PROJETO COMO PENSAMENTO: DIÁLOGOS COM A FILOSOFIA [A IMAGEM EM DIDI-HUBERMAN]

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projeto como pensamento: diรกlogos com a filosofia [a imagem em Georges Didi-Huberman] Paulo Reyes [org.]



projeto como pensamento: diálogos com a filosofia [a imagem em Didi-Huberman]

Paulo Reyes [org.] Ana Laura Nunes Ana Luisa Seixas Débora Schöffel Diego Lopes Diogo Vaz Francisco Cenzi Gabriel Fernandes Germana Konrath Guilherme Ferreira Guilhermo Gil Lucas Bittencourt Lucas Rodrigues Luciana Echegaray Marina Goulart Raimundo Giorgi Rodrigo Ferreira Tiago Silveira


universidade federal do rio grande do sul faculdade de arquitetura programa de pós-graduação em planejamento urbano e regional projeto gráfico, editoração e

obra oriunda do grupo de

revisão:

pesquisa registrada no CNPq -

Lucas Bittencourt

Cidade Contemporânea: entre

Paulo Reyes

arte e filosofia

Rodrigo Ferreira

e da disciplina do Propur

projeto da capa: Guilhermo Gil

diálogos com a filosofia

Porto Alegre, dezembro de 2018

Projeto

como

pensamento:


sumário

apresentação

do que estamos falando a imagem fraturada a favor de um projeto como processo

9 13

as montagens

ana laura nunes 46 ana luisa seixas 59 débora schöffel 71 diego lopes 85 diogo vaz 103 francisco cenzi 121


gabriel fernandes 134 germana konrath 152 guilherme ferreira 170 guilhermo gil 184 lucas bittencourt 200 lucas rodrigues 216 luciana echegaray 229 marina goulart 246 raimundo giorgi 258 rodrigo ferreira 271 tiago silveira 285

conclusĂŁo

imagens como processo de montagem 305 sobre os autores

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imagem em Georges Didi-Huberman

do que estamos falando

Este trabalho é o resultado da Disciplina “Projeto como pensamento: diálogos com a filosofia” desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PROPUR/UFRGS, no segundo semestre de 2018, para alunos de doutorado, mestrado e alunos especiais. Nesta edição, abordamos o pensamento de Georges Didi-Huberman sobre imagem e montagem.

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O projeto como pensamento: diálogos com a filosofia

O objetivo era produzir uma reflexão crítica sobre a cidade contemporânea, a partir da identificação de um conflito. Esse conflito deveria ser explicitado em um pequeno texto e expressado por uma imagem. A imagem deveria ser escolhida como algo que representasse de fato o conflito a ser pensado. A partir dai, iniciamos a busca de outras imagens que estabelecessem um diálogo com a primeira imagem. Didi-Huberman pensa a imagem não mais como uma síntese que carrega um valor simbólico a ser desvelado, mas sobretudo, é no choque entre imagens e não na imagem que o sentido se expressa, ou melhor, é justamente nesse entre imagens que o sintoma surge como expressão do além do visível e inteligível e que aqui se expressa em toda sua potência visual. Portanto, não estamos frente às referências a seguir, mas a descobrir novas narrativas visuais que essas imagens anunciam, quando pensadas como imagens-contra-imagens. Assim, o conflito inicial, representado pelo texto e a imagem, é desmembrado e ressignificado a partir de outras narrativas oriundas do choque entre imagens. As montagens que seguem neste trabalho expressam essas diferentes narrativas sobre a cidade contemporânea. O texto que abre este trabalho: “A imagem fraturada a favor de um projeto como processo”, é um texto que nasce dobrado sobre si mesmo. Ou seja, recupera a mesma temática – as imagens e o projeto no urbanismo – , mas ganha escrituras diversas e, muitas vezes sombreadas. Esse texto foi apresentado e está publicado nos Anais V Encontro da 10


imagem em Georges Didi-Huberman

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo ENANPARQ – ocorrido na Faculdade de Arquitetura, Salvador, Brasil, 2018. Em seguida são apresentadas em ordem alfabética os 17 exercícios realizados pelos alunos na disciplina. O exercício contou com a elaboração de pequenos textos em conjunto com o material gráfico das montagens, os quais foram apresentados durante seminário de encerramento da disciplina nos dias 28/11 e 05/12 na sala 522 do Propur. os editores porto alegre, verão 2018 - 2019

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a imagem fraturada a favor de um projeto como processo1 Paulo Reyes

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Texto originalmente apresentado no V Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e publicado nos Anais do Enanparq 2018 – Faculdade de Arquitetura, Salvador, Brasil, 2018.


O projeto como pensamento: diálogos com a filosofia

projeto como pensamento [para introduzir] Esta escrita que se inicia parte de um desejo – desejo de um pensamento de projeto, de localizar o projeto como pensamento, e esse sendo produzido por imagens. Quando se pensa o projeto, logo vem à mente uma ação de futuro. Algo se arremessa ao longe. O projeto se pauta por uma busca que já na sua origem é de fundo resolutivo. Como resolução, aponta para um sentido de projeto como substantivoobjeto. Há uma promessa de entrega de algo. Nessa postura resolutiva, o projeto parece ser delineado, o tempo todo, por uma imagem futura. Uma imagem de desejo. Uma imagem que o direciona à síntese. Acompanhado por outras imagens – as referências arquitetônicas – percorre um caminho orientado por preexistências, e o conjunto dessas imagens icônicas e semelhantes constroem um percurso consensual. Um consenso que subliminarmente apaga as diferenças, os atritos. Não deixa restos. Não há furo ou rasuras nesse desejo de projeto, só síntese. No entanto, desejo outro tipo de imagem. Ainda assim, desejo imagem. Não um desejo de imagem como ilustração estética de um acontecimento, mas acima de tudo, um desejo de imagem que produz estranhamento, que rasura um certo lugar comum. Esse lugar comum é o do projeto. Neste texto, busca-se outro sentido de projeto: não como substantivo, mas como verbo. Portanto, projeto é ato. É processo. E como processo, é preciso pensar a maneira como as imagens contribuem para uma construção de um pensamento de projeto. Para isso, é importante 14


imagem em Georges Didi-Huberman

que nos afastemos do sentido clássico da imagem como representação de algo que produz um outro-igual. A busca aqui é por uma imagem menos como síntese e mais como um múltiplo de imagens que só podem ser pensadas em uma perspectiva dialética e por montagem. Então não se fala em imagem, mas em imagens, no plural. Não só no plural, mas colocando em um mesmo plano imagens dissemelhantes que falam para além de si, no seu entre-imagens. É justamente no confronto entre diferentes que o sentido pode se abrir, mas nunca em síntese, sempre como sintoma, como prefere Didi-Huberman. Rasurar o projeto. Fraturar o projeto. Essa é a aposta deste texto: projetar sem projetar. Sem arremessar o desejo. Ao desejo. Produzir espaço de pensamento. Espaçamentos. Ficar. Ficar na angústia da espera. Mas totalmente imerso no desejo instável. Operar pelos poros. Pelos fragmentos. Pensar por fragmentos. Projetar por fragmentos. Valorizar o processo, os processos. Mais do que uma promessa, isso se instaura como uma existência – instauração, no sentido dado por Lapoujade (2017) ao gesto que afirma um direito de existir. O projeto aqui reivindica esse lugar. O lugar do processo. Existir como processo. Projeto como ato. Projeto como verbo. Um projeto que se expressa menos pela realidade das coisas em si e mais por seus movimentos incessantes de um por vir sempre aberto, sempre um n-1, como diria Deleuze. Esta intenção de texto se efetiva a partir da noção de “dialética sintomal” [uma leitura de Georges Didi-Huberman da obra de Georges 15


O projeto como pensamento: diálogos com a filosofia

Bataille]. Se o projeto se organiza entre a construção do problema e a sua resolução traduzido isso em uma forma arquitetônica com forte pendência à resolução, pensar pelas rasgaduras das imagens nos ajuda a inverter essa linha de tensão em prol do problema. E com a noção de imagem aberta que substitui a noção de tese-antítese-síntese por tese-antítese-sintoma, apresentada por Didi-Huberman, que se aproxima o foco do projeto para uma perspectiva de desmontagem para posteriormente remontar em outras bases. O sentido de projeto pode ser retirado da posição resolutiva e posicionado como uma potência. Sendo assim, o projeto pode ser pensado nessa perspectiva de existir como algo que instaura, mas “ainda não” como substantivo, como síntese. Ou seja, instaura em um processo que é aberto mas não resoluto, se apresentando como potência na sua maneira de existir como um ser que, acima de tudo, ainda não se atualiza, se mantem como virtualidade. E é justamente nessa posição que as operações de pensamento sobre o projeto podem ocorrer, na sua perspectiva do problema e não da resolução. Apostamos aqui numa desmontagem do projeto. E para isso é preciso pensar as imagens como sintoma, para romper com a lógica tese-antítese-síntese. Na perspectiva de Didi-Huberman, o que substitui a síntese é o sintoma. Pois ao invés de fechar o sentido, resolvendo a diferença como faz a síntese, o sintoma abre o que parece perfeito e consagrado para evidenciar as diferenças que estão por baixo e que foram inconscientemente esquecidas. O que Didi-Huberman propõe com esse 16


imagem em Georges Didi-Huberman

resgate de Bataille da noção de sintoma, é “deixar as formas doentes” a fim de comunicar o mal-estar que foi apagado pelo projeto consensual. Essa postura permite olhar para um processo que não se satisfaz com nenhuma síntese e não se deixa fixar numa acomodação resolutiva. Por fim, posicionar o projeto no seu modo de existência como virtual, nos permite produzir um pensamento sobre o projeto que nasce de uma dialética acidental, na qual a imagem pode ser colocada como uma dialética mostrada e visualmente montada, para que os efeitos de síntese consensuais se abalem, com a contribuição de Didi-Huberman.

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O projeto como pensamento: diálogos com a filosofia

[estabilidade] (re)produção do mesmo O projeto no campo da arquitetura é um procedimento que busca uma resolução. Balizado entre uma demanda e uma solução possível, o projeto é construído como um processo que fundamentalmente opera por atos reflexivos como defende Donald Schön (2000) ou como uma maneira de pensar a realidade como afirma Nigel Cross (2010), ambos pensadores do projeto. Mas fundamentalmente, é um processo que foca em uma síntese expressa pelo projeto como obra final. Há uma promessa de “produto” no final do processo. Na base do projeto, (expresso pela palavra em inglês, design), está a noção de designação. Para Flusser (2005, p.32) “a matéria no design, como qualquer outro aspecto cultural, é o modo como as formas aparecem”. Ela é o como da matéria, e a matéria é o quê da forma. O design, então, é um processo que in-forma a matéria. Ou seja, é um processo de designação de sentido da matéria amorfa. Essa designação é resultado de diferentes processos projetuais, mas no caso deste texto, abordaremos o papel das imagens na elaboração desses projetos. A cada intenção de resolução de um problema, uma imagem é demandada na forma de um desejo. A essa imagem, nomearemos de imagem-primeira ou desejo de imagem. Ocupemo-nos um pouco dessa imagem. Quando o projetista recebe uma demanda ou identifica um problema, ele automaticamente produz “mentalmente” uma imagem do que poderá vir a ser a resolução desse problema. Essa imagem 18


imagem em Georges Didi-Huberman

ainda muito vaga, pois resultado de um enunciado de desejo, não permite que se visualize a forma final do projeto. Pouco delineada, sem contornos precisos, nebulosa, ela funciona como uma imagemideal. Estamos aqui, como Narciso, olhando a sua imagem refletida na água, mas ainda numa água turva. Nessa água turva, uma imagem se insinua. Borrada, muito borrada, não nos deixa ver sua nitidez, seus contornos. Mas mesmo assim, mesmo borrada, não a abandonamos. Pelo contrário, quanto menos nitidez ela apresenta mais nos fixamos como uma última saída – um último recurso. Capturados tal como Narciso por essa imagem, mesmo em toda sua inconsistência, buscamos construir estratégias de elucidação. As estratégias ocorrem dentro de um mesmo processo projetual, justamente buscando maior consistência para apoiarem a imagem-primeira. Essa estratégia é feita pela escolha de imagens que se assemelham à imagem-primeira, funcionando como um duplicar incessante dessa. É da ordem da replicação do igual. E assim, são solicitadas a co-habitarem junto da imagem-primeira. A essas imagens de aparência múltiplas, embora oriundas de um universo restrito, o do igual, nomeamos de “referências arquitetônicas”. O que são essas famosas referências arquitetônicas que a maioria dos projetistas lançam mão no processo de projeto? Qual o papel delas nesse processo? Como coabitam com a imagem-primeira? Por contraponto à imagem-primeira, chamaremos essas referências arquitetônicas de imagens-segundas. São imagens que colaboram para dar nitidez à imagem-primeira. Então, temos uma imagem-primeira, 19


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borrada, com pouca nitidez. Dependente, pelo menos isso nos parece, das imagens-segundas. As imagens-segundas entram no processo a partir da solicitação da imagem-primeira. Funcionam colaborativamente se auto reafirmando. Se espelham. Parecem se bastar. Não se ofuscam, pelo contrário, se sustentam. Aos poucos, por espelhamento vão dando nitidez e contorno para a imagem-primeira. Um jogo de autorreflexão se produz, construindo uma solução possível fechada e sintetizada na imagem-primeira, mas que a todo o momento foi sendo clareada e iluminada com a ajuda das outras tantas imagens-segundas convocadas ao processo projetual. Estamos aqui cegos por um excesso de luz. Talvez a esse campo “luminoso” seja o que para Cross é o princípio do projeto. Para ele (CROSS, 2010, p. 07), há um princípio gerador que baliza o ato criativo, por um lado, dando limites ao problema, por outro lado, sugerindo possíveis soluções. Esse foco na solução possibilita que, em alguns casos, o problema seja revisto a partir de novas ideias que são geradas na busca pela solução. No entanto, essas “novas ideias” já nascem obtusas. São por vezes contaminadas pelo mesmo. Produzem um campo imagético do igual. Do mesmo. Sempre do mesmo. Convocadas por uma imagem-primeira são relacionadas a essa por semelhança. Estamos ai no universo do mesmo, conforme (Figura 1).

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imagem em Georges Didi-Huberman

Figura 1: Modelo consensual Fonte: autor, 2018 21


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[estranhamento] produção do desvio É necessário nos perguntarmos qual é o problema que está na base do consenso? Qual é o problema da síntese no processo de projeto? Podemos pensar que o consenso é uma resposta muito rápida às diferenças que vão ocorrendo no caminho. O consenso é um tipo de procedimento que produz uma redução nas diferenças que surgem no processo. A cada “bifurcação”, uma escolha é feita em detrimento de outra. A questão é que se essas escolhas estão marcadas por imagens icônicas de sucesso, não havendo possibilidade da existência de outros modos de pensar o problema a não ser pela resposta mais rápida, fácil e conhecida. O consenso reforça o status quo daquilo que já está consolidado como um caso de sucesso, não permitindo que outras soluções, as vezes, menos espetaculares, possam cumprir seu papel. O modelo consensual não permite que se verifique as contradições. Simplesmente elas não existem. Se é possível pensar assim, de maneira genérica, para projetos arquitetônicos em pequena escala, não é o mesmo para um processo de projeto que se contextualiza em uma situação-problema na grande escala. O contexto urbano determina e posiciona o projeto em níveis diferenciados de complexidade. A complexidade não está, necessariamente, par a par com a escala, mas projetos de escala urbana, normalmente, envolvem um número muito extenso de diferentes sujeitos. Então, no caso de projetos urbanos, é quase impossível conceber 22


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um processo projetual que não contemple os conflitos e as diferenças. Para além disso, é muito difícil pensar que exista uma espécie de “espírito do lugar”, o genius loci de Norberg-Schulz (1980), que apazigue as diferenças em prol da existência de uma identidade reconhecível como valor histórico. Se essa ideia funcionava como crítica à postura modernista de um modelo racional totalizante, porque trazia para o debate os valores locais, em tempos de economia de mercado em potência máxima isso é um risco. Corre-se o risco de saber quem define o “valor do lugar”? O mercado? O arquiteto? O que está em pauta aqui é: quem compreende ou atribui a vocação do lugar? Talvez seja prematuro e pretensioso acreditar que o projetista tenha essa capacidade de ler (de maneira neutra) os atributos essenciais do lugar, pois pensar nesse sentido é recobrir o próprio sentido de espaço público. O espaço urbano, público, coletivo, feito de diferenças, justamente por isso, público por excelência, não apresenta um único sentido, mas uma multiplicidade de valores que se sobrepõem e que, por muitas vezes, se apresentam de maneira contraditória. Portanto, não podemos falar em essência, pois se há alguma essência a reconhecer é o conflito. O lugar urbano é o do conflito. É o lugar das diferenças. É verdade que a noção de genius loci retira o ser humano do espaço, posicionando ele num lugar, mas esse lugar não é o da identidade apaziguada por um ideal, mas é carregado de diferenças. Portanto, precisamos desconstruir essa noção redutiva de “genius loci” para pensar um projeto urbano como espaço de alteridade. Pois, o genius loci 23


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reivindica e posiciona o corpo dando a esse um sentido de lugar, mas nunca esqueçamos que esse lugar só acontece na presença do outro; e é justamente na presença do outro e no compartilhamento da diferença que o lugar se expressa como público. Assim, se há algum sentido de projeto, não pode ser esse que é atraído por um essência, designando um caráter, uma identidade, mas aquele que expõe a diferença. O lugar e seus valores históricos não carregam em si marcas de um consenso, pelo contrário, trazem rupturas, cicatrizes, conflitos. Tampouco o arquiteto é isento de uma posição ideológica. Portanto, o consenso não é “natural”. É preciso produzir um outro olhar que justamente desnaturalize esse processo. É fundamental produzir um ruído. Busquemos um outro olhar, não como um Outro que não participa, mas como um Outro que produz sim a diferença e que inclua outras perspectivas. Repensemos o “modelo das referências” (Figura 2). Pensemos, então, as “referências arquitetônicas” não mais como uma síntese que carrega uma “verdade” em si, mas olhemos essas imagens com desconfiança, como quem olha o igual, buscando nele traços de diferença. Precisamos estranhar essas imagens para produzir desvios. Produzir rupturas nesse circuito consensual. Olhar a imagem pelo estranhamento é deslocá-la de seu lugar de conforto representacional. Busquemos na teoria da imagem alguma possibilidade de desconstrução da noção de imagem como representação. Algo que nos permita romper, rasgar, deformar essa idealização das imagens representadas aqui pelas referências arquitetônicas. 24


imagem em Georges Didi-Huberman

Figura 2: Modelo nĂŁo consensual Fonte: autor, 2018 25


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Didi-Huberman, em “Diante da imagem” (2015a), propõe uma reflexão sobre a “rasgadura da caixa da representação”. Pensemos nisso, “rasgar a imagem”. O que significa rasgar imagens? Certamente não é abandoná-las, tampouco destruí-las, pois estamos aqui completamente inseridos no campo das imagens, mas enxergá-las de outra maneira. Posicionar nosso olhar num desvio. Rasguemos a imagem-objeto para ganharmos uma imagem-processo. Façamos uma “dupla rachadura”, nos propõe Didi-Huberman: uma rachadura na simples noção de imagem e outra na noção simples de lógica. Rachar a imagem para ele, significa “voltar a um questionamento da imagem que não pressuporia ainda a “figura figurada – refiro-me à figura fixada em objeto representacional –, mas somente a figura figurante, a saber, o processo, o caminho, a questão em ato” (DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 187). Essa noção de imagem como processo nos permite pensar as referências arquitetônicas de um outro lugar de fala. Não mais como representação de um ideal, mas como imagens operantes, operantes em um processo de conhecimento. Produzimos, então, pensamento com o projeto, e não mais só arquiteturas objetuais. Pensemos então uma estrutura da imagem rasgada. Tudo isso para construirmos um jogo que possibilite a criação de lugares, permitindo o surgimento de uma nova potência. A essa potência, Didi-Huberman nomeia “potência do negativo”, referindo-se a um trabalho feito na imagem que escava o visível e atinge o legível, alternando a lógica de uma ordenação da representação e de 26


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sua significação. A relação entre o visível, ou seja, a maneira como os aspectos da imagem se apresentam na representação, e o legível, ou seja, a maneira como o processo de significação se arma em todo sua lógica simbólica, é fundamental para a compreensão da noção de imagem na sua estruturação. É justamente nessa regressão à algo que ainda não vemos, mas que desejamos que nos olhe, que desejamos mergulhar. Lugar esse de contato com traços, restos que foram encobertos por um apressado consenso e transformado em imagem ideal. Didi-Huberman entra nessa imagem, agora rasgada, escavada, destruindo a noção de visível e daquilo que nos dá como totalmente legível, através da teoria psicanalítica, principalmente por duas noções: a de sintoma e dos sonhos. Didi-Huberman atribui a Sigmund Freud [1856 – 1939], neurologista e psicanalista austríaco, o rompimento da “caixa da representação” através da sua compreensão de sintoma e de seus estudos sobre a interpretação dos sonhos. A partir dai, na concepção de Didi-Huberman, é possível estruturar um pensamento que permita ler o “tecido da representação com sua rasgadura” e pensar a “função simbólica com sua interrupção”. Essa posição que se sustenta na cultura da psicanálise, principalmente nos estudos de Sigmund Freud e, posteriormente com Jacques Lacan, permite a ele valorizar uma leitura da imagem como um “não-saber”, ou seja, a imagem, nessa perspectiva, não condensaria todo um sentido em uma forma visível e legível.

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A rasgadura da imagem é uma rasgadura no “saber” que a imagem como representação carrega em si como uma síntese ideal. O que DidiHuberman busca é um ainda “não-saber” que a imagem esconde e que a ideia de sintoma pode revelar. Nesse processo de desmontagem de um sentido único da imagem, ele agrega ao pensamento psicanalítico o trabalho árduo sobre montagem feito pelo historiador de arte alemão, Aby Warburg [1866 – 1929]. A principal contribuição de Warburg foi através da sua obra inacabada, “Atlas Mnemosine”. Esse atlas era uma forma de leitura da imagem que rompia com um sentido de essência e de fechamento do significado a ser revelado pelo leitor. As imagens eram organizadas em paineis onde o sentido não se expressava na imagem em si mas na relação entre elas. Essas duas influências, Aby Warburg e Sigmund Freud são estruturantes no pensamento de Didi-Huberman e permitem que ele construa um pensamento crítico a uma outra “corrente” da história da arte que vê, no estudos das imagens, a condensação de um sentido que será revelado na compreensão de uma certa noção de “verdade” ou “essência” da imagem. Ele se refere a Ernst Cassirer [1874 – 1945], filósofo alemão, e Erwin Panofsky [1892 a 1968], crítico e historiador da arte alemão, ambos de filiação kantiana, que buscam um sentido de imagem que sintetize um saber. Em “Diante da imagem” ele faz uma extensa crítica a essa posição frente à imagem, mas que aqui não nos deteremos, nos interessando apenas por essa ideia de “saber” que está implícita no pensamento de Panofsky. 28


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Com isso, Didi-Huberman posiciona-se afirmando que “desde o início, portanto, Freud terá proposto um modelo visual que não podia ser explicado nem pela concepção clássica do disegno, por causa de sua transparência mimética, nem a da imagem-monograma (o esquema kantiano), por causa de sua homogeneidade sintética” (2015a, p. 192). Assim, reforçando sua postura de rasgadura ao conceito clássico de representação. O trabalho do sonho como fonte de rasgadura da imagem como representação, como semelhante, pode ser exemplificado em uma citação de Freud retomada por Didi-Huberman: “o sonho não pode de maneira alguma exprimir a alternativa, ‘ou, ou’; ele reúne seus membros numa sequência, como equivalentes” – ou seja, aqui também, como copresentes: assim ele apresentará juntas todas as possibilidades da alternativa, “embora elas se excluam quase mutuamente” do ponto de vista da lógica” (FREUD apud DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 189). Desse modo, as certezas não têm espaço, porque a possibilidade da copresença de concordâncias e discordâncias tornam-se válidas através de uma composição de imagens que nunca puderam ser objetos de percepção, nos diz Didi-Huberman. A contribuição do sonho freudiano para o estudo das imagens é de tal importância que permite a Didi-Huberman um deslocamento do sentido de semelhança. O que está em jogo nisso é o rompimento de um certo mimetismo que é dado pela semelhança. “Portanto, não há mais “termos” que valham, mas somente relações em nó, passagens 29


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que se cristalizam. [...] Assim, os “processos de figuração do sonho” acabam por rachar ao meio, com a semelhança, o que entendemos habitualmente por “representação figurativa” (DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 200). Esse rompimento da representação figurativa que permitiria uma interpretação totalizante da imagem é resultado do efeito de sintoma. O sintoma impõe a esse processo de rasgadura um “não-saber”. Ou seja, é preciso se deparar com o sintoma como se estivéssemos frente a um enigma – algo há para ser decifrado ao mesmo tempo que não há nada a fazer. O sintoma seria, nessas condições, aceitar um não-saber, deslocando a posição de um sujeito que sabe, nos diz Didi-Huberman. É exatamente nesse não-saber que o sintoma impõe, que é possível pensar as imagens arquitetônicas por um desvio de sentido que não mais o representacional. O sentido freudiano de sintoma nos posiciona no vazio da imagem, “quando o que vemos é suportado por uma obra de perda, e quando disto alguma coisa resta” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 80). Uma cisão que abre o ato de ver. Um corte. O olhar se abre. Abre para aquilo que olho e a um vazio que me olha. Esse olhar que abre em dois significa, para Didi-Huberman, que o ato de ver alguma coisa desdobra-se automaticamente em um vazio que nos olha. A presença do vazio no ato de olhar é quando sentimos que algo nos escapa. Ele nos convoca a pensar o ato de ver como uma perda. Nas palavras dele, “abramos os olhos para experimentar o que não vemos”, ou seja, “o 30


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que não vemos com toda a evidência do visível” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 34). Encaminhar essa questão para o campo da arte, como faz Didi-Huberman, é pensar imagens que carregam em si algo para além do visível e do legível. Na esteira do pensamento de Georges Bataille, principalmente, revisando a publicação da revista Documents [1929 e 1930], DidiHuberman pensa o regime da imagem, reconhecendo que Bataille, melhor do que ninguém, soube tornar a imagem dilacerante mais do que dilacerada. Para Bataille, a imagem não é tomada como um objeto representacional, mas algo que se destrói, como algo que destrói qualquer traço de identidade. Então, mais do que conceber a imagem dilacerada como um objeto, ele posiciona a imagem como um ato, dilacerante. E como ato dilacerante, sempre na ordem do sintoma, como produção de estranhamento. Didi-Huberman chama a atenção de que Bataille utiliza uma noção de sintoma diferente do senso comum – como sinal da doença – “para uma compreensão dialética que o situa como uma passagem obrigatória – o insólito obrigatório ou o anormal obrigatório, poderíamos dizer – de toda relação, de toda “comunicação” de toda forma dada” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 359). Para Didi-Huberman, a partir da experiência da revista Documents, Bataille pode tensionar a noção de semelhança, seja de maneira teórica nos escritos, seja de maneira prática, nos exercícios de montagem figurativas. “O próprio plural do título Documents já indicava que o 31


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desafio e a utilização das imagens, nessa revista, concerniam menos aos termos do que às relações; concerniam, portanto, menos a um sentido a “ser dado” às imagens do que a um sentido a lhes “ser retirado” (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 23). Essa noção de um “sentido a ser retirado” permite que possamos sair da imagem como identidade representacional e possamos construir novas “relações” que estão para além do objeto-imagem. Aqui surge, a noção de transgressão da forma. “A forma e a transgressão devem uma à outra a densidade de seu ser”, diz Didi-Huberman (2015b, p. 28). A transgressão só pode estar em relação a algo que se institui como forma – “é preciso dizer não somente que a transgressão está ligada à forma ou ao limite que ela transgride, mas também que a forma talvez constitua menos o objeto da transgressão” (2015b, p. 28). Com isso, ele chama a nossa atenção para o fato de que a transgressão se constitui mais como uma abertura do que uma recusa em si. Assim, “transgredir as formas não quer dizer, portanto, desligar-se das formas, nem permanecer estranho ao seu terreno. Reivindicar o informe não quer dizer reivindicar não-formas, mas antes engajar-se em um trabalho das formas equivalente ao que seria um trabalho de parto ou de agonia: uma abertura, uma laceração, um processo dilacerante que condena algo à morte e que, nessa mesma negatividade, inventa algo absolutamente novo, dá algo à luz, ainda que à luz de uma crueldade em ação nas formas e nas relações entre formas – uma crueldade nas semelhanças. Dizer que as formas “trabalham” em sua própria transgressão 32


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é dizer que esse “trabalho” [...] faz com que as formas invistam contra outras formas, faz com que as formas devorem outras formas. Formas contra formas” (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 29). Esse investimento das formas contra as formas muito mais do que excludentes ou anuladoras, elas funcionam construindo sentidos múltiplos, sendo valorizadas mais as relações do que os termos. Com esse sentido, as referências arquitetônicas funcionam não mais isoladamente como imagem modelo, mas entre diferentes imagens produzindo no entre imagens um sentido possível. Sentido esse que não está mais presente no objeto imagem, mas na relação entre elas. Didi-Huberman utilizando uma citação de Bataille aposta nessa direção, vejamos: “relacionar ou “aliar ideias e palavras comumente opostas e contraditórias entre si, [...] de maneira que, ao mesmo tempo que parecem estar em conflito e se excluir reciprocamente, elas atingem o intelecto com o mais surpreendente acordo e produzem o mais verdadeiro sentido, como o mais profundo e mais enérgico” (BATAILLE apud DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 48). A operação produzida do choque entre imagens (referências arquitetônicas) descobre e revela novos sentidos antes tomados por conflitivos. A semelhança em Bataille apresenta-se como provisória – se assemelha para falar ao contrário. Ela “forneceria a ferramenta para uma apreensão radical – desproporcional, violenta, cruel ou dilacerante – da diferença, da heterogeneidade e da capacidade que as coisas têm de se transformar e até mesmo de se reverter em seu contrário” (DIDI33


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HUBERMAN, 2015b, p. 96). Nunca uma semelhança para copiar ou seguir, mas acima de tudo, uma semelhança para sair dela como algo diferente, na relação. E é justamente pela relação que se pode tomar a forma pelo informe. A noção de informe não se apresenta como uma não-forma, mas como uma relação. “O informe de modo algum qualifica termos – “coisas informes” enquanto tais – e sim relações: o informe não é nem uma pura e simples negação da forma nem uma pura e simples ausência de forma” (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 148). Aqui retornamos à noção de imagem como ato e não como coisa: ou seja, é sempre uma operação. Essa é uma noção-chave para entender a rasgadura da imagem, pois rasgamos o objeto-imagem para deixar surgir a relação-imagem. Para longe da noção de “abjeto”, o informe batailliano é um processo dinâmico. É colocar as formas em movimento e tirá-las da sua inércia figurativa. Essa “colocação em movimento das formas”, segundo Didi-Huberman, “constitui inclusive a principal ferramenta das grandes “desmontagens teóricas” que Bataille visava ao colocar em jogo o informe contra todas as noções tradicionais da forma, da semelhança ou do antropomorfismo”(DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 148). Esse informe, na visão de Didi-Huberman, é a capacidade que as formas têm de se deformarem sempre, de se esmagarem, de se entregarem a uma dessemelhança consigo mesmas, passando do semelhante ao dessemelhante. É fundamental apreender essa noção de informe para compreender as referências arquitetônicas como algo a desmontar a 34


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fim de eliminar qualquer traço identitário. O informe não é só o ato de esmagamento, mas sobretudo, a implicação de uma alteridade. É a abertura ao outro que o informe propõe – capacidade essa do informe “em que a forma se aglutina, no momento em que o dessemelhante vem tocar, mascarar, invadir o semelhante; e em que a forma, assim desfeita, termina por se incorporar a sua forma de referência – à forma que ela desfigura mas não revoga –, para invadi-la monstruosamente por contato e por devoração” (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 149). Esse processo de esmagamento que o informe possibilita é o que talvez seja melhor exemplificado pela noção de “sintoma”. Há três movimentos nesse deslocar ou nessa abertura da forma: as “determinações contraditórias ou as divergências das formas”; “colocação em movimento” e a “consequência decisiva”. “É reconhecer na “colocação em movimento” dessas “determinações contraditórias”, algo que se abre, que vai além, ainda que no sentido de uma ferida e de uma queda: uma consequência decisiva, que nomeará de modo geral aquilo por meio do que as formas proliferam e nos atingem, aquilo por meio do que as semelhanças nos tocam enquanto “sintomas de um estado de coisas essencial” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 233). Didi-Huberman retoma a dimensão de processo das formas para dizer que “a questão não é mais tanto a de saber o que as formas são – problema mal colocado – quanto a de reconhecer o que elas fazem, na qualidade de processos “percussivos” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 233). Percussivos no sentido do tipo de impacto profundo 35


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que elas despertam, no incessante movimento repercussivo de formas contra formas, o que Bataille nomeia de “decomposição”, nos diz DidiHuberman. Considerando que o informe está diretamente ligado a um processo de metamorfose que no seu vai e vem produz repercussões, teremos, então, como resultado um processo de alteração e de desvio que constrói uma dialética das formas. Didi-Huberman (2015b, p. 322) aponta para duas dialéticas das formas: uma “entregue a seu desejo de controle – tese, antítese e síntese”; e outra dilacerada – tese, antítese e sintoma. “A cruel dialética entre o que vemos e o que nos olha. Fazer imagens e olhá-las, montar imagens para deixá-las remontar a nós, não seria mais, desde então, que fomentar essa dialética na experimentação conjunta da marcação e da abertura: marcar para abrir, se fazer marcar para se fazer abrir. Isto é, inventar dispositivos relativamente estáveis – compostos, construídos –, e, no entanto, capazes de desestabilizar toda e qualquer disposição usual (informática, narrativa, iconográfica) por meio da qual os signos sejam espontaneamente manejados” (DIDIHUBERMAN, 2015b, p.51). Em síntese, sintoma, na leitura de Didi-Huberman consiste em “algo que arruína a normalidade, que dilacera a “vida” ou o “ser”. Mas é algo que arruína, que dilacera justamente enquanto sintoma de ser, vida sintomal do ser. Quando Bataille, desde o primeiro número de Documents, fala do sintoma como algo que revela um “estado de coisas 36


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essencial”, ele quer dizer que o sintoma, cuja “formação” se identifica com o próprio movimento do informe, “desclassifica” e “desmente” a ideia humanista que se costuma fazer de ser – ser um humano, ser humano – e a reconduz a essa pesada verdade nomeada por ele “a situação imbecil que consiste em ser”. A função essencial de uma dialética das formas seria desde então, estritamente falando, deixar as formas doentes [...] porque a função essencial de uma arte em geral não é outra senão a de “comunicar” ou de “repercutir” a doença, o mal-estar, o mal de ser” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 364). Retomemos as referências arquitetônicas não mais como sínteses, mas como sintoma. Mas isso só é possível se a tomamos em conjunto, em choque, em deslizamentos, a fim de produzir o desabamento das identidades. Não se fala mais aqui em imagem, mas em um processo dialético sem síntese. Falemos em uma dialética sintomal. E lembremos que o que o sintoma produz é uma abertura no saber, uma ferida que se abre na identidade, deslocando e colocando em cheque o sujeito do saber. É a própria montagem do informe. Falemos em forma ainda, mas acima de tudo, em formas dilaceradas e destruídas, sempre no coletivo. Didi-Huberman nos diz que essas montagens, ou mesmo, essas formas colocadas contra formas, foram maneiras de transgredir uma estética clássica, produzindo dessemelhanças e lacerações, a fim de produzirem processos, relações, nunca estados.

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[esboço] produção da diferença Pensemos então, a partir de agora, as imagens sempre em um arranjo, uma montagem. Uma montagem que se produz a partir de uma desmontagem de uma situação estável. Que se produza sintomas! Avancemos sobre as imagens estáveis! Busquemos a rasgadura das imagens-sínteses! Esbocemos uma montagem a favor do múltiplo, a fim de construir um sentido que é dado para além de um único significante. No sentido dado por Deleuze do “n-1”, onde a totalidade não existe, onde o fechamento do sentido nunca ocorre, pelo contrário, é um múltiplo que está sempre em movimento, aberto. Este múltiplo é a montagem. O valor da montagem está justamente na sobreposição de informações que um múltiplo de imagens podem produzir, e quando está longe da clausura do sentido ou qualquer outra possibilidade de fechamento. De forma alguma é possível admitir a totalidade nas montagens, mas sempre uma multiplicidade de imagens. A montagem para Didi-Huberman é um procedimento ou um arranjo experimental de corte com uma possível leitura continua da realidade. Ao descrever um fato, há sempre algo por trás daquilo que se apresenta. Esse algo é menos uma fonte ou raiz da situação e mais uma “rede de relações” que impõe ao observador olhar o fato a partir de vários pontos de vista. Nessa rede de relações, o sentido só pode ser produzido no atravessamento desses diversos “olhares” que são 38


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produzidos nos atos de montagens. Isso produz uma rasgadura em um possível sentido exposto e óbvio, abrindo a um vasto campo de leitura e inibindo uma leitura que busque uma ação de revelação ou descoberta. O ato de montagem é, assim, um procedimento de interrupção, suspensão, corte, e remontagem de uma dada realidade, a fim de “tomar posição”. Posição essa que não significa nada mais nada menos que “tomar conhecimento”. Por isso, as referências arquitetônicas não podem ser vistas como imagens icônicas de uma dada situação e devem ser vistas como um conjunto de relações que falam para além delas. Contudo, não cabe só relacionar um número maior de referências, mas, acima de tudo, é necessário produzir o choque entre imagens e o consequente apagamento delas individualmente em prol de um sentido mais amplo. Didi-Huberman ao examinar a obra de Brecht atribui ao seu conceito de “distanciamento” essa “tomada de posição”, chamando a atenção para o fato de que distanciar não significa afastar, mas sobretudo, aguçar o olhar. Aguçar o olhar é abrir o olhar crítico para que um estranhamento possa ser produzido ai. É preciso produzir conhecimento ao revelar a ilusão. “É justamente fazer aparecer a imagem, informando ao espectador que o que ele vê não é senão um aspecto lacunar e não a coisa inteira, a própria coisa que a imagem representa” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 62). Portanto, “distanciar é mostrar”, nos diz ele.

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“Mostrar que se mostra, isso não é mentir sobre o estatuto epistêmico da representação: é fazer da imagem uma questão de conhecimento e não de ilusão [...] Distanciar seria mostrar mostrando que se mostra, e assim dissociando – para melhor demonstrar a natureza complexa e dialética do que se mostra. Nesse sentido, distanciar é mostrar, isto é, desunir as evidências para melhor unir, visual e temporalmente, as diferenças. No distanciamento é a simplicidade e a unidade das coisas que se tornam longínquas, ao passo que sua complexidade e sua natureza dissociada passam ao primeiro plano” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 62). O distanciamento posiciona o olhar com um certo afastamento necessário para que se produza um estranhamento, permitindo a existência da montagem, ou melhor, a remontagem. Esse estranhamento rompe com qualquer realidade que nos pareça familiar e conhecida para remeter a um campo de possibilidades que antes não eram vistas. O ato de remontagem é sempre uma nova disposição, não necessariamente exista criação, mas um jogo de reposicionamento das imagens, nos diz Didi-Huberman. Ele afirma que “tudo se parte para que possa justamente aparecer o espaço entre as coisas, seu fundo comum, a relação despercebida que as agrupa apesar de tudo, ainda que essa relação seja de distância, de inversão, de crueldade, de não sentido” (2017, p. 72). O que se faz aparecer não é senão as diferenças e os possíveis conflitos, e não uma simples disposição das imagens.

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A noção de dialética na qual Brecht se refere é aquela que, diferente da dialética hegeliana que se contenta com produzir uma diferença no discurso, na “montagem, fabrica heterogeneidades com vistas a dis-por a verdade numa ordem que não é mais precisamente a ordem das razões, mas a das “correspondências”, das “afinidades eletivas”, das “rasgaduras” ou das “atrações” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 72).

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em processo [para concluir] Por fim, retomemos nossa imagem-primeira, não mais para no seduzir, mas para produzir um estranhamento sobre o processo. Retomemos também as imagens-segundas não mais inteiras, belas e icônicas, mas dilaceradas, rasgadas, e em conflitos. Pensemos, então, o projeto não mais como resolução, mas sobretudo como processo. Busquemos em Paola Jacques, um reforço dessa posição frente ao projeto e, mais especificamente sobre a elaboração das imagens nos processo de montagem. Segundo ela, a montagem “não parte de ideias já dadas, de nexos prontos, ao contrário, busca encontrar possíveis nexos ainda não conhecidos durante a própria prática (exercício ou jogo) da montagem, ao atuar a partir das diferenças sem buscar qualquer tipo de unidade ou de totalidade e ao tentar separar o que normalmente está reunido e conectar o que está habitualmente separado” (2015, p. 77). Desmontemos, então, um pensamento sobre projeto que busca incessantemente uma resolução, e remontemos, com cacos, com restos, um projeto como pensamento – aberto, composto, crítico, e que acima de tudo inclua as diferenças.

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referências do texto CROSS, Nigel. Designerly Ways of Knowing. London: SpringerVerlag, 2010. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2015a. DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015b. DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Belo Horizonte, 2017. FLUSSER, Vilém. Filosofia del Diseño. Madrid: Editorial Sintesis, 2005. JACQUES, Paola. Montagem Urbana: uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo. In: JACQUES, Paola; BRITTO, Fabiana; DRUMMOND, Washington (org.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Salvador: EDUFBA, 2015. 4v. Il. (Coleção PRONEM). LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017. SCHÖN, Donald A. Educando o profissional reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000. 43



as montagens


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obliterรกrio

Ana Laura Nunes

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[1] [imagem disparadora] 48


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o argumento Em 1987, na cidade de Goiânia (GO), dois catadores de papel descobriram, na área central do município, uma cápsula que continha Césio-137, material altamente radioativo. Estes, ao abrirem a cápsula, encontraram a substância de aspecto brilhante, que ao ser conduzida a diferentes lugares da cidade, contaminou pessoas e matéria física. Dos lugares contaminados, destaca-se a Rua 57, onde ficava localizada a residência de um dos indivíduos que encontrou a cápsula. A pequena extensão dessa rua, de apenas duas quadras, contrasta com a grande dimensão do que ali aconteceu. Para descontaminação, o lote onde se localizava a referida casa se transformou em superfícies concretadas, hoje degradadas. Tudo em que lá existia, inclusive vegetação e camadas do solo, foi removido e armazenado adequadamente em outra localidade. A remoção do contaminado, do que pode transmitir radioatividade ou causar mazelas tangíveis parece se estender para além do concreto, indo ao encontro do abstrato, ao imaterial. A imagem apresenta o registro de uma placa de identificação de rua situada na Rua 57. Com o seu conteúdo apagado, sem a informação utilitária a que é proposta, a placa adverte algo maior: que memória ou amnésia urbana se constrói em cima de esquecimentos forjados? 49


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as formas divergentes [2] A marca de um dedo, um rastro, uma cicatriz, um traço, que sobrevoa um vidro, um coração ou uma calçada de uma cidade. O concreto que recebe essas letras é o mesmo concreto que poderia não recebê-las.

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[3] A denúncia de um acontecimento, de um corpo que caiu, sangrou ou levantou. A transformação do que tinha peso, massa e densidade em uma linha quase tão tênue quanto um fio de cabelo, tão sútil quanto uma gota de chuva que escorre na janela. Uma simplificação que deixa algo para trás. [4] A cantiga faz menção ao desejo de posse de uma rua qualquer, onde há um bosque. Essa “rua qualquer” é única para cada um atingido por essa melodia. No plano da imaginação, uma rua cravejada de pedras preciosas é a mesma rua de onde asfalto, concreto e árvores choram sangue abandonado. [5] Ainda que simbólico e pretensioso, o rompimento, a destruição de uma memória pode enfraquecê-la. Mas até que ponto e para quem? Como se encerra uma lembrança, para além da sua materialidade? [6] Um aparato que dá luz à possibilidade de criar uma camada de novas escritas, narrativas, significados de maneira torrencial (e barulhenta). [7] Simulacro de uma identificação que guarda mais do que uma simples recordação: guarda uma vida. É um souvenir da sobrevivência.

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[8] Independente do sabor, marca ou procedência, os vários chicletes colados em um parede no espaço público oferecem um diferente (e curioso) tipo de apropriação, intervenção e reminiscência coletivas ou individuais. [9] Nojenta ou não, uma fresta no aparelho bucal entrega e explicita o quão visceral uma perfuração (ou sintoma) pode vir a ser. [10] Apagou-se o fogo. A transformação da matéria é denúncia e testemunha do que passou. Restou somente uma marca, um vestígio que aponta para a vereda da ausência. [11] Estrelas que caíram, despencaram do céu. O seu brilho, que celebra um universo de feitos e ocorrências extraordinárias, esmaga e apaga um outro universo de feitos e ocorrências ordinárias ou inconvenientes. [12] Códigos, números, siglas, fotografia e pele. Sistema tão organizado e fechado que a sua própria falta ou falha é capaz de dilacerálo.

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referências das imagens [1] [imagem disparadora]. Fonte: da autora [2] [Calçada, Portland, OR, USA]. Fonte: da autora. [3] [imagem sem título]. Fonte: <https://www.dreamstime.com/ royalty-free-stock-photos-crime-scene-silhouette-image12916578>

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[4] [imagem sem título]. Fonte: da autora. [5] [imagem sem título]. Fonte: <https://noticias.uol.com.br/politica/ eleicoes/2018/noticias/2018/10/04/placa-de-marielle-foi-quebradapara-restaurar-a-ordem-diz-flavio-bolsonaro.htm>. [6] [imagem sem título]. Fonte: <https://br.freepik.com/ fotos-gratis/maquina-de-escrever-retro-estilo-antigo_3001187. htm#term=typewriter&page=1&position=4> [7] [Edison Fabiano em Lacerda, 2018]. Fonte: da autora. [8] [Gum Wall, Seattle, WA, EUA]. Fonte: da autora. [9] [imagem sem título]. Fonte: <https://mdfrossard.com.br/perda-dedentes/>. [10] [imagem sem título]. Fonte: <https://stockarch.com/images/ abstract/concept/burnt-safety-match-3939>. [11] [Calçada da Fama, Los Angeles, CA, EUA]. Fonte:<https://i. pinimg.com/564x/4c/cd/a0/4ccda0030a4b77c8ec3989171d48e282. jpg>. [12] [imagem sem título]. Fonte: <http://4.bp.blogspot.com/5k4KNMdwxng/T5G4rAbeRRI/AAAAAAAAHFI/AX_RvANwJI8/ s1600/untitled.bmp>. 56



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[1] [museu nacional em chamas] 58


o papel da cultura, da educação e da pesquisa no Brasil atual Ana Luisa Seixas


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“Todos que por aqui passem, protejam esta laje, pois ela guarda um documento que revela a cultura de uma geração e um marco na história de um povo que soube construir seu próprio futuro.” (Inscrição localizada defronte ao Museu Nacional - Rio de Janeiro) 60


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o argumento No dia 2 de setembro de 2018, o Museu Nacional, localizado na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, sofreu um incêndio de grandes proporções que destruiu e comprometeu toda a construção e o seu acervo. Além do valor histórico da edificação, o local é considerado um dos maiores e mais importantes Museus do Brasil e do Mundo, com um acervo de mais de 20 mil peças. Entretanto, devido ao incidente, ainda não é possível saber o tamanho da perda, segundo destaca a direção do Museu1: “Infelizmente, ainda não podemos confirmar o que pode ou não ser salvo. Sabemos que os danos foram imensos, mas ainda consideramos cedo para qualquer balanço ou diagnóstico.” 1

Site do Museu Nacional, Acessado em outubro de 2018. 61


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A imagem do Museu Nacional queimando, ao vivo, nas redes sociais e na mídia, sem que as autoridades e os técnicos tivessem capacidade ou condições de salvar o acervo ou apagar o fogo, gerou uma enorme repercussão nacional e internacional. Embora tenham sido realizadas vistorias técnicas e houvesse conhecimento sobre o risco iminente de um incêndio de grandes proporções, não foram tomadas medidas para evitar ou minimizar o problema. Infelizmente sabe-se que a situação precária do Museu Nacional não é a única, sendo que muitos Museus brasileiros se encontram em situação similar ou pior. Ademais, o Museu Nacional, gerenciado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, vive uma situação de corte de verbas, com um repasse anual insuficiente para a sua manutenção básica, fato que também ocorre com a própria Universidade do Rio de Janeiro e com demais instituições públicas de ensino. Refletindo-se sobre essa “imagem disparadora” do Museu Nacional queimando, é possível, a partir dela, levantar alguns pontos de reflexão. Reflete-se sobre a situação de abandono e de descaso do Museu que possui, além do acervo, pesquisas importantes; a efetiva valorização da cultura, educação e pesquisa por parte da população brasileira e seus governantes; a excessiva burocracia e o desmantelamento de órgão de preservação e a falta de diálogo entre as diferentes instituições (corpo de bombeiros, IPHAN, IBRAM, Universidade, MinC); o investimento e a destinação de dinheiro público e privado (através da Lei de Incentivo à Cultura) para eventos de “massas” como a copa do mundo 62


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e olimpíadas em detrimento de Museus e outras Instituições culturais; o desmantelamento de Universidades e Instituições de pesquisa, que não recebem verba suficiente; ... Diante desses e de outros questionamentos, essa imagem sugere um questionamento mais amplo: Qual o papel que Educação, Cultura e Pesquisa possuem no Brasil atual?

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as formas divergentes [2] Vidas inteiras doadas a um trabalho, a uma pesquisa, a um patrimônio...Vidas doadas a um passado para que haja um futuro... Em segundos, tudo se destrói... E o que resta é recolher com cuidado, o que sobrou... [3] Um vazio existencial invade... Quem sou, para onde vou? Ninguém fala, ninguém escuta... Não há o que ser dito e não há o que ser escutado... [4] A infância roubada, a falta de opção... Um longo caminho pela frente mas um futuro incerto... O patrimônio é uma ponte entre o passado e o futuro... Que futuro é esse se não há um passado? [5] Uma obra de arte, um edifício histórico, um acervo museológico... Tantos valores envolvidos... Valor histórico, artístico, cultural, sentimental ... Valor econômico, de poder, de dominação, de submissão... [6] Não é apenas um museu que queima diante de nossos olhos... Não é apenas a cultura desvalorizada, a educação em segundo plano, a pesquisa científica abandonada... São tantas coisas, tantos assuntos e tantas prioridades... Que é difícil saber por onde começar...

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[7] Uma folha em branca... uma história que estava escrita, mas foi apagada... Erros do passado... Que comprometem o futuro... [8] Sem direção, atônitos, sem entender o que está acontecendo... O mundo que conhecemos está mudando diante dos nossos olhos... Andamos sem rumo, sem direção... E não sabemos onde vamos chegar... [9] Um curto circuito, uma vela, um aparelho numa tomada, uma fiação antiga... Uma verba orçamentária não repassada, um relatório técnico esquecido em alguma gaveta, uma outra obra que traz mais voto... Um pequeno deslize que apagou um passado e comprometeu um futuro... O fogo foi apagado, e o futuro?

referências das imagens

[1] [museu nacional em chamas] Fonte: Agência © Reuters. Disponível em: https://static.noticiasaominuto.com.br/stockimages/1920/ naom_5b8c822ace52b.jpg?1536595323 67


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[2] [vidas dedicadas]. Fonte: http://www.vermelho.org.br/admin/ arquivos/biblioteca/funcionarios_tentam_salvar_parte_de_acervo_do_ museu_2125203.jpg [3] [vazio]. Fonte: https://www.lastampa.it/2017/08/31/vaticaninsider/ church-and-psychoanalysis-from-condemnation-to-partial-reconciliationyb3zn5cOzFwrl1Zw7CDrbL/pagina.html

[4] [sem futuro]. Fonte: https://finalcutassistant.info/black-and-whitepicture-of-a-child/3/ [5] [valores]. Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/decisao-demacron-de-devolver-obras-de-arte-ao-benin-movimenta-museus-pelaeuropa-23264286 [6] [tanta coisa]. Fonte: http://www.rennovario.org/manifestacoes-anova-cidadania-em-rede/ [7] [erros]. Fonte: https://br.depositphotos.com/111109570/stockphoto-error-erasing-pencil.html [8] [desorientados]. Fonte: https://veja.abril.com.br/mundo/a-meninada-foto-a-historia-por-tras-de-um-simbolo-da-guerra-do-vietna/ [9] [um pequeno deslize] Fonte: http://www.isomovil.com/comoapagar-el-iphone-o-ipad-sin-el-boton-de-encendido/

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[1] [imagem disparadora] 70


espaço para o feminino Débora Schöffel


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o argumento O direito à cidade é um direito coletivo, no qual se estabelece que qualquer pessoa pode usufruir de maneira democrática e digna de um espaço urbano, entretanto a ocupação do espaço das cidades pelas mulheres só começa a ocorrer a partir do séc. XX. Sair dos interiores das residências e, área comumente considerada de “domínio” do gênero, fez com que as mulheres se deparassem com um espaço urbano predominantemente masculino e despreparado para a sua existência. A cidade está muito longe de representar um lugar de autonomia a segurança para as mulheres, que acabam excluindo as opções de contato urbano por medo da violência ou porque o espaço simplesmente não é pensado para a ocupação feminina. Segundo dados do Governo 72


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Federal, apresentados em 2018, as mulheres brasileiras são responsáveis pelo sustento de 37,3% das famílias, possuem uma expectativa de vida de 77 anos de idade e somam um percentual populacional equivalente a 51,4% da população brasileira no presente ano. Perceber que as mulheres são responsáveis pelo sustento de quase 40% das famílias brasileiras, que possuem uma expectativa de vida três anos superior à dos homens que representam mais da metade da população, é compreender que elas representam boa parte das pessoas que se deslocam para o trabalho todos os dias, deslocamento este que faz uso do transporte público. Considerar a cidade um espaço funcional para as mulheres é necessário o envolvimento feminino na tomada de decisões – como por exemplo: o projeto de calçadas e a iluminação adequada para uma via – gerando discussões que devem ser enfrentadas por toda a população para que haja uma mudança na mudança da mentalidade da sociedade e criemos espaços públicos e urbanos mais acolhedores.

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as formas divergentes [2] Ao pensar na figura da mulher, logo nos vem na mente o estereótipo da “mãe-natureza” de que maneira essa figura fica montada dentro dos nossos inconscientes? Seria ela moldável e controlável como uma topiaria ou indomável e implacável como um desastre natural? Qual é a força dessa mãe natureza e por qual motivo ela fica associada ao feminino?

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[3] Tratar da imagem feminina exige muitas vezes quebrar tabus, compreender ou não os motivos pelos quais a nossa anatomia pode ser considerada uma delimitação? Marcar território é uma atividade atribuída aos machos, praticar este mesmo ato seria uma revolução, uma apropriação ou um retrocesso? [4] Manifestantes procuram o seu espaço na sociedade, as culturas estipulam os limites dos corpos e de o que é aceitável em determinado espaço tempo e local, olhando essa foto lembro-me de uma outra imagem, nessa imagem encontravam-se 3 mulheres rindo de topless. Duas negras, nativas de uma tribo africana, e uma americana. As duas nativas caíram no riso quando compreenderam que a sociedade tinha fetiche em seios, pois para elas os seios eram apenas para a alimentação de seus descendentes. Na presente imagem percebemos de uma maneira velada exatamente a mesma reação? [5] Gênero trata-se de um padrão construído, quando tapamos a cabeça desta pessoa da foto temos uma percepção de gênero e quando vemos o rosto dx individuo somos chocados com uma realidade oposta, compreende-se um pouco do que Simone de Beauvoir externava em sua “célebre” frase: “Não se nasce Mulher, torna-se Mulher”. Este existencialismo fica cada vez mais marcado em nossa efervescente cultura que não prega mais a empatia e muito menos compreende-se a sororidade. O machismo é sistêmico, afeta a todos, muitas vezes de maneiras diferentes misoginia, homofobia, lesbofobia, transfobia... 77


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[6] O assédio, atitude que nem sempre precisa ser física e muito menos vir de um homem para existir. Passar por uma situação de assedio marca. Nossa sociedade tem a figura da mulher tão definida como culpada que passamos boa parte da nossa vida criando barreiras para não passar por esse tipo de situação, o que via de regra é ineficaz. Compreender e eliminar o assédio é algo que depende de mudar a postura do assediador? [7] O que a sociedade pensa e como rotula uma mulher que passa a barreira do gênero, continua performando a feminilidade e ao mesmo tempo vive em um ambiente dito “masculino”. Triste? Louca? Vadia? [8] O que são as pessoas, o que são as coisas e como resolvemos os dilemas da sociedade? Quanto vale o nosso tempo? Quanto precisamos dos minutos que eram gastos para passar aspirador na casa, este que já é uma evolução da vassoura. E ainda, que figura esta máquina substitui ou representa, será que foi criada apenas para otimizar o tempo ou substitui uma atividade que consideramos insuficiente? Delegamos as maquinas as atividades mais importantes ou as menos importantes? [9] A passagem do livro que gerou o trabalho, o livro conta a história de uma garota, moradora de Porto Alegre, membro de uma das famílias abastadas da época, casada, mãe de dois filhos. Boa casa, cheia de empregadas para ajudá-la em sua função de esposa, mãe e do

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lar. Infelizmente, movida por “ímpetos carnais” apaixona-se pelo primo do marido, o casal adultero foge e ela movida pela culpa procura a paz entre o oceano e o céu. [10] O medo muitas vezes se manifesta no formato da cidade, na aparência do escuro ou na figura de capuz a sua frente, como reflete a imagem. A cidade está cheia de armadilhas e de medos. Onde é que queremos viver, no medo? No não questionamento de gênero ou identidade? Todos nós somos tocados pelo medo ao vermos imagens similares ou outras no nosso dia a dia, de que forma podemos mudar essa cidade?

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referências do texto BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora, v. 34, 2013. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Revista Serrote, v. 13, p. 99133, 2013. OLIVEIRA, Andradina América de Andrade de. O perdão. Porto Alegre: Americanas, 1910.

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referências das imagens [1] [imagem disparadora]. Fonte: https://www.lavozdealmeria.com/ noticia/12/almeria/130667/campana-contra-los-hombres-abiertos-depiernas-en-el-transporte-publico [2] [imagem sem título]. Fonte: http://obviousmag.org/ archives/2008/06/topiaria.html <acesso em 04/12/2018> [3] [imagem sem título]. Fonte: https://pt.dhgate.com/product/softsilicone-emergency-urinal-for-women/414302783.html <acesso em 04/12/2018> [4] [imagem sem título]. Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ ultimas-noticias/2014/08/09/marcha-das-vias-reune-mulheres-ehomens-na-zona-sul-do-rio-de-janeiro.htm <acesso em 04/12/2018> [5] [imagem sem título]. Fonte: https://br.pinterest.com/ pin/492792384211050966/?lp=true <acesso em 04/12/2018> [6] [imagem sem título]. Fonte: http://ansabrasil.com.br/brasil/ noticias/mundo/noticias/2018/03/20/mulheres-devem-decidir-o-quevestir-diz-principe-saudita_2a755b1a-f9c3-4585-9ac6-268ee5fd7733. html <acesso em 04/12/2018>

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[7] [imagem sem título]. Fonte: https://extra.globo.com/famosos/ sula-miranda-vai-para-estrada-apoiar-caminhoneiros-sentindo-napele-22721034.html <acesso em 04/12/2018> [8] [imagem sem título]. Fonte: https://blogdaengenharia.com/ vantagens-desvantagens-robos-limpeza/ <acesso em: 04/12/2018> [9] [imagem sem título]. Fonte: OLIVEIRA, Andradina América de Andrade de. O perdão. Porto Alegre: Americanas, 1910. p.304. [10] [imagem sem título]. Fonte: https://www.shutterstock.com/ pt/image-photo/stranger-walking-streets-on-cold-foggy-93547459 <acesso em: 04/12/2018>



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[1] [edifĂ­cio abandonado no centro de Porto Alegre] 84


cheio de vazios Diego Lopes


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o argumento Vivemos uma crise social. Inicialmente se mostrou como uma crise financeira (2008), destas que vêm para escancarar que algo está muito errado. Depois, se destrinchou em uma crise político-econômica. Mas a verdade é que ela é uma crise de ordem social mesmo. E crises sociais, na realidade contemporânea, se desmascaram como crises urbanas. É nas cidades que os homens, historicamente, se aglomeram para alcançar o seu melhor; e o melhor para si. Ou seja, é o ambiente urbano que atrai a sociedade para um comum, onde se alcança mais junto. Contudo, é na realidade neoliberal, mais avançada, e prestes a apodrecer, que a cidade passa a expelir gente. Com escassas oportunidades para alcançar o melhor que a cidade pode oferecer - a centralidade -, os menos afortunados são empurrados para as periferias. O mais irônico, que na maioria das vezes, esta “expurga” é promovida pelo próprio estado. 86


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Então, em momentos de crise econômica, a realidade mostra sua face mais cruel. Pessoas pauperizadas nos longínquos urbanos, migram para centro, onde as oportunidades, quaisquer que sejam, estão. Primeiro, começam os acampamentos nas calçadas e em locais protegidos. Mas o passo seguinte é a descoberta do que poucos conseguem ver, no correcorre dos dia-a-dia. O centro está cheio de espaços vazios. Prontos e ociosos. Por que? Se inúmeros Urbanistas, Sociólogos e Filósofos já reconheceram que a maior invenção social da humanidade foram as cidades, e sua dinâmica do “juntos”, qual o motivo de as regiões mais completas em termos de infraestrutura estarem altamente subutilizadas? Para resolvermos o déficit de habitação bem localizada e atendida pelos serviços e facilidades, que fazem o viver urbano tão especial, não me parece que construir mais unidades nos fundões das cidades seja o caminho. Colocando bem claramente, o óbvio é que as pessoas mais interessadas e necessitadas, já estão apontando a verdade, partindo para a ação concreta por meio de ocupações. Fazendo valer a função social da propriedade, garantida pela Constituição Federal e reforçada pelo Estatuto das Cidades. Por fim, a pergunta que grita é: precisamos mesmo construir mais para solucionar o problema da habitação em Porto Alegre e no Brasil?

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as formas divergentes Esse texto contextualiza o problema-conflito no âmbito da teoria da imagem. Busquei, incialmente na memória, uma imagem que escancarasse o problema sobre o qual me propunha a discursar. Uma imagem que, com a potência de sua simplicidade, jogasse aos olhos do leitor o problema sem quase que fossem necessárias as linhas a que me dedico. Contudo, ela não me surgiu; como costuma ser o caso, das tarefas que nos parecem simples de princípio.

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Então, com uma leve sensação de derrota, parti para solução que, desde o princípio, me parecia a menos recomendada para a proposição; a busca virtual de imagens. Com a certeza de quem não têm mais muito tempo à disposição, fui o mais direto possível na barra de busca: “Precisamos construir mais moradias para solucionar o déficit habitacional?“. Assumo que, claramente falhei na tarefa de síntese necessária para tal busca. Mas afinal, este era o problema que queria discutir! Obviamente, senti-me obrigado a ser mais sucinto e objetivo. Então com poucos minutos de renovada estratégia, começo a encontrar imagens que podem vir a iniciar o diálogo que estou propondo-me a desencadear. Inesperadamente, um leve exercício de choque entre imagens já começa a resultar em algumas faíscas; mas a busca continua. Por fim, encontro uma fotografia que me prende os olhos por sua obviedade aparente, mas que se mostra uma ótima provocação visual para o conflito que me questiono. Uma estrutura, na cidade onde moro e cresci; pela qual incontáveis vezes passei, e algumas vezes até mesmo cruzei internamente. Desde sempre, lá. Como pode? Como uma edificação tão grande em escala pode estar inacabada, vazia, ociosa, há tanto tempo no centro de uma cidade importante sem que nada tenha sido feito e questionado? Estas perguntas, podem alarmar o leitor que, com uma preocupação estética, coloque que toda a paisagem se mostra igualmente feia. Como toda região central das cidades dos países subdesenvolvidos (ou em 91


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desenvolvimento). Mas este não é o foco da discussão. O que realmente intriga é: por que um centro urbano tão cheio de espaços vazios? As cidades, como centros de concentração de atividades humanas variadas, é, inquestionavelmente, umas das ideias mais astutas da humanidade. Viver, trabalhar, trocar e se entreter, se aglutina nos centros urbanos. Contudo, no desenrolar da história moderna, as cidades começam a se espraiar para as áreas vazias da periferia para assentar aqueles que não eram desejados. Isto desenrolou-se, contemporaneamente, em problemas cujos motivos dispensam exagerado exame para que se possa chegar à uma ponta de sua raiz. Ocorreu-me, então, a imagem da Torre de Babel. Mais especificamente, a famosa tela de Pieter Bruegel. A intenção, evidentemente, não é analisar a obra em si, muito menos envolver-me em uma temática religiosa. Mas sim, usá-la para causar no mínimo um tremor na imagem-discurso. O que poderia a representação de uma lenda bíblica sobre uma edificação que almejava alcançar aos céus e concentrar os homens para sua evolução social nos causar a ver algo de novo na imagem do prédio abandonado e inacabado no centro de Porto Alegre? O que poderia acrescentar o saber que naquela mesma lenda, Deus decide instaurar a “confusão” para que os homens “cessassem de edificar a cidade”? Parece-me possível contextualizar que não apenas uma figura divina seja capaz de instaurar a confusão entre os homens na sua liberdade de configuração da melhor maneira de viver. 92


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A realidade é que, seja qual tenha sido o motivo do abandono daquela construção, atualmente, além de estar abrigando famílias no centro consolidado da cidade ela está no máximo abrigando pombas. O que me fez pensar nos antigos pombais. Construções feitas para dar refúgio a animais normalmente altamente desprezados nas cidades. O que isto teria a nos dizer? Uma ruína de um imenso pombal, mesmo definição que costumeiramente se dá para os conjuntos construídos para abrigar as populações mais desfavorecidas. Ainda que aquela, ironicamente seja localizada em áreas centrais, onde os animais possam encontrar alimento e oportunidades; já os segundos, são localizados nas áreas mais longínquas das cidades. Não poderia a nossa estrutura, abandonada no centro portoalegrense, ser um “pombal” mais central para os humanos que necessitam? Na negligência de tais necessidades, a população pauperizada vai agindo como pode. As localidades centrais, abundantes em oportunidades, sejam elas quais forem, começam a ser o destino óbvio. Qualquer espaço possível, passa a ser um cenário de luta pela cidade. O território como ação. (Reyes). Contudo, é impossível negligenciar a quantidade de imóveis vazios e/ou abandonados nos centros das cidades quando há uma luta popular pelo direito à moradia de qualidade no país. A aplicação, por parte do estado, da obrigatoriedade do cumprimento da função social da propriedade privada se faz obrigatória nesta situação. 93


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Igualmente, há o avanço de movimentos de luta pela moradia, que têm escancarado para a população a questão da crise habitacional nacional. Há anos colocadas, as demandas por habitação de qualidade e inseridas no meio urbano consolidado, tiveram uma breve miragem, mas é no território (Deleuze e Guatarri, 2009) que as lutas são travadas. Com tamanha demonstração da necessidade de moradias, e uma grande quantidade de imóveis abandonados nos centros urbanos só podemos concluir que a inércia estatal faz parte de uma estratégia maquinada. Em conjunto com a burguesia nacional, na figura do mercado imobiliário (que sempre está em pleno funcionamento, indiferente do cenário econômico), o Estado guiado por uma ideologia neoliberal de financeirização econômica entrega todo o bem comum para ser negociado em cotas, como produtos financeiros. A figura do “homem de sucesso”, que “venceu na vida” por seus próprios méritos, confunde a cabeça do cidadão comum. Este, confuso com as pressões cada vez maiores da dura vida cotidiana, é iludido por uma imagem de que basta fazer as decisões certas na aquisição do próximo “produto financeiro”, que alcançará o patamar daquele. Mas a realidade é muito mais complexa que uma mera propaganda. No mundo concreto, a única idealização que se estabelece é a de uma sociedade individualista ao extremo. A ideia de uma sociedade de laços comunitários, em busca do bem geral, por todos e para todos, não passa de linhas de livros infantis.

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Estamos infinitamente mais próximos de uma condição distópica que de algum resquício de utopia. Infelizmente, até neste momento, “é preciso imaginar, apesar de tudo” (Didi-Huberman, 2017) Quadro recente desta condição, se mostrou nas manifestações de junho 2013, ocorridas em várias cidades do Brasil. A insatisfação popular, ainda que em sua maioria pouco refletida pelos protestantes, estava longe de ser desmerecida. A incapacidade do governo de apresentar soluções coerentes para os problemas estruturais do país, diante de uma crise global, foi o estopim para a fúria “juvenil” de um país inebriado por ilusões. Cidadãos confusos e descrentes saíram às ruas para exigir solução de uma miríade de demandas. Chegaram ao impressionante ponto de tomar o congresso nacional; ato que por si só já demonstra uma significância importantíssima. Contudo, a pluralidade de exigências, foi facilmente cooptada pelos movimentos mais organizados e internacionalmente financiados. Não obstante, não se pode cometer o erro de cair na armadilha de imaginar que esta condição se dá apenas internamente às fronteiras brasileiras. Ela é mundial, inerente a todos os países inscritos no sistema capitalista regido pelo neoliberalismo desgovernado, mas marcados por traços de exagero nas chamadas nações em desenvolvimento. Tanto a ira popular, quanto a questão do déficit habitacional tem se desencadeado globalmente, nos últimos anos.

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Neste cenário, é óbvio deduzir quem se enquadra no extremo do sofrimento: os já pobres. Com o desmantelamento da condição de trabalho no país, sistematicamente consolida-se a realidade do trabalho precário. Desta conformação surge a classe recentemente denominada de “precariado”, o mais novo sucesso da lógica neoliberal implementada à força total. Estes indivíduos, despossados de qualquer direito social básico, quando acuados e com a mínima compreensão da realidade que lhes oprime, tornam-se imediatamente nos principais agentes de mudança possível. Posicionando-se para a luta sem medo de perder mais do tudo que já perderam, estas pessoas se tornam nos agentes efetivos de suas demandas, e podem vir a iniciar os processos de câmbio tão necessários. Por fim, para concluir este choque sistemático de imagens, proponho pensarmos nas caturritas (Myiopsitta monachus). Aves conhecidas nas paisagens do sul do Brasil tanto no campo quanto nos meios urbanos, as caturritas não se deixam passar desapercebidas. Aves gregárias, formam casais estáveis e voam em bandos formando populações autossuficientes. Contudo, uma característica singular desta espécie, são seus hábitos comunitários no que se refere à abrigo. Constroem ninhos coloniais, como um grande amontoado de “apartamentos” individuais. Estes gigantescos conjuntos, normalmente construídos em árvores altas ou estruturas urbanas, como antenas e torres de celular, garantem segurança e cuidado para o bando numa condição de cooperação social. 96


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Os ninhos são feitos de gravetos que conferem maior rigidez à enorme estrutura, além de garantir segurança contra possíveis invasores. A parte das alterações ecossistêmicas, que elimina seus predadores, e das grandes lavouras e plantações de madeira para celulose, que melhora sua capacidade alimentar e de refúgio, existe uma condição que me parece muito significativa em relação a estes pequenos pássaros. O que faz estes animais serem tão resilientes e presentes em quase todo globo foi sua capacidade de estruturarem suas comunidades e serem melhores juntos.

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referências do texto REYES, P. Lugares de Godot. 5 Simpósio de Design Sustentável. Rio de Janeiro, 2015. http://pdf.blucher.com.br.s3-sa-east-1.amazonaws.com/ openaccess/9788580392661/27.pdf DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, [2011] 2017. 98


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referências das imagens [1] [edifício abandonado no centro de Porto Alegre]. Fonte: Jornal do Comércio - Jonathan Heckler/JC Disponível em: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2017/01/colunas/comeco_de_conversa/540367-a-carie.html [2] [a torre de babel (Bruegel) - Pieter Bruegel, o Velho]. Fonte: Wikipedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/The_ Tower_of_Babel_(Bruegel)#/media/File:Pieter_Bruegel_the_Elder_-_ The_Tower_of_Babel_(Vienna)_-_Google_Art_Project.jpg [3] [pombal Pasteur]. Fonte: SAIGONEER.COM - Lee Starnes. Disponível em: https://saigoneer.com/old-saigon/old-saigoncategories/9045-photos-the-last-days-of-saigon%E2%80%99s-pigeoncoop [4] [acampamentos centrais]. Fonte: Agência Brasil - Marcelo Camargo. Disponível em: https://fotospublicas.com/grupo-de-sem-teto-estaacampado-em-frente-prefeitura-de-sao-paulo/ 99


[5] [ocupação em São Bernardo do Campo]. Fonte: Ricardo Stuckert Fotos Públicas. mtst.org. Disponível em: http://www.mtst.org/mtst/ ocupacao-de-sao-bernardo-o-grupo-para-quem-caetano-foi-proibidode-cantar/ [6] [publicidade xp investimento]. Fonte: incestimentos.xpi.com.br. Disponível em: xpi.com.br [7 ] [pandemônio]. Fonte: George Grosz (1914) - research gate.net. Disponível em: https://www.researchgate.net/figure/Pandemoniumby-George-Grosz-Pen-and-Ink-on-paper-from-1914_fig1_302589694 [8] [protesto em Brasília]. Fonte: piaui.folha.uol.com.br. Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/wp-content/uploads/2013/11/ TOPO_assembleia-para-preparacao-da-resistencia_CSP-Conlutas_0. gif [9] [assembleia para preparação da resistência]. Fonte: CSP/Conlutas. Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/wp-content/ uploads/2013/11/TOPO_assembleia-para-preparacao-da-resistencia_ CSP-Conlutas_0.gif [10] [ninho de caturrita]. Fonte: birdmanscience.weebly.com. Disponível em: http://birdmanscience.weebly.com/pictures--videos. html



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[1] [imagem disparadora] 102


habitar a rua: o que nos olha Diogo Vaz


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o argumento Na imagem central, que caracteriza o problema a ser apresentado nesse trabalho, vê-se três pessoas cruzando-se sem necessariamente estabelecerem alguma forma direta de interação. Uma delas, deitada, utiliza um dos bancos da praça para dormir; há também um homem sentado em um segundo banco; enquanto uma mulher passa caminhando. A praça é visivelmente bem cuidada: duas lixeiras próximas, bancos em bom estado, grama aparada e uma estrutura de alvenaria para banheiros. Não seria estranho se avistássemos câmeras de segurança. Esses elementos, somados à presença itinerante de pessoas, tornam o repouso no banco suficientemente seguro, sendo possível uma desocupação rápida e sem vestígios quando necessária. 104


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De maneira geral, a cidade é planejada para um modelo de vida hegemônico que se relaciona com a cidade a partir do domicílio construído como espaço para habitar – enquanto propriedade privada –, do núcleo familiar, do trabalho, da produção, do consumo e da utilização do espaço público como local de passagem. Entende-se que todas essas relações são rompidas quando um sujeito deixa de habitar uma casa, deixa de se relacionar com sua família, deixa de trabalhar, produzir e consumir formalmente, passando a estabelecer outras relações com a cidade e a sociedade, baseadas na mobilidade permanente, no uso temporalizado do espaço segundo características circunstanciais e na formação de vínculos alternativos onde a família são os próprios companheiros da rua. Viver na rua transforma o espaço e o uso da cidade, os locais de passagem e circulação se tornam habitados, não pela posse, mas pela ocupação cotidiana e efêmera. Assim sendo, como a presença de pessoas que vivem na rua podem nos demonstrar que a cidade não é pensadaplanejada para estes sujeitos? Como o modo de vida hegemônico é questionado ao se habitar a rua?

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as formas divergentes

[2] Passarela da passagem ao abrigo Na imagem avistamos que um grupo de pessoas constrói um espaço de abrigo no vão de uma passarela. Um varal de roupas é instalado utilizando como suporte o corrimão da passarela e a árvore plantada. No vão da estrutura de concreto estão objetos estrategicamente organizados, talvez na intenção de bloquear o vento e criar um ambiente protegido dos olhares alheios. Como se fosse um braço, a passarela cria um espaço ocioso e minimamente acolhedor para que um grupo de pessoas ocupe cuidadosamente tal estrutura. Percebe-se aí uma territorialidade estabelecida através de relações delimitadas espacialmente, afirmada pela interação entre sujeito e espaço. 108


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O uso dos instrumentos urbanos (ruas, praças, calçadas, passarelas) é transformado na presença dessa população, modificando a característica de passagem da passarela para uma área habitada. O confronto dessas imagens apresenta que não há apenas uma maneira de se viver na rua; há, sim, uma flexibilidade no uso dos espaços da cidade relativa a uma identificação territorial funcional e afetiva, que cada sujeito constituirá através da sua experiência. Podemos apreender que os hábitos, os horários, tipos de atividade e maneira de se relacionados dos moradores de rua com o espaço é diferente do que é socialmente colocado como hegemônico, daquele modelo esperado que se baseia o planejamento da cidade. O espaço urbano se transforma conforme o sujeito se relaciona com ele, construindo, por consequência, um território onde cada um produz de forma singular sua rede de convivências. É nesse sentido que o espaço habitado transcende a ideia de ocupar um espaço geográfico, habitar pressupõe criar sentidos, estabelecer relações. [3] A família feliz do comercial de margarina A imagem faz referência ao modelo midiático da popular família do comercial de margarina. Entende-se que há uma naturalização da concepção de lar como casa burguesa e seu sonho de idílica felicidade e segurança. A inscrição na propaganda associa a frase “A verdadeira felicidade da páscoa é reunir a família” com a imagem de três pessoas

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brancas (um casal heterossexual e com sua filha) durante uma refeição, a qual é realizada dentro de um ambiente construído, reservado, bem iluminado e “feliz”. Nesta idealização, a casa atua como símbolo do habitar, do espaço protegido, do dentro, do interno. O termo “lar” tem uma conotação afetiva e pessoal: é a casa vista como o lugar próprio do indivíduo, onde encontra sua privacidade e onde parte mais significativa da sua vida pessoal se desenrola. Nesse sentido, a relação com o habitar estaria intrinsecamente ligada a um sentimento familiar e cultural no qual se busca a proteção e o aconchego do lar – um espaço privado, onde tudo vai bem, separado do fora, da rua, do outro. Esta idealização é baseada na propriedade privada e no consumo, e acaba por construir o estigma da rua – do fora – como sinal de perigo e de barbárie, avalizado, muitas vezes, por uma concepção higienista e científica. A presença do morador de rua habitando o espaço urbano rompe com esta concepção de lar e do que é “ser feliz”. Coloca-nos a pensar que habitar não é estar passivamente em um lugar, não se resume somente à casa como um objeto de construção; habitar pressupõe criar sentidos, relações na espacialidade. É uma experiência afetiva, que envolve também a imaginação. Podemos perceber, por vezes, a manifestação visual do caráter afetivo da relação do sujeito que vive na rua com o espaço habitado. Esse componente subjetivo se manifesta na constituição do processo de territorialização durante a elaboração da identidade do sujeito no espaço ocupado. 110


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Faz-se necessário alertar que não se quer nem “romantizar” a situação de pessoas que vivem na rua, nem encaixá-los na condição do sujeito que “tudo falta”: falta-lhe uma casa, um emprego, uma família, saúde, alimentação... O que está sendo colocado em questão é sob quais princípios ou valores idealizados culturalmente que preconcebemos nosso imaginário ao julgar a vivência de quem habita na rua. É importante pensarmos que estes sujeitos também constroem sonhos, sustentam desejos, buscam seus objetivos, à sua maneira. [4] A rua vigiada pelo consumo O homem que percorre a passarela, transitando de um lado ao outro, é atravessado pelo olhar da modelo projetada no outdoor de uma marca de calçados. Antes de mais nada, é importante deixar nítido, como possibilidade de questionamento, o espaço definido pela indústria da moda à mulher como corpo objetificado, a ser moldado dentro de padrões estéticos definidos e limitantes. Ademais, a intenção dessa imagem é, mais uma vez, reafirmar o espaço da cidade utilizado enquanto é transitado, havendo poucas possibilidades para aproveitalo de outras maneiras que não vinculadas a passagem e, para este momento, ao consumo. Salvo as exceções de parques e praças que oferecem ambientes tranquilos para se estar, somente é possível desfrutar do espaço público quando este é controlado por um local privado, ou quando oferece áreas de lazer (que por vezes também estão associados a feiras e brechós, onde também há a relação com o consumo). Diversos 111


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bares, cafés e restaurantes tomam o espaço das calçadas para que seus clientes estejam a vontade para consumir, possibilitando que esses lugares estejam mais seguros para que outros transeuntes tenham uma passagem mais tranquila, justamente pela presença de mais pessoas na rua. O espaço da cidade tomado como lugar de consumo nos propõem a pensar: quem – quais pessoas – podem desfrutar do consumo nesse ambiente público ligado a estabelecimentos comerciais (privados); a falta de investimento em espaço públicos que sejam cuidados o suficiente para serem ocupados, sem necessariamente estarem vinculados ao consumo de algum tipo de produto; o controle e a vigia que somos submetidos no espaço público. Assim como o outdoor controlando o espaço de passagem do transeunte, através do chamado para consumir a marca, a cidade está sob vigia constante tanto das câmeras de segurança, como dos olhos do consumo. O corpo do morador de rua, por sua vez, é poupado do uso da cidade. Quando pensamos no sujeito deitado no banco da praça na imagem central, pode-se imaginar a sua dificuldade de estar em locais públicos associados ao consumo, e isso pode estar intimamente ligado ao estigma implicado na sua aparência, as vezes pelas roupas que utiliza, por sua cor, seu mal cheiro, por aparentar ter utilizado drogas. Muitas vezes os espaços da cidade ocupados por essa população são preconcebidos

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como pontos de uso/venda de drogas, e são constantemente vigiados pela segurança pública ou mesmo visados pelas políticas higienistas que buscam retira-los dos locais que ocupam. [5] Piadas nos olham Em julho de 2017, o Prefeito Nelson Marchezan Júnior, compartilhou uma postagem no seu perfil do Facebook alertando: “Atenção, Porto Alegre. Está fazendo tanto frio, que a prefeitura recebeu denúncias de um White Walker no centro da cidade.” Na imagem, está o Zumbi personagem da série Game of Thrones vagando pela Avenida Bordes de Medeiros próximo ao Viaduto Otávio Rocha, enquanto neva. Na referida série, as criaturas chamadas de Zumbis são mortosvivos que representam uma ameaça do outro mundo para os habitantes humanos da cidade de Westeros. O Zumbi é definido, conforme visto no Wikipedia, como “cadáver reanimado usualmente de hábitos noturnos, que vive a perambular e agir de forma estranha e instintiva; um morto-vivo; um ser privado de vontade própria, sem personalidade.” Além do mais, a forma indicada para sua eliminação é, definitivamente, danificando seu cérebro através de um tiro na cabeça, quebrando seu pescoço ou, ainda, com utilização de fogo.

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O cenário porto alegrense utilizado na montagem compartilhada pelo Prefeito, não por acaso, é frequentemente utilizado por pessoas que estão em situação de rua como espaço de moradia temporária, local com um contexto de conflitos que envolvem também moradores, pedestres e poder público. A postagem em tom de piada reforça e retroalimenta o preconceito às pessoas que vivem na rua, além de sugerir que esses sujeitos representam uma ameaça aos cidadãos, justamente por não possuírem vontades e desejos próprios, corpos sem personalidade humana. Além do mais, referindo a frase escrita que acompanha a postagem, pode-se dizer que o Prefeito insinua que essas pessoas não sentem frio, ou tem qualquer tipo de reação às condições que lhes são submetidas. (É importante lembrar que, na semana que a postagem foi realizada, um morador de rua que habitava o Viaduto morreu por hipotermia - https://www.revistaforum.com.br/enquanto-moradorde-rua-de-porto-alegre-morre-de-frio-prefeito-faz-piada-com-zumbi/). Ainda, sugere a maneira de aniquilá-los, como aconteceu em 2004 no conhecido Massacre da Sé (São Paulo), onde 7 moradores de rua foram assassinados com golpes na cabeça enquanto dormiam. Essa população é, muitas vezes, perseguida tanto pela sociedade como pelo Estado. Mesmo que sem uma separação visível, materializada no espaço, entre este modo de vida e os demais sujeitos sociais, o morador de rua é segregado. Essa separação não ocorre necessariamente por barreiras ou limites físicos, o preconceito atua como interdição invisível no espaço. 114


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[6] Retirada compulsória A reportagem indicada na imagem conta sobre a ação realizada pela Prefeitura de Porto Alegre no Viaduto Otávio Rocha, o qual recebeu um evento gastronômico após a retirada de moradores de rua. Como já comentado, esse espaço da cidade é regularmente ocupado por pessoas em situação de rua, os quais são também regularmente removidos, jamais desacompanhados da Brigada Militar e do Departamento Municipal de Limpeza Urbana. Nessas ocasiões os objetos e pertences das pessoas são direcionados para os caminhões que recolhem o lixo urbano, acompanhado da passagem de produtos de limpeza com um forte esguicho de água, para finalizar a higienização do ambiente. O frequente discurso de revitalização dos espaços da cidade envolve a política do consumo como alternativa ao uso dos espaços, anteriormente “sem vida”. Os sujeitos que habitam esses espaços, assim como seus pertences, são tratados como descartáveis sempre na impossibilidade de alternativas que auxiliem em suas condições. Nessas situações fica evidente a busca pelo apagamento dos modos de utilizar a cidade que não são esperados pelo poder que governa e destina os recursos da cidade planejada. Revisitando as duas primeiras imagens (central e imagem 1), podemos visualizar que as diversas maneiras de habitar a rua se reinventam cotidianamente, no exato momento em que se transforma os usos dos espaços urbanos. Um banco ocupado como cama, o vão da passarela transformado em abrigo, o carrinho de mão 115


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que carrega uma casa, são formas de buscar um território descontínuo, flexível e organizado em rede que possa se sustentar e sobreviver à recusa apresentada pelo sistema. [7] A proteção legitimada do espaço ocupado As trincheiras foram muito utilizadas durante a Primeira Guerra Mundial, onde homens permaneciam escondidos aguardando e se protegendo dos momentos de conflito. Nesse espaço de proteção, mesmo que precário, os soldados estavam a serviço da defesa de um território-nação, calcados no argumento de defensa das áreas de terra dos seus países Para além da trincheira, o que deixa evidente a existência de um conflito e a defesa de um território é a presença de armas. Além do mais, a força autoritária e bélica dos exércitos é um poder legitimado dentro do Estado. No ambiente urbano contemporâneo, por sua vez, esse poder continua autorizado, inclusive tem sido valorizado e apontado como solução para conflitos relacionados ao tráfico de drogas, por exemplo. Está valorizado a tal ponto que o porte de armas para defesa pessoal aparece novamente como discussão em pauta. A sua maneira, as pessoas que vivem na rua buscam formas de protegerem seus territórios, mesmo que estes sejam efêmeros, temporários e afetivos. Pelo fato de não possuírem a propriedade privada desses espaços, podemos considerar que o território primeiro seja seu próprio corpo. A opção por andar acompanhado por um grupo ou

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sozinho, permanecer em areas mais centrais ou mais periféricas, optar por cotidianos mais andantes ou rotinas mais fixas, são escolhas que visam a procurar por segurança. Uma questão a ser colocada aqui é: o morador de rua é legitimado ao querer defender seu território? O corpo do morador de rua, como o presente na imagem central, é suficiente para demonstrar que aquele espaço está seguro para seu descanso? Talvez o corpo que habita a rua esteja um tanto em desvantagem na defesa de seu território, quando comparado ao corpo legitimado do soldado. Podemos pensar também se o porte de uma arma daria direito ou poder ao sujeito da rua para se proteger. Sabemos que sua simples presença nos espaços públicos já é criminalizada, já refere uma ameaça ao sujeito hegemônico; como seria portanto uma arma? Outras perguntas que ressoam do conflito gerado entre essas duas imagens: por estar ocupando o banco, ou o vão de uma passarela, esse espaço pode ser considerado, mesmo que temporalmente, um espaço legitimo a ser ocupado pelo morador de rua? Por que a defesa do território desse sujeito não é tão explicita e legitimada quanto a do soldado? Os soldados das trincheiras, ao defenderem o território-nação, tinham direitos e posse sobre a terra?

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referências das imagens [1] [imagem central, disparadora] Fonte: Diogo Vaz [2] [passarela da passagem ao abrigo]. Fonte: Diogo Vaz [3] [a família feliz do comercial de margarina]. Fonte: Portal da Propaganda. http://www.portaldapropaganda.com.br/noticias/4662/ margarina-amorela-produz-exclusivos-gifs-com-receitas-de-pascoapara-quem-e-louco-por-chocolate/16-03-07-amr-dia-da-pascoa/ [4] [a rua vigiada pelo consumo]. Fonte: Diogo Vaz [5] [piadas nos olham]. Fonte: Revista Fórum. https://www. revistaforum.com.br/enquanto-morador-de-rua-de-porto-alegremorre-de-frio-prefeito-faz-piada-com-zumbi/ [6] [retirada compulsória]. Fonte: Clicrbs (https://gauchazh. clicrbs.com.br/colunistas/paulo-germano/noticia/2018/08/aposretirada-de-moradores-de-rua-viaduto-da-borges-tera-food-truckscjkczfjz6005j01pi0gg0sz3d.html) [7 ] [a proteção legitimada do espaço ocupado]. Fonte: Diogo Vaz.



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[1] [atropelamento massa crĂ­tica] 120


trombose

Francisco Cenzi


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o argumento No contexto da sociedade capitalista, a cidade constituiu-se como “sítio primário da infindável acumulação de capital” (HARVEY, 2015), com o objetivo principal direcionado à produção de lucro em detrimento de valores de uso e das necessidades diversas da população. A cidade, entendida, assim, como artefato humano, é o local da realização das práticas sociais que se expressam através de conflitos e contradições.

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Então, a exacerbada diferenciação entre os poucos detentores dos meios de produção da cidade e os demais criam tensões em que os últimos se colocam em resistência a uma narrativa hegemônica dos primeiros. Esse descompasso entre a cidade-artefato produzida por poucos e as necessidades plurais da população faz emergir movimentos de luta que questionam esse processo produtivo. Tais movimentos de luta ganham expressão no momento em que tornam visíveis suas reivindicações no espaço público. A rua é esse espaço: aberto, coletivo, democrático, heterogêneo. Podemos exemplificar essa questão com as manifestações de ciclistas, que reivindicam a legitimidade de seu espaço na urbe, e se utilizam, dentre outras táticas, de pedaladas em massa. A Massa Crítica é um exemplo de ocupação desse espaço que produz visibilidade as suas pautas próprias. Essa estratégia obtém êxito na medida em que subverte o uso ordinário do espaço viário, condicionando motoristas aos tempos lentos de ciclistas. Evidências deste argumento revelam-se eficazes no momento em que outras pautas ganham visibilidade através dessas manifestações. É desse choque entre narrativas que se pode produzir, desde que os corpos se coloquem em posição sensível, um novo pensar sobre a cidade, sobre a sua produção, sobre seu financiamento.

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as formas divergentes [1] Frame 00:01 de vídeo que mostra atropelamento ocorrido em 25 de fevereiro de 2011, na rua José do Patrocínio em Porto Alegre. Precede o choque físico que acontece na imagem, um outro: o choque entre ideias conflitantes. Entre ideia que quer construir novos significados para o espaço da rua e ideia que luta de todas as maneiras para sobreviver como única. A última, talvez já não mais ideia porque não idealiza nada, não sonha, apenas se perpetua, fazendo uso de sua posição de poder para coerção das diferanças que não a desejam como norma. 126


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[2] Atropelamento em Charlottesville no dia 12 de agosto de 2017. Manifestantes contrários ao comício de supremacistas brancos, com referências neonazistas, autodenominados Unite the Right, são jogados no ar pela colisão. “White lives matter” gritavam os supremacistas. Ironicamente a morte resultante é a de uma mulher branca. Diferentemente das pedaladas em massa, que não são exclusividade de movimentos de ciclistas, o atropelamento de massas como manifestorepressão é exclusividade de motoristas. Outros choques, outras ideias, mesma tentativa de aniquilação de ideias da imagem “representacional”. [3 ] As bicicletas fantasmas são colocadas em lugares onde ciclistas são mortos pela violência no trânsito para que, o que não foi acidente, não fique no esquecimento. O amontoado escultórico de fantasmas, ou pilha de corpos, é acompanhado por uma dedicatória à ciclistas mortas e mortos. Não se sabe a autoria. A cidade de Nova Orleans, Estados Unidos, estava removendo a escultura alegando que não havia sido autorizada, representava um desafio à manutenção e possível perigo. A atividade de remoção foi suspensa pela intervenção de uma ativista que passava pelo local. Há ainda a possibilidade de os trabalhos de remoção serem retomados. O embate contra o esquecimento é permanente.

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[4] Pessoas pedalando na academia. Constrói-se uma alienação relativa ao espaço coletivo da cidade. Da garagem do prédio, através do espaço viário, no ambiente do carro com temperatura controlada, ruídos sonoros abafados, a playlist musical desejada. Tudo que se deseja é confirmado nessa bolha. Não é mais necessário se expor ao contraditório, ao diverso, ao incômodo. Não é preciso reconhecer que há uma vida, que sem abrigo, habita a rua. Quaisquer destas perturbações podem ser minimizadas, salvo as que se impõem à circulação desimpedida. A cidade é usada como mero espaço de trânsito, de passagem. De uma garagem à outra. Greenasium fitness é a primeira academia em que quem pedala converte sua energia em energia elétrica. Produz o conforto de se sentir eco-frindly que permite se esquivar do desconforto da realidade que deixa pelo caminho. [5] “Primeiro carro – ‘Um carro é uma conquista na vida adulta. Parabéns pelo seu primeiro veículo! Você terá mais liberdade de agora em diante, aproveite bem esse privilégio.’” A própria “mensagem com amor” traz a ideia do automóvel como liberdade, como conquista, merecimento. É significativo que seja uma mulher branca a receber a chave de um homem branco (talvez seu pai?), evidencia para quem esse bem de consumo e essa pretensa liberdade se destina. Como escreve Ermínia Maricato: “o mais desejável modo de transporte, aquele que admite a liberdade individual de ir a qualquer lugar em qualquer momento, [...], funciona apenas quando essa liberdade é restrita a alguns (2008, p. 6, grifo nosso). 128


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[6] Pode-se pensar na importância que possuir um automóvel tem, como símbolo de virilidade e poder, dada a necessidade de constante reafirmação de uma identidade masculina, que é frágil, para que essa aparente ter estabilidade e ser um fato natural. O corpo do homem viril, com seus músculos e veias em evidência reforça e produz esse senso comum de forma semelhante à que o automóvel produz a necessidade de fluidez viária para a economia capitalista. Na medida em que essas servem, na cidade capitalista, como artérias vitais para a manutenção das dinâmicas de circulação de mercadorias e de força de trabalho as massas de bicicletas atuam como coágulos, provocando trombose, alterando as certezas das funções que esse mesmo espaço tem e ocupa no imaginário coletivo ordinário. Criam ruído. Provocam sintoma. [7] Frame 1:17 de teaser do documentário “Ovarian Psycos”. As Ovarian Psycos são mulheres de cor que pedalam à noite por ruas perigosas de Los Angeles, usando suas bicicletas para confrontar as violências que sofrem em suas vidas. São mulheres que se dividem entre o ativismo e as cobranças que a sociedade patriarcal as impõe. Pedalar se tornou uma maneira de lutar contra as violências que sofrem por serem mulheres de cor. Ver um grupo de mulheres pedalando à noite certamente perturba pessoas que as veem como fora de seu lugar na cidade/sociedade. As ativistas questionam no vídeo: “... então, onde está

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o espaço para nós?”, “Quando eu comecei a pedalar, as pessoas ficavam olhando... É por que eu sou uma garota grande (gorda)? É por que eu sou uma garota? É por que eles não veem garota alguma pedalando?”. [8] Criolo em sua música “Menino Mimado” traz versos que provocam as pessoas a saírem de seu conforto, conhecerem a realidade, reconhecerem seus privilégios e se entenderem como parte de um sistema de poder que se reproduz e se perpetua de forma a garantir que as relações de poder permaneçam. [9] Chico Buarque em “Apesar de Você” canta para as forças de repressão da ditadura militar, que censuraram a música no seu lançamento. Apesar dos “vocês” que assumem diferentes formas em diferentes tempos, e sempre representam as forças opressoras, Chico nos fala em sua música-imagem que apesar de tudo as resistências se reinventam e tratam de encontram as fendas das quais emergir.

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referências do texto HARVEY, D. A crise da urbanização planetária. 2015. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/01/10/david-harvey-acrise-da-urbanizacao-planetaria/>. Acesso em: 20 abr. 2018. MARICATO, E. O Automóvel e a Cidade. Ciência&Ambiente, [s. l.], v. 37, p. 5–12, 2008. 131


referências das imagens [1] [atropelamento massa crítica, frame]. Fonte: https://www.youtube. com/watch?v=CH4n6UMKcfc [2] [charlottesville]. Fonte: http://ryanmkelly.com/charlottesvilleunrest/ [3] [bicicletas fantasmas]. Fonte: https://www.nola.com/arts/index. ssf/2017/03/ghost_bikes_elysian_fields_new.html [4] [conforto alienante]. Fonte: https://blog.magazine10.com.br/ pedalar-com-uma-ergometrica-realmente-emagrece/ [5] [primeiro carro]. Fonte: https://www.mensagenscomamor.com/ mensagem/452507 [6] [masculinidade frágil]. Fonte: http://bodyspacejunction.blogspot. com/2013/07/lepomir-bakic.html [7] [ovarian psycos]. Fonte: https://vimeo.com/158100366 [8] [menino mimado, Criolo]. Fonte: https://www.letras.mus.br/ criolo/menino-mimado/ [9] [apesar de você, Chico Buarque]. Fonte: https://www.letras.mus. br/chico-buarque/7582/



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mensagens do caixĂŁo perdido: sintomas do sonho de modernidade Gabriel Fernandes

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[1] [mensagens]


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o argumento Valendo-se do conceito de imagem crítica de Didi-Huberman (2010), enquanto um instrumento de conhecimento, provoca-se a reflexão dialética que desestabiliza as formas como se vê e interpreta a cidade. O objeto, o ato e o sujeito do ver são estabilidades a serem abaladas na arquitetura e no urbanismo. Para propor uma crítica ao pensamento logocêntrico da arquitetura através das imagens críticas elaborou-se um atlas de imagens, com a temática do sonho de Brasília, da cidade moderna. 136


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A imagem dispositivo, que começa o atlas, é uma fotografia das frases escritas pelos construtores, os candangos de Brasília, na Câmara Federal em 1959. Em uma reforma em 2011, na busca para solucionar uma goteira, foi necessário abrir a laje do espaço inacessível conhecido como caixão perdido. Nessa laje surge uma escrita de um operário. José Silva Guerra escreve: “que os homens de amanhã que aqui vierem, tenham compaixão dos nossos filhos e que a lei se cumpra. Duraleques ce de lequis”. A imagem abre uma rasgadura no próprio regime de representação da arquitetura e do urbanismo (DIDI-HUBERMAN, 2015-A). Na rasgadura dessa imagem é preciso imaginar: Que voz é essa que não pode ser expressada e que só encontra lugar dentro de uma caixa fechada? Onde estão esses trabalhadores na cidade? Eles foram apenas mão de obra que possibilitaram realizar esses sonhos? Em que o saber da arquitetura é tocado por essas questões? Como essa imagem pode ser lida? É preciso imaginar, nos falaria Didi-Huberman (2017), as condições em que um operário para sua atividade, e, escondido de seus carrascos, resolve registrar o seu desejo por uma cidade democrática.

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as formas divergentes Entre as duas imagens relaciona-se o ato de escrever e o de suportar, carregar o peso do mundo em suas costas, o próprio Atlas (DIDIHUBERMAN, 2013). O candango sustentando a grande cúpula de concreto que é símbolo de justiça, da pureza das formas modernas, do sonho de um Brasil moderno. 140


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Para construir Brasília era necessário o engajamento do candango, seu encantamento por com cidade mais democrática, mais justa. Era preciso adormecer na submissão do trabalho para sonhar. Nas palavras do presidente Juscelino Kubitschek (2000, p. 94): “A cidade, que se erguia no Planalto, não era minha. Não era do governo. Nem mesmo do Brasil. Era a cidade do humilde operário. Tratava-se de uma capital que ele - igual a milhares de outros, também chicoteados pelo sol e cobertos de poeira — construía como se fosse para o seu uso exclusivo.” As imagens estão em posição de choque. A leveza do caminhar, o andar despreocupado do que pode experimentar do sonho moderno chocasse com o árduo caminhar de quem carrega a responsabilidade de construir (ver Imagem 02). O conceito modernista de promenade architecturale encarnado na imagem, pressupõe um público erudito, que tenha um domínio do saber (de como ver a cidade), que mantenha a estabilidade no regime de representação da arquitetura. Assim mantendo as economias de partilha do sensível na cultura (RANCIÈRE, 2009). O casal de trajes elegantes parece seguir bem a cartilha de como experimentar os prédios modernos. A distância é necessária para contemplarem as obras, e, também, para tornar invisível a leitura das mensagens dos candangos.

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Os grandes edifícios projetados e construídos para Brasília não se destinavam para os candangos. Seus desejos, seus problemas foram, desde o início, uma rasgadura na imagem pura dos grandes edifícios, nos ideais modernos. Ainda hoje, é necessário torna-los invisíveis a qualquer sensibilidade, para conseguir preservar os ideais de gênio moderno e de cidade eficiente. Entre a foto dos mineradores de Serra Pelada desviasse o pensamento para o abismo da desigualdade social que torna possível mover uma enorme massa de pessoas. Em condições difíceis de imaginar, buscando por seus sonhos em ritmos frenéticos e alucinantes de trabalho, tornando-se dessemelhantes, parecendo formigas.

E, por fim, em Brasília, fervilhava o formigueiro humano, integrado pelos candangos anônimos que, impregnados da mística que lhes havia inoculado, reclamava, com insistência, maior velocidade nas construções. Os miseráveis de caatinga, iluminados de uma nova fé, já acreditavam na grandeza que se erguia aos seus olhos deslumbrados. Os desajustados de todo gênero haviam sido convertidos, por fim, em “construtores de catedral”. (KUBITSCHEK, 2000, p. 95, grifos do autor).

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O que representam essas pequenas narrativas dos homensformigas frente as grandes narrativas dos mestres arquitetos e urbanistas para cidade? Quais relações possíveis entre a loucura pelo ouro e a loucura por um Brasil moderno? A hospitalidade de uma democracia por vir, no sonho da Brasília moderna, envolvia os contratos domésticos como potências de acolhimento. Um acontecimento era a chegada do estrangeiro. A chegada dessa massa ao plano do sonho era como o acolhimento de um crente que entra em uma igreja imaginando uma vida mais justa. A dimensão política da cidade, seguindo uma linha de pensamento foucaultiana, seria um sistema das formas a priori que determinam o que se dá a sentir. O recorte temporal, espacial, e a visibilidade (o que está visível ou invisível) define o lugar e o que está em jogo na política enquanto forma de experiência. (RANCIÈRE, 2009). Os enunciados políticos ou arquitetônicos das cidades produzem efeitos no real, definem regimes de intensidade sensível, reconfigurando o mapa sensível, sobre-determinando a funcionalidade dos gestos e ritmos já adaptados aos ciclos naturalizados da produção, reprodução e submissão. (RANCIÈRE, 2009 A). O arquiteto Oscar Niemeyer, de prancheta na mão, possuía o poder, o saber para construir o sonho (ARANTES, 2006). Nesse logocentrismo toda a cultura arquitetônica estaria estável e insensível aos restos do projeto de construir uma capital. A figura do arquiteto autor é tão glorificada que as outras narrativas menores são ocultadas. 143


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Neste ponto, é que as imagens estão em choque entre o logocentrismo da representação da arquitetura e o resto. O que ficou de fora do projeto é paradoxal, dilema entre o ver e o saber, um choque para dialetizar. (DIDI-HUBERMAN, 2010). É necessário abrir a lógica da representação, rasgar as imagens, diria Didi-Huberman (2015 B). Nos limites da representação tradicional, enunciados numa lógica Kantiana, o sujeito se esbarra no próprio reflexo, na sua autocaptação imaginária a partir de uma reflexão intelectual. Essa reflexão é autossatisfatória. Sair dessa caixa de espelhos é desafiar os limites do sujeito moderno, conhecedor, genial, e arriscar-se a não saber. Construir uma cidade planejada, é algo heroico, e que só pode ser feita com os olhos furados, cego por tanto acreditar em um saber. Dessa forma Lucio Costa e Niemeyer conseguiram olhar para realidade enxergando o próprio reflexo, projetando seu próprio ego, o Deus encarnado de seus projetos. O projeto da cidade, a leitura da cidade se fecha na caixa de espelhos das representações do saber do sujeito autor. Nessa caixa, o urbanista experimenta e se auto-satisfaz, no conforto de ser o detentor do conhecimento. Ele evita o vazio entre a crença e a tautologia da arquitetura como solução para os problemas sociais de lutas pelo espaço e direito a cidade. Na noção de gênio moderno estaria o toque divino de Deus no ato de criação, a grande narrativa de Brasília foi marcada pela genalidade dos mestres modernista. Lúcio Costa em um gesto, assim como um 144


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Deus, marcou com uma cruz no meio do cerrado. Ato que designou toda a cidade num grande poder de síntese. As diferenças entre “as mensagens do caixão perdido” e o afresco de Michelangelo nos levam a um caminho de desconstrução do gênio moderno. O ideal da representação perfeita da realidade, da verdade absoluta é rasgado pela escrita que chama o pensamento para suas condições frágeis e fictícias do momento criador. Na dialética das imagens, salta a noção de distanciamento como uma temática do pensamento urbano. Na imagem, seguindo seus rastros, o homem que voa livre, poderá ver o desenho do avião, da cruz que concebeu a cidade, poderá ver a funcionalidade da estrutura da cidade moderna. A Brasília sonhada só seria possível ser vista de uma distância tão grande da realidade quanto a que o saber da arquitetura deu a Lucio Costa. Dessa distância a complexidade da cidade real fica invisível, o resto não importa, o sujeito fica confortável para dizer as verdades. Michel de Certeau, no mito das asas de cera, fala do olhar totalizante da ciência confrontado ao palimpsesto de escritas da cidade, que só pode ser lida nas sobreposições, nos conflitos. (REYES, 2015). A vaidade que leva o arquiteto ao grande voo do saber lhe permite o olhar totalizante, tautológico ou crente.

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Tudo que ficou de fora do projeto dilacerou a eficiência da cidade modernista, suas certezas. As cidades satélites cobram o seu lugar, numa luta que constrói e desconstrói a capital sonhada. O antropomorfismo é dilacerado quando um acontecimento chega para desmentir a construção de mundo, para desterritorializar (DELEUZE, GUATTARI, 2002). Quando as asas de cera são derretidas pelos limites do conhecimento metafísico em explicar os assentamentos irregulares, as deformações dos restos da cidade, a queda no vazio do céu é angustiante. Essas imagens críticas forçam o arquiteto para algo que a elaboração simbólica havia deixado encoberto. Algum sintoma ressurge por um instante, é o visual que aflora do visível. (DIDI-HUBERMAN, 2015 B). No sonho das cidades modernas, as ocupações irregulares tendem a ser apagadas. A consciência do urbanismo modernista precisa transformar e corrigir a forma de cidade para conseguir retomar seus padrões de beleza e de eficiência. Mas, os sintomas escapam e saltam aos olhos, os rastros visuais de desfiguração. Como no complexo de castração, o simbolizado precisa ser pensado com seu desaparecimento. (DIDI-HUBERMAN, 2015 A). O saber absoluto, encarnado na imagem, morre pelo trabalho de sintoma. É o próprio urbanista genial que se afoga em sua própria imagem na busca por si mesmo, uma razão tão superficial que guarda uma irracionalidade profunda.

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Contudo, os choques entres as imagens se moveram na emergência de uma desterritorialização da metafisica da cultura arquitetônica. As fronteiras dos territórios, e as cidades são espaços de conflito, processos territoriais das diferenças. Não se precisa da arquitetura para sistematizar as diferenças, mas é necessário dela um princípio de conhecimento nômade, que passe por constantes desterritorializações, negando o fechamento em uma identidade, uma síntese totalizante, que escute e conceda espaço para as outras narrativas.

referências do texto ARANTES, Pedro Fiori (Org.). Sérgio Ferro: arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2002. 147


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DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 2011. DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015 A. ________________________. Atlas ou a gaia ciência inquieta. Lisboa: KKYM, 2013. ________________________. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017. ________________________. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2015 B. ________________________. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. REYES, Paulo. Projeto por cenários: uma narrativa da diferença. In: XVI Enanpur - Espaço, Planejamento e Insugências. Belo Horizonte: Enanpur, 2015. 148


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referências das imagens [01] [mensagem de operários encontrada na Câmara de Federal]. Foto: Jose Cruz, Agência Brasil. Fonte: https://www.brasil247.com/ images/6/57/6570282dc43917a0a80d9b80606743c0a5f556b4.jpg [02] [Congresso Nacional]. Foto: Marcel Gautherot, 1959. Fonte: http:// fotografia.ims.com.br/IMS/Thumbnail.ThumbnailServlet?recordView =recordCollectionThumbnailView&catalogID=2&recordID=15199& border=0&field={af4b2e0a-5f6a-11d2-8f20-0000c0e166dc}&imageSize=400&quality=8&random=1539287358209 (acessado em: 01/10/2018) 149


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[03] [passeios no Palácio do Alvorada]. Foto de Alberto Ferreira, 1960. Fonte: http://www.galerialume.com/albuns/exibicoes/1381417890.jpg [04] [mineradores da Serra Pelada, Brasil]. Foto de Sebastião Salgado. Fonte: https://s3.amazonaws.com/icptmsdata/s/a/l/g/salgado_ sebastiao_243_1988_446911_displaysize.jpg [05] [arquiteto Oscar Niemeyer supervisionando a construção da Catedral em 1959]. Fonte: http://arquiteturaurbanismotodos.org.br/ wp-content/uploads/2014/04/oscarniemeyer-890x395_c.jpg [06] [criação de Adão]. Afresco, de Michelangelo, por volta de 1511, teto da Capela Sistina, Roma. Fonte: https://upload.wikimedia.org/ wikipedia/commons/thumb/7/73/God2-Sistine_Chapel.png/200pxGod2-Sistine_Chapel.png [07] [praça dos Três Poderes]. Foto: Alberto Ferreira. Fonte: http:// albertoferreira.art.br/wp-content/uploads/2014/02/11.jpg (acessado em: 01/10/2018) [08] [a queda de Ícaro]. Pintura, de Peter Paul Rubens, 1636. Fonte: https://pt.wahooart.com/Art.nsf/O/8XXBHV/$File/Peter-PaulRubens-The-Fall-of-Icarus.JPG [09] [fronteira entre o México e os Estados Unidos da América]. Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/0b/ Border_USA_Mexico.jpg/800px-Border_USA_Mexico.jpg 150



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onde tempo é espaço Germana Konrath

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[1] [escher, mĂŁos]


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o argumento

Enquanto aprendemos a projetar cidades e seus elementos baseados na tríade vitruviana de firmitas, venustas e utilitas, a cidade se transforma. A urbe é construída física e simbolicamente por meio de materiais e elementos, em sua maioria, inertes, duradouros, estáveis.

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Enquanto isso, os processos humanos e naturais que nela se desdobram se organizam de forma transitória, mutável, nômade e, muitas vezes, imprevisíveis. Rios provocam enchentes; as estações do ano passam; as pessoas nascem, crescem e morrem, se mudam, se deslocam; as funções programadas para os lugares deixam de ser relevantes ou desaparecem; os valores e culturas se alteram e a economia não para de gerar novas demandas e abandonar antigos paradigmas. Em urbanismo e, especificamente, em planejamento urbano, a ideia de projetar não apenas o espaço, mas o tempo – e com o tempo – é fundamental e essencialmente transformadora, visto suas implicações para a maneira como percebemos, produzimos, vivenciamos e registramos o ambiente urbano. A partir do entendimento de cidade como espaço-tempo de projeção das ações sociais, não apenas como mapa, mas como teatro1, vale realizar uma investigação acerca da variável tempo no projeto urbanístico contemporâneo que leve em consideração os processos sociais e naturais – além dos aspectos espaciais e geométricos – da urbe. 1

Para Henri Lefebvre a cidade era o local de projeção da sociedade ou mesmo local do teatro espontâneo (2008, p. 62, 68, 133). Já Michel de Certeau (1994, p. 206) nos chama a atenção para o fato de que a própria denominação de atlas atendia originalmente pelo nome de teatro. Somente após a intervenção da geometria (inicialmente euclidiana e atualmente descritiva) é que o conjunto de mapas e a própria ideia de cartografia foram paulatinamente perdendo seu vínculo com as atuações, com a vida social que neles se registrava, deixando de ser teatro para se tornar apenas atlas. A visão da cidade como mapa e não mais como teatro ganha força a partir dessa perspectiva científica, de saber geográfico legível, de planejamento urbano panóptico que é confrontada por Certeau e por Lefebvre, já na segunda metade do século XX. 155


O projeto como pensamento: diálogos com a filosofia

Antes de buscar respostas e referências imediatas ao problema de como projetar o tempo na cidade, vale questionarmos quais são, afinal, os conceitos de tempo em que estamos amparados e quão provocadoras podem ser outras acepções acerca dessa grandeza, tão abstrata. Em vez de simplesmente adotarmos o padrão ocidental moderno de tempo linear e progressivo, podemos nos arriscar nas interpretações gregas clássicas de aión, krónos e kairós (tempo divino, do eterno, imensurável, cíclico e infinito; tempo cronológico, linear, homogêneo e divisível em partes iguais ou ainda tempo da fortuna e do momento oportuno, respectivamente), ou no entendimento de tempo como duração de Bergson ou ainda de tempo como diferença para Deleuze (in PELBART, 1998). A proposta aqui é investigar outras possibilidades de expressão, de linguagem e de aproximação desta relação tempo-espaço, especialmente no que tange ao projeto, sua metodologia e prática. Seria, talvez, uma tentativa de criar novas partilhas sensíveis, como diria Rancière (2009), lançando mão de novas pensabilidades que, quiçá, nos aportarão ferramental para projetar em arquitetura e urbanismo. Ficam, portanto, as seguintes perguntas: Como projetar o tempo? Como pensar e como responder à tensão entre distintas temporalidades urbanas? Quais visões sobre patrimônio, mobilidade, padrões construtivos, arquiteturas nômades, espaços de permanência e memória podem sugerir formas alternativas mais adequadas de viver

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e de projetar nossas cidades contemporaneamente? Como, afinal, conciliar os processos efêmeros e dinâmicos característicos das cidades com os princípios arquitetônicos de firmeza, solidez e perenidade e com a necessidade de planejamento?

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as formas divergentes ou as imagens-hora

A imagem-disparadora (Fig.1) é um famoso desenho de M.C. Escher, de 1948 (Drawing hands), um tanto paradoxal. Vemos duas mãos se desenhando em sincronia, e não é possível distinguir início ou fim entre elas – como a figura ancestral de ouroboros (a serpente que come o próprio rabo): uma das representações mais antigas de tempo a que se tem acesso. Aqui rascunho, desenho e materialização são simultâneos, tudo se confunde e se entrecruza enquanto as duas mãos ganham vida e tridimensionalidade. Poderia ser uma alegoria ao projeto, em constante ir, retornar, devir, num processo de fazer e desfazer constante. No cronofotograma de 1984, de Étienne-Jules Marey (Fig. 2), temos numa única imagem o registro de uma sequência de posições de um ginasta. Aqui o tempo aparece como movimento e o corpo ocupa uma série de espaços concatenados: o antes e o depois se apresentam no agora. O tempo se especializa de forma literal e sua duração é medida pela progressão dos gestos, num diálogo entre luz e tempo. 160


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Talvez uma das mais constantes utopias projetadas e, portanto, imaginadas pelo homem, seja este lugar onde o tempo não passa, onde não há transformação, como se um futuro almejado tivesse finalmente chegado. A ideia se choca à heterogeneidade do tempo como duração ou como diferença e se coloca como uma grandeza que plasma em sua perfeição: o paraíso bíblico, o jardim do Éden (como retratado na pintura da Fig. 3), a Terra do Nunca dos contos de fada ou mesmo as distintas utopias classificadas por David Harvey (2004) como da forma espacial. São espaços idealizados, estabilizantes e inertes: a terra prometida onde nenhuma mudança é mais necessária e atingimos o ápice, seja ele divino e pós-morte (como na crença cristã) ou conquistado pelo melhor estado das coisas, fruto ético-estético de projeto e de trabalho do homem. O tempo aqui não se conta, não avança nem retrocede, apenas existe, infinitamente. Seguindo em sentido horário, a próxima imagem (Fig. 4) evocada retrata o Coliseu, em Roma. Um espaço entre oval e circular, pontuado por janelas que marcam os acessos às arquibancadas, conduzindo aos espetáculos que ali se davam. Uma praça de celebração do efêmero, dos jogos, do pão e circo que caracterizaram o auge do Império Romano e que hoje são símbolo de um patrimônio, preservado em suas ruínas como atração turística. A relação entre os eventos passageiros abrigados pelo Colosseo (ou Anfiteatro Flaviano) versus a monumentalidade e solidez de um edifício de quase dois milênios de história remete tanto à defesa do direito à cidade como espaço do lúdico em Lefebvre, quanto 161


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à cidade invisível de Sofrônia de Italo Calvino: “A cidade de Sofrônia é composta de duas meias cidades. Na primeira, encontra-se a grande montanha-russa de ladeiras vertiginosas, o carrossel de raios formados por correntes, a roda-gigante com cabinas giratórias, o globo da morte com motociclistas de cabeça para baixo, a cúpula do circo com os trapézios amarrados no meio. A segunda meia cidade é de pedra e mármore e cimento, com o banco, as fábricas, os palácios, o matadouro, a escola e todo o resto. Uma das meias cidades é fixa, a outra é provisória e, quando termina a sua temporada, é desparafusada, desmontada e levada embora, transferida para os terrenos baldios de outra meia cidade. Assim, todos os anos chega o dia em que os pedreiros destacam os frontões de mármore, desmoronam os muros de pedra, os pilares de cimento, desmontam o ministério, o monumento, as docas, a refinaria de petróleo, o hospital, carregam os guinchos para seguir de praça em praça o itinerário de todos os anos. Permanece a meia Sofrônia dos tirosao-alvo e dos carrosséis, com o grito suspenso do trenzinho da montanha-russa de pontacabeça, e começa-se a contar quantos meses, quantos dias se deverão esperar até que a caravana retorne e a vida inteira recomece.” (CALVINO, 1990, p.61) 162


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Em contraponto, na Fig. 5 vemos o registro fotográfico de uma ação realizada por Francis Alÿs onde o artista desloca, ao longo de mais de nove horas, um bloco de gelo pelas ruas da Cidade do México. A imagem nos transmite uma concepção de tempo perturbadora, que contraria as noções de progresso, patrimônio, legado e produtividade que nos são incutidas sistematicamente, ao falar daquilo que é extremamente efêmero, feito para não durar. Quanto mais o tempo passa e o trabalho do artista avança, menos produto e menos materialidade são criados. A ação cessa sem deixar rastro algum, o gelo se desfaz, o tempo evapora. Ficam talvez outros parâmetros e valores, mais próximos à ideia de presentificação do corpo-mente comum na cultura hindu e budista em suas meditações e processos de concentração e condensação da presença no instante imediato. “O navio é a heterotopia por excelência. Civilizações sem barco são como crianças cujos pais não tivessem uma cama grande na qual brincar; seus sonhos então se desvanescem, a espionagem substitui a aventura e a truculência dos policiais, a beleza ensolarada dos corsários”. (FOUCAULT, 2013, p.30). A imagem da Fig. 6 nos apresenta uma construção recente (2001-2008) em Dubai como parte dos arquipélagos e marinas da cidade. Trata-se de uma ilha (Jumeirah), assim como a Utopia de Thomas Morus, porém com requintes de um desenho em formato de palmeira. Este pseudo-oásis criado pelo homem em tempo

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recorde poderia ser uma heterotopia. Ali o tempo é o dos casinos e resorts, onde tudo deve ser lazer e foi construído artificialmente para soar natural e perfeito: uma espécie de miragem-distópica em meio ao deserto árabe. A espacialização do tempo ocorre a partir de uma coreografia espontânea de diversos corpos, reunidos de forma quase aleatória no espaço público numa das imagens que compõe o trabalho Zócalo, de Francis Alÿs (1997) representado pela Fig. 7. A única regra, tácita, parece ser proteger-se do sol escaldante, refugiando-se à sombra do pavilhão nacional na praça da capital mexicana. O movimento gera uma espécie de relógio solar diário e dinâmico, registrado na série fotográfica, num movimento sem juízo de valor ou teleologia aparente. O tempo, mesmo no ritmo acelerado da maior metrópole latino-americana da contemporaneidade, volta a ser aquele dos ciclos naturais dos astros celestes. Em outra documentação de arte, na Fig. 8 temos a intervenção Tapumes, do artista Henrique Oliveira, concebida em 2009 para a 7a Bienal do Mercosul. O artista constrói sua instalação efêmera a partir de tapumes de obras, ainda mais provisórios que seu trabalho, parasitando uma antiga casa do centro histórico de Porto Alegre. O efeito orgânico da obra se contrapõe à massa edilícia ortogonal, gerando movimento e a impressão de que a edificação tomou vida própria, extravasando

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suas estruturas, vazando de suas fendas, borbulhando. Aqui o conteúdo torna-se maior que o contenedor, tomando o espaço, como estruturas excrescentes que brotam do habitáculo. A vida que pulsa no interior do edifício-patrimônio evoca constantes transformações no tempo-espaço, para além de uma patrimonialização cristalizadora. Talvez, se continuar assim, a casa venha a explodir, não cabendo em si nem no seu tempo. De tons e materialidade semelhante, surge na Fig. 9 uma foto da Quinta Monroy: uma ocupação habitacional de baixa renda no interior do Chile, na região desértica de Iquique. O que vemos é resultado de um projeto de longo prazo desenvolvido pelo arquiteto Alejandro Aravena e sua equipe no inicio deste século, onde o respeito pelo processo de projeto e pelo tempo da autoconstrução típica dessas habitações foram colocados como premissa. A parte mais “dura” e estável foi planejada e construída de forma praticamente homogênea e regular, enquanto a seu lado foram deixados espaços de espera e expansão para que cada morador interviesse adaptando a casa a seus próprios parâmetros. A vida dessas arquiteturas se desdobra a partir de um ponto comum estável que garante sua estrutura mínima e o vernacular toma seu tempo-espaço, integrando-se ao projeto não como sobreposição posterior, mas como pensamento inicial e disparador. Na contramão desse pensamento aberto, temos a construção da Torre Eiffel, documentada na Fig. 10. A imagem nos remete ao tradicional conceito de tempo linear e em permanente evolução que

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marca a Modernidade ocidental. A Paris do século XIX é símbolo deste pensamento e sua Torre torna-se ícone de um modo de vida, de uma concepção de tempo e de cultura calcada em valores como sucesso e desenvolvimento. O tempo torna-se cada vez mais urbano e regido pela máquina e pela mecanização dos corpos no período pós Revolução Industrial. A própria máquina fotográfica data deste período e deste local e vem corroborar para a criação de uma nova noção de história: linear, progressiva e protagonizada pelos “vencedores” (como a França deste período). A Torre, efêmera em sua concepção (projetada para a Exposição Universal de 1889), deixou um legado de longo prazo e profunda repercussão nas sociedades modernas até hoje. Segue, portanto, como um paradigma a ser revisto toda vez que lidamos com o projeto do tempo e o tempo do projeto.

referências do texto ALŸS, Francis. Numa dada situação. São Paulo: Cosac Naify, 2010. BERGSON, Henry. Duração e simultaneidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 166


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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. DELEUZE, Gilles in: PELBART, Peter Pal. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 1998. FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: Edições n-1, 2013. HARVEY, David. Espaços de esperança. São Paulo: Loyola, 2004. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2008. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009.

referências das imagens

[1] [Drawing hands, M. C. Escher]. Fonte:https://davdanuangnu.files. wordpress.com/2018/08/lithograph-by-m-c-escher.jpg

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[2] [cronofotograma, étienne-jules marey]. Fonte: http://manuclito. blogspot.com/2016/03/resultado-de-imagen-de-robert-demachy.html [3] [the garden of eden, erastus salisbury field]. Fonte: https://www. mfa.org/collections/object/the-garden-of-eden-33347 [4] [coliseu]. Fonte: http://romaluxury.com/listing/colosseum/ [5] [paradoja de la praxis I, francis alÿs]. Fonte: http://francisalys.com/ sometimes-making-something-leads-to-nothing/ [6] [jumeirah, dubai]. Fonte: https://www.booking.com/hotel/ae/ atlantis-the-palm.pt-br.html [7] [zócalo, francis alÿs]. Fonte: http://museotamayo.org/ajax/articulo/ h-homeostato [8] [tapumes, henrique oliveira]. Fonte: http://dasartes.com/materias/ henrique-oliveira/ [9] [quinta monroy, alejandro aravena]. Fonte: http://himawari8.com. br/wp-content/uploads/2013/12/QM_03.jpg [10] [torre eiffel]. Fonte: http://www.viralthread.com/stunning-photosshow-the-eiffel-towers-construction-from-start-to-finish/

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excessos

Guilherme Ferreira

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na pรกgina anterior

[1] [imagem disparadora]

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o argumento Somos uma sociedade capitalista que nunca para de produzir para consumir (e consumir para seguir produzindo). Nesse processo esquizofrênico geramos cada vez mais sobras (restos) que são como os rastros de nosso próprio modo de vida na cidade, evidências dos excessos que esgotam os recursos e saturam nosso ambiente em troca da promessa de distribuição de riqueza (mal dividida). Assim, esse excesso faz parte do território da cidade, e seu destino, todavia é incerto. 173


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Caminhando pela Avenida Osvaldo Aranha, num final de tarde ventoso, uma sacola plástica atravessa meu caminho. A cena é quase poética, o leve objeto plástico voando a baixa altura e tomando formas aleatórias, fazendo um trajeto indeterminado, travando em obstáculos na calçada, vencendo alguns com facilidade, outros nem tanto, mas seguindo rumo a um destino incerto, à deriva. De onde surgiu esse objeto? Como voa tão facilmente e não atrai a atenção das pessoas que por ali caminham e somente desviam de sua trajetória? Seguindo meu percurso percebo que esta sacola plástica não é o único objeto espalhado pela rua, há também: papéis, terra, folhas de árvores, vidros, garrafas, copos, canudos, embalagens em geral, enfim, um conjunto heterogêneo de restos e dejetos de diferentes cores, texturas e densidades. Deparo-me também com restos de comida, e logo me chamou a atenção um tomate mordido deixado cuidadosamente num canto da calçada, como se alguém estivesse ali comendo e logo aparecesse para buscá-lo. Mais adiante, uma boca-de-lobo interrompida por (ob)dejetos travando o fluxo pluvial que naturalmente seguiria por gravidade para o ponto mais baixo do terreno. Mas a “gravidade” aqui já não é a força de atração dos corpos (no sentido físico da palavra), mas sim o sentimento de seriedade do fato que é grave, o que também ressignifica a expressão “ponto mais baixo” pois parece realmente que algo de pior se aproxima com certa gravidade.

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Essas coisas que sobram, que se acumulam pelas ruas, calçadas, terrenos baldios ou aterros sanitários da cidade e vão parar em rios e mares, são restos de objetos e são também dejetos, (ob)dejetos que deixamos na rua, que nos livramos após consumir alguma coisa. Parece que quando colocamos esses restos na lixeira o ciclo deles se encerra ali, pois nos libertamos dos restos que caem num esquecimento momentâneo. Esse material diverso, normalmente, depositamos nos seus devidos lugares, receptáculos desenhados ou simplesmente improvisados por uma necessidade imediata, são sacolas plásticas, sacos de lixo, caixas de papelão, entre outras coisas deixadas em lixeiras, containers, canteiros, calçadas, troncos de árvores, grades, ou o que quer que seja, tudo pode se transformar num local de descarte desse material de sobra. Tudo que se transforma em sobra é comumente denominado de “lixo”. O lixo está na cidade, é produzido nela, e nela se acumula formando uma espécie de palimpsesto do consumo. O que fazer com o lixo da cidade?

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as formas divergentes

[2] destino poluição [3] distopia colapso [4] cristalização do discurso materialidade 178


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[5] adestramento domesticação produtivismo [6] aquecimento global ironia [7] vigilância espaços controlados [8] desproporção/excesso produção imaterial [9] possibilidades arte bricolage [10] informação inútil produtivismo informacional fake news espetacularização 179


[11] impasse contradição [12] saturação esgotamento grotesco [13] cultura consumismo urbanismo cidade [14] revolta explosão de coisas [15] unidade comunidade ética


referências das imagens

[1] [imagem disparadora]. Fonte: do autor, 2018. [2] [daniel marenco]. Fonte: Daniel Marenco. https://www.instagram. com/p/Bnbq7ZtAuwo/ [3] [refugees in the desert- chris steele-perkins]. Fonte: Chris SteelePerkins. https://www.fotografiaeuropea.it/fe2016/en/mostra/magnumphotos/ [4] [tudo que é sólido desmancha no ar]. Fonte: Guilherme Zamboni Ferreira. 2018. [5] [porcos pendurados]. Fonte: Autor desconhecido. http://www. agriculturayganaderia.com/website/el-sacrificio-de-ganado-porcinoregistro-una-variacion-de-58-en-primer-trimestre-de-este-ano/ [6] [banksy]. Fonte: Zak Hussein. https://www.funpic.us/funny/i_ dont_believe_in_global_warming-157745/


[7] [banksy]. Fonte: autor desconhecido. https://www.exquisiteartz. co.uk/banksy-cctv---what-are-you-looking-at-graffitistreet-fine-artprintposter-sizes-a4a3a2a1-001195-4316-p.asp [8] [interface internet explorer]. Fonte: https://imgur.com/gallery/ D5J9dxP/new [9] [arthur bispo do rosรกrio]. Foto: Walter Firmo. https://www. obrasdarte.com/arthur-bispo-do-rosario-e-leonilson-os-penelope-porrosangela-vig/ [10] [frank zappa]. Fonte: Frank Zappa. https://i.pinimg.com/ originals/1e/19/de/1e19dee2f53e59af43dbeef2f817fcad.jpg [11] [greve dos caminhoneiros]. Fonte: https://exame.abril.com.br/ ciencia/greve-dos-caminhoneiros-reduziu-poluicao-em-sao-paulo-pelametade/ [12] [juergen teller]. Fonte: Juergen Teller. https://www.artsy.net/ artwork/juergen-teller-ich-bin-vierzig [13] [learning from las vegas. venturi & scott brown]. Fonte: Foto: Denise Scott Brown. http://www.mascontext.com/issues/13-ownershipspring-12/invention-and-tradition/ [14] [the zabrieskie point, michelangelo antonioni]. Fonte: http:// smellslikecadaverine.blogspot.com/2012/11/zabriskie-pointmichelangelo-antonioni.html [15] [divisor, 1968]. Fonte: Lygia Pape. https://www.ufrgs.br/ arteversa/?p=1016



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notas sobre fronteiras Guilhermo Gil

[1] [imagem disparadora] 184



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(...) Por sua vez, o rádio, a televisão e todo o pacote telemático, comprometidos com a tarefa de descrever e narrar a cidade, redesenham suas estratégias comunicacionais para estabelecerem-se em espaços concretos e mais ou menos delimitados. Por mais transnacionais que sejam seus investimentos, a estrutura da empresa e a composição de seu público, assume-se que suas audiências esperem que lhes seja dito o que significa estar juntos. (Nestor Canclinni, Artigo revista OPINIÃO PÚBLICA, Campinas,Vol. VIII, nº1, 2002, pp.40-53)

notas sobre fronteiras (...) Por sua vez, o rádio, a televisão e todo o pacote telemático, comprometidos com a tarefa de descrever e narrar a cidade, redesenham suas estratégias comunicacionais para estabelecerem-se em espaços concretos e mais ou menos delimitados. Por mais transnacionais que sejam seus investimentos, a estrutura da empresa e a composição de seu público, assume-se que suas audiências esperem que lhes seja dito o que significa estar juntos. (Nestor Canclinni, Artigo revista OPINIÃO PÚBLICA, Campinas,Vol. VIII, nº1, 2002, pp.40-53)

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o argumento Prendo propositadamente o título dessa nova parte do texto justamente entre citações. Poder-se-ia dizer que é a mesma citação, mas pertencem a lugares diferentes. Pertencem, porque assim o fiz, tal como qualquer bandeira fincada, na verdade, divide uma terra que por si só não leva uma linha riscada na superfície. Isso, é demasiado óbvio ou clichê de ser comentado. Mas continuo cavando, e tento achar as fronteiras do imaginário urbano, ou melhor dizendo, as fronteiras contidas na produção do cotidiano (como citado no início do texto). Nestor Canclinni, em sua linha de raciocínio, traz a reflexão sobre a administração das fronteiras cotidianas. 187


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Trago também, propositadamente, uma citação estrangeira aos estudos que antecedem esse momento, afim de propor uma ideia presa num varal, a mercê do vento mas presa em um fio, porque assim o fiz. Trago essa citação como uma das imagens, que não couberam nas fotografias, vazou em espaço e tempo, justamente por essa escrita suceder a produção da disposição das imagens. Falo sobre moradores em situação de rua, que são essencialmente pessoas que vivem no entre, e que por serem assim, fazem desse entre um território novo. Gerando novos entres. Morar na rua é morar onde passa gente, onde não se deveria morar. Um sujeito que passa indiferente ao morador em situação de rua ou o morador em situação de rua, que dorme sem se preocupar com o passante, estabelecem uma conexão de distanciamentos. Didi Hubermann propõe em grande parte de sua obra, uma leitura da história por meio de imagens, ou uma leitura de imagens por entre a história, como se refere em mais de um texto. A leitura desse entre, que mora justamente nesse aparente vazio que existe entre uma imagem com seus significados diretos e a pessoa que a absorve com seus conhecimentos subjetivos. O que acontece entre a imagem e o leitor, é substancialmente uma leitura de um vazio muitas vezes desprezado. Proponho a leitura da imagem de fronteiras e territórios a partir de uma simples imagem dois homens, um deitado e o outro de pé. Um caminha e o outro dorme. Dois territórios divididos por saberes de espaços distintos, que gera entre eles um vazio, a espera de uma leitura.

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O que vemos e o que me olha, nessa imagem, produz uma inquietação contínua de tanto o fotógrafo quanto qual dos personagens me identifico (inevitavelmente) morarem na mesma fronteira. Sou a pessoa que caminha, em maior ou menor grau de conexão, sabido do meu lugar na fronteira urbana, que sigo meu cotidiano. Deitado e indiferente ao homem que passa, ao fotógrafo ou a mim, outra ilha de significados surge na calçada da cidade. A imagem começa a mudar de peso e abrir-se em outras mazelas quando justaponho com diversas outras imagens que me disparam em narrativas. Me choco e quase desabo ao perceber, que de todas as imagens que selecionei para criar as narrativas, a conexão mais direta com o sujeito deitado que percebo é com um punhado de restos de uma construção tapados com um saco plástico. Percebo que não sei nada sobre o entre, e apenas finco mais uma bandeira na fronteira do sujeito de pé. Assisto TV, leio jornais... estar junto, ou partilhar o espaço não significa nada sobre esse “entre” que deprime o solo do cotidiano em um buraco sem fim. Cada passo afirma que não se trata de um ou outro lado, mas entender o que divide. Imagino que se a fotografia tivesse sido tirada quinze minutos depois, o sujeito deitado poderia ter esticado as pernas, ainda assim, recriaríamos a fronteira orgânica e inconsciente, nos inclinaríamos mais afim de seguir desviando. Teríamos outra foto, outras conexões... provavelmente as mesmas fronteiras e os mesmos vazios, apenas percebidos em outros elementos. 189


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as formas divergentes [1] Nessa imagem, os limites são impostos por uma hostilidade. Quem ousar atravessar, pode se ferir. É um convite ao avesso ao retorno do terreno como um. O chão é o mesmo, mas o limite outorga a posse, e o poder sobre o espaço. Algo pertence a um lado e ao outro, porém a biologia mantem-se única. Caso atravessássemos por um momento breve, e retornássemos, de nada notaríamos de diferente além de um ou outro arranhão. O limite é imposto conscientemente com a intenção de dividir. Não há nada implícito, nada mais em foco. Trata-se da divisão por ela mesma. Ao mesmo tempo, trata-se da junção de diversos arames retorcidos, que justamente passam a hostilidade por não serem um, mas um conjunto de farpas que ganham o primeiro plano da cena, enquanto ao longe, alguma vegetação desfocada divide o solo em que as raízes de um ou outro lado se conectam 192


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[2] Em meados de 1890, 1900 as expedições etnográficas marcaram a história da fotografia. Povos indígenas, esquimós, homens e mulheres africanas. O registro do diferente era trazido até quem não ousava atravessar as fronteiras e conhecer de fato as pessoas nos retratos. A imagem nessa época era essencialmente o entre, que conectava povos mais fechados em seus territórios às burguesias que os desconheciam. A leitura dessas imagens moravam na diferenciação em relação a si. Todos os sujeitos estão sentados, matematicamente dispostos e distribuídos. O explorador branco se posiciona no meio, vestido igualmente em contraste, como se precisasse afirmar sua posição central, contrastada e desenvolvida frente ao povo primitivo. [3] Grande parte das guerras envolvem fronteiras conquistadas ou perdidas. Avanços e retiradas estratégicas, táticas espaciais para dominar outro território e erguer bandeiras. As trincheiras são espaços e depressões entre esses territórios, que não podem ser vistos a distância, enterram-se no chão sem lápides nem cobertura. A guerra se dá por entre os entres, uma trincheira de cada lado. O entre é a proteção e a preparação para o ataque. Na imagem nenhum soldado está pronto para o ataque, assim como na imagem central, eles admitem esse entre, se estabelecem em tranquilidade. Antes ou depois de uma batalha, não importa. Um território que um dia foi único, é rasgado, e quem o rasgou apenas aguardam novas instruções. 193


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[4] O tempo corrói as estruturas. Desfaz os muros e os espaços passam a se conectar. Uma luz atravessa, um pedaço de estrutura fica aparente. Aquele muro sólido, que dividia dois territórios, coisa única e fácil de ler agora se abre como um livro de páginas de concreto, metal e fiação. Perceber a divisão seria a leitura lógica e objetiva. Perceber que a divisão é composta de muitas outras divisões nos coloca em um território infinito. Que tipo de estruturas aquele piso podotáctil representa da figura central representa, e quais seriam suas composições? [5] Não há divisão, mas há fronteiras. Na verdade, poderiam haver as duas ou nenhuma. Uma mesma terra dividida, dois países e a mesma terra. É fácil tornar-se estrangeiro quando essa denominação não parece ter relevância. Ao mesmo tempo, uma leitura possível, que desconhece a forma de um marco de fronteira, ou a tem em segundo plano num dicionário visual, poderia achar que se tratava de uma lápide. A justaposição com a figura central e uma equiparação de elementos acusa que a fronteira possa ter sumido. Sobra a lápide, que se põe no sentido oposto ao corpo que jaz deitado. A lápide mantém a impressão de que algo ainda está de pé, lembrando o mundo dos vivos, enquanto seu correspondente está deitado, sumindo pouco a pouco. Mesmo depois de já ter sido consumido enquanto matéria orgânica, a lápide resiste, 194


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deixando claro a fronteira entre um lado e outro. O simples símbolo divide, duas terras sem divisão plana, mas que são desconectadas por se tratar de profundidade e não de distâncias de chão. [6] (central) Na imagem um homem branco caminha, se esgueirando para fora, como se não quisesse pertencer ao mesmo enquadramento que lhe cerca. Os músculos retraídos, a mão no bolso e o olhar baixo despertam à quem o lê, uma certa impressão de introspecção, como se o seu pensamento no momento não estivesse conectado com o entorno que o cerca. Na imagem, um homem negro está deitado, a vontade como se quase fosse se misturar com a paisagem. O corpo em uma posição de aparente conforto, as pernas retraídas para não avançar na calçada e os olhos fechados. Parece compor o ambiente, ou deixar-se compor por ele. Entre eles, uma linha podotáctil, tão evidente que até deficientes visuais conseguem senti-la. Não há o que ultrapassa de um lado para outro, ao não ser as sombras dos prédios e de outras pessoas fora da cena, que não respeitam limites mas também não são táteis a ponto de conectar um ou outro. Como se apenas o que ultrapassa o limite não influencia nem conecta. Um sujeito inclina-se e o outro retrai as pernas. Talvez nenhum dos dois queira cruzar a linha. Um segue caminhando e o outro segue dormindo, ambos as sombras do que atravessa.

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O projeto como pensamento: diálogos com a filosofia

[7] Esta foi a primeira imagem na elaboração dessa leitura. Enquanto na figura central nenhuma barreira física se ergue e parece separar fisicamente os dois corpos, aqui não há corpo, apenas divisão. A forma como foi fotografada a imagem permite que saibamos que um olhar frontal, veríamos o outro lado, porém como está composta perspectivamente, não conseguimos ter clareza do que existe do outro lado. Sabemos apenas que o vazio está do lado visível. O vazio nesse caso, parece ser o lugar mais seguro de se transitar. Do outro lado pode ser uma ponte, ou abismo ou um viaduto. Na perspectiva, desfocado, vemos cidade. Não é o suficiente para sair do vazio. [8] Aqui mora o desejo retraído do atravessar. A fronteira põe em risco uma ideia de espaço, e deve ser mantida por homens camuflados, essencialmente estratégicos em sua farda, portes e objetos. Na imagem, nenhum deles está em posição de combate. Dois homens conversam sobre a vida, outro está vendo mensagens no celular. Alguns ainda olham a paisagem com uma postura de admiração com contemplação, se reconhecem no horizonte vazio. Um olhar mais atento percebe, que existe outra cerca farpada, mais próximo do fotógrafo. Esses soldados estão no entre, guardam o entre fronteiras. Se de um lado México e do outro Estados Unidos, eles estão em lugar nenhum, ou essencialmente em ambos espaços. São pequenos soldados na linha podotáctil da imagem central.

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[9] Criaturas que vivem no entre. Navegar no entre, apenas tocar as fronteiras, descarregar, recarregar, trocar e partir. [10] Aqui vemos um homem deitado no chão. Aqui vemos um saco cobrindo materiais de construção. Aqui vemos um resto de obra, um resto de mais uma parte da cidade construída. Aqui, as vezes, ainda vejo um homem deitado no chão.

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referências das imagens

[1] [imagem sem título]. Fonte: pesquisa por imagens google [2] [imagem sem título]. Fonte: Enciclopédia Larrousse 2002, palavra: Antropólogo, fotografia etnográfica [3] [imagem sem título]. Fonte: pesquisa por imagens google [4] [imagem sem título]. Fonte: Acervo próprio [5] [imagem sem título]. Fonte: Bienal Mercosul: Ensaios de Geopolítica [6] [imagem sem título]. Fonte: Acervo próprio [7] [imagem sem título]. Fonte: Archive.org [8] [imagem sem título]. Fonte: Washington Post [9] [imagem sem título]. Fonte: Pesquisa por imagens Google [10] [imagem sem título]. Fonte: Acervo próprio 198



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revolução Lucas Bittencourt

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na pรกgina anterior [1] [partiu] 202


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o argumento O grupo de homens posando ao lado de cavalos representa um corpo de voluntários durante a revolução de 931 fotografados na cidade de Camaquã, Rio Grande do Sul. Eles foram liderados pelo segundo homem da direita para a esquerda. A figura de sujeito baixo e de chapéu, barba rala e lenço chimango amarrado ao pescoço é meu trisavô materno.

1. A Revolução Federalista foi uma revolta civil republicana que aconteceu no Rio Grande do Sul em 1893. Os corpos voluntários reuniam homens civis de modo a fortalecer os efetivos da Brigada Militar. 203


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Os anos que nos separam pelo espaço temporal contam 125. Mas além do duplo enlaçe genealógico — digo que ele é meu trisavô duas vezes pelo fato dos meus avós serem primos diretos — há ainda algo mais que nos atravessa: ele tinha 28 anos quando retratado no seu levante de 93, a mesma idade que tenho agora, no ano de 2018. Lembrei do retrato como um relâmpago sintomático. Frente ao tumultuado ano político no Brasil, enquanto participava de um protesto contra o candidato à presidência Jair Bolsonaro, em Porto Alegre, estando de pé, na rua, me abismo 2. Então com 28 anos fazia a minha pequena revolução. Me reportava insistentemente àquele retrato desbotado e esquecido, resgatado de uma gaveta anos antes. O velho fotografado diante de seu tempo (os anos que nos separam me qualificam a chamá-lo assim, apesar de virtualmente possuirmos a mesma idade) é imaginado nesse exercício como um sujeito revolucionário. Aquele que leva o acontecimento político à exaustão: o levante, o que se arma e monta. O cotidiano institucional passou de novo a ser absurdo. Esse é um retrato do nosso tempo. Porém, agora, revolucionar é o mesmo que montar em cavalos? Ganhar as ruas é o mesmo que resisitir, ou, sobreviver?

2. “Me abismo, sucumbo” é uma das figuras do discurso amoroso “montado” por Barthes. Ver: BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. [p.9-10]. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1981.

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Na busca pelas respostas montamos em alguma coisa, ou articulamos coisas simplesmente, por diferenças, num gesto de montar nosso tempo, nossa cidade, nossos cotidianos. Os positivistas de 93 (lenços brancos) acreditavam nas palavras de inspiração Comteana: “o amor por princípio e a ordem por base; o fim como meta.” 3 Eu acrescentaria para aqueles sujeitos de 93 — defender a ordem, se rebelando — algo no mínimo: nostálgico e intrigante. No mas (num sonoro bom gauchês daquele período) impossível imaginar como o grupo da foto teria digerido essas palavras.

“Para saber é preciso imaginar” Didi-Huberman 4

3. Frase célebre do ideario positivista de Auguste Comte (1798 — 1857). 4. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. p.96. São Paulo: Editora 34, 2017.

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as formas divergentes Agora escuto no rádio a propaganda do governo brasileiro orientada às mídias: “Governo federal: ordem e progresso”.5 Difícil digerir essas palavras. Rumino assim (como um animal) as ruínas do meu tempo atravessado por ideias caducas e não atualizadas. Imagino, portanto. Assim se o lema do governo fosse: “amor com rodeios, montagens cotidianas, um fim sem fim”. Se pelo acaso institucional fôssemos atravessados por essas palavras, seríamos então mais revolucionários?

5. Essa frase é repetida (de maneira enfática e acelerada) após qualquer propaganda do governo no rádio. 208


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Como resposta resta imaginar e montar. Ou caminhar com o peso do mundo nas costas, por ruas cotidianas onde caminha também o esquecimento dos dias sobrepostos. Acontecer na cidade como um atlas 6 cotidiano e clandestino. Incômodo, também é aquele que não tem um lugar. Aquele que não se acomoda, facilmente. Ou então fazer essas palavras sobressairem sobre a própria pele. Quando a cidade e seus ordenamentos são sobrepostos sobre o rosto de alguém, também me abismo. É fascinante o modo da apresentação: a cidade monta sobre a pele do cantor. A imagem retorna como uma acentuação de determinado traço da realidade, insistindo sobre o corpo. Sobremaneira desse gesto (num movimento de posição indiscernível) tudo que vejo é o olho azul do cantor. Diante de toda a excitação dessa cena, de seu caráter diferencial, violento (como numa revolução) ou, de sua presença cultural como uma imagem provocante, tudo que resta é o olho azul do cantor. Enquanto isso, formigas caminhavam laboriosamente sobre o chão seco, como que dando um ar de normalidade àquela cena de protesto. Assisti ao movimento efusivo das formigas, que incluía naquele momento a dissimulação. Elas dissimulavam a cena onde euforia, calor e frustração se misturavam. Elas eram a normalidade do mundo agitada

6. Atlas é uma figura mitológica, fora condenado por Zeus a carregar os céus para sempre. 209


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pelo movimento cotidiano das obrigações da sobrevivência, e assim eu não sabia o que estava a fazer, exatamente, naquele momento. Sobrevivia ao mundo que se apresentava a mim: e quase só recordo de como fazia calor naquela tarde. Ao me jogar num lugar de profundo estranhamento os sintomas que emergem dessa imagem contrapostos a traços do mundo que me cerca tentam escrever, de maneira dialética, a invenção de novas formas. O movimento da montagem articula tempos e espaços distintos, justapostos de modo a buscar intensidade a um gesto derradeiro na vida: revolucionar alguma coisa. Meu trisavô tinha 28 anos no retrato de 93, a mesma idade que possuo agora. Mas já não estou mais nas ruas. Relembro uma cena do filme The dreamers 7 (2003) quando o personagem francês Theo monta sobre o personagem americano Mathew. Imagino como uma das cenas de maior excitação no filme: enquanto os segundos se arrastam, um sobre o outro, ficamos aguardando algo que possa vir a acontecer, até que a cena é interrompida por Isabelle, e então tudo desmorona, ou melhor, tudo se desmonta. Na cena além dos dois rapazes, uma cama desarrumada, uma garrafa de vinho, e uma luminária com a figura de Mao, o emblemático líder da Revolução

7. filme do italiano Bernardo Bertolucci, falecido recentemente em 2018. É ambientado em Paris no 68, com dois protagonistas franceses (os irmãos Theo e Isabelle) e outro americano (o visitante Mathew), por isso o título, em inglês The dreamers. 210


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Vermelha na China. Não é por excitação que trago essa cena. Instantes antes Theo pronunciara uma das célebres frases do filme: Books, not guns. Culture not violence. Era um mundo em dasassociação chocado com a diferença produzida por duas fantasias tão dinstintas e ao mesmo tempo tão próximas. A jovem estudante que corre pelas ruas da cidade, eufórica com a possibilidade de um outro mundo (imaginado) por aqueles sujeitos de 68, também é uma cena, dessa vez do documentário No intenso agora (2017) do brasileiro João Moreira Salles. É um golpe poético. Reassistido sinto vontade de transcrevê-lo em quase totalidade. Não posso. Reservo um pequeno trecho: “O importante é dar corpo a uma experiência, que rompe radicalmente com essa sociedade, uma experiência que nao dura, mas que permite entrever uma alternativa. A gente se dá conta de alguma coisa, e num piscar de olhos, essa coisa se apaga. Mas é o que basta para provar que essa coisa pode existir.” 8

8. Daniel Cohn-Bendit (1945) uma “liderança” de 68, em entrevista a Jean Paul Sartre para a revista Nouvel Observateur (L’Obs) em Paris, 1968.

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Nossa agora foi desenhado constantemente entre cultura e violência. Entre homens e formigas, vinhos e luminárias, cavalos e propagandas de rádio, excitação, tudo retorna a normalidade depois da euforia do levante. E então parece que uma ideia retorna: fazer desmoronar, para poder dar a ver, aquilo que antes estava enclausurado. Furar o chão e brincar com as sombras. É o próprio peso do mundo, fazendo sulcos na terra, dando a ver outra realidade. Mudar nosso cotidiano? Diríamos (talvez eu e o velho, juntos) que nada mais urgente do que: Imaginar apesar (de tudo).

referências das imagens [1] [partiu]. Retrato do corpo voluntário comandado por Boaventura Cardoso da Silva, durante a Revolução Federalista, Camaquã, RS. Fotografia no formato Carte Cabinet, técnica Albumina/ prata, 1893. Acervo do autor da coleção A.J.C.F. 212


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[2] [cotidiano institucional]. Imagem da web. Tirada durante os protestos de 2013, em Brasília, mostra a sombra dos manifestantes sobre a cupula invertida do Congresso Nacional. Não há referência ao autor da fotografia. Acessado em: Portal Institucional EBC (Empresa Brasil de Comunicação). http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/06/ protestos-completam-um-ano-e-violencia-policial-se-repete [3] [cavalaria]. Imagem da web. Tirada durante os protestos de 2013, em Porto Alegre, mostra a cavalaria da Brigada Militar do RS disposta em linha. Foto de Evelin Argenta. Acessado no portal GaúchaZH: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/ noticia/2013/06/12-cavalos-da-bm-ficam-feridos-em-protestos-nacapital-cj5v9fakm026jxbj0dxbhl6yu.html [4] [somos revolução]. Imagem do autor. Inscrição sob o viaduto Imperatriz Leopoldina, próximo a Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Tirada em 31/10/2018 às 13:59, celular. [5] [homem com mundo nas costas]. Imagem do autor. Homem descendo a ladeira da rua Rafael Pinto Bandeira, centro de Porto Alegre. Tirada em 31/10/2018 às 12:21, celular. [6] [chico &a cidade]. Capa do disco (CD) Carioca, do Chico Buarque. Gravadora Biscoito Fino: Rio de Janeiro, 2006. Acervo do autor.

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[7] [satolep noite, no meio de uma guerra civil]. Imagem das manifestações contra o candidato a presidência do Brasil Jair Bolsonaro na cidade de Pelotas, RS. Crédito da imagem: Henrique Ferreira. [8] [tirar-repor]. Imagem da obra displaced/replaced Mass, de 1969, do artista Michael Heizer (EUA). Imagem da web. Disponível em: http://40.114.5.22/artists/michael-heizer [9] [books not guns]. Imagem frame do filme The Dreamers (2003) de Bernardo Betolucci. [10] [cada segundo ganhou a espessura da eternidade]. Imagem frame do documentário No intenso agora (2017) de João Moreira Salles. [11] [triunfo da normalidade]. Imagen da web. Fotografia dos protestos dos “coletes amarelos” na França em 2018. Lê-se inscrição feita sobre o Arco do triunfo: “Os coletes amarelos triunfarão”. Fonte: Portal de notícias da DW https://www.dw.com/pt-br/as-ruas-de-paristestam-macron/a-46553244 [12] [furo]. Imagem coletada de Fotorerritório de Henri CartierBresson reprodução artística de Flavya Mutran (artista e arquiteta) na exposição O poder da multiplicação no MARGS, 2018. Na exposição destaca-se da obra uma folha de papel contendo a fotografia escolhida. A mesma fotografia pode ser acessada no site da artista na web. Acessada em: https://www.delete-use.photos/?lightbox=i83mj6 214



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entre espelhos urbanos Lucas Rodrigues

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o argumento Sociais por natureza, nós, os seres humanos, nos organizamos em complexas estruturas sociais desde a revolução do Neolítico, aonde deixamos de andar em pequenos grupos nômades e firmamos assentamentos permanentes. Hoje em dia, vivendo em gigantescos aglomerados urbanos, quando paramos para fitar o que vemos e o que nos olha em meio a este contexto do dinamismo exacerbado, do “time is money”, do consumismo desenfreado, podemos perceber algumas particularidades deste modo de vida contemporâneo e de que maneira elas refletem-se no espaço físico. 218


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Na imagem escolhida para ilustrar esta questão a ser aprofundada na disciplina, podemos observar em primeiro plano um homem negro dormindo em um banco de praça, mais ao fundo uma grande publicidade vendendo um estilo de vida glamoroso e luxuoso que só o dinheiro poderia te oferecer. Partindo então deste panorama, a problemática a ser desenvolvida debruça-se sobre as questões das barreiras sociais, sejam elas socioeconômicas, étnico-culturais ou locacionais. Busca problematizar sobre os seguintes questionamentos: A sociedade de consumo produz seres desumanos? De que forma a sensibilidade humana deixa-se transparecer nas cidades contemporâneas? Qual a importância da propriedade privada ou da falta dela, o que isso acarreta nos centros urbanos e suas periferias, e de que maneira o cidadão enxerga-se perante os espólios mercadológicos? Como a periferização reflete nos grandes centros urbanos? A violência precede a segregação ou seria a primeira uma consequência da segunda?

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as formas divergentes [1] Espelhos urbanos, reflexos de formas que informam, que esmagam o que está dado. Em uma sociedade pautada na velocidade, na exaltação do dinamismo do “time is money”, aonde nada e tudo é percebido, refratam e te desviam momentaneamente a uma reflexão passiva. [2] O dinamismo exacerbado do modo de vida capitalista faz de nós seres humanos menos humanos? Estamos cegos e indiferentes. Hoje caminhamos pelas ruas e fitamos a desigualdade com um olhar de indiferença. Passamos pelos outros sem enxergar no próximo um semelhante, coisificamos gente! 222


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[3] Sociedade excludente, arquitetura hostil, indiferença extremada ao ponto de virar revolta dos abastados. Sensação de posse do lugar. “Como que um sem teto vai emporcalhar a minha rua?”. Periferização, a marginalização dos socialmente já marginalizados. Até quando? [4] A mesma indiferença que levamos conosco na escala peatonal reflete-se na escala macro. Transparece nitidamente na ótica da morfologia urbana, cria barreiras e muros, segregando e assim explanando a igualdade somente para “os mais iguais”. “Compro e vendo lugar no céu!”. [5] A sociedade de consumo, a sociedade descartável. O consumo pelo consumo, maneira contraditória de manter o desenvolvimento das sociedades. Uma sociedade igualitária não tem preço para todas as outras existe mastercad. [6] Às compras, o contrassenso. Enquanto para uns o consumo incontrolável é banal para os esquecidos as aquisições são feitas de restos, de espólios mercadológicos, às margens. [7] O urbano se torna aquilo que sempre foi: lugar do desejo, desequilíbrio permanente, sede da dissolução das normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível. Animais desejantes, curiosos pelo o que está tão perto mas ao mesmo tempo tão longe.

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[8] “As vezes eu falo com a vida, as vezes é ela quem diz. Qual a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz? As grades do condomínio são para trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que está nessa prisão.“ (Minha Alma, O Rappa. 1999). [9] O animal acuado se defende. Às margens da sociedade em situação de isolamento o bicho homem percebe-se mirando os privilegiados. Qual faísca acenderá este pavio? A violência precederia a segregação ou seria a primeira uma consequência da segunda?

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referências das imagens [1] [espejos]. Fonte: fotógrafo Flávio Damm. https:// observatoriogeral.com/2013/09/26/flavio-damm-apadrinha-afotografia-do-observatorio-geral/ [2] [dicotômico]. Fonte: https://produto.mercadolivre.com. br/MLB-1106628923-arame-de-proteco-para-muro-1-rolo-com030x5m-_JM?quantity=1 225


[3] [espinhos urbanos]. Fonte: https://www.theguardian.com/ society/2015/feb/18/defensive-architecture-keeps-poverty-undeenand-makes-us-more-hostile [4] [paraisópolis]. Fonte: fotógrafo Tuca Vieira. https://www. tucavieira.com.br/A-foto-da-favela-de-Paraisopolis [5] [indiferença]. Fonte: Photograph: Rebecca Vale/Alamy Stock Photo https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/feb/18/ observer-view-of-britains-shameful-social-division [6] [rasgadura]. Fonte: https://www.sul21.com.br/emdestaque/2016/06/unicef-pobreza-pode-causar-morte-de-69-milhoesde-criancas-ate-2030/ [7] [são joão]. Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ ultimas-noticias/2013/06/20/apos-tentar-congresso-e-planaltomanifestantes-entram-no-itamaraty-em-brasilia.htm [8] [mastercard]. Fonte: https://www.shutterstock.com/search/ master-card [9] [roupa nova]. Fonte: http://www.dinomarmiranda. com/2007/07/as-crianas-perdidas-de-cit-soleil.html



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[1] [ai meu deuso] 228


um grito mudo na rua Luciana Echegaray


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a imagem [foto principal da montagem que revela o problema-conflito] Foto do grafite comissionado pelo Goethe-Institut de Porto Alegre, criado e fixado no muro de sua sede local por Rafael Pixobomb (um dos pixadores mais atuantes da cena urbana paulistana e referência internacional) e Amaro Abreu (grafiteiro da cena local com obras espalhadas por vários países), após ter sofrido duas intervenções (violações) por parte de grupos de citadinos. 230


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o argumento As cidades concentram uma variadade de expectativas, ações e demandas de seus habitantes. Por esse motivo, é nesse espaço urbanizado, onde há uma grande integração de vida humana e de aspectos materiais, que se criam, se consolidam, se revogam e se reconstroem os signos e símbolos que caracterizam a cidade como produto do homem. Campo de encontros, de trocas, de formação de redes e de embates, a cidade tal como o ser humano que a compôs e que a compõe, é carregada de linguagens e significações, como uma “floresta de símbolos” (BERMAN, 1986), um organismo sempre em mutação, percebida através de fragmentos e de imagens construídos e descontruídos pelo crescimento caótico, desigual e pelo multiculturalismo conflitante. Longe de suscitar um consenso, a cidade física, material, é carregada de símbolos e de referências coletivas e individuais, o que a converte tanto em espaço para a celebração e para o deleite quanto para o conflito, tornando-a um ambiente controvertido. E é nas cidades, em meio a essa variedade de ações e seus diferentes habitantes, que o graffiti se traduz como um traço que recria a cidade como objeto não estabilizado. Um traçado urbano, onde a cidade acontece e o sujeito se refaz; onde o território é um ato de “espaçar”, concebido “como ação e não como delimitação física” (REYES, 2015). Todavia, esse modo de ocupação e entendimento do espaço suscita conflagração, não ocorrendo de modo pacífico. 231


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No dia 22 de março deste ano foi inaugurada, nas dependências do Goethe-Institut de Porto Alegre, a exposição “Pixo/Grafite: Realidades Paralelas”, que contou com apresentação de vídeos, pinturas, gravuras, fotos e desenhos na galeria da instituição, bem como com uma intervenção no muro externo do Goethe, feita pelos expositores, o pix(ch) ador paulistano Rafael Augustaitiz (o Pixobomb, como é conhecido na cena urbana de São Paulo) e o grafiteiro portoalegrense Amaro Abreu. Todavia, a polêmica que foi gerada a partir da intervenção de Amaro e Pixobomb (comissionada pelo Goethe) no muro, nem os expositores/ interventores, nem a direção da instituição, nem tampouco o curador da mostra haviam imaginado que poderia ocorrer: vários grupos locais passaram a se manifestar sobre uma das figuras representadas no muro, especificamente uma criação de Pixobomb, uns contra outros a favor da figura, o que suscitou reações de apoio, mensagens de ódio e manifestações diversas por parte da comunidade, nas redes sociais e na imprensa local e nacional. Até mesmo uma caminhada a favor da intervenção foi organizada pelo coletivo local ProsperArte, e a notícia da polêmica figurou até em sites na Alemanha e nos EUA. As vozes do grafite de Amaro e Pixobomb foram ouvidas, livremente interpretadas e promoveram respostas de outras vozes. Estava estabelecido o conflito. Após alguns dias de manifestações acerca da imagem nas redes sociais, na imprensa e em atos organizados por grupos de citadinos, o grafite (que recebia ameaças, via redes sociais, de ser apagado pelo grupo que se opunha a ele) sofreu sua primeira intervenção na noite do dia 30 de 232


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abril: a cabeça do homem decapitado foi coberta por tinta preta e ao seu lado foi pichada, em letras brancas, a frase “Ele Ressucitou!”. Na madrugada do dia 02 de maio de 2018, o muro do Goethe-Institut Porto Alegre recebeu o segundo picho: desta vez, uma frase pichada por cima da anterior, em letras de cor verde, com a inscrição “Ai, meu deuso!”. Essa intervenção, bem como a anterior, não teve a autoria assumida por nenhum grupo ou indivíduo. Diante desses fatos, voltamos à imagem anterior: por que, então, um grafite comissionado por uma instituição reputada internacionalmente por seu apoio às artes e às humanidades, fixado em sua sede própria, de autoria de dois artistas reconhecidos na cena urbana, promoveu tanta discórdia a ponto de ser destruído de forma tão unilateral e discricionária?

uma breve sustentação acerca do problema - conflito O graffiti é uma intervenção urbana que gera muita controvérsia porque fala, mas também porque suscita vozes. Independente do estilo, nele há uma ação que propõe os mais diversos questionamentos e julgamentos: os citadinos se dividem entre os que julgam ser arte e os que julgam ser sujeira, e há até os que nem se importam ou nem mesmo notam o fenômeno; os grafiteiros se dividem entre os que pixam e julgam que os estilos mais elaborados se venderam para os domínios 233


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de ação do sistema governamental e para a gentrificação, e entre os que julgam os pixadores como desqualificados que só servem para ratificar a má reputação de todos que grafitam. Até mesmo o Poder Judiciário se divide na hora de julgar contendas que envolvam o graffiti. Há também uma dificuldade, por parte de algumas instituições e de membros da comunidade, em compreender o papel do imaginário e da representação no espaço urbano, como revelado na foto do muro do Goethe-Institut local, que ilustra o problema-conflito deste trabalho. Esse caráter de dualidade está presente na vida coletiva das cidades, onde os homens constróem o simbólico sobre o material. Para PESAVENTO (2008): “É este duplo caráter - de celebração e combate, de atração e repúdio - que faz da cidade um tema tão controvertido. Sonho e pesadelo, sobre ela os homens depositam angústias e esperanças.” (PESAVENTO, 2008, p. 26). Essas discussões são válidas, principalmente porque desencadeaiam o debate sobre a cidade na qual vivemos e desejamos viver. Mas, independente das polêmicas, o fato é que o graffiti existe, em todas as suas formas, e é necessário investigar o motivo pelo qual ele está presente nas cidades. Afinal, qual a razão para a existência desse evento em tantas cidades do mundo, ao longo de tantos anos, apesar de toda controvérsia? Com o graffiti a cidade passa a ser revelada não somente como objeto ou linguagem, mas também como uma prática (LEFEBVRE, 2016), como um espaço vivido, concebido e compartilhado. Um 234


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ambiente urbano de segregação e de exclusão onde seus habitantes criam seus próprios signos, sua própria linguagem, suas vozes, a fim de exercerem seu direito coletivo à cidade. Porque nessa... “...cidade triste também corre um fio invisível que, por um instante, liga um ser vivo ao outro e se desfaz, depois volta a se estender entre pontos em movimento desenhando rapidamente novas figuras, de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem mesmo sabe que existe” (CALVINO, 1990. P. 135). Nesse contexto, o graffiti manifesta-se como modelo de apropriação do espaço e do tempo na cidade, e como a expressão positiva de uma comunidade no exercício de um poder. A diversidade e a hibridação trazem riqueza à “floresta de símbolos” de Berman, mas também geram conflito. E é natural que assim seja, uma vez que as cidades são uma criação humana, portanto, não poderiam ser perfeitas. É nas cidades que são travadas as batalhas por qualidade de vida. E é nelas que as soluções serão encontradas.

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as formas divergentes A arquiteta e urbanista Paola Jacques, ao tratar o método da montagem como “forma de pensamento” acerca das cidades e do próprio urbanismo, nos revela a possibilidade de pensarmos o espaço em que habitamos “de uma forma menos homogênea, mais complexa, a partir de suas diferenças, heterogeneidades e também de seus limiares (tanto espaciais quanto disciplinares)” (JACQUES, 2015). 238


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Esse método complexo de montagem, que gera o conflito da forma contra a forma, apresenta a imagem não como representação mas como algo que vai mais adiante, e que não sintetiza o simbólico em si mesma. Uma imagem que está sempre apta a criar novas narrativas e outros discursos para nos fazer enxergar para além de nossa própria cegueira do conhecimento, nos convidando a visitar um lugar outro, e nos propondo “imaginar, apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2017). As fotos escolhidas para a composição da montagem deste trabalho contêm a potência dessa impermanência do sentido das coisas, cada uma a seu modo. E podem dar margem a significações diversas, porque são diversos os universos de quem as vê. [2] A primeira pichação realizada no muro do Goethe-Institut de Porto Alegre, com a inscrição “Ele Ressuscitou!” e que também cobriu a figura da cabeça na bandeja, apesar de não ter sua autoria assumida por nenhum grupo, é resultado da pressão feita por grupos católicos e do MBL locais. Tais grupos defendem os valores contidos em nossa bandeira, de Ordem e Progresso, e o próprio MBL tem sua identidade visual baseada nas cores do estandarte nacional. Todavia, para o morador de rua, essa bandeira serve apenas como proteção para seu corpo. Sem direito a uma vida digna, tolhido de sua cidadania, tal símbolo da nação nada significa para ele. E, desse modo, toda a polêmica e discussão geradas em torno do graffiti do Goethe não lhe dizem respeito, pois não representam suas necessidades e demandas emergentes. 239


O projeto como pensamento: diálogos com a filosofia

[3] Do muro de concreto brotaram interpretações diversas, divergências, convergências. O graffiti no muro do Goethe cumpriu sua função: suscitou o debate, ecoou vozes diversas, retirou os citadinos de suas zonas de conforto, revelou novas formas de expressão e utilização do espaço urbano com uma rebelião de símbolos, em uma “nova lógica perceptiva” (VOGLER, 2009). A vida na “cidade polifônica” (CANEVACCI, 2011) seguiu seu fluxo, com todas as suas vozes. Essa foto simboliza essa vida, que insiste em brotar. [4] A imagem criada pelos grafiteiros no muro foi concebida como um bem cultural e simbólico: dotado de técnica para sua realização, mas também como resultado da manifestação livre da criação. Desse modo, se constitui como uma obra artística que, infelizmente, foi desprezada por parte da comunidade local. Tal como o poema escrito no papel higiênico, cujo destino será a desvalorização e o descarte. Como “uma pérola jogada aos porcos”, como diz o dito popular. [5] As duas intervenções feitas no muro do Goethe pelos citadinos não tiveram suas autorias assumidas por nenhum grupo ou indivíduo, ou seja, preceitos e valores identitários foram fixados no muro, mas não se sabe a identidade de quem os fez. A foto de um RG anônimo com impressão digital traduz essa incongruência. [6] Um muro serve para isolar, apartar, criar um entre, uma separação, um limite. 240


imagem em Georges Didi-Huberman

Como um quarto escuro, um claustro, um local para isolamento. Mas a janela no quarto escuro abre uma possibilidade de revelação, tanto do que está dentro quanto do que está do lado de fora. Como o graffiti no muro do Goethe: o muro, que antes apenas segregava, separava, protegia, torna-se um espaço de manifestação e de exibição. Uma janela foi aberta no muro. [7] O muro do Goethe nos revelou uma inversão de papéis: o grafiteiro/pixador Rafael Pixobomb, famoso por sua obra e também pelas polêmicas que gera, e que já resultaram até em sua prisão, foi contratado e autorizado pelo instituto para realizar a intervenção, portanto, agia dentro da total legalidade. Por outro lado, os movimentos que incitaram a destruição do graffiti com a pichação , como grupos religiosos e o MBL, são conhecidos por defenderem a ordem, o patrtimônio, e valores mais conservadores. Ou seja: o pixador estava dentro da legalidade, e os defensores da legalidade foram os que agiram de modo ilegal. Esse contrasenso está representado na foto das camisetas. A grife KA é voltada para o público LGBT, e lançou essa curiosa coleção com uma estampa do arco-íris (que representa o movimento LGBT) que leva uma suástica nazista sobreposta, e abaixo da estampa, palavras como Peace, Zen, entre outras. Há também uma contradição nessa coleção, a tal ponto que revoltou seus consumidores.

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referências do texto BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Compahia das Letras, 1986, 4ª reimpressão. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CANEVACCI, Maximo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 2011.

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imagem em Georges Didi-Huberman

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, [2011] 2017. JACQUES, Paola. Montagem Urbana: uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo. In: JACQUES, Paola; BRITTO, Fabiana; DRUMMOND, Washington (org.). Experiências metodológicas para compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Salvador: EDUFBA, 2015. 4v. Il. 47 a 94. LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. Itapevi, São Paulo: Nebli, 2016. PESAVENTO, Sandra Jatahy. “A Cidade Maldita”. In Imagens Urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano. SOUZA, Célia Ferraz; PESAVENTO, Sandra Jatahy (orgs.). 2ª Edição. Porto Alegre: Editora da UFGRS, 2008. REYES, Paulo. Lugares de Godot. Artigo. 5º Simpósio de Design Sustentável. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: http://pdf.blucher. com.br.s3-sa-east-1.amazonaws.com/openaccess/9788580392661/27. pdf Acesso em novembro de 2018. VOGLER, Alexandre. “Atrocidades maravilhosas: ação independente de arte no contexto público”. In Arte & Ensaio, ano VIII, nº 8, RJ: Editora da UFERJ, 2001.

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referências das imagens

[1] [ai meu deuso]. Fonte: muro do Goethe-Institut Porto Alegre. foto de José Daniel Simões [2] [morador de rua coberto pela bandeira do Brasil]. Fonte: http:// www.institutotrabalhistas.com/2017/03/pior-melhor-do-psdbpmdbderruba-o.html [3] [planta que brota do concreto].Fonte: https://www.dolcevitaonline. it/siamo-100mila-siamo-una-comunita-che-cresce/ [4] [poema no papel higiênico]. Fonte: https://fotolog.com/luz_do_ dia/71204150 [5] [identidade sem rosto]. Fonte: http://centraldocidadao.rn.gov.br/ index.php?class=GrupoServicoPage&method=onReload [6] [janela do quarto escuro]. Fonte: https://www.shutterstock.com/ pt/image-photo/dark-window-mystery-night-440308351 [7] [camisetas com suástica]. Fonte: https://oglobo.globo.com/ela/ moda/nova-marca-de-roupa-usa-suastica-como-logotipo-21676968 244



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livres, desobedientes, ambos ou nenhum Marina Goulart

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[1] [imagem disparadora]

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o argumento Vivenciando um momento político conturbado e democracia fragilizada escolhi tratar a liberdade e desobediência na cidade no âmbito de suas manifestações ou proibições. Embora eu pretenda tratar do tema no Brasil, esta foto foi tirada por mim quando estava embarcando em um trem para Londres em minha primeira e única viagem intercontinental. Foi uma viagem que carreguei o amargor de visitar cidades que imperaram e se desenvolveram às custas de outras, e que hoje são modelo para o mundo por serem ordeiras e bem sucedidas, assim como seus cidadãos, resultante de colonialismo cultural remanescente. 248


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Quando me deparei com este ato singelo, saltou-me a evidência de que a “ordem” e regramento sempre irá ferir o livre arbítrio de alguém. Enfim, os ordeiros e comportados ingleses me apresentaram um pequeno gesto de subversão dessa ordem. Um gesto possivelmente ingênuo, mas que expõe a contradição humana ao buscar regrar e impor concessões de forma não consentidas. Assim, elenco alguns questionamentos que irão guiar esta montagem: Quem tem e onde tem livre arbítrio na cidade? Qual desobediência é aceitável na cidade? O que pode ferir a liberdade de alguém na cidade? O que e quem são os agentes regradores? O que e quem fere a liberdade? Quem são os agentes subversores e/ou questionadores destas regras?

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as formas divergentes [2] Inicio minha rasgadura pela última imagem coletada. Apressada em um domingo de manhã, passo de bicicleta pelo pombo atropelado no asfalto, abandonado em cima de um bueiro. Não gosto de pombos, mas a cena me comove, voltarei ali para tirar uma foto. Esquecido isso, segunda-feira, no mesmo trajeto reencontrei o pombo estilhaçado, agora, pra não ser mais esquecido. Ao invés de sacar a câmera sobre a bicicleta, desço, enquadro e dou-me conta de que logo atrás está a Redenção e os inúmeros ônibus de transporte públicos passando. Embora, racionalmente saiba que os pombos são espécies exóticas, que desconhecemos o seu verdadeiro habitat natural, não deixei de imaginar... “Sua casa estava logo ali! Porque veio se aventurar neste asfalto? Tornando-se dejeto do homem? Quanto custou a sua desobediência?” Esse pombo me perturba e segue me perturbando. Mesmo desdenhando sua espécie, acredito que sua vida valia mais. Mas... será que não valeu a pena? Usufruir de sua liberdade de voar para desfrutar outras realidades? Só a da floresta importa, ou vale mais a sua liberdade de decidir para onde ir?

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[3] Na segunda rasgadura, encontro uma possibilidade. Porque devemos seguir cegamente os regramentos, e nunca questionarmos onde deveríamos estar? O que é certo a se fazer? “Por favor, não ponha seus pés no assento”. Onde mais posso decidir onde meus pés podem estar? “Morar dignamente é um direito humano!”. Eis que vejo a Ocupação Lanceiros Negros, ocupando aquilo que deveria ser seu por direito. Aqui, me deparo com uma desobediência necessária. É preciso ser desobediente aquilo que a suposta ordem não te devolve, talvez sim, valha a pena sair da floresta, mesmo o risco sendo alto. É preciso questionar... é preciso imaginar, pra além das palavras, onde nossos pés podem e devem estar. [4] Mas quem tem esse direito? De ir e vir? De colocar seus pés sobre o assento? Ou mesmo de questionar a ordem para não colocar seus pés nos assento? A lei pode até nos dizer que todo cidadão tem o direito de ir e vir livremente. A afirmativa é válida para o menino negro, vestido com a camisa de sua seleção, sonhando sem ser um grande jogador de futebol, que vive na vila, onde o sangue negro escorre todos os dias? É válido afirmar, quando tão tradicionalmente se fala: “estava no lugar errado, na hora errada”. Qual o custo de sua desobediência? Seria este menino o pombo no asfalto? [5] No anarquismo, desobediência é sinônimo de liberdade. No gods, no masters. Risco a placa, porque essa placa me reprime. Destruo a ordem, porque a ordem me reprime. Me... me... me... A banda

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anarcopunk me provoca. Imagino jovens privilegiados, questionando a ordem. Mas pra quem serve a liberdade de um anarcopunk? Seria ao menino da camisa da seleção? Ao pombo? Ao direito de ter moradia? Ou fala mais sobre si? Sobre uma liberdade individualista que não suporta o mande e desmande? [6] Essa desobediência serve para a empregada doméstica que carrega o filho do brasileiro de bem para o protesto contra a corrupção? Quão livre é o casal padrão cidadão de bem que precisa de sua empregada para poder sentir-se seguro e zelado para conseguir ir ao protesto? A empregada carrega o filho, a mãe o cachorro. Cachorro esse que também já desconhece seu próprio habitat, como o pombo. Um a gaiola do outro, sistemicamente fechados em si. Para preservar a ordem. “Please, put your feet on the seats” penso para a mulher negra, mas assim como o menino, me questiono se ela não seria o pombo no asfalto. Imagino a família, morando em uma casa em um condomínio, onde o quarto da empregada é minúsculo, e o cachorro reina no espaço da casa. Imagino essa empregada longe de seus 4 filhos que tem que alimentar. E novamente eu me questiono, ela pode riscar a ordem? Ela deve questionar a ordem? E o casal? É verdadeiramente livre dentro de seu condomínio? Novamente me repito, sistemicamente fechados, engaiolados em si. [7] Esse é o Chico, Chico Xavier, passarinho da casa dos meus sogros. Tirei essa foto, pois recentemente desencarnou o Kardec, seu 254


imagem em Georges Didi-Huberman

companheiro passarinho. Dei-me conta que não tínhamos registro deles, então resolvi registrar o Chico. Eis que então ele se torna a rasgadura mais importante de minha montagem. Chico não é livre, pouco vive no seu verdadeiro habitat. Ganha comida, canta de manhã quando nos vê, adora ficar ao sol, e volta e meia precisa se debater, porque uma das gatas o está ameaçando. Chico nasce em cativeiro e permanece em cativeiro. Não pertence mais à floresta. “Put your feet on the seats, Chico!”. Seja livre, Chico! Mas se Chico foge, ele não sobrevive. Imagino a empregada doméstica levando Chico para o protesto, ali ele pode falar o que pensa, já que está protegido. Chico não pode ir e vir, mesmo assim, volta e meia precisamos dizer: “Para, Chico de cantar! Não estamos conseguindo conversar!”. Chico pode cantar, ali, ele encanta e incomoda. Kardec não cantava, não sabemos porque, hoje sobrou apenas a presença e o canto do Chico. Brincamos que hoje o Kardec finalmente pode ser falcão. Mas é o canto que me faz pensar, que antes de ordenarmos uns aos outros, e subverter essa ordem, engaiolarmos uns aos outros, deveríamos nascer livres e permanecer livres, pra que possamos escolher onde queremos estar. Não quero pássaros engaiolados, entretanto, sei que eles me fazer imaginar... Perceber as minhas próprias gaiolas, pra que eu possa entender o limite da minha liberdade. É o canto que me faz perceber que hoje sou mais o casal cidadão de bem, do que o pombo no asfalto.

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referências das imagens [1] [imagem disparadora]. Fonte: Marina Goulart. [2] [imagem sem título]. Fonte: Marina Goulart. [3] [imagem sem título]. Fonte: http://www.esquerdadiario.com.br/ IMG/arton15754.jpg [4] [imagem sem título]. Fonte: http://taniaalice.com/todo-cidadao-

tem-o-direito-de-ir-e-vir-livremente/ [5] [imagem sem título]. Fonte: https://www.no-gods-no-masters. com/tshirts_bands/desobediencia_civil [6] [imagem sem título]. Fonte: http://www.vermelho.org.br/admin/ arquivos/biblioteca/cms-image-00048642191299.jpg [7] [imagem sem título]. Fonte: Marina Goulart. 256



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vazamentos

Raimundo Giorgi

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[1] [splitting, Matta-Clarck]


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‘O infalível é falível e o falível infalível’ Helio Oiticica

o argumento Tomo o projeto em sua definição como tecnologia de construção da cidade – ou como uma organização retórica da não-falha ou da impossibilidade da falha ou da inutilidade da falha – e proponho leitura desdizente dessa existência: tudo deve falhar para acontecer em pulsação e profundidade. A falha, como Gordon Matta-Clark mostrou em suas fraturas projetadas da arquitetura, é reveladora de existências (CIDADE, 2010); promove compreensões que só podem acontecer a partir dela.

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Por essa leitura – cuja linhagem percorre Baudelaire e seu ‘flanêur’, passa por Debord e os Situacionistas e chega às noções atuais de um ‘corpo-cidade’ (sempre numa posição contra-cultural em relação a uma ideia totalizante de eficiência programada da cidade) – aquilo que sobra, o que não cabe, o alterado, o deslocado, o não previsto, é elemento de utilidade de uma outra construção, essencial para a experiência urbana: o que está por fazer, requerente de ação, produtor de inter-ação (JACQUES, 2015). Imagens da estrutura estável sendo atacada, propositalmente corrompida, num ato de não-obediência, ganham exemplo paradigmático em Marcel Duchamp e sua arte anti-retiniana, dedicada ao pensamento e a um certo elogio do abstrato: as coisas de difícil reconhecimento são positivas a partir exatamente desse estranhamento – dissensual do normal da vida – operando algo como uma ‘perturbação construtiva’, que podemos tomar como análoga às ideias de desconstrução de Derrida: a desmontagem das engrenagens é um ato ao mesmo tempo revelador e desestabilizador (QUEIROZ, 2015), criando espaçamentos (REYES, 2016) para atos de refação de seus significados. De Duchamp, mais especificamente da ideação de seus ‘readymades’, nos diz Arthur Danto que buscava coisas “com nenhuma qualidade estética” (2008:5). Tal afirmação é ao mesmo tempo clara e

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instigante: é diferente de simplesmente dizer sobre coisas sem estética e eleva o negativo – a ausência, no caso – ao patamar de uma qualidade possuída, que está ali e acontece ‘como uma potência específica’, para usar a expressão de Rancière (2012:33). Matta-Clark opera em modo explícito esse ato desconstrutivista do todo aparente, particularmente em seus ‘splittings’, cortes na pele e osso das arquiteturas que, ao produzir defeitos, não só revela outras camadas da estrutura – esclarece o único como uma montagem – mas cria vazios, rasga passagens de luz, constrói outros espaços. O que acontece quando aparecem as falências da cidade, e outra estrutura, feita do não-previsto, emerge? O que chamo aqui de ‘Vazamentos’ fala de um certo olhar sobre as falências mecânicas da cidade, seja por obsolescência ou por provocações a seu corpo construído – espaços e arquiteturas – e que em algum modo alteram suas significações reconstruindo-as: propondo outras. Esse olhar é por si a proposição de um outro tipo de ataque, desta vez à retórica de eficiência de que falávamos no início, constituído em forma de elogio e reconhecimento do que poderíamos chamar de uma contraestrutura, cuja existência tanto nos escapa quanto nos estimula. O que pode revelar este olhar – que mapa de compreensões pode criar –, debruçado sobre a revelação da máquina imperfeita e a exposição de suas danificações?

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referências do texto CIDADE, Daniela; “Os cortes de Gordon Matta-Clark”; tese, Porto Alegre, UFRGS, 2010 DANTO, Arthur; “Marcel Duchamp e o fim do gosto”; ARS, São Paulo July/Dec. 2008; v6, n12 DIDI-HUBERMAN, Georges; “Quando as imagens tocam o real”; Belo Horizonte, UFMG, 2012; v2, n4 DIDI-HUBERMAN, Georges; “A semelhança informe”; Rio de Janeiro, Contraponto, 2015 JACQUES, Paola Berenstein; “Elogio aos errantes”; Salvador, EDUFBA, 2012 JACQUES, Paola Berenstein; “Montagem Urbana”; Salvador: EDUFBA, 2015. 4v. Il. 47 a 94 QUEIROZ, Vitor in Colunas Tortas:https://colunastortas.com.br/ jacques-derrida-desconstrucao-e-differance/ 2015 RANCIÈRE, Jacques; “O inconsciente estético”; São Paulo, Editora 34, 2012 REYES, Paulo Edison Belo; “Projeto entre desígnio e desvio”; Porto Alegre, UFRGS, 2016 263


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as formas divergentes

do alto-esquerdo, em sentido anti-horário

[1] A ordem é uma construção de aparência sólida. A ordem é verdade até ser atacada, reescrita, vazada. O trabalho constante da ordem é cobrir a luz que a perpassa.

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[2] Toda verdade é um exercício de montagem, que se revela em políticas de comportamento. A cidade é qualquer coisa de difícil, as soluções que excluem são falhas desnotadas, feitas invisíveis no normal falsificado. A cidade é um complexo e essas falhas voltam como sintoma: vazam, agridem, sujam e podem se tornar, rompidas as camadas da forma aparente, perigos reais e iminentes. [3] Nem tudo (planejado, controlado, desenhado, funcional, reconhecível, hermético, sistêmico, adequado, atendente, com tamanho, cor e gravidade), nem tudo cabe. [4] Desconcerta-se coisas! A desfação de ilusões mostra o inalcançável da realidade. A cidade é um jogo permanente de tentativas de normalização, resolução, segurança, coisas que adoramos ter. Mas a cidade é coisa distorcida, “queima em contato com a realidade” e sua riqueza é nos mostrar não só o que queremos, mas também o que não entendemos. O que é um outro modo de alcançar a felicidade. [5] A cidade é a geometrização final da natureza, natureza-outra, outro habitat. Posso plantar e transplantar, posso não sentir frio nem calor, tudo está bem e seguro. Mas algo (sempre) escapa dessa sensação controlada. [6] Os cortes são interrupção ou passagem? O que claramente permite (caminho que se enfeita: passe!) liberta ou ensina? O que promete nada de estranho conforta ou vicia? Já não ver a diferença, pasteurizar as verdades, já não ver... aberturas são coisas do campo do sonho ou da realidade?

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[7] Matta-Calrk, autodeclarado anarquiteto, propõe cortes desestabilizadores da coisa-dada, perturbando os sensos comuns a partir desses rasgos na arquitetura: sangra. Dentro-exposto, certezas são rompidas, o infalível falha, o que é sólido se dissolve e o familiar fica estranho. Perturb-ação.

referências das imagens [1] [fotografia, Splitting, 1974]. Trabalho de G. Matta-Clark. Fonte: https://theibtaurisblog.com/2015/01/26/gordon-matta-clark-splittingand-the-unmade-house/. Acessado em 27/11/2018 [2] imagem do autor. [3] imagem do autor. [4] imagem do autor. [5] imagem do autor. [6] imagem do autor. [7] imagem do autor. 268



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[1] [imagem disparadora] 270


epĂ­grafe Rodrigo Ferreira


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o argumento Podemos imaginar que os cemitérios nos trazem uma ideia tranquilizadora, a de que a morte tem o seu lugar, de tal forma que está separada dos demais lugares. A vida, assim estaria controlada e organizada fora das fronteiras do cemitério. Todavia, podemos questionar se existe uma relação entre a cidade e a necrópole, dito de outra forma, se morte atravessa os muros do cemitério e pode ser observada também em outros espaços.

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As narrativas produzidas dentro do cemitério podem ser entendidas como uma tentativa de expressar um sentimento diante do que nos é inconcebível. A imagem central que dispara a montagem mostra a calçada do Cemitério da Santa Casa, composta de fragmentos de mármore. A pedra pontilhada no centro nos faz inferir que o material utilizado tenha vindo de túmulos antigos do cemitério, visto que os pontos indicam a perfuração das letras de uma epígrafe que agora sem palavras expressa uma linguagem outra. Se pensarmos que o lugar de morte é também um lugar de memória, os fragmentos dos túmulos na calçada nos dizem do esquecimento, da perda e de uma narrativa silenciosa (Didi-Huberman, 2010). Existe em toda memória uma parte que se destina ao esquecimento. Também em relação ao espaço urbano podemos supor que existe sempre algo que é escolhido para ser lembrado e outra parte que se destina ao esquecimento. Podemos sugerir que as pessoas afastadas do convívio cotidiano da cidade, como é caso dos pacientes de hospitais psiquiátricos, perdem sua voz num âmbito político e a liberdade de seus corpos, dito de outra forma, estão mortas socialmente. No caso das remoções de territorialidades vulneráveis, observamos um apagamento frente a um discurso higienista, trata-se, portanto, daqueles espaços e territorialidades que são tratadas como se não existissem (Mbembe, 2018). Além disso, os edifícios em

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estado de abandono permanecem como testemunhos de outros tempos, de outras práticas sociais e de outras relações econômicas. Sem uma ligação com as lógicas da cidade moderna, tais territórios estão apenas no espaço enquanto “uma subtração do passado” (Canclini, 1997). Assim, a partir da imagem central busquei outras imagens que se pusessem em choque com a primeira, expondo um sintoma, algo da ordem do não saber, do indizível. Para tal, foram posicionadas imagens da cidade e da necrópole em que algo não é enunciado pela linguagem comum, e, sobretudo, exposto por uma narrativa sem palavras, justamente como a das epigrafes fragmentadas das calçadas do Cemitério Da Santa Casa.

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referências do texto CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997. p.283-350: Culturas híbridas, poderes oblíquos. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Duamará, 1994. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010. MBEMBE. Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. 2ª edição. São Paulo: Editora n-1, 2018. 275


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as formas divergentes [1] As pedras empilhadas ao lado de um paciente do Hospital Psiquiátrico São Pedro revelam uma narrativa silenciosa. Podemos inferir que as pessoas afastadas do convívio cotidiano das cidades estão apagadas, dito de outra forma, mortas socialmente. Sendo assim, a imagem das pedras apoiadas na parede nos remete à lápides, que neste caso estão esvaziadas de qualquer narrativa. 278


imagem em Georges Didi-Huberman

[2] Podemos ver a ruína de uma casa no bairro Mangueira no Rio de Janeiro removida para as obras da Copa do Mundo de 2014. Essa imagem demonstra o apagamento de territorialidades vulneráveis diante de um discurso higienista. Podemos inferir que o ponto de interrogação traduz uma pergunta de algo que é da ordem do indizível. [3] A perspectiva da fotografia tirada no Cemitério da Santa Casa aponta para a cidade dos vivos, sendo assim, sugere que o vazio, que a narrativa indizível que temos diante da morte possa existir também em outros espaços. [4] A imagem mostra uma narrativa outra que mesmo incompreensível insiste em nos dizer algo. Ali em outros tempos existiu uma linguagem decifrável que tentava traduzir um sentimento diante da morte, agora a narrativa é da ordem do não saber, do inconcebível. [5] A imagem mostra a calçada do Cemitério da Santa Casa, construída com retalhos de mármore. A pedra pontilhada, no centro, nos faz inferir que o material utilizado para a pavimentação tenha sido proveniente de túmulos, visto que os pontos indicam a perfuração das letras para um epitáfio. Sendo assim, essas narrativas de morte estão fragmentadas formando uma linguagem outra. 279


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[6] “Nas tardes ensolaradas, a população vivente visita os mortos e decifra os próprios nomes nas lajes de pedra: da mesma forma que a cidade dos vivos, esta comunica uma história de sofrimentos, irritações, ilusões, sentimentos; só que aqui tudo se tornou necessário, livre do acaso, arquivado, posto em ordem. ”. [7] Imagem de uma reportagem de 2016 que denuncia a ocupação do terreno reservado para abrigar a Sala Sinfônica da Ospa. Creio que represente dentro de um espaço esquecido uma territorialidade ignorada produzindo suas narrativas. [8] Encoberto por uma tela, o edifício em estado de abandono está velado. Restando apenas a fachada, sua imagem representa perigo de morte aos pedestres, sobretudo existe apenas como uma subtração passado. Podemos supor que existe algo que insiste em ser dito: a fachada permanece como um testemunho de uma hereditariedade.

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referências das imagens [1] [imagem sem título]. Foto: Igor Sperotto. Disponível em: https:// www.extraclasse.org.br/edicoes/2013/05/sao-pedro-onde-a-reformapsiquiatrica-ainda-nao-chegou/. Acesso em 25 de nov. 2018. 281


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[2] [imagem sem título]. Foto: Paula Paiva. Disponível em: http://www. canalibase.org.br/dossie-remocoes-no-rio-atingidos-chegam-a-30-mil/. [3] [imagem sem título]. Foto: Do autor. [4] [imagem sem título]. Foto: Do autor. [5] [imagem sem título]. Foto: Do autor. [6] [imagem sem título]. Fonte: CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Traduzido para brile em: https://www.mathsisfun.com/braille-translation.html. [7] [imagem sem título]. Foto: Cristiano Vieira. Disponível em: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2016/08/cadernos/ panorama/513093-moradores-se-instalam-em-terreno-com-obrasparadas-da-ospa.html. Acesso em 25 de nov. 2018. [8] [imagem sem título]. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/ rio-grande-do-sul/noticia/2018/08/21/prefeitura-pede-declaracao-deabandono-de-predio-no-centro-de-porto-alegre.ghtml. Acesso em 25 de nov. 2018. 282



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[1] [imagem disparadora] 284


podres poderes Tiago Silveira


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o argumento As cidades, artefatos do processo indústria/urbanização/ capitalismo [1] e sua (des)organização territorial, condicionam/ disciplinam os homens à normas e rotinas constituidoras do ser, afligindo seu corpo. [2] As grandes avenidas colocam uma circulação sem fricção, no lugar do que poderiam ser labirintos de encontros. [3] “A arquitetura não exprime o ser da sociedade, ela o camufla”. [A apud 4]

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A forma de organização do território e valorização dos espaços na cidade influencia e disciplinas seus habitantes. “Observamos a penetração fina do poder nas malhas da vida que se destina a modelar cada indivíduo e a gerir sua existência”. [5] “Uso-econômico-dotempo”, [6] sendo a mudança na disciplina do dia-a-dia na sociedade de capitalismo industrial. “Sociedades industriais maduras de todos os tipos são marcadas pela administração do tempo e por uma clara demarcação entre ‘trabalho’ e a vida’”. [6] A cidade molda nossos corpos e determina um modo de ser, dispositivo disciplinador dos habitantes urbanos. Disciplinas são “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de duas forças e lhe impõe uma relação de docilidade-utilidade” [7] “[Para Foucault] o dispositivo Panóptico (...) caracteriza-se como a figura arquitetural dessa nova tecnologia disciplinar”. [2] O indivíduo é um produto da disciplina. Dominação política do corpo com objetivo a constituição de um tipo de homem que se fazia necessário para o funcionalismo da economia capitalista, que crescia em produção e demograficamente, acarretando uma grande urbanização. [2]

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“Uma tecnologia do poder que disseminou métodos de controlar o comportamento de grande número de pessoas – em fábricas, escolas, prisões, exércitos modernos e, mais tarde, nos escritórios das burocracias...”. [8] O poder teria como principal tarefa a garantia da vida, e para isso o mecanismo/dispositivo é a norma. “A norma é tanto aquilo que se pode aplicar a um corpo que se deseja disciplinar como a uma população que se deseja regulamentar”. [2] Um dispositivo1 (espacial) não é um imperativo funcionalista, para Foucault há sempre um conjunto de dispositivos sócio-espaciais dos quais um espaço disciplinar e moral se manifesta. [9] O espaço é apenas um elemento no “exercício de uma autoridade normalizadora”. [B apud 9] A cidade antes “criaturas” dos homens, tornaram-se sob a égide do capitalismo moderno um “monstro” – Moloch! [10], capaz de criar “novos” homens, mais individuais, egoístas que respondem as leis de mercado e a hábitos uniformizantes, tolhidos de usufruir de suas liberdades.

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Segundo Foucault, um dispositivo é... “primeiro, um conjunto completamente heterogênio, composto de discursos, instituições, formas arquitetônicas, decisões regulatórias, leis, medidas administrativas, declarações cientificas, proposições filosóficas, morais e filantrópicas – em suma, tanto o dito como o não dito.” Foucault, 1980 p. 195-5 apud PLOGER, 2008, p. 56) 288


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“A tragédia é que não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas que se lançam contra as outras” [11]. A cidade tornou-se um laboratório para a emergente sociedade disciplinadora, que Deleuze chama de “a sociedade de controle”. [11] “Agamben, de seu lado, anuncia que o homem contemporâneo se encontra ‘despossuído de sua experiência’”. [11] Como a cidade disciplina nossos corpos?

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as formas divergentes

[2] As fábricas, escolas, prisões e hospícios – lugares de controle do comportamento, cedem lugar agora para os escritórios das burocracias, as academias de fitnes, bancos, aeroportos e shopping – na sociedade do desempenho. Homens e mulheres empresários de sí mesmo, onde a obediência e disciplina são mascarados por uma aparente liberdade de ação, que devemos responder a ritmos, metas e produções cada vez maiores. Se atingirmos a meta, dobramos a meta. “Yes, we can”! “Enquanto a antiga sociedade disciplinar gerava loucos e delinquentes, que deveriam ser isolados, a atual sociedade do desempenho produz fracassados e depressivos paralisados pela crença de que nada é impossível.” [8 e 4] 292


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[3] Errázuriz percorreu Wall Street criando cifrões nas faixas de rolamento da rua, na esperança de ajudar o público a questionar papel do capitalismo e adotar um modelo mais justo de geração e distribuição de renda, após a crise de 2008. Na imagem, o tracejado parece dividir a rua em dois, como um limite, ou o guia para um muro. Duas décadas antes da intervenção do artista, era derrubado o Muro de Berlim, que dividia a Alemanha em duas. A queda do muro, foi tida como uma vitória final do capitalismo, que trazia a promessa de um novo mundo. “O fim da história” preconizou o economista Fukuyama, “Tendo derrotado o fascismo e o comunismo ao longo do século XX, o capitalismo global podia assumir uma dimensão redentora em uma cadeia evolutiva, identificando o moderno hedonismo do consumo à promessa capitalista de eterna abundância, e entendendo-a, assim, como algo inerente à natureza humana”. [12 e 4] [4] Que esfinge de cimento e alumínio arrebentou seus crânios e devorou seus cérebros e a imaginação? Moloch cujos olhos são mil janelas apagadas! Moloch cujos arranha-céus se erguem pelas ruas extensas como Jeovás infinitos! Moloch cujas fábricas sonham e arfam na fumaça! Moloch cujas chaminés e antenas coroam as cidades! Vistas do espaço, as cidades são como pontos de luz que melhor traduzem a categoria cunhada por Milton Santos de Territórios Luminosos e Territórios Opacos. Na imagem, Shenzhen, cidade chinesa, “construída sobre uma antiga vila de pescadores no delta do rio Pérola, onde se criaram a partir dos anos 1980 as chamadas Zonas Econômicas 293


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Especiais”. Passados quatro décadas a cidade abriga hoje 12,5 milhões de habitantes, sendo um centro financeiro pujante, uma bolsa de valores (a única no país além da de Xangai) e um skyline com prédios altíssimos, sediando bancos e proeminentes companhias de tecnologia, hotéis de alto padrão e habitação. [4 e 10] [5] Domínio da estatística Cmín + [he¹ x rac] = DesEx Onde:

Cmín = Caminho mínimo He = homo economicus Rac = racional DesEx = despossuído de experiência Guiados pela lógica do “caminho mínimo”, mais rápido, mais curto – nossa dependência a aplicativos como Waze rebaixam nossa cognição do espaço. Delegamos à máquina, extensão do nosso corpo, o papel ativo de nossas decisões cotidianas. Assim como a escada rolante, “nos vemos sendo andados por uma máquina ao invés de andarmos por nossa própria conta”. Ohomem contemporâneo se encontra “despossuído de sua experiência”. [4 e 11] 294


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[6] O plástico banaliza a matéria. Vulgariza e massifica qualquer objeto. O mundo pode ser feito de plástico – até mesmo a própria vida. Os manequins de plástico imitam o humano – mas o humano também pode ser feito de plástico. O mundo pode ser plastificado. Pagamos utilizando um plástico como cartão. Órgãos de plástico já substituem tecidos humanos defeituosos. Usamos plástico em nossas transações comerciais. “Seja qual for o estado em que se transforme, ele ‘conserva uma aparência flocosa’, na forma de ‘algo turvo, cremoso e entorpecido’, revelando uma ‘impotência em atingir alguma vez o liso triunfante da Natureza’” – que diz muito sobre a sensibilidade atual. Material opaco, que também nos diz sobre a “opacidade em relação à compreensão geral das coisas, à nossa capacidade de nos situarmos individual e coletivamente em um sistema-mundo globalizado que se tornou impalpável e especializado demais”. [4] [7] “Plastic is fantastic seria o mantra de Andy Warhol [...] anunciando o surgimento de um mundo de paraísos artificiais que passava a dominar a vida cotidiana no momento em que a sociedade de consumo se generalizava. [...] a própria possibilidade de plastificação das mentes e das almas. Mao constitui seu primeiro retrato político. Enquanto seus trabalhos anteriores tinham um foco em denunciar o consumismo implacável da sociedade capitalista americana e a maquinação publicitária em torno dele, esta obra em particular comenta sobre o aparato de propaganda controlada do comunismo chinês. “Após o cisma sino-soviético e o sucesso do programa nuclear que 295


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alçou a China à condição de grande potência, Mao viu a necessidade de preservar o seu legado e traçou como objetivo evitar a desestalinização com a Revolução Cultural. [4 e 13] [8] Zhora, uma replicante modelo Nexus-6 – Androide da Ficção Científica Blade Ruuner (1989). Além das paisagens urbanas muito semelhantes, temos androides de aparência humana, mas com inteligência equiparável e habilidades físicas superiores - Os Replicantes. A ideia de Androide, homem-máquina parece cada vez mais presente, mas pelo seu contrário - não da máquina virando homem (na trama do filme o Nexus 6 supera todos os limites conhecidos e passa a agir por conta própria, assassinando humanos) mas do homem virando máquina. Com o aparelho celular em mãos, “essa espécie de lente de aumento com visão decodificadora, se converte em um controle remoto de cidades interativas. [...] Por trás de uma nuvem aparentemente dispersa e pouco identificável de dispositivos de diversas naturezas, somos vigiados e controlados por mecanismos de alta precisão e nitidez, que penetram fundo naquilo que observam. [..] somos vigiados e formatados como entidades estatísticas por algoritmos toda vez que clicamos “concordo” nos labirínticos termos contratuais que assinamos com atenção flutuante. [...] Tal processo, subliminarmente, nos torna cativos de uma complexa rede de controle, que, integrando os sistemas de identificação por senhas, biometria e análise dos padrões informacionais gerados nas compras e nas postagens em rede sociais, disseca nossos dados e comportamentos, podendo tanto nos localizar quanto antecipar 296


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e induzir desejos de compra, ou nos endereçar mensagens de cunho político específico e eventualmente falso, tal como ficou patente no escândalo envolvendo as manipulações de dados do Facebook pela empresa de marketing Cambridge Analytica nas campanhas do Brexit, no Reino Unido, e de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, em 2016 e 2017 respectivamente”. [4] [9] “No verbete Arquitetura, que escreveu para o Dicionário Crítico da revisa Documents n.2 em 1929, Geoges Baitaille afirma que ela encarna simbolicamente a ordem social, oferecendo uma imagem pretensamente coerente e organizada da sociedade por meio de edifícios conjuntos urbanos.” A arquitetura dessa sociedade dual, opaca no todo, mas nítida no individual, mantem fachadas como invólucros, por oposição as fachadas de vidros modernas. Segundo a arquiteta Kazuyo Sejima, “a sociedade da informação está mais relacionada ao não ver do que ao ver, isto é, está mais relacionada à opacidade do que à transparência”. Imagem da Optical Glass House de Hiroshi Nakamura & NAP (Hiroshima, Japão) [4] [10] “O trabalho produz corpos resistentes ao labor: mas desgastados, e sua aceitação do sofrimento é próxima da derrota. O corpo do trabalhador suporta, ele reproduz a vida e se resigna lentamente a morrer”. “Vivemos em uma sociedade globalizada que, dos pontos de vista político, econômico e tecnológico, se caracteriza pela suspensão de barreiras e obstáculos, ainda que às custas de um grande aumento 297


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do fosso social. [...] Uma sociedade na qual a alteridade e a estranheza são substituídas pela diferença, que não provoca nenhuma reação imunológica no sujeito. Oriunda da positividade, a violência dessa sociedade é mais invisível do que a da anterior, baseada na disciplina e na proibição explícita de cercas, grades e torres de vigilância. Sua violência não é excludente, mas exaustiva.” [14 e 4] [11] “Fazer a experiência do eu indelegável é operar a junção entre a obrigação ética e a dissidência cívica. A insubmissão coletiva tornase um movimento histórico real e consistente quando se produz uma covibração de numerosos ‘si’ indelegáveis, porque a situação degradouse a tal ponto que cada um sente a urgência de reagir e a necessidade de não mais obedecer. É a essência das revoluções quando cada um se recusa a deixar a outro a própria capacidade de supressão para restaurar uma justiça, quando cada um se descobre insubstituível para se pôr a serviço da humanidade inteira, quando cada um faz a experiência da impossibilidade de delegar a outros o cuidado do mundo”. “Na pintura “A Liberdade guiando o povo” (1830) de Delacroix aparece a postura altiva de uma mulher guerreira que empunha bandeira e conduz a multidão para frente pisando sobre corpos e desastrosos”. Na imagem de Mustafa Hossouma, de 22 de outubro de 2018, um homem cotidiano, com braço erguido e bandeira em punho se coloca contra a submissão dos seus, com a urgência de reagir e a necessidade de não mais obedecer. [14 e 4]

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[12] Enquanto os homens exercem seus podres poderes, Índios e padres e bichas, negros e mulheres, E adolescentes fazem o carnaval. Foto de Carlos Vergara, chamada Carnaval (1972) nos lembra que corpo também é poder. “Segundo Agamben, o contemporâneo é aquele que não se deixa cegar pelas luzes do seu século, por ‘percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelálo’”. Corpos que resistem, “iluminam a noite com alguns lampejos de pensamento”. Vaga-lumes. Para Didi-Huberman “não foi na noite que os vaga-lumes desapareceram. E sim ‘na ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores: projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão” [...] Assim, a morte dos vaga-lumes é, também, a morte da noite, apontada por Jonathan Crarry. Morte operada por uma ‘luz fraudulenta’ que expulsa os espectros intrusivos, os mistérios na ‘estridência ininterrupta do estímulo monótono’ e mantém o mundo permanentemente idêntico a si mesmo, como no pesadelo de Junkspace”. [4 e 11]

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referências do texto [1] SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Capitalismo Urbanização. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2000. 80 p.

e

[2] DANNER, Fernando. O Sentido da Biopolítica em Michael Foucault. Revista Estudos Filosófico, São João del Rei, v. 4, n. 1, p.143-157, jun. 2010. Semestral. Disponível em: <http://www.seer. ufsj.edu.br/index.php/estudosfilosoficos/article/view/2357>. Acesso em: 15 fev. 2018. [3] STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: Resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 160 p. [4] WISNIK, Guilherme. Dentro do Nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas. São Paulo: Ubu, 2018. 352 p. [5] DIMENSTEIN, Magda; ALVERGA, Alex Reinecke de. Alteridade e produção de territórios existenciais na “Cidade do Prazer”. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de; VEIGA-NETO, Alfredo; SOUZA FILHO, Alípio de (Org.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 225-240. [6] THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 493 p. 300


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[7] FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1984. [8] CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 141 p. [9] PLØGER, John. Foucault’s Dispositif and the City. Planning Theory, [s.l.], v. 7, n. 1, p.51-70, mar. 2008. SAGE Publications. http://dx.doi.org/10.1177/1473095207085665. [10] GINSBERG, Allen. Uivo. São Paulo: Globo, 2012. 220 p. [11] DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos VagaLumes. Belo Horizonte: Ufmg, 2011. 160 p. [12] BOTTON, Alain de; ARMSTRONG, John. Arte como Terapia. Rio de Janeiro: Intríseca, 2014. 240 p. [13] VISENTINI, Paulo G. Fagundes et al. Revoluções e Regimes Marxistas: Rupturas, Experiências e Impacto Internacional. Porto Alegre: Leitura Xxi, 2013. 408 p. [14] GROS, Frédéric. Desobedecer. São Paulo: Ubu, 2018. 244 p. [A] HOLLIER, Denis. La prise de la Concorde: essais sur George Bataille. Paris: Gallimard, 1993. [B] ] FOUCAULT, Michael. (1977) Overvåkning og straf. København: Rhodos Forlag. 301


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referĂŞncias das imagens

[1] [imagem disparadora] Fonte: Rodrigo Ladeira, http://www.chicos. cc/los-chicos/joao-3/ 302


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[2] [imagem sem título]. Fonte: https://www.japantimes.co.jp/ news/2016/11/25/business/wages-rise-hours-fall-part-time-workers/ [3] [imagem sem título]. Fonte: BOTTON, Alain de; ARMSTRONG, John. Arte como Terapia. Rio de Janeiro: Intríseca, 2014. 240 p. [4] [imagem sem shenzhenskyline.html

título].

Fonte:

http://www.diserio.com/

[5] [imagem sem título]. Fonte: https://mobilitiesresearch.wordpress. com/2016/05/15/exploring-mobile-consumption-with-spatialanalysis/ [6]

[imagem

sem

título].

Fonte:

https://news.v.daum.

net/v/20180118210600435 [7] [imagem sem título]. Fonte: https://guyhepner.com/artist/andywarhol-art-prints-paintings/mao-by-andy-warhol/ [8] [imagem sem título]. Fonte: http://yousense.info/3437/10197zhora-blade-runner-costume.html [9] [imagem sem título]. Fonte: https://www.archdaily.com.br/ br/887453/residencia-de-vidro-ptico-hiroshi-nakamura-and-nap 303


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[10] [imagem sem título]. Fonte: https://www.gazetadopovo.com. br/politica/parana/opiniao-todo-dia-e-um-7-a-1-diferente-para-ousuario-de-onibus-em-curitiba-2ibjzotpq6k7y4wxxs8u6yl96/ [11] [imagem sem título]. Fonte: https://www.theatlantic.com/ photo/2018/10/photos-of-the-week-steam-train-sheep-parade-goldenrock/574120/ [12] [imagem sem título]. Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org. br/pessoa9534/carlos-vergara

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conclusĂŁo



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imagens como processo de montagem Paulo Reyes

Podemos tomar o projeto urbano como um processo que está balizado entre um enunciado e uma resposta. Nessa linha processual, as imagens funcionam como construtoras da realidade do projeto. O enunciado produz uma imagem-primeira. Essa imagem é ainda um vir a ser, um ainda-não, expressa por um desejo de resolução. Ainda vaga, muito incipiente, não se expressa com nenhuma formalidade. É apenas um esboço de uma imagem mental.

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Essa primeira-imagem funciona como ponto de desejo que pauta o processo. É ela que ganhará contorno. Ela traz para o processo outras imagens que ajudam a dar a ver o problema de projeto. Essa espécie de estratégia de sobrevivência se sustenta na busca de imagens semelhantes que reforcem com mais nitidez o contorno da imagem-primeira. É como se a imagem-primeira se duplicasse incessantemente até a sua exaustão. É da ordem da replicação do igual. É da ordem de uma dobra sobre si mesma. A essas imagens que se duplicam e se dobram sobre si, a partir da imagem-primeira, chamaremos de imagens-segundas. As imagenssegundas se expressam como imagens que funcionam dando referência modelar ao processo. Elas “dizem” o que fazer. Dizem por onde ir. No linguajar arquitetônico, dizemos que estamos frente às “referências arquitetônicas”. As imagens-segundas ajudam a organizar esse percurso entre o ainda-não, que está dado pelo problema inicial, e o eis-então, organizado pela resposta arquitetônica de maneira a buscar um igual que é construído como consenso. Esse tipo de abordagem produz um olhar sobre a realidade urbana que é da ordem da manutenção de um status quo, ou seja, estamos sempre frente ao mesmo. No entando, pretendeu-se, aqui, refletir criticamente sobre essa noção de cidade pensada a partir de um agenciamento de imagens consensuais, amenizando as diferenças. Mais particularmente, pretendeu-se produzir um deslocamento sobre um tipo de pensamento projetual que se organiza apaziguando conflitos socioespaciais. 308


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Este caderno coletânea de montagens da disciplina O projeto como pensamento: diálogos com a filosfia, então, buscou refletir sobre o papel das imagens não como síntese e apaziguamento das diferenças, mas como produtoras de um pensamento crítico e político. A intenção aqui é pensar através de um múltiplo de imagens que só podem ser pautadas em uma perspectiva dialética. Então não se fala em imagem, mas em imagens, no plural – imagens dissemelhantes que falam para além de si, no seu entre-imagens. É justamente no confronto entre diferentes que o sentido pode se abrir, mas nunca em síntese, sempre como sintoma, como prefere DidiHuberman. Aposta-se, assim, em uma visão de cidade onde as imagens possam ajudar e desmontar uma visão de consenso da realidade na qual o projetista se debruça. Portanto, as imagens funcionaram mais na sua rasgadura do que na sua integridade. Retomemos o papel das imagens nessa construção de um pensamento sobre o projeto urbano. Agora para pensar na imagem como um ato dilacerante ou como uma rasgadura. Na leitura de DidiHuberman, a rasgadura se constitui como um ato de ruina da estabilidade desse objeto representacional que é a figura figurada. Assim, a imagem transmuta de “figurada” para “figurante”. Com isso, sai da estabilidade do significado e entra num processo de múltiplas significações. Essa rasgadura é o papel do sintoma. O sintoma produz um espaçamento temporal entre o que está visível e inteligível na imagem no plano da consciência e o que ainda-não309


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se-sabe no plano do inconsciente e que se manifesta como visualidades possíveis. Há um processo de sobredeterminação nisso. A imagem não se dá a ver inteira, talvez só momentaneamente para ser alvo de uma rasgadura. Segundo Didi-Huberman, “será preciso admitir diante dessa forma perfeitamente fechada, e autorreferencial, que alguma outra coisa poderia de fato nela estar encerrada” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 118). É a sensação de que algo falta. Essa suspeita, esse estranhamento, esse incômodo é o que não deixa a imagem se fechar em um significado ou em uma síntese simbólica e que não seria possível uma interpretação totalizante. Nesse contexto, a imagem não é tomada como um objeto representacional, mas como algo que se destrói, como algo que destrói qualquer traço de identidade. Estranhar a imagem é apostar em múltiplos significados que possam surgir da sua abertura. Então, é preciso romper com a imagem. O rompimento da imagem é o próprio sintoma. E essa ideia de sintoma impõe a esse processo de rasgadura um “não-saber”. É preciso então produzir novos sentidos nesse processo de projeto para que um outro tipo de pensamento possa se sustentar pelas diferenças. A operação por imagens só é possível se a tomamos como imagens dialéticas em processos de rasgaduras. Estamos, então, imersos em um processo que é todo ele dialético. Processo esse composto por uma lógica da imagem contra imagem, da imagem que se joga contra outra, que se deixa esmagar para produzir um sentido outro. Estamos lidando com imagens que não se fecham em 310


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absoluto. Assim, a imagem nunca é compreendida como unitária, mas sempre como um ato dialético. Falamos, então, em imagens dialéticas, tomadas por DidiHuberman a partir da obra de Walter Benjamin. Imagens que, ao se combinarem, se desorganizam mutuamente. Não estão aqui para resolver nem sintetizar, mas sobretudo para por em jogo um trabalho da figurabilidade, jogando sempre com a contradição. A noção de imagem dialética pode ser entendida como um processo que ocorre na imagem enquanto sintoma, mas também pode ser compreendido como um ato que aglutina diferenças. É como se tivéssemos que extrair o sentido de uma imagem para abri-la à composição com uma outra. Essa noção de um “sentido a ser retirado” permite que possamos sair da imagem como identidade representacional e possamos construir novas “relações” que estão para além do objeto-imagem. Didi-Huberman propõe, assim, que as imagens sejam operadas em seu movimento de deformação, a caminho dessa deformação, a fim de produzirem uma dialética que é, acima de tudo, da lógica do sintoma, porque ao serem montadas, as imagens visualmente se mostram. Então, estivemos a montar imagens. E montar imagens significa dispô-las de maneira que deixemos sempre espaço entre elas: espaço para pensar. A montagem serve como um procedimento que produz um corte. Corte esse que não permite que se faça uma leitura da realidade como algo contínuo. O corte permite não só a existência do duplo na imagem, mas também a abertura entre imagens. 311


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Esse “entre” imagens que é a possibilidade para que uma rede de relações exista, impondo ao observador uma leitura aberta, cheia de pontos de vista. Assim, o sentido só se produz entremeado nessas relações construídas. Assim, a montagem vive da produção de vazamentos e distanciamentos. No caso das montagens, a unidade nunca é possível. Há sempre um sentido novo que se anuncia ou algo que não se deixa capturar. O que se mostra nas montagens não é uma imagem como um quadro a ser apreciado como um fechamento de uma possível significação, mas antes de tudo, é no dispor as diferenças, os conflitos e as confrontações que a montagem ganha relevância como um novo saber.

referência do texto DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

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sobre os autores


sobre os autores


Ana Laura Carvalho Nunes é arquiteta e urbanista [UCS] e mestranda no PROPUR. Ana Luisa Jeanty de Seixas é arquiteta e urbanista [UFRGS]; especialista em restauração e reabilitação do patrimônio [PUCRS]; mestre em preservação do patrimônio cultural [IPHAN] e doutoranda no PROPUR. Débora Grando Schöffel é arquiteta e urbanista [UFPel]; mestre em arquitetura [PROPAR-UFRGS] e doutoranda no PROPUR. Diego de Azambuja Lopes é arquiteto e urbanista [UFRGS] e mestrando no PROPUR. Diogo Vaz da Silva Junior é fotógrafo e médico veterinário [UDESC/LAJES]; especialista em práticas pedagógicas em serviços de saúde [UFRGS]; especialista em saúde coletiva [UFRGS] e mestrando no PROPUR. Francisco Cenzi de Ré mestrando no PROPUR.

é arquiteto e urbanista [UFSM] e


Gabriel Silva Fernandes é arquiteto e urbanista [UFPel] e mestre em arquitetura [PROGRAU-UFPel]. Germana Konrath é arquiteta e urbanista [UFRGS]; mestre [PROPUR] e também doutoranda no PROPUR. Guilherme Zamboni Ferreira é arquiteto e urbanista [ULBRA]; mestre em theory and practice of architectural design [ETSAB-UPC) e mestre em arquitetura [PROPAR-UFRGS]. Guilhermo Dexheimer Gil é arquiteto e urbanista [PUCRS] e mestrando no PROPUR. Lucas Boeira Bittencourt é arquiteto e urbanista [UFPel] e mestrando no PROPUR. Lucas Dutra Rodrigues é arquiteto e urbanista [UNIRRITER] e mestrando no PROPUR. Luciana Echegaray é advogada [UFSM]; especialista em gestão cultural [SENAC-SP] e mestranda no PROPUR. Marina Orlandi Goulart é arquiteta e urbanista [UFRGS].


Raimundo Giorgi Filho é arquiteto e urbanista [UNIRITTER]; especialista em desenho urbano [PROPUR]; especialista em design estratégico [UNISINOS]; mestre [PROPUR] e também doutorando no PROPUR. Rodrigo Mendes Ferreira é arquiteto e urbanista [UNIRITTER] e mestrando no PROPUR. Tiago Silva Silveira é economista [UFRGS]; especialista em gestão estratégica do território urbano [UNISINOS] e mestrando no PROPUR. Paulo Edison Belo Reyes é arquiteto e urbanista [UNIRITTER]; especialista em design estratégico [UNISINOS]; mestre em planejamento urbano [UnB] e doutor em comunicação [UNISINOS]. É professor da disciplina Projeto como pensamento: diálogos com a filosofia no PROPURUFRGS.


este caderno foi composto em adobe garamond Porto Alegre 30/01/2019




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