade é dominada por outdoors de alta definição, com propagandas em várias línguas, e personagens que se tornam parte da vida urbana. Como sugere Barbara Mennel (2008), “o fato de a cidade, o ambiente construído e vivido, alterar-se cotidianamente reflete uma falta de memória. Alegoricamente, o filme pergunta como nossas memórias humanas podem ser mantidas frente à incessante transformação urbana e da realidade virtual”. Mas a presença da tecnologia nessa fantasmagoria é ainda maior, pois vai além da substituição da força motora do ser humano por máquinas e robôs (como no caso de Metrópolis). Os replicantes não apenas são criados à imagem e semelhança dos humanos para se misturarem a eles indistintamente, têm também a capacidade do aprendizado, da memória — e, com isso, de nutrirem sentimentos e vontades. Tornam-se, assim, perigosos. A fantasmagoria urbana, nesse caso, não diz respeito somente à cidade e à presença de máquinas, mas à indistinção do ser humano em relação ao replicante. Em Matrix, de 1999, os irmãos Wachowski apresentam nova e contundente visão do futuro. Se em Blade Runner há os humanos e os replicantes, e o perigo está nos replicantes, máquinas programadas para aprender e assumir todas as características humanas, em Matrix há uma confusão entre o que é “real” e o que é “programado”. Quanto à cidade, diferentemente de Metrópolis ou da Los Angeles de Blade Runner, não há a exacerbação de um mundo urbano tomado pelas máquinas — sejam elas veículos, interfaces de uso cotidiano e escala humana, ou interfaces que se tornam elas mesmas objetos arquitetônicos. Pelo contrário, a cidade de Matrix é ordinária — ordinária ao extremo, com pátios entre blocos de apartamentos, gramado, um banco, algumas aves. Mas tudo isso é programado. Tudo isso é artificial — não tanto no sentido de ser falso, mas no de ser um artefato tecnológico, como, aliás, a cidade. A fantasmagoria de Matrix está nisso: em escancarar que o mundo urbano moderno é o acúmulo constante de objetos, artefatos e relações mediadas por tecnologia e sua linguagem, a ponto de uma imagem singela nos iludir por sua verossimilhança com algo pretensamente “original” frente a um novo “artificial”, quando toda a cidade moderna é, inevitável e crescentemente, uma mediação tecnológica.

CIDADE VITRINE A modernidade elétrica, na passagem do século XIX para o XX, transformou a vida urbana. Arquitetos e artistas envolvidos com as transformações culturais e sociais emergentes incorporaram a tecnologia em suas criações, fundindo tempo e espaço em novos signos da cidade moderna. Sobretudo a publicidade, ao mesmo tempo em que se apropriou desses novos recursos tecnológicos, encontrou na superfície dos edifícios o suporte para a comunicação de massa que se inaugurava em diferentes períodos da vida urbana. No final dos anos 1920, os irmãos Luckhardt consideravam as fachadas de seus projetos comerciais como suportes de virtualidades efêmeras e mutáveis, passíveis de serem concebidas à luz das mensagens provisórias da publicidade e do comércio. A fachada curva do edifício Telschow-Haus, na Potsdamer Strasse, em Berlim, revestida com vidro branco leitoso era uma sutil interferência em contrapartida à fachada para a praça, Potsdamer Platz, ponto de convergência da dinâmica da metrópole alemã, onde o vidro opaco azul reduzia a fachada a uma superfície para a comunicação comercial e suporte para o letreiro luminoso. Ainda na primeira metade do século XX, Oscar Nitzchke, na Maison de la Publicité, em Paris, levou à fachada do edifício o que os surrealistas apontavam no ambiente urbano como a possibilidade e liberdade de imaginação que uma mente inventiva poderia produzir em meio à metamorfose de seu ambiente — traduzindo em uma estrutura independente do próprio edifício, o suporte para uma superfície publicitária articulada entre signos visuais e gráficos, horizontais e verticais, alternados entre dia e noite. Parece que essa postura dos arquitetos mantém-se sempre que novas formas de apropriação de signos tecnológicos surgem — por vezes com estratégias idênticas, como quando Jean Nouvel, após um século, faz da fachada da Galeries Lafayette, de Berlim, um grande painel com imagens eletrônicas. A fachada esconde o que há por detrás, ao mesmo tempo em que revela o que nela é projetado, como uma tela de cinema. Os signos comerciais e publicitários são assumidos por sua qualidade plástica em vez de somente serem apliques de valor comercial ou simbólico (DUARTE; DE MARCHI, 2006). Essas estratégias procuram fazer com que as imagens tecnológicas sejam parte do objeto arquitetônico. Porém, poucos buscam alterar ou estimular as relações sociais ligadas às imagens tecnológicas, principalmente estabelecendo uma interação entre o público e o privado. Como prenunciou Melvin Webber (1964) no início dos anos 1960, a essência da cidade não está no lugar físico, e sim na interação promovida pela comunicação que permite a transcendência da arquitetura e do urbano como linguagem.

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Fachadas das Galeries Lafayette em Berlim: projeto de Jean Nouvel construído entre 1991 e 1995, é inaugurado em 1996 (fonte: http:// commons.wikimedia.org/ wiki/File:Galeries_ Lafayette_Berlin.jpg) Imagem Retirada da Wikipedia

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Alguns projetos contemporâneos procuram justamente trabalhar com as imagens tecnológicas como elementos constituintes da espacialidade urbana, tendo como princípio mais relevante o estímulo a interações entre os usuários da cidade. Considerando a mobilidade como possibilidade de troca de informação, o projeto Urban Garden, desenvolvido pelo Media Lab Smart Cities, criou paradas de ônibus capazes de estabelecer interface entre a cidade e seus cidadãos, uma vez que são compreendidas como pontos urbanos de conexão, extrapolando a função inicial de transporte. O projeto é uma interface gráfica para o usuário, baseada na metáfora de um jardim cujas plantas nascem e crescem de acordo com as condições do ambiente. A fachada de LED da parada de ônibus disponibiliza informações sobre o ambiente urbano e também abre espaço para interações sociais, por meio de fóruns de discussão entre os cidadãos. Além disso, o projeto arquitetônico do ponto de ônibus é desenvolvido por modelo paramétrico, no qual algoritmos permitem adaptar melhor a forma e a função interativa com o local de implantação. Peter Cook e Colin Fournier realizaram em Graz, na Áustria, uma fachada capaz de se comportar como uma “pele comunicativa” por meio da tecnologia BIX1: uma matriz de 930 lâmpadas fluorescentes que, ajustadas manualmente, permitem transformar a fachada leste do edifício em um grande monitor de computador de baixa resolução, que pode apresentar filmes, imagens e animações. A Kunsthaus 1

O projeto pode ser visto em www.kunsthausgraz.at e em www.bix.at.

(casa de cultura) de Graz não somente pontua a paisagem da cidade tradicional por meio de uma forma inusitada para o local, como também propõe uma interface entre o interior arquitetônico e a superfície comunicante de sua fachada para com a cidade, mesclando tecnologia, informação e arquitetura. O Urban Screens2, apresentado no arte.mov por Mirjam Struppek, aborda o papel cultural urbano dos painéis eletrônicos destinados a usos comerciais. Os projetos nele contidos buscam integrar as atuais tecnologias da informação e comunicação amplamente utilizadas para fins comerciais em todas as metrópoles mundiais como suporte para o desenvolvimento de uma camada comunicacional da cidade. As intervenções do Urban Screens buscam criar espacialidades urbanas, com características materiais e imateriais da vida contemporânea, atrelada a fluxos de informações, signos e valores globais. Nesse sentido, a realidade construída das cidades se estende para além de suas superfícies promovidas pela interatividade entre corpo e imagem e apropriação do espaço material por seu par imaterial. Criam-se imagens do mesmo modo que realidades mediadoras entre o corpo e a cidade concreta e, consequentemente, da cidade concreta e de seu outro imaterial. CIDADE INFILTRADA As tecnologias não são ferramentas que apenas substituem, com inovações materiais e de funcionamento, procedimentos e comportamentos sociais que lhes são alheios. Pelo contrário, há uma interdependência entre as inovações tecnológicas e as transformações sociais. Assim, não se pode falar de “impacto” da tecnologia no social, tampouco encará-la como ferramenta isenta de pressupostos culturais, econômicos ou políticos. Ao pensar nela, nós a entendemos como tecnologia em uso, para utilizar uma expressão de Edgerton (1998), em que a tecnologia se efetiva não em sua materialidade instrumental, mas na práxis social, com transformações recíprocas. Uma das discussões contemporâneas é o fato de a implantação de redes tecnológicas no ambiente urbano criar espaços de redes privilegiadas (Premium Network Spaces), os quais são descolados do contexto urbano onde estão inseridos, formando redutos isolados nos quais comumente se concentram empresas ricas e com poucas articulações socioeconômicas com o restante da cidade (GRAHAM, 2000). Em escala cotidiana, podemos pensar nos hot spots, ambientes completamente conectados a redes digitais de informação, cujo acesso se dá pela simples entrada 2

O projeto pode ser visto em www.urbanscreens.org.

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no campo informacional hoje presente em aeroportos, cafés, universidades, empresas, regiões urbanas. Uma vez integrado a esse campo informacional, age-se em qualquer ponto do espaço conectado. Evidentemente, essa integração a um espaço informacional depende de uma infraestrutura tecnológica. Mas os objetos tecnológicos não são o que são em si mesmos, e sim as relações que propiciam com o contexto do qual fazem parte. Não há como compreender os aparatos tecnológicos nem, por consequência, suas influências na maneira com que compreendemos e usamos o espaço, fora do contexto de suas apropriações pela sociedade, sem considerá-los como frutos de relações sociais e historicamente construídas. Como escrevemos (FIRMINO; DUARTE, 2008), “não há adendos informacionais ao espaço concreto”. O que temos é um espaço-total informado, malhado com ondas eletromagnéticas de múltiplas frequências que atravessam o espaço, que nos atravessam. Não há como mudar de canal, separar os momentos de pensar e viver em um universo urbano e outro informacional. Ambos são cada vez mais indissociáveis, criando espacialidades híbridas. Contra os nichos virtuais, o que temos é a cidade infiltrada. São as relações intangíveis entre o espaço concreto e o espaço informacional — o que Lev Manovich chama de dataspace e Castells, de espaço de fluxos —, que constituem a realidade ampliada. Essa ampliação está sempre pautada pelo fenômeno de incorporação crescente e imperceptível das tecnologias da informação e comunicação (ICTs) em vários sistemas e estruturas da vida urbana. É uma realidade híbrida, infiltrada por tecnologias que ampliam nossas capacidades comunicativas e interativas, sem nos darmos conta das proporções dessa “infiltração”. Um artista vem há décadas procurando revelar esse espaço prenhe de informação. Diferentemente das manifestações da cidade vitrine, que reforçam o uso dos signos tecnológicos para conceber novas espacialidades urbanas, David Rokeby mantém seus projetos invisíveis. Ele cria apreensões sensoriais para os fenômenos espaciais que quer apresentar e discutir com seus trabalhos, por vezes visíveis. Porém, é uma visibilidade momentânea: não nos permite, em nenhum momento, perceber que a intenção do autor é ressaltar aspectos de características tecnológicas que não são aplicadas à cidade, mas são parte intrínseca dela. Seu projeto mais contundente nesse sentido nos parece ser o Very Nervous System (VNS). VNS é um sistema composto por uma câmera de vídeo e um computador; a imagem de uma pessoa passando pelo foco da câmera é captada e registrada em um suporte informático codificado que, uma vez estimulado, reage com sons, por exemplo; a pessoa reage a esse estímulo e, a partir daí, entra-se em

um círculo de estímulos que alteram a espacialidade naquela porção do espaço. Produzido em ambientes fechados de galerias, quando vai para a rua o VNS se torna um dos projetos mais instigantes para trabalhar as tecnologias infiltradas nas cidades contemporâneas. Em Potsdam, Alemanha, Rokeby cria uma espacialidade virtual no meio da cidade. Mantém-se a paisagem trivial urbana, sem qualquer interferência visual ou tecnológica aparente. Mas, assim que alguém passa por essa porção de espaço ricamente equipada e ligada ao VNS, o espaço começa a soar, alterando imediatamente o comportamento daqueles que o vivenciam. O projeto lifeClipper3 aborda a mediação entre cidade, tecnologia e corpo. Denominado por seus criadores de “um projeto de arte a céu aberto”, oferece uma experiência audiovisual de caminhar em meio a uma realidade virtual estendida. Tecnicamente, o projeto comporta um computador portátil, uma câmera de vídeo, um HMD, um microfone, uma unidade de GPS e sensores de pressão. A instalação tem como base promover a alteração nos modos de ver e ouvir por meio da percepção audiovisual. A realidade é desafiada e situações do cotidiano se tornam uma aventura, uma vez que a realidade é apresentada pela virtualidade projetada e desenvolvida em percursos na cidade existente. Nesse projeto, o usuário capta imagem e som, que em seguida recebem tratamento em tempo real e são apresentadas no HMD. Enquanto os usuários captam as imagens e os sons, o modo como são tratados é definido pela localização precisa identificada pelo equipamento de GPS, que permite a realização das intervenções conforme a localização do usuário e, consequentemente, em função daquilo que o usuário está, na realidade, “olhando”. Nesses pontos, os parâmetros de som e imagens são alterados e novos materiais — como músicas, textos falados, documentos sampleados, fotos e vídeos de documentários e ficção — são incorporados, de modo a estender a percepção dos usuários durante o trajeto do sítio percorrido. Os usuários se sentem como se estivessem assistindo a um filme, do qual fazem parte como ativos observadores e personagens com os quais o sistema interage. Ao caminharem e mudarem de posição, os parâmetros de imagem e som são igualmente alterados. Os fones e as molduras de borracha dos óculos do HMD auxiliam na imersão do indivíduo nesse universo perceptivo estendido, uma vez que a percepção direta da realidade é praticamente impossível. O primeiro projeto foi executado em Basel, no vale Saint Alban, na Suíça. Esse sítio histórico permitiu que o projeto envolvesse a reflexão do passado, que, em muitos pontos do perímetro de intervenção, voltava como uma camada digital 3

O projeto pode ser visto em www.torpus.com/lifeclipper.

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WEBBER, Melvin M. “The urban place and the non-place urban realm”. In: WEBBER, Melvin M. DYCKMAN,

fantasmagórica, devido à sobreposição de tempos e espaços recriados tecnologicamente, estabelecendo relações entre o conhecimento do existente e de sua condição histórica. Os projetos que buscam representações, mesmo que momentâneas, para a cidade infiltrada encaram o desafio de que pensar e viver o espaço contemporâneo passa necessariamente por lidar com um híbrido entre os universos físico e tecnológico, e de assumir que ambos são cada vez mais indissociáveis, infiltram-se um no outro e constituem espacialidades múltiplas e mutáveis.

John W. FOLEY, Donald L; GUTENBERG, Albert Z. WHEATON, William L. C. e WURSTER, Catherine B. Explorations into urban structure. Filadélfia: Universidade da Pensilvânia, 1964. ZIELINSKI, Siegfried. “Paris revue virtuelle”. Forum Mem_brane. Cologne, 1995. www.khm.de/mem_ brane/Forum/Phil/paris.html.

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APROXIMAÇÕES ARRISCADAS ENTRE SITE-SPECIFIC E ARTES LOCATIVAS LUCAS BAMBOZZI

Gostaria de tratar, aqui, do lugar como campo de migrações semânticas, como migrações que ocorrem em função de deslocamentos culturais, operações linguísticas, influências tecnológicas, licenças poéticas ou digressões teóricas. Convivemos com definições que poderiam ser aplicadas a muitos trabalhos artísticos que dialogam com seu entorno: seriam obras site-related, context-specific, contexto-relacionadas... site-oriented... Esses são os “lugares” da palavra, que muitas vezes aprisiona e faz reverberar ao mesmo tempo. Tais denominações compostas, que definem qualidades do lugar, encontram curioso estado movediço ao serem relacionadas com os processos de fricção da arte com a comunicação. Os “des-locamentos” e ressalvas semânticas do lugar se iniciam, para os não nativos na língua inglesa, na utilização do termo “site-specific” a partir da literalidade a que é submetido na tradução para o português — incorrendo também em riscos linguísticos. No projeto-texto “especificidade e (in) traduzibilidade”, os artistas Jorge Mena Barreto e Raquel Garbelotti propõem que a utilização do vocábulo no contexto brasileiro “deveria sofrer uma elaboração, tradução ou canibalização, sob o risco de esvaziamento do teor de reflexão e crítica implicados pelo termo”. De fato, uma tradução literal como “lugar específico” é imprecisa e errônea, ao retirar o específico como “qualidade” da obra e colocá-lo em relação ao lugar físico1. Aproprio-me desse pensamento por compartilhar da vontade de esgarçamento do termo “site-specific”, que nos serve, afinal, para as ligações que a obra mantém 1 Adotando a simplicidade da explicação de Barreto e Garbelotti: “No inglês, a expressão site-specific é usada como um adjetivo para caracterizar a especificidade da obra de arte. A expressão ‘sítio específico’, em português, qualifica o lugar físico como sendo específico, e não a obra. Funciona como um substantivo”.

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com seu contexto, para além das relações de interioridade que, em meios plásticos mais convencionais, seriam atribuídas a elementos formais envolvendo cor, textura, composição — ou ainda profundidade de campo, montagem, narrativa, ritmo ou construção de sentido diegético, em meios audiovisuais. O que interessa aqui não é “re-buscar” mais uma discussão sobre “site-specific”, mas enfatizar aspectos referentes à exterioridade da obra de arte em um entorno que envolve o espaço público compartilhável. Como dizem os artistas-autores, “é na relação com seu contexto que a obra começa a formar seu significado e complexidade. É nas relações com seu entorno que o objeto ou instalação artística alcança sua potencialidade”. Revendo artistas como Richard Serra ou Robert Smithson, nos deparamos com a imensa fisicalidade com a qual seus trabalhos se relacionam — e com a qual se apresentam. Passamos a entender que, nessas obras, tal magnitude tem motivo de ser, especialmente ao se aproximarem de elementos exteriores de grande escala. Desde os anos 1970, artistas como Hans Haacke apontaram com seus trabalhos uma vertente próxima e, ao mesmo tempo, de outra ordem: a forma como o espaço público se transforma com a influência dos meios de comunicação de massa e de interesses comerciais privados. Foto © Andrew Dunn, 2005 Refiro-me a um suposto movimento de desmaterialização da Fulcrum (1987), escultura “site-specific” de Richard Serra, comissionada para noção de site que, a partir dos anos uma das entradas da estação Liverpool 1970, passa a incorporar obras nas Street em Londres quais “o mapeamento sociológico é explícito” (FOSTER, 1996), tornando o site não mais algo estritamente físico, mas o incorporando de um sentido discursivo e social. A noção de que o site não é definido como uma pré-condição, mas sim, “determinado discursivamente” é uma das premissas de Miwon Kwon em “One place after another: notes on site specificity” — um texto bastante utilizado recentemente por artistas e pesquisadores, que revela uma suposta revitalização

do estudo do lugar na arte. Citando James Meyer, Kwon discorre sobre o lugar na condição funcional (“functional site”), como um processo, uma operação que ocorre entre sites, delineando o lugar como um local onde se sobrepõem também informações. Para a autora, o lugar se torna funcional ao ser delineado como um campo de conhecimento, troca intelectual ou debate cultural (envolvendo eventualmente o próprio embate enfrentado pelo sujeito/artista no espaço, diante de informações como textos, fotografias, vídeos, dados, elementos físicos e objetos). Pois esse é o espaço teórico que nos permite rever o lugar em tempos de mobilidade e sob influência de tecnologias de posicionamento e geolocalização. O AMBIENTE INFORMACIONAL E O LUGAR “COMUNICANTE” As frases de Barbara Kruger ou de Jenny Holzer “embrulhando” grandes fachadas, valendo-se da estética “midiática” dos anos 1990 e inundando o espaço público que se fez através de um misto de arquitetura e comunicação, são exemplos de um suposto des-locamento e desmaterialização do site diante da informação e da comunicação visual. As projeções em grande escala de Krzysztof Wodiczko também nos pontuam o quanto a informação imaterial pode estruturar o espaço público de forma tão potente como a arquitetura construída fisicamente — inclusive em termos de construção de um espaço comum. São trabalhos em que o político se encontra em estado híbrido, em uma presença imaterial e que se torna potente ao ir de encontro à fisicalidade de espaços de circulação. Os projetos de vídeo de Dan Graham relacionados à arquitetura (desenhados para interação social em espaços públicos) também foram marcos no que se refere a um empacotamento entre o social, o espaço arquitetônico e a imaterialidade das imagens. No entanto, sempre que pensamos o espaço físico tendemos a recair em noções nostálgicas do lugar. Diríamos: “Nada como a fisicalidade, a ambiência...” São formas nostálgicas de fruição do espaço, de localização, de intimidade, que hoje se confundem com os estímulos que recebemos de informações ligadas a esses lugares. Já não é tão simples distinguir a formação arquitetônica da idealização semiótica que se faz de um espaço, local ou da própria cidade. Essas seriam as eficiências mais evidentes do chamado capitalismo “semiótico”, corporativo, tal como descrito por Maurizio Lazzarato, como uma forma de dominação global que “cria mundos cognitivos baseados em arranjos de percepção” (2000). Cabe a nós, usuários ou artistas, entender como se dão essas relações — algo também feito por publicitários, na maioria das vezes em melhores

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condições. As estratégias de representação desempenham um importante papel na definição do que seria uma nova forma de alienação na sociedade atual, resultado do acento semiótico de um capitalismo entranhado nas redes de comunicação. Nesse assentamento de ilusões, vale entendermos o quanto o lugar, o espaço e suas fisicalidades complementam o vazio que determinadas tecnologias causam (especialmente aquelas ligadas às virtualidades sugeridas na virada do século, que nos prendem a telas e a redes exclusivamente tecnológicas). Em 2004, durante o SonarSound, um braço do Sonar de Barcelona em São Paulo2, tive a oportunidade de viabilizar um trabalho que me parece ainda hoje emblemático com relação a questões de preenchimento de vazio e conexão de espaços díspares e até mesmo contrastantes. E esse trabalho nos serve para pensar a dificuldade de categorização com relação à noção de lugar quando se envolvem espaços mediados. O trabalho Coluna Infinita II — Opostos, de Daniel Lima, consistiu em uma emissão de raios laser advindos de dois pontos distintos da cidade de São Paulo. Uma fonte de laser originava-se do alto prédio do Instituto Tomie Ohtake (no bairro de Pinheiros), onde ocorria a exposição multimídia que abrigava o projeto, e apontava para a zona sul da cidade. Do “local-alvo”, uma escola estadual no bairro de Paraisópolis, partia outra fonte de raios, esta direcionada ao Instituto Tomie Ohtake. Entre os dois pontos existem sete quilômetros de espaços não contíguos de área urbana, conectada por ruas e vias de acesso, mas com muito pouco em comum, dado o contraste social entre os bairros. Por três dias, esse eixo horizontal de luz conectou “fisicamente” os espaços (em aspecto expandido, na medida em que luz também é matéria). O trabalho ocorreu primordialmente fora do espaço expositivo. Mas, tanto dentro da exposição como na escola pública no bairro distante, ambos os públicos tiveram acesso ao registro do contexto imediato de seus arredores. Durante as três noites do evento, o raio de luz oscilou entre o concreto e o “imaterial” e lançou-se como reação ao isolamento social imposto pela metrópole, como confraternização possível, como ponte temporária e simbólica entre isolamentos e exclusões que a cidade promove. A crítica e curadora de arte Daniela Labra assim o descreve: Nada de novo, mas as crianças moradoras de Paraisópolis, que subiram no topo do prédio e viram como a luz chegava até seu bairro, descobriram que São Paulo é grande

2 A mostra multimídia e de projetos ligados à tecnologia celular teve uma curadoria local por mim conduzida, em estreita sintonia com a curadoria internacional de Oscar Abril Oscaso, da equipe do Sonar de Barcelona.

demais e tem infinitas luzes, que nunca chegaram a sua vizinhança. Para quem via a comunidade do alto do prédio distante, o ponto de chegada daquela luz, lá, era uma explosão, um ponto imenso que devolvia com violência toda a energia do raio intenso que vinha do céu3.

Aqui surgem algumas questões: qual o específico desse trabalho? Com certeza não seria o raio laser, a tecnologia empregada e suas qualidades intrínsecas. Com que espaço ele se relaciona? Qual o lugar da obra? Não seria o prédio do Instituto Tomie Ohtake, nem a escola estadual em Paraisópolis. Mas talvez o vazio entre esses espaços, o que há de conectável entre eles. Se as tecnologias, a partir de sua mobilidade e ubiquidade (de poderem estar em todo lugar), estão se voltando para o espaço físico, então que se busquem formas de o relacionarmos com o espaço em sua vocação pública, tirando proveito dessas possibilidades de mediação.

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O projeto Coluna Infinita II — Opostos, de Daniel Lima: conectando as zonas oeste e sul da cidade de São Paulo Foto: Daniel Lima

MÍDIAS LOCATIVAS A expressão “mídias locativas” é nova, estranha, e às vezes pode ser contestada energicamente, de formas nem sempre construtivas. “É um conceito que pode ser problemático ou, no mínimo, impreciso.”4 Em termos técnicos, o locativo é localizável, rastreável, tende a ser intrusivo, serve a operações vigilantes e tem vocações disciplinadoras. Mas os desvios são possíveis, e é interessante entender o desvio/aproximação da tecnologia no espaço urbano. 3 Texto crítico e independente, na forma de PDF, para a divulgação do trabalho produzido pelo artista. 4 BASTOS, Marcus e GRIFFIS, Ryan. “Beyond ‘generative/emergent’ and ‘locative/performative’”, 2007. In: Leonardo Electronic Almanac. http://leoalmanac.org/resources/lead/digiwild/mbastosrgriffis.asp.


As chamadas artes locativas (conforme definição de Drew Hemment) “estão simultaneamente abrindo novos caminhos para o engajamento no mundo e mapeando seus próprios domínios e geopolíticas”5. Hemment propõe entender o termo de modo inclusivo, ao invés de excludente, destacando o risco de não diferenciar as mídias locativas de outras formas de envolvimento mediado com a espacialidade. Mas ele nos incita a enfrentar o contexto em vez de engavetar o campo prematuramente6.

A construção de um redimensionamento da ideia de site-specific nos termos colocados até o momento configura o “site” como um espaço de possibilidades não materiais, mas que apontam para espaços efetivos. Na mostra Deslocamentos: Desvios daTecnologia no Espaço Público (arte.mov 2007)7, foi possível pensar em um conjunto de projetos dentro da vertente “locativa”, os quais, como elemento comum, apresentam uma inversão do procedimento militar de localização, explorando as possibilidades que surgem entre redes móveis e espaço urbano. Os trabalhos foram montados levando-se em consideração as características da cidade de Belo Horizonte e do Parque Municipal (que funcionou como um laboratório para as instalações locativas). Assim, trabalhos criados originalmente para outros contextos, como Tactical Sound Garden, de Mark Shepard, AIR, do grupo Preemptive Media, ou Motoboys, de Antoni Abad, tiveram componentes pensados e cuidadosamente adaptados para a nova situação. Já o projeto Invisíveis, de Bruno Viana, foi desenvolvido por meio de um comissionamento que resultou num trabalho estritamente específico, relacionado a determinadas áreas do Parque Municipal, envolvendo suas histórias e frequentadores. O projeto partiu dos conceitos de portabilidade e realidade aumentada para proporcionar um passeio exploratório no parque, uma expedição em busca de personagens intimamente ligados àquele espaço. Os usuários ou participantes receberam celulares preparados com um aplicativo que, através de máscaras, filtra a imagem ao vivo da câmera, sobrepondo fotos preexistentes de frequentadores do parque às imagens vistas no visor do celular. Um algoritmo de

reconhecimento de imagem fez com que as imagens “flutuassem” em lugares fixos, dando a sensação de uma presença virtual no ambiente. O funcionamento do trabalho envolveu caminhadas por rotas menos conhecidas do parque, bem como boa dose de observação, algo que não ocorria à maioria dos transeuntes locais, que utilizavam o parque não como espaço de lazer, mas como uma conexão rápida entre duas grandes avenidas da cidade. Uma vez aberto a esse tipo de exploração, o visitante buscava áreas “ativas”, sensíveis ao reconhecimento do local pelo software e, assim, o programa identificava suas posições e inseria diferentes personagens anônimos na tela, relacionados ao espaço, que apareciam sentados em bancos, deitados na grama ou próximos a pontos de fácil referência em função do posicionamento do visitante. Usuários de celulares com o sistema operacional S60 — como os da Nseries, da Nokia — podiam instalar os programas em seus próprios telefones e explorar o parque de maneira independente. Uma intenção recorrente em mostras como essa tem sido agenciar as possibilidades de reaproximação dos indivíduos do espaço urbano compartilhável, muitas vezes através do caráter lúdico dos eventos criados, que, sendo também organizados em grupo, evidenciam, por sua vez, o potencial de agenciamento coletivo de uso das tecnologias sem fio8, algo cada vez mais difícil de ocorrer espontaneamente nas grandes cidades. Em diversas ocasiões, ao trabalhar com meios de comunicação, o que muitos artistas buscam é a criação de ferramentas ou formas de explicitar condições já existentes (uma espécie de ready-made) em um mecanismo de espelhamento de situações de conflito ou de confluências potencialmente relevantes (em termos de expressividade estética, social ou política) que já existem nas redes. Esse processo reflete uma consideração do curador Steve Dietz, em que ele faz ecoar uma pergunta-chave sobre a pertinência de uma arte nas redes, ao assumir que “a internet é mais interessante do que a maioria dos trabalhos de net-arte” (2001). O projeto Descontínua Paisagem, de Fernando Velázquez, contemplado com o prêmio Artes Locativas, criado pelo Vivo arte.mov em 2008, é uma contribuição que aponta para esse tipo de pensamento ao mesmo tempo em que desconstrói o caráter cartesiano ou didático que começa a ser associado a determinados projetos baseados em tecnologias móveis. Nele, os participantes escolhem lugares a serem visualizados a partir de uma lista de coordenadas enviando uma mensagem SMS a um servidor. As locações disponíveis são mapeadas a partir do site Degree Confluence Project

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8 A mostra incluiu ainda documentação de trabalhos como Os Duelistas (David Levine), Meu Nome é Ronaldo (Antoni Abad), Paintersflat.net (Brett Stalbaum e Paula Poole), Manifeste-se (mm não é confete), Hundekopf (Brian House com Knifeandfork), Can you see me now? (Blast Theory), Loca (Drew Hemment e grupo Loca) e outros.

Atualmente a única opção para as pessoas preocupadas com algumas das implicações das novas tecnologias de rede é desligá-las ou nunca começar a usá-las, em primeiro lugar. A política da nova mobilidade vai aparecer em algum lugar entre o ligamento e o desligamento. (Drew Hemment, em palestra no arte.mov 2006)

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http://www.drewhemment.com/2004/locative_arts.html Idem. Desde 2006, o evento tem curadoria de Lucas Bambozzi, Marcus Bastos e Rodrigo Minelli.

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O site Degree Confluence Project: o objetivo do projeto é visitar cada intersecção entre graus de latitude e longitude de números inteiros no mundo e tirar fotos nesses lugares. As fotos e histórias sobre essas visitas são postadas no site www.confluence.org Imagem Capturada do Website Degree Confluence

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(www.confluence.org), que adquiriu notoriedade na internet ao convidar indivíduos munidos de aparelho de GPS a dirigir-se aos pontos de encontro entre meridianos e paralelos, e fotografar o espaço circundante a partir desse ponto de vista específico, apontando a câmera para os pontos cardeais. O Degree Confluence tem certa pretensão de fornecer “uma amostragem do planeta Terra mapeado geograficamente”, organizado de forma matemática e supostamente precisa. Como outras propostas de construção coletiva (Google, YouTube, Dailymotion, 12 seconds), sugere ao usuário a perspectiva de colocar-se como colaborador do projeto, com seus testemunhos (textos e imagens) de como chegou aos pontos especificados e como os registrou. O projeto de Velázquez interage com esse dispositivo, buscando no Degree Confluence as imagens dos pontos existentes e trazendo-as para o contexto da exposição. Há uma interação que ocorre localmente no espaço expositivo e em seus arredores, mas que está localizada remotamente (no servidor do Degree) e se refere a pontos ainda mais remotos. O visitante também pode, ele mesmo, sair em busca de um cruzamento de coordenadas nas próprias imediações onde o trabalho acontece e introduzir uma paisagem mais local ou mais diretamente contextual no trabalho. De um modo ou de outro, o projeto aborda a questão do lugar pela negação de sua matemática, por se apropriar do olhar alheio, por traficar coordenadas de um espaço para outro, por introduzir elementos subjetivos e embaralhar o específico. A ideia de lugar existe o tempo todo no processo, inclusive de forma literal. Mas com qual “lugar” específico o trabalho se relaciona? Não seria efetivamente o das coordenadas. Com que contexto a obra dialoga? Presumidamente, talvez com o

contexto da web, a ânsia de mapeamento progressivo do planeta e, não menos interessante, se relaciona também com a disposição e mobilidade dos tantos indivíduos que colaboram com o projeto remotamente. Os resultados são visualizados num conjunto de quatro projeções que formam uma paisagem imaginária, descontínua, porém capaz de fazer expandir as noções de lugar e espaço como territórios fixos, desprovidos de subjetividade. Outro projeto que se insere na cidade como proposta de exploração unindo elementos físicos e informacionais é o HiperGps. Idealizado por Cícero Inacio Silva e Brett Stalbaum, propõe aplicar o conceito de hipertexto à trama da cidade. Ao caminhar pelas ruas das cidades, os participantes podem localizar, através de celulares dotados de GPS, uma combinação de textos, imagens e sons prégravados no sistema. Apesar de ainda não implementado9, o projeto avança no sentido de pensar a cidade não como um intrincamento de coordenadas geográficas e números (dados como latitude e longitude significam pouco para a maioria das pessoas), mas como pontos e regiões sensíveis que podem levar as pessoas a compartilhar histórias e eventualmente encontrar situações em comum. A acessibilidade e a adoção do comum (o commons, tão usurpado pelos poderes privados) são elementos vitais nas tênues práticas associadas à tecnologia móvel, que, exatamente por esse viés, talvez as torne menos um novo gadget de mediação e mais uma ferramenta de aproximação da realidade social — ou, ainda, uma forma de contato entre realidades sociais que, de outra forma, permaneceriam distantes entre si. Assim, pouco a pouco vemos o surgimento, talvez ainda tímido, de trabalhos que lidam com grandes escalas e magnitudes (os parques, as cidades), ao mesmo tempo em que se apresentam como intervenções quase invisíveis no espaço físico. São configurações de obras afiliadas a categorias instáveis e incertas, como o são os conceitos ligados às locative media, mas que sugerem uma possível apropriação das ideias de “site-related” ou de “context-specific” — desprovidas de fisicalidade e, por isso, tão dependentes desta. Não interessam muito as premonições, mas vale dizer que se trata de uma tecnologia que ganha respaldo e se legitima através da popularização de seu uso e aplicação. Nenhuma tecnologia se espalhou tão rapidamente como as mídias móveis estão se difundindo e se sedimentando nas estratificações mais populares da sociedade. Assim, o lugar do “locativo” que nos interessa não é um slogan do tipo anytime, anywhere, everywhere, mas uma ideia que resulta da aproximação com práticas 9

O projeto foi apresentado para comissionamento junto ao Prêmio Artes Locativas do Vivo arte.mov 2008.

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muito potentes no campo da arte, com questões que envolvem os espaços físicos e suas especificidades, tensões e conflitos. Pode ser uma aproximação arriscada equacionar trabalhos amplamente celebrados no circuito da arte com esses que surgem e sequer são considerados arte pelos círculos mais estabelecidos. Somente o tempo nos permitirá descobrir como colocar lado a lado, num mesmo campo de práticas, a fisicalidade de algumas obras e a total imaterialidade de outras. Caberiam a essa arte locativa, desgarrada e de lastros frouxos, a busca e o risco de alguma afiliação a partir do que se produziu sob a ideia de site-specific, de “site funcional”. Nos resta indagar que tipo de obras ainda surgirão nesse novo e movediço “lugar” que toma forma no mundo.

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CARTOGRAFIAS LÍQUIDAS: A CIDADE COMO ESCRITA OU A ESCRITA DA CIDADE PRISCILA ARANTES

Walter Benjamin é um autor lembrado com frequência, cujos textos são sempre citados quando se trata de pensar a obra de arte e a estética contemporânea. “Pequena história da fotografia” e “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” tornaram-se textos seminais em nossa cultura para descrever as metamorfoses trazidas pelos avanços tecnológicos ao aparelho perceptivo. Longe de enxergar a história da arte apenas como a história dos conceitos estéticos, o filósofo acentua a importância dos meios e técnicas que permitem colocar esses conceitos em voga. As técnicas, de acordo com Benjamin, desencadeiam percepções e processos cognitivos que são, muitas vezes, os motores das grandes transformações estéticas. Assim é sua descrição do cinema: o filme não somente instaura uma nova forma de percepção, distraída, diversa daquela vinculada às produções anteriores, mas, através da técnica de montagem e reprodução, desintegra um valor estético caro à tradição — a aura, isto é, determinadas concepções espaço-temporais vinculadas à tradição. A presença cada vez mais massiva dos meios de comunicação na sociedade levaria, de acordo com Vattimo (1996), a uma erosão do princípio de realidade e a uma explosão da estética para fora dos limites que lhes eram estabelecidos pela tradição. Nessa estetização do cotidiano, o que está implícito no pensamento de Vattimo é a importância do fenômeno estético para se pensar as questões mais gerais da realidade social. Partindo desses dois princípios — de que a técnica determina os preceitos perceptivos e de que as questões estéticas estão atreladas às discussões mais gerais da sociedade —, o presente artigo tem como objetivo discutir as metamorfoses da percepção no contexto da contemporaneidade.


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Se for certo que existe uma intrínseca relação entre estética, meios técnicos e sociedade, quais os formatos perceptivos engendrados a partir do advento da cibercultura e como as discussões espaço-temporais refletem o momento do capitalismo informacional de nosso tempo? Partimos, neste trabalho, da hipótese de que as novas tecnologias midiáticas instauram uma estética do fluxo, daquilo que se dá em trânsito e em contínuo devir. Fluxo é a qualidade, ato ou efeito de fluir. Diz respeito ao movimento de um líquido e também à substância que facilita a fusão de outras. Por outro lado, constitui-se como característica primordial dos fluidos, representando aquilo que não tem forma fixa e durável. Zygmunt Bauman (2001) utiliza os termos liquidez e fluidez para descrever a cultura de nosso tempo. Sua concepção tem raízes em uma imagem cunhada há um século e meio pelos autores do Manifesto Comunista para descrever a sociedade burguesa: “Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com os outros homens”. Derreter os sólidos, dissolver aquilo que persiste no tempo e é infenso a sua passagem ou imune a seu fluxo é o espírito da nova fase na história da modernidade, segundo Bauman. Os valores morais enfraquecem em sua coerência, as instituições tornam-se cada vez mais “leves”, cada vez menos comprometidas com acordos de longa duração, as relações afetivas fogem a contratos duradouros, as verdades deixam de ser inquestionáveis. Nesse mundo — contrariamente ao pensamento moderno em que a razão dominava soberana e as verdades eram sólidas como as certezas sobre as coisas — situamo-nos dentro da lógica da indeterminação, da não perenidade, daquilo que é volátil e efêmero, incerto, instável e passageiro. O conceito de fluxo como possibilidade para se pensar a estética contemporânea surge, portanto, como contraponto aos discursos estéticos da tradição, que pregam a forma fixa e perene: índices da beleza, da objetividade e do princípio de verossimilhança. Em Formless, Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois indicam essa direção. Partindo de uma definição de Georges Bataille, utilizam o termo “informe” para colocar em xeque os mitos fundadores do discurso modernista no campo das artes, instaurando conceitos como base materialism, pulse, horizontality e entropy. A sociedade de nosso tempo é marcada pelos fluxos de informação e inovações tecnológicas. Mais que meros recursos técnicos, as tecnologias da informação vêm provocando alterações profundas no mundo do trabalho, da

economia, na área da cultura, na área social, no aparelho perceptivo, ou seja, na forma de nos relacionarmos com o tempo e o espaço. A aceleração tecnológica põe em cena a instantaneidade do tempo: tempo sem tempo, que rompe com uma visão linear, irreversível, mensurável e previsível do tempo. Se, por um lado, o culto ao instantâneo e ao efêmero aponta para a fabricação do esquecimento, por outro, gera um incontrolável desejo de passado, colocando a memória e a amnésia como discussões centrais da atualidade. Diferentemente do espaço renascentista, cujo discurso se baseava na visão de um espaço homogêneo e mensurável e tinha no sujeito e na visualidade seu ponto fundamental, o espaço contemporâneo coloca em dúvida a noção de contiguidade física, instaurando noções como a Imagem Retirada da Wikipedia da ubiquidade inerente a uma lógica de fluxos de Estrutura criada em memória de Walter informação. De Lyotard a Paul Virilio (1993), o Benjamin, na cidade de Portbou, onde o filósofo se suicidou após tentativa fracassada de cruzar espaço parece ter se esfarelado, trocando sua a fronteira entre França e Espanha fixidez e imobilidade por um espaço em fluxo, que coloca na conexão, na mobilidade e no sujeito em trânsito seu eixo fundamental. Na arte, a configuração dessas novas espacializações corresponde à prática dos deslocamentos, às desterritorializações, à crítica ao cubo branco e ao sistema da arte, à ruptura com os espaços expositivos tradicionais como museus e galerias de arte, às práticas de intervenções urbanas, às performances e happenings, às produções artísticas em rede, às experimentações em arte móvel, enfim, às novas configurações espaciais da arte que foram engendradas desde o início do século passado pelas vanguardas históricas e se estendem à atualidade. Se nos anos 1960 e 1970 as práticas de intervenções urbanas já reclamavam pela ruptura com o cubo branco, hoje a arte se abre para novas zonas de experimentação, ocupando espaços virtuais e/ou cíbridos. Configuram-se eixos de ação em espaços coletivos e colaborativos que, muitas vezes, colocam em cena as questões mais gerais da sociedade contemporânea. Sem pretender traçar uma linha histórica, o presente artigo tem como objetivo discutir as estratégias empregadas na configuração dessas novas

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cartografias, enfocando especialmente as investigações estéticas que se apropriaram do espaço urbano. O que interessa é menos realizar um estudo histórico sobre o conceito de espaço na arte, mas verificar como o discurso de um espaço móvel, em fluxo, interfaceado, que prevê a conexão, a mobilidade e a comutação entre espaço físico e espaço de comunicação, é revelador de determinados preceitos da cultura “líquida” e “fluida” de nosso tempo.

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A CIDADE COMO METÁFORA DO PENSAMENTO E A FIXIDEZ DO ESPAÇO NO RENASCIMENTO A perspectiva central, técnica empregada no século XV, pressupõe uma visão racional e sistemática do espaço, contrária ao espaço descontínuo e fragmentário da época medieval. A ordem divina das coisas é substituída por uma ordem racional e científica, e o espaço passa a ser criação da inteligência do artista-geômetra. A perspectiva não é somente mero recurso técnico, mas princípio revelador de determinados pressupostos culturais da época. Ela repousa no pressuposto de que as retas do espaço convergem para um ponto de fuga único e gerador de ordem: o olho do sujeito, único e imóvel. A ligação entre individualismo e perspectiva é relevante; não por acaso podemos dizer que a perspectiva é o substrato material indicador dos princípios cartesianos de racionalidade que foram integrados ao projeto do Iluminismo — base epistemológica central para a construção de todo o pensamento moderno. A concepção de espaço no Renascimento é reveladora de uma relação profunda com os princípios cartesianos de racionalidade e com questões mais amplas da sociedade da época. Não por acaso, Descartes, na segunda parte de seu Discurso do método, esboça os fundamentos seguros do pensamento pelo paradigma espacial da fundação urbanística e arquitetônica: permanecia o dia inteiro fechado num quarto bem aquecido onde dispunha de todo o vagar para me entreter com meus pensamentos. Entre eles, um dos primeiros foi que me lembrei de considerar que, amiúde, não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou [...] Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, tornaram-se no correr do tempo grandes centros são ordinariamente tão mal compassadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um engenheiro a sua fantasia numa planície [...]1 1

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril, 1979, Coleção Os Pensadores, p. 34.

Nessa passagem, fica claro que a cidade ordenada e regular é metáfora do pensamento racional: o arquiteto-filósofo deve rejeitar caminhos instáveis para alcançar a verdade, assim como a cidade deve ser construída por um único mestre. A ideia de que a cidade é uma metáfora para descrever as trajetórias do pensamento não é recente. Já Platão, em A república, descreve a cidade ideal tomando como paradigma os princípios epistemológicos de sua teoria das ideias. A república de Platão tem centro e ordem, dividindo-se em compartimentos hierárquicos como uma pirâmide. Em seu topo encontramos um governante: o filósofo-rei, único cidadão que tem acesso à verdade e ao Bem. De forma semelhante, no Discurso do método, a topologia urbana revela uma cidade do caminho certeiro: no centro encontramos seu arquiteto, o cogito cartesiano, a explicitação, no campo filosófico, do sujeito imóvel e unilocular da perspectiva renascentista. A CIDADE COMO ESCRITURA Já Baudelaire, em O pintor da vida moderna, descreve o dândi, o burguês melancólico que andava pelo espaço da cidade. Do início do século passado, podemos lembrar dos dadaístas com as excursões urbanas por lugares banais e as deambulações aleatórias organizadas por Aragon, Breton e Picabia. Muitas dessas deambulações enfocavam a experiência física da errância no espaço urbano, que foi não somente a base dos manifestos surrealistas, mas também de Nadja (1928) e L’amour fou (1937), de André Breton, e Le paysan de Paris (1926), de Aragon, publicado no Brasil em 1996 como O camponês de Paris. Longe de ser apenas cenário urbano para as idas e vindas do personagem de Le paysan de Paris, a cidade de Paris do início do século passado é metáfora, especialmente no “Prefácio a uma mitologia moderna”, do pensar surrealista e da crítica à racionalidade cartesiana. Le paysan de Paris é, nesse sentido, uma manifestação, no campo da literatura, da crise dos preceitos metafísicos e filosóficos cartesianos, da crença nas verdades inquestionáveis e duradouras. A cidade dos surrealistas não revela um espaço regrado e seguro como as cidades de Platão e Descartes; não é metáfora das certezas e verdades prometidas pelos ideais da Razão, mas um espaço prenhe de sonhos, desejos, cruzamentos insólitos, imagens dialéticas, ambiguidades e passagens que devem ser decifradas. A cidade dos surrealistas revela espaços que, tais como os sonhos, trazem encruzilhadas, trechos contraditórios que se misturam, produzindo, muitas vezes, curtos-circuitos iluminadores (iluminação profana). Seus meandros e ruelas não descrevem e não são fruto de um arquiteto

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engenhoso, mas da vivência daqueles que, assim como Le paysan de Paris, ousam caminhar por outras bifurcações que não aquelas impostas pela razão instrumentalista. As errâncias surrealistas e as deambulações pelo espaço urbano são retomados por Walter Benjamin sobretudo em Passagens. Nele, Benjamin evoca a ideia da cidade como escritura, pensando-a como um dispositivo autêntico da história, das vozes, desejos, sonhos e memórias que compõem o cenário social. Também em Passagens encontramos a figura do flâneur, personagem urbano que exprime o fenômeno da metrópole moderna. Pode-se dizer que o personagem do Flâneur em Passagens encontra uma posição semelhante ao personagem da Melancolia em A origem do drama barroco alemão. Ambas as figuras são uma espécie de “ponto arquimediano” das respectivas obras benjaminianas. Ao olhar da melancolia, no qual se expressam ao mesmo tempo uma disposição meditativa e uma percepção muito aguda, correspondem no flâneur um interesse pelo espetáculo da cidade, uma disposição ao ócio, ao andar vagabundo, e uma percepção dispersa e distraída — uma percepção em flânerie. Apesar do flâneur ser o protótipo do burguês entediado típico da modernidade, os situacionistas acabaram por contribuir para desenvolver muitas dessas ideias ao propor a noção de deriva urbana e da errância voluntária pelo espaço urbano (BERENSTEIN, 2003). Criticando o movimento moderno em arquitetura e urbanismo, principalmente a racionalidade cartesiana de Le Corbusier, os situacionistas criticavam a concepção da cidade como cidade-espetáculo reclamando por um urbanismo mais participativo e por novas formas de fruição do espaço urbano. O andar “sem rumo” e a relação mais afetiva com o espaço urbano tinham como proposta romper com a visão fria e racionalista pregada pela arquitetura e pelo urbanismo modernos: para tentar chegar a essa construção total de um ambiente, os situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia, e uma prática ou técnica,a deriva, que estavam diretamente relacionados. A psicogeografia foi definida como um estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos2.

2 BERENSTEIN, Paola (org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 23.

INVESTIGAÇÕES POÉTICAS NO AMBIENTE URBANO No Brasil, a utilização de espaços urbanos como meio expressivo eclode nos anos 1970 com a manifestação de grupos e práticas que reivindicavam autonomia em relação ao mercado confinado da galeria e do museu. Contudo, não podemos esquecer que, já nos anos 1930, Flávio de Carvalho, conhecedor dos surrealistas e de suas propostas deambulatórias, elabora projetos que batiza de Experiências; errâncias urbanas performáticas. Uma de suas experiências mais conhecidas, realizada em 1931, consistiu na prática de uma deambulação, com um tipo de boné cobrindo a cabeça, no contrafluxo de uma procissão de Corpus Christi pelas ruas de São Paulo. Depois de algum tempo a multidão se voltou contra ele, que precisou fugir e buscar abrigo em uma leiteria, contando com uma intervenção policial. As experiências de Flávio de Carvalho não somente estavam em sintonia com as propostas das vanguardas que repensaram a noção de obra e objeto estético, desenvolvendo experimentações alternativas, mas também com o papel do corpo como potência poética, propositor de ações e poéticas performáticas. Partindo de uma segunda perspectiva, podemos lembrar as investigações de Artur Barrio que, no final dos anos 1960, executa ações no espaço urbano. A mais famosa, Situação, ocorreu em 1969, desdobrando-se no ano seguinte. A ideia foi depositar, em diferentes locais do espaço público, trouxas com materiais orgânicos e inorgânicos, como cimento, borracha, carne e tecidos. O cheiro de carne apodrecida e o aspecto do sangue, que manchava a superfície das trouxas, acabavam por gerar preocupações de ordem ideológica e política relacionadas ao momento de ditadura militar por qual passava o país. Mas não se limitavam a isso. Colocavam em debate, também, a deterioração do sistema de arte cuja única permanência fixa parece ser dada pela figura do artista. Nelson Leirner, Cláudio Tozzi, Viajou sem Passaporte, o grupo Manga Rosa e o 3Nós3 são alguns dos exemplos, dentre inúmeros outros, que nos anos 1980 utilizaram a cidade como palco de experimentação estética. No caso do 3Nós3, a atuação do grupo era definida como “interversão” e não intervenção, já que o sentido de sua produção ligava-se ao conceito de inversão da percepção da paisagem, muito mais do que à ideia de infiltrar-se nela simplesmente. No início de 1979, o 3Nós3 — composto por Hudinilson Jr., Rafael França e Mario Ramiro — fez uma espécie de ataque: uma noite, a partir de um roteiro previamente marcado num mapa (sempre trabalhamos em cima da planta da cidade), saímos encapuzando com sacos de lixo todas as estátuas que pudemos em São Paulo: no centro, no Ibirapuera, o

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Monumento às Bandeiras, morrendo de medo; havia a ronda e até explicar era complicado. De manhã cedinho, telefonamos para todos os jornais, causando um burburinho na imprensa; mas tivemos uma grande cobertura, e descobrimos que os jornais servem como registro, apesar dos mal-entendidos. Tomamos gosto pela coisa, a ideia era a motivação plástica na paisagem, chamar a atenção das pessoas que passam todos os dias e sequer veem as estátuas. Em seguida fizemos nosso “X Galeria”. Com fita-crepe, vedamos as portas das galerias em “X” e deixamos um bilhete em cada uma: “O que está dentro fica, o que está fora se expande”3.

Sacos pretos encobrem monumentos públicos, em intervenção do grupo 3Nós3 que faz São Paulo acordar com sua paisagem modificada

82 Foto: Mário Ramiro

Para Ramiro, a manipulação da mídia, em paralelo à utilização da cidade como palco das intervenções, é um dos diferenciadores das práticas do grupo em relação a outros grupos que atuavam no ambiente urbano. A intervenção no espaço urbano só tinha sentido se pudesse, de alguma forma, reverberar no espaço dos meios de comunicação, construindo uma espécie de rede entre o espaço urbano e o da mídia, e ampliando em escala a experimentação desenvolvida no espaço físico. Dentro de outra perspectiva, encontramos os trabalhos do argelino Fred Forest, cujo ponto de partida é considerar a cidade (sociedade) como comunicação. Isso significa pensar a cidade/sociedade menos a partir de uma visão urbanista racionalista, mas considerá-la eminentemente um espaço de relações comunicativas e afetivas, como um dispositivo de interlocução social. Para além de situar-se no espaço confinado do museu e da galeria, as ações de Forest, muitas vezes, se desenvolveram no espaço da realidade cotidiana, em circuitos paralelos, extramuros, postulando um questionamento de territórios estabelecidos e utilizando a cidade como protagonista da 3

RAMIRO, Mario. “Grupo 3Nós3: the outside expands”. In: Parachute, 2004, p. 50.

manifestação estética. Suas ações nos remetem ao programa político e estético dos situacionistas, que defendiam a união da dimensão estética com a experiência social e política. É o caso de O Branco Invade a Cidade (1973), desenvolvida na época da Bienal Internacional de São Paulo. A ação consistiu em sair pelo centro de São Paulo — do Largo do Arouche até a Praça da Sé — simulando uma passeata com cerca de dez pessoas carregando cartazes em branco. Centenas de curiosos aderiram à “passeata”, bloqueando o trânsito por várias horas. Forest foi preso pelo Dops e a organização da Bienal e a embaixada da França tiveram de intervir a seu favor. Em Avis de Recherche: Julia Margaret Cameron (1988), a ação consistiu em, por várias semanas, colocar em jornais e outras formas de comunicação, tais como grafites espalhados no espaço urbano de uma cidade no interior da França, notícias sobre o desaparecimento de uma personagem fictícia. O público era convidado a escrever sobre a personagem, ultrapassando a barreira entre o real e o imaginário. Além de criar um circuito coletivo de informação, o projeto instigava a imaginação do público, colocando em cena o fato de que fazemos parte de uma sociedade comunicante (ARANTES, 2006). De maneira análoga, durante a VII JAC (Jovem Arte Contemporânea), em novembro de 1973, o artista organiza no MAC-USP o evento intitulado Passeio Sociológico pelo Bairro do Brooklin: Acompanhado de estudantes transportando seus assentos individuais e dispondo de um equipamento da TV Cultura, ele registrou os encontros do grupo com populares na rua e em estabelecimentos, criando situações de “guerilla video” e diálogos inesperados para um estado de restrições à liberdade de pensamento. O incomum episódio de arte/comunicação foi vigiado pela polícia4.

A ESCRITURA URBANA DAS POÉTICAS MIDIÁTICAS NA CULTURA LÍQUIDA Tanto os trabalhos do grupo 3Nós3 quanto os de Fred Forest, apesar de suas diferenças, põem em discussão pontos que parecem ser fundamentais: 1) a concepção de um espaço que se constrói a partir de contextos e interlocução sociais; 2) a comutação entre os espaços físicos/urbanos e comunicacionais. De certa forma, essas práticas colocam em questão a ideia da cidade como escritura, da cidade pensada como um dispositivo que guarda desejos,

4 ZANINI, Walter. “Primeiros tempos da arte/tecnologia no Brasil”. In: DOMINGUES, Diana (org.). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Editora Unesp, 1997, p. 237.

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memórias e afetos. São experimentações que utilizam as linguagens midiáticas para criar situações de interlocução social, provocando um diálogo do corpo social com o corpo da cidade. São projetos que, de algum modo, enfocam o mundo, evidenciando as lógicas e as estruturas que permeiam a sociedade contemporânea. Caso exemplar de projetos nessa linha são aqueles desenvolvidos por Maurício Dias e Walter Riedweg. Muitos dos protagonistas de seus trabalhos são grupos sociais que se situam à margem do universo supostamente garantido pelo capitalismo mundial. Os projetos de Dias e Riedweg produzem, muitas vezes, uma falha, um corte, uma interrupção na ordem dos sentidos e do curso “natural” das coisas. Provocam uma iluminação — profana como diria Benjamin — ao evidenciar o esgarçamento e as tensões que compõem o cenário social. Entre os trabalhos da dupla que atuam nesse sentido pode-se destacar Dentro e Fora do Tubo (1988). Realizado a partir de depoimentos gravados com refugiados de terras em conflito que viviam na Suíça à espera da legalização de seu asilo político, teve como proposta — a partir de uma intensa convivência com o grupo dos depoentes — a gravação de depoimentos orais, nos quais o imigrante apresentava suas memórias do trajeto percorrido quando da saída de sua cidade natal até a chegada à Suíça. Essas lembranças, vozes, memórias dos refugiados foram colocados em walkie-talkies e espalhados, dentro de tubos, no espaço urbano, disponíveis para a escuta da população. Trata-se, nesse caso, de colocar em destaque, publicamente, estados afetivos e experiências sensórias decorrentes de situações específicas, resultantes dos processos de marginalização. Um processo como esse nos remete, de certa forma, às experiências desenvolvidas pelo artista polonês Krzysztof Wodiczko, conhecido desde os anos 1980 por trabalhar com projeções de vídeo em grande escala no espaço público. Em Cecut Project (2000), realizado no Centro Cultural de Tijuana (Cecut), no México, o artista se utiliza de dispositivos midiáticos para dar voz a mulheres operárias da cidade de Tijuana. Nesse trabalho, o artista criou um capacete integrado a uma câmera e a um microfone que permitia gravar e transmitir, em tempo real, a imagem e a voz da depoente na fachada do Centro Cultural. Os testemunhos das mulheres, ouvidos pelo público em uma praça pública, discorriam sobre abuso sexual, alcoolismo e violência doméstica. Walter Benjamin, em “O narrador”, esboça a ideia de uma narração construída em ruínas. O narrador não tem por alvo recolher os grandes feitos históricos ou a história dita oficial, mas tudo aquilo que é deixado para trás — os cacos, os estilhaços — como algo que não tem significação, como algo com o qual a história oficial não sabe o que fazer. Muitos desses feitos são relatos de

Tijuana Project: projeto do artista polonês Krzystof Wodiczko dá voz a mulheres operárias mexicanas, por meio de projeções de vídeo de larga escala, em espaços públicos Imagem Capturada do Website do Projeto

personagens anônimas que vivem à margem do sistema, por vezes negligenciadas pelo curso da história oficial. O trabalho de Wodiczko nos convida a pensar nas questões da narrativa nos termos colocados por Walter Benjamin. Wodiczko mostra uma cidade que guarda fantasmas, casos desconhecidos daqueles que vivem à margem do sistema. Sob outro ponto de vista, podemos destacar trabalhos tais como Amodal Suspension e Body Movies, do artista Rafael Lozano-Hemmer. Amodal Suspension era uma instalação em grande escala, desenhada para a inauguração do Yamaguchi Center for Art and Media (YCAM), no Japão, que permitia ao participante enviar mensagens via telefone celular e internet ao espaço da cidade. As mensagens se codificavam em sequências de luz e eram disparadas por canhões, permanecendo no céu até que fossem lidas pelo destinatário. Uma vez lidas, eram retiradas do céu e projetadas na fachada do edifício do YCAM. Nesse trabalho torna-se evidente a ideia da cidade como dispositivo de comunicação e como mecanismo para trocas de afeto dentro da perspectiva já desenhada pelos situacionistas. Além disso, o trabalho também coloca em debate a questão da mobilidade e das conexões em rede, um dos temas mais destacados na cultura em liquefação. Mais que assinalar a fluidez do espaço na contemporaneidade e as comutações entre espaço físico e de comunicação, o projeto aponta para a ideia da rapidez dos “relacionamentos virtuais”. As conexões via internet, e-mail, SMS e telefone celular exigem rapidez, sendo extremamente fácil sair dessas conexões; basta deixar de responder a um e-mail ou apertar a tecla “apagar”. São relacionamentos que se acendem e se apagam com a velocidade da luz.

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O que se percebe nesses trabalhos, não obstante suas diferenças, é a construção de uma visão de espaços em movimento que, longe de serem espaços racionalizantes e fixos como os da cultura renascentista, são fluídos, reveladores dos meandros da cultura líquida de nossa época — uma cultura que põe em questão certezas, visões estáveis e verdades duradouras. Em vez de encontrar o “porto seguro” prometido pelo cogito cartesiano, o sujeito contemporâneo parece se deparar com uma cidade de outro tipo. Nessa cidade não existe mais lugar para a certeza e segurança encontradas pelo eu cartesiano. Aqui nenhum lugar parece ser o locus privilegiado para a verdade e a segurança prometidas. Ao contrário: seus lugares estão prenhes de ambiguidades, passagens, vozes e escrituras de uma cultura em estado de liquefação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ARANTES, Priscila. Arte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Editora Senac, 2005. ARANTES, Priscila. “Circuitos paralelos: restrospectiva Fred Forest”. In: BOUSSO, Vitoria D. (org.) 86

Circuitos paralelos: retrospectiva Fred Forest. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol. 1, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1993. BERENSTEIN, Paola (org.) Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. BOIS, Yve-Alain e KRAUSS, Rosalind E. Formless. Nova York: Zone Books, 2000. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede — A era da informação: economia, sociedade e cultura: volume 1. São Paulo: Paz e Terra, 1999. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril, 1979, Coleção Os Pensadores. RAMIRO, Mario. “Grupo 3Nós3: the outside expands”. In: Parachute, 2004, p. 41-53. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. VIRILIO, Paul. O espaço crítico e as perspectivas do tempo real. São Paulo: Editora 34, 1993.

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NOTAS SOBRE A CULTURA E A ARTE DA MOBILIDADE (PENSAMENTOS NÔMADES PARA HIPÓTESES EM FLUXO) GISELLE BEIGUELMAN

Esse ensaio se divide em duas partes. Na primeira, apresento minhas notas sobre a cultura e arte da mobilidade. Trata-se de uma reunião de pensamentos que venho testando em projetos realizados ao longo de quase uma década1. Na segunda, um ensaio visual põe à prova algumas dessas notas, confrontando certas nuances de suas hipóteses. PARTE 1 — PENSAMENTOS NÔMADES A cultura da mobilidade é um conjunto de práticas sociais e simbólicas que reestrutura as maneiras de ver e perceber o Outro e a nós mesmos. Atravessada por substratos impressos e digitais, fonéticos e não fonéticos, nela se emaranham códigos informativos, de programação e estéticos. Produz uma nova semântica de ordenação dos signos e dos processos de significação, no interior do qual se rearticulam as relações entre as palavras e os símbolos e se redefinem os limites da linguagem, da comunicação e da arte. Os dispositivos passam a constituir extensões conectadas de nossos corpos às redes, “ciborguizando” nossos equipamentos biológicos. Trata-se de uma cultura que responde às demandas de sujeitos multitarefa e seu olhar constantemente distribuído entre atividades simultâneas e não correlatas. A criação, nesse contexto, implica repensar as condições de legibilidade e as convenções e formatos da comunicação e transmissão. As ações ocorrem em espaços informacionais, lisos, fluidos, ocupados por práticas nômades que reconfiguram noções de distância e localidade e os limites entre os lugares da arte, da propaganda e da comunicação. Nesse contexto, o processo de criação também requer, por isso, a compreensão dos meandros 1

http://www.desvirtual.com/category/mobile/

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políticos, econômicos e ideológicos que se interpõem a essas condições de criação e aos nomadismos tecnológicos. A experiência nômade da cultura da mobilidade se realiza no ruído dos espaços de produção e consumo das redes fixas e móveis. O ruído da comunicação móvel é fruto não só das situações de trânsito em que ela ocorre, mas também dos atritos e tensões com os dispositivos e os circuitos de circulação. Ao contrário do que houve com a internet baseada em linhas fixas, à qual as empresas de informática se ligaram posteriormente, o contexto wireless já nasceu corporativo e é inteiramente mediado por operadoras e fabricantes de aparelhos. Hoje, talvez mais do que nunca, é fundamental a consciência de que qualquer opção tecnológica é ideológica. Manter a liberdade de criação e pensamento, nesse âmbito, passa pelo abandono de posturas românticas fundadas na base da divisão de trabalho entre os inspirados e os transpirados. Sem conhecer os fundamentos da programação e os circuitos de circulação que se dão nos fluxos da cultura mobile, corre-se o risco de virar garoto-propaganda sem sequer saber do quê... A arte criada com e para os dispositivos móveis é feita a partir de uma integração de repertórios estéticos, tecnológicos, culturais e da publicidade, conjugados a uma nova valoração da obra de arte, desconectada de sua função objetal. Não se trata apenas de arte imaterial. Trata-se de artes nômades, que operam no trânsito e em trânsito, de projetos concebidos para ambientes de redes que são validados apenas quando em fluxo, em relação a outras dinâmicas e conjuntos de dados. São artes as quais configuram uma criação que lida com diferentes tipos de conexão, velocidade de tráfego, qualidade de monitor, resolução de tela e outras tantas instâncias que alteram as formas de recepção. O que se vê é resultado de incontáveis possibilidades de combinação entre programas distintos, sistemas operacionais, provedores de acesso, operadoras telefônicas, fabricantes de aparelho e todas as suas inumeráveis formas de personalização. Criar nessas e para essas condições é, então, pensar uma estética da transmissão, do peso dos dados e da vulnerabilidade de seus fluxos. A arte das redes sem fio é um jogo constante de articulação do imponderável e do imprevisível, que impõem refletir acerca de estratégias de programação e publicação que tornem a obra legível, decodificável, sensível. Arte para dispositivos móveis e arte com dispositivos móveis não são a mesma coisa, mas são, ambas, modalidades da arte wireless. A primeira tende a ser mais imperceptível e vivenciada individualmente. Ringtones, por exemplo, são arte para dispositivos móveis, e estão abrindo uma perspectiva interessante de músicas

urbanas, adequadas a situações de trânsito, entropia e mobilidade. Já a arte com dispositivos móveis tende a ser coletiva e anônima. Caracteriza-se pela interação entre dispositivos móveis com outros equipamentos de telecomunicação — internet, painel eletrônico, rede elétrica —, e situações públicas e coletivas — como shows e cinemas. Com ou para dispositivos móveis, a arte wireless faz repensar nossos parâmetros de criação e recepção: é uma arte do “entre”, do hiato e do intervalo. Desafia os modelos de atenção, contemplação e concentração, por ser mediada por equipamentos que servem a “n” funções — tocar música, ver vídeo, acessar a conta bancária, conferir a agenda, falar — e são utilizados quando estamos envolvidos em mais de uma ação, como ao pedir a conta no restaurante e usar o celular ao mesmo tempo. É arte para não ser vista como arte, que se confunde com os dispositivos de comunicação e se deixa ler entrecortada por inúmeros outros inputs. Passa por um investimento sistemático na desespetacularização da arte, catalisada pela confusão dos espaços que permitiam reconhecer, no passado, as competências particulares do espaço da arte, da propaganda, da comunicação e da informação. O aumento da capacidade de produzir, transmitir e visualizar imagens colocou os dispositivos móveis no centro da experiência urbana, dando consistência às artes nômades e fazendo emergir novos formatos de ação política. Bombas são acionadas por celulares, é fato. Mas vídeos curtos e pequenas mensagens de texto atuam como instrumentos mobilizatórios de ações de micropolíticas democráticas. A cultura da mobilidade é cúmplice de um processo de desautorização dos circuitos de transmissão que consolida práticas de generosidade intelectual e tangencia as rotinas de download, upload, envio e reenvio. Isso faz do cotidiano um processo de agenciamento de inúmeros layers, distribuídos entre telas e janelas de redes de distintas naturezas. Define-se aí o que chamamos de configurações cíbridas: situações resultantes da experiência de interconexão de redes on e off-line. São experiências que se dão no trânsito e em trânsito, mediadas por sistemas de gerenciamento de tráfego, equipamentos urbanos (painéis, relógios, sinalizadores), celulares, intranets e hot spots. O mundo passa a ser visto através de telas e janelas. A aceleração contínua e a entropia fazem com que um momento do dia pareça um filme, que se apaga e se consome assim que se realiza, respondendo às dinâmicas de fragmentação e aceleração que as produzem. A câmera do celular é o terceiro olho ciborgue na palma da mão. Na cultura da mobilidade, as inscrições se volatilizam, as interfaces se multiplicam e a recepção é distribuída em superfícies eletrônicas conectadas a redes de

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telecomunicação. Um mesmo conteúdo pode ser produzido para diferentes dispositivos portáteis, adequados a inúmeras situações e contextos de deslocamento. A lógica da clonagem que permeia a criação digital está em pauta nos parâmetros de recepção das mensagens na experiência da mobilidade. Apesar de poderem ser idênticas no formato e conteúdo informacional, as mensagens produzidas no âmbito da mobilidade não o são no que diz respeito à fruição e legibilidade. A cultura da mobilidade evidencia o mais fascinante aspecto da lógica do clone: sua capacidade de ser idêntico sendo diferente. Tudo que se cria pode ser visto e lido de forma completamente distinta, de acordo com seu contexto de recepção, o que não é consequência do tamanho da tela ou do tipo de superfície a que as imagens e textos momentaneamente aderem. As escrituras nômades da cultura da mobilidade, por serem clonáveis e deslinkadas do suporte, desmaterializam a mídia para fazer a interface se realizar como mensagem. A reversibilidade das funções dos equipamentos torna-se permanente. Os dispositivos móveis são convertidos, a partir da interface, em equipamentos pontuais de fala, navegação, informação ou armazenamento. Mobile tags transformam o celular em uma lente de aumento do real. Mídias locativas, em um controle remoto de escala planetária. Lugares passam a ser modificados pelo fluxo informacional, criando geografias temporárias. Macroescalas intangíveis são produzidas apenas com mídias móveis e só podem se realizar em territórios imaginários, mas não existem sem a prerrogativa dos espaços físicos. A cultura da mobilidade tensiona as relações entre real e virtual, redimensionando as sociabilidades e os espaços de compartilhamento. Os nomadismos tecnológicos atualizam um princípio aristotélico: o homem é um ser político, é um animal da pólis. Seu lugar é a rua, não a tela nem o escritório. PARTE 2 — UMA HIPÓTESE EM FLUXO: A INTERFACE É A MENSAGEM I Love Your GIF (2007)2 é um projeto que combina apostas prospectivas com vestígios nostálgicos. Concebido para explorar os recursos de zoom do browser “micromap”, para celular, utiliza uma técnica bastante antiga de produção de imagem em movimento para a web: os GIFs animados. Roda perfeitamente no desktop, adquirindo, porém, um sentido totalmente distinto, reconfigurado que é pela interface. Aparece aqui em versão impressa, seguindo a lógica do clone que permeia a cultura digital e seus “originais de segunda geração”3. 1 http://www.desvirtual.com/nostalgia-for-net-art/ 2 LUNENFELD, Peter. “Art post-history — Digital photography & Electronic semiotics”. In: AMELUNXEN, Hubertus v.; IGLHAUT, Stefan; RÖTZER, Florian, em colaboração com CASSEL, Alexis e SCHNEIDER, Nikolaus G. Photography after Photography: Memory and Representation in the Digital Age. Amsterdam: G+B Arts, 1996, p. 92-8.




Ativismo

Ativismo

Vigilância

Vigilância

RTE 2 96 Fronteiras

Privacidade

PARTE 2 Fronteiras

Privacidade

S E POLÍTICOS

MÍDIAS LOCATIVAS: DESDOBRAMENTOS SOCIAIS E POLÍTICOS

Psicogeografia

Psicogeografia

ra, cartografia

Interconexões_público/privado, arquitetura, cartografia

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45 REVOLUÇÕES POR MINUTO (HISTÓRIA DA MÍDIA EM ALTA VELOCIDADE) ARMIN MEDOSCH

INTRODUÇÃO Este texto versa sobre o tema das revoluções, mas referindo-se menos ao ato político de uma classe lutando com outra por poder, e mais aos movimentos cíclicos causados pelo jogo entre forças de motivação industrial, científica, cultural e política. Essa abordagem desafia o ponto de vista prevalente de acordo com o qual a luta de classes foi substituída pelas tecnologias de mídia como sujeito da história em democracias de livre mercado tecnologicamente avançadas. No lugar disso, tenta desenvolver uma compreensão mais complexa das forças que formam a história ao trabalhar a relação dialética entre a racionalidade tecnológica como um meio de poder e dominação e, ao mesmo tempo, como uma forma de emancipação humana1. Como princípio orientador, tem-se que “o feitiço sempre se volta contra o feiticeiro”. Malcolm X aludiu a esse ditado quando a violência desencadeada pelos Estados Unidos sobre o Vietnã voltou para assombrá-los sob a forma da inquietação dos estudantes norte-americanos. Os pontos cegos de uma determinada sociedade — como racismo, sexismo, opressão de povos ou classes — frequentemente retornarão para lhe criar problemas ou mesmo levá-la à queda, ainda que inicialmente esses problemas não sejam tidos como assuntos de grande relevância. Por exemplo, a Revolução Francesa e a Revolução Americana foram consideradas marcos no progresso da humanidade em sua trajetória rumo à liberdade. Entretanto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não se estendeu às mulheres2, e doze dos signatários da Declaração da Independência dos Estados 3 O conteúdo deste texto foi originalmente desenvolvido para uma palestra intitulada “45 RPM”, e foi escolhido para enfatizar o potencial de resistência e renovação continuada no formato do disco de vinil. A palestra ocorreu em Graz, Salzburgo, Belo Horizonte, Barcelona e Novi Sad entre setembro de 2007 e junho de 2008. 4 Em 1791, Olympe de Gouges escreveu e publicou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, estendendo às mulheres os direitos previstos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (proclamada em 1789 pela Assembleia Nacional Constituinte da França), na qual ela se baseou. http://womenshistory.about.com/ library/weekly/aa071099.htm.

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Unidos da América eram proprietários de escravos. A revolução francesa trouxe à burguesia vitória sobre a aristocracia, mas, ao mesmo tempo, como observou Georg Lukács, “a liberdade em nome da qual a burguesia entrara em luta contra o feudalismo foi transformada em uma nova forma de repressão”3. Supõe-se que as revoluções burguesas deveriam conduzir ao “reino da razão”, mas os valores de “verdade eterna, direito eterno e igualdade baseados na natureza e nos direitos inalienáveis do homem” foram reservados somente para proprietários de terra brancos, e a prometida Library of Congress / New York World-Telegram & Sun Collection liberdade de propriedade deu lugar, para muitos Malcom X: um dos principais que em breve se veriam despossuídos, a “uma ativistas que lutaram pela liberdade da propriedade”, explica Friedrich emancipação dos descendentes de africanos nos Estados Unidos Engels4. Quando, em 1791, inspirada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, eclodiu uma rebelião de escravos na colônia francesa do Haiti, a qual foi bem-sucedida e deu origem à primeira república livre pós-colonial de cidadãos descendentes de africanos, os Estados Unidos fracassaram no apoio a essa jovem república. Em seguida, os haitianos emigraram para Nova Orleans e Louisiana, ajudaram a manter localmente vivas as tradições do oeste africano, proporcionaram aos afro-americanos um exemplo de seu espírito igualitário e independente e contribuíram significativamente para o desenvolvimento do jazz, que, ao longo do tempo, iria espalhar uma mensagem musical anti-hegemônica e emancipatória de ressonância global. LIBERDADE DA MÍDIA Na França, durante a primeira fase da Revolução de 1789, “184 novos jornais haviam surgido em Paris e 34 nas províncias. [...] Quase todo revolucionário proeminente estava envolvido em escrever e publicar seus próprios panfletos e jornais. Utilizando prensas de madeira manuais, uma pessoa poderia produzir um jornal diário com cerca de 3 mil cópias”, escreveu Richard Barbrook, acrescentando que “esses negócios de um homem só poderiam ser muito lucrativos até 5 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2003. 6 ENGELS, Friedrich. “Socialism: utopian and scientific”. In: TUCKER, Robert (ed.). The Marx-Engels reader. Nova York: W.W. Norton & Company, 1978, p. 684-6.

mesmo tendo uma circulação pequena”5. A liberdade de imprensa na França revolucionária dependia da propriedade de uma prensa. Não é preciso muito esforço de imaginação para comparar esses cidadãos jornalistas de 1790 à cena política dos blogs observada atualmente. As revoluções burguesas estabeleceram um modelo de liberdade de mídia que foi exportado globalmente e, apesar das modificações, ainda é aplicável às sociedades de mercado liberal de hoje. Nesse modelo, a liberdade de mídia baseia-se na posse da propriedade e ambas estão intrinsecamente ligadas à democracia representativa. Enquanto, em princípio, todos têm liberdade de comandar seu próprio veículo de comunicação, os conglomerados de mídia passaram a existir, o que favorece a concentração de grande poder nas mãos de alguns poucos proprietários privados. As vozes de Murdoch, Berlusconi e seus porta-vozes sufocam as de bilhões de outros. Conforme a mídia tradicional se torna cada vez mais dominada por interesses da iniciativa privada, a opinião dissidente tem encontrado expressão principalmente em revistas de pequena circulação e na rede. A(S) REVOLUÇÃO(ÕES) INDUSTRIAL(IS) A primeira Revolução Industrial consistiu em rápidas mudanças nas ideias de “inovação, investimento, produtos, comércio e assim por diante” e todos pareciam ter evoluído rapidamente a partir de 17806. Justifica-se falar de uma “revolução”, segundo Freeman e Soete, porque “envolveu uma transformação organizacional muito fundamental”, a qual não ocorreria sem “mudanças e conflitos políticos, e sem mudanças culturais, como a disciplina de trabalho das horas das fábricas e a supervisão”7. Após essa primeira revolução industrial, “sucessivas ondas de revoluções industriais basearam-se na transformação qualitativa da economia por novas tecnologias”, e não somente no crescimento quantitativo8. Essas “ondas de revoluções sucessivas”9 são conceitualizadas tanto por economistas marxistas como por liberais, como se seguissem certo padrão cíclico. Os assim chamados “longos ciclos” ou “longas ondas” são disparados por tecnologias pioneiras, que não só marcam uma mudança dentro de uma indústria, mas resultam em um novo paradigma industrial e tecnológico. Dessa forma, por exemplo, a segunda “longa 7 BARBROOK, Richard. 1995. Media freedom: the contradictions of communication in the age of modernity. Londres: Pluto Press, 1995, p. 14, citando Bellenger, C., Godechot, J., Guiral, P. e Terrou, F. (1969) Histoire générale de la presse française. Tome 1: Des origines à 1814, Paris: Presses Universitaires de France, 1969, p. 436. 8 FREEMAN, Chris e SOETE, Luc. The economics of industrial innovation. Cambridge: MIT Press, 1997, p. 35, citando SUPPLE,/1961, p. 35. 9 Ibidem, p. 35. 10 Ibidem, p. 20, citando SCHUMPETER. 11 SCHUMPETER, Joseph A. Business cycles: a theoretical, historical and statistical analysis of the capitalist process. Nova York: McGraw-Hill, 1939.

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onda” ou onde de Kondratieff, de 1840 a 1890, baseou-se no vapor e nos trilhos, mas também precisou do telégrafo para possibilitar a coordenação da expansão do sistema ferroviário e para alimentar os mercados de ações, que financiavam a expansão ferroviária. A terceira onde de Kondratieff, de 1890 até a década de 1940, embora fundamentada principalmente na eletricidade e no aço, também foi a era da primeira utopia sem fios, com novas tecnologias elétricas, como o telégrafo sem fio e, a partir LIFE Photo Archive dos anos 1920, o rádio10; atualmente, estamos em meio a Guglielmo Marconi: inventor italiano uma nova longa onda, apoiada na microeletrônica e nas que recebeu o Prêmio Nobel por suas contribuições para a comunicação redes de computador. Enquanto esses “longos ciclos”, sem fio via telégrafo baseados em novas tecnologias, inicialmente favorecem a sustentação de um extenso boom econômico, inevitavelmente também vão levar a uma superacumulação, a uma taxa de lucro em queda e, por fim, a uma crise econômica. Compreender a natureza cíclica das “longas ondas” ajuda a conceitualizar a “inovação” não como algo natural e espontâneo, mas como a emergência de tecnologias transformadoras de paradigmas ligadas ao lucro em queda e ao ciclo dos negócios como um todo. A NÃO NEUTRALIDADE DA TECNOLOGIA Karl Marx destacou a contradição entre o capital e o trabalho. Para que o capital seja acumulado, um excedente de capital deve ser realizado em relação ao investimento prévio. Esse excedente é atingido por meio da exploração de esforço extra de trabalhadores assalariados. Parte do excedente produzido pelo trabalho é reinvestida em equipamentos. Como resultado, “o trabalhador é confrontado com as potencialidades intelectuais do processo material de produção como propriedade de outro e como um poder que o governa”. Esse “processo de industrialização, à medida que atinge níveis cada vez mais avançados de progresso tecnológico, coincide com um crescimento contínuo da autoridade capitalista”. Portanto, “é precisamente o ‘despotismo’ capitalista que toma a forma da racionalidade tecnológica”. Entretanto, no capitalismo, não somente as máquinas “mas também os ‘métodos’, técnicas organizacionais etc. [...] confrontam os trabalhadores como capital: como uma ‘racionalidade’ estranha”, observou Raniero Panzieri na clássica análise sobre o uso capitalista das máquinas11. 12 As séries dos ciclos Kondratieff usadas aqui baseiam-se em Freeman e Soete, op. cit., tabela 1.3, p. 19. 13 PANZIERI, Raniero. “The capitalist use of machinery: Marx versus the objectivists”. 1961. In: Quaderni Rossi, disponível em: http://www.geocities.com/cordobakaf/panzieri.html.

DETERMINISMO TECNOLÓGICO A aparência superficial das coisas leva tanto críticos quanto admiradores do progresso técnico a caír no determinismo tecnológico, ou “teoria da bola de bilhar”, para explicar a mudança social. A tecnologia e a sociedade são compreendidas como sendo separadas uma da outra, e a nova tecnologia atinge a sociedade como uma bola de bilhar, fazendo com que ela gire em uma nova direção, por meio de seu “impacto”. A mudança é unidirecional e seu caráter, totalmente determinado pela forma da tecnologia. Por exemplo, já no início do século XIX acreditava-se que “melhorar a comunicação significa criar igualdade e democracia”12. Isso lembra os profetas da sociedade de rede nos anos 1990, as quais alegavam que a internet descentralizada iria automaticamente criar uma sociedade não hierárquica, descentralizada. FETICHISMO DAS MERCADORIAS A não neutralidade da tecnologia não é tão facilmente compreendida, uma vez que a tecnologia se apresenta como uma “racionalidade estranha”, ou seja, em forma fetichizada. No capitalismo de mercadorias, o produto do trabalho aparece sob a forma de coisas ou mercadorias. Como escreveu Karl Marx: “Uma mercadoria é, portanto, uma coisa misteriosa, simplesmente porque nela o caráter social do trabalho do homem aparece para ele como um caráter objetivo, carimbado sobre o produto daquele trabalho, porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio trabalho lhes é apresentada como uma relação social, que existe não entre eles mesmos, mas entre os produtos de seu trabalho. É por essa razão que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais cujas qualidades são, ao mesmo tempo, perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos”13. O fetichismo das mercadorias permite que o capitalismo mistifique as relações sociais que ele produz. Ele também explica por que, após um período extenso de acumulação capitalista, seu produto combinado possa aparecer como uma “segunda natureza”14. Estamos cercados por uma vida quase inteiramente “produzida” pelo capitalismo, de uma forma ou de outra. Por isso, tendemos a naturalizar as formas sociais e as hierarquias. Isso significa que, em vez de compreender os fenômenos como historicamente específicos, nós os interpretamos erroneamente como condições “naturais” da vida. Enquanto o fetichismo das mercadorias jogar seu poder de ocultamento em torno de nós, o mundo parecerá ser governado 14 MATTELART, Armand. The information society: an introduction. Londres: Sage, 2003, p. 31, citando CHEVALIER, 1837. 15 MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. Livro 1, seção 4. 16 LUKÁCS, op. cit.

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por “coisas”, e as verdadeiras relações sociais podem permanecer veladas e não desafiadas.

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A ERA DA ELETRIFICAÇÃO E DA MÍDIA MODERNA Por volta de 1890, a terceira longa onda baseada na eletricidade e no aço começou a crescer. Com ela emergiu a mídia moderna, de início não detectada15. No lugar de compreender a emergência das novas mídias como um progresso natural da ciência e da tecnologia, ou simplesmente como grandes feitos de grandes homens, sugere-se aqui compreender sua criação embutida no projeto de eletrificação. Isso envolveu a construção de um novo sistema industrial, de dimensões gigantescas, que consiste em estações de energia e uma grade elétrica que cobre cidades e nações. Para justificar essa expansão, uma busca permanente por aplicações da nova energia teve início. As inovações foram feitas por meio de uma organização sistemática de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Inventores altamente motivados, com visão empreendedora — tais como Edison, Tesla e Marconi —, enfrentaram batalhas com marcas e patentes para se assegurarem dos privilégios econômicos por terem sido os “primeiros”. Esse processo geraria novos líderes industriais, como Marconi na Inglaterra, GE nos Estados Unidos e AEG na Alemanha, os quais, em determinado momento, quase formaram, juntos, um monopólio mundial. O efeito combinado do projeto de eletrificação também proporcionou uma mudança organizacional ao permitir a criação da burocracia moderna e facilitar uma grande expansão no tamanho das corporações. UTOPIA SEM FIOS A corrida econômica e tecnológica inspirou uma utopia sem fios na virada do século passado. O inventor Nikola Tesla sonhava em transmitir energia. Na imaginação popular da época, essas tecnologias de comunicação eram vistas como possibilitadoras do socialismo e da verdadeira democracia. Mas foi Marconi quem criou o primeiro império de negócios sem fio, pois desenvolveu a telegrafia sem fios conforme a lógica industrial prevalente, ou seja, não como uma tecnologia de consumo de mercado de massa, mas como aplicação industrial para dar suporte a linhas de transporte globais e a mercados de ações. Nos Estados Unidos, a tecnologia de rádio foi desenvolvida e experimentada por um grande número de amadores de rádio entre 1890 e 1920. Em quase todas as demais partes do mundo, o espaço do rádio foi rapidamente controlado pelo 17 Conforme os cientistas de mídia alemães, a palavra “mídia” na forma que usamos atualmente não era conhecida como um termo genérico no século XIX. MÜNKER, Stefan e ROESLER, Alexander. Was ist ein Medium? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2008.

Estado e a experimentação foi limitada a alguns poucos institutos oficiais. O espírito de garagem dos radioamadores norte-americanos precedeu a primeira onda de hackers de computador e proporcionou um modelo de inovação fora do mecanismo de mercado. A Primeira Guerra Mundial e o desenvolvimento da rádio comercial nos anos 1920 deram fim àquele espírito descompromissado. Os anos 1920 foram a época da ascensão dos bens de consumo elétricos — os receptores de rádio chegaram aos lares norte-americanos numa onda, com o refrigerador e a máquina de lavar, e as mesmas empresas que fabricavam os bens de consumo elétricos também possuíam estações de rádio. O rádio se tornou indispensável para aquilo que Raymond Williams chama de “privatização móvel”16. Uma mobilidade crescente da classe trabalhadora andava par em par com a perda da identidade cultural e comunitária que o rádio pode em parte restaurar, embora dentro dos confins do espaço doméstico privado. AS VANGUARDAS O século XIX caracterizou-se por tecnologias progressistas e por uma cultura conservadora. Enquanto a burguesia explorava o uso da ciência e da tecnologia para os negócios, preferia o historicismo e o classicismo para a arte, o design e a arquitetura. O Manifesto Futurista de 1909 declarou uma ruptura radical com esses parâmetros, elogiando “todas as tendências artísticas turbulentas da época”: a tecnologia, a velocidade, a violência, o caos da vida urbana e os eventos de massa17. Através do uso de novas tecnologias, as vanguardas históricas ansiavam por romper as barreiras entre arte e vida, criar uma arte que resultaria em uma nova sociedade. Se por um lado as vanguardas históricas foram as primeiras a compreender o potencial das novas tecnologias da mídia para a arte, por outro, seus objetivos “totalizadores” também as tornaram suscetíveis a apoiar os sistemas totalitários. O desejo dos artistas de conduzir a sociedade à maneira de uma vanguarda os infectou com visões “totais” em que um só decide por todos qual é a coisa certa a fazer. Na política revolucionária, isso era congruente com a doutrina leninista do partido de vanguarda. A estrutura da radiodifusão, em que um locutor é ouvido por muitos, permitiu que ditadores de esquerda e direita arrebatassem as massas com seu carisma e as unissem no culto a seu respectivo líder. MÍDIA PARTICIPATIVA Conforme a mídia moderna se juntou ao carrossel das mercadorias fetichizadas, 18 WILLIAMS, Raymond. Television: technology and cultural form. Nova York: Schocken Books, 1975. 19 HESSE, Eva. Die achse avantgarde-faschismus: reflexionen über Filippo Tommaso Marinetti und Ezra Pound. Zürich: Die Arche, 1991.

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a dialética da mídia entrou no jogo. As mesmas dinâmicas tecnológicas que podem aumentar os poderes de uma classe dominante também podem facilitar o acesso ao conhecimento e à autoemancipação. Enquanto os artistas temiam que a fotografia traria o fim da arte, ela possibilitou que um número ainda maior de pessoas visse imagens de obras de arte e as pendurasse na parede de suas cozinhas. As tecnologias de mídia aumentaram o poder da burocracia corporativa, mas permitiram aos trabalhadores que se educassem com jornais baratos e publicações impressas. Ao mesmo tempo em que era usado para comandar exércitos, o rádio também criou um mercado para formas musicais não elitistas, como o jazz e as músicas de protesto. Estabeleceu-se uma dinâmica que contrapunha a democratização crescente de acesso à mídia aos poderes e doutrinas culturais da elite econômica. No final dos anos 1920, o dramaturgo de esquerda Bertolt Brecht exigiu que todos os receptores de rádio também fossem transmissores. O rádio não deveria isolar as pessoas, mas colocá-las em contato umas com as outras. À medida que investigou como as novas mídias mudavam a percepção e o pensamento, Walter Benjamin desenvolveu aquilo que é discutivelmente uma teoria da mídia precoce18. Benjamin também interrogou as relações entre a mídia e seu potencial para a instrumentalização política das massas. Reconheceu que o “fascismo resultava numa estetização da vida política” e percebeu como os grandes eventos de German Federal Archive / Domínio Público massa eram mais bem explorados para a propaganda Bertolt Brecht: “Mude o rádio, de distribuição para “através das lentes e possibilidades da percepção comunicação [...] ao submeter mecanizada do que ao vivo”. Para contrariar essas sugestões constantes, tendências, Benjamin recomendava que o autor incessantes, para melhorar o uso do aparelho para o bem como produtor deveria intervir no processo de geral, nós construímos suas produção, para transformar o aparato à maneira de pedras fundantes sociais, questionando como ele está um engenheiro19. Em vez de buscar autores de sendo usado para ampliar os autoexpressão, ele deveria tentar mudar o sistema interesses de poucos” 20 BENJAMIN, Walter. The work of art in the age of mechanical reproduction. Londres: Penguin, 2008. 21 BENJAMIN, Walter. “The author as producer”. In: ARATO, Andrew e GEBHARDT, Eike. The Essential Frankfurt school reader. Nova York: Continuum, 1982. Veja também COX, Geoff e KRYSA, Joasia. “Introduction to The autor as (digital) producer”. In: COX, Geoff e KRYSA, Joasia. Engineering culture: on “The autor as (digital) producer”. Nova York: DATA Browser O2, 2005.

produtivo da arte como um todo, introduzindo novas formas para permitir que mais pessoas se expressassem e, assim, se emancipassem. A seguinte citação de Brecht aponta na mesma direção: Não é nosso papel reavivar as bases ideológicas da ordem social existente por meio de inovações, mas fazê-la desistir de suas bases através das nossas inovações [...] Através de propostas contínuas e intermináveis sobre como utilizar melhor os aparatos no interesse do público geral, precisamos chacoalhar as bases sociais dos aparatos e desacreditar seu uso para o interesse de poucos20.

Se o papel de desacreditar “o uso da mídia para o interesse da visão” ainda tem relevância, a noção de que as novas tecnologias podem ser desenvolvidas para “chacoalhar as bases” da sociedade é particularmente interessante. Será que as tecnologias governadas por sonhos, desejos e objetivos racionalmente formulados das comunidades de hackers politizados podem não somente romper com os modelos de negócios de determinadas indústrias, mas minar as relações de forças de produção de forma mais profunda? Será que elas podem revolucionar a base material para desmontar o capitalismo a partir de dentro? 107

A ERA ELETRÔNICA A progressiva automatização e a regra combinada de fordismo e keynesianismo permitiram uma fase prolongada de grande crescimento econômico entre as décadas de 1940 e 197021. Henry Ford não somente fora o pioneiro de uma metodologia de produção, mas também reconheceu que as pessoas que produziam seus carros eram também seus principais clientes, o que tornou necessário colocar dinheiro suficiente em seus bolsos e dar-lhes tempo para consumir. O consenso do pós-guerra entre dinheiro e capital exigia moderação de ambos os lados. Os trabalhadores obteriam melhores condições e salários, e, em retribuição, concordariam com técnicas de produção cada vez mais alienantes em fábricas semiautomatizadas. A especulação financeira havia sido colocada sob controle por um sistema de taxas de câmbio fixas, supervisionadas pelas instituições apontadas pelo Acordo de Breton Woods — Banco Mundial e FMI. Por 25 anos, esse sistema garantiu estabilidade e crescimento nas sociedades industriais altamente desenvolvidas. A televisão se tornou o meio emblemático da sociedade de consumo do

22 BRECHT, Bertolt. 1932. Disponível em: http://www.medienkunstnetz.de/source-text/8/. 23 HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


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pós-guerra. Seu principal problema não é somente o fato de ela, de alguma forma, distorcer a verdade por meio da “manipulação”, mas a limitação de sua estrutura interna — composta de um transmissor e muitos receptores incapazes de responder —, que espelha as condições básicas das sociedades, divididas entre produtores e consumidores, aqueles que dão ordens e aqueles que as cumprem. Em A Sociedade do Espetáculo22, os trabalhadores são confrontados com sua própria impotência sob a forma de comunicações fetichizadas na tela da TV. Nos anos 1950, a introdução dos transistores tornou portáteis os receptores de rádio. O novo meio da música pop estava se transformando em “privatização móvel” e retumbava dos rádios de automóveis; levado às calçadas e parques, proporcionou a trilha sonora da era dos carros. Adorno e Horkheimer criticaram veementemente a forma como a indústria cultural transferia os métodos de produção das fábricas fordistas para a esfera cultural23. Enquanto sua poderosa polêmica ressoa com a crítica da mercadorização da cultura também em nossa época, abstém-se completamente de reconhecer o potencial emancipatório da assim chamada “mídia de massa”, que Benjamin destacou já nos anos 1930. Infelizmente, a crítica unilateral de Adorno e Horkheimer definiu a maneira como os “bons esquerdistas” deveriam interpretar a cultura da mídia de massas. O meio da música pop podia ser não somente aquilo que a teoria crítica via neles, mas também uma forma de transmitir novas energias e formular novas identidades ao tornar-se o foco da criatividade dos fãs. A indústria cultural não cria estilos, apenas os explora — desde os anos 1950, novos estilos subculturais foram produzidos pela classe trabalhadora em seu tempo livre: mods e rockers, teddy boys e teddy girls, rude boys e soul girls chacoalharam o mundo com novas atitudes, que eram hedonistas e rebeldes ao mesmo tempo. A era eletrônica sofreu outra guinada com Marshall McLuhan em Os meios de comunicação como extensões do homem24. De acordo com McLuhan, mudanças na forma dominante do uso da mídia, em última instância, provocavam transformações na maneira como as pessoas percebiam e compreendiam a realidade. Depois da cultura do livro visualmente orientada de A galáxia de Gutenberg25, a mídia eletrônica de massas daria preferência à cultura oral e à tatilidade que tornariam as sociedades mais tribais e criariam uma aldeia global, alegava McLuhan. Ele também acreditava que a mídia de massas era uma

“prótese” do sistema nervoso central, o qual, ao se exterioriza, era exposto a poderosas forças de manipulação26. Mesmo proporcionando um estímulo importante para se pensar a mídia eletrônica sob novos aspectos, McLuhan também foi longe demais com o determinismo tecnológico. Quando a forma da tecnologia determina a direção e o caráter das mudanças, nega-se aos humanos o poder de formar sua própria história. Há uma negatividade e um totalitarismo nesse ponto de vista, que geralmente é subestimado. Na “arte experimental”, escreveu McLuhan, “os homens têm as especificações exatas da violência que se volta contra eles mesmos a partir de seus próprios inimigos ou tecnologias”27. Inicialmente, os artistas aderiram ao novo meio com um espírito saudável de destruição. Nam June Paik “remixou” a imagem da televisão pelo uso de um ímã, Günter Uecker colocou pregos em aparelhos de TV e Wolf Vostell os esmagou e enterrou no Central Park. Depois que a Sony introduziu o primeiro sistema de vídeo portátil e de baixo custo, o Porta Pak, em 1965, muitos artistas começaram a fazer experimentações com ele. Ocorreu um cisma: os artistas que abraçaram plenamente o potencial emancipatório da câmera de vídeo portátil iniciaram projetos de mídia comunitária e terminaram abandonando o sitema da arte como um todo28. Outros, que se juntaram a eles na experimentação temporária com o vídeo durante os anos 1960, mais tarde mudaram de lado e sacrificaram o poder socialmente transformador do ativismo do vídeo por uma carreira artística. 1968 No meio dos anos 1960, enquanto no nível superficial da tela as coisas pareciam relativamente quietas nas economias industriais mais desenvolvidas, a crítica da pobreza da vida cotidiana já tinha sido formulada nos bastidores por uma esquerda pós-marxista não ortodoxa. Como mostra George Katsiaficas, “Maio de 1968” não estava acontecendo somente em Paris, mas era um movimento global poderoso que trouxe The imagination of the New Left29 à superfície. Alimentada pelo racismo, sexismo, militarismo e capitalismo consumista, a “classe em si mesma” revolucionária de 1968 rejeitava a noção leninista da vanguarda revolucionária. Sua ideia de revolução era que o próprio poder deveria ser transformado em uma “forma descentralizada e autogerida”. A vibração do movimento de 1968 também estabeleceu um novo modelo de liberdade de mídia: em vez de consumir ou lutar

24 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 1997. 25 ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. 26 McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1969. 27 McLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Nacional/Edusp, 1972.

28 Ibidem, p. 65. 29 Ibidem, p. 64-6. 30 HALLECK, DeeDee. Hand-held visions: the impossible possibilities of community media. Nova York: Fordham University Press, 2002. 31 KATSIAFICAS, George. The imagination of the New Left: a global analysis of 1968. Boston: South End Press, 1987.

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contra a mídia de massas, todos deveriam tornar-se produtores de sua própria mídia — produtores de folhetos ou pôsteres, inventores de slogans e caricaturas ou produtores de rádio. O modelo da mídia participativa se expressava em slogans surrealistas, como “Poder para a imaginação”, nas paredes de Paris. Ao mesmo tempo em que 1968 fracassou em obter o poder político, formulou a necessidade de autogerenciamento em todas as áreas, estimulando, assim, novos movimentos sociais que, a longo prazo, transformaram atitudes sociais dominantes em questões como raça, gênero e meio ambiente.

Maio de 68: um mês em que as ruas de Paris paralisadas tornaram-se símbolo da possibilidade de mudar o mundo por meio de ações coletivas de interesse comum

tornaram mais fácil para as corporações terceirizar atividades em países de baixa renda, um processo no qual as empresas norte-americanas de alta tecnologia haviam sido pioneiras na década de 1960. As multinacionais se beneficiaram não somente do fato de a produção mudar-se para fora do país, mas também da possibilidade de ameaçar fazê-lo para reduzir o poder de trabalho nos países mais ricos. A crescente transformação para tecnologias de informação e comunicação (ICT, na sigla em inglês) deu-se ao mesmo tempo que a desregulamentação dos mercados financeiros e a ascensão da ideologia neoliberal. Possibilitou a automação e semiautomação de áreas que anteriormente eram domínios exclusivos do trabalho altamente especializado de colarinho branco. Indústrias inteiras, como as de publicação e impressão de jornais, foram remodeladas, criando desemprego em massa. O declínio do poder dos sindicatos comerciais coincidiu com a defesa conservadora de uma sociedade pós-industrial por autores como Daniel Bell32. Cada vez mais, a mídia, no lugar da luta de classes, era vista como o principal agente da história. Na realidade, o previsto “fim das ideologias” acabou levando a uma restauração maciça do poder das classes mais altas, como analisado por David Harvey33.

COMPUTADORIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E PÓS-MODERNISMO O sucesso das economias concorrentes do Japão e da Alemanha em produzir carros e bens de consumo — assim como o excesso de gastos dos Estados Unidos na guerra do Vietnã e as medidas keynesianas para estimular a economia — criou uma tensão imensurável e uma crise econômica no final dos anos 1960 e início dos anos 197030. Os Estados Unidos forçaram a ruptura com o sistema Breton Woods de taxas de câmbio fixas e mercados financeiros regulados. É estranho pensar nas conexões entre taxas de câmbio cada vez mais flutuantes e o ganho de poder paralelo das teorias semióticas pós-modernas sobre “significantes flutuantes” e sobre a importância dos “jogos de linguagem”31. A próxima onda de inovações relacionadas à ciência começou a dar nova forma à base tecnológica da sociedade. Os avanços em circuitos integrados, microchips e redes de telecomunicações

TECNOLOGIAS DE RUA Se as revoluções conservadoras lideradas por Thatcher e Reagan acabaram com o poder dos movimentos trabalhistas, e as políticas monetaristas de Paul Volcker como presidente do Federal Reserve Bank norte-americano asseguraram a “vitória” do neoliberalismo, o início dos anos 1980 assistiu a uma recessão. Pressionadas pela concorrência crescente e por uma taxa de lucros em queda, as empresas japonesas foram pioneiras na integração entre eletrônica e manufatura, assim chamada de “mecatrônica”. Será mera coincidência a música eletrônica de pista ter sido criada nos centros de manufatura avançada pela banda Yellow Magic Orchestra, em Tóquio, pelo Kraftwerk, em Düsseldorf — centro de investimento japonês na Alemanha —, e pelos produtores techno de Detroit, que fundiram o soul da Motown com a música eletrônica germano-japonesa? A “reestruturação” das indústrias forçou as empresas a se livrarem de velhos equipamentos e instalações. A cada nova onda de inovação industrial, a alta tecnologia se torna baixa tecnologia ou tecnologia redundante e é descartada para a rua. Isso facilita um certo tipo de cultura cyberpunk — não cyberpunk como o gênero literário, mas como foi sintetizado na frase “a rua encontra seu próprio uso das coisas”.

32 BRENNER, Robert. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003. 33 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992, figura 2.5.

34 BARBROOK, Richard. 2007. Futuros imaginários: das máquinas pensantes à aldeia global. São Paulo: Peirópolis, 2009. 35 HARVEY, David. A brief history of neoliberalism. Oxford: Oxford University Press, 2005.

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LIFE Photo Archive

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O gasto crescente com ICT diminuiu os preços e tornou consumíveis computadores domésticos e equipamentos de produção audiovisual, como sintetizadores, samplers, câmeras de vídeo e equipamentos de edição. Os anos 1980 viram a ascensão de práticas de mídia contracultural amplas e diversificadas. Intimamente associadas aos novos movimentos sociais, essas subcorrentes criativas visavam romper a hegemonia da mídia de massas usando as próprias máquinas da mídia. Enquanto os situacionistas tinham transformado as imagens, as culturas de rua dos anos 1980 praticavam a “transformação tecnológica”, uma guinada da tecnologia de consumo barata ou antiga alta tecnologia redundante em meios de produção para as culturas jovens dissidentes, que agora ocupavam as ruínas da indústria cultural, literal e metaforicamente.

O Chaos Computer Club, conforme texto na Wikipedia, é uma organização de hackers sediada na Alemanha: com mais de 4.000 membros, o CCC se autodenomina uma “comunidade galática de seres-vidas, independentes de idade, sexo, raça ou orientação societal, que atua através de fronteiras em nome da liberdade de informação”. Ao lado, foto de um acampamento na região de Berlim, em 2003. http://en.wikipedia.org/wiki/ Chaos_Computer_Club

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Imagem Retirada da Wikipedia

A CULTURA HACKER Dentro desse cenário, os primeiros grupos de hackers, como o Chaos Computer Club (CCC) na Alemanha ou a 2600 Magazine em Nova York, formam um caso especial, uma vez que eles alimentam as inovações e a infraestrutura do complexo militar industrial e, exatamente por isso, são conscientes dos perigos à sociedade caso a ICT saia do controle e seja utilizada para estimular somente os poderes de grupos elitistas e secretos. O hacking é uma mistura de busca desinteressada do conhecimento guiada pela curiosidade, uma cultura competitiva principalmente entre jovens homens demonstrando suas habilidades uns para os outros. Mas, ao mesmo tempo, pode ser motivada por um forte sentido de preservação da liberdade humana em uma sociedade cada vez mais governada por sistemas de processamento de informação e redes eletrônicas. As práticas de mídia cultural contra o establishment e o copyleft dos anos 1980 proporcionaram as bases para a

cultura remix da internet nos anos 1990. Mesmo sendo mal percebida, na época, fora dos círculos especializados, uma das “inovações” mais importantes dos anos 1980 foi a fundação do movimento do software livre por Richard Stallman e associados e o desenvolvimento do GNU General Public License (GPL), a Licença Pública Geral. A dinâmica viral do GPL, que dá liberdade de inspecionar, modificar, utilizar e redistribuir softwares sem custo, sob a condição de que as mesmas condições sejam repassadas, abriu caminho para moldar as mudanças tecnológicas independentemente da lógica do capitalismo industrial. O NEOLIBERALISMO E A REDE A decisão da administração Clinton de abrir a internet coincidiu com um boom econômico nos Estados Unidos, observado a partir de 1993. As políticas econômicas da administração Clinton acabaram com a virada do neoliberalismo que havia começado nos anos 1970 e favoreceram os mercados financeiros de forma que uma bolha especulativa pôde crescer. Enquanto a internet se abriu para o uso público, inicialmente foi vista como um novo continente no ciberespaço, que desafiava as leis econômicas da gravidade. Certo ou errado, o boom foi concebido como uma “nova economia”. Na década de 1990, a rede também foi vista como um meio ideal para os movimentos sociais que atacavam a hegemonia da mídia de massas e criavam seus próprios canais de comunicação global e organização. Não por coincidência, as ações do governo mexicano neoliberal de privatizar coletivamente a terra utilizada por povos indígenas no Chiapas se tornaram o disparo inaugural para a primeira “greve de rede” global, em 1994-95, combinando o boicote eletrônico dos servidores do governo mexicano com protestos no mundo real em frente a muitas embaixadas mexicanas no estrangeiro. Formas descentralizadas de organização, ativismo social e hacking, que foram discutidos com termos como mídia tática, irromperam nas ruas quando um movimento sem líderes ou formas visíveis de organização bloqueou as ruas de Londres no dia 18 de junho de 1999. Mais tarde, no mesmo ano, o protesto contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle se tornou o momento fundador para o serviço alternativo de notícias Indymedia. Apesar de todo esse ativismo de base, os anos 1990 viram crescer o poder das corporações multinacionais. Se o capitalismo parecia perder seu “peso”, a característica principal daquele período era a confiança crescente no fetichismo das mercadorias e sua extensão para a informação e o conhecimento. À medida que os empregos de produção diminuíam, as administrações corporativas em cidades globais, como Nova York, Londres e São Paulo, tornavam-se cada vez mais rigorosas e cruéis, priorizando o “trabalho imaterial”, como pesquisa e

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desenvolvimento (P&D), marketing e construção de marcas. Os anos 1990 assistiram ao triunfo das marcas globalizadas, que buscavam o valor de excedente geral e focavam no aumento dos investimentos em sua imagem, ao mesmo tempo em que espremiam os custos do trabalho. Esse cenário impulsionou uma demanda por membros da “classe criativa” para suprir o trabalho criativo sob condições de flexibilidade crescente. Se isso podia ser usufruído por alguns artistas da elite e designers, também foi vivido como uma “precariedade” crescente entre trabalhadores, criativos ou não.

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AS NOVAS REVOLUÇÕES SEM FIO Assim que a bolha da nova economia explodiu, outra revolução sem fio começou a se formar, mais ou menos cem anos após a primeira. Surgiu simultaneamente sob duas formas: a revolução Wi-Fi e a da terceira geração do telefone móvel (3G). Mesmo sendo, geralmente, mencionadas como derivadas do mesmo fôlego, essas duas revoluções engendraram práticas sociais bastante diferentes. O desenvolvimento do Wi-Fi foi possível após a desregulamentação de partes do espectro de frequência do rádio conhecidas como bandas médicas, científicas e industriais (ISM, na sigla em inglês) para comunicações de dados sem fio e sem licença. Isso impulsionou engenheiros na criação de protocolos para os padrões de transferência de dados sem fio em 1997, e finalmente, em 1999, resultou em tecnologias viáveis que atingiram níveis de transporte de dados de 11 Mbit/ segundo. Embora as ideias que governavam a invenção fossem comerciais, os entusiastas das redes de computador agarraram a oportunidade assim que o Wi-Fi apareceu no mercado e encontraram meios de dobrar essa tecnologia e aplicá-la ao uso comunitário. Ao substituir o direito de propriedade de roteadores sem fio e cartões de rede baseados em Linux, eles puderam usar uma tecnologia projetada para pequenas redes internas e hot spots isolados, apropriando-se delas para criar redes externas de tamanho e capacidade consideráveis. As redes comunitárias sem fio apareceram em áreas urbanas como Londres, Nova York e Seattle, mas também observou-se a formação de comunidades rurais na Catalunha, Indonésia e Nepal. Seja nas grandes cidades ou no interior, as redes comunitárias sem fio são construídas e mantidas a serviço das comunidades em uma base não lucrativa. Mais ou menos na mesma época em que o Wi-Fi foi colocado no mercado pela primeira vez, as administrações nacionais decidiram liberar o espectro para a próxima geração de telefones móveis ao leiloá-lo para quem oferecesse mais por ele. Em alguns países, como a Inglaterra, o leilão trouxe belos lucros ao governo, pois as empresas entraram na corrida de compra e levaram os preços a somas astronômicas. Com o espectro obtido, as companhias precisaram investir ainda

mais para instalar a nova infraestrutura necessária, o que resultou na instalação de torres de telefone móvel no topo de prédios do governo, hospitais e escolas. O elevado custo do investimento inicial precisava ser repassado aos consumidores de modo que, atualmente, os usuários de telefone móvel pagam um alto preço para a comunicação de texto e voz, e tarifas ainda maiores se forem clientes de banda larga móvel. Certo é que a forma adotada pelos governos para desregulamentar a telefonia móvel acabou tornando-se um imposto sobre as comunicações. Além disso, muitas das prometidas aplicações de valor agregado — como a televisão móvel — não são possíveis ou são proibitivamente caras. As empresas do setor parecem incapazes de concretizar todo o espectro de benefícios das tecnologias que detêm. Mesmo assim, a revolução da telefonia móvel tem sido um sucesso em termos de número de usuários da rede e no quesito ganho econômico. Portanto, o contraste entre as redes comunitárias sem fio e a telefonia móvel 3G se oferece como um sítio preferencial para compreender o fetichismo de mercadorias no capitalismo de alta tecnologia. A contradição entre valor de uso e valor de troca, que está no coração do fetichismo de mercadoria, também é um estímulo a investir na aparência estética do valor de uso, como o acadêmico alemão Wolfgang Fritz Haug a denominou em seu profundo estudo, de 1971, sobre a estética das mercadorias34. Como explica Haug, ela cria mundos próprios, esferas de jogo estético em que a pura aparência tende a se descolar do objeto. Os usuários de redes sociais e de empresas de telefonia móvel são, assim, seduzidos a comprar em mundos ilusionistas, que vendem de volta suas próprias comunicações enquanto produto. A estética das mercadorias baseia-se em alguma reciprocidade entre os meios estéticos usados para fazer com que o produto nos pareça “atraente” e o que consideramos que nos torna atraentes uns aos outros. A mercadoria nos olha “com os olhos de um amante”, empregando os mesmos truques utilizados pelos seres humanos para se fazerem sexualmente sedutores. Essa estratégia convence os usuários de que, ao comprar o fetiche (do telefone móvel), eles se tornarão, como num passe de mágica, sexualmente atraentes aos outros. Em relação aos bens de luxo, Haug chama esse recurso de formação da sensualidade e, quando transcendida para um regime, tecnocracia da sensualidade. Partindo dessa análise, eu denominaria o telefone móvel de a tecnologia da sociabilidade. Trata-se de uma condensação altamente fértil do fetichismo de mercadoria no capitalismo high-tech. Como uma espécie de progresso mais recente desse capitalismo, ele carrega consigo muitos e muitos anos de 36 HAUG, Wolfgang F. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora Unesp, 1995.

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desenvolvimento social, a vida inteira de cientistas, pesquisadores e programadores, o trabalho daqueles que produziram os aparelhos em fábricas terceirizadas, e por último, mas não menos importante, matérias-primas como o coltan35, cuja extração é feita sob condições desumanas em zonas de guerra civil no Congo. Mas o que enxergamos quando pensamos no celular é sua promessa de conexão e de nos tornar a pessoa projetada em nós, por meio de propagandas, pela indústria do telefone móvel. A propaganda, aqui, assume uma forma de promessa de identidades, sugerindo modelos em que podemos nos ajustar do mesmo modo que a forma econômica do telefone móvel cabe em nossas mãos. Em propagandas de 3G, encontramos mulheres conscientes de sua imagem, exibindo um telefone cuja cor combina com a do batom, da sombra usada nos olhos e das joias; e há o guerreiro do celular com sua barba por fazer, um empresário jovem e confiante que não precisa usar um terno e pode ter certeza de que estará “sempre conectado”. O fetichismo de mercadoria do telefone móvel produz modelos para a individualização de seus usuários. Ele promete que seremos alguém ao nos conectarmos, alguém que tem amigos, listas de companheiros, gostos específicos (uma boa coleção de seus MP3 favoritos em seu telefone), família (imagens de seus amados) e contatos (uma lista importante de números de telefone relacionados ao trabalho, de pessoas para quem você nunca liga, mas cujos dados mantém gravados). O processamento de imagens digitais usado nas propagandas de telefone móvel sublinha a conexão entre a estética e o fetichismo de mercadoria. A chama potencial de um flerte rápido usando o SMS faz o novo modelo brilhar com mais força — ele começa a dançar e cantar. A estética da mercadoria torna as coisas cada vez mais humanas e as pessoas cada vez mais impotentes e tolas. A tecnocracia da sociabilidade também é praticada pela mídia social, como o Facebook e o MySpace, os quais, parecem conferir o ideal do uso da mídia participativa. Neste momento, finalmente, não apenas uma vanguarda de ativistas de mídia, mas milhões de pessoas se envolvem em comunicações on-line, criam suas próprias redes, socializam e fazem amigos. O sistema proporciona uma constante tentação a ser social, fazer amizades, entreter-se com jogos, prestar atenção. A principal questão é que todo o valor é criado pela interação dos usuários, mas somente o host da plataforma se beneficia financeiramente — de acordo com avaliações recentes, o Facebook vale fantásticos US$ 6,5 bilhões. Enquanto no fetichismo de mercadoria tradicional as coisas escondem as 35 Combinação rara de dois minerais (columbita e tantalita), que pouco valiam até que fosse percebido seu uso estratégico na produção de celulares, computadores, naves espaciais, entre outros.

relações que as produziram, na tecnocracia da sociabilidade nossa habilidade humana básica de ser social está se reificando. Conforme os usuários se socializam nessas redes, nos bastidores dessas plataformas, sofisticadas ferramentas de análise de rede social acumulam conhecimento sobre eles, mapeando suas relações e comportamentos e representando-os em “gráficos”. O capital social dos usuários é transformado em conhecimento fetichizado — de início, um capital meramente especulativo, que se converte em capital real indo para o mercado de ações ou vendendo a empresa para uma indústria maior. Tanto as redes sociais como o celular — cujas interações se tornam cada vez mais próximas — fingem se relacionar com a individualidade de seus usuários, colocando Eu, Meu ou Você no nome dos produtos, quando, na verdade, eles têm a ver com a acumulação de capital. A mercadorização da internet como um todo pode ter sido um fracasso, expressado pela explosão da nova bolha econômica em 2000. Mas, agora, os jardins murados das redes sociais e as redes dos proprietários de telefones transformam a participação em espetáculo. A “liberdade” sentida pelos usuários para se comunicarem de forma descentralizada torna-se a base de um novo regime de acumulação, o qual cria poder e riqueza gigantescos. Quem adquire um telefone móvel ou usa uma rede social compra um sistema de valor, uma hierarquia de relações capitalistas que substituiu por um nível mais alto a ordem centralizada da sociedade de televisão. As redes comunitárias sem fio e o software livre e aberto não aparecem na TV ou em propagandas. Por serem operadas por seus usuários sem ganhos financeiros, elas não são mercadorias, apenas têm valor de uso, puro e simples: existem fora do sistema de fetiche das mercadorias. Entretanto, o interessante é que, como muitas pessoas se tornaram tão habituadas à segunda natureza de um mundo/coisa fetichizado, as redes livres e o software livre não parecem atraí-las. Elas preferem comprar uma ilusão e viver imersas nela. Continua.

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VIGILANTE CANALHA! NOVAS MANIFESTAÇÕES DA VIGILÂNCIA DE DADOS NO INÍCIO DO SÉCULO VINTE E UM

119 PREEMPTIVE MEDIA (BEATRIZ DA COSTA, JAMIE SCHULTE E BROOKE SINGER)

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Uma jovem vai a uma loja de bebidas para comprar uma garrafa de vinho. No caixa, pedem para ela mostrar a carteira de motorista — o procedimento padrão nos Estados Unidos para qualquer pessoa que pareça ter menos de trinta anos. A jovem entrega a carteira para o balconista, mas o que acontece em seguida a surpreende. Nesse dia, o procedimento não é o mesmo de sempre. Em vez de olhar sua data de nascimento, o balconista passa a carteira de motorista por uma pequena máquina embaixo da caixa registradora. A jovem faz uma checagem rápida; será que ela entregou o cartão de crédito por engano? Quando recebe a carteira de volta, a jovem a estuda cuidadosamente. Sim, com certeza, era a carteira de motorista, mas pela primeira vez ela nota uma tarja magnética na parte de trás, muito semelhante àquela do cartão de crédito. Um monte de pensamentos corre por sua mente. Por que o balconista não apenas olhou a carteira de motorista para conferir se ela era maior de idade? Que informação a tarja contém, além de sua data de nascimento? Ela está apenas sendo lida, ou o balconista também copiou a informação codificada? E se sua informação foi salva, o que a loja vai fazer com ela, afinal? Uma história muito parecida com essa inspirou as autoras deste ensaio a examinar mais de perto as tecnologias de cartão para carteiras de motorista e a família industrial a que elas pertencem: Identificação e Captura Automática de Dados (AIDC, na sigla em inglês). O propósito de usar tecnologia de tarja magnética — e tecnologias AIDC em geral — é identificar pessoas ou objetos por meio de processos automatizados. Esse tipo de tecnologia está em ascensão, sendo disseminado na maioria das tarefas rotineiras de nosso cotidiano. Como isso aconteceu e qual a motivação por trás dessa tendência de implementar AIDC em escala massiva?

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Na história citada, por exemplo, o dono da loja de bebidas pode argumentar que a leitura automática da tarja magnética torna o trabalho do balconista mais fácil e, portanto, mais eficiente. O balconista não tem que se preocupar em manter outros clientes na fila enquanto rastreia a idade do cliente; uma máquina faz isso com muito mais rapidez. A loja também pode alegar que uma tarja magnética é mais eficiente do que o rosto na carteira de motorista, pois torna mais fácil detectar identidades falsas1. Tanto a eficiência quanto a prevenção de fraude, em última instância, economizam o dinheiro da empresa, já que uma loja de bebidas não apenas quer atender os clientes o mais rápido possível como deseja evitar processos legais caros como resultado da venda de álcool para menores. Depois de uma breve investigação independente sobre o assunto, no entanto, ficou claro para nós que a tecnologia é usada, em primeiro lugar, por motivos menos públicos. Uma vez que as tecnologias AIDC são propagandeadas como verificadores de documento, é essa a história que as lojas contam para seus clientes e o motivo pelo qual a tela da máquina mostra abertamente a idade da pessoa depois que uma identidade válida é verificada. Mas os benefícios ocultos — que ocorrem sem que vejamos — é a coleta, o cruzamento e a análise de dados. O presidente da Intellilink, fabricante de sistemas de verificação de documentos, afirma num artigo da indústria que “os revendedores [que usam nosso sistema] não estão apenas reclamando da lei por causa dos cartões, mas, ao mesmo tempo, com sua conivência, também estão construindo bancos de dados de informações”2. Essa base de dados, quase isenta de custo, que ordenadamente coleta informação para construir uma base de clientes, pode ser entendida como o benefício mais importante que a verificação por cartão traz para a empresa e, em alguns casos, também para o governo dos Estados Unidos. Este ensaio explora usos correntes e propostos para as tecnologias AIDC, com foco principal nas práticas, já bastante difundidas nos Estados Unidos, de escaneamento de carteira de motorista. Essa ação é um exemplo de nossas maiores preocupações relacionadas às tecnologias AIDC: a natureza invisível ou discreta da maioria delas; a falta de notificação e consentimento; as práticas de coleta de dados, predominantemente irregulares e difíceis de estimar, conduzidas pelos empresários norte-americanos; a interdependência de interesses de empresários e do governo; e o encorajamento ao que pode ser chamado de 1 Esse pressuposto é incorreto. Ver “A indústria e as tecnologias AIDC: um panorama técnico”, neste artigo, para uma abordagem mais elaborada. 2 WIEDERER, Dan. “Answering age-old questions: age verification systems help retailers stay on the right side of the law”. In: Tobacco retailer, junho de 2002. www.cougarmtn.com/news/featureArticle/tobaccoRetailer_Jun02. asp. Hoje em dia o acesso à revista on-line passou a ser pago, dificultando a leitura do texto, acessível também a partir da URL: http://www.accessmylibrary.com/coms2/summary_0286-2090150_ITM.

canalhice da vigilância, em cada faceta da vida contemporânea. Acreditamos que um acesso crítico e uma reação informada às tecnologias AIDC não devem ficar restritos exclusivamente à comunidade de especialistas, pois o uso continuado de tecnologias AIDC tem potencial para transformar quase todos os aspectos de nosso cotidiano. No entanto, para permitir ao público uma oportunidade de debater seu desenvolvimento, uso e regulamentação, é necessário um pouco de conhecimento sobre o assunto. A INDÚSTRIA E AS TECNOLOGIAS AIDC: UM PANORAMA TÉCNICO Identificação Automática e Captura de Dados (AIDC) é uma família de tecnologias para a identificação única de objetos físicos por meio de processos automáticos. Essas tecnologias são projetadas para preencher a lacuna entre entidades do mundo real e bancos de dados de computador que as descrevem. AIDC compreende um sistema de computadores com um conjunto de olhos que podem identificar objetos devidamente etiquetados. Algoritmos de computador projetados para aumentar a eficiência podem, então, trabalhar com conhecimento direto e imediato do ambiente, em vez de processar informações estatísticas coletadas prévia e manualmente. Aplicações da AIDC existem há tempos, e agora incluem checagem de vendas, inventário de estoque, gerenciamento de mercados, carteiras de motorista e sistemas de entrada em prédios sem o uso de chave. A indústria AIDC lucra com a criação de sistemas de redução do esforço humano, necessário em tarefas de reconhecimento de objetos. As tecnologias AIDC tiram os humanos do circuito e, portanto, diminuem os custos trabalhistas, aceleram o movimento de produtos e, em tese, reduzem o potencial de erro, fraude e sabotagem. Soma-se a isso o fato de que, ao facilitar a coleta de dados, as tecnologias AIDC permitem o acúmulo de grandes volumes de informação. Por um lado, as tecnologias AIDC chamam atenção para um problema tecnológico antigo: como os computadores podem identificar objetos no mundo real? De 2005 para cá, as pesquisas em visão computacional ainda não chegaram perto de produzir sistemas capazes de reconhecer visualmente objetos em ambientes naturais, sem erro significativo. Mesmo que esses sistemas de visão funcionem bem, um computador é incapaz de distinguir entre objetos diferentes, mas com a mesma aparência. Para reduzir esse problema, as tecnologias AIDC focam técnicas que envolvem etiquetamento dos dados codificados, para que sejam interpretados mais diretamente pelo computador. O exemplo mais antigo e evidente de etiquetamento de objetos é o código de barra, impresso nos pacotes de quase todos os produtos vendidos por grandes fornecedores nas modernas

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economias industriais. Inovações mais recentes, como os cartões de fita magnética e os chamados cartões de visita inteligentes, são tipicamente usados para identificar os consumidores no lugar dos produtos. Estão, atualmente, em desenvolvimento as etiquetas de identificação por radiofrequência (RFID, na sigla em inglês), que se mostram promissoras como um método avançado de identificar, com esforço mínimo, tanto produtos quanto pessoas. Desde sua padronização nos anos 1970, o código de barra acelerou o fluxo de produtos em configurações comerciais e industriais. Existem códigos de barra com diversos tamanhos e codificações. As versões mais simples são capazes de representar apenas números curtos, enquanto as mais recentes podem codificar um parágrafo curto de texto, em formato ASCII (sigla em inglês para American Standard Code for Information Interchange — Código-Padrão Americano para o Intercâmbio de Informações). Nos Estados Unidos, algo como um tubo de pasta de dentes é codificado com um número UPC (código de identificação do produto, conhecido em inglês como Universal Product Code). Em quase todo o resto do mundo, é usado o sistema EAN (sistema europeu, conhecido em inglês como European Article Number). Durante o pagamento por um item, o símbolo UPC indica apenas a marca e o tipo do produto que foi escaneado, por meio do acesso à base de dados do revendedor; o número fica armazenado em inventário e, em alguns casos, também o histórico de compra do comumidor. Em ambientes de varejo, os sistemas de código de barra são de implementação barata, porque a maioria dos produtos adquiridos já tem o símbolo UPC aplicado — mas os mesmos precisam ser escaneados cuidadosamente por um operador humano. Esquemas mais avançados de codificação, geralmente chamados de códigos de barra bidimensionais, consistem em uma região quadrada preenchida com pequenos pixels pretos e brancos, que podem representar quantidade maior de informação. Códigos de barra bidimensionais são usados em alguns cartões de identificação e pelo exército dos EUA, tendo sido adotados na China como padrão nacional para códigos de barra. A identificação única de pessoas e não de produtos, quando feita por máquinas, impõe uma série de desafios. Mesmo que essas tatuagens de código de barra de fato existam, não são amplamente reconhecidas, e muitas pessoas vão contornar os sistemas de identificação quando tecnologicamente possível. No entanto, há casos de prisioneiros, animais e estudantes que foram marcados involuntariamente com adesivos, tornozeleiras, ou tiveram RFID subdérmico injetado em seus corpos. Para situações de identificação cotidiana, a solução tem sido normalmente fornecer às pessoas cartões de identificação que podem ser lidos por máquinas, pois são fáceis de esconder e, em algumas situações, difíceis de serem modificados.

Desde os anos 1970, cartões de crédito com tarjas magnéticas tornaram-se o método padrão de identificação automatizada. As tarjas magnéticas são tecnologicamente semelhantes às fitas cassete, uma vez que seus dados são gravados numa superfície especial por meio da aplicação de um campo magnético, para leitura posterior por meio da passagem de um sensor magnético. No período em que as tarjas magnéticas foram introduzidas nos cartões de crédito, As etiquetas de RFID são o padrão mais recente de armazenamento de informações de dados para identificação automática

Imagem Retirada da Wikipedia

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os escâneres para fazer sua leitura eram suficientemente caros para desencorajar a leitura de cartões com mídias magnéticas, feita de forma não autorizada ou imprópria. Agora, no entanto, as tarjas são usadas em diversas novas configurações, como carteiras de motorista, carteiras de estudante, crachás, chaves e cartões de fidelidade de lojas, resultando em um grande mercado para os equipamentos de leitura e gravação de tarjas magnéticas. Esses dispositivos são relativamente baratos (custam cerca de US$ 500) e não requerem conhecimento especializado para serem usados. Com isso, cria-se uma situação em que modificar a tarja magnética torna-se mais fácil que alterar a informação impressa no cartão. Tanto os códigos de barra quanto as fitas magnéticas são limitados pelo fato de que armazenam apenas uma pequena quantidade de informação. Como resultado, os códigos de barra e tarjas magnéticas geralmente armazenam pouco mais que um número de identidade ligado a um registro de informações completas guardadas em outro lugar no banco de dados. Outro resultado é o desenvolvimento dos sistemas de cartão inteligente AIDC para permitir o armazenamento de grandes quantidades de informação no próprio cartão. Cartões inteligentes são, de fato, pequenos computadores e não precisam apontar para uma entrada em um banco de dados remoto para revelar informação significativa. O risco de vazamento ainda existe,


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mas técnicas de criptografia tornam a tarefa difícil, senão impossível. Cartões inteligentes são semelhantes na aparência aos cartões de fita magnética, mas são diferenciados por um pequeno quadrado que contém contatos elétricos de ouro que se conectam a um computador interno do cartão. Quando inserida na máquina de leitura, a memória interna do cartão pode ser lida e modificada. A comunicação bidirecional entre o computador interno do cartão e seu leitor permite interações sofisticadas, que possibilitam a ambos verificações mútuas para validar o dispositivo, autorizando-o a desempenhar uma tarefa. Como resultado, um cartão inteligente permite armazenamento razoavelmente seguro de moeda eletrônica, informações médicas e outras que seu projetista deseje controlar. Como a tarja magnética ou o cartão inteligente não estão permanentemente com seu portador, eles podem ser roubados ou trocados, levando a identificações equivocadas. Para assegurar que o portador seja de fato seu usuário, várias técnicas de aferição foram utilizadas. Duas abordagens são solicitar, quando o cartão é usado, uma assinatura (que deve ser igual à do cartão), e colocar no cartão uma foto da pessoa (que deve guardar semelhança com seu usuário). Nenhum dos métodos permite grande segurança, e o procedimento de aferição em ambos os casos deve ser desempenhado por uma pessoa. Para resolver esse problema, tem sido inserida informação biométrica nos dados eletrônicos do cartão. No contexto da segurança das tecnologias AIDC, a biometria concentra-se na análise computacional das características dos indivíduos identificados. Para compatibilizar os dados do cartão com os de seu proprietário de forma segura e automática, as medidas preferidas são os padrões quase únicos das impressões digitais e dos vasos sanguíneos da íris. Outras técnicas menos comuns são a análise de voz e o reconhecimento facial. Qualquer que seja o método adotado, algumas características quase únicas do portador são armazenadas na memória do cartão. A pessoa que tentar usá-lo posteriormente está sujeita à análise para determinar se suas características são ou não semelhantes àquelas contidas no cartão. AIDC tem por meta reduzir o esforço humano envolvido na identificação de objetos e pessoas, mas todas as tecnologias descritas até agora precisam de formas de escaneamento explícito, que demandam trabalho. As etiquetas RFID são uma extensão do conceito de cartões inteligentes, na medida em que podem gravar e ler informações com segurança em etiquetas eletrônicas. A maior inovação do RFID é usar a comunicação sem fio para eliminar a necessidade de o leitor tocar fisicamente o cartão. De fato, o escaneamento pode ser feito sem nenhum operador humano, já que a etiqueta precisa apenas passar próximo do leitor. As etiquetas ou transponders RFID podem

ser fisicamente menores e com custos de produção mais baixos que os de um cartão de identificação, o que os torna adequados para muitos usos nos quais antes se empregavam códigos de barra. A distância de leitura das etiquetas RFID depende do aplicativo e da tecnologia envolvidos, mas oscila de vários centímetros a muitos metros. Os usos correntes incluem o pagamento automático de transporte público, pedágio, gasolina e comida; rastreamento de peças em fábricas e galpões; identificação de rebanhos pecuários e de animais de estimação; e elaboração de cartões de acesso e de identificação médica. A rede de varejo Walmart e o exército dos EUA estão pressionando seus principais fornecedores para colocar etiquetas RFID em seus produtos. À medida que se tornarem lugar-comum, os sistemas RFID identificarão, de maneira única, os itens em que estão afixados e, por extensão, poderão reconhecer a pessoa que o segura ou veste. A busca por formas menos trabalhosas e mais eficientes e convenientes de controle de estoques e vendas criou o potencial para novas formas ocultas de vigilância individual de pessoas. AIDC E A CARTEIRA DE MOTORISTA DOS EUA Uma carteira de motorista é geralmente a forma de identificação mais solicitada nos Estados Unidos, o que a torna alvo primário da integração com tecnologias AIDC. O documento, emitido pelos Departamentos de Veículos Motorizados (DMV, na sigla em inglês) para atestar que a pessoa pode dirigir um carro, tornou-se o meio pelo qual os indivíduos têm acesso garantido a uma variedade de atividades não relacionadas entre si, como preencher um cheque, comprar uma bebida ou embarcar em um avião. Revendedores, agências governamentais, companhias de aviação comercial e outras que dependem da carteira de motorista para identificação pessoal procuram tecnologias AIDC — como a tarja magnética, o código de barra e o cartão inteligente — para automatizar e validar esse processo. Com o acréscimo de tecnologias AIDC, a carteira de motorista não se restringe à identificação simples e confiável; também permite que revendedores, agências e empresas comerciais coletem quantidades massivas de dados sobre uma pessoa, informação que se acumula cada vez que o cartão é usado. Companhias e agências governamentais que têm intenção de colher dados a partir de carteiras de motorista encontram dificuldades, no entanto, pela inexistência de padrões industriais vigentes. Como as licenças não são regulamentadas federalmente, cada estado determina seus padrões e monitora as licenças que emite. Assim, uma carteira de motorista do Maine não se parece com uma de Utah, e frequentemente os documentos de um mesmo estado variam bastante, por conta de mudanças ocorridas ao longo dos anos. Atualmente, 46 dos

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50 estados usam algum tipo de tarja magnética ou tecnologia de código de barra (ou uma combinação de ambas), e os demais consideram ativamente ou já fazem planos para implementação3. Não apenas as tecnologias básicas das carteiras variam de um estado para outro, mas também os métodos de codificação da informação,o que inviabilizava a leitura universal. Para tornar as coisas ainda mais confusas, a quantidade e o tipo de informação codificada também são irregulares: em alguns estados, a informação eletrônica na tarja magnética ou no código de barra apenas espelha a informação impressa na frente do cartão, enquanto em outros casos dados adicionais, como o número do Seguro Social, impressões digitais e modelos de reconhecimento facial, ampliam a informação-padrão. A Associação Americana dos Administradores de Veículos Motorizados (AAMVA, na sigla em inglês), uma organização lobista das administrações estaduais de veículos, tem pressionado por mudanças nessa situação, a qual considera uma ameaça à segurança nacional e um inconveniente para a América corporativa4. No clima pós-11 de Setembro, o chamado da AAMVA por um padrão universal está finalmente progredindo e ganhando apoio verbal de líderes da indústria, como Larry Ellison, da Oracle, e de importantes oficiais do governo, como Tom Ridge, ex-diretor do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos. Qualquer proposta que remeta, ainda que de modo remoto, a um plano para uma carteira de identidade nacional tem sido rotineiramente descartada nos Estados Unidos, dando início a críticas intensas de ambos os partidos políticos. Na atual crise da “guerra permanente”, entretanto, políticas tradicionalmente impopulares são capazes de ganhar adesão pela promessa de um novo sentimento de segurança. Outro exemplo de reconstrução política que ganhou espaço através da retórica de segurança do 11 de Setembro é a recente Lei da Reforma da Inteligência. Ela permite o compartilhamento de dados e contato crescente entre as agências de inteligência e de reforço da lei, algo estritamente proibido desde os anos 1970, quando os programas de contrainteligência do FBI e técnicas exageradas de vigilância tornaram-se públicos. Em maio de 2002, o plano da AAMVA obteve seu maior impulso: os representantes James Moran (Partido Democrata da Virgínia) e Tom Davis (Partido 3 Para uma tabela de referência lançada pela Associação Americana dos Administradores de Veículos (AAMVA), ver “Current and planned technologies for U.S. Jurisdictions”, no site da AAMVA, em www.aamva.org/standards/ stdUSLicenseTech.asp. O endereço citado no texto original refere-se à tabela publicada na ocasião de sua escrita. Uma versão atualizada pode ser encontrada em http://www.aamva.org/KnowledgeCenter/Standards/IDSecurityTechnologies/uslicensetechnology.htm. De acordo com essa tabela, o número de estados que utilizam algum tipo de tarja magnética ou tecnologia de código de barra aumentou dos 46 citados no artigo, para atuais 49 dos 50 estados. 4 AAMVA. “AAMVA Helps Secure a Safer America”, 14 de janeiro de 2002. www.aamva.org/About/PressRoom/ PressReleases/AAMVAHelpsSecureSaferAmerican_01142002.htm.

Republicano da Virgínia) introduziram o H.R. 4633, ou Ato de Modernização da Carteira de Motorista, de 20025, que reflete as recomendações da AAMVA e estabelece padrões nacionais para a emissão do documento. Esses padrões incluem dados biométricos e um banco de dados centralizado de informações provenientes das licenças de motorista. Os adeptos dessa legislação afirmam de maneira veemente que o objetivo primário é, evidentemente, a identificação segura, mas já há funções secundárias sendo propostas, como o uso do cartão inteligente na carteira de motorista para administrar vales-refeição e títulos de eleitor6. Essa legislação estabeleceria a carteira de motorista como um aparato para autenticação total e automática, análise e controle. Se o H.R. 4633 tornar-se lei, passar a carteira de motorista em dispositivos de tarja magnética não será mais uma ocorrência incomum, mas uma consequência esperada de se fazer parte da sociedade nos Estados Unidos. QUEM FAZ VARREDURA DE CARTEIRAS DE MOTORISTA HOJE? Assim como a iniciativa privada, oficiais do governo já estão usando equipamentos computadorizados para ler informações da tarja magnética ou código de barra da carteira de motorista, sendo a polícia uma das primeiras a adotar o procedimento. Quando parado por excesso de velocidade, por exemplo, um motorista deve mostrar sua habilitação. Antigamente, o oficial de polícia deveria ligar para os quartéis em busca de informação. Hoje, é mais provável que leve a carteira até a viatura, execute uma varredura por meio de um escâner inserido no painel e cruze informações usando vários bancos de dados, como o Centro Nacional de Informação sobre Crimes (NCIC, na sigla em inglês) e o Sistema Nacional de Telecomunicação para Reforço da Lei (NLETS, na sigla em inglês). Instantaneamente, o oficial descobrirá, por exemplo, se o motorista tem um registro anterior de desrespeito às leis de trânsito ou ficha criminal. O Coplink, sistema de banco de dados que permite aos policiais norte-americanos acessar e trocar informações, foi especificamente projetado para facilitar esse procedimento. Lojas de bebidas e cigarros, casas noturnas e bares foram os primeiros estabelecimentos comerciais a perceber os benefícios desse tipo de sistema. Esses locais, obrigados por lei a verificar a idade de seus clientes, voltaram-se para equipamentos de varredura a fim de automatizar um procedimento necessário. 5 Mais informações sobre o Ato de Modernização da Carteira de Motorista podem ser encontradas em http://thomas.loc.gov/cgi-bin/query/z?c107:H.R.4633:. 6 WELSH, William. “Driver’s license bills: reduce speed ahead”. Washington Technology, 18 de setembro de 2002. http://washingtontechnology.com/articles/2002/09/18/drivers-license-bills-reduce-speed-ahead.aspx.

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Conforme vimos, no entanto, a motivação real para a compra e manutenção de sistemas desse tipo pode não ser apenas a eficiência ou o cumprimento da lei de maneira mais efetiva, mas, pelo contrário, a construção de bases de dados detalhadas e valiosas sobre consumidores, sem o menor custo. Com exceção de dois estados (New Hampshire e Texas), nos Estados Unidos não há restrições contra o armazenamento de informação, desde que ela tenha sido obtida de uma licença de motorista. Assim, as companhias que fornecem o hardware tornam a coleta de dados o mais fácil possível a seus clientes, agregando a seus produtos programas de bancos de dados sobre consumidores. Os programas embutidos nos escâneres de licença explicitam o que as empresas podem fazer com as informações uma vez que elas sejam colhidas. Tipicamente, são softwares que permitem às empresas atingir vários objetivos diferentes: podem arquivar em bases de dados informações de consumidores e históricos de transações; examinar informações baseadas em palavras-chave; analisar transações de consumidores a partir de dados demográficos ou estatísticos; exportar informações para uso em outros aplicativos; imprimir cartas, etiquetas e relatórios; e programar alertas para indivíduos específicos, de forma que uma mensagem seja exibida em tempo real quando suas identidades forem detectadas7. Qualquer empresa pode encontrar usos valiosos para esse tipo de programa, ainda que os benefícios mais óbvios sejam atender a objetivos de marketing. Uma base de dados também é importante por outros motivos, como analisar um grupo de consumidores para planejamento estratégico ou fornecer dados para investidores de forma a justificar projetos futuros. Houve apenas algumas poucas instâncias em que os estados impediram a varredura de carteiras de motorista por meio de mecanismos legais, e, de modo geral, isso aconteceu em resposta a protestos de cidadãos, sustentando que a prática violava o Ato de Proteção de Privacidade do Motorista8. Existem, contudo, razões convincentes pelas quais o governo permitiria a continuidade de tais práticas, fazendo vista grossa. A aplicação da lei, por exemplo, do âmbito local ao federal, gera grandes benefícios a empresas que coletam dados de transações, pois eles podem ser usados em investigações e intimações futuras. Mais recentemente, na chamada guerra contra o terror, agentes federais solicitaram históricos de transações de livrarias e lojas que vendem equipamentos de

mergulho. Quanto mais essa informação estiver detalhada, organizada e digitalizada, mais fácil será para os agentes as solicitarem, receberem e utilizarem. Semanas depois do 11 de Setembro, um supermercado entregou voluntariamente seu banco de dados de clientes, com histórico completo de compras, para investigadores federais. Essa ação não aconteceu em resposta a um pedido, segundo afirmou um porta-voz da loja — parece ter sido algum tipo de gesto patriótico9. Além disso, o uso de tecnologias AIDC tornou-se tão disseminado que oficiais do governo não apenas as estão utilizando para solicitar informações que solucionem crimes cometidos, mas também para estabelecer bancos de dados para transações comerciais em caso de comportamento criminoso futuro. Um exemplo ocorre na Pensilvânia. Quando uma identidade é escaneada em uma loja pública de bebidas do estado, a compra e a informação de identificação são adicionadas ao banco de dados eletrônico da Câmara de Controle de Bebidas da Pensilvânia (PLCB, na sigla em inglês), em Harrisburg10. A base de dados da PLCB é preemptiva: foi estabelecida para ajudar a polícia em casos criminais ainda por serem cometidos. De forma a subvencionar esse conforto à polícia, no entanto, cada morador da Pensilvânia tem seu histórico de compra de bebidas alcoólicas monitorado e registrado. Por esse motivo, não é possível comprar garrafas de vinho ou bebidas alcoólicas em qualquer outro lugar que não seja uma loja controlada pelo estado. Não há opções para contornar essa vigilância, exceto se a pessoa comprar bebida fora do estado. Escâneres de documentos têm sido usados nas lojas de bebida da Pensilvânia desde 1997 e atualmente estão instalados em todos os 638 estabelecimentos existentes, geridos pelo governo. Aeroportos, hospitais e prédios do governo são os locais que mais recentemente adotaram escâneres de carteira de motorista, conforme notícia do New York Times publicada em 2002. “O aeroporto Logan, em Boston, está usando máquinas [de escanear carteiras de motorista] para checar a identidade dos passageiros. O Hospital da Universidade de Nova York faz a varredura e armazena informações de carteira de motorista. O estado de Delaware instalou máquinas para visualizar os visitantes da assembleia estadual e seus principais prédios oficiais”11. Com a maioria dos DMVs emitindo informação codificada nas carteiras de motorista, e o custo do equipamento de varredura tão baixo que mesmo um novato em computadores

7 O manual on-line da TriCom, “Visitor manager software”, produto vendido com o ID-E, leitor portátil da carteira de motorista, descreve essas capacidades. TriCom Card Technologies, “Visitor management software introduction”. www.tricomcard.com/manuals. 8 DANDURANT, Karen. “License scanning now illegal”, Seacoast Online, 3 de maio de 2002. www.seacoastonline.com/2002news/exeter/05032002/news/2731.htm.

9 BAARD, Erik. “Buying trouble: your grocery list could spark a terror probe”, Village Voice, 23 de julho de 2002. www.villagevoice.com/news/0230,baard,36760,1.html. 10 BERRY, William. “Cops use ID info in criminal cases”, The Digital Collegian, 9 de abril de 2003. www.collegian. psu.edu/archive/2003/04/04-09-03tdc/04-09-03dnews-08.asp. 11 LEE, Jennifer. “Welcome to the database lounge”, The New York Times, 21 de março de 2002. www.nytimes. com/2002/03/21/technology/welcome-to-the-database-lounge.html.

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poderia gerenciá-lo, muitas empresas e agências do governo estão adotando ou considerando usar cartões e coletar informações pessoais. VARREDURA DE CARTEIRA DE MOTORISTA E DADOS DIGITAIS: INFORMAÇÕES OCULTAS E ERROS DE BANCOS DE DADOS

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A varredura de documentos costuma ocorrer fora do campo de visão do portador do cartão. Oficiais de polícia levam carteiras de motoristas para checagem dentro de suas viaturas, e escâneres de cartão frequentemente são colocados embaixo do balcão de lojas de conveniência e bebidas, sendo, portanto, invisíveis aos olhos do consumidor. Mesmo que um cliente veja o escâner de cartão em uso, isso não necessariamente torna o processo transparente: não só o consumidor pode não se dar conta do que está acontecendo, como geralmente não sabe que informação está armazenada no cartão, nem o que será feito com os dados coletados. Se um cliente questiona o estabelecimento sobre o que será feito com essa informação, normalmente os balconistas apenas dão de ombros, pois não são treinados para entender de que forma a base de dados da loja opera. Os clientes estão, assim, impotentes diante da inserção de suas informações pessoais em um sistema de computador cujos objetivos e funções permanecem nebulosos para ele — a situação não permite uma troca útil de informações; não há possibilidade de evitá -la nem de verificar se a informação está correta. Erros humanos que resultam em entradas falsas não são incomuns. No caso do registro da carteira de motorista, o arquivo de uma pessoa começa após um funcionário do DMV inserir informações manualmente em um formulário, as quais acabam codificadas na licença de motorista. Falhas, evidentemente, acontecem; é humano. Em nossa experiência fazendo varredura de carteiras de motorista, vimos cartões em que a informação estava correta na face da carteira, enquanto os dados codificados digitalmente eram diferentes e falsos. Mesmo assim, uma vez que a entrada é feita e enviada a outros bancos de dados, a informação falsa adquire legitimidade pelo simples fato de ser replicada. Às vezes, erros em bases de dados não resultam de erros de digitação, mas de confusão entre identidades. Se o nome de duas pessoas é semelhante ou se elas possuem números de Seguro Social quase idênticos, suas informações podem ser facilmente trocadas. Estudo sobre relatórios de crédito feito pelo Grupo de Pesquisa dos Interesses Públicos nos EUA (U.S. PIRG, na sigla em inglês), por exemplo, descobriu que 70% desses relatórios continham erros e 29% resultavam de relatos sobre contas de outro consumidor12. Quando são 12 GOLINGER, Jon e MIERZWINSKI, Edmund. “Mistakes do happen: credit report errors mean consumers lose”. Março de 1998. http://static.uspirg.org/reports/mistakesdohappen3_98.pdf.

encontrados erros, os indivíduos se deparam com a tarefa quase impossível de rastrear sua origem e retificar o problema em vários bancos de dados. Quantidades substanciais de tempo, dinheiro e conhecimento são necessárias para completar essa tarefa tediosa. Armazéns de dados, isto é, empresas que consolidam informações de várias fontes e as revendem a terceiros, correm o risco de perpetuar informação falsa. Supõe-se que essas companhias deveriam prestar atenção considerável na verificação de todos os dados que distribuem, mas infelizmente este nem sempre é o caso. ChoicePoint, um armazém de dados bastante conhecido nos Estados Unidos, tem consciência de suas próprias lacunas de informação e não se responsabiliza pela precisão de seus dados13. Isso parece particularmente perturbador, já que o ChoicePoint é o fornecedor comercial líder do governo federal dos Estados Unidos. Possui contas multimilionárias com 35 diferentes agências, incluindo FBI, IRS (a Receita Federal americana) e o Departamento de Justiça. Em 2002, o ChoicePoint foi finalmente processado por uma corte de Nova York em função de suas práticas precárias de verificação, tendo sido condenado a pagar US$ 450 mil à parte pleiteante. Por uma taxa de US$ 20, o ChoicePoint oferece aos indivíduos a oportunidade de revisar as informações mantidas a seu respeito no banco de dados da empresa. O especialista em privacidade David Smith fez exatamente isso e descobriu que havia mais informações erradas do que corretas sobre ele; em seguida, soube que essas informações não poderiam ser excluídas do conjunto de dados pessoais do ChoicePoint14. O ChoicePoint sugere que, se alguém encontrar informações imprecisas em seus arquivos, deve contatar quem gerou os dados para corrigir o problema, direcionando a pessoa a um labirinto de escritórios públicos, empresas comerciais e agências de crédito fornecedoras de dados. A RETÓRICA DA CONVENIÊNCIA VERSUS PRIVACIDADE Mais de cinquenta anos depois da publicação de 1984, de George Orwell, a metáfora do Big Brother ainda predomina na cultura popular para descrever sociedades de vigilância. Hoje em dia, ao menos nos Estados Unidos, essa metáfora é menos útil e mesmo enganadora na descrição da sociedade contemporânea de vigilância. Conforme afirma David Lyon, “a visão antiutópica 13 As FAQs sobre privacidade do ChoicePoint podem ser encontradas em www.autotrackxp.com/privacy_faqs. htm#correct. Também é possível acessar o conteúdo sobre política de privacidade do site em http://www. choicepoint.com/privacy.html. 14 Electronic Privacy Information Center (EPIC). “Epic Digest at Privacy.org”. 8 a 15 de maio de 2001. www. privacy.org/digest/epic-digest05.15.01.html. Privacy.org é um projeto conjunto do EPIC e da Privacy International.

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de Orwell era dominada pelo Estado centralizador. Ele nunca supôs como o consumismo descentralizado se tornaria significativo para o controle social”15. Os exemplos que esboçamos até agora — como acontece com a maioria das tecnologias AIDC — não são uma questão de coerção do Estado, mas sim de situações consensuais das quais o indivíduo deseja participar (em grande parte das vezes, através do consumo) e, como resultado, submete-se a algum tipo de sistema de vigilância controlado comercialmente. Essa condição costuma ser descrita pela oposição entre conveniência e privacidade. As pessoas são levadas a acreditar que, quando usam as inovações tecnológicas mais recentes (telefones celulares, etiquetas E-ZPass, cartões de fidelidade de supermercados), os benefícios inevitavelmente são acompanhados de possibilidades de vigilância desagradáveis, e que os luxos modernos impõem certas condições. Os luxos modernos, claro, rapidamente se transformam em necessidades e, com a proliferação de tecnologias AIDC, mesmo prazeres básicos — como comprar uma garrafa de vinho — colocam a pessoa diante do dilema da conveniência ou da privacidade. O E-ZPass (nome do sistema de pedágio automático dos EUA) é uma dessas facilidades modernas que, para muitas pessoas que vivem na região nordeste dos Estados Unidos, levantam a questão da conveniência versus privacidade. O E-ZPass é um dispositivo opcional que deve ser fixado no para-brisa do carro; ao passar pela cabine de pedágio em autoestradas, lança automaticamente um débito em uma conta eletrônica — a conveniência é o menor tempo de espera no pedágio. Esse sistema particular de coleta (que não é exclusivo dos Estados Unidos) consiste de uma etiqueta RFID, que transmite a identidade única do carro a um receptor, instalado no posto de pedágio. A informação é transferida para um banco de dados de clientes, que debita a tarifa da conta do consumidor. Junto com o balanço das transações, também registra local, hora e valor. Outros fatores como velocidade média podem ser interpolados usando dois pontos de entrada na base de dados. Essa valiosa informação tem sido usada não apenas para débito em conta, mas também para fins policiais, como a emissão de multas por excesso de velocidade e o aumento no valor do seguro16. Não há, certamente, razão alguma para que o E-ZPass limite-se ao motorista. 15 LYON, David. The electronic eye: the rise of surveillance society. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994, p. 78. 16 O amigo de um dos autores mudou-se do norte do estado de Nova York para a cidade de Nova York e não notificou de imediato sua companhia de seguro sobre a mudança. Posteriormente, ele comprou um E-ZPass para seu trajeto de trabalho — um deslocamento que passou a fazer diariamente. Semanas após a mudança, sua companhia de seguro lhe enviou um aviso informando que sua taxa de seguro havia mais que duplicado com base em sua nova residência. Quando ligou para a seguradora para discutir uma tarifa justa, ele perguntou como eles sabiam da mudança. O operador disse que eles se basearam em informações colhidas rotineiramente nos E-ZPass. Para as FAQs sobre o E-ZPass, ver http://www.ezpass.com/static/faq/index.shtml.

Pode funcionar, por exemplo, da mesma forma que os cartões de telefone descartáveis, disponíveis na maioria das lojas de conveniência. Esse cartão seria comprado por um certo valor, que diminuiria conforme o uso, até zerar, tornando-se inválido. Os departamentos de transporte público ainda se beneficiariam desse sistema de débito automático (da mesma forma que fazem hoje E-Z Pass: monitoramento de veículos permite vantagens com as informações do E-ZPass), como pedágio de passagem livre, mas, em contra-partida, coloca os motoristas sob vigilância intermitnte usando informações anônimas para conduzir pesquisas de padrão de trânsito voltadas a melhorias futuras das estradas. No entanto, o sistema de E-ZPass descartável não permitiria o policiamento e controle, através de etiquetas RFID exclusivas, às companhias donas do sistema. Os sistemas descartáveis poderiam, assim, eliminar o dilema da conveniência versus privacidade ao possibilitar a conveniência sem aumentar o controle corporativo. DEPENDÊNCIA ENTRE GOVERNO E CORPORAÇÕES O cenário do E-ZPass não só ilustra a forma como as corporações estão se tornando cada vez mais forças de policiamento, como demonstra de que maneira empresas privadas (E-ZPass) compartilham dados com o governo (departamento de transporte público) por uma causa comum (melhorar os problemas de congestionamento pela integração do E-ZPass ao sistema de autoestradas). Esse compartilhamento de informação entre os setores público e privado para benefício das duas partes não é incomum ou restrito às tecnologias AIDC. Outro exemplo recente envolveu a entrega dos registros de consumidores da empresa aérea JetBlue para a Administração de Segurança do Transporte (TSA, na sigla em inglês). A JetBlue liberou os dados de seus clientes conforme solicitado, sem notificar ou receber consentimento das pessoas envolvidas, algo que claramente viola sua própria política de privacidade. A TSA queria a informação para um experimento de exploração de dados cujo objetivo era reduzir o risco de encontrar terroristas entre

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os passageiros17. Esse tipo de tática deixa os consumidores com a desconfortável sensação de que os dados originalmente colhidos por um motivo podem facilmente ser usados para outros, sem seu o conhecimento. Há outros casos, como vimos com o ChoicePoint, em que o objetivo todo de um negócio é abastecer o governo com informações. Aqui, o fator motivador não é uma parceria público-privada comum — gira quase exclusivamente em torno do lucro. O governo, por exemplo, não costuma buscar armazéns comerciais porque eles têm acesso a informações especiais; os dados do ChoicePoint são extraídos de registros públicos e combinados a informações fornecidas pela mídia, por empresas de análise de crédito e, em alguns casos, por detetives particulares. Com frequência, agências estatais recorrem a companhias privadas e fontes externas de coleta de dados para contornar o Ato de Privacidade de 1974. Essa lei restringe a coleta, o uso e a disseminação de informações pessoais por e entre agências do governo, mas não coloca limites ao setor privado. Mesmo depois que o Ato Patriótico dos EUA foi aprovado, em 2001, legalizando o aprimoramento da coleta e análise de informações governamentais para checagens e balanços, o Estado continuou se apoiando no setor privado para desenvolver com agilidade atividades de “observação”18. Talvez o uso mais questionável de dados comerciais por setores do governo em anos recentes seja o ocorrido em 1998, quando o legislativo do estado da Flórida tomou a decisão sem precedentes de varrer cidadãos sem condições de votar — na maioria ex-presos — da lista de registro de eleitores do estado, com base em informações compradas de firmas comerciais. O legislativo alega que foi uma resposta necessária a uma corrida por maioria em Miami, em que numerosos votos ilegais foram computados. Mas o contrato de US$ 4 milhões foi firmado com o ChoicePoint, e estima-se que milhares de eleitores — desproporcionalmente negros — tenham tido seu direito de voto cassado na eleição presidencial, como resultado de informação falha, não verificada19. Sem dúvida, os dados fluem também na outra direção: do corpo governamental para os bancos de dados corporativos. A iniciativa privada passou a usar dados do censo e de outros registros públicos, disponibilizados gratuitamente pelo governo dos EUA, para tomar decisões sobre futuros locais de lojas ou sobre preços de produtos. 17 “Betraying one’s passengers.” The New York Times. 23 de setembro de 2003. www.nytimes.com/2003/09/23/ opinion/23TUE2.html. 18 Electronic Frontier Foundation. “The EFF analysis of the provisions of the USA Patriot Act that relate to online activities”. 27 de outubro de 2003. www.eff.org/Privacy/Surveillance/Terrorism/20011031_eff_usa_patriot_analysis.php. 19 Gregory Palast é um jornalista que investiga extensivamente esse incidente. Ver seu artigo “Florida’s Flawed ‘Voter-Cleansing’ Program”. Salon, 4 de dezembro de 2000. http://archive.salon.com/politics/ feature/2000/12/04/voter_file/print.html.

O uso de características como idade, gênero ou renda para pesquisa de mercado é chamado demografia. Com o aumento da capacidade de armazenamento de dados e a facilidade de acesso à informação pública pela internet, a análise demográfica se tornou massivamente acelerada. Esse tipo de uso comercial da informação pública mina seu objetivo original — dados divulgados para tornar as burocracias do governo mais visíveis e, portanto, justificáveis a seus cidadãos, em vez disso, estão sendo usados pelo mercado para estudar os consumidores, como forma de buscar lucros corporativos. CONSEQUÊNCIAS DA AIDC À luz das novas tecnologias, incluindo a AIDC, há uma necessidade urgente de reconsiderar mais amplamente as práticas de coleta e uso de dados nos Estados Unidos. A situação desses dados já é árida (como nossos exemplos sugerem) e corre-se o risco de que se torne exponencialmente pior. AIDC não cria uma situação ruim, mas agrava uma que permanece sem controle suficiente (tecnológico ou governamental) e sem entendimento público satisfatório para permitir uma implementação justa. Uma discussão profunda das implicações sociais das tecnologias AIDC encontra-se fora do escopo deste ensaio, mas gostaríamos de listar alguns exemplos, especificamente levando em conta o papel das tecnologias AIDC na intensificação do desenvolvimento de perfis de consumidores e na criação do medo e da sensação permanente de culpa. O desenvolvimento de perfis de consumidores é o registro e a classificação de comportamentos a partir do agrupamento de dados. Essa prática está relacionada à demografia, mas tem por alvo um indivíduo baseado em dados não anônimos, às vezes embutidos em informações mais gerais, como o censo. Cartões de fidelidade usados em lojas de conveniência, por exemplo, permitem colher dados sobre compras individuais, que são analisados e, em última instância, usados para marketing direto. O desenvolvimento de perfis de consumidor refina as estratégias de marketing e aumenta o lucro das lojas; as consequências são, rotineiramente, anúncios publicitários ou cupons de desconto individualizados, recebidos na hora de pagar as contas em uma mercearia. Esse tipo de anúncio ou cupom pode ser bem sucedido em alguns casos e em outros não, mas o aspecto importante não é a oferta adicional feita a grupos específicos de pessoas, e sim o limite de escolhas disponíveis para quem está fora do grupo alvo. O limite por faixas de renda e outros grupos determinados pelas lojas são criados e reforçados, acentuando-se com o tempo. Ainda que esse fenômeno não seja novo e ocorra sem a existência de AIDC, os cartões de fidelidade aceleram o processo e o individualizam.

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Muitas pessoas pensam que esses cartões de lojas produzem grandes descontos, e resistências à adesão resultam em observações do tipo “Você tem algo a esconder?”20. A maioria de nós não acha que tem coisas a esconder, mas já não é possível saber. Basta lembrar o caso do homem que, ao fazer compras em uma loja de conveniência Vons, escorregou e caiu em uma poça de iogurte21. Quando tentou processar o estabelecimento para compensar seu prejuízo, dor e sofrimento, a Vons ameaçou usar informações de seu cartão de fidelidade contra ele no tribunal. A loja alegou que o consumidor comprou uma quantidade absurda de álcool. Mais tarde ficou claro que o álcool não foi responsável pelo acidente, e a ameaça feita pela Vons foi finalmente retirada. A mensagem implícita, entretanto, é clara: seus dados podem ser usados seletivamente para desenhar uma certa biografia informacional (ou endossar um ponto de vista particular), e o uso dos dados de uma pessoa para intimidá-la — mesmo quando a informação é razoavelmente inócua — sempre permanece como uma possibilidade. É evidente que, em muitas ocasiões, os dados não são inócuos, mas de fato delicados. Foi o que ocorreu no caso Doe contra a Autoridade de Transporte do Sudoeste da Pensilvânia (SEPTA, na sigla em inglês), em que um médico garantiu ao paciente (Doe) que sua companhia de seguro (SEPTA) não lhe questionaria sobre os remédios que ele estava tomando, prescritos para tratar HIV. Apesar de a SEPTA não ter perguntado sobre o assunto, ainda assim a companhia farmacêutica Rite-Aid a proveu de uma lista de remédios que ele usava. O médico avisou o paciente sobre isso, e Doe teve medo de que seu empregador (que pagava pelo seguro) já estivesse consciente do fato. Doe abriu um processo, mas a corte decidiu que a invasão de sua privacidade era mínima. Como Daniel Solove comenta, “[a corte] ignorou a natureza da reclamação de Doe. Desconsiderando o que ele imaginava sobre a forma como seus parceiros de trabalho o tratavam, ele estava de fato sofrendo de um medo real e palpável. Sua verdadeira ferida era a impotência por não ter ideia de quem mais sabia que ele era portador de HIV, o que seu empregador pensava dele ou como a informação poderia ser usada contra ele. Esse sentimento de desconforto mudou a forma como ele percebia tudo em seu lugar de trabalho”22. Essa situação enfatiza a maneira como as pessoas se relacionam com seus 20 O argumento de que esses cartões proporcionam economia foi provado falso. Ver artigo de Katy McLaughlin, “The discount grocery cards that don’t save you money”. The Wall Street Journal, 21 de janeiro de 2003. http:// online.wsj.com/article/SB1043006872628231744.html. 21 VOGEL, Jennifer. “Getting to know all about you”, Salon, 14 de outubro de 1998. http://archive.salon. com/21st/feature/1998/10/14featureb.html. 22 SOLOVE, Daniel J. “Privacy and power: computer databases and metaphors for information privacy”, Stanford Law Review, Vol. 53, julho de 2001, p. 1438.

próprios dados: deslocadas, inseguras e impotentes. Os que trabalham dentro da burocracia geralmente estão inseguros também, o que leva a erros danosos e à possibilidade de que a informação possa acabar em mãos erradas. Se as tecnologias AIDC são usadas para seguros de saúde (como no Canadá e como foi proposto nos EUA), não há sistemas confiáveis para lidar com esse fluxo de informações delicadas. Nos EUA, as informações médicas das pessoas são, de fato, desprotegidas na medida em que existem negócios como o Serviço de Marketing Médico, cujo único objetivo é vender listas com o nome de pessoas que sofrem de diversos tipos de doenças. Empregar qualquer tecnologia para facilitar a distribuição de informação médica sensível nos Estados Unidos seria imprudente, pelo menos até que mais garantias sejam construídas nos sistemas judicial e de saúde23. As tecnologias AIDC facilitam não apenas a coleta de informações pessoais, para análise e uso imediatos, mas também o arquivamento de informação como forma de monitorar a pessoa em caso de futuros desvios. Esse aspecto das tecnologias AIDC pode ser chamado de “culpado até que se prove inocente”. Isso é certamente verdadeiro no caso da Câmara de Controle de Bebidas da Pensilvânia, que registra cada venda individual de bebida alcóolica efetivada no estado em um banco de dados separado, como forma de antecipar futuros crimes resultantes do consumo excessivo de álcool. Um dos autores deste artigo foi encorajado a participar de um programa do tipo “culpado até que se prove inocente” quando trabalhava para um museu. Após vários roubos, o museu propôs registrar a impressão digital de cada membro da equipe, dizendo aos empregados que isso automaticamente os livraria de implicações em problemas futuros. Em essência, o museu estava dizendo a sua equipe que não confiava em ninguém e que somente suas impressões digitais poderiam inocentá-los de crimes futuros. As tecnologias AIDC não foram implementadas, mas a atitude da administração do museu resultou de uma razão comum, pois as companhias voltam-se para tecnologias do gênero e decidem usá-las. Trata-se de uma nova condição da vida nos EUA: as pessoas são mantidas como suspeitas até que possam oferecer dados para provar sua inocência. Um lugar onde os habitantes dos Estados Unidos se acostumaram a ser tratados como suspeitos até que mostrem sua identidade, respondam a algumas perguntas e sejam interrogados é o aeroporto. Depois do 11 de Setembro, a segurança dos aeroportos norte-americanos foi revista e intensificada. Algumas mudanças fazem sentido. A proibição de pessoas embarcarem portando pequenas 23 Para saber mais sobre dados médicos e questões de privacidade nos Estados Unidos, ver pesquisa de Latanya Sweeney em http://privacy.cs.cmu.edu/people/sweeney/index.html.

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facas ou canivetes pode realmente ampliar a segurança nos voos, sem impacto à liberdade de movimento dos passageiros. Mas traçar o perfil dos passageiros e, mais especificamente, usar a segunda geração de Sistema Assistido por Computador de Pré-Verificação de Passageiros (CAPPS II, na sigla em inglês) são procedimentos que precisam ser reavaliados de perto, pois estão repletos de problemas como os que afetam as tecnologias AIDC. O CAPPS II é um sistema baseado em dados que assimila eletronicamente cada reserva de passageiro, autentica a identidade de cada viajante e, finalmente, cria um perfil detalhado do cliente. O projeto, supervisionado pela TSA, é um cruzamento de dados (e não um projeto de garimpagem de dados), o que significa que as informações sobre passageiros são verificadas em bases de dados externas, para confirmar se as pessoas são quem dizem ser (verificação de identidade) e atribuir a elas um índice de risco de terrorismo (cruzamento de dados). Nesse sistema, quando fazem uma reserva, os passageiros são solicitados a fornecer informação de identificação, como nome e endereço, além de passaporte, número do Seguro Social e números dos voos habituais. Esses detalhes são, então, cruzados com informações fornecidas por empresas privadas de dados. Como resultado, cada viajante recebe uma cor que o identifica conforme a avaliação de sua taxa de risco. Desse modo, verde significa “voe livremente”, amarelo quer dizer “checagem extra de segurança”, e vermelho indica “impedido de embarcar”. O Departamento de Segurança Interna solicitou o uso urgente do CAPPS II, a partir do verão de 2004, em todos os voos comerciais originários dos Estados Unidos, e supostamente está testando o programa em voos selecionados da Delta Airlines desde a primavera de 2003. O CAPPS II — até onde se pode supor, alimentado com poucas informações — forneceria ao governo americano um mecanismo de controle centralizado, capaz de restringir o movimento de uma pessoa nos Estados Unidos. Uma ferramenta dessa magnitude representa grande ameaça às liberdades civis. O governo pode, a qualquer momento, mudar os parâmetros do sistema (quem é alvo e quando), influenciando imediatamente a vida de milhões de cidadãos. Uma pessoa que, por infelicidade, for incluída num grupo-alvo pode sofrer sérios impactos sem a menor justificativa. Por exemplo, uma mulher que depende de viagens aéreas para viver pode ser prejudicada profissionalmente se for detida com frequência e perder reuniões. Diante de problemas do gênero, a mulher de negócios não pode questionar por que é alvo e como pode deixar de ser um, já que, no momento, o governo dos Estados Unidos não tem nenhum sistema que torne possível contestar uma avaliação percebida como erro. Além disso, os métodos usados para verificar os dados e estabelecer as regras que determinam a

categoria de ameaça não foram divulgados. É claro, os oficiais alegam que, por razões de segurança, o processo deve permanecer em segredo. No entanto, baseando-se em um sistema automatizado de dados não verificados, o governo controla quem pode se mover livremente pelo país, mas sem oferecer nenhuma segurança real. A situação só pode levar ao desastre e ao mau uso. AUMENTO DE CONSCIÊNCIA, ABORDAGEM DE SOLUÇÕES

Até o momento, tentamos, neste ensaio, dar um panorama das tecnologias AIDC e chamar a atenção para algumas implicações sociais relacionadas. Contudo, como praticantes da mídia tática e artistas interdisciplinares, estamos interessados em desenvolver projetos que usem formas comunicativas diferentes das palavras para tratar de nossas preocupações. Swipe (do inglês, “furtar”) — um projeto em três etapas que consiste em uma performance, uma oficina e um site — foi nossa resposta participativa para as várias controvérsias associadas às praticas de varredura da carteira de motorista e coleta de dados. O projeto Swipe é, em primeiro lugar, educativo, na medida em que informa os cidadãos sobre uma prática particular e oferece oportunidade para discuti-la publicamente. A performance acontece em um bar que serve bebidas alcoólicas, onde a pessoa pega um drinque e um recibo impresso comum. O recibo contém toda a informação que furtamos de sua carteira de motorista ao escaneá-la no ponto de venda, além de qualquer informação adicional que possamos obter na internet e em bancos de dados arquivados enquanto a bebida do consumidor estava sendo preparada. O workshop oferece uma demonstração que desmistifica a coleta de informação e os negócios dos armazéns de dados, apresentando os bastidores do que ocorre no bar. O site, lançado em fevereiro de 2004, contém um conjunto de ferramentas para atividades culturalmente motivadas. Nele, os usuários podem decifrar códigos de barra bidimensionais em uma carteira de motorista por meio de um programa disponível para download, determinar o valor da informação pessoal no mercado livre utilizando uma calculadora de dados, e solicitar arquivos de grandes armazéns de dados como o ChoicePoint. A partir de um sistema de quadro de avisos, os usuários podem divulgar quantos erros aparecerem nos arquivos e acompanhar o tempo de resposta dos armazéns de dados até efetivar as correções solicitadas24. Educar e aumentar a consciência são, evidentemente, muito importantes. Apenas com discernimento pode haver uma reação pública, e somente por meio da persistente indignação pública haverá razão para o governo e a indústria 24 Para uma descrição completa e a documentação do projeto, acessar o site dos autores: www.we-swipe.us.

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mudarem suas práticas. Resistência em nível individual também ajuda. Algumas estratégias comuns são pagar em dinheiro em vez de usar o E-ZPass ou usar um cartão de fidelidade de outra pessoa para adicionar ruídos ao banco de dados da loja. Como parte do projeto Swipe, distribuímos adesivos para as pessoas colarem sobre as tarjas magnéticas ou códigos de barra em suas carteiras de motorista, com slogans como “Tire seus peões de meu corpo de dados” ou “Eu paro de comprar quando você Imagem Retirada do Website do Projeto começar a varredura”. Esses adesivos Swipe discute o fenômeno do desabilitam temporariamente as tecnologias acúmulo de dados sobre uma pessoa que tem sua carteira de AIDC, e garantem que a informação de uma motorista constantemente pessoa não seja escaneada sem notificação escaneada, combinando ou consentimento. Os adesivos têm performance, oficina e site potencial para criar situações interessantes quando um vendedor ou policial nota o adesivo e tem um momento de empatia (verbal ou não verbal) com o portador do cartão. Em termos de soluções de longo prazo, sentimos que as respostas precisam ser encontradas tanto na tecnologia como na política. Há ajustes tecnológicos para alguns dos problemas que identificamos em coletas de dados. Por exemplo, a pesquisa de Latanya Sweeney sobre o fechamento do controle computacional produziu vários programas de computador que removem de bases de dados o nome de pessoas e outros identificadores exclusivos, sem tornar suas informações inúteis para fins de pesquisa. Há, claro, momentos em que identificar uma pessoa é necessário; Sweeney comenta que, “apesar da possível efetividade desses sistemas e outros não mencionados aqui, dados completamente anônimos podem não conter detalhes suficientes para todos os usos, então é preciso tomar cuidado quando a informação divulgada puder identificar indivíduos — cuidado este que deve ser reforçado por políticas e procedimentos coerentes. O risco para os indivíduos pode ser extremo e irreparável e pode acontecer sem o seu próprio conhecimento. O remédio contra os abusos, entretanto, fica fora do escopo desses sistemas e reside nos contratos e leis”25. Os contratos, procedimentos operacionais 25 SWEENEY, Latanya. “Privacy and confidentiality, in particular, computational disclosure control”, Carnegie Mellon University Data Privacy Lab. http://privacy.cs.cmu.edu/people/sweeney/confidentiality.html.

e leis, Sweeney menciona, deveriam ser considerados e desenvolvidos durante o surgimento das tecnologias. As políticas de privacidade nos Estados Unidos foram escritas em resposta a falhas no sistema e funcionam como curativos para problemas imediatos. Esses reparos nunca estão completos e, muitas vezes, são tão fáceis de contornar quanto de ignorar completamente. Direito de privacidade, justiça social e igualdade devem ser tratados como o começo da pesquisa e desenvolvimento de tecnologias AIDC em vez de serem jogados no meio de diferentes projetos apenas depois que surgem problemas. Claramente, as tecnologias AIDC são atraentes do ponto de vista econômico: elas reduzem os custos trabalhistas e ajudam a inserção de informações sobre processos comerciais e industriais diretamente em seus próprios computadores, que podem, dessa forma, delinear seu sistema. Quando o alvo do AIDC é o consumidor, criam-se bancos de dados massivos que, em contrapartida, podem ser usados na tentativa de modelar o comportamento humano a padrões predeterminados, conforme conjuntos de grupos demográficos, condições médicas e supostas inclinações terroristas. Por causa das leis e políticas atuais sobre meio ambiente, está florescendo um determinismo dos dados, e qualquer proteção percebida contra esse tipo de atividade é simplesmente ilusória. Nosso objetivo foi descrever as tecnologias AIDC e destacar como encorajam um amplo espectro de ações de vigilância, as quais têm sido tema de críticas crescentes. Esperamos que essa perspectiva possa beneficiar a participação contra novas formas de vigilância, em configurações legais, políticas e ativistas.

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Quando a maioria das pessoas pensa em geografia, pensa em mapas. Muitos mapas. Mapas com capitais de estados e territórios nacionais, mapas mostrando montanhas e rios, florestas e lagos, ou mapas mostrando padrões de distribuição de população e migrações. E, de fato, essa não é uma ideia totalmente imprecisa do campo — é verdade que a geografia moderna e a confecção de mapas foram uma vez inseparáveis. Geógrafos renascentistas como Henricus Martellus Germanus e Pedro Reinel, tendo descoberto textos gregos sobre geografia (sendo “Geografia de Ptolomeu” o mais importante), colocaram o conhecimento ancestral para trabalhar a serviço dos impérios espanhol e português. Os mapas de Martellus, do final do século XV, atualizaram as antigas projeções cartográficas gregas, incluindo as explorações de Marco Polo pelo Oriente, assim como as investidas portuguesas ao longo da costa africana. Os mapas portulanos de Reinel são algumas das cartas naúticas modernas mais antigas. A cartografia, assim, configurou-se como uma ferramenta indispensável para a expansão imperial: se novos territórios deveriam ser controlados, eles precisavam ser mapeados. Em algumas décadas, as cartografias monárquicas preencheram as manchas brancas dos velhos mapas. Em 1500, Juan de la Cosa, que acompanhou Colombo em três viagens como capitão da Santa Maria, produziu o mapa-múndi, o primeiro mapa que se conhece a representar o Novo Mundo. A geografia foi um instrumento tão importante para o colonialismo espanhol e português que os primeiros mapas modernos estavam entre os grandes segredos desses impérios. Quem fosse pego bisbilhotando um mapa para um poder externo podia ser punido com a morte.

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Em nosso próprio tempo, outro renascimento cartográfico está acontecendo. Na cultura popular, programas de computador gratuitos como o Google Earth e o MapQuest se tornaram partes quase imprescindíveis de nossa vida cotidiana: usamos mapas on-line para conseguir rotas até endereços desconhecidos e para “explorar” o globo de forma virtual, com a ajuda de imagens de satélite publicamente disponíveis. Sistemas de posicionamento global (GPS) disponíveis para consumo incorporaram coordenadas de latitude e longitude ao vernáculo cultural. Nas artes, legiões de produtores culturais têm exercitado o poder de mapeamento. Exposições em museus e galerias são dedicadas a toda variedade de cartografia criativa; as “mídias locativas” emergiram como uma forma de techno-site-specificity1; nos mercados de antiguidade, mapas velhos atingiram preços sem precedente histórico em leilões. A academia, igualmente, foi tomada pelos novos poderes da confecção de mapas: sistemas de informação geográfica (GIS) se tornaram uma nova língua franca da coleta, colagem e representação de dados em campos tão diversos quanto arqueologia, biologia, climatologia, demografia, epidemologia, e assim por diante, até a zoologia. Na cabeça de muitos, um interesse recém-descoberto pela geografia tomou conta da cultura popular, das artes e da academia. Mas será que a proliferação de tecnologias e práticas de mapeamento realmente aponta para uma nova geografia cultural, a priori? Não necessariamente. Ainda que a geografia e a cartografia tenham ancestrais práticos e intelectuais comuns, e estejam frequentemente localizadas nos mesmos departamentos em universidades, elas podem sugerir formas bem diferentes de olhar e entender o mundo. A geografia contemporânea tem pouco mais que um relacionamento superficial com todas as variedades de cartografia. De fato, a maioria dos geógrafos críticos tem um ceticismo saudável em relação ao ponto de vista “olho de Deus” implícito em tantas práticas cartográficas. Por mais úteis que os mapas possam ser, eles conseguem fornecer apenas orientações grosseiras para o que constitui um espaço particular. A geografia é uma disciplina curiosamente e poderosamente transdisciplinar. Ao observar departamentos de geografia, em pelo menos um deles possivelmente 1 O termo techno-site-specificity é de difícil tradução, por isso foi feita a opção de mantê-lo como no original. A expressão refere-se a site-specific, conceito cunhado no contexto da land art para se referir a trabalhos em que os resultados obtidos dependiam da especificidade do lugar escolhido para seu desenvolvimento, ou seja, obras em que o contexto era incorporado ao procedimento artístico. Em inglês, site-specificity significa “especificidade do lugar”, e faz referência ao conceito de site-specific. A expressão techno-site-specificity sugere a existência de uma especificidade do lugar decorrente da sobreposição entre tecnologia e espaço físico. Para uma discussão mais longa sobre o tema, ver o artigo de Lucas Bambozzi neste livro, “Aproximações arriscadas entre site-specific e mídias locativas”. (N. T.)

haverá pessoas estudando de tudo, da química atmosférica do período pré-holoceno no norte da Groenlândia aos efeitos dos fundos financeiros soberanos no mercado de capitais de Hong Kong, passando por emissões de clorido de metil em salinas costeiras e políticas raciais nos movimentos trabalhistas na Califórnia do século XIX. Nos Estados Unidos pós-guerra, oficiais de universidades rotineiramente relacionavam a falta sistemática de metodologia e normas discursivas da disciplina a uma ausência de seriedade ou rigor, uma percepção que fez com que inúmeros departamentos fossem fechados por não ter apoio institucional. O fim da geografia em Harvard foi típico do que acontecia no campo: oficiais da universidade fecharam seu departamento de geografia em 1948, conforme relata o geógrafo Neil Smith, da Universidade da Cidade de Nova York, depois de terem ficado desorientados por sua “incapacidade de extrair uma definição clara do tema, de tocar a substância da geografia ou determinar seus limites Imagem Retirada da Wikipedia com outras disciplinas”. A cúpula Túmulo de Jackson Pollock: sua obra explorou acadêmica “via o campo como o acaso e a aleatoriedade, produzindo telas desesperançosamente amorfo”. Mas em que os traços são ecos do movimento do essa “deformidade sem esperança” é, corpo em movimento de fato, a grande força da disciplina. Não importa quão diversa e multidisciplinar a geografia possa parecer — e realmente é; todavia, alguns axiomas unificam a vasta maioria dos trabalhos de geógrafos contemporâneos. Esses axiomas se sustentam como verdade para a “ciência dura” em laboratórios de universidade, assim como para geógrafos que estudam os trabalhos imprevisíveis da cultura e da sociedade. As maiores aquisições teóricas da geografia vêm de duas ideias correlatas: materialismo e produção do espaço. Na tradição filosófica, o materialismo é a ideia simples de que o mundo é feito de “coisas”, e, mais ainda, que o mundo é apenas feito de “coisas”. Todos os fenômenos, então, de dinâmicas atmosféricas a quadros de Jackson Pollock, emergem de interações de materiais no mundo. Na tradição ocidental, o materialismo filosófico remete a pensadores da Grécia antiga, como Demócrito, Anaxágoras e Epicuro, cujas concepções de realidade diferiam agudamente da

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metafísica de Platão. Posteriormente, filósofos como Thomas Hobbes, David Hume, Ludwig Feuerbach e Karl Marx desenvolveriam filosofias materialistas em contra posição ao dualismo cartesiano e ao idealismo germânico. Metodologicamente, o materialismo sugere uma abordagem empírica (embora não necessariamente positivista) para o entendimento do mundo. No clima intelectual contemporâneo, a abordagem materialista toma o relacional como princípio, mas uma abordagem analítica insiste em que “coisas” podem levar a uma forma poderosa de circunscrever ou temperar as tendências quase solipsistas encontradas em algumas correntes vulgares do pós-estruturalismo. O segundo axioma geral tem a ver com o que geralmente é chamado de “produção do espaço”. Ainda que esse conceito seja frequentemente atribuído ao geógrafo-filósofo Henri Lefebvre, cujo livro La production de l’espace (1974) introduziu o termo para um grande número de pessoas, as ideias que dão alma a esse trabalho têm uma história bem mais longa. Como o materialismo, é uma ideia relativamente fácil, mesmo óbvia, mas com implicações profundas. De forma resumida, diz que os humanos criam o mundo a sua volta e são, em troca, criados por ele. Em outras palavras, a condição humana é caracterizada por um loop que se retroalimenta de atividades humanas e seu entorno material. Nessa visão, o espaço não é um recipiente onde ocorrem as atividades humanas, mas é “produzido” por meio de atividade humana. Os espaços produzidos pelos homens, um após o outro, colocam restrições sobre as atividades subsequentes. Para ilustrar essa ideia, podemos tomar como exemplo a universidade onde estou, no momento, escrevendo este texto. Num primeiro olhar, ela pode se parecer com pouco mais que uma coleção de prédios: bibliotecas, laboratórios e salas de aula com localizações distintas no espaço. É com isso que a universidade se parece num mapa ou no Google Earth. Mas essa é uma visão excepcionalmente parcial da instituição. A universidade não é algo inerte: ela não “acontece” até que alunos cheguem para assistir às aulas, até que professores se tranquem para fazer pesquisa, funcionários administrativos paguem contas e registrem os estudantes, legisladores estaduais destinem recursos para as operações do campus e equipes de manutenção mantenham a infraestrutura física da instituição em boas condições. A universidade, então, não pode ser separada das pessoas que circulam “produzindo-a” dia após dia. Por sua vez, ela também esculpe atividade humana: sua estrutura física e burocrática cria condições para que os estudantes assistam a palestras, leiam livros, escrevam artigos, participem de discussões e ganhem notas. A atividade humana produz a universidade, mas as atividades humanas são, em troca, modeladas pela universidade. Nesse loop que se retroalimenta, vemos a produção do espaço em funcionamento.

Muito bom. Mas o que tudo isso tem a ver com arte? Qual a relação com “produção cultural”? Os axiomas teóricos e metodológicos da geografia contemporânea não devem ficar restritos a limites disciplinares, quaisquer que sejam eles (uma fonte de muita confusão em Harvard nos idos dos anos 1940). É possível aplicá-los a quase tudo. Assim como os geógrafos físicos implicitamente usam a ideia de produção do espaço quando investigam a relação entre emissões de carbono feitas pelo homem e crostas de gelo que se desprendem na Antártida, ou quando investigam a ligação entre turismo e preservação de florestas tanzanianas, os axiomas da geografia podem guiar todo tipo de prática e investigação, incluindo a arte e a cultura. Uma abordagem geográfica para a arte, no entanto, destoaria da maior parte da história e da crítica da arte convencional. A diferença de abordagem emergeria das formas em que várias disciplinas se apoiam em distintas concepções subjacentes de mundo. Um geógrafo olhando para a arte começaria com premissas bastante diferentes daquelas do crítico de arte. Para falar de modo bastante genérico, a moldura conceitual que organiza grande parte da história da arte e da crítica é a da “leitura da cultura”, na qual questões e problemas de representação (e suas consequências) são uma preocupação primeira. No modelo tradicional, a tarefa do crítico é descrever, elaborar, explicar, interpretar, avaliar e criticar trabalhos culturais previamente dados. Em certo sentido, o papel do crítico de arte é atuar como um consumidor perspicaz de cultura, apoiado no discernimento. Não há nada de errado com isso, mas esse modelo de crítica de arte precisa (de novo, num sentido bem amplo) tacitamente assumir uma ontologia da “arte” para ter um ponto de partida inteligível para a leitura, crítica e discussão. Um bom geógrafo, no entanto, pode usar os axiomas analíticos de sua disciplina para abordar o problema da “arte” de forma decididamente diferente. Em vez de perguntar o que é arte ou se determinada obra é bem-sucedida, um bom geógrafo poderia apresentar questionamentos na linha de “Como o espaço chamado ‘arte’ é produzido?”. Em outras palavras, quais são as conjunções históricas, econômicas, culturais e discursivas específicas que se reúnem para formar algo chamado “arte” e, sobretudo, para produzir um espaço que nós, coloquialmente, conhecemos como “mundo da arte”? A questão geográfica não é “o que é arte”, mas “como é a arte”. Da perspectiva de uma crítica geográfica, a noção de uma obra de arte autossuficiente se pareceria com o efeito fetichista de um processo de produção. No lugar da abordagem sob o ponto de vista do consumidor, um geógrafo crítico poderia recolocar a questão da arte em termos de prática espacial.

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Podemos levar essa linha de raciocínio ainda mais adiante. Em vez de usar axiomas geográficos para fomentar uma abordagem “interpretativa” alternativa para a arte (como sugeri no parágrafo anterior), podemos utilizá-los em sentido normativo. Sejamos geógrafos, artistas, escritores, curadores, críticos ou tenhamos qualquer outra atividade, podemos usar os axiomas geográficos de maneira autorreflexiva para informar nossa própria produção. Se aceitarmos o argumento de Marx de que a característica fundamental da existência humana é “a produção da vida material em si” (os homens produzem sua própria existência em relação dialética com o resto do mundo), e, seguindo Lefebvre (e Marx), que a produção é fundamentalmente uma prática espacial, então, a produção cultural (como toda produção) é uma prática espacial. Quando escrevo um ensaio como este, consigo publicá-lo em um livro e o coloco em uma prateleira de livraria ou museu, estou participando de um espaço de produção. O mesmo é verdadeiro para a produção da arte: quando produzo imagens e as coloco em uma galeria ou museu ou as vendo para colecionadores, estou ajudando a produzir um espaço que alguns chamam de “mundo da arte”. O mesmo é verdadeiro para a “geografia”: quando estudo geografia, escrevo sobre geografia, ensino geografia, vou a conferências sobre geografia e faço parte de um departamento de geografia, estou ajudando a produzir um espaço chamado “geografia”. Nenhum desses exemplos é uma metáfora: o “espaço” da cultura não é mais apenas a “estrutura do sentimento” de Raymond Williams, mas, como meus amigos Ruth Wilson Gilmore e Clayton Rosati sublinham, uma “infraestrutura do sentimento”. Meu ponto é que, se alguém leva a produção do espaço a sério, o conceito se aplica não apenas a “objetos” de estudo ou crítica, mas às formas como as ações de uma pessoa participam desse processo. A geografia, então, não é apenas um método de investigação, mas define necessariamente a investigação da produção de espaço. Os geógrafos podem estudar a produção do espaço, mas, com esse estudo, também estão produzindo espaço. De forma simples, os geógrafos não estudam geografia, eles criam geografias. O mesmo vale para qualquer outro campo e qualquer outra forma de prática. Tomar isso ao pé da letra e incorporar na prática de alguém é o que entendo por “geografia experimental”. Geografia experimental engloba práticas que tomam a produção do espaço em forma autorreflexiva, práticas que reconhecem que a produção cultural e a produção do espaço não podem ser separadas uma da outra, e que a produção intelectual e cultural são práticas espaciais. Além disso, geografia experimental não significa apenas ver a produção do espaço como uma condição ontológica, mas experimentar ativamente a produção do espaço como uma forma integral da

própria prática. Se as atividades humanas são inextrincavelmente espaciais, as novas formas de liberdade e democracia só podem emergir em relação dialética com a produção de novos espaços. Eu, deliberadamente, uso uma das palavras-chave do modernismo, “experimental”, por dois motivos. Primeiro, para endossar e afirmar a noção modernista de que as coisas podem ser melhores, de que os homens são capazes de melhorar suas condições para deixar o cinismo e o

Legend Well River Lake

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2 km Imagem Retirada da Wikipedia

Uma mapa em vetor, usado na Wikipédia como exemplo dos sistemas de informação geográfica atualmente disponíveis

derrotismo sem fôlego. Além disso, experimentação significa produção sem garantias, e produzir novas formas de espaço certamente implica ausência de garantias. O espaço não é determinista, e a produção de novos espaços não é fácil. Pensar sobre geografia experimental engloba, sobretudo em relação à produção cultural, reconhecer que é proveitoso retomar Walter Benjamin, que previu essas ideias em um ensaio de 1934 intitulado “O autor como produtor”. Durante grande parte dos anos 1930, época em que esteve exilado em Paris devido à ascensão do regime nazista, seus pensamentos voltaram repetidamente à questão da produção cultural. Para Benjamin, o status da produção cultural como uma empreitada intrinsecamente política era evidente por si só. A tarefa intelectual que ele tomou para si foi teorizar como a produção cultural poderia ser parte de um amplo projeto antifascista. Em suas meditações sobre as possibilidades


transformadoras da cultura, Benjamin identificou um momento político chave em trabalhos culturais acontecendo no processo de produção. Em seu texto “O autor como produtor”, ele antecipou o pensamento geográfico contemporâneo quando se recusou a assumir que o trabalho cultural existia enquanto coisa-em-si-mesma: “A abordagem dialética”, ele escreveu, “absolutamente não tem qualquer utilidade para coisas rígidas e isoladas como obras, livros, novelas. É preciso inseri-los no contexto social vivo”. Bem ali, Benjamin rejeitou o pressuposto de que trabalhos culturais têm qualquer tipo de estabilidade ontológica e, em vez disso, sugeriu uma forma relacional de pensar sobre eles. Benjamin seguiu adiante com uma distinção entre trabalhos que possuem uma “atitude” na direção da política e trabalhos que habitam uma “posição” em seu âmbito. “Em vez de perguntar ‘Qual é a atitude do trabalho com as relações de produção de seu tempo?’, eu gostaria de perguntar ‘Qual sua posição em relação a eles?’”, escreveu. Benjamin, em outras palavras, estava identificando as relações de produção que permitem o surgimento

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tomem uma “posição” no âmbito das políticas da experiência vivida. Seguindo Benjamin, a geografia experimental toma como certo o fato de que não pode haver um “lado de fora” da política, porque não pode haver um “fora” da produção de espaço (e esta é, ipso facto, política). Além disso, a geografia experimental é um chamado para levar a sério e finalmente ir além das teorias culturais que igualam novas enunciações e novas subjetividades como fins políticos em si. Quando dissociados da produção de novos espaços, eles são muito facilmente assimilados nos ciclos infinitos de destruição e reconstituição que caracterizam o neoliberalismo, uma repetição que Benjamin apelidou de “inferno”. A tarefa da geografia experimental, então, é proporcionar as oportunidades que se apresentam em práticas espaciais de cultura. Ir além da reflexão crítica, da crítica isolada e das “atitudes” políticas no âmbito da prática. Experimentar com a produção de novos espaços, novas formas de ser. O que está em jogo? Literalmente, tudo.

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Aplicativo GIS vale-se de camadas para descrever a sobreposição entre topologia e arquitetura, representando, por meio de cores a presença de lagos, estradas e florestas, utilizando convenções que permitem aos especialistas entender as relações entre todos os componentes da área representada Imagem Retirada da Wikipedia

de trabalhos culturais como um momento político crucial. Para ele, produzir trabalhos culturais verdadeiramente radicais ou libertadores significava produzir espaços libertadores a partir dos quais esses trabalhos culturais pudessem emergir. Ecoando Marx, ele sugeriu que a tarefa da produção cultural transformadora era reconfigurar as relações e os aparatos de produção cultural, reinventar a “infraestrutura” dos sentimentos de maneiras produzir o máximo de liberdade humana. O “conteúdo” efetivo da obra era secundário. A geografia experimental expande o chamado de Benjamin para que os trabalhadores culturais se movam para além da “crítica” como um fim em si e


153 POR UMA ARTE CONTRA A CARTOGRAFIA DA VIDA COTIDIANA RYAN GRIFFIS

Em termos simples, a vida cotidiana pode ser o nome do desejo de totalidade nos tempos pós-modernos. (Ben Highmore, Everyday life and cultural theory*) Deveríamos falar agora não de pessoas fazendo sua própria história, mas de pessoas fazendo sua própria geografia. (John Urry, Social relations and spatial structures**)

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O título deste ensaio é um remix do título de um ensaio da artista Martha Rosler1 publicado originalmente em 1979, “Por uma arte contra a mitologia da vida cotidiana”. O texto de Rosler se engaja com o que, na época, era o contexto emergente, hoje frequentemente denominado “globalização pós-industrial”. Mais especificamente, é um engajamento da perspectiva de alguém tentando fazer coisas — obras de arte — que podem “abordar essas questões banalmente profundas da vida cotidiana, revelando, assim, o público e o político existente no pessoal”. Ela estava interessada, em particular, nos aspectos ao mesmo tempo opressivos e potenciamente libertadores das “mídias de massa”. Aqui, quero retomar de onde Rosler parou, discutindo o potencial da arte e da tecnologia, para “dar um passo na direção de mudar razoável e humanamente o mundo” e usando o exemplo do que costuma ser descrito como “mídias locativas”2. O rótulo “mídia locativa” tem sido utilizado para descrever aplicações de tecnologias de consciência geoespacial, sejam elas comerciais ou de vanguarda “crítica”. Ambas compartilham, com frequência, da predileção por revelar a experiência individual da “vida cotidiana” e conectá-la a formas de experiência mais amplas, mediadas em rede e socialmente. As mídias locativas se apoiam na colocação e movimentação de dispositivos com capacidade computacional, que transmitem sua localização para outros dispositivos, igualmente conectados, como computadores. Em uma esfera cultural mais ampla, isso se torna visível com a

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HIGHMORE, Ben. Everyday life and cultural theory. Londres: Routledge, 2001. GREGORY, Derek e URRY, John. “Spatial relations and spatial structures”. In: Social relations and spatial structures. Nova York: St. Martin’s Press, 1985. 1 ROSLER, Martha. Decoys and disruptions: selected writings, 1975-2001. Cambridge: MIT Press, 2006. 2 http://en.wikipedia.org/wiki/Locative_media.

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proliferação da tecnologia GPS3 (sigla em inglês para Sistema de Posicionamento Geográfico), que está se tornando cada vez mais comum em aparelhos como telefones celulares e automóveis. As mídias locativas se beneficiam dessa implantação de tecnologias de comunicação enquanto “ubíquas” — presentes em todo lugar, o tempo todo e muitas vezes despercebidas e inacessíveis. Tais noções de ubiquidade não podem senão fazer intersecção com as noções de “cotidiano” — onde mais acontece o “todo dia” senão “em todo lugar”? Rosler começa “Por uma arte contra a mitologia da vida cotidiana” com a pergunta “De onde vêm as ideias?”. Imediatamente, ela responde à pergunta: “Todos os mitos da vida cotidiana costurados juntos formam um envelope imperceptível de ideologia, a conta falsa dos trabalhos do mundo”. Noções do “cotidiano” como lugar de resistência, dissenso e criatividade têm sido celebradas por corporificar o que Michel de Certeau4 denominava “táticas”. Essa representação um tanto utópica do “fazer coisas” diante dos regimes de poder, no entanto, pode igualmente servir para reforçar os “mitos da vida cotidiana” que Rosler quer tornar conhecidos. A condição de sempre agir taticamente requer um estado constante de sublimação e postura reacionária, que, enquanto é libertadora perante a opressão de curto prazo, não pode jamais responder adequadamente às desigualdades. No lado comercial, o elo ideológico entre vida e consumo é ainda mais transparente que antes. O aspecto utópico disso é representado pela imagem de uma rede infinita de consumidores, que recentemente receberam o poder de compartilhar em público suas experiências e encontros com produtos e lugares. Mas estaria essa rede de consumidores mudando os desejos que modelaram séculos de violenta desigualdade? Para uma resposta, podemos observar a popularidade de aplicações de mapeamento que facilitam transações comerciais reais, como HousingMaps.com5, que conecta a Craigslist6 ao Google Maps. A afirmação a seguir, de Thai Tran, um gerente de produtos do Google Maps, comentando o lançamento de uma interface panorâmica e baseada em fotos7, é reveladora: “Um dia estávamos olhando para os dois mashups originais do Google Maps, HousingMaps.com e ChicagoCrime.org8, e nos demos conta de que seria ainda mais útil se eles pudessem se combinar, pois a maioria das pessoas não quer viver em áreas de alta criminalidade”. 3 4 5 6 7 8

http://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_de_Posicionamento_Global. CERTEAU, Michel de. The practice of everyday life. Berkeley: University of California Press, 1984. http://www.housingmaps.com. http://sfbay.craigslist.org/hhh. http://news.com.com/Google+Maps+takes+it+to+the+streets/2100-1038_3-6187254.html. http://ChicagoCrime.org.

Na afirmação de Tran, percebemos, por todas as “comunidades” tecnologicamente facilitadas que agora podemos criar, que elas não parecem tão diferentes daquelas divididas por linhas vermelhas “racializadas”, criadas por gerações anteriores9 de aplicações GIS10. Retornarei a algumas implicações dessa inscrição tecnológica mais adiante, mas gostaria de desviar para uma discussão sobre as mídias locativas como são praticadas e celebradas na esfera da vanguarda cultural e, mais especificamente, na arte contemporânea. Um trabalho de arte contemporânea com mídias locativas que recebeu bastante atenção (o Golden Nica Award de 2005, no Ars Electronica11, e a participação na mostra Making Things Public12, no ZKM) foi o Milk, projeto de mapeamento de Esther Polak, Ieva Auzina e também do RIXC — Center for New Media Culture, em Riga, Letônia. Criado entre 2003 e 2005, Milk acompanha a produção e distribuição de queijo, de fazendas de leite da Letônia aos mercados de Utrecht, Imagem Cedida por Esther Polak nos Países Baixos13. Seguindo os movimentos de nove Milk, de Esther Polak, faz o “participantes” (selecionados entre pessoas que mapeamento do leite em seu trânsito, produzem, transportam e consomem queijo), por meio dos fazendeiros que o produzem até distribuidores e consumidores do uso de dispositivos GPS entregues a eles, o projeto propõe iluminar a construção social e espacial do queijo. Os conteúdos noticiosos gerados pelo próprio Milk o posicionam como “projeto de mapeamento em arte locativa, o qual explora as possibilidades visuais e documentais da tecnologia GPS”14. Os componentes básicos do projeto consistem em um pouco de texto, vídeo e imagens fotográficas que registram o movimento dos fazendeiros, vendedores e compradores de queijo. A partir dessas mediações, os artistas representam histórias especiais e conhecimentos que são, para todas as finalidades práticas, de outra forma inacessíveis e invisíveis no material do queijo. Milk reapresenta o queijo como um corpo de conhecimento que pode ser empregado em escala humana, por meio de ações e pensamentos das pessoas envolvidas em sua produção, e, numa escala maior, por meio de visualizações que revelam distâncias geográficas e tempos ligados a sua materialização. 9 10 11 12 13 14

http://www.geography.wisc.edu/histcart/v6initiative/11cloud.pdf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_de_informa%C3%A7%C3%A3o_geogr%C3%A1fica. http://www.aec.at/de/index.asp. http://on1.zkm.de/zkm/stories/storyReader$4581. http://www.milkproject.net. http://www.milkproject.net/press/press9.html.

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Não surpreende que uma das influências primárias na criação do projeto, segundo Esther Polak, tenha sido sua lembrança15 de Let us now praise famous men16, livro de 1941 do poeta James Agee e do fotógrafo Walker Evans que documenta a vida rural, retratando fazendeiros pobres no sul dos Estados Unidos. O projeto de Evans e Agee começou como um trabalho para a revista Fortune em 1936, e é, em vários aspectos, um exemplo clássico dos documentários comuns realizados na época do New Deal, combinando a sensibilidade estética de ambos os artistas e os valores políticos progressistas do emergente Estado de bem-estar social. Como Polak e outros comentaristas observaram, Let us now praise famous men é um livro tão celebrado quanto criticado17 por seu método “experimental” e “difícil” de combinar texto e imagem. Polak chega a chamá-lo de “experimento tecnológico”, ecoando outras impressões comuns de que o trabalho é “desafiador” e rejeitando “qualquer visão de que o mundo é claramente compreensível e ordenado”. Essa leitura da colaboração de Agee e Evans fornece a Polak, e a seu público estimado, um antecessor de Milk — a criação de uma narrativa experimental, ainda que universalizante, da existência cotidiana dos fazendeiros. Ambos compartilham do conhecido objetivo documental de tornar visível para sua audiência as histórias de pessoas e lugares marginalizados. Essa identificação com o documentário não deveria ser surpreendente, assim como não deveria conferir importância exagerada às intenções dos artistas. Ela fornece, no entanto, uma lente através da qual é possível ver a materialização dos sentidos que as mídias locativas representam, sentidos que, eu argumento, podem ser produtivamente lidos como um desenvolvimento mais amplo da produção de imagens documentais. É importante notar que, ao mesmo tempo em que algumas instâncias das mídias locativas são mais facilmente relacionáveis com as tradições do documentário, como no caso de Milk, outras práticas locativas não começam ou terminam com essas tradições. A diferença que praticantes e proponentes de mídias locativas podem apontar entre seus trabalhos e documentários convencionais é seu desejo e habilidade para explanar o espaço — para ligar suas narrativas a contextos geográficos e específicos. Muitos projetos de mídias locativas usam tecnologia geoespacial para vincular histórias, sons e relacionamentos a lugares em que a intersecção entre espaços virtuais/em rede e espaços geográficos pode ser usada para visualizar

15 http://www.beelddiktee.nl/projects/GPS-projects/milk/Artist-statement-EP-eng.htm. 16 AGEE, James e EVANS, Walker. Let us now praise famous men. Boston: Houghton Mifflin Company, 1941. 17 COOGLE, Matt. “The historical significance of Let us now praise famous men”. In: http://history.hanover.edu/ hhr/hhr93_6.html.

realidades invisíveis ou imaginárias. O projeto [murmur]18, de Toronto, por exemplo, produz histórias em áudio sobre lugares específicos. Nesses locais, é instalado o símbolo do projeto, no qual está indicado o número de telefone que permite a quem passa por essas áreas acessar as histórias produzidas — uma tentativa de “mudar a forma como as pessoas pensam aqueles lugares” ao trazer “esse importante arquivo para as ruas”. De várias formas, é possível encontrar nas práticas locativas contemporâneas uma resposta aos críticos dos modelos arquivísticos e documentais, dada por Rosler e outros, como o artista e teórico Allan Sekula. Em [murmur], a criação de um arquivo alternativo de Toronto, por exemplo, pode ser lida como uma resposta à máxima de Sekula de que “o arquivo deve ser lido de baixo para cima, de uma posição de solidariedade com os deslocados, deformados, silenciados ou tornados invisíveis pelas máquinas de lucro e progresso”19. Se as mídias locativas têm intenção de fornecer ferramentas para a criação e a recepção de contra-arquivos, permitindo acesso aos vários meios de produção (e, portanto, história) do conhecimento, isso de fato parece uma virada emancipatória em direção à autorrepresentação. Mas os meios através dos quais as mídias locativas operam também devem ser considerados. Em debates recentes sobre o capital cultural que as mídias locativas têm atraído, críticas niveladas por suas instâncias mais visíveis as acusaram de cumplicidade com o espetáculo capitalista e, pior, com a pesquisa cultural e o desenvolvimento das indústrias de vigilância e exploração de dados. Muitos atacaram essa cumplicidade e as históricas conexões entre as tecnologias contemporâneas de visualização geográfica e o exército dos Estados Unidos20. Por outro lado, o significado da arte feita com tecnologias de localização pode ser analisado criticamente a partir da moldura estabelecida da representação; usando as ferramentas de estudos culturais e visuais, podemos chegar a uma leitura de como o conteúdo das mídias locativas se encaixa nos paradigmas vigentes da produção de conhecimento, significação e sentido — ou de como rompe com eles. Como Anne Galloway e Matthew Ward expuseram, podemos ver as mídias locativas como uma extensão das “tecnologias de representação”, “em última análise, entendidas como coleções de artefatos culturais”21. Mas isso seria ver as mídias locativas apenas como um mecanismo de 18 http://murmurtoronto.ca/about.php. 19 SEKULA, Allan. “Reading an archive”. In: WALLIS, Brian (ed.). Blasted Allegories: an anthology of writings by contemporary artists. Cambridge: MIT Press, 1987, p. 184. 20 http://www.turbulence.org/blog/archives/000493.html. 21 GALLOWAY, Anne e WARD, Matthew. Locative media as socialising and spatialising practices: learning from archaeology (draft)”. In: Leonardo Electronic Almanac, MIT Press, 2005. http://www.purselipssquarejaw.org/ papers/galloway_ward_draft.pdf.

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representação, deixando de lado as qualidades afetivas da tecnologia propriamente dita. Sem ignorar a importância da representação e evitando uma análise tecnológica redutiva e determinista, é possível olhar para o modo como as mídias locativas podem ser lidas através da noção de “sociedade de controle”22 de Gilles Deleuze, na qual acesso e mobilidade são projetados na forma de sistemas, em vez de reforçados por meios disciplinares. Essa leitura poderia começar, por exemplo, com a história material dos Sistemas de Informação Geográfica (GIS, na sigla em inglês), mapeamento das informações espaciais quantificáveis sobre populações e ambientes, com sua origem na combinação dos Sistemas Militares de Informação Geográfica (MGIS, na sigla em inglês) da era da Guerra Fria23 e formas anteriores de mapear a crise habitacional urbana usadas durante a Grande Imagem Retirada do Website do Projeto Temporary Travel Office: projeto de Ryan Depressão, e até mesmo exemplos mais antigos, Griffis que produz vários serviços como o mapa de uma epidemia de cólera em relacionados com turismo e tecnologia, Londres, feito por John Snow na metade do com o objetivo de explorar conexões não relacionais entre espaços públicos e século XIX. As tecnologias GIS se tornaram privados ferramentas valiosas na guerra doméstica contra a pobreza urbana, em curso sob a guisa de “renovação urbana”, dissecando cidades com autoestradas e outras formas do que Mike Davis chamou de “terceira fronteira”24. Sob essa luz, as ferramentas contemporâneas de georrastreamento podem ser vistas como parte do que o geógrafo Stephen Graham chama de “geografias classificadas por software”25, nas quais o arranjo de privilégios sociais é obtido não por meio de comandos forçados, mas de uma seleção preemptiva das condições de permissão, adquiridas por meio de softwares reguladores em espaços de conflito potencial. Assim como muros e autoestradas podem servir para controlar o movimento entre regiões de uma cidade, softwares, quando conectados a pontos mecânicos de acesso, podem ser usados para regular o acesso a transporte, construção e serviços. 22 http://libcom.org/library/postscript-on-the-societies-of-control-gilles-deleuze. 23 CLOUD, John. “American cartographic transformations during the Cold War”. In: Cartography and geographic information science. Vol. 29, n. 3, 2002, p. 261-82. http://www.geography.wisc.edu/histcart/v6initiative/11cloud. pdf. 24 http://www.colorlines.com/article.php?ID=331 25 http://eprints.dur.ac.uk/archive/00000057/01/Graham_software.pdf

A validação de conhecimento e espaço requer a fusão simultânea desse conhecimento com privilégios da mobilidade e do acesso tecnológico. O espaço mediado se torna um arquivo, não de contestação política, mas de narrativas acessíveis apenas àqueles que podem se beneficiar dos processos voluntários de vigilância. Esta não é a vigilância pan-óptica da sociedade disciplinar foucaultiana, mas a vigilância dos cartões de fidelidade de supermercados, do pedágio automático, de sistemas de rastreamento de automóveis por GPS e do controle biométrico das companhias aéreas. O coletivo italiano Multiplicity fornece uma instância significativamente diferente da consciência de localização, por meio da qual as geografias da desigualdade são visualizadas e experimentadas. Em um projeto chamado Road Map, o grupo fez duas viagens de distância semelhante em territórios controlados por Israel e Palestina: em uma delas, usando um passaporte israelense e, na outra, utilizando um passaporte palestino. Ambas foram mapeadas e gravadas em vídeo, documentando a disparidade de duração entre elas— aproximadamente uma hora com o passaporte israelense, e mais de cinco horas com os documentos palestinos. Em oposição à visão de espaço apresentada em Milk, por meio de imagens de GPS de uma representação abstrata e pixelizada da Europa — o que Michael Curry chamou de “visão de lugar nenhum”26 —, Road Map expõe um entendimento do espaço como inevitavelmente ligado aos sistemas que o modelam. Não há solo neutro sobre o qual projetar movimentos narrativos, apenas um chão delineado com marcas e zonas reguladas para alguns e estradas de passagem para outros. Não há um mapa, mas (ao menos) dois. Reconhecendo os limites deslocados entre o espaço que consideramos inabitável e esses espaços computadorizados, a noção de que estamos nos movendo através do espaço criado por satélites e centros de controle, a milhas de distância de nossa localização percebida, torna-se concebível. E, se podemos nos mover por esses espaços, nossos movimentos podem igualmente ser regulados por eles. Além disso, assim como eles se tornam parte estabelecida das concepções de “cotidiano”, da mesma forma eles alteram os limites do conhecimento, seja abrindo ou selando o envelope da ideologia. O teórico das novas mídias Drew Hemment sugeriu que as mídias locativas seriam mais bem nomeadas pela expressão “mídias integradas”27 em reconhecimento a sua “cumplicidade inerente com a operação do poder”, referindo-se, claro, à prática recente de jornalistas “integrados” ao exército dos Estados Unidos. Essa noção de 26 CURRY, Michael. Digital places: living with geographic information technologies. Nova York: Routledge, 1998, p. 52. 27 http://makeworlds.net/node/76.

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mídias locativas “integradas” transforma os cidadãos em “prosumidores” (o neologismo popular referente a consumidores produtivos) de conteúdo localizável, o qual é projetado tanto para analisar seus movimentos e hábitos como para entretê-los e educá-los. É possível dizer que os protegidos do Rei tomaram para si a tarefa de escrever um Domesday Book contemporâneo28. Só que o Rei não é mais uma entidade simples, é, em vez disso, uma quimera confusa de Estado e interesses corporativos. Parece importante perguntar se é suficiente apenas reconhecer a cumplicidade, aceitar a dialética das visões utópicas/distópicas. Em outro texto sobre documentário e fotografia, Rosler questiona as representações do poder que desafiam a análise causal29: Se não há vítima — ou se, o que dá no mesmo, somos todos igualmente vítimas —, então não há opressores. A desigualdade social parece ser produzida por um sistema sem agentes humanos ou remédios coletivos [...] no atual mapa do mundo, a mesma foto parece simplesmente poder ser lida como uma imagem do movimento browniano aleatório de indivíduos presentes na mesma unidade espaço-tempo, cuja soma são apenas números, não a “sociedade”. 160

A tecnologia pode, além disso, fazer a mediação entre poder e controle — e, em muitos sentidos, incorporá-los fisicamente. Mas será que ela substitui a ideologia? Será que a perspectiva entra em colapso sob o peso de 24 satélites? Michael Curry sugere que a “visão de lugar nenhum” ocupa e sempre ocupou uma posição de interesse, mas o interesse se torna cada vez mais localizado a partir do lugar do poder — nesse caso, literalmente no espaço30. Se a tendência da sociedade de controle é integrar ideologia a mecanismos de dominação, essencialmente colocando a opressão numa caixa-preta, como esta pode ser aberta e seus conteúdos, documentados? Artigo publicado em Re-public: re-imagining democracy. Versão em inglês disponível em http://www.re-public.gr/en/?p=176.

28 Considerado o primeiro documento público inglês, o Domesday Book foi criado em 1085, quando Guilherme I, o Conquistador — que havia dominado a Inglaterra —, financiou um grande levantamento sobre os recursos do país para, assim, estabelecer meios de taxá-los. (N. T.) 29 ROSLER, Martha. Decoys and disruptions: selected writings, 1975-2001. Cambridge: MIT Press, 2006, p. 177. 30 CURRY, Michael. Digital places: living with geographic information technologies. Nova York: Routledge, 1998, p. 52.

ARTE E MÍDIA LOCATIVA NO BRASIL ANDRÉ LEMOS

161 A internet já começou a escorrer sobre o mundo real. Ben Russel (1999)

DOWNLOAD DO CIBERESPAÇO NOS TERRITÓRIOS INFORMACIONAIS A discussão sobre a relação entre espacialidade e mídia não é nova. São bem conhecidas as formas de produção social do espaço pelas mídias de massa (jornais, rádio, TV, telefone, telégrafo, correios). As mídias conformam a percepção do espaço e a própria subjetividade em um jogo de espelhos, mostrando nosso lugar no mundo (em relação a outros lugares no mundo) e nossa identidade (em relação a outras culturas), além de organizar o arranjo espacial da sociedade, das cidades e das instituições. O lugar deve, desde sempre, ser entendido como fluxo, evento (THRIFT, 1999; MASSEY, 1997; SHIELDS, 1991; DOURISH et al., 2007), cruzamento de territorialidades, permanentemente aberto e sujeito aos agenciamentos midiáticos. Novas mídias produzem novas espacialidades. A cibercultura trouxe, em seus primórdios, questões ligadas ao espaço, a ponto de muitos autores a considerarem a cultura do “ciber-espaço”, do espaço eletrônico. Desde o surgimento da internet, a discussão se pautou no espaço virtual, nas relações estabelecidas nas comunidades virtuais, na virtualização das instituições, na webarte, na educação à distância, no e-commerce, no e-government e na democracia eletrônica, no webjornalismo, ou seja, na “desmaterialização” da cultura e em sua “subida” ao ciberespaço. Na primeira fase, a ênfase é o upload de informação para esse espaço eletrônico, entendido aqui como a transposição de coisas (relações sociais, instituições, processos e informações) para o ciberespaço fora do “mundo real”. Essa concepção, embora exagerada e incorreta (não há nada fora do “mundo real”), tornou-se hegemônica, levando autores a afirmar a morte da geografia, o fim das relações face a face, do corpo, da sala de aula, dos livros e jornais impressos, em suma, a “virtualização”

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do mundo fora do lugar. Se essa posição já era difícil de sustentar com o upload de informações (e a questionamos em LEMOS, 2002-04), agora ela parece ter sido completamente soterrada1. Podemos definir as mídias locativas como dispositivos, sensores e redes digitais sem fio e seus respectivos bancos de dados, “atentos” a lugares e contextos. Dizer que essas mídias são atentas a lugares e contextos significa que reagem informacionalmente a eles, compostos, por sua vez, de pessoas, objetos e/ou informação, fixos ou em movimento. O que conta, a partir da mobilidade física e informacional (KELLERMAN, 2006), é a relação dinâmica desses dispositivos com o lugar e as trocas infocomunicacionais daí advindas. Emergem aqui duas dimensões fundamentais da cibercultura: localização e mobilidade. A característica fundamental das mídias locativas2 é que elas aliam, paradoxalmente, localização e mobilidade. Movimentar é sempre “deslocar”, o que poderia levar rapidamente à ideia de um apagamento dos lugares. No entanto, o deslocamento (mobilidade física e informacional) não significa, necessariamente, o desaparecimento da dimensão espacial em sua materialidade e em suas dimensões sociais, políticas e econômicas. Antes, as mídias locativas, pelas trocas informacionais no espaço urbano, criam novos sentidos dos lugares. Se a mobilidade era um problema na fase do upload do ciberespaço (ir ou sair do local de conexão), a atual fase do download (ou da internet das coisas3), a mobilidade é uma oportunidade para usos e apropriações do espaço para diversos fins e de lazer, comerciais, políticos, policiais, artísticos. Aqui, mobilidade informacional, aliada à mobilidade física, não apaga os lugares, mas os redimensionam. Com o ciberespaço “pingando” nas coisas, não se trata mais de conexão em “pontos de presença”, mas de expansão da computação ubíqua em “ambientes de conexão” em todos os lugares. Devemos definir os lugares, de agora em diante, como uma complexidade de dimensões físicas, simbólicas, econômicas, políticas, aliadas a banco de dados eletrônicos, dispositivos e sensores sem fio, portáteis e eletrônicos, ativados a partir da localização e da movimentação do usuário. Essa nova territorialidade compõe, nos lugares, o território informacional2. As tecnologias móveis, os sensores invasivos (tipo RFID) e as redes sem fio de acesso à internet (Wi-Fi, WiMAX, 3G) criam a computação ubíqua da era da 1 Reforcei essa posição em conferência do II Simpósio Nacional da ABCiber, PUC-SP, 2008. 2 Locative media — expressão criada por artistas para se diferenciarem de projetos comerciais. Trata-se de tecnologias e serviços baseados em localização: location-based technology (LBT) e location-based services (LBS) (KARIMI E HAMMAD, 2004). Locative media é a crítica dos LBT e LBS. A expressão foi proposta em 2003 por Karlis Kalnins (RUSSELL, 1999; BENFORD, 2005; POPE, 2005).

internet das coisas e fazem com que o ciberespaço “desça” para os lugares e os objetos do dia a dia. A informação eletrônica passa a ser acessada, consumida, produzida e distribuída de todo e qualquer lugar, a partir dos mais diferentes objetos e dispositivos. O ciberespaço começa, assim, a “baixar” para coisas e lugares, a “pingar” no “mundo real”. A metáfora do download mostra bem a atual ênfase da localização e da mobilidade física e informacional de pessoas, objetos e informações, ressaltando relações espaciais concretas nos lugares (públicos e privados). O download do ciberespaço produz uma nova territorialização do espaço, a territorialidade informacional. O lugar não é mais um problema para acesso e trocas de informação no ciberespaço “lá em cima”, mas uma oportunidade para acessar informação a partir das coisas “aqui embaixo”. MOBILIDADE E TERRITORIALIDADE Com a computação ubíqua e disseminada em lugares e objetos a partir dos LBS e LBT, emerge a nova territorialização informacional, que amplia, transforma e/ou modifica antigas funções dos lugares. Um café, uma praça, um mercado, dotados de sensores, dispositivos e redes sem fio continuam sendo um café, uma praça ou um mercado, só que transformados pela territorialidade informacional emergente. Esse território informacional pode ser entendido pela imagem do ciberespaço “pingando” nas coisas, como uma membrana, uma pele eletrônico-digital acoplada aos lugares4, gerando novas heterotopias (FOUCAULT, 2006). Surge, desse modo, uma relação particular do mundo “real” com bancos de dados, redes e dispositivos eletrônicos sem fio incrustrados nas coisas3. Comprovando a existência desses novos territórios informacionais, autores falam de espaço híbrido, bolha ou território digital (BESLAY E HAKALA, 2007), espaço intersticial (SANTAELLA, 2008), realidade híbrida, aumentada ou cellspace (MANOVICH, 2005), parede ou muro virtual (KAPADIA et al., 2007). Todas essas imagens descrevem fronteiras informacionais criadas pelo download do ciberespaço, apontando para uma fusão dos espaços eletrônico e físico. O conceito de território nos é útil, pois dirige a compreensão para uma nova ontologia dos lugares. Território, aqui, é uma zona de controle informacional cercada por bordas ou fronteiras invisíveis (a bolha, a parede, a célula, o interstício), que emergem dos lugares oferecendo possibilidades de acesso, produção e distribuição de informação. Já podemos sentir seus impactos sociais, culturais, artísticos e políticos na atual expansão dos telefones celulares, do acesso à internet sem fio, da banalização de dispositivos de localização tipo GPS, na implantação de sensores 3

Ciberespaço é, aqui, o nome genérico para as redes telemáticas.

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RFID e assim por diante. É importante salientar que é na ruptura dessas bordas que emergem formas atuais de vigilância, controle e monitoramento (LEMOS, 2009a). Explicamos (LEMOS, 2009b) que, para a compreensão dos aspectos comunicacionais, políticos e sociais das mídias locativas, é fundamental entender que a sociedade da informação cria zonas de controle informacional, territorializações e funções eletrônico-digitais nos lugares do “mundo real”. Todo lugar é composto por linhas de fuga, movimentos, fluxos e tensões entre diversos níveis de controle, ou seja, territorializações (THRIFT, 1999; CRESSWELL, 2004), e todo território é uma zona de controle no interior de fronteiras. Estas devem ser entendidas de forma polissêmica (física, econômica, subjetiva, política, cultural, pessoal...). É na tensão entre diversas fronteiras que emerge a dimensão local. Essa tensão se configura por processos de socialização. Ou lugares são produzidos pela sociedade em sua relação territorial (e desterritorializante), mediando nossa relação material e simbólica com o mundo (LYMAN E SCOTT, 1967; GOTTMANN, 1973; SACK, 1986; DELANEY, 2005; PRED, 1984). A nova tensão de fronteira informacional (o território informacional) vai, assim, adicionar uma camada de tensão na constituição dos atuais lugares do espaço urbano. A internet, ao pingar nas coisas, cria um território informacional através de controle de dados eletrônicos no interior de novas fronteiras nos lugares (como acesso, firewall, bolhas digitais e paredes virtuais), ressignificando-os. Empresas e governos utilizam as mídias locativas para criar serviços de localização, ambientes inteligentes, computação ubíqua, ações de marketing e publicidade, jogos e diversas experiências associadas à mobilidade e à localização de pessoas, objetos e informação. Projetos incluem redes sociais móveis, anotações urbanas, mapas e georreferenciamento, jogos de rua, mobilizações artísticas e/ou políticas. O espectro é bastante amplo e está em expansão. Como mostramos em outros trabalhos (LEMOS, 2007, 2008, 2009, 2009b), os projetos com as mídias locativas podem ser agrupados em cinco categorias: 1. anotações urbanas eletrônicas (geoannotation) — escrita eletrônica no espaço, indexando dados a um determinado lugar com conteúdo diverso (Yellow Arrow4, Sonic City5, [murmur]6, Node Explorer7, GPS Drawing8, Real Time Rome9). 2. mapeamento — etiquetas geográficas (geotags) e produção de cartografias 4 5 6 7 8 9

http://yellowarrow.net/index2.php. www.tii.se/reform/projects/pps/soniccity/index.html. http://murmurtoronto.ca. www.nodeexplore.com/news.php?newsid=187. www.gpsdrawing.com. http://senseable.mit.edu/realtimerome.

diversas, vinculando informações como fotos, textos, vídeos e sons a mapas ou conjunto de mapas. (Neighbornode10, Peuplade11, CitIX12). 3. redes sociais móveis (mobile social networking) — sistemas de localização de pessoas criando possibilidades de encontro e/ou troca de informação em mobilidade através de smartphones (Imity14, Dodgeball13, Citysense14, Google Latitude15). 4. jogos computacionais de rua (pervasive computacional games) — jogos de diversas modalidades nos quais parte importante da trama se dá no espaço urbano, com o uso de LBT e LBS (Geocaching16, Uncle Roy All Around You17, Can You See Me Now?18, Pac-Manhattan19). 5. mobilizações inteligentes (smart e flash mobs) — mobilizações políticas e/ou estéticas utilizando LBT e LBS para organizar reuniões efêmeras no espaço público (RHEINGOLD, 2003). Para o escopo deste artigo, analisaremos projetos de arte com mídia locativa (locative media art) no Brasil a partir dessas cinco categorias. Após termos visto a dinâmica do upload e do download do ciberespaço, e termos definido as mídias locativas, os territórios informacionais e as novas tensões na produção social dos lugares, vamos olhar com mais atenção para a situação brasileira. 165

MÍDIAS LOCATIVAS NO BRASIL LBS e LBT estão em expansão no Brasil. No entanto, o debate sobre as mídias locativas ainda engatinha e o país sofre de graves problemas de exclusão (entre os quais a exclusão digital). Temos, atualmente, 138,4 milhões de celulares e uma densidade de 72,09 aparelhos/100 habitantes, sendo 80% deles celulares pré-pagos (segundo dados de agosto de 2008 da Agência Nacional de Telecomunicações — Anatel), o que demonstra pouca capacidade de investimento pessoal em novos serviços. As redes 3G crescem no território nacional e estudos mostram que a internet móvel já ultrapassa padrões de países desenvolvidos. O acesso via dispositivos móveis já chega a 9% do total de 8,1 milhões de usuários de banda larga (nos Estados Unidos, esse índice cai para 6%). O Brasil está em segundo lugar entre 10 11 12 13 14 20 21 22 23 24

www.neighbornode.net. www.peuplade.fr/home.

www.citix.net/pages/sobre. www.dodgeball.com. www.citysense.com. www.google.com/latitude/intro.html. www.geocaching.com. www.uncleroyallaroundyou.co.uk/street.php. www.canyouseemenow.co.uk. http://pacmanhattan.com/index.php.


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as nações com mais interesse em mobilidade (em comparação com França, Estados Unidos, Itália, Grã-Bretanha, Espanha e Alemanha), perdendo apenas para o México. São 950 mil conexões à internet via rede 3G, como minimodens, representando 10% de todos os tipos de conexão. E isso em pouquíssimo tempo20. As redes sem fio — Wi-Fi e WiMAX — também estão em expansão. De acordo com o Ministério das Comunicações, trinta cidades têm projetos implantados ou em implantação. O Programa Nacional de Cidades Digitais quer levar banda larga a todo o país, articular ações de inclusão digital (como as redes sem fio) e implementar 160 Cidades Digitais, espalhadas por todo o Brasil. Em relação aos LBS e LBT, já há experiências nacionais de mercado com serviços corporativos para acesso a redes Wi-Fi bluetooth e Wi-Fi marketing, RFID e pervasive games, aliados principalmente a marketing de filmes (como em Meu Nome Não é Johnny), empresas de telefonia (Oi) ou de petróleo (Petrobras, com o Mobile Racing), serviços de localização por meio de smartphones, como o Vivo Localiza ou o Vivo Copiloto, ou serviços de localização como o Mapas & Rotas da Nextel. Há um grande desenvolvimento de GPS (embarcado nos carros) e celulares 3G (hoje são 500 mil usuários no Brasil)21, além de sistemas de informação geográfica (GIS, na sigla em inglês) e mapas digitalizados. Aparecem os primeiros usos de QR Code (o jornal A Tarde, de Salvador, foi o primeiro a usar em sua versão impressa). Cresce a implantação de etiquetas RFID no comércio e também no trânsito. Desde 2007, o governo brasileiro vem implementando um chip nas placas dos carros (ação iniciada a partir de São Paulo), tendo como meta estendê-la a todo o país22. O número de câmeras IP de vigilância pública e privada está em crescimento geométrico. Em suma, o quadro geral mostra que os LBS e LBT devem se expandir muito no Brasil nos próximos anos. Para além do uso comercial e corporativo, há poucos casos de emprego das mídias locativas para apropriação do espaço urbano, fortalecimento comunitário e tensionamento de questões políticas e/ou estéticas. Os melhores exemplos vêm, como sempre, dos artistas, mostrando as potencialidades e perigos dessa utilização. Deve-se ressaltar que alguns festivais têm estimulado o debate no Brasil. Os dois mais importantes são o arte.mov23 e o Mobilefest24. Há também o Motomix25 e o Nokia Trends26. 25 http://idgnow.uol.com.br/telecom/2008/08/14/brasil-tem-950-mil-conexoes-a-internet-via-redes-3gestima-accenture. 26 www.mundogeo.com.br/noticias-diarias.php?id_noticia=4246. 27 http://alertatotal.blogspot.com/2008/07/lula-insiste-no-inconstitucional-chip.html. 28 www.artemov.net. 29 www.mobilefest.org. 30 www.motorolamotomix.com.br. 31 www.nokiatrends.com.br.

ARTE COM MÍDIAS LOCATIVAS NO BRASIL27

Os projetos em mídias locativas mais instigantes têm sido aqueles que se realizam no território da arte, apresentando propostas estéticas que despertam nossas reflexões. Lucia Santaella (2008)

Estive no último arte.mov, em Belo Horizonte, em novembro de 2008. Durante o festival, visitei o mercado popular de rua na Avenida Afonso Pena (em frente ao local do evento), o qual usarei como exemplo hipotético para falar das artes com as mídias locativas no Brasil. Logo ao chegar, uma mídia locativa me chamou a atenção. De maneira muito eficiente pude observar que ela produzia espacialização: mediava relações, ordenava o espaço e produzia comunicação massiva informando sobre serviços e problemas do lugar. Essa mídia locativa, embora sem nenhuma característica digital, era uma “rádio-poste”, local e comunitária, que divulgava em tempo real notícias sobre equipamentos urbanos e documentos perdidos, questões de segurança e novidades da feira. Ou seja, uma mídia locativa analógica com informação massiva vinculada ao contexto local.30 A “rádio-poste” era aqui mídia de massa locativa. Pelos alto-falantes espalhados pelo mercado ela emitia informações massivas, não reagia aos visitantes de forma “inteligente” (eletronicamente) e não produzia ou estocava informações em banco de dados. Não havia, por assim dizer, territorialização informacional. Mesmo sendo uma mídia locativa analógica, como toda mídia, ela produzia sentido social de lugar, ela produzia espacialização28. Comecei a imaginar, então, como seria esse mesmo mercado dotado de territorialização informacional com LBS e LBT. O sentido de lugar se perderia? Como o mercado reagiria à disseminação de mídias locativas, digitais, ubíquas e “atentas” eletronicamente a seu contexto? Vejamos de forma hipotética. Com celulares, sensores e redes sem fio vinculados a bases de dados locais, informações poderiam ser disparadas de forma “inteligente”, de acordo com a localização do cidadão. Ao entrar no mercado, uma 32 Alguns projetos aqui citados não são artísticos, mas políticos e/ou comerciais. Eles foram citados para exemplificar com casos brasileiros algumas categorias. 33 Sobre mídias locativas analógicas ver Lemos, 2008.

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emissão via bluetooth daria as boas-vindas nos celulares dos visitantes, mostrando sua história com vídeo, textos e fotos; um mapa indicaria a posição exata do usuário e suas opções pelos setores e equipamentos; informações cidadãs sobre encontros, datas importantes e documentos extraviados seriam enviadas via SMS; visitantes encontrariam conhecidos por meio de sistemas de rede social móvel; transeuntes deixariam suas impressões “anotando” eletronicamente determinados pontos do lugar; jogos com celulares, palms e GPS, como gincana, criariam uma atmosfera lúdica... O sentido de lugar não se perderia e, mais ainda, poderia ser reforçado. A territorialização informacional abriria possibilidades para intervenções livres e abertas.

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ARTE LOCATIVA NO MERCADO E se propuséssemos aos artistas brasileiros a utilização do mercado como um playground? Se os artistas brasileiros tomassem a feira como um espaço de experimentação, poderíamos ver pinturas e escritas com GPS, como o Locative Painting, GPSart, Sur-viv-all ou Identité; derivas musicais por GPS, como na performance Burro sem Rabo, do grupo Hapax; encontros com personagens históricos em realidade aumentada, como no projeto Invisíveis; imagens projetadas em outdoors via celulares, como em Poétrica; fotos e vídeos feitos por feirantes ou motoboys; divulgação de notícias de interesse local, como no projeto Alô Cidadão!; jogos de rua, como Senhor da Guerra ou Alien Revolt; mapas de inscrições ou problemas sociais, como Stickers Map, Wikicrimes ou CitIX; estímulo a conexão de pessoas, como o GPSface. Vejamos essas experiências a partir das cinco categorias propostas.

Imagem Retirada do Website do Projeto

Locative Painting: trabalho de Martha Gabriel que usa o CEP como forma de identificar o lugar a partir de onde usuários do site do projeto disparam pinceladas geolocalizadas

ANOTAÇÕES URBANAS ELETRÔNICAS Nesta categoria, temos trabalhos com GPS, realidade aumentada, performances sonoras e teleintervenções. Sur-viv-all (2008)29, de André Lemos, Mari Fiorelli e Rob Shields, foi realizado em Edmonton, no Canadá, escrevendo a palavra em quarenta quilômetros da cidade. A escrita eletrônica buscou ressaltar o imaginário canadense a partir do livro Survival, de Margaret Atwood. Identité30 (2008) foi realizado por André Lemos, de bicicleta, em catorze quilômetros em Montreal, apontando para uma das questões centrais do Quebec e do Canadá, a identidade. Locative Painting31 (2008), de Martha Gabriel, é uma pintura feita com GPS de acordo com as posições geográficas de usuários, baseada nos dados do interator (cor da pele, nome, cidade, país, gênero etc.). GPSart (2008)32, de Cícero Silva, é uma aplicação para produzir imagens com GPS a partir de um celular. Os projetos com GPS poderiam servir como exemplo para mapear percursos e mostrar usos dos espaços ressaltando regiões (usadas e descartadas), e como forma eletrônica de escrita para destacar aspectos do mercado. Outra forma interessante de escrita eletrônica é o uso da realidade aumentada (WELLNER et al. 1993), como no projeto Invisíveis (2007), de Bruno Viana. Fundindo personagens virtuais em espaços reais de Belo Horizonte, Invisíveis foi apresentado em 2007 no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, onde pessoas passeavam olhando a câmera do celular e visualizando diversos personagens que representavam frequentadores históricos do parque. O projeto funde passado e futuro, realidade física e eletrônica. Invisíveis poderia muito bem colocar personagens históricos no ambiente do mercado, criando um sentido de história e pertencimento. Já o grupo carioca Hapax realizaria suas performances sonoras e deambulações pelo espaço do mercado, com celulares, computadores e GPS. A performance Burro sem Rabo (2006)33, mesclando alta tecnologia e sucata, produz uma onda sonora no espaço urbano de acordo com o deslocamento do veículo. O posicionamento é controlado pelo GPS e convertido em sons. O DJ é o percurso. Trabalhos de teleintervenção por dispositivos móveis poderiam criar tensões entre o espaço publicitário e a produção de conteúdo dos visitantes do mercado. Poétrica (2002)34, de Giselle Beiguelman, propunha, através da web ou de telefones 34 35 36 37 38 39

http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/survivall. www.andrelemos.info/identite. www.locativepainting.com.br. www.gpsart.net. http://hapax.com.br/performances/burro-sem-rabo. www.poetrica.net.

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celulares, inscrições em painéis eletrônicos urbanos que dialogam com o entorno, a Radial Leste, em São Paulo. Da mesma forma, em Egoscópio (2002)35, a artista explora o fluxo de informações da internet e convida o público a des/organizar a autobiografia coletiva do personagem-título. Os endereços dos sites enviados foram projetados num painel eletrônico na Avenida Brigadeiro Faria Lima, também em São Paulo. Algo similar poderia ser pensado para o mercado, onde inscrições do público ocupariam painéis publicitários, criando tensões entre o mercado e o “mundo da vida”.

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MAPEAMENTO Podemos citar, nesta categoria, cinco trabalhos — dois artísticos e três mais voltados para produção de conteúdo. Os dois primeiros são os projetos Motoboys e Sticker Map, e os outros três são o WikiCrimes, o CitIX e o Wi-fi Salvador. O projeto Motoboys (2007), do Zex36 poderia muito bem ser adaptado para o bairro central ao redor do mercado. Em São Paulo, os motoboys percorrem espaços públicos da cidade carregando consigo celulares — fotografam, filmam e publicam, em tempo real, suas impressões. Eles usam a potência locativa para dar sentido a seus percursos e registrar crônicas visuais do cotidiano. Imaginem ambulantes circulando pelo mercado, registrando flagrantes, criando suas próprias crônicas.

O projeto Sticker Map (2008)37, de alunos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), utiliza redes sem fio, mapeamento e QR Codes para destacar os stickers das ruas de São Paulo. O mapeamento fotográfico foi realizado na Avenida Paulista em 2008, usando redes Wi-Fi ou 3G para fazer o upload em tempo real com coordenadas GPS. Depois, foram colocados QR Codes, que direcionam o visitante para o mapa na web. Esse tipo de ação poderia ser feito na região do mercado, registrando inscrições urbanas e adicionando mais um elemento para a produção de informações ligadas ao mercado. WikiCrimes (2007)38 e CitIX (2007)41 mapeiam crimes em regiões do Brasil. O CitIX tem como base a cidade de Recife, permitindo que os usuários acrescentem comentários sobre locais da cidade. O projeto conta com uma parceria entre o Ministério Público Federal e o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (CESAR). O WikiCrimes, desenvolvido na Universidade de Fortaleza (Unifor), tem o mesmo objetivo, só que para todo o território nacional. Já o Wi-fi Salvador (2007)39 é um trabalho de mapeamento de hot spot em Salvador realizado pelo Grupo de Pesquisa em Cibercidade (GPC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em que qualquer pessoa pode adicionar novos pontos, fazer comentários, inserir links, fotos ou vídeos. Projetos afins poderiam ser feitos no mercado, propondo mapeamentos diversos (pontos interessantes, barracas, violência etc.) com comentários dos visitantes de forma aberta e participativa.40 REDES SOCIAIS MÓVEIS As mídias locativas permitem que pessoas que se conhecem e compartilham eventualmente um mesmo lugar possam interagir, trocar informações e até se encontrar. No mercado em BH, pessoas poderiam encontrar amigos por meio do GPSface (2007)41, de Cícero Silva, reforçando encontros e laços sociais. O GPSface é uma rede social on-line que conecta pessoas ao redor do mundo, mostrando no Google Maps a posição do interator no telefone celular.

Canal Motoboy: projeto do artista catalão Antoni Abad incentiva a criação de um canal de comunicação entre os moradores de São Paulo e os motoboys, como forma de modificar a imagem negativa que eles têm. Imagem Retirada do Website do Projeto

40 www.desvirtual.com/egoscopio/english/tec.htm. 41 www.zexe.net/SAOPAULO/intro.php?qt.

MOBILIZAÇÃO INTELIGENTE Flash mobs, manifestações-relâmpago para realização de performances, têm sido apresentadas no Brasil desde 2003, como aconteceu na Avenida Paulista em novembro de 2008, em protesto contra o projeto de cibercrimes proposto pelo 42 43 44 45 46

www.flickr.com/people/stickermap. www.wikicrimes.org/main.html;jsessionid=3F205FA5F00B5746C9855DDA26024B12. www.citix.net/index. www.wifisalvador.facom.ufba.br. www.gpsface.com.

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senador Eduardo Azeredo, em tramitação na Câmara dos Deputados. O espaço do mercado seria muito apropriado para esse tipo de manifestação. O projeto Alô Cidadão!42, parceria entre a ONG Instituto Hartmann Regueira e o Instituto Telemar, oferece informações sobre cidadania,43 buscando ajudar pessoas de baixa renda a encontrar emprego, obter informações locais gerais sobre cultura, educação, campanhas de vacinação, entre outras. Desenvolvido para os moradores da comunidade Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte, o sistema tem se mostrado popular, com replicação das mensagens recebidas entre familiares e amigos. O uso de um sistema similar no mercado poderia muito bem servir como ferramenta de cidadania e para organização de manifestações de moradores e visitantes, como uma smart mob.

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JOGOS COMPUTACIONAIS DE RUA Os jogos de rua com mídias locativas no Brasil têm um desenvolvimento tímido, mais ligado a empresas como ferramenta de marketing. Não há ainda experiências artísticas que mereçam destaque. Apenas como exemplo histórico apontamos os dois mais conhecidos: Alien Revolt (2005)44 e Senhor da Guerra (2003)45. Alien Revolt é uma guerra entre caçadores e aliens em que é possível, por radar, identificar jogadores em um raio de até três quilômetros. Senhor da Guerra, o primeiro do Brasil, com mais de 500 mil jogadores cadastrados, é uma adaptação do clássico War: o jogador deve conquistar regiões espalhadas pelo país, desde que haja cobertura e que ele esteja fisicamente próximo ao local.46 No caso do mercado, esses jogos poderiam transformar o lugar em uma esfera lúdica com jogos de localização ou de resolução de mistérios, ligados a questões próprias ao mercado e à região da cidade. O exemplo hipotético do mercado de rua de BH mostra a territorialização informacional criada pelas mídias locativas. Como fluxo entre territorialidades, o lugar ganharia potência comunicacional e social pela conexão e pela mobilidade informacional. As mídias locativas atualizariam potencialidades e o mercado, embora diferente, continuaria a ser o mercado da Avenida Afonso Pena.

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www.institutohr.org.br/noticias/not6_alocidadao.html. Não se trata de smart mob, mas, por ser ligado à cidadania, resolvemos incluí-lo aqui. www.alienrevolt.com/pt. www.senhordaguerra.com.br. www.inova.unicamp.br/inventabrasil/senhorwar.htm.

CONCLUSÃO A fase atual do download do ciberespaço vincula mobilidade e localização, reforçando paradoxalmente o sentido dos lugares. Isso vai contra a ideia, difundida na fase do upload do ciberespaço e das mídias de massa, de que as novas tecnologias seriam desterritorializantes e apagariam o sentido de lugar, comunidade e espaço público (MEYROWITZ, 1985). As mídias locativas parecem produzir novos sentidos dos lugares. Vimos, neste curto artigo, a definição de mídias locativas, o download do ciberespaço, os novos territórios informacionais, a situação de LBT e LBS, bem como da arte locativa no Brasil. A situação nacional está em expansão, mas há muito por fazer. A ausência de mais experiências artísticas pode deixar um campo aberto para intervenções apenas comerciais, que não levariam em conta o potencial de criação de conteúdo e de colaboração, de apropriação e ressignificação dos lugares. Perigos como monitoramento, vigilância e invasão da privacidade também estão no horizonte. Só uma apropriação crítica, tática (CERTEAU, 1984), ao mesmo tempo política, social e estética, poderá evitar a instrumentalização comercial e policial das mídias locativas, que manteriam o usuário na posição de simples receptor massivo. O mercado de rua da Avenida Afonso Pena foi usado como exemplo para mostrar que um lugar real pode ser o terreno de experimentação das mídias locativas e de criação e produção social do espaço, reforçando sociabilidades e vínculos comunitários. Entretanto, devemos salientar que o desejo de tudo encontrar e localizar é uma maneira de racionalizar o espaço e de não enfrentar as surpresas do inusitado, isto é, uma forma de sucumbir ao medo do desconhecido e do imponderável. Mesmo vislumbrando potencialidades com as mídias locativas, viver o mercado como ele é, se perder entre suas barracas e encontrar desconhecidos ou amigos ao acaso são uma excelente maneira de se apropriar do espaço. A deriva sem orientação e caótica é uma forma de encontro com o espaço. A rigor, não precisamos de nenhuma ferramenta de localização ou de informação “inteligente” para viver o mercado. Sem celular ou GPS me deixei levar pelas cores, pelos aromas e pelos sons da “rádio-poste”. Flanando, fiz do mercado um lugar também meu.

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Realidade mista

Realidade mista

Espaço urbano

Espaço urbano

ARTE 3 176pervasiva Interface

Arquiteturas fluidas

PARTE 3 Interface pervasiva

Arquiteturas fluidas

ESPAÇOS URBANOS

ESTUDO DE CASOS: REDES EM ESPAÇOS URBANOS

Geolocalização

Geolocalização

Computação ubíqua

Computação ubíqua

s_arte, mídia, games

Interconexões_arte, mídia, games

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179 O DEBATE SOBRE PROPRIEDADE NO ESPAÇO PÚBLICO SEM FIO JONAH BRUCKER-COHEN

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Ao transferir a sociabilidade para o âmbito das redes sem fio, a ideia de espaço público e propriedade de recursos comunitários vem para o primeiro plano. Apesar da percepção de esfera pública como um nivelador social que permite a coexistência de indivíduos com diferentes experiências, a penetração das redes nesses espaços se dá em uma brecha entre organizações comunitárias e provedores corporativos. No sentido tradicional, a discussão de “esfera pública burguesa”1 proposta por Jürgen Habermas define um espaço público no qual cidadãos privados se reúnem para impedir que o Estado interfira em empreendimentos privados e interesses públicos. A explicação de Habermas para o conceito de opinião pública foca em como o “consenso” é formulado pelos cidadãos servindo aos interesses da comunidade, e não em qualquer intervenção patrocinada pelo governo ou Estado. No entanto, ele concorda que as mídias de massa e o excesso de publicidade minam a esfera pública e podem ser vistas como “publicidade manipuladora”, que, em última análise, contribui para formar as opiniões das pessoas em seus próprios espaços. Dois aspectos-chave caracterizam o sucesso da esfera pública: a “extensão do acesso” por cidadãos ordinários deveria ser universal e também a “rejeição da hierarquia”, ou a tentativa de dissolução da estratificação social. Conforme as redes sem fio pervagam espaço adentro, ambas as condições são desafiadas. 1

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

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Particularmente, ao examinar a esfera pública, é importante discutir o relacionamento que Habermas delineia em sua definição de esfera pública burguesa no que diz respeito ao debate sobre a ocupação do espaço público versus a ocupação do espaço privado. A esfera pública burguesa pode ser entendida inicialmente como a esfera das pessoas privadas reunidas em público; elas reivindicam esta esfera pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social. O meio de confrontação política foi peculiar e sem precedentes históricos: o uso público da razão feito pelos intervenientes (öffentliches Räsonnement). Em nosso uso [alemão], este termo (Räsonnement), sem dúvida, preserva as nuances polêmicas em ambos os lados: simultaneamente, a invocação da razão e seu desprezo desdenhoso como uma mera compreensão descontente2.

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Habermas apresentou esse cenário para explicar que, em vez de todas as pessoas associadas a esse espaço manterem suas identidades privadas, elas se tornam parte de uma consciência pública. Meyrowitz também argumenta que a penetração das novas tecnologias na esfera pública levou a um sentido disperso de identidade de grupo que não o existente antes de sua adoção. “Sustento que, pelo fato de as mídias eletrônicas fundirem esferas públicas antes distintas, borrarem a linha divisória entre comportamentos públicos e privados, e acentuarem os elos tradicionais entre espaço físico e ‘lugar’ social, testemunhamos como resultado a difusão de identidades de grupo, uma fusão de diferentes estágios de socialização e um achatamento de hieraquias”3. Relacionando o argumento de Meyrowitz com o caso do acesso público a pontos de internet sem fio, o acesso aberto universal desprovido de suas conotações de hierarquia econômica e intelectual não está tipicamente garantido. Em particular, conforme as redes sem fio tornam-se mais pervasivas em espaços urbanos públicos e privados, a batalha pela propriedade, pelo controle e pelo uso desses sinais, além do fornecimento de seu acesso, está se tornando um ponto de discórdia. Uma vez que o espectro de 2.4 GHz é aberto e sem licença e os roteadores ficam cada vez mais baratos e fáceis de configurar, os pontos de acesso sem fio estão congestionando esse alcance limitado. Esse aspecto é especialmente predominante em espaços urbanos densos, onde sinais 2 Ibidem, p. 42. 3 MEYROWITZ, Joshua. No sense of place: the impact of electronic media on social behavior. Nova York: Oxford University Press, 1985, p. 8.

de transmissão privados, públicos e comerciais (ou pagos) começam a interferir uns nos outros. Essa encruzilhada entre espaços de redes móveis está causando brechas e conflitos, particularmente no que se refere a questões de propriedade, políticas de uso aceitáveis e instalação pública de pontos de acesso sem fio. Por exemplo, cidadãos ficam insatisfeitos com os domínio das corporações sobre pontos de acesso em áreas de alto tráfego, ao passo que, simultaneamente, elas se apressam para popularizar esses espaços com redes gratuitas. Enquanto isso, as redes corporativas, com mais recursos e financiamento, estão instalando antenas de transmissão de alta potência, que interferem nos pontos de acesso locais, livres e de baixa potência. Essa tensão está se intensificando a ponto de novos tipos de intervenção serem necessários para aliviar o choque de faixas no espectro. Há uma necessidade de examinar os padrões de uso e avaliar como essas tensões podem ser externalizadas para fomentar um diálogo aberto.

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183 TRANSBORDER IMMIGRANT TOOL: UM PROJETO ARTÍSTICO DE PERTURBAÇÃO DA FRONTEIRA MÉXICO/EUA RICARDO DOMINGUEZ E BRETT STAULBAUM

A fronteira entre Estados Unidos e México se moveu entre o virtual e o muito real desde antes do nascimento dos dois Estados-nações. Isso permitiu a formação de um arquivo profundo sobre movimentos suspeitos por essa fronteira, para ser rastreado e catalogado — especificamente ancorado em corpos imigrantes movendo-se rumo ao norte, e menos em corpos imigrantes movendo-se para o sul. O perigo de se deslocar em direção ao norte através dessa fronteira não é uma questão de política, mas de geografia vertiginosa. Centenas de pessoas morreram cruzando a fronteira México/EUA por não serem capazes de dizer onde estavam em relação ao local onde haviam estado, e qual rota precisavam seguir para atingir seu destino com segurança. Agora, com a ascensão de sistemas de informação geoespacial multiplamente distribuídos (como o projeto Google Earth, por exemplo), o GPS (Sistema de Posicionamento Global) e o desenvolvimento do Virtual Hiker Algorithm (Mochileiro Virtual) pelo artista Brett Stalbaum, torna-se possível desenvolver ferramentas de imigração transfronteiras para que sejam implementadas e distribuídas em celulares Nextel modificados. Isso permitirá à geografia virtual marcar novas trilhas e rotas potencialmente mais seguras através desse deserto do real.

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As tecnologias de Sistemas de Dados Espaciais e GPS habilitaram um relacionamento inteiramente novo com a paisagem na forma de suas aplicações para simulação, vigilância, alocamento de recursos, gerenciamento de redes cooperativas e de padrões pré-deslocamento (como o algoritmo Virtual Hiker), modelando um algoritmo que mapeia uma trilha potencial ou sugerida para um (ou mais de um) mochileiro real seguir. A Ferramenta para Imigrantes Transfronteiras (Transborder Immigrant Tool) adicionaria uma nova camada de agenciamento a essa geografia virtual emergente, permitindo a segmentos da sociedade global que geralmente estão fora dessa grade emergente de hipergeopoder de mapeamento ganhar acesso rápido e simples a sistemas GPS. A Ferramenta para Imigrantes Transfronteiras não iria oferecer acesso apenas a essa economia emergente de mapeamento total, mas acrescentaria um agente algoritmo inteligente que discriminaria as melhores rotas e trilhas naquele dia e hora para os imigrantes cruzarem aquela paisagem vertiginosa com a maior segurança possível.

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Esse projeto de arte seria desenvolvido em cinco etapas: 1) três a quatro semanas para mapear com GPS ambos os lados da fronteira México/EUA; esse mapeamento nos permitiria identificar as coordenadas exatas necessárias para ancorar as triangulações que delimitariam o começo e os demais pontos para a Ferramenta para Imigrantes Transfronteiras; 2) três meses para pesquisar as redes e infraestruturas atuais e “preemptivas” — como as atividades do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, os projetos de segurança de fronteiriça da Halliburton1, as atividades do controle alfandegário e dos Minutemen2, e pontos de apoio com água/comida criados por comunidades ao longo da fronteira — com o objetivo de aprimorar as chances de segurança do imigrante e determinar quais dos rumos computacionalmente mediados têm mais chance de serem úteis; 3) cinco a seis meses para desenvolver o código algorítmico da Ferramenta para Imigrantes Transfronteiras, testar as coordenadas GPS e desenvolver interfaces em inglês e espanhol e instruções de uso; 4) uma semana para caminhada-teste do algoritmo da Ferramenta para Imigrantes Transfronteiras pelos principais pesquisadores e artistas convidados. 1 Empresa de serviços para campos petrolíferos que teve como presidente Dick Cheney, vice-presidente dos Estados Unidos durante o governo de George W. Bush. Foi contratada em 2005 para construir campos de detenção temporária nos Estados Unidos, voltados à retenção de imigrantes. 2 Milícia composta por voluntários armados, cuja atividade é caçar imigrantes ilegais que tentam transpor a fronteira entre o México e os EUA.

Inicialmente, andaríamos para o sul em direção ao México e, depois, caminharíamos de volta rumo ao norte, nos EUA, na tradição das esculturas andantes de Richard Long, dos gestos de psicogeografia situacionista e das obras de arte x-border do artista Heath Bunting; 5) distribuição da Ferramenta para Imigrantes Transfronteiras a comunidades de imigrantes nos dois lados da fronteira, para uso no desenvolvimento do projeto. Cada ferramenta receberia uma etiqueta de projeto de arte desenvolvido pelo Electronic Disturbance Theater e pelo b.a.n.g lab (bang.calit2.net). Seria solicitado que todos os usuários devolvessem o dispositivo, uma vez que tivessem atingido com segurança um dos pontos de apoio, para atualizações e distribuição posterior. Projeto financiado pelo Arts and Humanities (Transborder Grant 2007-8), da Universidade de San Diego na Califórnia. Desenvolvido em parceria por Electronic Disturbance Theater e b.a.n.g lab Pesquisadores líderes: Micha Cardenas e Jason Najarro

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EM BUSCA DE UMA PERFORMANCE DE REALIDADE MISTA DO TAMANHO DA CIDADE BLAST THEORY

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INTRODUÇÃO O projeto Citywide explora o potencial das tecnologias móveis de realidade mista para criar performances que atravessam a cidade. Participantes nas ruas experimentarão eventos que acontecem num mundo virtual paralelo, conectado e sobreposto à cidade de várias formas. Ao mesmo tempo, participantes on-line que estão acessando o mundo virtual pela internet vão experimentar eventos que acontecerão nas ruas. Citywide explora a cidade como uma área culturalmente impregnada e com grande potencial criativo. Artisticamente, o projeto pretende articular os espaços entre realidades mundanas (como andar de ônibus ou metrô) e projeções fantásticas (em geral, derivadas do cinema e da televisão) de enredos e ações, nos quais a cidade está inscrita por possibilidades não imaginadas. Tecnicamente, o projeto pretende gerar novas interfaces móveis de realidade mista, capazes de servir de suporte para interações ricas e dinâmicas entre os mundos físico e virtual, tanto em ambientes internos quanto em ambientes externos, na escala física da cidade. A longo prazo, somos orientados pelas amplas discussões de pesquisa listadas a seguir:

• de que forma a emergência de tecnologias móveis de realidade mista combinadas a mudanças nos modos de percepção cultural criam oportunidades para novas formas culturais? • de que forma a cidade é inscrita por narrativas ficcionais, particularmente filmes, e como isso pode ser usado para desenvolver experiências interativas ao redor da cidade? • como as experiências de realidade mista móvel podem ser estruturadas e que tecnologias devem ser desenvolvidas para dar suporte a esse processo?

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• que papel os artistas podem ter no desenvolvimento das tecnologias móveis emergentes?

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O projeto envolve a colaboração entre o Equator, pesquisa interdisciplinar financiada pelo Engineering and Physical Sciences Research Council (EPSRC), e o grupo de artistas Blast Theory. O Equator é um programa de pesquisa com duração de seis anos, que investiga “o entrelaçamento entre interação física e digital”1. Iniciado em 2001, envolve pesquisadores de ciências sociais e da computação, eletrônica, psicologia, arte e design, espalhados por oito organizações acadêmicas no Reino Unido. O Blast Theory é um grupo de artistas sediado em Londres que faz apresentações ao vivo em teatros, clubes, galerias e ruas2. Os quatro membros do Blast Theory desenvolveram projetos cross-platform com tecnologia de computação e vídeo. Seus trabalhos anteriores incluem 10 Backwards, Kidnap e Something American. Citywide leva adiante a colaboração anterior entre o Blast Theory e os pesquisadores de Nottingham, que resultou em Desert Rain, uma performance de realidade mista em que, a cada vez, seis participantes interagiam em um ambiente colaborativo virtual, projetado numa “cortina de chuva, uma tela criada com jatos d’água que podia ser atravessada pelos participantes e performers (mais conceitualmente, um exemplo de “interface transpassável”). Estudos etnográficos de Desert Rain, em sua turnê pela Europa, levaram a insights sobre o processo de orquestração — o modo como performers e equipe modelaram as experiências dos participantes e como as tecnologias envolvidas ajudaram e obstruíram esse processo3. O novo projeto Citywide está ativo desde 2001. A primeira fase (de fevereiro a outubro de 2001) compreendeu uma série de oficinas intensivas, com duração de uma semana, para propor e rapidamente testar diferentes técnicas e tecnologias para sobrepor um ambiente virtual na cidade. A fase seguinte envolveu uma primeira performance pública chamada Can You See Me Now?4, encenada em Sheffield, em 30 de novembro e 1º de dezembro, como parte do Shooting Live Artists, uma nova iniciativa estratégica entre Arts Council England, BBC, Studio of the North e b.tv, estes dois últimos ligados à Yorkshire Media Production Agency. Neste artigo, resumiremos o progresso de Citywide até hoje, apresentamos as 1 www.equator.ac.uk. 2 www.blasttheory.co.uk. 3 KOLEVA, Boriana; TAYLOR, Ian; BENFORD, Steve; ROW-FARR, Ju; ADAMS, Matt, et al “Orchestrating a mixed reality performance”. In: Proceedings of the SIGCHI Conference on human factors in computing systems. Nova York: ACM, 2001, p. 38-45. 4 www.canyouseemenow.co.uk.

tecnologias que emergiram dos primeiros workshops e fornecerem um panorama de Can You See Me Now?. A partir disso, discutiremos algumas das lições e questões de design que surgiram dessas experiências. TESTANDO INTERFACES PARA A CIDADE Começamos com o problema desafiador de acessar um ambiente virtual como se ele estivesse sobreposto à cidade; em outras palavras, dar suporte, nas ruas da cidade, à realidade aumentada (AR, na sigla em inglês). A abordagem arquetípica para AR usa dispositivos “vestíveis” ou portáteis para completar uma experiência do ambiente físico pelo participante. Por exemplo, é possível utilizar um computador vestível com dispositivos especializados de entrada e saída e mecanismos de rastreamento (como um capacete que funciona como tela). Isso permite aos participantes receber ou recuperar informações relevantes ao contexto, sobrepostas à experiência física normal dos espaços e/ou artefatos. Como alternativa, eles podem carregar um dispositivo portátil. Uma aplicação típica para esse tipo de sistema foi a produção de guias eletrônicos, em que visitantes recebem informações sobre o lugar em que se encontram. Essa classe de produto vai de sistemas baseados em museus5 a guias de cidades e regiões mais amplas6. Experiências anteriores com realidade aumentada em espaços externos resultaram em um número de desafios de design de solução complicada. Por exemplo, Azuma7 descreve monitores de difícil visualização na presença de luz solar, rastreadores com precisão variável e limites para a portabilidade, especialmente em função das especificações de energia. Nossas primeiras oficinas do projeto Citywide exploraram a forma de criar performances diante dessas restrições. Também proporcionaram sessões de brainstorming e modelaram abordagens alternativas para aumentar as ruas da cidade, de modo que pudessem ser especialmente talhadas para aplicações artísticas. A seguir, descrevemos brevemente seis interfaces que emergiram desses workshops iniciais:

• o uso de orelhões para criar túneis de áudio entre mundos físicos e virtuais; 5 BENELLI, Giuliano; BIANCHI, Alberto; MARTI, Patrizia; NOT, Elena e SENNATI, David. “HIPS: Hyper-interaction within physical space”. In: IEEE International Conference on Multimedia Computing and Systems (ICMCS’99). Washington: IEEE Computer Society, 1999, v. 2, p. 1075. 6 CHEVERST, Keith et al. “Developing a context-aware electronic tourist guide: some issues and experiences”. In: Proceedings of the CHI 2000 Conference on human factors in computing systems. Nova York: ACM, 2000, p. 17-24. 7 AZUMA, Ronald. “The challenge of making augmented reality work outdoors”. In: OHTA, Yuichi e TAMURA, Hideyuki (ed.). Mixed reality: merging real and virtual worlds. Tóquio/Nova York: Ohmsha/Springer, 1999.

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• a extensão deles para telefones móveis; • a combinação de PDA, dispositivo de GPS e redes sem fio para criar um medidor de atividade digital, uma interface para localizar pontos ativos em mundos virtuais paralelos e exibi-los numa tela de radar; • um segundo medidor de atividade digital que produz uma “sonificação”, gerando áudio em vez de exibição visual; • uma tela portátil montada sobre tripé chamada “augurscópio”, pela qual os usuários podem enxergar atividades virtuais em espaços externos; • a projeção de um mundo virtual no espaço público, na forma de sombras virtuais. Cada interface estabelece um tipo de relacionamento entre o ambiente físico e um mundo virtual sobreposto. E cada uma responde de maneira diferente a um espectro de questões secundárias de design, como será discutido mais adiante.

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TÚNEIS DE ÁUDIO USANDO ORELHÕES Em nosso primeiro protótipo de interface, um usuário on-line, movendo-se por um mundo virtual, aproxima-se de um orelhão virtual. Essa aproximação automaticamente dispara uma ligação para o orelhão físico correspondente, estabelecendo um canal de áudio entre ele e a parte análoga do mundo virtual paralelo. A figura 1 mostra um avatar se aproximando do telefone no mundo virtual para fazer uma chamada.

Esse exemplo mostra que a realidade aumentada pode explorar dispositivos que já estão inseridos no mundo físico como uma forma de permitir aumentos. Orelhões são um componente estabelecido em muitas paisagens urbanas, permitindo uma ponte potencial entre espaços físicos e virtuais. As localizações de orelhões podem ser determinadas com antecedência e usadas para permitir atividades no mundo virtual, as quais serão ouvidas no mundo físico. Imagens Cedidas pelo Blast Theory Essa comunicação também pode ocorrer Figura 1: usuário virtual se aproxima de em duas vias, com a informação em áudio um orelhão para estabelecer um túnel de áudio com o mundo físico do orelhão ficando disponível para usuários virtuais. O resultado cria um

túnel de áudio entre os mundos físico e digital. TÚNEIS DE ÁUDIO USANDO CELULARES Os telefones celulares são amplamente utilizados, em especial na Europa, na América do Norte e na Costa do Pacífico. Assim como os telefones fixos, são tecnologias já estabelecidas, que podem ser apropriadas para dar suporte à realidade aumentada, no lugar de um dispositivo completamente novo. Em nosso segundo protótipo, um celular foi acessado do mundo virtual do mesmo modo que no exemplo anterior — ou seja, um participante virtual pôde efetuar uma chamada para um telefone celular ao chocar-se com ele. Além disso, equipando o aparelho com uma tecnologia de rastreamento, foi possível que mudanças em sua posição se refletissem no mundo físico. Como resultado, o usuário do telefone celular pôde se deparar com objetos virtuais enquanto se movia pela cidade, ou encontrar outros participantes e receber chamadas deles. Há trabalhos em andamento sobre o posicionamento de telefones usando apenas a amplitude do sinal de rádio de sua rede para, por exemplo, permitir serviços de emergência em ligações locais; contudo, essa informação geralmente não está disponível (por motivos de segurança e privacidade). Em vez disso, a abordagem que testamos baseou-se no uso de um receptor GPS e um PDA (um PalmPilot), conectados a um telefone celular, Figura 2: telefone celular com PDA e receptor GPS que notifica o mundo virtual por meio de uma mensagem SMS quando o celular se move fisicamente. A figura 2 mostra o equipamento móvel carregado pelo usuário (à esquerda) e uma imagem correspondente de seu avatar em um ambiente virtual (à direita) em que o túnel de áudio está ativo (conforme indicado pela presença da pirâmide amarela sobre sua cabeça). UM MEDIDOR DE ATIVIDADE DIGITAL COM TELA DE RADAR Há vários dispositivos, na ficção e na realidade, especialmente elaborados para situar objetos, lugares e atividades no mundo físico. Contadores Geiger são usados para localizar fontes de radioatividade; medidores de energia psicocinética são utilizados por investigadores paranormais para detectar presenças e atividades de

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outro mundo; e medidores de resistividade são empregados por arqueólogos para localizar artefatos e prédios históricos. Inspirados por esses aparelhos, criamos dois “medidores de atividade digital” portáteis. Eles avisam o usuário no caso de atividade digital próxima, como avatares ou objetos virtuais em um mundo virtual paralelo. Essas interfaces são projetadas para dar suporte a atividades de busca — permitem, por exemplo, que um participante se hospede em conteúdos digitais dentro de um espaço mais amplo, porém menos aumentado, como uma cidade. Nosso primeiro protótipo combina um PDA (um Compaq iPAQ), um receptor GPS para determinar a posição física do usuário, e uma rede sem fio 802.11b para comunicação com o servidor do mundo virtual. Ele fornece ao usuário uma tela em estilo radar, que aponta posições relativas de artefatos e avatares próximos no mundo virtual. A figura 3 mostra o radar indicando a Figura 3: medidor de presença de dois avatares próximos, simbolizados por atividade digital, com pontos no círculo central. tela do radar virtual 192

exibindo avatares próximos

UM MEDIDOR DE ATIVIDADE DIGITAL COM TELA SONORA Nosso segundo protótipo emprega um medidor abstrato de áudio em vez de gráficos 2D para dar ao usuário informações sobre objetos virtuais próximos. Cada um desses objetos é associado a seu próprio som. Conforme eles se movem pelo ambiente físico, o usuário ouve uma mistura de tons que indica a sua proximidade relativa (cada som aumenta em volume e frequência quando o objeto se aproxima). A busca é geralmente um elemento único de sistemas de realidade aumentada do tipo guia ou propósito geral (como descrito por Cheverst8). Em contrapartida, essas interfaces permitem procurar uma atividade em si, e buscar pode ser tão significativo quanto encontrar. Um teste inicial da aplicação foi baseado em uma experiência de arqueologia virtual, em que usuários procuraram artefatos virtuais “escondidos”, e os “trouxeram de volta” a uma instalação física para vê-los em detalhe9. A figura 4 mostra dois usuários no mundo físico (à esquerda), buscando um objeto virtual — um fragmento de tigela — no mundo virtual paralelo (à direita). O avatar à direita mostra 8 CHEVERST, Keith et al. Op. cit. 9 BENFORD, Steve; BOWERS, John et al. “Unearthing virtual history: using diverse interfaces to reveal hidden virtual worlds”. In: Ubicomp 2001: ubiquitous computing. Berlim: Springer, 2001, Série Lecture Notes in

Computer Science.

sua posição atual no mundo virtual, de acordo com o rastreamento GPS. O “AUGURSCÓPIO” — UMA TELA PORTÁTIL SOBRE TRIPÉ O augurscópio (figura 5) é uma interface portátil de realidade aumentada para uso por grupos pequenos em lugares abertos (interiores ou exteriores)10. É utilizado para visualizar, diretamente, mundos paralelos virtuais, como após a localização de conteúdos particulares por meio de um Figura 4: medidor de atividade digital. localizando O augurscópio consiste em um laptop, parte de uma montado sobre um tripé. Um receptor GPS tigela virtual (para uso externo) e um compasso eletrônico fornecem informações de localização global. Um acelerômetro e um codificador rotatório permitem que o ponto de vista virtual seja manipulado interativamente por movimentos do dispositivo físico sobre o tripé. De acordo com o movimento, a tela do laptop muda para exibir a vista equivalente do mundo virtual, possibilitando aos usuários visualizar o mundo virtual ao lado da parte correspondente do mundo físico. O augurscópio é um dispositivo público projetado para que um pequeno grupo de usuários possa se reunir em torno de uma vista para um mundo virtual. Nossa Figura 5: o augurscópio em uso primeira aplicação-teste teve como proposta permitir que membros do público vissem um modelo 3D do castelo medieval de Nottingham conforme eles se movimentavam em torno do lugar onde está seu primeiro substituto do século XVIII11. SOMBRAS VIRTUAIS COMO PROJEÇÕES PÚBLICAS Nosso protótipo final de interface foi inspirado nas sombras do dia a dia. Elas proporcionam projeções indiretas de atividades e objetos físicos em superfícies públicas, tipicamente ambientes externos, formando figuras ao mesmo tempo 10 SCHNÄDELBACH, Holger et al. “The augurscope: a mixed reality interface for outdoors”. In: Proceedings of the SIGCHI conference on human factors in computing systems: changing our world, changing ourselves. Nova York: ACM, 2002, p. 9-16. 11 SCHNÄDELBACH, Holger et al. Op. cit.

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familiares e distorcidas (e potencialmente de estética interessante). Em momentos anteriores, vários artistas incorporaram sombras como telas secundárias de atividade virtual em instalações reais (ver, por exemplo, a instalação de 1995 de Char Davies chamada Osmose)12. Nossas oficinas resultaram em experiências com sombras virtuais, projeções de mundos virtuais em espaços públicos que são deliberadamente simplificados e distorcidos (como uma sombra) para propiciar um sentido de presença e atividade virtual sem a necessidade de posicionamento preciso ou gráficos 3D sobrepostos. O objetivo primeiro é criar um ambiente ou uma tela impressionista, particularmente voltada a passantes e grupos maiores ou multidões, que não são tipicamente dirigidos pelas interfaces AR atuais. Uma projeção de sombra pode ser percebida como um panorama numa localização particular dentro de um mundo virtual, o qual é, então, projetado em um lugar (público) que normalmente corresponde a sua localização virtual. Conforme os usuários e objetos se movem no mundo virtual, as sombras projetadas no mundo físico mudam, seguindo o mesmo padrão de movimento. Por exemplo, conforme meu avatar passa por um lugar específico numa rua virtual, sua sombra aparece na localização correspondente na rua física. Sombras virtuais podem ser complementadas por projeções sonoras que transmitam a atividade em áudio de objetos virtuais enquanto eles passam. A figura 6 mostra um exemplo de projeção de sombras virtuais de avatares na lateral de um prédio alto. Essas sombras foram projetadas à distância de aproximadamente 200 metros, usando-se um projetor equipado com lente de longo alcance. Ao contrário da maioria das interfaces descritas até agora, os dispositivos que produzem projeções de sombras são tipicamente fixos e embutidos no ambiente, e não móveis. No entanto, também experimentamos uma abordagem intermediária (semimóvel), rodando projetores e PCs da parte traseira de uma van estacionada, por meio de um gerador de energia. Outra possibilidade seria usar projetores e câmeras direcionáveis, conforme descrito por Pinhanez13. CAN YOU SEE ME NOW? Após nossas oficinas exploratórias iniciais, a segunda fase do projeto Citywide consistiu na montagem de uma primeira performance pública, chamada Can You See Me Now? [Você pode me ver agora?]. Nossa intenção era escolher uma abordagem para criar uma performance de realidade mista do tamanho da cidade, refiná-la e testá-la publicamente, para determinar se poderíamos criar uma experiência excitante e 12 www.immersence.com. 13 PINHANEZ, Claudio. “Using a steerable projector and camera to transform surfaces into interactive displays”. In: CHI 2001 Extended abstracts on human factors in computing systems. Nova York: ACM, 2001, p. 369-70.

atraente e também para explorar questões a respeito do desdobramento público. Era central para Can You See Me Now? o relacionamento entre os até vinte jogadores on-line (membros do público usando a internet), que se moviam pelo mapa de Sheffield, e os três corredores (membros do Blast Theory), que se deslocavam pelas ruas de Sheffield. Os corredores perseguiam os jogadores. E estes evitavam ser “vistos”. A experiência dos jogadores começava na homepage de Can You See Me Now?, na qual eles escolhiam um nome para si mesmos como resposta à mensagem “Quem você está procurando?”. Eles, então, juntavam-se à fila do jogo e, finalmente, de lá eram soltos no mapa de Sheffield. Os jogadores usavam as setas do teclado para se mover pelo mapa e não podiam sair dele nem entrar em prédios sólidos e outras áreas restritas. O jogador era representado por um par de ícones no mapa. Um ícone branco simples mostrava sua posição naquele momento, de acordo com o cliente local, fornecendo informações imediatas sobre seu movimento. Um ícone azul indicava sua posição em relação ao servidor do jogo, movendo-se no rastro do ícone branco com uma defasagem de alguns poucos segundos (em função do atraso na comunicação entre o cliente e o servidor na internet, e do tempo necessário para processar os movimentos dos jogadores no servidor). Outros jogadores eram representados por ícones azuis. Já os corredores apareciam como ícones laranjas. Cada jogador podia trocar mensagens de texto com os demais. Além disso, o áudio dos walkie-talkies dos corredores era transmitido para os jogadores pela internet para que eles pudessem ouvir suas comunicações (o que, claro, era um diálogo encenado, criado deliberadamente como parte da performance). Os jogadores continuavam a se deslocar e a enviar torpedos até que um corredor chegasse perto o suficiente para que eles fossem vistos. Nesse ponto, eram

Figura 6 (acima): sombras virtuais projetadas em um edifício Figura 7 (à direita): tela da interface vista pelos jogadores

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removidos do jogo (mesmo que pudessem entrar novamente na fila). A interface dos jogadores foi implementada como um filme shockwave conectado a um servidor FuseLite em Nottingham. A figura 7 mostra uma tela da interface dos jogadores a partir de um cliente shockwave. Os corredores também viam o mapa de Sheffield mostrando suas posições, assim como a posição dos jogadores e suas mensagens de texto. Ao contrário do mapa dos jogadores, o dos corredores permitia dar zoom entre uma posição global e o close de uma visão local, centralizada com base em sua posição naquele momento. Essa interface foi fornecida a eles num Compaq iPAQ a partir de um servidor em um prédio vizinho, por meio de uma rede local 802.11b. A performance aconteceu numa área de Sheffield de mais ou menos 1,3 quilômetro quadrado, que consistia em uma mistura de espaços abertos e ruas estreitas, cortadas por prédios altos. Para estabelecer uma rede sem fio com amplitude e cobertura suficientes, tivemos de colocar uma antena omni de alta potência e com 8 metros de altura no topo de um prédio, e complementá-la com uma omni aérea menor e de menos potência, de modo a reforçar a cobertura no nível das ruas. Um receptor GPS plugado na porta serial do iPAQ rastreava a posição dos corredores enquanto eles se moviam pelas ruas — essa informação era enviada para o servidor por meio da rede sem fio. A dupla iPAQ e GPS foi fixada em uma prancha de madeira que podia ser colocada numa sacola plástica para aumentar a rugosidade, facilitar o transporte e permitir proteção mínima contra umidade. Os corredores também usaram walkieFigura 8: um corredor talkies com fones de ouvido e microfones, e carregaram câmeras digitais para fotografar os lugares em que cada jogador era pego. As imagens resultantes estão sendo usadas para construir um arquivo final no site dessa performance. A figura 8 mostra um dos corredores com o kit, pronto para partir. Já a figura 9 apresenta a interface do mapa de um corredor a partir de um iPAQ. A performance aconteceu entre 17h30 e 21h da sexta-feira 13 de novembro (período de escuridão em Sheffield nessa época do ano) e no sábado 1º de dezembro, em dois horários, das 13h às 14h30 e das 15h30 às 17h (a maior parte do tempo sob a luz, com a escuridão começando apenas no final do período). Portanto, ao todo foram seis horas e meia de tempo Figura 9: interface de um iPAQ exibida aos corredores de performance ao vivo. Durante esse tempo, 214 jogadores

participaram pela internet. Desses, 135 foram pegos, 76 saíram e 3 nunca foram pegos. A melhor “pontuação” (tempo sem ser pego) foi 50 minutos. A pior foi 13 segundos. O mecanismo primário para obter retorno do público foi o website. Além disso, dois etnógrafos observaram brevemente a performance de sábado, tomando notas e fazendo filmagens para análise posterior. Também preparamos nosso software para registrar todos os movimentos dos jogadores e corredores, de forma que depois eles pudessem ser estatisticamente avaliados. No momento da redação deste artigo, a análise etnográfica e estatística ainda está em andamento. Todavia, nossa percepção inicial (e informal), apoiada em algum retorno do público, é de que houve momentos em que a experiência foi genuinamente excitante para os jogadores on-line (ela certamente o foi para os corredores!). Nas palavras de dois jogadores: Joguei e achei que foi fantástico. Fui realmente tomado pela adrenalina, o que me surpreendeu. Só consegui chegar ao mapa uma vez, por cerca de quinze minutos. Não lembro o nome que usei, mas foi bastante enervante ouvi-lo pela primeira vez. 197

A seguir, vamos explorar mais profundamente alguns fatores que contribuíram para isso, assim como outras questões de projeto que emergiram em Can You See Me Now? e nos primeiros workshops. QUESTÕES EMERGENTES

Citywide é claramente um trabalho em progresso. Esta seção reflete sobre algumas das principais lições aprendidas até agora. COMBINANDO DIFERENTES INTERFACES

Começamos por refletir sobre as funções potenciais das várias interfaces testadas até hoje para a criação de performances espalhadas pela cidade. De diferentes formas, cada interface chama a atenção para um conjunto de questões de design: • que tipo de atividade essa interface suporta melhor (por exemplo, alertar um participante sobre uma atividade virtual nos arredores, buscar atividades numa área maior, observar essa atividade, ou servir como uma tela periférica para transeuntes)? • quantos usuários compartilham a interface ao mesmo tempo (seu uso poderia ser individual, por pequenos grupos ou por uma multidão)?


• é uma facilidade tecnológica a qual se espera que os participantes tragam consigo, está disponível no ambiente ou trata-se de uma tecnologia desenvolvida sob medida, que será fornecida por seus produtores? • a interface está fixada no ambiente ou é móvel e, portanto, pode ser transportada pelos participantes? • que rede e sistema de rastreamento são usados e como o dispositivo é alimentado? túnel de áudio túnel de áudio orelhão celular atividade

augurscópio

medidor de medidor de atividade visual atividade sonora

sombra

Alertar/Ouvir

Alertar/Ouvir

Alertar/Ouvir

Buscar

Buscar

Periférico

número de usuários

Individual

Individual

Grupo

Individual

Grupo

Multidão

disponível/ fornecido

Dispon.

Dispon.

Forn.

Forn.

Dispon./Forn.

Forn.

fixo/ móvel

Fixo

Móvel

Móvel

Móvel

Móvel

Fixo

Telefone em rede

Celular / SMS

802.11 LAN

802.11 LAN

802.11 LAN

Internet sem fio

rastreamento

Nenhum

GPS

GPS + acelerador rotatório

GPS

GPS

Nenhum

energia

Própria

Bateria

Bateria

Bateria

Bateria

Principal/gerada

rede

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Propomos que uma performance espalhada pela cidade precisa combinar um amplo espectro de dispositivos em apenas uma experiência, para integrar diferentes tipos de participantes e atividades (como a opção entre atrair transeuntes para que se envolvam versus dar suporte a participantes ativos que estão em busca de conteúdo virtual) e identificar restrições locais em diferentes partes da cidade (o GPS funciona bem? Este lugar é uma ilha com conexão 802.11b? Tem fonte de energia disponível?). Por exemplo, as projeções de sombra e os orelhões podem fornecer aos passantes alguma amostra da experiência ou atraí-los para dentro. Interfaces baseadas em celulares podem, então, permitir que eles naveguem para locais-chave na cidade, onde interfaces elaboradas sob medida oferecem uma experiência mais rica do mundo virtual. Em contrapartida, essa abordagem requer o suporte de uma plataforma de software que seja capaz de integrar diferentes tipos de interfaces fixas e móveis com um mundo virtual. A plataforma para esta finalidade está atualmente sendo desenvolvida pelo Equator, o que pode ser observado em seu site.

ORQUESTRAÇÃO Em Computers as theatre, Brenda Laurel propôs uma abordagem para interação na qual computadores são considerados uma forma de teatro em vez de uma ferramenta, e em que o foco do projeto é envolver os usuários com conteúdo e não com tecnologia14. Desse modo, Laurel descreveu como várias atividades de bastidores são necessárias para manter o engajamento e orquestrar as experiências de usuários. As performances mediadas por computadores são, por certo, literalmente computador como teatro — e, assim, é preciso enfrentar de fente a questão da orquestração de frente. Experiências anteriores com programas de TV e teatro exibidos on-line, em ambientes virtuais colaborativos, desenvolveram ferramentas de orquestração que permitem à equipe de produção monitorar e interferir nas atividades do mundo virtual15, 16. Estudos etnográficos de Desert Rain revelaram como os performers podem monitorar eventos, intervir e comunicar, tanto em espaços virtuais como físicos, para orquestrar performances de realidade mista17. Esses processos tornaram-se mais complexos nas performances de Citywide por causa da natureza distribuída dos participantes e dos espaços pelos quais eles se movem — participantes físicos podem estar espalhados pela cidade e participantes on-line podem estar em qualquer lugar na internet. Movimentos pela cidade duram um tempo potencialmente longo e imprevisível, o que se soma à dificuldade de coordenar ações. Para orquestrar Can You See Me Now?, criamos uma sala de controle em Sheffield, de onde o evento era gerenciado. Estas eram algumas das tecnologias de monitoramento:

• interface dedicada ao gerenciamento de jogo, que mostrava a posição de todos os jogadores e corredores no mapa; • computador monitorando informação GPS dos corredores e outro monitorando a força de seus sinais LAN; • laptop rodando com um jogador-padrão, de modo a permitir que as pessoas presentes na sala de controle entrassem no jogo. 14 LAUREL, Brenda. Computers as theatre. Upper Saddle River: Addison-Wesley, 1993. 15 DROZD, Adam et al. “Collaboratively improvising magic: an approach to managing participation in an on-line drama”. In: European conference on computer-supported cooperative work (ECSCW’01). Norwell: Kluwer, 2001, p. 159-78. 16 GREENHALGH, Chris M.; BENFORD, Steve; TAYLOR, Ian; BOWERS, John; WALKER, Graham e WYVER, John. “Creating a live broadcast from a virtual environment”. In: Proceedings of the 26th Annual Conference on Computer Graphics (SIGGRAPH’99). Nova York: ACM, 1999, p. 375-84. 17 KOLEVA, Boriana; TAYLOR, Ian; BENFORD, Steve; ROW-FARR, Ju; ADAMS, Matt et al. Op. cit.

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Os corredores usaram uma segunda frequência nos walkie-talkies para comunicação privada com a sala de controle, não transmitida aos jogadores. Telefones celulares foram utilizados como segunda opção e também para contato com a base em Nottingham. Intervenções eram possíveis pela interface de gerenciamento do jogo (em ações como a remoção de um jogador), pelo áudio transmitido ou pela entrada de um membro do time de controle no jogo. Um time de controle típico incluía uma pessoa monitorando o jogo, uma monitorando as redes GPS e LAN sem fio, e uma terceira responsável por ajudar os jogadores com os kits conforme eles entravam no jogo e por trocar regularmente as baterias de seus dispositivos sem fio. Ao avaliar essa configuração, acreditamos que poderia ter sido melhorada em vários aspectos. Não havia, provavelmente, informação disponível suficiente sobre o número de pessoas pedindo para entrar no jogo e sobre seu status (ter mais informações poderia ter apontado antecipadamente alguns problemas no servidor). O gerenciamento de bateria para os corredores foi a principal dor de cabeça, e dados de telemetria que mostrassem sua disponibilidade de energia teriam ajudado. Olhando para o futuro, seria interessante explorar interfaces de orquestração mais integradas (como uma projeção compartilhada na sala de controle, mostrando o status dos corredores e jogadores de maneira mais integrada). Outra possibilidade é trabalhar com interfaces móveis de orquestração que possam cobrir uma área mais ampla da cidade. Chegamos a experimentar brevemente uma interface do tipo em nossos primeiros workshops, quando foi oferecida uma rede 802.11b de uma van (uma “LAN em uma van”) e participantes foram monitorados nas ruas, por GPS, a partir da interface de um laptop. A IMPORTÂNCIA DO ÁUDIO EM TEMPO REAL As apresentações teatrais e programas de TV on-line anteriores demonstraram a importância crítica do áudio em tempo real como um meio primário através do qual a performance é alcançada e o conteúdo, transferido para eventos on-line18. Isso se deve, talvez, à natureza empobrecida dos gráficos 3D em tempo real em comparação à riqueza do filme e do vídeo; os avatares ainda são bastante duros, o que torna a voz o principal meio de expressão. Estudos de Desert Rain apontaram um segundo papel para o áudio: um meio pelo qual os performers podem emitir instruções aos participantes inseridos em uma performance dramática, e sutilmente orquestrar sua experiência. 18 DROZD, Adam et al. Op. cit.

O áudio desempenhou dois papéis vitais em Can You See Me Now?. Primeiro, foi o mecanismo primário por meio do qual os performers provocaram suspense e excitação nos jogadores (como observado no segundo depoimento do intertítulo Can You See Me Now?). Segundo, os performers usaram o áudio para descrever o cenário das condições nas ruas de Sheffield. Conversas por walkie-talkies foram construídas deliberadamente para mostrar, por exemplo, a presença de trânsito, morros, muros e outros obstáculos do mundo real. Os performers também escolheram revelar aspectos de infraestrutura, como imprecisões nas informações rastreadas por GPS ou problemas com bateria. Jogadores que estivessem sensíveis a essa performance podiam usar tais dicas para afinar e ajustar sua táticas adequadamente (como atravessar ruas ou subir morros). Nesse caso, o fluxo de áudio compensava a falta de detalhes no mapa. Todavia, todos os mapas e modelos 3D, não importando quão detalhados fossem, são abstrações da realidade; logo, o uso de áudio em tempo real parece oferecer, dessa forma, uma maneira efetiva e dramática de condições de comunicação em solo para uma série de aplicações performáticas. RESUMO E TRABALHO FUTURO Até agora, nosso trabalho gerou novas interfaces de realidade mista para exteriores; identificou questões-chave a ser abordadas na encenação de performances de larga escala; e nos convenceu de que é possível criar experiências excitantes baseadas no relacionamento entre participantes on-line e outros nas ruas da cidade. Os passos para o futuro envolvem mais duas performances públicas. A primeira, Bystander, foi planejada para ocorrer em Duisberg, Alemanha, em junho de 2002, como parte do festival Theater der Welt. Os planos atuais são colocar as interfaces móveis nas mãos do público e criar uma experiência mais variada com base em uma viagem pela cidade. Planejamos, então, migrar para uma performance que cubra toda uma cidade, a ser realizada em Londres, em 2003. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ADICIONAL HÖLLERER, Tobias et al. “Exploring MARS: developing indoor and outdoor user interfaces to a mobile augmented reality system”. In: Computers & Graphics. Mariland Hights: Elsevier Publishers, 1999, v. 23, p. 779-85.

Este trabalho foi apoiado pelo Engineering and Physical Sciences Research Council (EPSRC) através da Equator, pela EU através do projeto Shape (como parte da Disappearing Computer Initiative) e pelo Arts Humanities Research Board através da bolsa AR13714.

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KIT DE FERRAMENTAS PARA UM JARDIM SONORO TÁTICO [TSG, TACTICAL SOUND GARDEN] MARK SHEPARD

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Dada a ubiquidade dos dispositivos móveis e das redes sem fio, e sua proliferação por áreas urbanas cada vez mais diversas e, às vezes, inesperadas, que oportunidades — e dilemas — emergem para o projeto de espaços públicos nas cidades contemporâneas? O Tactical Sound Garden (TSG) é uma plataforma de software livre para o cultivo de jardins sonoros em cidades contemporâneas. Apoia-se na cultura da jardinagem comunitária para oferecer um ambiente participativo no qual podem ser exploradas e avaliadas novas práticas espaciais para interação social em ambiente mediado tecnologicamente. Levando em conta o impacto de aparelhos de áudio como o iPod, o projeto examina gradações de privacidade e publicalidade no âmbito do espaço público contemporâneo. O kit de ferramentas TSG permite a qualquer pessoa que viva em hot zones com conexão sem fio 802.11 (Wi-Fi) instalar um jardim sonoro para uso público. Utilizando um aparelho móvel com Wi-Fi ativo (PDA, laptop, telefone celular), os participantes plantam sons dentro de um ambiente de áudio posicional. Essas plantações são mapeadas de acordo com as coordenadas de sua localização física por um mecanismo de áudio 3D comum a jogos de computador — sobrepondo uma paisagem sonora construída publicamente a um espaço urbano específico. Com fones de ouvido conectados a um aparelho com Wi-Fi ativo, os participantes flutuam por jardins sonoros virtuais plantados por outros conforme se movem pela cidade.

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O SOM E A CIDADE A dimensão sonora das cidades ainda não foi devidamente examinada em terrenos públicos. Atualmente, na maioria das vezes, pensamos em como as cidades são barulhentas e disruptivas, e tentamos controlar seus sons com leis. Trânsito, sirenes de polícia, alarmes de carro que disparam por negligência, pedreiros consertando com marteladas matinais um hidrante que jorra, ou vizinhos mais velhos com dificuldades de audição vendo televisão em volume mais alto — cada um a sua maneira amparado por alguma lei ou estudo de impacto ambiental (ou, ocasionalmente, pela intervenção de outros vizinhos). Ao mesmo tempo, existem práticas cotidianas comuns por meio das quais o espaço sônico da cidade é ocupado e negociado. “Hackear” o espaço sonoro da cidade é uma prática tão antiga quanto a performance de rua, ou tão recente quanto o veículo com estéreo potente e subwoofers do tamanho do porta-malas, o Mitzvah Tank. Performances ad hoc divertem audiências cativas nos metrôs durante o trajeto matinal, e a microeconomia se desenvolve. Mais recentemente, o uso de aparelhos móveis de áudio, como o walkman e seu descendente, o iPod, oferece modos alternativos pelos quais a experiência auricular da cidade é aumentada e gerenciada por meio de implantes protéticos como os fones de ouvido. Do ponto de vista histórico, o trabalho teórico sobre a experiência urbana focou predominantemente o aspecto visual, no qual o sujeito urbano é tipicamente situado no âmbito de teorias a respeito do olhar e do espetáculo. Enquanto a crítica óptico-centrista está bem documentada, a cultura auditiva das cidades é considerada apenas de maneira elíptica. Georg Simmel, um dos maiores teóricos da metrópole moderna a surgir na filosofia e nas ciências sociais alemãs da virada do século XX, afirma:

funciona de maneira muito diferente da visão ao longo da vida cotidiana do habitante mediano das cidades. Não precisamos dirigir nossa atenção a sua fonte para ouvi-lo. Se a visão tem a tendência de focar objetos, o som é bem menos tangível. Ele move-se entre nós mais fisicamente que a visão, o que favorece a operacionalização de um senso mais prático de distância. Como observou André Malraux: “Ouve-se a voz dos outros com os ouvidos, e a própria com a garganta”2. O som é simultaneamente sentido pelo corpo e entendido pela mente. Ele é pervasivo de um jeito que o visual não é. O som é ouvido em um espaço compartilhado, de modo que todos os ouvidos contidos em determinada área sofrem o impacto das mesmas ondas sonoras. O som difere da visão na forma como os relacionamentos entre sujeito e objeto se estabelecem, e no alocamento e espaçamento da experiência urbana. É um espaço em que não basta fechar os olhos. Enquanto nossas pupilas e pescoço permitem desviar o olhar (mas não o olhar alheio), recorremos a implantes protéticos como fones de ouvido ou protetores auriculares para controlar o que ouvimos. A relação entre o som e as interações públicas na organização social e econômica da cidade é duradoura. A torre do sino e o muezim3 na torre da mesquita são dois exemplos. Ao marcar o tempo por meio do som — e usá-lo para convocar ações (trabalhar, rezar) —, esses recursos forneceram às corporações mercantis e religiosas uma ferramenta de controle e estabelecimento de hábitos sociais. As torres com relógios foram especialmente importantes nas cidades europeias engajadas na manufatura têxtil de larga escala, por exemplo, já que permitiam um meio uniforme de organizar o comportamento tanto dos trabalhadores quanto dos

Os relacionamentos interpessoais dos habitantes das grandes cidades são caracterizados por uma ênfase marcadamente acentuada no uso dos olhos em vez dos ouvidos. Isso pode ser atribuído à instituição dos transportes públicos. Antes de ônibus, rodovias e trens se tornarem amplamente consagrados, durante o século XX, as pessoas nunca haviam estado numa posição em que precisavam se fitar por minutos ou mesmo horas a fio sem trocar uma única palavra1.

Indicando uma experiência comum que surgiu com a introdução dos transportes de massa nas cidades, Simmel coloca o visual acima do auricular como fator dominante na formatação da experiência. Entretanto, será isso preciso? O som 1

BENJAMIN, Walter. Illuminations. Nova York: Harcourt, Brace & World, 1968.

Diagrama conceitual do TSG, em instalação típica numa esquina

Imagem Cedida por Mark Shepard

2 3

GODARD, Jean-Luc. Godard on Godard. Nova York: Da Capo Press, 1972, p. 241. Pessoa que, do alto da torre da mesquita, convoca os muçulmanos às orações. (N.T.)

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cidadãos. No século XIV, em Brussels, havia diferentes tipos de sino (werkeclockes) soando em diferentes horários, para sinalizar o início e o fim da jornada de trabalho para cada grupo de fiandeiros, trançadores, tecelões, trabalhadores do segmento tapeceiro e serralheiros4. No Iraque contemporâneo, o muezim serviu não apenas para identificar os chamados à reza islâmica, mas também para transmitir mensagens, organizando a resistência social ao poder dos ocupadores. A metrópole moderna trouxe uma série de novos sons ao ambiente público. A cidade ofereceu trilhas sonoras marcadamente diferentes das observadas nas cidades pré-industriais. Mais barulhenta e menos controlável, é esta a cidade que futuristas como Luigi Russolo tomam como inspiração: A vida antiga era só silêncio. No século XIX, com a invenção da máquina, nasce o ruído. Hoje, o ruído triunfa e reina supremo sobre as sensibilidades dos homens5.

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John Cage apropriou-se do chamado ruído em sua peça silenciosa 4’33”. Escrita em 1952, a composição emoldura temporariamente os sons ambientes que rodeavam uma dada performance (um avião acima da cabeça, sons de trânsito e sons involuntários do público) de uma peça silenciosa em três movimentos. A peça 4’33” foi, em parte, inspirada pela visita de Cage à câmara anecoica de Harvard, projetada para eliminar todo som; mas, em vez do silêncio esperado, Cage ouvia a pulsação de seu sangue e o assobio de seus nervos. Um ano antes, ele havia escrito Imaginary Landscape nº 4 para 24 performers, cada um ajustando o volume ou a sintonia de uma dúzia de rádios; ainda que a configuração dos botões fosse completamente prescrita, o resultado dependia das frequências e formatos de estações locais. A ecologia política de som, silêncio e ruído na vida cotidiana das cidades modernas também foi uma preocupação dos desenvolvedores de políticas. O Congresso americano tentou definir uma política nacional do ruído ao aprovar o Ato de Controle do Ruído de 1972. O ato atribuía à Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) o papel de líder na coordenação de todos os programas federais relacionados às pesquisas sobre ruído, assim como ao seu controle. Dez anos mais tarde (1982), todos os fundos para controle do ruído foram retirados da EPA, e hoje o país não tem uma política efetiva e abrangente para tratar do tema. A responsabilidade residual pelo controle do ruído ocupacional e ambiental recai, atualmente, sobre uma dúzia de agências do governo federal, assim como órgãos 4 CORBETT, J. Martin. “Sound organisation: a brief history of psychosonic management”. In: Ephemera, vol. 3, n. 4. http://www.ephemeraweb.org/journal/3-4/3-4corbett.pdf. 5 RUSSOLO, Luigi. The art of noises. Nova York: Pendragon Press, 1986.

estaduais e municipais. No entanto, as atividades dessas organizações são bastante desarticuladas e a aplicação da legislação existente para controle de ruído é, na melhor das hipóteses, esporádica — em alguns casos, inexistente. NAÇÃO iPOD Com o lançamento do walkman, pela Sony, em 1979, as políticas da dimensão auricular do espaço público migraram da regulamentação centralizada por meio da torre do sino, do muezim e das tentativas modernas de legislação, para um modelo descentralizado, baseado em aparelhos de som portáteis e pessoais, que criam ambientes sonoros de uso individual. O walkman fornece um meio de personalizar a experiência auditiva no espaço público no decorrer da vida diária. Ao mesmo tempo, esses aparelhos colocam novas questões referentes aos protocolos sociais no âmbito do espaço público. O projeto original do walkman, da Sony, incluía duas entradas para fones de ouvido e um botão laranja-claro (no qual havia a indicação talk), que interrompia temporariamente o som vindo do aparelho para permitir conversas entre pessoas que o estivessem ouvindo. Hoje, o iPod substitui o walkman como “aparelho da vez”, e sua penetração de mercado nos ambientes urbanos foi notada. O que se discute com menos frequência é como o aparelho e seu uso no contexto urbano estão gerando novas práticas espaciais e protocolos sociais no curso da vida cotidiana. Oferecendo uma camada de privacidade no âmbito do espaço público, o iPod mitiga a cacofonia dos ambientes urbanos ao permitir que seus usuários personalizem a experiência do espaço público com sua própria trilha sonora. Efetivamente, os aparelhos tornam-se ferramentas para organizar o espaço, o tempo e os limites ao redor do corpo no espaço público. Usar fones de ouvido em público não apenas fornece um meio de manter distância do mundo, mas também oferece um grau de escolha pessoal na criação de uma experiência auditiva da cidade. Seja no ônibus, no estacionamento durante o almoço, ao fazer compras na loja de conveniência — a cidade se torna um filme para o qual podemos compor a trilha sonora: Entro no ônibus indo para casa. Estou ouvindo rap. Pensando nos filmes a que assisti. Tentando encontrar em Os bons companheiros coisas que já vi em outros filmes. A viagem demora muito por causa do trânsito. Fico tão tenso que acabo me tornando um personagem de Os bons companheiros por quinze minutos. Chego à Our Price. Desligo o som, e tudo bem ser um personagem6. 6

BULL, Michael. Sounding out the city: personal stereos and the management of everyday life. Oxford: Berg, 2000, p. 92.

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Colocar fones de ouvido também garante certa licença social, pois permite que o usuário se movimente pelo espaço público sem necessariamente se envolver demais, e o libera da responsabilidade de responder ao que está acontecendo a sua volta. Algumas pessoas usam seus fones de ouvido para esquivar-se de atenção indesejada, achando mais fácil evitar respostas por parecerem ocupadas. Diante de duas pessoas na calçada, pediremos informações àquela que não está com fones. Do mesmo modo, tirá-los durante uma conversa é como uma saudação a quem fala. Mais ainda, o fenômeno do compartilhamento de playlists destaca novas formas de interação social, algo previsto pelo design original do walkman, com suas duas entradas para fones de ouvido. O compartilhamento de playlists fornece um modo alternativo de comunicar a esfera pessoal.

computação tendo em vista a ocupação organizada do espaço público8. Dos protestos anti-WTO de 1999 — em que grupos de manifestantes independentes, porém em rede, usaram táticas de enxame, telefones celulares, laptops e PDAs para vencer a batalha de Seatlle — à tomada do governo filipino em 2001, resultante da mobilização de milhões de manifestantes via mensagens de texto enviadas por celular, a multidão de hoje está fortalecida de formas antes não imaginadas.

O FLÂNEUR, O SITUACIONISTA E A TURBA INTELIGENTE A multidão é o véu através do qual a cidade habitada faz um sinal para o flâneur com o olhar, como uma fantasmagoria. Na multidão, a cidade é ora paisagem, ora loja. Depois, ambas vêm a constituir o armazém com o qual a própria flânerie torna-se utilizável para a troca das mercadorias. O armazém é o último lugar aonde vai o flâneur7.

Mapa de pontos de acesso Wi-Fi nos Estados Unidos (cortesia WiGLE.net)

COMPUTAÇÃO UBÍQUA E INFRAESTRUTURAS LOCATIVAS

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Sozinho na multidão, em casa na multidão — hoje somos levados ao shopping. Enquanto seria problemático simplesmente mapear usuários de iPod a partir de modelos históricos como o flâneur e o situacionista — para apontar apenas um aspecto, ambos ocupam-se predominantemente do visual —, pode ser construtivo revisitar esses dois personagens à luz de questões mais amplas a respeito da habitação do espaço público nas cidades contemporâneas. Se o flâneur apresenta-se como ponto de referência para um observador móvel a quem a estetização do urbano é uma prática simultaneamente liberadora e alienante, a deriva situacionista sugere uma prática espacial de liberar-se de uma mercantilização alienante da cidade. Hoje, negociar nossas vidas diárias na cidade e através dela envolve manobras cada vez mais sutis entre público e privado, virtual e concreto. O alocamento e espaçamento da experiência urbana estão dispersos por ambientes radicalmente diferentes. O olhar das multidões foi substituído pelo das câmeras de vigilância; as atrações psicogeográficas do terreno tornaram-se esquizogeografias de redes e cruzamentos de sinais. Ao mesmo tempo, a multidão se tornou bem mais sofisticada em termos de habilidade de organização, cooperação e mobilização. Howard Rheingold descreve a emergência de turbas inteligentes que usam tecnologias de comunicação móvel e 7

BENJAMIN, Walter. Reflections: essays, aphorisms, autobiographical writings. Nova York: Schocken Books, 1978, p. 156.

Os “aplicativos matadores” da indústria móvel infocom de amanhã não serão dispositivos de hardware ou software, mas práticas sociais. As mudanças de maior alcance virão, como sempre, de tipos de relacionamentos, empreendimentos, comunidades e mercados que a infraestrutura torna possíveis9.

Se muito do discurso do século XX a respeito de espaço público e redes de informação enfatiza a produção de espaços de fluxo globais, virtuais e sem lugar, a ubiquidade das redes sem fio e das comunicações móveis revitalizou um interesse em espaços de informações locativas, baseados em lugares. Descoladas do computador de mesa conectado à internet por cabo, as pessoas estão interagindo com mais frequência com (e através de) dispositivos móveis e redes sem fio enquanto se deslocam pela cidade. Em calçadas, lobbies, cruzando parques e praças públicas, em ônibus, estações de metrô e trem, o cidadão móvel negocia constantemente entre desejos casuais, redes virtuais de informação e as atrações infinitamente matizadas nos terrenos da cidade contemporânea. 8 9

RHEINGOLD, Howard. Smart mobs: the next social revolution. Nova York: Basic Books, 2003, p. 158. Ibidem, p. xii.

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Nesses ambientes interconectados sem fio, os chamados serviços de informação baseados em localização estão se tornando comuns. Esses serviços provêem informação customizada a partir da localização no espaço físico. Entre os exemplos estão sistemas de navegação nos painéis de automóveis, caminhadas sonoras conscientes do contexto, acessadas por meio de telefones celulares, ou guias eletrônicos da cidade que fornecem informações para PDAs, detalhando várias amenidades ou atrações encontradas nas proximidades. Todos esses serviços dependem de algum tipo de infraestrutura locativa, que calcula a posição dos aparelhos móveis no espaço físico e alimenta o serviço com coordenadas através das quais se pode transmitir informação filtrada geoespacialmente para o usuário. Infraestruturas locativas surgem com diversos sabores. Talvez a mais sofisticada seja o Sistema de Posicionamento Global (conhecido como GPS, sigla em inglês para Global Positioning System), desenvolvido pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos em 1994. Esse sistema determina a localização ao medir o tempo que sinais de rádio demoram para viajar de satélites transmissores para receptores terrestres. Pela comparação de pelo menos quatro desses sinais, a localização pode ser estabelecida no raio de poucos metros. Outros sistemas foram desenvolvidos para áreas internas, nas quais o sistema GPS e sinais de rádio são bloqueados pelo chão, por paredes e telhados de prédios. O sistema Cricket, desenvolvido no Media Lab do Massachusetts Institute of Technology (MIT), usa balizas que emitem tanto sinais de rádio quanto pulsos ultrassônicos para calcular a posição a partir da proximidade em relação ao sinalizador mais próximo, que, por sua vez, é identificado com uma sala

Proliferação dos pontos de acesso Wi-Fi na cidade de Nova York (cortesia WiFiMaps.com) Imagem Retirada do Website Wigle.Net

específica10. O departamento de pesquisas da Intel, em Seattle, desenvolveu um sistema que usa redes sem fio 802.11 (Wi-Fi) existentes e funciona tanto em espaços internos como externos11. 10 PRIYANTHA, Nissanka B.; CHAKRABORTY, Anit e BALAKRISHNAN, Hari. “The Cricket location-support system”. In: Proceedings of the 6th annual international conference on mobile computing and networking. Boston: ACM, 2000. 11 LAMARCA, Antonhy et al. “Place lab: device positioning using radio beacons in the wild”. In: Pervasive Computing: third international conference (Pervasive 2005). Berlim: Springer, 2005, Série Lecture Notes in Computer Science.

EM BUSCA DE UM URBANISMO PROPAGATIVO Eu chamo de “tática”, por outro lado, um cálculo que não pode contar com “limite” (espacial ou institucional), nem, portanto, com uma fronteira que distinga o outro como uma totalidade visível. O lugar da tática pertence ao outro. Uma tática se insinua no lugar do outro, fragmentariamente, sem tomá-lo em sua completude, sem ser capaz de mantê-lo a distância. [...] O “limite” é uma vitória do espaço sobre o tempo. Pelo contrário, como não tem um lugar, a tática depende do tempo — ela está sempre à espreita de oportunidades que precisam ser aproveitadas “em curso”12.

Na medida em que conglomerados de mídia e agências federais são responsáveis pelo desenvolvimento dessas novas infraestruturas, podemos esperar ver novas práticas de vigilância e consumo ganhar força. A atual luta de poder em torno do compartilhamento de arquivos, da proteção antipirataria e da regulamentação do espectro das redes sem fio destaca o dilema. Até que ponto os usuários de tecnologias terão poder de compartilhar, participar e criar utilizando essas novas infraestruturas? Até que ponto eles serão limitados a meros consumidores? O kit de ferramentas TSG é uma tecnologia parasitária. Ele se alimenta da propagação de pontos de acesso Wi-Fi em ambientes urbanos densos, tomados como infraestrutura locativa, gratuita e pronta para uso, para o cultivo de jardins sonoros comunitários no espaço público contemoporâneo. O conceito toma impulso no fato de que os protocolos para redes Wi-Fi requerem pontos de acesso para transmitir publicamente seu conjunto de identificadores de série (SSID, na sigla em inglês). Pontos de acesso produzindo os sinais Wi-Fi usados para determinar a localização de um participante podem ser abertos ou encriptados, e não precisam ser de propriedade dos desenvolvedores do sistema TSG. Como o componente de hardware da infraestrutura está amarrado à propagação de redes Wi-Fi, a extensão dos jardins é moldada em uma relação parasitária como a de um protocolo wireless específico. Onde a presença de pontos de acesso Wi-Fi é mínima, os jardins podem consistir simplesmente em plantações ao longo de uma calçada. Já onde existe uma densidade local de cruzamento de sinais, os jardins têm potencial para assumir a escala de toda a vizinhança. Em cidades onde as redes Wi-Fi são ubíquas, os jardins se estendem potencialmente por toda a cidade.

12 CERTEAU, Michel de. The practice of everyday life. Berkeley: University of California Press, 1984, p. xix.

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テ,IO

POSFテ,IO


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215 UM PANORAMA CRÍTICO DAS MÍDIAS LOCATIVAS JORGE LAFERLA

Lembramos a primeira década do terceiro milênio pelo predomínio do dispositivo digital no campo audiovisual e a paulatina transferência do computador pessoal para dispositivos portáteis, em que confluem o computador, o GPS e a telefonia celular, como variantes culturais complexas. A confluência dos meios de comunicação em ferramentas artísticas torna necessário seguir pensando essas máquinas semióticas como ideológicas, numa conjuntura em que os dispositivos geralmente apresentam-se como produtos, e com suas marcas de origem. São mercadorias, desenvolvidas de forma comercial e corporativa, que ultrapassa definitivamente a dimensão do nacional, em seu contexto de projeto e fabricação. Os cientistas, inventores e empresários independentes do século XIX, em vias de desaparecimento, foram substituídos por engenheiros, técnicos e projetistas, assalariados anônimos sempre ligados a companhias e empresas.


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As obras e figuras lendárias de Andy Warhol, ligadas aos equipamentos Norelco ou Commodore Amiga, a obra de Nam June Paik, vinculada à Sony e Samsung, ou a de Jean-Luc Godard, relacionada com a Aaton, são ingênuas e anedóticas comparadas com o uso atual de dispositivos de grandes marcas por parte de alguns artistas que trabalham com mídias locativas. As atividades lúdicas amenas, ao vivo, os festivais audiovisuais pensados a partir dos dispositivos móveis, passando pela entrega demagógica de aparatos a comunidades carentes, normalmente são percebidos como bem-vindos pelas empresas dedicadas à fabricação de celulares ou que oferecem serviços de comunicação, já que os usos amigáveis desses bens de consumo massivos e globais, propostos por certos artistas, resultam em um panorama utilitário. Por outro lado, há uma tradição de certas vertentes da academia brasileira, algumas inspiradas no pensamento de Vilém Flusser, os quais vêm estudando questões que levam a uma práxis crítica da combinação arte/ciência. A revisão da história das artes e da tecnologia, a partir dos chamados meios portáteis, leva a uma análise crítica dos usos dos dispositivos tecnológicos que questiona os usos corporativos e pseudoartísticos habituais. Este projeto editorial, Mediações, Tecnologia e Espaço Público, é de relevância, pois concebe uma antologia crítica de textos que aprofundam questões transcendentes, os quais traçam um panorama crítico das mídias locativas, destacando temas que repensam aspectos cruciais do uso desses meios: mecanismos de vigilância do sistema transferidos aos próprios indivíduos, a reformulação de ideias de representação gráfica como mapas de deslocamentos e da espacialidade (que introduzem o conceito de geografia experimental), reexame espaço público analisando diversas manifestações ativistas e desvios nos usos de fábrica por meio de práticas artísticas. Considerar a prática da mobilidade no audiovisual implica, também, reformular o vocabulário crítico, partindo do próprio questionamento de termos como locativo, mobilidade e portabilidade. A aura progressista, contida no aspecto vanguardista das artes midiáticas, encontra um espaço de conflito na era dos dispositivos wireless, em geral credores de sua marca de origem, e por constituírem-se eles mesmos símbolos de uma atualidade duvidosa e questionável da globalização, particularmente depois da crise financeira do fim da primeira década do terceiro milênio. Por sua vez, surge uma análise de diversas categorias operativas da espacialidade urbana mediatizada, com base em novas representações dos territórios e fronteiras simbólicas, que reformulam a ideia de estrangeirismo fundada em novos espaços de circulação de fluxos informacionais, e de estéticas,

categorias em si mesmo nômades em um capitalismo informacional que propõe uma ideia de cibercultura dinâmica, em movimento. O critério do trabalho de compilação que orienta esta obra oferece um panorama amplo, que estabelece um diálogo crítico entre os diferentes textos e autores em uma coletânea que é um trabalho de escritura, pois aborda analiticamente, em conjunto, o campo complexo das artes e meios móveis. A desilusão diante das promessas não cumpridas das novas tecnologias supera, nesta publicação, o discurso banal do novo, para propor um panorama crítico analítico transcendente sobre o impacto ideológico e formal profundo das novas tecnologias de comunicação na arte e na cultura.

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218 GLOSSÁRIO RFID (Radio Frequency Identification ou Identificação por Radiofrequência) 218

Etiquetas de identificação criadas para embutir informações em produtos por meio de ondas de rádio. Algumas podem ser detectadas à distância, permitindo que suas informações sejam lidas sem o conhecimento do portador. As etiquetas RFID são construídas com dois componentes: um circuito integrado, responsável por armazenar e processar informação, e uma antena, que recebe e transmite sinal. Há três tipos de etiqueta: as ativas possuem bateria e podem transmitir o sinal com autonomia; as passivas não têm bateria e demandam uma fonte externa para provocar a transmissão; e as etiquetas BAP (sigla em inglês que significa passivas induzidas por bateria) demandam uma fonte externa para ativação, mas apresentam autonomia significativa, possibilitando grande amplitude de transmissão. Usos correntes das etiquetas RFID incluem o transporte público e o rastreamento de peças em fábricas, entre outros. A busca por mecanismos de controle de inventário e vendas criou o potencial para formas ocultas de vigilância individual. Um exemplo é o uso do RFID para identificar animais de estimação ou prisioneiros.

AIDC (Automatic Identification and Data Capture ou Identificação Automática e Captura de Dados) Conjunto de métodos e tecnologias de obtenção de dados, especialmente por meio da análise de imagens, sons e vídeos. Alguns exemplos de tecnologias AIDC são os códigos de barra, as tarjas magnéticas usadas em cartões de crédito e cartões de fidelidade, os dispositivos de reconhecimento óptico, os aparelhos biométricos, alguns mecanismos de reconhecimento de voz e as etiquetas RFID. As tecnologias AIDC permitem a identificação automática de objetos e a coleta de informações a seu respeito, geralmente resultando em bancos de dados sobre seus usuários. PDA (Personal Digital Assistant ou Assistente Pessoal Digital) Aparelhos portáteis que surgiram como formas sofisticadas de agenda e, conforme evoluíram, tornaram-se pequenos computadores de bolso. Permitem que seus usuários, a qualquer momento e em qualquer lugar, acessem e alterem as informações que armazenam. Geralmente, os PDAs comportam a instalação de softwares para edição de texto, planilhas de cálculo e outros de uso cotidiano.

GPS (Global Positioning System ou Sistema de Posicionamento Global) Malha de satélites criada pelo governo dos Estados Unidos para indicar a posição de lugares no planeta. O sistema GPS emprega entre 24 e 34 satélites na órbita terrestre. O cálculo da distância entre um ponto específico e a posição de pelo menos quatro desses satélites possibilita definir de maneira confiável sua localização tridimensional (latitude, longitude e altitude), assim como o tempo em que acontece o deslocamento entre um ponto e outro. Os receptores GPS podem ser usados por pessoas, ou em veículos, como forma de localização de seu posicionamento, geralmente para fins de navegação. Há dois tipos de aparelho: os que armazenam mapas preexistentes e os que permitem a atualização em tempo real dos dados, assim como a gravação de pontos e trilhas percorridos. O uso cada vez mais cotidiano do GPS tem modificado os métodos de mapeamento e orientação geográfica. As tecnologias GPS também proporcionam uma nova relação com a paisagem e a coleta de dados, bastante explorada por artistas interessados em pesquisar formas de convergência entre arte e geografia (como paisagens de dados e desenhos gerados por GPS). Há outros sistemas de localização de coordenadas geográficas por satélite, como o sistema europeu de navegação global por satélite, conhecido como Galileo. GIS (Geographic Information System ou Sistema de Informação Geográfica) Sistema de coleta e representação de dados em campos diversos, como arqueologia, biologia, climatologia, demografia, epidemiologia. O Sistema de Informação Geográfica é constituído por ferramentas como, por exemplo, softwares de mapeamento, tecnologias de sensoreamento remoto e fotografia aérea. LBS (Location-Based Services ou Serviços Baseados em Localização) Tecnologias que utilizam sensores, aparelhos portáteis e redes sem fio com o objetivo de estabelecer a localização de pessoas, lugares e

objetos, para fins de informação e entretenimento. São serviços que permitem encontrar um caixa eletrônico próximo, ou detectar a posição de um conhecido que está em um café nas imediações. Os Serviços Baseados em Localização constroem um tecido de informações sobrepostas ao espaço físico, que amplia, transforma e modifica o modo como as pessoas se relacionam com seu ambiente e a maneira como enxergam a paisagem ao seu redor. Mídias locativas Expressão criada para designar o conjunto de práticas relacionadas aos usos das tecnologias portáteis para localização, em um contexto não comercial. Geram formas de envolvimento mediado com o entorno e mesmo com espaços distantes. As práticas com mídias locativas abrangem a criação e a recepção, em trânsito, de textos imagens, sons e vídeos, possibilitando acesso distribuído aos meios de produção de conteúdo. Elas se beneficiam das tecnologias de comunicação ubíquas, presentes em todo lugar, o tempo todo. Seu uso gera um paradoxo entre as práticas de localização e a mobilidade considerada típica da cultura que surge com a popularização de aparelhos portáteis e redes sem fio. Artes locativas Apropriação das mídias locativas para o engajamento criativo ou práticas artísticas desenvolvidas a partir de ambientes permeados por serviços de localização. Flash mobs Mobilizações políticas, estéticas e coletivas que utilizam mídias portáteis para organizar reuniões efêmeras no espaço público. Eventos que exploram características do telefone celular e permitem coordenar ações, espontâneas ou motivadas, geralmente resultantes das possibilidades de conexão entre pessoas e da troca instantânea de informações por meio de “mensagens SMS (popularmente conhecidas como “torpedos”)”.

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WAP (Wireless Application Protocol ou Protocolo de Acesso sem Fio) Padrão internacional aberto que gera uma camada de aplicativos para comunicação em rede em ambiente wireless (sem fio). Seu uso mais comum foi na telefonia celular, como forma de acesso à internet por meio de navegadores em que os recursos de acesso eram simplificados de acordo com restrições, como o tamanho reduzido da tela. A sigla também pode ser usada com o sentido de Wireless Access Point, ou Ponto de Acesso sem Fio. O padrão WAP tornou-se obsoleto com o surgimento dos protocolos 2G e 3G, e com a popularização das redes Wi-Fi. WikiMaps Mapas gerados com tecnologia Wiki. Por ser gratuita, a plataforma Wiki permite que seus usuários construam cartografias colaborativas e comunitárias, incluindo textos, imagens e sons nesses mapas. 220

Redes peer-to-peer Redes entre dois ou mais computadores, não roteadas por um servidor central. Possibilita a troca de arquivos de tipos diversos entre seus usuários, que ficam conectados entre si. Hot spots Pontos de conexão para acesso a redes sem fio. São encontrados em aeroportos, cafés, universidades, empresas etc. O aumento do número de hot spots resulta em uma malha que amplia a internet, já que permite acesso à rede fora de escritórios e cibercafés. Dataspace Termo usado para designar espaços onde há dados disponíveis para o acesso, geralmente por meio de tecnologias de realidade aumentada ou acesso a redes sem fio. É um conceito que surge com diversos nomes, conforme o contexto: desde os cenários futuristas nos livros de ficção científica de William Gibson ao uso de termos como datascape (paisagem de dados), data pool (piscina de dados) ou territórios informacionais. Esses espaços

“aumentados” com dados geram lugares ambíguos, na medida em que fraturam a geografia por meio de malhas imateriais nas quais a configuração material não responde totalmente pelos fluxos ali possíveis. Neles, há fronteiras invisíveis, ao mesmo tempo em que se torna viável transpor limites físicos. O lugar deixa de ser limite para o acesso e para as trocas de informações e transforma-se em um campo difuso, onde navegar é possível. Psicogeografia Termo criado pelos situacionistas para explicar sua noção de deriva e de errância voluntária pelo espaço urbano como forma de investigar a relação entre o espaço arquitetônico e o comportamento humano. A definição mais conhecida de psicogeografia aparece no texto “Introduction to a critique of urban geography” (Guy Debord, 1955): “estudo das leis precisas e dos efeitos específicos do ambiente geográfico, conscientemente organizado ou não, nas emoções e comportamento dos indivíduos”. Cultura líquida, cartografias líquidas Cultura que surge no contexto do estado de “liquefação” que Zygmunt Bauman considera marcar a sociedade contemporânea. O termo “líquido” é bastante usado pelo sociólogo, sediado na Polônia, para descrever o caráter cada vez mais fluido das relações sociais, de trabalho, afetivas e outras. Tornou-se uma metáfora comum para representar os efeitos de conexões via internet, e-mail, SMS e celular nas formas de organização social que elas engendram, na medida em que são situações que exigem rapidez e resultam em conjunturas efêmeras. Realidades mistas (também denominadas realidades híbridas) Situações construídas a partir do uso de interfaces de acesso a componentes virtuais inseridos em estruturas arquitetônicas e outros elementos de espaços públicos ou privados. Os sistemas de realidade mista permitem a seus usuários acessar

informações visíveis apenas para eles e ligadas ao entorno, o que resulta em um conjunto de relações entre espaço concreto e espaço informacional. Computação ubíqua Sistemas computacionais que possibilitam a interação com dados distribuídos para acesso remoto. Por darem a sensação de que seus usuários podem estar presentes em lugares distantes de forma mediada, geram a impressão de ubiquidade. Ao contrário dos sistemas locativos, a computacão ubíqua permite um deslocamento “sem movimento”: o usuário permanece fixo, mas pode acessar lugares e sistemas remotos. É comum falar em uma cultura da ubiquidade que surge conforme as tecnologias para acesso remoto tornam-se cenário para uma multiplicação de dados distribuídos. Site-specific Obras que dialogam com o contexto em que são criadas, a ponto de só fazerem sentido naquele lugar específico. O termo foi criado pelo artista californiano Robert Irwin e adotado por críticos como Lucy Lippard e Catherine Howett. O conceito tornou-se bastante comum a partir dos anos 1970, especialmente em função de trabalhos que surgiram em áreas urbanas amplas, combinando componentes da paisagem com estruturas fixas inseridas como componentes de tensão ou diálogo. Rede rizomática O “achatamento” do rizoma é uma metáfora de Gilles Deleuze para a natureza massivamente interconectada da informação: no rizoma, a informação e a literatura sacrificam qualquer profundidade de relações em favor de uma estrutura superficial e horizontal, e não hierarquizada. A internet pode ser considerada um exemplo de rede rizomática, por sua configuração expandida numa malha de múltiplas camadas, que provoca o colapso dos espaços interpessoais até então existentes e acentua as possibilidades de atuação em contextos mundializados.

Cibercultura Cultura do espaço digital que, por ocasião de seu surgimento, foi bastante denominada pelo termo “cibernético”. Nesse contexto, o objetivo era indicar a emergência de uma cultura baseada na interação entre homens e máquinas, motivo pelo qual palavras como “cibernética” e “cibercultura” foram ganhando conotações amplas, nem sempre ligadas ao conceito cunhado por Norbert Wiener em livros como Cybernetics: or control and communication in the animal and the machine ou The human use of human beings: cybernetics and society. A partir do advento da internet, inicia-se um processo de digitalização da cultura, com a publicação de documentos de todos os tipos em redes de computador, especialmente a internet. Como resultado, ocorre uma transposição de relações (sociais, institucionais, processos e informações) para contextos de mediação por meio de aparelhos digitais em rede. Blog Contração de web log. Site que permite a qualquer usuário criar uma conta para publicação e administração de conteúdo, geralmente organizado na forma de entradas curtas, criadas com certa regularidade (os chamados posts, em termo inglês já incorporado ao vocabulário dos usuários de internet). Os blogs oferecem a possibilidade de atualização rápida. Funcionam como diários on-line que combinam textos, imagens e links que levam a blogs e páginas da web, entre outros. Os blogs tornaram-se conhecidos porque permitem que qualquer pessoa expresse sua opinião sobre um assunto, seja ao publicar entradas ou pelo envio de comentários. O conjuto de blogs existentes na internet costuma ser chamado de “blogosfera”. Vlog ou videoblogs Blogs para publicação de vídeos, bastante usados como forma de reunir desde conteúdo jornalístico a viagens domésticas, antes do surgimento de plataformas como o Vimeo e o YouTube. Em analogia à “blogosfera”, costuma-se falar também

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em “vlogosfera” para se referir ao conjunto de videoblogs disponíveis on-line. Sistemas pervasivos Redes distribuídas pelo espaço público. São rastreáveis e tendem a ser intrusivas. Funcionam como uma malha tecnológica sobre o espaço urbano. Resultam do uso crescente de dispositivos móveis de pequeno tamanho, conexão sem fio e alimentação por bateria. São os chamados sistemas pervasivos, ambientes com computação e comunicação integradas que geram espaços mistos, formados por máquinas e humanos. Possibilitam criar regiões de realidade mista.

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Tecnologia wireless Também conhecida como Wi-Fi (Wireless Fidelity). Redes sem fio não limitadas pelo uso de cabos, o que lhes permite maior mobilidade; no lugar dos cabos, o meio de transmissão é o ar, pelo qual são emitidas ondas de rádio e luz infravermelha. São flexíveis, de fácil configuração e com boa conectividade. Para uma conexão sem fio é necessário o uso de um roteador apto à comunicação wireless. Com a popularização do formato, boa parte dos computadores e dispositivos portáteis passou a ser fabricadas com sistema de comunicação wireless embutido. Internet of things Termo que aparece no livro homônimo de Rob van Kranenburg para designar possibilidades de conexão que surgem no contexto das pesquisas voltadas ao desenvolvimento de ambientes inteligentes, com seus potenciais e perigos. O conceito surge conforme torna-se possível equipar todo tipo de objeto físico (lata, livro, sapato, iogurte, automóvel) com dispositivos de identificação, o que permite transformá-los em nós de armazenamento e transmissão de dados. A ideia de uma internet que se propaga a partir das coisas fomenta a utopia de um mundo por onde transitam entidades autônomas e inteligentes ou objetos que agem de forma interoperante e se auto-organizam. Além disso, sugere uma imensa diversidade de

links e facilidade para integrar novos elementos. Urban screens (telas urbanas) Telas eletrônicas e digitais, que incluem monitores de plasma, LEDs, painéis eletrônicos e terminais de informação, entre outros. A expressão é usada, em geral, para descrever superfícies de projeção de grande escala, inseridas em configurações arquitetônicas complexas, nas quais as telas dialogam com o contexto espacial. As telas urbanas resultam em uma camada audiovisual embutida na cidade, gerando espaços complexos que combinam elementos materiais e imateriais. Em alguns casos, há telas urbanas conectadas a redes ou sistemas de informação, constituindo um tecido multimídia global para compartilhamento, em praça pública, de conteúdos, experiências, ideias, inovações e possibilidades emergentes. Seu uso comercial está ligado ao urbanismo e à arquitetura. É comum o emprego de telas urbanas em projetos de arte que exploram a capacidade do espaço público de servir de plataforma expressiva de comunidades multiculturais e de engajamento público em temas sociais, culturais e de sustentabilidade ambiental. Grassroots Movimento comunitário que implica uma organização política espontânea. Geralmente, ocorre em nível local, com voluntários que promovem reuniões, encontros, abordagens públicas, petições, demonstrações e levantamento de fundos para campanhas políticas. O termo tem sido bastante usado para designar o uso de tecnologias gratuitas e de código aberto com o objetivo de gerar resultados “de baixo para cima”. Torrents Tecnologia desenvolvida para distribuição de dados na internet, a partir do protocolo BitTorrent, um tipo de compartilhamento de arquivos peer-to-peer. Esse tipo de distribuição permite o compartilhamento viral de um arquivo. O protocolo BitTorrent oferece aos usuários a possibilidade de receber grande quantidade de

dados; além disso, é um método alternativo de distribuição no qual computadores menores podem participar de grandes transferências de dados. Nele, um usuário provedor (seed, que significa “semente”) disponibiliza um arquivo na internet para outros usuários (peers, que significa “parceiros”), que podem transferi-lo para seu computador em pacotes progressivos. Quanto mais “sementes”, mais rápido o processo. Por isso, a distribuição de conteúdo via torrent representa considerável otimização da largura de banda disponível. Além disso, reduz a dependência do distribuidor original ao disponibilizar uma fonte para arquivos que geralmente é temporária. Por isso, é mais difícil de ser rastreada, e seu download continua possível mesmo que o arquivo original esteja em um computador temporariamente fora do ar (desde que existam espelhos do arquivo disponíveis em máquinas de usuários “parceiros”). Détournement technologique Deslocamento tecnológico subversivo, desviante. Refere-se à mídia deslocada de um contexto para outro, em que assume novo sentido. O termo détournement foi cunhado pelos situacionistas, para definir suas práticas de apropriação feitas como forma de crítica aos formatos de linguagem convencionais e estabilizados. DIY (do it yourself) Faça você mesmo. Refere-se ao fazer independente, desenvolvido com poucos recursos, em contraposição aos modos industriais de produção. Esse uso surgiu para designar fanzines, discos independentes e demais formatos da cultura urbana alternativos aos meios de comunicação corporativos. O movimento DIY questiona a suposta unicidade do conhecimento de peritos e promove a habilidade do indivíduo ordinário de aprender mais do que se pensava possível. O termo ganhou força como lema anticonsumista da cultura punk, que pregava a rejeição à necessidade de adquirir bens ou de se enquadrar em sistemas preestabelecidos. Os avanços das mídias e softwares e a proliferação do

acesso rápido à internet deram a artistas de todas as idades e habilidades a oportunidade de fazerem seus próprios filmes, discos, livros ou outros conteúdos, e de disseminá-los na rede, em sites ou por meio de métodos de distribuição viral, tornando-os autossuficientes. Copyleft Trocadilho com o termo copyright (usado para indicar quem é o detentor dos direitos autorais de um texto, uma música, um filme etc.). O termo copyleft é utilizado para conteúdos publicados sob licenças que permitem sua distribuição de forma gratuita, desde que sejam preservados os créditos definidos na fonte. Os conteúdos copyleft estabelecem que suas modificações ou extensões devem continuar livres para cópia e manipulação, de forma a permitir colaborações em processo continuado.

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