CIDADE QUEBRADA: terra dividida, espaรงo comum Lucas Mendes
Lucas Mendes
Cidade Quebrada:
terra dividida, espaรงo comum
Livro-reportagem de Bauru
“Cidade grande, que comporta tanta gente, eu vou chegar bem na moral e falar humildemente. Eu vou até sair pro lado, pois eu posso me perder, mais que zuar em Bauru city, você pode até morrer” Bauru City das Vilas - Desacato Verbal e Força Interior
Dados Catalográficos MENDES, Lucas Eduardo Tozzi, 2017 Cidade Quebrada: Terra Dividida, Espaço Comum - 1ª ed. / Lucas Mendes - Bauru, SP. 1. Jornalismo 2. Livro-reportagem 3. Bauru 4. Desigualdade Social 5. Urbanização 6. Resistência Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial para obtenção do certificado de graduação em Comunicação Social – Jornalismo, sob a orientação do Prof. Dr. Juarez Tadeu de Paula Xavier.
Redação, edição, diagramação e fotos por Lucas Mendes lucasmendes962@gmail.com
Fortaleça a comunicação alternativa e contra-hegemônica! Este livro não tem nenhum interesse comercial, apenas buscou oferecer um contraponto às narrativas dominantes na cidade de Bauru. Divulgue, compartilhe e reproduza o que quiser. A reprodução de quaisquer conteúdos desta obra é livre, desde que citada a fonte e o autor.
Sumário
Introdução ........................................................... 7 Bauru: Ficha Técnica ..........................................14 Parte 1: Desigualdade social e de renda .......16 O Nascimento da Tragédia Pouco mudou ...................................................................................16 O dinheiro manda ...........................................................................20 Divergências nos alpes suíços ........................................................26 Com o suor do trabalho .................................................................29 Estado, mercado e sociedade ........................................................33 Proteção social bauruense .............................................................37 “Já me acostumei com a rua” ........................................................40 invisibilidade e ação .......................................................................43
Parte 2: Moradia, habitação e urbanização...49 Ocupar e viver a cidade A cidade como direito ...................................................................50 A cidade como finança .................................................................53 A cidade periferia ..........................................................................57 A vida no Minha Casa Minha Vida ............................................61 Lei escrita e direito conquistado .................................................67 Plano Diretor Participativo de Bauru .........................................70 Urbanismo para pessoas ...............................................................74
Parte 3: Resistência e organização..................80 Construir e contar a própria história Canaã, a terra prometida ................................................................85 Protagonismo, cidadania e expressão ...........................................87 Tecnologia, Mídia radical e comunicação alternativa ................90
Parte 4: Estado versus mercado.......................96
Considerações finais O momento da Movimentação ..................................................... 99
Notas....................................................................101
Audiência Pública na Câmara Municipal de Bauru para discutir mudanças no Plano Diretor Participativo. Presença de ativistas e movimentos sociais agitou os debates.
INTRODUÇÃO Desde meados dos anos 1970 acontece no mundo um processo de transformação nos modelos tradicionais de acumulação do capital, motivados, segundo o geógrafo britânico e teórico marxista David Harvey¹, por um processo do superacumulação e pelas crises sistêmicas desse modo de produção. Segundo ele, o modelo de produção baseado no Fordismo foi dissolvendo-se ao longo da década de 1960, sendo que o estopim para a mudança foi a crise internacional do petróleo-1973. A partir de então, passou-se a um modelo que ele chamou de Acumulação Flexível do Capital. Nesse modelo os mercados de trabalho não são mais rígidos — privilegiam-se contratos temporários, terceirizações e a incorporação da força de trabalho imigrante. Adota-se a produção “just in time” — a adequação da estocagem dos produtos conforme a demanda. Na análise do britânico, os países do centro do capitalismo (Europa e EUA), tinham uma força de trabalho que dispunha de poder político e de negociação, devido à estruturação dos sindicatos, fato que garantia salários cada vez mais altos para a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, o Estado de Bem-Estar Social garantia uma rede de direitos sociais aos cidadãos. É aí que se dá a expansão do capital para o “Terceiro Mundo”. A intensificação da globalização faz abrir novos mercados ao redor do planeta, para absorver o investimento de capital gerado pela acumulação ao longo do século XX. Para Harvey, um importante meio de receber esse aporte foi (e ainda é) a urbanização, que passou por um crescimento exponencial ao redor do globo. O geógrafo também atribui ao avanço tecnológico o processo de compressão da experiência do espaço-tempo, possibilitado por conta da aceleração das comunicações. Contudo, é a Notas numeradas e autores, ver NOTAS no final do livro Sobre Fordismo e as crises do capitalismo, ver https://goo.gl/ZMxuqb. Sobre financeirização da economia, ver https://goo.gl/9vmwgs.
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expansão da economia neoliberal que ele vê como principal legado da nova estrutura capitalista, pois ela atua na desregulamentação do mercado financeiro, contribuindo para a financeirização da economia. Todos esses fatores e seus reflexos na Cultura, com o aumento do individualismo, despolitização e “desengajamento” foi chamado pelo pesquisador de a “condição pós-moderna” – momento em que as desigualdades sociais são acentuadas.
Desigualdade O processo de acumulação flexível e financeirização da economia legou ao século XXI, principalmente na periferia do capitalismo e no Sul Global, não apenas a manutenção mas a reprodução das desigualdades sociais e de renda, como afirma o economista francês Thomas Piketty2. Segundo ele, com a financeirização da economia, e por consequência o rentismo, aumenta-se a concentração de renda, perpetuando-se as desigualdades. O raciocínio é simples, uma vez que a taxa de retorno sobre o capital (no mercado financeiro) é maior que a taxa de crescimento da renda (o crescimento dos salários). Para Jessé Souza3 , sociólogo e ex-diretor do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os critérios de igualdade social e liberdade individual — pressupostos básicos de qualquer democracia — não foram universalizados, e num mercado de trabalho altamente competitivo o que resta para a população à margem do sistema são os trabalhos não-qualificados e a invisibilidade social. Nesse conjunto “desprivilegiado” está uma classe inteira de pessoas que estão abaixo dos princípios de dignidade e espoliadas dos seus direitos enquanto cidadãos. Em seu livro “Ralé Brasileira”, Jessé atesta que essa classe compõe ⅓ da população brasileira, formada por pessoas que são não só miseráveis economicamente, mas também desprovidas das “pré-condições psico-sociais” para ganhar a vida no capitalismo competitivo. Isso repercute na divisão social da cidade e na sua urbanização.
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Sobre a tese de Piketty, ver https://goo.gl/J9gu8O.
Moradia e direito à cidade Na linha de pensamento de David Harvey, os efeitos colaterais da superacumulação do capital são o crescimento exponencial das cidades no mundo e seus impactos na garantia da posse e sua função social. De acordo com o texto de fundamentos do Plano Diretor Participativo de Bauru, “a Constituição brasileira de 1934 já estabelecia que o direito de propriedade não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo. Porém, somente na Constituição Federal de 1988 é que a garantia ao direito de propriedade, erigida em cláusula pétrea, condiciona-se expressamente ao seu uso, ou seja, ao exercício de sua função social”. Segundo consta na Relatoria de Moradia Digna das Nações Unidas, processos predatórios, desiguais e autoritários de reurbanização, desapropriação e periferização tornam-se frequentes na sociedade atual, principalmente nos países em desenvolvimento — onde os marcos jurídicos não são claros e a jurisprudência não garante a segurança da posse. Aliados a isso estão os processos de especulação imobiliária (estratégia de valorização de imóveis ou terrenos) e gentrificação (fenômeno que altera a composição dos espaços, valorizando a região e afetando a população de baixa renda originária dali, que é obrigada a se mudar), como afirma a urbanista Raquel Rolnik4, livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP). Para ela, esses fatores compõem o procedimento global de financeirização das cidades e dos direitos à terra e à moradia — a transformação de um direito humano num ativo negociável. Na sua opinião, o resultado mais recente disso foi a crise imobiliária americana de 2008, um episódio que demonstrou a inabilidade do Mercado em prover moradia adequada à população. Voltando-se para o Brasil, as Políticas de Habitação recentes (Minha Casa Minha Vida) pautam-se, segundo Rolnik, pelo financiamento como principal meio de acesso à casa própria — o imóvel é construído por grandes construtoras/empreiteiras e acessado pelas pessoas via crédito. De acordo com a urbanista, que também foi relatora da Sobre segurança da posse ver https://goo.gl/RQcg0N. Sobre as opções de moradia, ver https://goo.gl/JPXc3O.
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ONU para Moradia Digna, a realização plena do direito à moradia não pode ser promovida exclusivamente com mecanismos financeiros, mas requer políticas de intervenção do Estado e uma diversificação de medidas, para além do financiamento à casa própria. Segundo ela, “a casa própria pode ser a melhor opção para muitos, mas conquistar moradia adequada para todos demanda uma variedade de soluções, como incentivos tributários, microcrédito, auto-gestão, cooperativas, urbanização de assentamentos, programas de locação, subsídios diretos para os pobres e moradia pública. Mercados, mesmo regulados, não podem prover moradia adequada para todos e um setor público ativo é fundamental”. E completa: Na cidade, sob a financeirização, a “Moradia se tornou sinônimo de mercadoria”, dividindo e segregando o espaço urbano.
Fraturas expostas nas cidades Nessa divisão, formam-se realidades distintas dentro de uma mesma cidade, numa relação que mostra as ligações estruturais entre riqueza e pobreza e no modo de vivência urbana a partir da conexão entre os grupos sociais privilegiados e os menos abastados, como teorizou Milton Santos5, geógrafo, pesquisador e escritor brasileiro. Na visão dele, configuram-se dois subsistemas urbanos — os circuitos Inferior e Superior da economia urbana. Enquanto existe a cidade “iluminada”, com largo uso de capitais e recursos diversos, ampla utilização de tecnologia e organização, existe também a cidade “opaca”, com atividades econômicas de menor escala, muitas com marcas da informalidade, com uma organização mais “fluída” e um uso criativo da tecnologia. Ambos os sistemas relacionam-se dialeticamente, hierarquizam-se e concorrem entre si, pois ocupam o mesmo espaço — a cidade, segundo Milton Santos. E é essa relação que permite ações de resistência e transformação da sociedade.
Resistência Nesse combate, eclodem ao redor do globo grupos e movimentos sociais de reivindicação de direitos, com novas ideias sobre o mercado financeiro (a exemplo dos protestos do “occupy 6 10 Wall Street” , em Nova York) e propostas alternativas devido ao
desencantamento com a política tradicional (auto organização, democracia participativa). São pressões por Políticas Públicas inclusivas e pelo direito à cidade. É a apropriação criativa da tecnologia e dos métodos alternativos de expressão e comunicação. Como afirmou o filósofo esloveno Slavoj Žižek7, no acampamento de manifestantes em Wall Street, “qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem”. Grupos artísticos e culturais buscam articulação política para reivindicar suas demandas, para resistir e para mobilizar a juventude. Alicerçados pelo potencial da internet e da comunicação em rede, tecem conexões e geram novas organizações. É a mídia radical, conceito do ensaísta americano John Downing8, que alarga a definição do que seria comunicação. Afinal, zines e panfletos também comunicam, assim como cartazes, graffitis, pixos, stencils, lambes, uma música de protesto. São novas maneiras de se relacionar e de significar o mundo e a sociedade, num movimento articulado entre movimentos sociais e comunicadores, já explícito no título do livro de Downing: “Rebeldia nas Comunicações e Movimentos Sociais”. Como afirma o jornalista e pesquisador Ricardo Gandour9, “As redes sociais se transformaram em mega plataformas de distribuição”. A comunicação hegemônica por meio das mídias consolidadas tem ainda poder influenciador na sociedade, mas este não é mais um monopólio. As mídias alternativas oferecem visões disruptivas, contra-hegemônicas, abordam temas pouco ou nunca retratados por aí. No entanto, a abordagem da comunicação hegemônica também acaba sendo reducionista. Na visão de Jessé Souza, a violência retratada pela mídia tradicional é apenas uma faceta do problema. Segundo ele, a mídia repercute a ideologia hegemônica, pois as “ideias” que fazem a cabeça de jornalistas e formadores de opinião são, em sua maioria, vindas de intelectuais propagadores de “um consenso social responsável por uma das mais injustas e perversas sociedades do planeta”. Para ele, a “modernização periférica” vivenciada pelo Brasil “gera as sequelas como a desigualdade abissal, marginalidade e subcidadania”. Sobre o discurso de Slavoj Žižek , ver https://goo.gl/9C1kqX
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Bauru, a cidade e seus limites A modernização periférica, de que fala Jessé, difere da modernização experimentada pelos países do centro do capitalismo. Ela trouxe para o Brasil e para os países do Terceiro Mundo uma nova configuração do capitalismo globalizado, que é baseado no consumo. Essa é a proposta do polonês e também sociólogo Zygmunt Bauman10. Segundo ele, a sociedade do consumo tem um caráter individualista, e “a classe marginalizada é consequentemente culpabilizada pelo seu próprio fracasso”. Assim aumenta-se a desigualdade, e o desenvolvimento econômico passa a privilegiar apenas parte da população. Esses contrastes verificam-se na prática. Em Bauru se encontra uma realidade social que permite, ao mesmo tempo, que a cidade tenha o 21º maior PIB (Produto Interno Bruto) do Estado de São Paulo, segundo o IBGE, enquanto mais de 100 mil pessoas — quase um terço de sua população — vivem em situação de baixa renda, dependendo de medidas assistenciais do município, do Estado ou da União para sobreviverem, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA). Esse número representa 42.716 famílias, segundo dados de outubro de 2016 do MDSA. Elas estão no Cadastro Único para Programas Sociais, do Governo Federal, que reúne informações socioeconômicas das famílias brasileiras de baixa renda. Financeiramente, a cidade cresce. O PIB do município aumentou 63,9%, entre 2006 e 2010. Em 2012, atingiu 8,430 bilhões de reais, figurando entre as 30 maiores economias do Estado de São Paulo. O crescimento percentual foi superior ao verificado no próprio estado, que subiu pouco mais que 55%, também segundo o IBGE. O mecanismo de reprodução da desigualdade social que ocorre no país, explicitado por Jessé Souza, apresenta-se também em Bauru — “de fato, a cidade reproduz a profunda desigualdade de distribuição de renda da sociedade brasileira: 1/5 da população mais pobre detém 9% da renda, enquanto o 1/5 mais rico se apropria de 42%”, segundo o Plano Diretor Participativo. Para ele, as diferenças estruturais de cada realidade apontam não só para um contingente inteiro de indivíduos desprovidos de capitais econômico e cultural, mas também privados de 12 quaisquer pré-condições sociais, morais e culturais que permitam
uma apropriação desses capitais ou de uma ascensão social por meio do seu trabalho. Como consta no diagnóstico do seu Plano Diretor Participativo, Bauru, “não diferentemente das outras cidades brasileiras, se urbanizou de forma muito rápida, visto que até a década de 40 a população urbana correspondia a 50% do total”. Esse percentual sobe para 80% na década de 50 e, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, tem 98,33% de sua população morando na área urbana, de um total de 343.937 habitantes. Aproximadamente 3 em cada 10 pessoas têm carteira assinada na cidade, e 19% daqueles que têm alguma ocupação ganha até um salário mínimo por mês. Além disso, o valor médio mensal da renda dos bauruenses é de R$ 1.775,49, sendo que os homens ganham, em média, 56% a mais do que as mulheres. Todos os dados são do MDSA, a partir das pesquisas do Censo de 2010. Também na cidade persiste a lógica da financeirização da moradia e os problemas decorrentes da Política Habitacional do país. Empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, principalmente aqueles voltados para as faixas de baixa renda, são colocados em locais distantes do centro da cidade, com pouco acesso à infraestrutura e serviços públicos básicos, como protesta o urbanista da Unesp José Xaides de Sampaio Alves11. Segundo ele exemplos disso são os residenciais Três Américas, Córrego da Grama, Colina Verde e Sant’Anna. Nesses locais encontram-se “problemas urbanísticos, técnicos, sociais, ambientais, de relação com o transporte público e políticos administrativos”. Há “claramente, nos diversos setores, a exclusão social devido a vários fatores, como a dificuldade de acesso à moradia, falta de creches, carência de atividades de lazer e cultura, deixando à margem da vida social, grande parte da população”, explica Xaides. A cidade passa por um momento considerado histórico nas ocupações de terra pelo seu território, perfazendo, segundo estimativa do Jornal da Cidade, 3.222 famílias mobilizadas por diferentes grupos e movimentos pelo direito à terra, como o MSL (Movimento Social de Luta) ou FNL (Frente Nacional de Luta), na “maior ocupação urbana da história de Bauru”. Sobre a recente ocupação de terras em Bauru, ver https://goo.gl/JcJ7YX.
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BAURU: Ficha Técnica
Localizada na parte central do Estado de São Paulo, Bauru está implantada num “anfiteatro natural” de cerca de 5 km de raio, numa área de 674 Km², modelada por diversos cursos d’água formadores das cabeceiras do rio Bauru. O relevo regional é de colinas amplas e suaves, seu solo é de característica predominantemente arenosa e pouco argilosa. As formas de relevo potencializam os processos erosivos regionais e locais, favorecendo a concentração de fluxo de água. O município confronta-se ao Norte com o município de Reginópolis, a Noroeste com Avaí, a Nordeste com Arealva, a Leste com Pederneiras, ao Sul com Agudos e Sudoeste com Piratininga. Em Bauru encontra-se o maior Terminal Multimodal hidrorrodoferroviário da América Latina. A cidade integra-se ao sistema rodoviário nacional por meio de rodovias estaduais, é rota aérea e entroncamento ferroviário da malha RFFSA – Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima - da Novoeste e da Fepasa. Ocorrem na região de Bauru chuvas tipicamente tropicais e convectivas, caracterizadas por temporais violentos (trombas d´água), pancadas intensas e de curta duração, geralmente no final da tarde ou no início da noite. A área urbana encontra-se praticamente inteira na Bacia do Rio Bauru, dividida em 10 sub-bacias hidrográficas dos seus afluentes. As sub-bacias do Rio Bauru destacam-se como grandes fornecedoras de sedimentos, em geral pela implantação de conjuntos habitacionais sem a infra-estrutura necessária, por rodovias e grandes avenidas. Destacam-se como grandes produtoras de sedimentos as sub-bacias dos córregos Vargem Limpa, Barreirinha, Água Comprida, da Grama e da Ressaca, muito afetadas por erosões provenientes especialmente dos loteamentos. O assoreamento do Rio Bauru dentro da área urbana e as enchentes periódicas são resultado do intenso processo de urbanização. A população é de 343.937 habitantes, segundo o Censo 2010 do IBGE.
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Fonte: Corghi, Fernanda Nascimento. Urbanização e segregação sócio-espacial em Bauru (SP): um estudo de caso sobre a Bacia hidrográfica do Córrego da Água Comprida -- Campinas,SP.: [s.n.], 2008.
Faces da “cidade opaca” bauruense. No município, quase 1/3 da população depende de benefícios assistenciais do Estado. Nas fotos, acampamento “Virgínia Rainha” e Seu Cardoso trabalhando.
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Parte 1
Desigualdade social e de renda o nascimento da tragédia
O policial turco caminhava pela praia quando avistou o menino. “Meu Deus, espero que esteja vivo”, pensou. Enquanto andava em sua direção, a imagem do próprio filho, de 6 anos de idade, passou pela sua cabeça. Quando chegou perto, deteve-se. Elevou a Deus uma rápida oração e passou a procurar algum sinal de vida no corpo da criança. Uma “dor indescritível” o esmagou por dentro naquela hora, quando percebeu que não havia resposta. O sargento Mehmet Ciplak1 foi agente de investigação criminal por 18 anos. Ciente de seu trabalho, carregou cuidadosamente o corpo sem vida do menino que, até então, parecia dormir tranquilamente na areia à beira-mar, com as águas do Mar Egeu acariciando seu rosto. Nilüfer Demir2, uma repórter fotográfica, estava por ali e registrou o momento. Instantes depois, a foto já rodava o mundo inteiro. Além do menino Aylan Kurdi, de 3 anos, também morreram seu irmão, de 5 anos, a mãe deles e mais 8 sírios, após o naufrágio do bote com o qual almejavam chegar à ilha grega de Kos. Ao sul da Turquia asiática está Bodrum, banhada pelo Mar Egeu. Badalada e luxuosa, as praias da cidade costumam ser o destino turístico das classes altas de Istambul, mesmo estando a quase 700 km de distância. Naquela manhã de setembro de 2015, o local acabou virando um dos símbolos da crise humanitária envolvendo os refugiados que buscam reconstruir suas vidas na Europa.
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Pouco mudou
O frio do inverno atinge a Europa com rigor no início de 2017. Uma massa de ar polar ocasionou tempestades de neve, que avançam a partir das regiões central e sudeste do continente, fazendo as temperaturas despencarem até 27 graus negativos durante a noite. Nas ilhas gregas de Samos, Chios e Lesbos, refugiados vindos principalmente de Síria, Afeganistão, Iraque e Líbia aguardam em instalações provisórias e superlotadas a oportunidade de desembarcar na Grécia continental e, a partir daí, acessar o restante da Europa. A demora e o avanço do frio ameaçam a vida dos refugiados, que correm o risco de morte por congelamento. A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) mobilizou-se e distribui cobertores térmicos, sacos de dormir, combustível para aquecimento e kits de proteção para o inverno. Segundo a ONU, somente na ilha de Lesbos encontram-se 5.500 imigrantes, sendo que a capacidade oferecida pelo governo grego é de 3.500 pessoas. As estimativas de ONGs e agências internacionais contam por volta de 62.000 pessoas refugiadas vivendo apenas na Grécia, a maioria delas fugindo de guerras, conflitos e crises . No ano de 2015, mais de 1 milhão de refugiados chegaram na Europa. Um dos países europeus mais atingidos pela crise econômica mundial de 2008, a Grécia vem aplicando medidas de austeridade (corte de gastos) desde 2010, quando recebeu a primeira ajuda financeira da União Europeia. O país reduziu o tamanho do governo e aumentou a idade mínima para a população se aposentar, dentre outras medidas de controle de despesas. Com sucessivas ajudas em dinheiro e apesar dos cortes de gastos, a economia grega não se recuperou, e o país apresenta o maior número de desempregados de toda Europa - com uma taxa de 23,1% dos cidadãos sem ocupação em setembro de 2016, segundo o escritório europeu de estatísticas Eurostat. Espanha, Itália e Portugal também apresentam taxas de desemprego maiores que a da Zona do Euro, que cravou, no final de 2016, a quantidade de 9,8% de sua população sem trabalho. Diante desse cenário e com a crise despertada pelas movimentações de refugiados, a União Europeia (UE), no mesmo setembro da morte de Aylan Kurdi, firma um acordo para a redistribuição dos refugiados da Grécia e da Itália - as principais portas de entrada da Europa via Mar Mediterrâneo. Sobre desemprego na Europa, ver https://goo.gl/Q8ciyz.
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A promessa era de movimentar em toda a Europa 160.000 refugiados dos dois países. Passados mais de 15 meses do acordo, apenas 7.760 pessoas foram transferidas, segundo o ACNUR. O restante que ficou continua nos abrigos, todos vulneráveis ao frio e em condições precárias. Em todo o mundo o cenário econômico foi afetado pela crise financeira de 2008, que explodiu dos Estados Unidos para o restante do planeta a partir do oferecimento de crédito para a sociedade. No país foram colocadas em prática políticas governamentais voltadas para estimular a aquisição de imóveis. Esse aumento na procura por imóveis — estimulado por um acesso facilitado aos financiamentos — acabou gerando um constante aumento no preço dos imóveis, o que fez do setor imobiliário um terreno atrativo à especulação financeira. Assim denominada pela imprensa internacional, a chamada “Bolha Imobiliária” estourou em 2008, fazendo com que bancos e mercados de todo o mundo sofressem seus impactos - uma vez que esta é a fase da globalização econômica e da financeirização dos mercados. Logo, os bens materiais, dívidas e ações de empresas são negociados em nível mundial. A crise de 2008 foi considerada a maior desde a “Grande Depressão” de 1929. Por essa época, nos Estados Unidos, um Bluesman caminhava pelas ruas de Crystal Springs, Mississippi. Era Robert Johnson. Em fins de 1929, a quebradeira geral que tomou conta do país atingia o nascente mercado da música, e os convites para gravar discos escasseavam. Ali ele conhece Tommy Johnson, que viraria seu parceiro musical. Sem espaço para tocar e sem dinheiro, Tommy tinha voltado para a cidade natal e trabalhava apanhando algodão. Nos EUA, o desemprego causado por aquela que foi chamada de “Grande Depressão” chegou à marca de 4,6 milhões de trabalhadores só em 1929, segundo o historiador britânico Eric Hobsbawm3. No Brasil, o governo comprava sacas de café e as queimava, para manter a produção e os preços. Desde a crise de 2008, os países têm mostrado desempenhos econômicos diferentes para lidar com a situação. Passados pouco mais de 8 anos desde essa última crise, seus reflexos são visíveis em vários setores da economia, principalmente no mundo do trabalho, em que se observa o número de trabalhadores disponíveis crescendo mais do que a criação de empregos.
Mais de três milhões e quatrocentas mil pessoas perderão seus empregos em 2017, de acordo com relatório lançado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) - “Perspectivas sociais e do emprego no mundo - Tendências de 2017”. Esse aumento faz parte da taxa de desemprego no mundo, que hoje se situa em 5,8% da população global. Ainda segundo o relatório, quase metade das pessoas ocupadas (42%) estarão desenvolvendo formas vulneráveis de trabalho - como trabalhadores familiares não remunerados e pessoas que trabalham por conta própria – essa porcentagem representa 1,4 bilhão de pessoas em todo o mundo. Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, a previsão é de que nos próximos 2 anos, mais 5 milhões de pessoas vão compor a faixa de trabalhadores que ganham menos de 3,10 dólares por dia, o que equivale a menos de dez reais, em valores de janeiro de 2017. O estrago econômico faz muitas pessoas migrarem de seus países de origem para outros locais, em busca de melhores oportunidades de vida e trabalho. Pelos dados da pesquisa “Estimativas Globais da OIT sobre Trabalhadores Migrantes”, são 150 milhões de pessoas nessas condições no mundo, sendo que mais de 100 milhões estão no setor de serviços, diante de 43,4 milhões de trabalhadores migrantes na indústria e agricultura. No Brasil não é diferente. Em 2015, o país teve a maior perda salarial real de todo o continente americano, de acordo com o Relatório Global sobre Salários 2016-2017, também da OIT. No país a situação fica crítica porque a crise econômica se juntou com o aumento da inflação, que faz o preço dos produtos e mercadorias subirem. Essa combinação faz com que os salários comprem cada vez menos coisas, enfraquecendo seu poder aquisitivo. Em divulgação do final de novembro de 2016, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2015, em que se constatou queda média de 5,4% na renda do brasileiro (a primeira queda em 11 anos). Desse valor, o recuo foi maior na população que tem menores remunerações, ou seja, a mais pobre. Na parcela de 10% das pessoas com os menores salários (aqueles que ganham em média Sobre reletório da OIT, ver https://goo.gl/4waH7D. Sobre perda salarial do Brasil, ver https://goo.gl/vVzzcN Sobre queda na renda e divulgação do IBGE, ver https://goo.gl/zZhvbP
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R$ 219 por mês), a queda foi de 7,8%. Já os 10% mais ricos, com renda de R$ 7.548 por mês, tiveram um encolhimento de 6,6% nos seus ganhos, entre 2014 e 2015. Essa queda acentuada nas faixas mais pobres faz aumentar a desigualdade salarial, conhecida como desigualdade de renda. No Brasil, desde o ano de 1974, os 10% mais ricos acabam recebendo em torno da metade a 2/3 de toda a renda do país, como apontou estudo de Pedro Herculano Souza4 e Marcelo Medeiros, ambos do IPEA.
O dinheiro manda Para entender as desigualdades da sociedade brasileira, é preciso olhar para o desenvolvimento do capitalismo, o modo de produção em vigor. A acumulação de riqueza ao longo do tempo pelas pessoas que compõem a parcela de 1% mais rica do mundo cresce continuamente. Segundo o economista Thomas Piketty, em sua obra “O Capital no século XXI”, esse crescimento constante é a causa da desigualdade econômica, uma vez que a taxa de retorno sobre o capital é sempre maior do que a taxa de crescimento da renda. Esse fato mostra o desequilíbrio de poder entre o “mundo do capital” e o “mundo do trabalho”. “Piketty não faz uma abordagem marxista, mas sua pesquisa, com uma abundância de dados, confirma aquilo que os marxistas de certa forma já sabem: sem contrapesos, o capital tende a se acumular incessantemente e isso é feito às expensas do trabalho”, afirma Ilan Lapyda5, mestre em Sociologia e autor de uma dissertação de mestrado sobre a financeirização no capitalismo contemporâneo. Segundo David Harvey, a queda da participação do trabalho na composição da renda dos países se verifica mais intensamente a partir da década de 70. E esse é, inclusive, um momento para se entender os movimentos de capitais, renda e trabalho no mundo de hoje. Para ele, o sistema capitalista gera crises econômicas porque tem uma tendência inerente de gerar superacumulação de capitais. E foi uma dessas crises que motivou mudanças nas economias dos países - que repercutem até o presente. Autor de vários livros, Harvey discutiu suas ideias sobre as mudanças econômicas e sociais nas obras “Os Limites do Capital”
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Tese de mestrado “A ‘financeirização’ no capitalismo, ver https://goo.gl/t5NCZb Sobre estudo do IPEA, ver https://goo.gl/E0f8B5
(1982) e “Condição Pós-Moderna” (1989). Sua teoria é a de que aconteceu uma transformação nos modelos tradicionais de acumulação financeira, que passou de um modelo Fordista para uma Acumulação Flexível de Capital. Trata-se de uma reestruturação da produção de bens e mercadorias no capitalismo. Para o autor, essa mudança já vinha acontecendo progressivamente ao longo da década de 1960, e foi ocasionada por mais uma das crises de superacumulação. O símbolo da passagem foi o ano de 1973, quando ocorreu a crise internacional do petróleo - um boicote dos países exportadores de petróleo à comercialização do combustível, fazendo disparar a inflação mundial. Nesse regime flexível, o capital assume o protagonismo na organização das economias mundiais. Foi um tipo de resposta que a classe capitalista - aqueles que dirigem a economia, deram pra essa situação de crise. Como explica o teórico britânico, no regime flexível, uma das primeiras medidas a serem tomadas foi a “precarização da força de trabalho”. Nesse cenário, passa-se a dar preferência a uma menor rigidez nos contratos de trabalho. Começam a ser estimulados os contratos temporários e as terceirizações de serviços aumentam (como as empresas de limpeza, que prestam serviços a outras empresas). Também a força de trabalho imigrante passa a ser usada - já que quem está em outro país em busca de melhores condições de vida se torna uma mão-de-obra mais barata, se comparada à dos habitantes nativos. Mas o regime flexível tem esse nome justamente por flexibilizar todas as etapas do processo produtivo - trabalho, mercadorias e consumo. Na interpretação de Harvey, o mundo do capital busca reduzir ao máximos seus gastos, e então se intensifica o espalhamento de indústrias, fábricas e empresas ao redor do planeta, indo além dos países desenvolvidos. Essas empresas chegam aos países do chamado “Terceiro Mundo”, aquelas nações que não tinham um desenvolvimento econômico forte ou que ainda estavam se desenvolvendo, como era o caso do Brasil. No Terceiro Mundo as condições eram melhores do que nos países desenvolvidos, pois a mão-de-obra era mais barata e um empresário poderia lucrar mais ao pagar um salário menor para seu funcionário fazer o mesmo trabalho que um operário do “Primeiro Mundo”. A acumulação flexível entrou em cena no lugar do fordismo. Esse último foi o regime de produção que prosperou no mundo depois da Segunda Guerra Mundial (1945). O fordismo baseava-se 21
nas inovações trazidas por Henry Ford6, empresário e inventor americano, fundador da montadora de automóveis que leva seu o nome. Uma das maiores novidades do Ford foi a “linha de montagem”, que seria uma revolução na indústria moderna. Ela possibilita a produção em massa “em menos tempo e a um menor custo”, como ele dizia. Ao mesmo tempo, a linha de montagem aliena o trabalhador daquilo que ele está produzindo, pois cada operário fica responsável apenas por uma função específica e pontual na fabricação. Como recompensa a esse trabalho, Ford garantiu aos seus empregados a jornada de trabalho de 8 horas e o salário de 5 dólares por dia, a partir de 1914. Na explicação de David Harvey, o fordismo dependia de enormes fábricas para acomodar seus estoques e os operários que ali trabalhavam, o que gera custos. Quando o fordismo começou a entrar em declínio, segundo Harvey já no final da década de 1960, o que se passou a pregar foi a produção Just in Time, uma adequação da fabricação de acordo com a demanda - “só se fabrica aquilo que foi encomendado”. Segundo o pensador britânico, um dos motivos para a instalação de indústrias e empresas no Terceiro Mundo foi o poder que a força de trabalho organizada tinha nos países do centro do capitalismo (Europa e EUA). Nesses países o fordismo tinha possibilitado uma acumulação de capital, a partir do pós-guerra (1945), que proporcionou aos seus governos uma administração da economia que oferecesse à população uma rede de garantias e direitos sociais. Políticas de investimento governamental em transporte, equipamentos públicos, previdência, assistência médica, educação, habitação. É o que ficou conhecido como Estado de Bem Estar Social, que teve como um dos principais formuladores o economista britânico John Maynard Keynes7, que passou a nomear esse modelo econômico: o Keynesianismo. Como analisou Harvey, a classe trabalhadora se organizou durante o fordismo em torno dos sindicatos, que acabaram se beneficiando da concentração de trabalhadores nas grandes indústrias, pois isso facilitava a organização, comunicação e articulação dos operários. Tal fato fez com que ao longo do século XX os trabalhadores conquistassem aumentos reais de salários (aumentos acima da inflação). Com sindicatos organizados e fortes e com a rede de pro22 teção do bem estar social, a classe trabalhadora conseguiu poder de
barganha perante Estado e Mercado, e esse fato foi decisivo para a mundialização do capital - seu espalhamento em direção ao Terceiro Mundo. Harvey também afirma outros fatores, como a necessidade do capital ampliar seus fluxos comerciais para além do mundo desenvolvido. Passaram aí, segundo ele, a ocorrer a abertura de novos mercados ao redor do planeta, e, na sua esteira, investimentos internacionais em infra-estrutura e urbanização. Formava-se a Era de Ouro do capitalismo fordista. Essa é a fase de internacionalização do capital, que foi acompanhada de uma nova divisão internacional do trabalho, de acordo com o entendimento de Hobsbawm. Nessa interpretação, os países do Terceiro Mundo deixam de ser apenas exportadores de matérias-primas não-industrializadas e passam a atuar também com produtos fabris. Aumenta-se a disseminação de empresas multinacionais (ou transnacionais), a partir do centro do capitalismo para todo o globo. De acordo com Hobsbawm, “o surgimento de uma economia transnacional criou em grande parte os problemas que o capitalismo irá enfrentar a partir da década de 1970”. Baseado na teoria de Karl Marx8 sobre as crises econômicas, David Harvey conclui que o avanço do processo de internacionalização do capital gerou uma crescente competição internacional, levando a uma diminuição nas taxas de lucro dos empresários. Também segundo ele, o financiamento da expansão do pós-guerra continuou no final da década de 1960, mesmo com a redução das áreas produtivas para receber esse investimento. Tal fato encheu o mundo capitalista de recursos financeiros sem aplicação na produção. Por sua vez, esse excesso causou inflação, o que trouxe uma crise de superacumulação. É aí que entra 1973. Como afirma Hobsbawm, em seu livro “A Era dos Extremos”, “um dos motivos pelos quais a Era de Ouro foi de ouro é que o preço do barril de petróleo saudita custava em média menos de dois dólares durante todo o período de 1950 a 1973, com isso tornando a energia ridiculamente barata, e barateando-a cada vez mais”. Os israelenses tinham sido surpreendidos no feriado judaico do Yom Kippur, o “dia do perdão”. Às 14h daquele 6 de outubro, tropas do Egito e Síria invadem o país, respectivamente no Canal de Suez e nas Colinas de Golã - ambos territórios anexados por Israel na “Guer- 23
ra dos Seis Dias”, de 1967. Segundo acervo do portal de notícias alemão Deutsche Welle, o conflito durou mais que os anteriores, pois os dois lados estavam sendo “abastecidos” pelas superpotências da época: Israel pelos EUA e Egito-Síria pela União Soviética. Foram necessários mais 15 dias de guerra para as Nações Unidas conseguirem conclamar uma trégua, em 22 de outubro de 1973. Nesse mesmo ano os países que compunham a Organização dos Países Exportadores de Petróleo9 (OPEP) fizeram um boicote aos EUA, Europa Ocidental e Japão - o centro do capitalismo. Formado por países árabes, o grupo passou a exigir um preço mais alto aos compradores de petróleo. Politicamente, o boicote teve o pano de fundo da Guerra de Yom Kippur, pelo apoio do ocidente capitalista à Israel. Harvey chamou esse episódio de “Primeiro Choque do Petróleo”, que fez disparar a inflação no mundo capitalista, até o ponto no qual ele afirma que o período 1965-1973 tornou evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo para conter as contradições internas do capitalismo. E essa incapacidade traduzia-se por uma palavra: rigidez. Segundo Harvey, o principal legado da crise do fordismo foi a transformação que ocorreu nos mercados financeiros, por meio da desregulamentação das transações de moedas, do crédito e de investimentos. Para o geógrafo, tal fato serviu de base para a financeirização da economia, ou seja, um aumento de importância e quantidade das transações financeiras por conta da liberalização e desregulamentação dos mercados e atividades financeiras, servindo de base para o florescimento da “cultura pós-moderna”, pautada pela “desmaterialização” do dinheiro, pelo teor efêmero da referência monetária e pela instabilidade econômica, abrindo-se as portas ao Neoliberalismo. Para Lapyda, a financeirização não poderia ter se espalhado no mundo sem a abertura dos países e a desregulamentação dos mercados, sobretudo financeiros. Esse fato permitiu que o capital pudesse se movimentar sem restrições, aumentando as possibilidades de investimento. “Além disso, o neoliberalismo contribuiu para justificar e implementar tanto políticas econômicas ortodoxas quanto a diminuição de direitos sociais”, afirma o pesquisador.
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Sobre a Guerra de Yom Kippur, ver https://goo.gl/nQxpGF
Pra situar: Garotos de Chicago, Austríacos e Neoliberalismo “Ali pelo final dos anos 1960, ficou claro para vários capitalistas que eles precisavam fazer alguma coisa a respeito do excessivo poder do trabalho. Por isso, Keynes foi excluído do panteão dos economistas respeitáveis”, analisa David Harvey. No momento em que caiu o fordismo, ascendia outro posicionamento político e socioeconômico: o Neoliberalismo. De acordo com os sociólogos Antonio de Ponte Jardim e Otair Fernandes de Oliveira, o “neoliberalismo representa um movimento político filosófico que surgiu, após 1945, mediante as críticas ao Estado de Bem-Estar Social apresentadas pelas idéias de economistas como Milton Fridman10, Friedrich Hayeck11 e Robert Nozick”. Caracteriza-se pelo retorno ao individualismo contra o Estado coercitivo e centralizador de direitos sociais e coletivos. Esta posição teve como principal influência as idéias de filósofos como John Stuart Mill12 e Jeramy Bentham13 considerados próceres do pensamento liberal contemporâneo”. O Neoliberalismo tem origem nas proposições da Escola Austríaca de economia, cujas bases vieram de nomes como Friedrich von Hayek e Ludwig von Mises. E também da Escola de Chicago e seus membros (conhecidos como “Chicago Boys”), que contribuiu para seu desenvolvimento a partir do pensamento de Milton Friedman. Como explica Harvey, o Neoliberalismo veio na missão de estabilizar ou reduzir os impostos, desconstruir o Estado social e “disciplinar as forças do trabalho”. Conforme interpreta Ilan Lapyda, financeirização e neoliberalismo são indissociáveis, sendo que este último atuaria como um “modo de regulação” do regime de acumulação flexível/financeirizado. No início da década de 1970, o chamado “receituário neoliberal” foi aplicado no Chile sob a ditadura do general Augusto Pinochet. A partir da década de 1980 a Grâ-Bretanha de Margaret Thatcher e os Estados Unidos de Ronald Reagan também adotam a política neoliberal. Em 1989 o neoliberalismo passa a ser uma recomendação de instituições financeiras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), devido ao “Consenso de Washington”14. Com isso o FMI elabora seus Planos de Ajustamento Estrutural (PAE), receituário macroeconômico para orientar as economias “em desenvolvimento” durante os anos 90, como o Brasil.
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Divergências nos alpes suíços “Nosso ponto é: se há desigualdade excessiva, isso é contraproducente para o crescimento sustentável dos membros do G20”, disse a diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, durante um debate, em janeiro de 2017, no Fórum Econômico Mundial, realizado anualmente em Davos, na Suíça. O posicionamento veio logo em seguida à fala de Henrique Meirelles, ministro da Fazenda do governo de Michel Miguel Elias Temer Lulia (PMDB). Segundo Mirelles, a chave para a melhora da economia do país seria a retomada do crescimento econômico. “A saída para uma economia como a do Brasil é voltar a crescer, voltar a criar empregos, modernizando a economia e abrindo o mercado, de forma a se tornar mais eficiente”, pontuou. Lagarde completou sua fala alegando: “se nós queremos um pedaço maior da torta, nós precisamos de uma torta maior para todos. A desigualdade excessiva está impondo uma pausa a esse crescimento sustentável”. E seguindo com a argumentação, criticou: “Há forte reação dos economistas, que dizem que esse tipo de coisa não é problema deles. Inclusive na minha própria instituição, que tem sido convertida a aceitar a importância de estudar a desigualdade e promover políticas em resposta a ela”, afirmou. Por fim, sugeriu que “há coisas que podem ser feitas: reformas fiscais e políticas monetárias. Mas elas devem ser graduais, regionais. E isso provavelmente quer dizer maior distribuição de renda do que a que nós temos no momento”. Entretanto, em outubro de 2016, a mesma Lagarde, em visita ao Brasil, defendeu a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita o crescimento dos gastos públicos, a PEC do teto de gastos, afirmando que a medida vai ampliar a confiança na economia e o crescimento do país, segundo a Revista Exame. “A aprovação destas medidas [PEC do teto de gastos] em um período razoável de tempo vai ajudar a fortalecer a credibilidade do arcabouço da política macroeconômica, ampliar a confiança na economia e apoiar um retorno de crescimento forte, inclusivo e sustentável no Brasil”, disse em comunicado enviado pelo FMI à imprensa. O debate colocou em perspectiva dois lados para a superação das crises financeiras: a do ajuste fiscal (corte de gastos) e a do
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Sobre debate no Fórum Econômico Mundial, ver https://goo.gl/v56oS0 Para declaração na Revista Exame, ver https://goo.gl/E4gQEZ
aumento da receita do Estado aliado à melhor distribuição de renda. No Brasil a disputa se materializou em torno das discussões sobre a aprovação da PEC do teto de gastos, em pauta no cenário político nacional desde o impeachment da Presidenta Dilma Vana Rousseff (PT), no final de agosto de 2016. Aprovada em dois turnos, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, a PEC foi promulgada em dezembro de 2016. Ela é uma das medidas centrais do governo Michel Temer para combater a crise econômica no Brasil. De acordo com o relatório “Situação Econômica Mundial e Perspectivas 2017”, divulgado pela ONU em janeiro de 2017, o Brasil deve ter fraca retomada do crescimento econômico, enquanto o crescente desemprego e o ajuste fiscal em curso continuam pesando sobre a consumo interno. O documento é considerada a principal publicação da ONU para tendências da economia global. Nele também foi ressaltado que o desemprego em alta no Brasil e a política fiscal “apertada” vão continuar atingindo a economia. “Medidas de austeridade fiscal que incluem profundos cortes de gastos ameaçam minar a sustentabilidade fiscal futura ao criar um ciclo vicioso: os cortes de investimento causam menor crescimento, o que por sua vez leva a uma maior redução dos gastos públicos”, conclui o documento. Segundo as Nações Unidas, a taxa de desemprego brasileira encerrou o terceiro trimestre de 2016 em 11,8%, frente a 6,5% registrados no fim de 2014. Dez anos atrás, em fevereiro de 2007, a mesma ONU lançava a publicação “Flat World, Big Gaps” (Um Mundo Plano, Grandes Disparidades, em tradução livre), editado por Jomo Sundaram, secretário-geral adjunto da organização para o Desenvolvimento Econômico, e Jacques Baudot, economista especializado em temas de globalização. No livro se concluía que as alavancas do crescimento - globalização e liberalização, não foram capazes de reduzir desigualdades e a pobreza. Segundo os pesquisadores, as duas ferramentas do crescimento econômico fizeram aumentar a desigualdade na renda per capita em países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). A proposta era de que a desregulação dos mercados teve como resultado uma maior concentração do poder econômico. Para relatório Situação Econômica Mundial e Perspectivas 2017”, ver https://goo.gl/Ecn7qA Para publicação “Flat World, Big Gaps”, ver https://goo.gl/n0RdSK
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Já em junho de 2016 o FMI protagonizava outro capítulo no debate acerca do neoliberalismo e das medidas de austeridade. Três economistas da entidade publicaram o artigo intitulado “Neoliberalism: Oversold?”, no qual discutiam os efeitos de duas políticas da chamada “agenda neoliberal”, a saber: a liberalização do capital e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e o nível da dívida), segundo afirmaram os economistas brasileiros Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo, em artigo na revista Valor Econômico. Segundo eles, o artigo do FMI chegou à conclusão de que os fluxos de capitais nas economias emergentes não necessariamente levam ao crescimento econômico. A avaliação veio após a análise de 150 perturbações econômicas, em 50 mercados emergentes desde 1980. No que diz respeito à austeridade, Belluzzo e Galípolo explicam que, “o estudo do FMI indica: a elevação de impostos ou o corte de gastos para reduzir a dívida pode ter um custo muito maior do que a mitigação do risco de crise prometido pela sua redução”. Além disso, na interpretação dos brasileiros, a austeridade gera “substanciais custos” na oferta de bem-estar à população, e também enfraquece o consumo e a taxa de empregos. A experiência prática não comprova que o aumento da confiança do setor privado para investir num país (e, por consequência, gerar mais empregos e crescimento econômico) esteja atrelada à consolidação fiscal (a garantia de superávit primário e controle da dívida pública e do déficit fiscal). “Episódios de consolidação fiscal foram seguidos por reduções mais do que expansões no crescimento”, afirmam. As abordagens econômicas que levam em conta a renda e a desigualdade apontam para um consenso: o de que está havendo uma mudança na estrutura da desigualdade mundial. Essa é a opinião de Pedro Herculano Souza, doutor em Sociologia e pesquisador do IPEA. Para o pesquisador, até pouco tempo atrás as desigualdades entre países tinham mais importância do que as desigualdades internas de cada país, para se “medir” a desigualdade global. Isso, segundo ele, está mudando. Souza entende que a tese central de Piketty é uma previsão, ou seja, é a explicação do porquê as desigualdades permanecem e tendem a aumentar, mas “esse mecanismo não é o mais importante para explicar o aumento da desigualdade em alguns países até aqui”, pondera. Eventos extraordinários no século
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Para o artigo “Neoliberalism: Oversold?”, ver https://goo.gl/YTzmB6 Sobre análise de Belluzzo e Galípolo, ver https://goo.gl/22BzY1
XX, como a Segunda Guerra Mundial, fizeram balançar os mecanismos econômicos e alterar os caminhos da reprodução da desigualdade. Segundo Souza, não existe consenso sobre a trajetória da desigualdade e nem a teoria econômica nem a sociologia são capazes de prever isso”.
Com o suor do trabalho “Meu patrão mesmo, quer fechar mais cedo hoje, porque cansa né, semana inteira trabalhando. Aí é correria aqui, correria pra chegar lá. Isso aqui cê pensa que é fácil, mas cê anda pra caramba”. Aparecido Cardoso tem 60 anos de idade. Durante os dias da semana divide espaço com automóveis na rua, puxando um carrinho de 2 metros de comprimento por 1 metro de largura que usa para catar material reciclável - principalmente papelão, plástico e alumínio. Tem um corpo magro, barba rala e cabelo curto, úmido de suor. Sua pele tem o tom de queimada pelo sol. “Eu ando catando aí. Tem lugar que tenho ‘freguesia’, tem lugar que não tem o que pegar”, explica ele. “Pego o que eu acho na rua, em caçamba - os donos de caçamba acha até bom que você pegue, porque aí dá pra eles por mais coisa dentro”. Seu Cardoso trabalha catando recicláveis nas ruas centrais de Bauru. O carrinho, seu instrumento de trabalho, não é dele, pertence ao dono do ferro velho onde ele deixa os materiais que pega nas ruas. “Ele [patrão] paga a carga que você leva até lá”. Além de fornecer o material de trabalho, o dono do ferro velho, que Cardoso considera ser seu “patrão”, fornece abrigo para ele e outros catadores. “Aqui em Bauru eu moro sozinho, mas moro dentro do ferro velho”, diz. “Mora mais gente lá também, tudo catador”, explica ele, que diz receber apoio do patrão. “O patrão não cobra nada pra morar lá. Até tenho lugar pra ir, mas lá ele dá o carrinho pra trabalhar e não cobra moradia, então ele ajuda a gente. Até a comida, por exemplo, lá eu tenho minha janta todo dia”. Segundo o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD), uma pesquisa elaborada pela Unifesp em 2012, o consumo de álcool entre as pessoas mais pobres é maior que o do restante da população. O estudo apontou que 70% dos brasileiros que ganham Sobre o LENAD, ver https://goo.gl/7CIuil. Obs.: Consumo abusivo é considerado beber ao menos cinco doses de bebida em um período de duas horas, para homens, e quatro doses em duas horas, para mulheres. Uma dose equivale a uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou uma dose de pinga
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menos que mil reais por mês bebem de forma abusiva. Os resultados da pesquisa mostraram um padrão entre a renda da pessoa e o consumo de álcool - quanto menores os ganhos, maior será o consumo excessivo de álcool. Nas contas do levantamento, 71% das pessoas da classe E bebem com exagero, seguidos de 60% na classe C, 56% na B e 45% na classe A. O estudo foi feito a partir de informações de 4.607 pessoas com mais de 14 anos, coletados em 149 municípios. O dinheiro que vem com os reciclados pode garantir a sobrevivência, como conta Seu Cardoso, mas depende muito da pessoa. “Se for um cara que ele consegue segurar o dinheiro… mas a maioria da peãozada aqui … cê sabe como que é né, num preciso nem falar”, diz ele, referindo-se ao uso de drogas e abuso do álcool. “Eu mesmo não uso droga nem nada, mas a pinguinha eu gosto de beber, e eu tenho que parar bicho. Olha aqui como é que eu tô”. Ele mostra várias feridas espalhadas pelo seu corpo, principalmente nas juntas, como cotovelo e joelho. As chagas de tamanhos diferentes acumulam sangue, que vai secando ao seu redor, e são difíceis de cicatrizar. Apesar dos rumores que ouviu, ele não sabe dizer se os ferimentos têm relação com o álcool. “Não sei se é a pinga, me falaram que é por causa dela, do tal do corote”, conta. “Isso aqui vicia, mas fumar eu não fumo, o problema é a pinga mesmo”, comenta. As diferenças de classe se refletem no consumo de drogas, mas vão além. O sociólogo Jessé Souza considera, no seu livro “A Ralé Brasileira”, que a “renda” econômica é “efeito” e não “causa” das diferenças entre as classes. Portanto, na sua análise, as diferenças na renda dos brasileiros se dão pois a sociedade já é previamente dividida em classes socioeconômicas diferentes. No seu estudo, Jessé chega à conclusão de que tanto a igualdade social quanto a liberdade individual não foram universalizadas no país. Esses dois fatores, para o pesquisador, são os critérios básicos que devem existir em qualquer país que se proponha ser democrático. Como ele sustenta, “se vimos que toda a atribuição de “respeito” e de “reconhecimento social” na modernidade depende da idéia de “trabalho produtivo útil”, como ficam aquelas sociedades que não lograram universalizar os pressupostos para o trabalho produtivo e útil para todas as classes?” Para classificar os diferentes tipos de trabalho, a OIT criou o conceito de “trabalho decente”. Segundo os indicadores de trabalho no anuário de 2015 do Departamento Intersindical de Estatística e 30 Estudos Socioeconômicos (DIEESE), o trabalho decente é definido
como aquela atividade que tenha uma remuneração adequada, exercida em condições de liberdade e segurança e que possa viabilizar uma vida digna. “É uma condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável”, diz o texto. Nesse sentido, existe a categoria de “trabalho formal”. Nesse anuário, considerando como emprego formal aqueles que tenham carteira assinada, funcionários públicos, e contribuintes da previdência social, o DIEESE avaliou um crescimento na taxa de formalidade da população brasileira. Pegando a população de 16 a 59 anos de idade, a taxa passou de 51,4% em 2009 para 57,3% em 2014. Apesar do crescimento, ainda persistem no Brasil não só os trabalhos informais, mas até mesmo aqueles que refletem condições semelhantes às da escravidão. Segundo o Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), o trabalho realizado em condição análoga à de escravo “constitui uma séria violação de direitos humanos que deve ser combatida com todo vigor pelo Estado brasileiro”. Em levantamento do próprio ministério, de 2009 a 2014 foram feitas 1.334 denúncias de trabalhos nas condições de escravidão. As condições de trabalho e da pobreza estão ligadas com a ascensão do capitalismo global. Pelo menos é o que garante Zygmunt Bauman. Segundo o polonês, quando se dá o desmonte do Estado de Bem Estar Social para uma ordem pautada pelo Neoliberalismo, começa a se instalar na sociedade um entendimento de “negação do Estado”, aliado ao elogio do mérito individual. Com isso, segundo ele, constituiu-se uma classe marginal que não tem função social. “Como a sociedade do consumo possui caráter individualista, a classe marginalizada é consequentemente culpabilizada pelo seu próprio fracasso”, afirma no livro “Trabalho, Consumismo e Novos Pobres”. Na mesma linha vem Jessé Souza, trazendo as especificidades do Brasil. Na sua compreensão, a passagem do Brasil de uma sociedade escravocrata para uma sociedade de classes deixou como marca uma nova ordem de valores do capitalismo, que são estruturados pela competição e pela ideologia do mérito, a meritocracia. Segundo o autor, essa mudança também deixou “uma massa de inadaptados às demandas de Estado e mercado”, fazendo com que eles ficassem “totalmente excluídos”, formando aquilo que ele chamou de Ralé EstruPara a OIT, a noção de trabalho decente se apoia em quatro pilares estratégicos: a) respeito às normas internacionais do trabalho; b) promoção do emprego de qualidade; c) extensão da proteção social; d) diálogo social
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tural. O termo “ralé” é usado pelo sociólogo para designar a parcela de “subcidadãos”, ou cidadão de segunda categoria. No seu raciocínio, a sociedade não reconhece a ralé como sendo “cidadã efetiva”. No estudo feito por ele nesse livro, a Ralé Estrutural representa cerca de 1/3 da população do Brasil. Nessa parcela à margem da cidadania, as pessoas sobrevivem a partir da informalidade. Conforme dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) a partir do Censo do IBGE, 15,6% da população bauruense de 16 anos ou mais está em situação de informalidade, sendo que no município, ao todo, 5.461 pessoas estão em situação de extrema pobreza, o que significa uma renda domiciliar per capita abaixo de R$ 70,00. “As raízes das desigualdades estão assentadas no modo de organização do trabalho”, considera Adriana Brito da Silva, conselheira estadual do Conselho Regional do Serviço Social - CRESS/SP. Segundo ela, existe uma apropriação privada da riqueza que é socialmente instituída. “Por exemplo, como se justifica que um trabalhador, após anos de trabalho árduo na construção civil não consiga por meio do seu salário comprar e, portanto, morar num apartamento de luxo bem localizado que ele mesmo ajudou a construir?”, questiona. Pedreiro e carpinteiro, Timóteo Lima, com 62 anos de idade, carpe sarjeta para não passar fome. Diz ter trabalhado “pra um punhado de safado” que não pagou pelo serviço na construção. “Você precisa trabalhar, mas dignamente”, assegura. “Eu, por exemplo, cobro 30 conto o metro de tijolo, e tem gente que faz por 10. Eu cobro 15 o metro de reboque, mas tem gente que faz por 5. Eu acho desonesto”, admite. Em Bauru desde 1984, ele está hoje no Parque Jaraguá, zona norte da cidade. “Mora eu e Deus”, diz. Na análise de Jessé Souza, o mercado de trabalho atual tem a característica de ser altamente competitivo. Portanto, segundo ele, a população que já está à margem da sociedade - como é o caso da Ralé Estrutural, não tem outra opção a não ser sobreviver com os trabalhos informais, e passar pela “invisibilidade social”. Nesse conjunto “desprivilegiado” está um grupo inteiro de pessoas abaixo dos princípios de dignidade, que são miseráveis economicamente e que não reúnem, segundo Jessé, aquilo que torna possível “ganhar a vida” no capitalismo, que são as “pré-condições psico-sociais” de um indivíduo - as capacidades e habilidades transmitidas de pais para filhos e as condições materiais do desenvolvimento humano, que garantem primeiro o sucesso 32 escolar e depois o profissional.
Pra situar: Desmontando a meritocracia A negação do caráter de classe da desigualdade social é o “segredo” mais bem guardado do mundo moderno, afirma Jessé Souza. Segundo ele, toda a “legitimação” social e política de qualquer sociedade moderna, seja ela central ou periférica, reside nesse fato. Assim para poder ser “legítima” a desigualdade deve assumir uma forma “individual” – essa artimanha, criada para esconder a forma estrutural da desigualdade – é a “ideologia da meritocracia”. Nela, justifica-se a desigualdade pela diferença no mérito individual de cada um. “Se alguém produz 50 vezes mais que outra pessoa, nada mais justo que essa pessoa também, por exemplo, receba um salário 50 vezes maior que a outra que produz também 50 vezes menos”, diz Jessé. Para o autor, a desigualdade econômica é legítima no capitalismo por causa da influência cotidiana da meritocracia. O que essa ideologia esconde é que a dominação social moderna tem caráter de “classe” e não de “mérito”, ou seja, as classes sociais determinam o tamanho do sucesso individual. “Desde que se demonstre que o acesso ao conhecimento útil e, portanto, à dignidade do trabalho útil e produtivo exige pressupostos desigualmente distribuídos por pertencimento de classe, ou seja, por privilégios de nascimento e de sangue e não decorrentes de mérito ou talento individual, então podemos criticar toda a desigualdade social produzida nessas condições como ‘injusta’ e ‘ilegítima’”.
Estado, mercado e sociedade Duzentos e dois milhões setecentos e sessenta e nove mil. Essa era, segundo o IBGE, a população do Brasil em 2014. No mesmo ano, também segundo o instituto, o PIB brasileiro - a soma de todas as riquezas produzidas pelo país em 12 meses, teve o valor de mais de R$ 5,6 trilhões. Dividindo-se esse dinheiro pela população do país, têm-se o “PIB per capita”. Em 2014 o valor das riquezas nacionais por habitante foi de R$ 28.046,00. No Brasil, os mais ricos ficam com a maior parte da renda gerada anualmente no país. Essa realidade se mostra a partir dos dados do IBGE, divulgados pelo DIEESE no Anuário do Sistema PúPara o PIB e PIB per capita, ver IBGE: https://goo.gl/JP0cTY
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blico de Emprego, Trabalho e Renda 2015, no volume que trata do mercado de trabalho. Referente ao ano de 2014, a pesquisa revelou (*) que a parcela de trabalhadores composta pelos 10% mais ricos ganham duas vezes mais que os 50% mais pobres dos trabalhadores. Em números, isso significa que 40,3% da renda do trabalho vai para o décimo mais rico da população enquanto 19,3% da renda é destinada à metade mais pobre dos trabalhadores. Ainda considerando o ano de 2014, outra informação do anuário ressalta a distância entre ricos e pobres. Também com base em dados do IBGE, a pesquisa mostrou que os 10% mais pobres da população ganhavam até R$ 400,00 por mês. Na parcela dos 10% mais ricos, os rendimentos chegavam a R$ 3.500,00 mensais. Para Herculano Souza, acreditar que o crescimento econômico sozinho vai resolver os problemas da pobreza e desigualdade “não deu certo antes e não vai dar certo agora”. Conforme ele explica, “o desafio é promover o crescimento sustentado ao mesmo tempo em que implementamos ou reformamos políticas públicas para tornar o Estado mais redistributivo, capaz de prestar serviços essenciais com maior qualidade e amparar os grupos mais excluídos”. “Minha família tá toda bem de vida, e olha como é que eu tô”, lamenta Seu Cardoso. “Já trabalhei em empresa multinacional, mas aí você sabe como que é, né? Pinga e muierada”, confessa o catador. Segundo ele, estava “bem de vida” e tinha conta no banco. Recentemente tentou se aposentar, mas revelou que não conseguiu, por não ter atingido o tempo de serviço: “Tinha aquele negócio de trabalhador temporário, agora nem tem mais, você entra numa firma e já te registram”, conta. Cardoso levanta suspeitas quanto aos seus trabalhos ao longo da vida, pois segundo ele já deveria estar aposentado. “Eles falam que contam lá, mas acho que é mentira. Os cara mete a mão em você. Eles dão holeriti, diz que marca no INSS, mas acho que é mentira. A gente não tá vendo...” Seu Cardoso conta que contribuiu quando trabalhava na agricultura. Depois ficou sem emprego, “por causa do maquinário”. Agora como catador, tenta “encostar” pelo INSS. “É foda bicho, eu trabalhei pra caramba já”, protesta. As “pré-condições sociais” de que fala Jessé continuam sendo as maiores barreiras para o desenvolvimento da sociedade. “O
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(*) Pesquisa baseada no rendimento mensal de todos os trabalhos dos ocupados de 14 anos ou mais de idade com rendimentos
desafio de toda sociedade moderna é garantir a igualdade social e a liberdade individual. A universalização das condições de acesso ao “trabalho útil e digno” é, no fundo, a realização concreta do ideal de igualdade; enquanto a realização da expressividade individual é a única forma de garantir o exercício efetivo de uma liberdade de ação individual que não se confunde com mero consumo”, aponta o pesquisador. Essas diferentes condições revelam as diferentes oportunidades que as pessoas tiveram ao longo da vida. Nesse ponto de vista, as desigualdades vão muito além dos fatores econômicos, e já estão presentes na própria família, em contextos de vulnerabilidade social. “Às vezes, a gente pega uma criança, e aí falam ‘nossa, meu Deus do céu, que criança rebelde!’”, afirma Fabiane Couti da Silva, assistente social da entidade “Pequenos Obreiros de Curuçá” (POC). “Mas aí você vai e conhece o histórico familiar dela: a mãe bebe, o pai está preso, a mãe bate. É aí que você começa a entender o porquê que essa criança tem toda essa agressividade, porque que tudo que você fala ela responde. A criança vê os pais nessa situação, aí tem também o bairro que ela mora, que muitas vezes tem a presença das drogas, então é complicado”, explica. Com atuação na região da Vila Dutra, zona oeste de Bauru, o POC oferece um serviço de convivência e fortalecimento de vínculos para crianças e adolescentes da periferia da cidade. Com uma atuação que vem desde 1995, atualmente são 155 jovens atendidos, e a percepção que se tem é que a demanda sempre aumenta, principalmente devido ao desenvolvimento do bairro. “O bairro cresce, então a demanda também cresce. Aí a gente tenta suprir essa necessidade. Além do POC tem outras entidades, às vezes até próximas entre si”, explica ela. Marli Aparecida Álvares é assistente social e trabalha no POC há 16 anos, tendo já coordenado o projeto em seu início. É também funcionária da Secretaria Municipal do Bem Estar Social (SEBES). Para ela, o principal é trabalhar com a auto estima dos jovens. “Tem muitas crianças que vêm pra cá com esse sentimento de ‘não tenho mais nada a perder, minha vida dá tudo errado’, e ela entra na adolescência assim. Então, se você começa a estimular a auto estima e você deixa ela participar, ela se sente valorizada, e isso vai formando um cidadão”, relata. Essa valorização, segundo Marli, se torna ferramenta para a mudança - tanto individual quanto coletivamente: “Ela se acha capaz de escolher, de decidir algumas coisas. 35
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E se ela se sente valorizada, ela vai querer mudar o ambiente em que está inserida. A gente percebe que isso faz diferença tanto na família quanto na postura como cidadão”, explica. A temática da vulnerabilidade social surgiu nos anos 1990, com o desgaste pelo qual passaram os estudos sobre a pobreza, que se reduzia a questões econômicas, explica a assistente social Simone da Rocha Monteiro, doutora pela PUCRS e professora adjunta na Escola de Serviço Social-UFF, em seu artigo “O marco conceitual da vulnerabilidade social”. Segundo ela, o conceito veio para o centro das análises sociais a partir de organismos internacionais, como a ONU e o Banco Mundial, a fim de ser uma alternativa ao conceito de “exclusão social”. No artigo, a pesquisadora explica que as políticas públicas são fundamentais para a consolidação da proteção social. “A diminuição dos níveis de vulnerabilidade social pode se dar a partir do fortalecimento dos sujeitos para que possam acessar bens e serviços, ampliando seu universo material e simbólico, além de suas condições de mobilidade social”, expõe. A partir desse entendimento, pode-se compreender a política de assistência social como uma política pública de proteção social, explica Simone. E essa política, segundo a pesquisadora, deve se caracterizar como um dos instrumentos de garantia de direitos, condições dignas de vida, emancipação e autonomia. No entanto, segundo ela, a política de assistência social aponta para o empoderamento dos sujeitos, o fortalecimento de suas potencialidades e capacidades, “numa lógica paliativa, atrelada aos sujeitos e não à estrutura social”. Essa concepção faz com que a ideia de vulnerabilidade social não leve em conta a estrutura da sociedade capitalista e não problematize a superação das suas contradições, pois não considera que essas contradições sejam um produto das desigualdades sociais. “Logo, toda a possibilidade de enfrentamento se dá dentro dessa lógica, sem confrontar seus condicionantes”, ressalta a pesquisadora. Para a conselheira do CRESS-SP, utilizar o termo “vulnerabilidade” para tratar de questões de necessidades de sobrevivência dos trabalhadores da sociedade brasileira envolve um posicionamento político. “É um conceito ideológico comumente adotado na área social para mistificar o conteúdo político e econômico responsável pelas inúmeras desigualdades”, elucida. Na opinião da Marli Aparecida, no combate à essa vulnerabilidade social existem vários atores. “Entra o papel da família e
do Estado, que na verdade acabou terceirizando todo o papel dele”, alega. “A gente tenta atuar, mas você vê que há muita falta de vaga em creche, as escolas estão superlotadas. Na televisão eles falam que tem ‘tantas’ crianças nas escolas, mas vira um depósito de criança. Dentro do nosso “Padrão Normativo” consta que a criança tem que interagir, por exemplo, mas se você não toma cuidado, você transforma uma entidade dessas [POC] num depósito de criança”, adverte a assistente.
Proteção social bauruense A cidade de Bauru conta com uma secretaria especial para o planejamento, organização e articulação da proteção social. É a Secretaria Municipal do Bem Estar Social, conhecida como SEBES, que tem a missão de fazer a inclusão social da população em situação de vulnerabilidade e risco. Essa atuação se dá de maneira direta, em que a própria secretaria mantém locais de atendimento e funcionários - como é o caso dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) ou dos Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Mas também existe a atuação indireta, a partir da Rede Cofinanciada - na qual a Prefeitura de Bauru firma convênios com organizações da sociedade civil que prestam atendimento à população. Com esses convênios é repassada uma verba pública para essas entidades atuarem prestando esse serviço, que deve obedecer a parâmetros e diretrizes conhecidos como “Padrões Normativos”. Cerca de 30 entidades fazem parte do sistema cofinanciado. Essa atuação do poder público juntamente com a sociedade civil compõe a Rede de Proteção Social do município. Ela está dividida em dois segmentos, dependendo do grau de complexidade dos serviços e atendimentos: a rede de proteção básica e a rede especial. O repasse de recursos públicos municipais para as entidades do setor privado vem de duas fontes: o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (FMDCA) e o Fundo Municipal da Assistência Social (FMAS). Ambos são abastecidos com recursos financeiros das esferas de governo Municipal, Estadual e Federal. Através da Lei 6.467, de dezembro de 2013, o repasse de dinheiro público (nas três esferas) foi assim dividido entre as duas redes de proteção no ano de 2014: R$ 11,7 milhões para a básica e R$ Para consultar os Padrões Normativos de serviços, ver https://goo.gl/QSLAJZ Para a Lei 6.467, ver https://goo.gl/dXH5CZ
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11,4 milhões para a especial, repartidos entre todas as instituições que atuam na cidade. Como afirma Andrea Ferreguti, coordenadora da Fundação Toledo (Fundato, uma das entidades prestadoras do serviço de assistência social), na rede básica o atendimento se concentra nas pessoas em situação de vulnerabilidade social, na qual “embora seus direitos estejam ameaçados, ainda não foram rompidos”, explica. “Na proteção especial esses direitos e os vínculos familiares já foram rompidos”. Segundo informa a SEBES, o conjunto de ações, programas, serviços e projetos na assistência social é orientado por políticas públicas municipais, que por sua vez devem ser norteadas pelo SUAS - o Sistema Único de Assistência Social, responsável por regular a política de assistência social no país. Com 50 anos de existência e atuação na cidade de Bauru, a Fundato atende cerca de 1000 pessoas todo mês. Segundo Andrea, houve uma melhora nas condições gerais da população, principalmente nos últimos 10 anos, em que se percebeu uma emancipação maior das pessoas. “Eu percebo que hoje houve sim uma emancipação e um realinhamento na própria política. Com o passar dos anos, eu acho que o poder de compra dessa população melhorou bastante. O acesso aos benefícios e ao mundo do trabalho melhorou também”, pontua. Essa mudança impacta até mesmo a dinâmica das classes sociais no país. “Às vezes eu até fico me perguntando aonde é que está essa classe média? Porque hoje eu não consigo perceber essa classe média: ou é pobre ou é rico. O pobre hoje tem um poder de consumo. A não ser o miserável, que já é uma outra linha, uma outra demanda”, revela. De acordo com dados de outubro de 2016 do MDSA, Bauru registrava 42.716 famílias que estavam no Cadastro Único para Programas Sociais, do Governo Federal, uma central de registros que reúne informações socioeconômicas das famílias brasileiras de baixa renda. É por meio desse cadastro que as pessoas podem solicitar os benefícios assistenciais do governo, como o Bolsa Família. O número de famílias cadastradas equivale a 104.490 pessoas, das quais 30.480 estão em famílias com renda per capita mensal de até R$ 85,00. Segundo relatório do mesmo MDSA, em abril de 2016 o
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Para os dados nacionais do MDSA, acessar https://goo.gl/vao9jF
município tinha em seu território os seguintes serviços de assistência social: 5 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), 2 Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), 1 Centro de Referência Especializado de Assistência Social para População em Situação de Rua (Centro POP) e 100 vagas em Serviços de Acolhimento para População em Situação de Rua, todos os locais recebendo verbas federais para sua manutenção. Apesar da recente emancipação financeira das pessoas, Andrea observa que nos últimos 2 anos as demandas na sua instituição aumentaram, principalmente por pessoas que até então nunca tinham procurado o serviço. “São pessoas que tinham o seu trabalho, levavam uma vida simples e estavam inseridas no mercado formal, mas vieram a perder esse serviço e hoje procuram a assistência social”, diz. “Agora, se nós pegarmos de 10 anos pra cá, a gente percebe que no município de Bauru houve uma melhora no poder de compra, na diminuição da vulnerabilidade e do risco”, completa. Conforme dados do IBGE no Censo Demográfico de 2010, o município tinha uma População Economicamente Ativa (PEA) de 185.226 pessoas. A PEA mede o número de habitantes de um determinado lugar que estão aptas para o trabalho - empregadas ou não - e, portanto, que podem contribuir produtivamente para a sociedade. Desse total mencionado, 173.663 pessoas estavam ocupadas, das quais 58,6% com carteira assinada e 11.563 estavam desocupadas. Na cidade, duas em cada cinco pessoas que têm ocupação, ganham mais de 2 salários mínimos e 41% ganham de 1 a 2 salários. Em Bauru, o ramo que mais emprega é o de serviços, sendo que vendedores dos comércios e mercados somam 30.544 pessoas, o que equivale a 17,6% da população ocupada. Logo atrás, 28.207 estavam em ocupações elementares (segundo o IBGE são os trabalhadores domésticos, ajudantes de cozinha, pessoal de limpeza, vendedores ambulantes), seguidos de profissionais das ciências e intelectuais com 21.989, ou 12,7%, de acordo com os dados do IBGE. “A crise econômica aumenta mesmo o fluxo, é uma coisa natural, e aí mais pessoas acabam batendo na porta da assistência social”, diz o secretário municipal do Bem Estar Social, José Carlos Augusto Fernandes. “Muitas vezes, a pessoa tá desempregada e sabemos que não é por falta de procurar emprego. Nós entendemos que o momento é atípico e foge um pouco da normalidade. Aqui no Brasil nós nunca tivemos pleno emprego, mas já tivemos uma situação de quase chegar a isso”, contextualiza ele. 39
Fernandes assumiu a pasta em janeiro de 2017, nomeado pelo prefeito eleito Clodoaldo Gazzetta (PSD). Bacharel em Ciências Contábeis, é também presidente do Conselho Municipal de Assistência Social e já ocupou o mesmo cargo de secretário entre 1993 e 1996. Em seu entendimento, no âmbito de município, a política deve ser compensatória, no sentido de dar não apenas o socorro, mas oferecer oportunidades. “E isso tem que ser de uma forma muito profissional, porque se você destoar disso passa a ser uma política assistencialista, paternalista, e é isso que não podemos fazer: criar uma cultura de que quem grita mais alto será atendido”, pontua. Para Fátima Monari, assistente social diretora do Departamento de Proteção Especial da SEBES, o atendimento muitas vezes vai além do emergencial. “A família chega numa situação de estar nessa necessidade de uma cesta alimentar, porém quando ele vai para o atendimento técnico são despertadas outras demandas, além desses benefícios eventuais”, explica.
“Já me acostumei com a rua”
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De frente a uma agência da Caixa Econômica Federal, Luiz Vanderlei de Oliveira está sentado num degrau bebendo uma latinha de cerveja que acabou de ganhar de outro morador de rua. Ao lado de uma sacola com os pertences e de um maço de cigarros quase no fim, vai puxando assunto com qualquer um que para pra conversar. “Só 38 anos que eu tô na rua. E já andei muito, até pra Bolivia. Conheço Minas de ponta a ponta, já fui pra Corumbá. Acho que não teve cidade que não passei”, vai enumerando Luiz, viajante e morador de rua em Bauru. Conhecido como “Mais Véio” ou “Martinho da Vila”, ele é respeitado na região onde costuma ficar, próximo ao supermercado “Confiança Flex”, no jardim Contorno, zona sul da cidade. O respeito vem dos outros moradores de rua, que o consideram como uma espécie de conselheiro. Tanto foi que começaram a se referir a ele como “o mais velho”, que acabou virando seu nome. “Eu sou conhecido e considerado aqui, todo mundo me respeita, os seguranças, tudo os cara aqui”, reconhece. O que não se conhece é o número de moradores de rua no Brasil. É o que sustenta Marco Antonio Carvalho Natalino, especialista em políticas públicas e gestão governamental do IPEA, na pesquisa “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil”, liderada por ele. Partindo da ausência de dados oficiais sobre a po-
pulação em situação de rua, ele conclui que a implementação de políticas públicas voltadas para essas pessoas acaba sendo prejudicada, além de inviabilizar essa população no âmbito das políticas sociais. Com essa realidade, o pesquisador fez uma projeção a respeito da estimativa da população em situação de rua brasileira, usando dados disponibilizados por 1.924 municípios via Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas). Conforme explica Natalino na pesquisa, “a falta desses dados interfere diretamente na elaboração de políticas sociais mais eficientes para essa população”. De acordo com o pesquisador, problemas metodológicos acabam contribuindo para essa dificuldade, pelo fato de a população de rua ser “itinerante”. “Dados censitários são tipicamente coletados com base em dados domiciliares e tendem a captar mal populações em condições inadequadas de habitação”, alega ele na pesquisa, completando que “é mais difícil realizar pesquisas com esse público [moradores de rua] do que com populações moradoras de domicílios particulares e/ou moradias coletivas, tais como presídios, hospitais e conventos”. No entanto, considerando fatores como o total de habitantes, levantamentos e índices sociais e a proximidade dos grandes centros urbanos (quanto maior o município, maior a concentração de moradores de rua), seus cálculos o levaram a estimar, em 2015, a população em situação de rua girando em torno de 101.854 pessoas no Brasil, sendo que 77% em municípios com mais de 100 mil habitantes. Bauru não destoa dessa realidade. Apesar de contar com sistemas de cadastro e registro, a SEBES não tem um sistema integrado de informações, o que é prejudicial na visão do secretário, por permitir que pessoas se aproveitem dos serviços. “O que é lamentável aqui é que nós não temos isso informatizado, um cadastro. Na medida que não temos isso informatizado, como é o nosso caso, a pessoa pode ser atendida num lugar e, de repente, a mesma pessoa pode ser atendida em outro local”, lamenta. “Isso existe, e queremos extirpar”. Mesmo com dificuldade de ordem estatística ou da complexidade do serviço, há quem aposte na caridade do povo bauruense. “Eu hoje, em Bauru, não vejo demandas que não possam ser atendidas, ainda que sejam na situação de miséria e ainda que sejam atendimentos pontuais”, diz Andrea Ferreguti. “Porque, mesmo que sejam Para o levantamento da população em situação de rua no Brasil, ver https://goo.gl/32LKIf
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pontuais, hoje temos programas que o município tem condição de atender. Bauru tem um povo muito solidário”, garante. Por mais que a cidade seja “privilegiada”, na visão dela, o problema é que muitas pessoas escolheram a rua e a situação de miséria. “E aí você pode dizer ‘mas isso é um absurdo’, mas não. Muitas vezes as pessoas dizem que estão bem e que não querem sair dessa situação”, expõe. “É muito difícil a gente generalizar. Cada indivíduo é um indivíduo e as histórias são diversas. O que eu consigo avaliar é que ir pra rua, passar a morar na rua, pode ter vários motivos. A permanência na rua é que se assemelha”. É o que considera Francine Tamos Silva, coordenadora do Albergue Noturno do CEAC (Centro Espírita Amor e Caridade). Na visão dela, o fator que está mais ligado à situação de rua é a dependência química, que é um problema de saúde pública, conforme afirmou. “De treze usuários que moram aqui no momento, treze são dependentes químicos. A dependência química levou eles para a rua? Não necessariamente, mas a rua trouxe a dependência”, alega. Com 65 anos de atividades em Bauru, o albergue, também denominado “Casa de Passagem”, oferece acolhimento, estadia e convívio para indivíduos ou famílias que estejam em situação de rua. Francine lista outras causas da ida para a rua, como o desemprego, a falta de referências devido a um histórico de internações em abrigos e a perda de laços familiares, fazendo com que aumente a presença de idosos em situação de rua, segundo a coordenadora. “Mais Véio” diz que ficou viúvo, e resolveu sair pra rua. Mas continuou trabalhando, como assegura. “Ganhava um dinheirinho e mandava pras minhas filhas. Eu depositava e minha sogra pegava e tal”. Pelo tempo que está na rua, diz que já se acostumou com a vida que leva: “Se eu dormir numa cama, me dói tudo o corpo. Já acostumei a dormir no chão, se eu deitar num colchão, numa cama, no outro dia parece que eu levei um pau, me dói todo o corpo”, revela ele com naturalidade. Apesar de viver na rua por quase 40 anos, “Mais Véio” não perdeu seus laços familiares. Ele tem em Bauru três filhas, além de netos, e os visita regularmente. Passa uns dias com a família e depois volta para a rua, lugar que considera ‘seu’ pedaço na cidade e que lhe proporciona mais liberdade. Casos de pessoas vivendo em situação de rua não são novidade em Bauru. Dorival Jesus Ribeiro, um capoeirista filho de baia42 nos é um recém chegado às ruas da cidade. Diz estar há alguns dias
na rua por conta de uma briga com a esposa, que não aprova que ele beba. “Ela já discutiu comigo, a gente ficou fora de sentido, mas eu não sou um cara agressivo, foi pra evitar confusão mesmo. É melhor eu sair fora do que ficar discutindo”, justifica ele, que já está há “uns par de dia sem trocar ideia com ela”. Dorival sustenta que ficar na rua é melhor que tentar voltar pra casa, por causa das discussões: “É melhor evitar porque uma vez eu levei uma panelada na cabeça, era panela de pressão”. Ele também diz que não tem muito problema com a polícia, que “não invoca” e, como tantos outros em situação parecida, bebe sua pinga. “Eu tenho uma filha, ela tem 15 anos, e to sem ver ela também”, diz com os olhos marejados, pedindo pra fazer o seu registro. “Fala que eu amo a minha filha, eu amo ela demais e ela mora no meu coração”, termina de dizer e bate duas vezes com o punho no peito.
Invisibilidade e ação Pela sua atuação num dos extremos da política assistencial, como é o serviço de alta complexidade, Francine enxerga uma falta de coordenação dos diferentes elementos atuantes nessa área. “Eu vejo que em Bauru falta muita discussão sobre isso, as políticas dificilmente se integram para discutir um caso”, comenta. Na opinião dela, isso acaba dificultando não só o serviço de cada instituição, mas pode ser prejudicial até mesmo para a pessoa atendida; “acho que não é falta de clareza, mas falta de diretriz, falta de protocolo de atendimento”. Ela entende que essa barreira vem da falta de diálogo entre os serviços e as políticas. “Falta os serviços e as políticas se falarem, e terem um único objetivo, porque aqui é cada um por si e Deus por todos, cada um tem sua ideologia e sua forma de trabalhar e muitas vezes elas até não se coincidem, acabam remando para lados distintos e isso dificulta muito”, esclarece. Instituído no ano de 1991, o Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) formalmente deveria se ocupar, entre outras funções, dessa articulação a que se refere Francine. Segundo Helenir Latanzio, assistente social da SEBES e secretária executiva do CMAS, o conselho é um espaço fiscalizador e deliberativo que tem como atividades principais aprovar a política de assistência social do município (formulada pela SEBES) e acompanhar sua execução, orientar e controlar a administração do Fundo Municipal de Assis- 43
tência Social, fixar normas e diretrizes para as organizações da sociedade civil que atuem em Bauru, também fazendo sua fiscalização. É uma forma de tornar mais transparentes as ações da Secretaria do Bem Estar Social e de proporcionar um controle maior da população sobre o poder público, uma vez que sua composição conta com representantes da sociedade civil e representantes de entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Regional de Serviço Social (CRESS-Bauru) e de outros conselhos municipais. Contudo, as reuniões são abertas à toda a população, e acontecem na própria sede da Secretaria, na 1ª quadra da rua Alfredo Maia. “Os Conselhos Municipais são instâncias de controle social, de amplo espaço para discussões, daí ser de suma importância a existência dos mesmos. Suas principais conquistas são a representatividade qualitativa dos diferentes segmentos sociais e a representação paritária entre Poder Público e Sociedade Civil nos Conselhos”, ressalta Helenir. “Os Conselhos Municipais têm autonomia para funcionamento, sendo regidos por Legislação própria. A participação nos Conselhos Municipais é considerada serviço de relevância pública, sendo que seus representantes não recebem nenhum tipo de remuneração”, assinala. Além de membros do poder público e entidades, existem apenas três cadeiras para cidadãos “independentes”: uma para associação de moradores e duas para usuários de programas da assistência social. Segundo Helenir, está em tramitação no conselho uma minuta para alterar a Lei que rege o CMAS, a fim de adequá-lo à realidade atual do município, “inclusive com inclusão em sua composição de maior número de representação dos Trabalhadores e Usuários do Sistema Único de Assistência Social/ SUAS”, informa a secretária. Na frente da Agência da Caixa, “Mais Véio” saúda toda pessoa que adentra o banco. “Boa noite patrão, se tiver um trocadinho pra ajudar a gente, se não tiver nossa amizade continua a mesma”, e logo em seguida abre a porta eletrônica para a pessoa entrar. Muita gente que entra no banco não responde à saudação ou nem olha pra ele. “Esses dias um homem me deu 20 reais. Eu agradeci, ‘que Deus abençoe, que nunca há de faltar’. Ele ouviu isso e voltou falando ‘Me dá aqui de volta que eu vou te dar mais’, aí eu devolvi os 20 conto, ele enfiou no bolso e falou ‘eu não sou seu senhor, muito menos 44 seu Deus’, e foi embora. Eu nem peço nada mais pra ele, é desses
tipo maçom aí, não pode falar de Deus pra esses caras”, relembra ele. “Agora, tem pessoas que senta aqui junto comigo, conversa, nois fala sobre igreja, porque eu também já fui evangélico”, revela. “Me perguntam se eu já tive estudo, mas eu nunca tive. Meu estudo foi o mundo”, diz. A diretora da SEBES Fátima Monari ressalta o caráter universal da assistência social de Bauru. Para ela não é só questão da renda, mas da vulnerabilidade. “Assistência social não é só pra pobre, mas pra quem precisa”. Apesar da universalidade do sistema, como aponta a diretora, a preocupação constante da SEBES é quanto às irregularidades. No argumento do secretário, muitas vezes a pessoa continua recebendo benefícios porque “se apegou” e não quer ser registrado em carteira. “Empregada doméstica por exemplo, ela prefere muitas vezes trabalhar como diarista e não quer a carteira profissional porque teme perder tal coisa”, exemplifica. “Então, é um programa que tem que ser revisto, embora seja um programa nacional de distribuição de renda, mas ele tem que criar outros critérios ou outros mecanismos, porque na medida em que você formaliza, ele passa a ser um cidadão pleno, ele não tá meio excluído no sistema”, diz. Os benefícios referidos pelo titular da SEBES chegam até as pessoas por meio do Cadastro Único para Programas Sociais, reunindo informações socioeconômicas das famílias com baixa renda. A partir desses dados, o Governo Federal seleciona e direciona as famílias para os diferentes tipos de benefício. Em Bauru existem seis benefícios de transferência de renda para a população, desse número, quatro programas são do Governo Federal (Benefício de Prestação Continuada, Bolsa Família, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e Agente Jovem), e dois do Governo do Estado (Renda Cidadã e Ação Jovem). Ao todo, em Bauru, são 104.490 pessoas cadastradas no sistema, distribuídas em 42.716 famílias na cidade inteira. Desse número, 11.566 famílias têm renda de até R$ 85,00 por pessoa no mês, segundo dados de outubro de 2016 do MDSA. Em dezembro de 2016 estavam registradas 11.468 famílias no Programa Bolsa Família, recebendo um valor médio de R$ 174,20. Medida de transferência direta e condicionada de renda, o Programa Bolsa Família (PBF) busca beneficiar famílias pobres ao proporcionar inclusão social através do consumo. Mas o programa tem condicionalidades, como o acompanhamento da frequência esPara o detalhamento dos benefícios sociais em Bauru, ver https://goo.gl/bK8Dz4
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colar para crianças e adolescentes entre 6 a 17 anos e o acompanhamento da saúde das famílias. Segundo o portal do Governo Federal, o Bolsa Família pauta-se na articulação de três dimensões essenciais à superação da fome e da pobreza: promoção do alívio imediato da pobreza, reforço do exercício de direitos sociais básicos nas áreas de Saúde e Educação, e coordenação de programas complementares, como programas de geração de trabalho e renda e alfabetização de adultos, a fim de superar a situação de vulnerabilidade e pobreza. Tais medidas, segundo o Governo, contribuem para que “as famílias consigam romper o ciclo da pobreza entre gerações”. Criado pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), em 2003, o projeto tem influências liberais, por ser um programa que não dá poder discricionário aos governantes para que estes decidam pelo povo. Segundo Carlos Góes, economista e pesquisador do Instituto Mercado Popular, em um artigo no site do instituto, “o Bolsa Família é uma política social descentralizada, onde a decisão sobre como o benefício será gasto é tomada pelos beneficiários, no mercado. É uma política social liberal”. Nesse caso, segundo ele, o papel do governo seria o de transferir recursos para a população, com base em determinadas regras. “A decisão sobre o que, como e quando comprar passou aos indivíduos. Com o Bolsa Família, os recursos ainda são públicos, mas privatizou-se a escolha”, completa. Até mesmo referências do pensamento liberal já teorizaram sobre o assunto, como o próprio Milton Friedman, em seu livro “Capitalismo e Liberdade”. “Ele chega à conclusão de que o melhor sistema é um sistema de ‘imposto de renda negativo’. Nesse sistema, se as pessoas ganhassem abaixo de determinado nível de renda, ao invés de pagar imposto de renda elas receberiam dinheiro do governo”, afirma Góes. Segundo a conselheira do CRESS-SP, o Programa Bolsa Família é pontual e não promove mudanças nas estruturas da sociedade brasileira. “Porém, a distribuição de renda aos mais empobrecidos por meio de dinheiro não é assistencialismo é um dever do Estado”, ressalta ela. “É um direito de qualquer cidadão que ficou desempregado ou que sobrevive de subempregos ou na informalidade e que não desfruta de condições econômicas para assegurar sua sobrevivência. Vivemos numa sociabilidade que exige o dinheiro para poder comprar”. Para o secretário do Bem Estar Social, os casos dos beneficiários devem ser analisados com rigor, pois ele entende a “responsabi-
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Sobre o artigo “As Raízes Liberais do Bolsa Família”, ver https://goo.gl/fT3ae6
lidade fenomenal” que tem o assistente social, ao atender uma pessoa humana. “Por isso é que temos que fazer o enquadramento técnico, e não paternalista, assistencialista, porque eles [assistentes] são preparados pra fazer esse tipo de atendimento e fazer justiça”, afirma. Já Andrea Ferreguti, da Fundato, aposta na iniciativa e proatividade. “O que falta muitas vezes é sairmos da nossa zona de conforto”, provoca. Na opinião dela, não se pode ficar só no escritório, com ar condicionado, esperando o usuário chegar. “Nós precisamos começar a andar um pouco na rua e olhar para os lados”, diz. “Nós temos que ter um olhar detalhado com o nosso entorno, mas o que acontece é que nossa vida, nossa correria não permite mais. Nós estamos vivendo hoje uma sociedade em que é tudo horário. Nós estamos vivendo em uma sociedade de protocolo, esquecendo todo um entorno que deveríamos ter sensibilidade”, reflete. “Quando a gente fala em vulnerabilidade, em desigualdade social, são palavras tão fortes. Que desigualdade é essa que nós estamos vivendo hoje? Nós estamos fazendo essa desigualdade, parte da gente mesmo”. Para Adriana Brito da Silva, do CRESS-SP, a desigualdade social vinda da combinação de queda na renda e desemprego estrutural vai impulsionar a necessidade de aumentar a cobertura dos socioassistenciais. “No entanto”, continua ela, “os governos parecem que não estão preocupados, haja vista os planos de congelamentos sobre os gastos públicos que incidem diretamente na vida da população mais empobrecida”, critica.
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No horizonte, os prédios da região central se enfileiram à vista do Bauru XVI.
À esquerda, esgoto na rua reflete o muro do condomínio fechado, no Jd.Niceia.
PARTE 2- Moradia, habitação e urbanização:
À direita e acima, Residencial Três Américas II, do Minha Casa Minha Vida.
Parte 2
Moradia, habitação e urbanização Ocupar e viver a cidade Esses cadernos foram encontrados entre os papéis de Thomas Morus1. Publicamo-los sem lhes fazer a menor alteração. - Pois então, disse Morus, faça a descrição desta ilha maravilhosa. E peço que não suprima nenhum detalhe. - Com muito gosto, respondeu Rafael; essas coisas estão sempre presentes à minha memória; mas a narrativa exige tempo. - Nesse caso, retrucou Morus, vamos então jantar primeiro; teremos depois todo o tempo necessário. - Perfeitamente, acrescentou Rafael ao anfitrião. Depois do jantar, sentam-se num banco para a conversa. Observando a atenção dos companheiros, Rafael faz uma pausa, toma fôlego, e começa o relato. “A ilha da Utopia tem cinqüenta e quatro cidades espaçosas e magníficas. A linguagem, os hábitos, as instituições, as leis são perfeitamente idênticas. As cinqüenta e quatro cidades são edificadas sobre o mesmo plano e possuem os mesmos estabelecimentos e edifícios públicos, modificados segundo as exigências locais. Os habitantes da Utopia aplicam aqui o princípio da posse comum. Para abolir a idéia da propriedade individual e absoluta, trocam de casa a cada dez anos e tiram a sorte da que lhes deve caber na partilha. Quando há numa cidade mais gente do que deve conter, o excedente vai preencher os vazios das cidades menos povoadas. Para nós, quantos séculos nos serão precisos para aprender deles o que há de perfeito em suas instituições? Eis o que lhes dá a superioridade do
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bem-estar material e social, embora os igualemos em inteligência e riqueza: essa atividade do espírito dirigida incessantemente para a pesquisa, o aperfeiçoamento e a aplicação, das coisas úteis”. Rafael Hitlodeu, navegador português, ainda jovem deixou sua família e sua pátria para correr o mundo no espírito de aventura que tomava conta do início dos anos 1500. Ligou-se ao explorador Américo Vespúcio2, e foi com ele em expedições ao Novo Mundo recém descoberto e em sua homenagem batizado: a América. Porém, Rafael não voltou à Europa. Por vontade própria ficou em terras selvagens, sem temer “a morte em solo estrangeiro”, segundo consta. Percorreu junto com outros cinco espanhóis vastos territórios, conhecendo uma multidão de países. Até que um deles o chamou a atenção. No início dos anos 1500, Thomas Morus, diplomata, escritor e jurista inglês, escreveu aquele que seria uma das obras mais importantes da política no Renascimento - não apenas pelo seu conteúdo mas pelo legado semântico que deixou. O livro “Utopia - Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia”, de 1516, é a antítese da sociedade europeia do século XVI e conta a história de um paraíso terrestre. Um local alternativo onde a sociedade é perfeita, descoberta por Rafael Hitlodeu, explorador fictício. Com esse livro, o autor Thomas Morus, que depois foi morto por razões religiosas na Inglaterra Anglicana e canonizado como mártir na Igreja Católica, trouxe a ideia de um “a-topos”, o “não lugar”, palavra que ele criou a partir de elementos da língua grega. Utopia passou a ser usada como descrição de qualquer projeto ideal de sociedade, qualquer sonho humano aparentemente inatingível, e permanece como sinônimo daquilo que está distante. Mas a utopia um dia existiu no Brasil. Morus pôde ler as correspondências vindas do Novo Mundo, como as cartas de Pero Vaz de Caminha3 e Américo Vespúcio, e teve inspiração para sua Utopia a partir desses relatos. Tanto é que situou sua ilha imaginária ao sul do Equador, onde os exploradores europeus começavam a navegar. “Na Utopia o homem devia viver de acordo com a natureza e seguir a voz de seus instintos. Morus louvava os índios por seu desdém pelas posses”, afirma John Hemming, autor especialista dos povos Incas e indígenas da região amazônica, no seu livro “Ouro Vermelho: A conquista dos Indígenas Brasileiros”. “Utopia causou grande impacto ao ser publicada, o qual se repetiu ao ser republicada por Rousseau, em 1780. Foi lida por Marx e Lênin, que mencionaram a indiferença 50 dos índios pelo ouro”, relata o autor.
A cidade como direito A utopia de Morus é uma obra do Renascimento europeu, no qual “o ser humano encontra-se no centro do mundo e está nas suas mãos decidir o seu destino”, explica Fátima Vieira, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em entrevista ao jornal português “Público”. Essa ideia reverbera nas palavras do sociólogo e urbanista Robert Park, citado por David Harvey em seu artigo sobre o “Direito à Cidade”, segundo qual a cidade é “a tentativa mais bem-sucedida do homem de refazer o mundo em que vive mais de acordo com os desejos do seu coração. Ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo”. O ato do ser humano se moldar conforme sua atuação no desenvolvimento da cidade faz parte daquilo que foi chamado de “Direito à Cidade”, ideia proposta pelo filósofo francês Henri Lefebvre4 em 1968, no livro de mesmo nome. Refere-se a uma mudança nos poderes que existem dentro do espaço urbano. Ele não enxerga a cidade como um “pano de fundo”, um tecido sobre o qual a vida e os acontecimentos se sucedem. Lefebvre entendia o espaço urbano como algo produzido ideológica e politicamente. “Urbano é a simultaneidade, a reunião, é uma forma social que se afirma”, disse. O pensador francês colocou reflexões da filosofia para entender o espaço urbano. Como ele afirma no livro “Direito à Cidade”, o espaço urbano tinha não só a dimensão física e material - “espaço percebido”, mas também existia enquanto espaço concebido (vindo do planejamento de urbanistas e engenheiros) e enquanto espaço vivido (o da experiência de cada pessoa dentro desse lugar). O pensamento de Lefebvre para a geografia influenciou as reflexões sobre espaço urbano no século XX, e sua visão de que o espaço é socialmente produzido e conta com essas dimensões do vivido-percebido-concebido repercutiu nos trabalhos de geógrafos como David Harvey e Milton Santos. Como explica João Telésforo Filho, Bacharel em Direito, em artigo sobre Direitos Humanos, Cidades e Desenvolvimento, o filósofo francês vai repudiar todo caráter alienante que surge ao se atribuir uma solução administrativa ou técnica aos problemas urbanos. Nesse ponto de vista, o cidadão não pode mais apenas ser um objeto no espaço social, algo sem influência nem atuação no desenvolviPara entrevista do jornal “Público”, ver https://goo.gl/SnFu0e Para artigo sobre Direito à Cidade, de Telésforo Filho, ver https://goo.gl/2Qx08G
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mento da cidade. Para Lefebvre, o controle e as decisões da “produção de espaço urbano” deve sair das mãos do capital e do Estado e ir para seus habitantes. O filósofo ainda entendeu a relação existente entre acumulação de capital e urbanização, pois “a concentração da população acompanha a dos meios de produção”, como argumentou em seu livro “A Revolução Urbana” (1972). Por esse motivo é que ele entende a urbanização moderna como um ponto de uma lenta evolução das cidades no decorrer da história, num processo que a industrialização é fundamental para a reflexão sobre a época atual. “A industrialização caracteriza a sociedade moderna”, sintetiza ele. É a presença da industrialização, segundo Lefebvre, que causou as transformações no espaço urbano e, por consequência, no modo como as pessoas podem se apropriar dele, das ruas, construções, campos e praças. Para ele, a rua não é “simplesmente um lugar de passagem e circulação”. Nesse sentido, produziu reflexões que são atuais hoje nas grandes cidades. Em 2017, no dia do aniversário da cidade de São Paulo, 25 de janeiro, as velocidades máximas das marginais dos rios Tietê e Pinheiros voltaram aos seus limites anteriores, passando de 70km/h para 90km/h na via expressa. Essa foi uma das primeiras medidas tomadas pelo prefeito eleito João Dória (PSDB), e uma promessa de campanha. Os limites tinham sido reduzidos na gestão anterior, do petista Fernando Haddad, com a justificativa de reduzir acidentes. A prefeitura precisou de um recurso na Justiça para reajustar as velocidades. Em 1972, Lefebvre tinha escrito que aproximava-se “o dia em que será preciso limitar o direitos e poderes do automóvel, não sem dificuldades e destruições”. Para ele, a invasão dos automóveis e a pressão dessa indústria e do lobby do automóvel, fazem dele um objeto-piloto, do estacionamento uma obsessão, da circulação um objeto prioritário, destruidores de toda a vida social e urbana. “A rua”, continua ele, “é o lugar do encontro, sem o qual não existem outros encontros possíveis nos locais determinados (cafés, teatros, salas diversas). Na rua, teatro espontâneo, torno-me espetáculo e espectador, às vezes ator. Nela efetua-se o movimento da mistura, sem os quais não há vida urbana, mas separação, segregação estipulada e imobilizada”. Conforme acreditava, quando se suprimiu a rua é que foi possível ver as consequências: “a extinção da vida, redução da 52 ‘cidade’ a dormitório, a aberrante funcionalização da existência”.
Como analisa Telésforo Filho, para Lefebvre o direito à cidade não se refere apenas à construção de moradias ou bens materiais, mas requer uma sociabilidade alternativa, uma opção diferente, frente à sociedade do consumo ou à sociedade burocrática planificada. Essa ideia ecoa na cidadania, pois a participação no espaço público é a raiz da democracia. “Trata-se de uma forma de democracia direta, pelo controle direto das pessoas sobre a forma de habitar a cidade, produzida como obra humana coletiva em que cada indivíduo e comunidade tem espaço para manifestar sua diferença”, argumenta. A ligação entre desenvolvimento econômico e a urbanização foi exposta por Lefebvre a partir da ocupação da terra pela indústria. Segundo ele, num primeiro momento, a indústria surge em locais onde existem fontes de energia (carvão, água), fontes de matérias-primas (metais, têxteis) e reserva de mão-de-obra. Se a indústria se aproxima das cidades, “é para aproximar-se dos capitais e dos capitalistas, dos mercados e de uma abundante mão-de-obra, mantida a baixo preço”. Baseado nisso, conclui que ela poderia se implantar em qualquer lugar e, portanto, cedo ou tarde chegaria nas cidades preexistentes. Ou constituiria “cidades novas, deixando-as em seguida, se para a empresa industrial há algum interesse nesse afastamento”.
A cidade como finança Seguindo a trilha aberta por Lefebvre, o geógrafo David Harvey explora a relação do capital com o espaço urbano, e compreende que o crescimento exponencial das cidades é um sintoma da crise de acumulação capitalista, e ressalta a urgência de democratizar a experiência urbana. Para ele, as cidades surgiram nos lugares onde existe produção excedente - aquela que vai além das necessidades de subsistência de uma população, fazendo com que a urbanização sempre tenha sido um fenômeno de classe. As crises sistêmicas do capitalismo ocorrem, como interpreta Harvey no artigo “Direito à Cidade”, devido à superacumulação do capital. Diante disso, segundo ele, fatores históricos e decisões políticas podem reverter, em algumas situações, esse cenário de crise. Exemplo disso foi a instabilidade dos anos 30, que surgiu após a “Grande Depressão” de 1929. O esforço dos EUA na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) resolveu temporariamente a necessidade de se investir o capital excedente. No final da década de 1960, com a crise Para artigo “O Direito à Cidade”, de David Harvey, ver https://goo.gl/3zYKbc
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do modelo fordista, a saída foi flexibilizar a acumulação de capital. Na hipótese de Harvey, a urbanização tem um “papel ativo na absorção da produção excedente que os capitalistas produzem perpetuamente em sua busca por lucros”. “Qual foi o papel da urbanização para estabilizar essa situação?”, pergunta o geógrafo. “Nos Estados Unidos, o consenso é que o setor imobiliário foi um importante estabilizador da economia. O mercado imobiliário absorveu diretamente grande volume de dinheiro, com a construção de residências e escritórios no centro das cidades e nos subúrbios”, explica. Com esse aumento da procura, aumentou-se o preço dos imóveis. Entretanto, continua ele, a globalização fez esse fenômeno se mundializar, com booms imobiliários em diversos países. A China, por exemplo, “vem usando quase a metade de todo o cimento mundial desde 2000. Mais de 100 cidades chinesas já ultrapassaram a marca de 1 milhão de moradores nesse período, e lugares que antes eram pequenas aldeias, como Shenzhen, se tornaram grandes metrópoles de 6 a 10 milhões de pessoas”, argumenta. Esse processo de urbanização global dependeu, na visão dele, da criação de novas instituições e arranjos financeiros, para organizar o crédito e sustentar o desenvolvimento urbano. Uma das novidades financeiras foi a venda para bancos do mundo todo de títulos (os papéis do mercado financeiro) baseados nas dívidas que as pessoas tinham com suas hipotecas (as garantias dadas para honrar o pagamento de moradias financiadas). Isso ficou conhecido como “hipotecas subprimes”, aquelas que representavam negócios de alto risco. Segundo a arquiteta e urbanista brasileira Raquel Rolnik, que comandou a Relatoria Especial da ONU para moradia digna, de 2008 a 2014, essas hipotecas eram negócios de risco porque foram inicialmente promovidas em alguns países desenvolvidos como forma de expandir a propriedade privada a famílias de “alto risco creditício”, em geral de baixa renda. Tal fato facilitou a expansão do crédito imobiliário, ou seja, o financiamento da moradia com base no mercado virou uma importante atividade do setor financeiro, e acabou contribuindo para uma bolha generalizada dos preços dos imóveis, a chamada “Bolha Imobiliária”. No primeiro relatório encaminhado por Rolnik à Assembleia Geral da ONU, em 2009, ela fez a análise das origens da crise econômica de 2008, originada na crise da Bolha Imobiliária. Em
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Relatórios da Crise Econômica, de Raquel Rolnik, ver https://goo.gl/ZWeP3R
seu entendimento, diversas políticas promoveram a liberalização dos mercados imobiliários, fazendo aumentar mais ainda o negócio hipotecário de alto risco (subprime). Junto a isso, segundo ela, ocorreu uma “subestimação dos riscos” por parte dos investidores, além da ausência dos devidos cuidados e atenção por parte dos reguladores e supervisores (os governos) e do aumento da influência das instituições financeiras e da especulação imobiliária. Em meio a isso, “protegeu‐se muito pouco os consumidores que, muitas vezes, foram vítimas de práticas abusivas”, relata. Os credores e investidores (aqueles que oferecem crédito), conforme explica Rolnik, usaram medidas artificiais que davam um status qualificado para as pessoas que buscavam fazer empréstimos, mesmo para aquelas que não poderiam honrar com esse pagamento. “Assim, a concessão de empréstimos de forma descuidada e irresponsável, embora não seja a única causa, contribuiu e propiciou um aumento irreal no preço da moradia”, explica. “Entre o verão e o outono de 2007, o colapso do mercado subprime começou a atingir os bancos dos Estados Unidos e da Europa que haviam realizado investimentos nesse mercado”. Essa era a Crise Financeira de 2008 tomando forma. Para lidar com o colapso, uma das formas que o Poder Público encontrou fo injetar dinheiro no Mundo do Capital, “dando apoio financeiro a determinados bancos e empresas e, em alguns casos, estatizando algumas instituições”, afirma Rolnik. Sua conclusão, encaminhada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em fevereiro de 2009, foi de que a retirada do Estado do setor de habitação, a mercantilização da moradia e seu uso cada vez maior como objeto de investimento e especulação “provoca profundo impacto no exercício do direito à moradia adequada”. Em seu parecer, a crise, e suas origens no mercado habitacional, “refletem falhas fundamentais nas atuais políticas econômicas e habitacionais, revelando que os mecanismos de mercado são incapazes de prover moradia financeiramente acessível a todos”, e recomenda: “as causas fundamentais da crise hipotecária, e a consequente crise financeira global, devem ser examinadas para que seja avaliado o seu impacto sobre o direito à moradia adequada”. Para Ilan Lapyda, a financeirização estimula uma grande produção de capital fictício, o que cria um ambiente de fragilidade no âmbito de todo seu sistema. Por conta disso, segundo ele, é que se tem a necessidade de governos e seus bancos centrais funcionarem 55
como “emprestadores de última instância”. “Na crise de 2008 os salvamentos ultrapassaram a casa de 1 trilhão de dólares, socializando os prejuízos privados e evitando o colapso total”, afirma. O dinheiro faz do solo uma mercadoria, um ativo negociável. Terrenos e construções espalhados pela cidade deixam de ter suas características próprias para assumirem dimensões cada vez mais abstratas e monetarizadas, podendo ser removidos, vendidos ou destruídos para, enfim, servirem sem obstáculos aos propósitos da acumulação financeira. Essa é a visão da urbanista brasileira sobre as cidades nesse processo que ela chama de “financeirização da moradia” - a transformação de um direito humano numa ferramenta de geração de lucro para empresas. Em seu trabalho na relatoria da ONU para Moradia Digna, Rolnik entendeu que o mercado não seria capaz de promover moradia adequada à população, uma vez que essa crença foi abalada pela crise hipotecária-imobiliária de 2008 nos Estados Unidos. Segundo ela, “muitos analistas apontaram como razões da crise a falta de regulação do sistema financeiro, porém ela reflete também falhas das políticas habitacionais, como o foco excessivo na casa própria como a única solução para garantir acesso à moradia”. Para a urbanista, deve-se apostar numa diversificação das políticas habitacionais, e não apenas focar no modelo único de financiamento da casa própria. Pela sua posição na ONU, ela pôde acompanhar de perto, e ao redor do mundo, os processos de disputa sobre a terra e pela moradia, fazendo sua denúncia em relatórios temáticos durante os seis anos em que esteve na função (2008-2014). Segundo Rolnik, atualmente a moradia urbana passa por um processo de financeirização. Esse processo ocorre em meio a uma tendência mundial de mudança no paradigma das políticas habitacionais. Se antes a moradia estava vinculada à lista de direitos sociais, promovida pelo Estado, hoje está calcada no mercado e é promovida por empreiteiras e bancos. “Essa mudança contou com uma participação ativa dos governos no sentido de disponibilizar e fomentar o crédito hipotecário, acessado pelas pessoas para comprar suas casas”, disse em entrevista ao portal “A Tarde”. Como alegou Harvey, o investimento na transformação das cidades traz junto de si ondas de reestruturação urbana que ele chamou de “destruição criativa” - processos de revitalização e transformação com uma dimensão de classe, “uma vez que são os pobres, os
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Para a entrevista de Rolnik ao “A Tarde”, ver https://goo.gl/eXaIdO
menos favorecidos e os marginalizados do poder político que sofrem mais com o processo”. Segundo ele, a urbanização “vem desempenhando um papel fundamental no reinvestimento dos lucros, a uma escala geográfica crescente, mas ao preço de criar fortes processos de destruição criativa que espoliaram as massas de qualquer direito à cidade. O planeta como canteiro de obras se choca com o ‘planeta favela’”, resume.
A cidade periferia “No rosto da miséria onde nasce e cresce descalço no chão de terra, O monstro da selva de pedra. Em meio à violência do descaso social E todo lixo que há tempos o meu povo herda Não reclama de viver na lama, sem saneamento básico Quem pede meu voto, posa pra foto, e me deixar ter um fim trágico Por que? Ninguém se comove toma a minha dor e se move e quando faz, alguém se promove Às custas do pobre o esnobe burguês ensina o seu filho a chamar o meu de marginal A mídia nos varre pra debaixo do tapete, pra não sujar a imagem do cartão postal Preferem mostrar uma bela vista, Nossa miséria e guerra urbana não atrai turista, Mas pedofilia e prostituição infantil de mão dada não dá nada Dos filhos deste solo és mãe gentil, ó pátria amada Enquanto o governo não ajuda o povo na periferia Nasce um Bin Laden por dia A sociedade não faz sua parte e na periferia Nasce um Bin Laden por dia Nossa guerra é fria, interna, vazia e na periferia Um Bin Laden por dia” Dom Black5 - Um Bin Laden por dia A história da humanidade no planeta Terra nunca foi como é hoje, quando a maior parte dos seres humanos vive em cidades, fazendo do século XXI o primeiro século urbano. Segundo as Nações Unidas, 54,5% da população mundial mora em áreas urbanas, percentual que pode chegar a 70% em 2050, de acordo com estudo do Centro Estudo do IPC-IG, ver https://goo.gl/K4khK8
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Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo - IPC-IG. A rápida urbanização do planeta não veio acompanhada de um crescimento das oportunidades e da igualdade. Isso porque quase 1 bilhão de pessoas pobres vivem em favelas e assentamentos informais espalhadas em aproximadamente 100 mil cidades do mundo todo, segundo a ONU, que também estima que esse número triplicará até 2030. O Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-HABITAT) faz o alerta para o crescimento da população em favelas, que já representa cerca de dois terços da população urbana mundial e, se a população continuar a crescer, até 2020 mais 300 mil pessoas se somarão a esse total. Para se ter uma ideia do tamanho do impacto do crescimento da população urbana mundial, basta se analisar sua evolução. De acordo com o Centro Regional de Informação das Nações Unidas - UNRIC, os habitantes das cidades, que somavam 746 milhões de pessoas em 1950, passaram a ser 3,9 bilhões em 2014. Segundo o UNRIC, a Ásia aparece em primeiro lugar como continente com a maior população urbana - 53% do total das pessoas no mundo, seguida pela Europa, com 14% e pela América Latina, com 13%. A expectativa do Centro é de que até 2045 se ultrapasse a marca de 6 bilhões de pessoas, sendo que a maior parte desse crescimento se dará em países em desenvolvimento. Esses dados mostram um fato concreto sobre as cidades do mundo: a maior parte da população pobre viverá em assentamentos informais ou em favelas. Segundo o urbanista e historiador americano Mike Davis6, em seu livro “Planeta Favela” (2006), por volta do ano 2035, a maior parte dos pobres do mundo estará em favelas, e não mais na zona rural, como tem sido até hoje. “Pelo menos metade da próxima explosão populacional urbana do Terceiro Mundo será creditada às comunidades informais. Dois bilhões de favelados em 2030 ou 2040 é uma possibilidade monstruosa, quase incompreensível, mas a pobreza humana por si só superpõe-se às favelas e excede-as”, expõe ele no livro. E o crescimento das favelas se dá juntamente com o pano de fundo de ascensão do neoliberalismo. Segundo Davis, “o rápido crescimento urbano no contexto do ajuste estrutural, da desvalorização da moeda e da redução do Estado foi a receita inevitável da
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Estimativa da ONU sobre população urbana, ver https://goo.gl/FgDGgc Nova Agenda Urbana da ONU-Habitat, ver https://goo.gl/Zx2ksA Números do UNRIC sobre crescimento urbano, ver https://goo.gl/tNVJmR
produção em massa de favelas”. Em seu raciocínio, as áreas rurais foram perdendo sua “capacidade de armazenamento” e as favelas acabaram tomando esse lugar e se tornando o caminho para a mão-de-obra excedente, que para sobreviver submete-se cada vez mais à “auto-exploração”. “A força de trabalho de um bilhão de pessoas foi expelida do sistema mundial, e quem consegue imaginar algum cenário plausível, sob os auspícios neoliberais, que a reintegre como trabalhadores produtivos ou consumidores em massa?”, questiona. Pela “monstruosidade” dos fatos, ele cunhou o termo “planeta favela”, referindo-se aos próximos passos da urbanização do globo. No livro, ele busca expor o novo contexto da luta de classes, que se dará entre os que vivem dentro dos muros como em uma “cidade medieval”, e a “humanidade excedente”, que vive fora dela. Para ele, “a favela desafia a teoria social a perceber a novidade de um verdadeiro resíduo global sem o poder econômico estratégico da mão-de-obra socializada, mas maciçamente concentrado num mundo de barracos em torno dos enclaves fortificados dos ricos urbanos”. A argumentação do americano expõe o movimento das classes sociais sobre o solo urbano, que será cada vez mais segregador, segundo ele. “Essa lógica é muito simples”, anuncia Fernanda Nascimento Corghi7, arquiteta e urbanista. Para ela, a disputa de classes em torno do território é “muito evidente”. “Toda vez que a gente falar de ocupação do território, a gente vai estar falando de ocupação, de fragmentação e de vulnerabilidade socioespacial. A pessoa pobre sempre vai estar na franja, na periferia, no lugar que sobrou. Nunca à mercê das melhores áreas da cidade formal”, diz. A urbanista foca sua análise na sucessão do solo urbano e no fato de que “quem era dono da cidade continua sendo e as gerações vão continuar a ser”. Segundo ela, é nesse momento que entra em cena o poder público, que deve estabelecer uma Política Urbana, colocando diretrizes e planejamento para a ocupação do solo e criando mecanismo para impedir ou minimizar a especulação imobiliária. “Hoje você pega um loteamento e compra ele por R$ 50 mil. Se você esperar 10 anos esse lote triplicou ou até quintuplicou seu valor”, explica ela. “Isso porque as casas que foram chegando ao redor colocaram dinheiro na região”, diz. “Quem é dono dessa terra e quem já tem o olhar de empreendedor na cidade, vai comprando terra já pensando que quando a cidade chegar, ele já vai ter lugar de terra barata pra investir”. Nesse sentido, ela ressalta também a importância dos gestores do Poder Público na destinação da terra e na sua função.
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“Se chega um prefeito que também não entende a função pública da terra, às vezes ele pega, loteia terrenos e vende. Ele não vai deixar a terra para virar Área de Preservação, mata ciliar, ou deixar pra gente pobre, ele vai lotear. Então, mesmo a função da terra que deveria ser do público, o próprio gestor não entende a função do espaço público”. “Hoje o papel do poder público tem sido o de ser o braço direito do capital”. É o que crava o urbanista e professor da Unesp José Xaides. Para ele, os prefeitos e gestores, em sua maioria, são cúmplices do poder econômico. “O poder público, que é quem deveria regulamentar as leis em favor da maioria, é omisso pois não quer fazer o enfrentamento com as classes dominantes, com os donos de terra, os grandes investidores, aqueles que pagam as campanhas políticas”, explica. “Eles [prefeitos] não estão lá pra defender os interesses da maioria, e sim os de meia dúzia de pessoas que são seus parceiros e seus iguais”. Pela lógica da especulação imobiliária, existem também os chamados “vazios urbanos” - terras que ficam propositalmente inativas e sem uso, a fim de que o processo de urbanização e melhoria na infra estrutura, que acontece ao redor deles, acabe valorizando seu preço. De acordo com o Plano Diretor de Bauru, inúmeras glebas sem utilização situadas no perímetro urbano estão esperando a valorização imobiliária, “servindo de depósito de lixo e criação de gado, propiciando o desenvolvimento de epidemias graves, como a Leishmaniose”. Além disso, conforme o documento, os terrenos vazios funcionam como barreiras que impedem a continuidade da urbanização, o que força a expansão do perímetro urbano, aumentando o trajeto do transporte público e encarecendo a implantação de infra-estrutura. Ainda segundo o diagnóstico do plano, na época (2008), os lotes vagos correspondiam a 40% do total de lançamentos de IPTU em Bauru, um “número significativo”. Para Fernanda, o problema dos vazios impacta também no processo de periferização da cidade, que faz com que os moradores mais pobres procurem áreas cada vez mais distantes do centro para darem conta de pagar pela habitação. Segundo a urbanista, isso se vê também nos empreendimentos do Minha Casa Minha Vida (MCMV). “Quando você pega um programa como o MCMV, se a prefeitura não der a área, a pessoa vai ter que comprar. E aí onde que ela vai conseguir comprar? Nunca ela vai pegar uma área bem localizada ou com muito movimento, ela vai sempre pegar uma área periférica”
Pra situar: O porquê da moradia adequada A Lei garante: o uso da propriedade urbana deve ser feito em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental. No entanto, ainda é preciso avançar alguns passos para que isso se torne realidade. De acordo com uma cartilha elaborada pelo Ministério das Cidades, a situação urbana brasileira é resultado de políticas de planejamento e gestão urbana excludentes, pois não levam em conta as necessidades específicas da população. Essa lógica de urbanização atende a setores restritos da sociedade, e tem como consequência a formação de vazios urbanos, surgidos “como resultado de processos desarticulados de aprovação de loteamentos ou práticas conscientes de especulação imobiliária”, diz a cartilha, explicando que com a justificativa de diminuir custos para produzir casa própria, o Poder Público colocou a habitação popular fora dos centros urbanos, “em terrenos desprovidos de infraestrutura, equipamentos públicos, serviços essenciais e oferta de emprego”. Isso é conhecido como periferização, e faz as populações mais pobres serem cada vez mais empurradas para longe do centro. Como salienta o documento, aliando política urbana, habitacional e fundiária é possível produzir habitação social em zonas consolidadas e centrais da cidade.
A vida no Minha Casa Minha Vida Sábado, por volta de dez horas da manhã. Condomínio Residencial “Três Américas - II”, Núcleo Edson Silva (Bauru XVI), zona oeste de Bauru. O vai-e-vem de pessoas pela portaria já anuncia mais um fim de semana que chega na periferia da cidade. Uma rua de 200 metros liga o residencial ao restante do bairro. Nela, crianças sobem e descem de bicicleta, moradores voltam com sacolas de compras ou saem à pé para a cidade. Na portaria três ou quatro pessoas se revezam nas cobranças com o síndico dos prédios. O movimento de pessoas é intenso dentro do condomínio. Na região, área de urbanização recente, ainda é possível ver marcas que guardam traços do seu passado rural. Nas duas margens da rua a vegetação assemelha-se com uma pastagem. Mais para baixo, próximo ao córrego Água da Grama, construções que um dia
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foram estábulos resistem diante das novas edificações. Por cima do córrego passa a rua que dá para o condomínio. Nas chuvas de 2015, a enxurrada levou aquele trecho, isolando os moradores e impossibilitando a saída do residencial. Inaugurado em 2014 com a presença da ex-predidenta Dilma Rousseff, o Condomínio Três Americas II é um empreendimento do programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal, destinado a famílias com renda de até 3 salários mínimos. São 24 blocos com 16 apartamentos distribuídos nos 4 andares de cada prédio, num total de 384 apartamentos que comportam aproximadamente 1300 pessoas, de acordo com o síndico Cristian Anderson, que considera o residencial “uma mini cidade”. O condomínio foi levantado pela “ISO Construções”, a um custo de cerca de R$ 24 milhões, segundo o site da Prefeitura de Bauru. Vitrine da Política Habitacional brasileira, o Programa MCMV foi criado pelo Governo Lula em 2009, com a finalidade de suprir o déficit habitacional brasileiro, principalmente aquele que diz respeito às populações de baixa renda. Gestado em 2008, ano da crise imobiliária-financeira mundial, foi pensado como meio de retomada do crescimento econômico, como afirma o cientista político Alexandre Romagnoli, em artigo de análise do programa. “Somando a crise internacional que passa a influenciar a conjuntura econômica do país à decisão do Governo em combatê-la, privilegiando o setor da construção civil (dentre outros), temos o impulso necessário para a constituição do Programa “Minha Casa, Minha Vida”. Claro que não podemos ignorar sua face social, mas é exatamente como uma ação anticíclica que o programa é amplamente reconhecido inicialmente”. O Minha Casa Minha Vida funciona com subsídios que o Governo Federal paga para as construtoras realizarem as obras dos empreendimentos. Após a seleção das famílias pelas prefeituras, acontece o acerto do contrato com a Caixa Econômica Federal (CEF), que opera o programa. Na faixa destinada à população de menor renda, cabe às famílias pagar, no prazo de 10 anos, parcelas que variam de R$ 25,00 a R$ 80,00, num equivalente a 5% da renda total declarada. O Governo Federal, por meio do Ministério das Cidades providencia o subsídio das construções, além de estabelecer as dire-
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Sobre a inauguração do Residencial Três Américas II, ver https://goo.gl/Ai6wmh Ficha Técnica ISO Construções, ver https://goo.gl/Jb3G8P Custos do Residencial, segundo a Prefeitura de Bauru, ver https://goo.gl/41VlLf Artigo de Alexandre Romagnoli, ver https://goo.gl/6e33fl
trizes sobre quem vai poder habitar as moradias e sobre as condições de contratação de empreiteiras. De acordo com o portal do Programa na internet, o MCMV tem quatro faixas. A Faixa 1 é direcionada para famílias com renda de até R$ 1.800,00, e oferece o subsídio máximo do programa - até 90% do valor total do imóvel. Em seguida vem a Faixa 1,5 com famílias de renda até R$ 2.350,00 e oferece até R$ 45.000,00 de subsídio, com 5% de juros ao ano. O Faixa 2, com famílias que ganham até R$ 3.600,00, oferece subsídio de até R$ 27.500,00 dependendo da renda e do valor do imóvel. A última parcela, Faixa 3, é voltada para famílias que ganham até R$ 6.500,00 e não oferece subsídio na compra, mas garante uma taxa de juros de 8,16% ao ano. Segundo Raquel Rolnik, o Programa MCMV é o representante da lógica financeira, configurando o que ela chama de “uma política industrial que beneficia, ao fim, bancos e construtoras”. Ela afirma que, desde o começo, a política habitacional brasileira teve o caráter tributário, em que a compra da casa própria é produzida por construtoras e acessada pelas pessoas por meio do crédito. “No modelo do MCMV, você tem empresas que produzem um produto regulado pelo Estado. E o Estado subsidia o comprador, para que ele possa adquirir o produto. É a exacerbação máxima de uma lógica de mercado, tanto é que o programa foi pensado para ser uma ação de fomento à indústria da construção civil, num momento de crise econômica”, critica. “No caso do Condomínio Três Américas II o planejamento foi péssimo: há pouco tempo não tínhamos ônibus circular, pois não existia rotatória. O único acesso (a rua) é ridículo, afunila com a população do Três Américas I, dificultando ao máximo o fluxo de transeuntes (pois nunca teve calçada) e veículos”, indigna-se Cristian, o síndico. “A saída, de dentro do nosso condomínio, quando da “visita” do lixeiro, é bloqueada, pois a lixeira fica “quase em cima” do portão. Caminhão de reciclado da SEMMA não sei nem se existe... Isso é abandono. Como se faz a um animal que se deixa na beira da estrada”, compara. A rua que chega até o residencial é seu único acesso e também possui como característica ser íngreme, e se reflete até mesmo nos afazeres dos moradores. “O aclive na saída do condomínio desestimula até os mais novos, que dirá os idosos e deficientes, obrigando-os a se enclausurar em seus apartamentos. O descaso rechaça o direito à igualdade e dignidade”, observa Cristian. Portal MCMV na Internet, ver https://goo.gl/JrsKHh
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Para o professor Xaides, o MCMV em Bauru não resolveu problemas históricos da habitação, como melhoria da moradia, maior inserção na cidade e a existência de favelas. “A maior parte dos grandes conjuntos habitacionais foi feita nas periferias, sem pensar nos impactos de vizinhança, nem nos conflitos com equipamentos públicos”, diz. “Em casos como o Três Américas, esses conjuntos foram verdadeiras cidades anexadas ao perímetro urbano, em locais de expansão para fora da cidade e que não tinham nenhuma infra estrutura e condições nenhuma de atender esse público”, salienta. Cristian também ressalta os problemas quanto à oferta de equipamentos públicos. Para ele, deve-se “cumprir realmente e provar por ‘a’+’b’ que existe a estrutura (escola, transporte, acesso...) e se ela é segura de se viver, que a pessoa vai se restabelecer na vida e que viverá melhor e não com mentiras de que aquilo é de graça e o governo vai sustentá-las o resto da vida, como acontece”. “No condomínio em si o projeto é bom. O que eu vou reclamar? Não é um sonho? Eu esperei com paciência no Senhor e ele ouviu o meu clamor. Tem pessoas que não dá valor no que Deus faz”, conta Josefa Ortiz Calças, moradora do Três Américas II. Hoje avó, dona Josefa criou os filhos sozinha, depois que o marido a abandonou. “Quando meus filhos já estavam grandes, todos trabalhando, aluguei uma casa só pra mim. Aí cada um deles teve sua vida, casaram, e eu continuei pagando aluguel. Sempre pedindo a misericórdia de Deus, porque antes de vir pra cá eu tava pagando R$ 980,00 de aluguel”, conta ela. “Era uma casinha ruim, caindo. A porta mal fechava, eu dormia em cima do colchão, no chão e passava até ratazana em cima de mim”. Dona Josefa conta que as etapas de seleção envolveram um primeiro momento de “peneira”, feita no Estádio Alfredo de Castilho, do Noroeste, e uma seleção final realizada na Instituição Toledo de Ensino - ITE. Até que pôde ver seu nome no Diário Oficial de Bauru, em 21 de março de 2014 - que ela recortou e guarda até hoje. “Nos primeiros dias aqui eu acordava e pensava ‘nossa, o que eu tô fazendo na casa dos outros?’ e Deus foi abençoando, eu não posso reclamar de nada. A prestação que a gente paga é R$ 34,00 por mês, R$ 110,00 de condomínio, vou reclamar de quê? Pra quem pagava 980 reais, era um salário inteiro”, revela. Xaides enxerga com ressalvas o otimismo dos moradores do MCMV. “Essa falta de criticidade tá mascarada pelo ganho que a pessoa teve, porque ela saiu de uma favela, de uma casa, e agora tem algo que é próprio dela”, diz. “As pessoas se acostumaram a não ter essa de-
manda por equipamento públicos. A visão que elas têm de direitos é muito curta, porque nunca encontraram”, avalia. Apesar disso, o síndico Cristian lista uma série de irregularidades no condomínio, que num primeiro momento podem passar despercebidas. “A má qualidade dos produtos, a pressa para entregar visando votos, a falta de fiscalização dos órgãos envolvidos no MCMV são tópicos no assunto”, explica ele, dando exemplos concretos da situação. “As caixas d’água foram erroneamente montadas sobre a laje, sem proteção na base. Consequência: as pedras da laje somadas ao peso da caixa e vibração encher/esvaziar fura-as, constantemente alagando os aptos superiores; Os conduítes de energia são de diâmetro tão pequeno que quase não se passa nem os cabos da estrutura; Há tomadas que não tem fios, na caixa de força só existe os disjuntores das bombas d’águas as quais nunca existiram, o madeiramento do telhado racha sozinho, as plantas de projetos não condizem com a construção” Segundo Cristian o trabalho social de acompanhamento dos moradores nunca foi feito ali, o que para ele se torna um problema, uma vez que parte dos moradores do condomínio nunca viveu em habitações coletivas. “A assistência social foi inócua e evasiva em suas responsabilidades”, diz. “Essas pessoas, em sua maioria, nunca vislumbraram o significado de habitação coletiva, principalmente com tantas regras. Num planejamento deve-se estudar o impacto psicológico de uma mudança brusca e que a ‘pré-visão’ é mais importante que o pós-trabalho”. Num primeiro momento, o mais importante, para Cristian, é que os órgãos envolvidos no MCMV sejam transparentes. “Dar informações corretas é crucial. Elas vêm baseadas na legalidade e não na especulação e opinião própria”, defende. A falta de informações se torna um agravante da situação material do condomínio. “Porquê demora tanto para dar uma informação e, às vezes, até nos negam? eles ou não tem, ou escondem. Basta saber para qual motivo”, questiona. “A alienação é uma ferramenta usada que oprime as pessoas, fazendo um círculo vicioso. A Assistência Social faz tanta coisa descabida, que não lhe diz respeito e descontextualizada, que deixa sua real função ao vento, isso degrada o ser humano, esgota o psicológico, faz com que a pessoa definhe sem alcançar a solução que busca ou espera”, lamenta. “Ninguém cabe, não tem ser humano que consiga viver dentro daquela metragem quadrada que eles colocam”, garante Fernanda Corghi sobre os apartamentos do MCMV. “Tem uma metragem pequeníssima e não se pensa que a população vai crescer, que as famílias
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crescem”, aponta ela, que considera que a concepção do programa não atende totalmente às necessidades dos moradores. Em Bauru, quem dirigiu o planejamento do MCMV foram as empreiteiras. Pelo menos, é o que sustenta o professor Xaides. “O Poder Público pouco se mexeu. O que era papel dele era fazer a luta pela terra, com todas as medidas do Estatuto da Cidade. Mas não foi feito”, alega. As críticas se dirigem à falta de planejamento da prefeitura, que na visão dele não tinha organizado as áreas para receberem moradia social, que já estavam previstas no Plano Diretor Participativo, de 2008. “Então [o MCMV] foi aprovado e aí caiu nesse interesse do mercado, de colocar onde dá. Nisso não se planejou também os equipamentos ao redor”, afirma. Outro problema apontado por Cristian diz respeito aos apartamentos sem uso no Três Américas II, que segundo ele existem “vários nessa situação”. “Fui intimado pela Polícia Federal a prestar explicações sobre esse fato, pois a Assistência Social e a Caixa Econômica Federal alegaram que 100% de unidades estavam ocupadas, o que é uma inverdade e uma ação evasiva de sua responsabilidade de fiscalizar”, aponta. “Tenho aptos que nunca foram ocupados e/ou que não condizem com o titular registrado no diário oficial. Cabe à Caixa e ao trabalho social fiscalizarem isso, mas eles jogam essa atribuição de responsabilidade ao síndico, três anos depois da entrega do imóvel”, critica.
Pra situar: O Estatuto da Cidade Criado pela Lei nº 10.257, de julho de 2001, o Estatuto da Cidade (EC) surgiu como forma de regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que tratam da Política Urbana brasileira e asseguram a função social da propriedade urbana. Fruto de uma disputa histórica de arquitetos, urbanistas e movimentos sociais relacionados à terra e à moradia, a legislação se completou com a criação, em 2003, de um ministério exclusivo para tratar das questões urbanas: o Ministério das Cidades.
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Lei escrita e direito conquistado Para José Xaides, a partir da Constituição de 1988, a questão da habitação foi encarada como um direito e o Estatuto da Cidade serviu como marco jurídico e institucional, estabelecendo os princípios da reforma urbana e o uso social da terra. “Desdobrando isso, você tem vários instrumentos que poderiam ser empregados nas cidades”, explica ele. “Esses instrumentos, mais especificamente ligados à moradia, permitiriam a democratização do espaço urbano, como o instrumento de indução de proprietários de terrenos ociosos e vazios que os obriga a colocar essas terras no mercado”. “Por que esses instrumentos do Estatuto da Cidade, que são considerados dos mais avançados do mundo, não são empregados?”, questiona o professor. Para ele, é preciso que a sociedade se organize e faça valer seus direitos, que juridicamente já estão conquistados. “Não é falta de leis, não é falta de regulamentos, é falta de vontade política e de empoderamento da sociedade pra fazer isso que já está escrito e que é muito bom”, argumenta. Entretanto, alguns pesquisadores e profissionais da área enxergam problemas quanto ao uso e regulamentação da política habitacional, no âmbito do Estatuto da Cidade. É o caso de Fernanda Corghi, afirmando que essa legislação passou o poder do Estado centralizado para os municípios. “Quando você passa esse poder, que estava centralizado, para os municípios, você vai deixar à caráter de uma gestão que hoje tende muito ao coronel, e o que acaba acontecendo é que os conselhos que são criados para serem participativos, têm a participação do coronel”, explica. Para ela, o próprio poder aquisitivo da cidade, que detém as terras, se faz presente nos conselhos, que inicialmente foram criados como fóruns para a população legislar. “Hoje, se você não tem uma população atuando e entendendo tudo que ela é capaz de fazer, por exemplo, lutar por uma ZEIS, sabe quem vai lutar por isso? A iniciativa privada, porque lá você flexibiliza todas as regras de habitação”. “O Estatuto da Cidade tem méritos que justificam seu prestígio em boa parte dos países do mundo. As virtudes do EC não se esgotam na qualidade técnica ou jurídica de seu texto. A lei é uma conquista social cujo desenrolar se estendeu durante décadas. Sua história é, portanto, exemplo de como setores de diversos extratos sociais (movimentos populares, entidades profissionais, sindicais e acadêmicas, pesquisadores, ONGs, parlamentares e prefeitos pro- 67
gressistas) podem persistir muitos anos na defesa de uma ideia e alcançá-la, mesmo num contexto adverso”, diz a urbanista e ativista Hermínia Maricato8, em artigo sobre o Estatuto da Cidade, elaborado pelo Ministério das Cidades, em 2010. Maricato, que defendeu a reforma urbana de iniciativa popular na Assembleia Constituinte de 1988, considera que o EC reúne, em um mesmo texto e com um enfoque holístico, “diversos aspectos relativos ao governo democrático da cidade, à justiça urbana e ao equilíbrio ambiental. Ela traz à tona a questão urbana e a insere na agenda política nacional num país, até pouco tempo, marcado pela cultura rural”. Uma das exigências da Constituição, após delimitar a função social da propriedade urbana, é a da implantação de planos diretores municipais em cidades com mais de 20 mil habitantes, a fim de se tornar “o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”. O EC vai além, e dá ao plano diretor dos municípios o poder de ordenar o crescimento das cidades, nele cabendo exigências fundamentais que assegurem o atendimento das necessidades dos cidadãos “quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”. Como forma de fiscalizar os diferentes dispositivos presentes no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor do município e “fazer valer” a Lei, foi despontando a atuação do Ministério Público (MP) estadual. Atualmente à frente da promotoria de Habitação e Urbanismo do MP, o promotor Henrique Ribeiro Varonez é quem conduz as ações em Bauru. Segundo ele afirmou, quando o MP começou a olhar para o planejamento urbano da cidade, foi possível ver pontos “sensíveis” do Estatuto da Cidade que não estavam sendo cumpridos em Bauru. “A legislação de Bauru não contemplava algumas coisas, que eram muito determinantes, como princípios, e um deles é a gestão democrática”, diz. Para o promotor, no âmbito legal, o urbanismo é encarado como um campo sustentado por dois pilares - o planejamento (com sua estruturação técnica) e a participação popular. “Esses dois pilares são básicos e sem isso não há lei de urbanismo”, resume. Para o professor Xaides, apesar da omissão ou cumplicidade do Poder Público nas questões relacionadas ao urbanismo, a população se movimentou. “A sociedade não é mais burra, e mesmo que de uma forma fragmentada, sem grandes ONGs, pipocaram lideranças na advoca-
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Artigo de Hermínia Maricato no Estatuto da Cidade Cmentado, ver https://goo.gl/F5zVAK
cia lutando pelos direitos, membros de comunidades”, ressalta. “E é isso que o MP faz”, aponta Varonez. “A partir do momento em que se começou a olhar pra essas questões, não só as medidas foram tomadas para regularização, como também começaram a motivar o Poder Executivo, o Legislativo, as associações profissionais da cidade, a uma necessidade de se ter uma nova visão do urbanismo, uma visão do todo e que se baseia na participação popular”. Segundo ele, por mais bem preparados e capacitados que estejam vereadores, prefeitos e o secretariado, isso não substitui a população. “É aquele senhorzinho do bairro, aquela senhora, aquele pai de família, que sabe onde corre a enxurrada, onde que deu problema de trânsito, é ele que sabe”. “Temos lideranças políticas que viram usurpações nas leis da participação popular, que não foram respeitadas na aprovação de vários condomínios fechados, nas cobranças de contrapartidas no EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança) para aprovação de vários prédios verticais”, lembra Xaides. Conforme explica o professor, Bauru teve ajuizado dezenas de ADIN (Ação direta de Inconstitucionalidade) contra leis municipais de alteração do uso do solo, aprovadas “sem os rigores da participação popular”. Além dessas, aprovações de ampliação do perímetro urbano e de condomínios fechados, possibilitadas por alterações nas leis, também foram alvo de ADIN. Isso sem mencionar o que Xaides considera “casuísmo” no direcionamento das aprovações que “beneficiaram empreendedores imobiliários, dentre eles, construtoras, políticos, donos de terras”. “Hoje temos uma meia dúzia de condomínios na cidade, entre eles o Alphaville, paralisados, e sub judice, porque foram aprovados na calada da noite. Alguns deles geraram improbidade administrativa contra os gestores”, aponta. Com a proposta de ser o referencial técnico e teórico para o crescimento urbano e de estabelecer diretrizes e prioridades no planejamento das cidades, é que existem os planos diretores. Envolvendo a população na sua elaboração, os planos devem refletir as necessidades e os anseios da sociedade. Em Bauru, o Plano Diretor Participativo (PDP) teve em sua elaboração uma equipe de servidores da Prefeitura, sob a coordenação da arquiteta Maria Helena de Carvalho Rigitano9, funcionária da Secretaria do Planejamento (SePlan) desde a origem da pasta. Reunindo profissionais de diversas áreas, o Grupo de Trabalho que elaborou o plano concluiu as atividades em 2006, com aprovação da Câmara Municipal em 2008. 69
Plano Diretor Participativo de Bauru Para poder efetivamente organizar a cidade, o PDP setorizou o município de acordo com as bacias hidrográficas que passam por seu território, aliando o planejamento urbano com as políticas nacionais e estaduais de preservação do meio ambiente e de desenvolvimento sustentável. Com isso, foi elaborado um esquema de participação popular, com os trabalhos de mobilização e sensibilização das comunidades setorizadas, permitindo a participação de cada grupo em cada bacia, com a posterior escolha de “delegados” representantes dessas subdivisões. “O plano realmente criou lideranças populares, que fizeram faculdade depois, de tanto que elas entenderam a importância disso”, lembra Fernanda Corghi, que na época desempenhava atividades no bairro Jardim Niceia, zona sul de Bauru, assentamento de baixa renda ainda não regularizado. Sua atuação no bairro lhe rendeu o trabalho “Urbanização e segregação socioespacial em Bauru (SP) : um estudo de caso sobre a Bacia hidrográfica do Córrego da Água Comprida” de 2008, sua dissertação de mestrado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). “A gente teve um movimento brilhante aqui em Bauru. Eu não fazia ideia do que era isso, mas a gente teve populações de bacias hidrográficas se entendendo enquanto bacia hidrográfica. Sabe o que é isso? É pegar alguém do fundo do rio e pegar uma pessoa da cabeceira do mesmo rio, e elas se entenderem e conversarem pra fazer as coisas acontecerem”, atesta. Dentre outras análises, o Plano constatou, em diversos setores da cidade, “a exclusão social devido a vários fatores, como a dificuldade de acesso à moradia, falta de creches, carência de atividades de lazer e cultura, deixando à margem da vida social grande parte da população”. Em cima disso, consta no PDP de Bauru o instrumento chamado “ZEIS” - Zona Especial de Interesse Social, que é um instrumento urbanístico que demarca áreas no território da cidade que tenham algum interesse social, como é o caso dos assentamentos habitacionais. Sobre a constituição de ZEIS, José Xaides considera de “fundamental” importância, pois com elas o Poder Público define um território de prioridade de investimentos, que diz respeito à construção ou melhoria de infraestrutura e equipamentos públicos. “Na
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Para conhecer o Plano Diretor Participativo de Bauru, diagnósticos, etapas e a Lei, ver https://goo.gl/fJiVAZ
hora que o Poder Público cria ZEIS, ele garante direito para aquelas pessoas. Então, não fazer ZEIS é não querer dar direitos, do ponto de vista formal”, afirma. As ZEIS previstas no PDP de Bauru, de acordo com seu artigo 81, configuram-se como destinadas à regularização fundiária, implementação de conjuntos habitacionais e, quando couber, à concessão especial para fins de moradia, onde aplicam–se os instrumentos urbanísticos previstos nesta Lei (PDP) e no Estatuto da Cidade. Ao todo foram estabelecidas pelo Plano Diretor 37 ZEIS na cidade. Passados mais de dez anos do início da elaboração do plano (2006), a responsável pela sua organização, Maria Helena Rigitano, se diz decepcionada com os resultados de sua aplicação, principalmente por conta do avanço feito no trabalho de representação e participação popular, com a escolha dos delegados de cada região setorizada da cidade. “Eu achei que esses delegados fosse sair fortalecidos desse processo do plano diretor, mas se as administrações seguintes não dão ouvidos, eles acabam desestimulados”, conta. Segundo ela, no processo de elaboração do PDP foram identificadas lideranças naturais em cada comunidade, que não necessariamente eram os presidentes das associações de moradores. “Tinha dono de bar, tinha uma senhora que todo mundo da sua região procurava, e essas pessoas emergiram ali pra participar com conhecimento de causa, sabendo o que estavam propondo e o que o bairro necessitava”, relembra. Conforme a própria arquiteta explica, a participação popular foi muito mais levada a sério no plano diretor atual, se comparada com a do plano anterior, que data de 1996, o qual ela também coordenou. Em 96, a equipe de trabalho que montou o plano produziu um documento prévio, com uma proposta já elaborada. Aí se deu a consulta à população, a partir de uma coisa já montada e concebida a partir de ideias técnicas. “Eu não imaginava a possibilidade de discutir com as pessoas o que elas queriam para o bairro. Eu achava que participação era aquilo, e estava discutindo com os técnicos que sabiam do assunto”, confessa. Após Audiências Públicas e reuniões comunitárias feitas nas sete Regionais Administrativas do município e “Conferências da Cidade”, teve início o processo de participação popular nas comunidades, realizadas em escolas públicas, centros comunitários ou prédios de referência para a região. Aí aplicou-se uma metodologia que consistia de três etapas: Sensibilização da população sobre o tema, a
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Leitura Comunitária e Leitura Técnica, com vistorias e análises dos problemas de cada local. Por fim eram apresentadas as propostas e realizada a eleição dos delegados que representariam cada grupo de cada setor da cidade. Nas três etapas, ao todo, segundo Maria Helena, foram realizadas 122 reuniões. No encerramento, houve o Congresso Final, reunindo os delegados eleitos nos diversos setores, a fim de analisar o texto do Plano Diretor Participativo, que tinha sido elaborado por técnicos da prefeitura, com base no que foi discutido com a população. Após conclusão da consulta e análise do setor jurídico da Prefeitura, em 22 de setembro de 2006 o Projeto de Lei do Plano Diretor Participativo foi encaminhado à Câmara Municipal. “Esse texto final foi para a equipe técnica da Prefeitura, o jurídico, e eu não me lembro de nenhuma alteração significativa, e foi pra Câmara daquele jeito, aprovado pela comunidade. Ficou 2 anos na Câmara e eles mexeram pra caramba, inclusive em toda a ordem”, lamenta Maria Helena. “Mexeu no texto, nos artigos, mas também mexeu na ordem. Por ter mudado a ordem, quebrou alguma lógica, tanto que, dentro do documento tem coisa que fala em uma parte e ‘desfala’ na frente”, critica ela. Segundo a arquiteta, o que mais comprometeu a integridade do plano foram os “coeficientes de aproveitamento”, estabelecidos por toda a cidade. O coeficiente de aproveitamento é um índice que é aplicado a cada terreno, dizendo o quanto que pode ser construído ali. Por exemplo, um coeficiente de 1,5 aplicado a um terreno, vai expressar que o proprietário poderá construir uma vez e meia a área inicial do terreno. Na afirmação dela, a cidade inteira ficou com coeficiente 1,5 e em algumas regiões onde havia o interesse da Prefeitura para o desenvolvimento, o valor chegava a 5. Para outras área com problemas de enchente, por exemplo, o número caía para 2. “Eles [vereadores] mudaram tudo e não tem lógica. Foi tudo interesse, sendo que em todas essas reuniões [do PDP] não apareceu nenhum vereador”, se revolta. “O que a gente quis pegar com esse coeficiente foram os grandes edifícios, pra evitar a verticalização e o adensamento, porque aí é problema de abastecimento de água, ea gente quer menos densidade pra menor consumo de água e para menor impermeabilização do solo”, explica Maria Helena. Segundo ela, quando essa discussão é feita com a população, existe a compreensão do problema. “Quando faz com empresário é diferente, porque aí ‘o mercado tá pedindo e eu tenho que vender’, e isso foi alterado na Câmara”, diz.
Outro ponto que gera conflito no Plano Diretor de Bauru é quanto às ZEIS e o programa Minha Casa Minha Vida. Segundo José Xaides, em Bauru os empreendimentos do MCMV deveriam ter sido feitos dentro das ZEIS - o que não se concretizou para todas as construções. “Se a gente falar do pessoal de baixíssima renda que mora em favela, em Bauru o [processo] foi omisso, não se fez moradia pra essa gente. Não se fez casa pra quem tá no Jardim Europa. Talvez o caso do Jardim Ivone foi um caso legal, apesar de continuar na periferia”, conta. Já Maria Helena Rigitano tem outra posição sobre o assunto. “Não necessariamente”, diz ela. Conforme ela explica, alguns vazios urbanos da cidade foram delimitados como ZEIS, no PDP, e alguns empreendimentos do MCMV foram destinados a esses locais. “Mas a gente teve muito mais MCMV do que ZEIS, porque fomos tímidos na época do PDP na criação de ZEIS. Tínhamos receio que não passasse pela Câmara”, reconhece ela. Na visão da arquiteta, o ideal seria que o município fosse atuante em sua Política de Habitação, com a prefeitura adquirindo áreas antes que elas valorizassem. “Então, por exemplo, antes de fazer Nações Unidas Norte, se a prefeitura tivesse desapropriado algumas áreas próximas, a preço X, depois que fez a avenida eles passaram a valer 10X”. Mesmo com a valorização, a Prefeitura já teria as áreas e poderia destinar para moradia social. Segundo ela, mesmo não estando todos os empreendimentos em ZEIS, eles estão ocupando os vazios urbanos: “os nossos estão todos inseridos no perímetro urbano”, defende. Outro artigo do PDP que trata das ZEIS é o nº 83, que garante que os planos habitacionais implantados pelo Poder Público ou pela iniciativa privada nas áreas de ZEIS devem seguir regras específicas da legislação de parcelamento do solo (como tamanho dos lotes, largura de rua, porcentagem de área pública), depois de ser realizada a consulta popular através do Conselho Municipal de Habitação. A falta de coordenação e planejamento do Poder Público, como aponta Maria Helena, compromete não só a localização da moradia social, como também a infraestrutura oferecida. Como admite a arquiteta, muitas vezes os conjuntos do MCMV foram construídos em locais que os equipamentos públicos não atendiam à demanda gerada pelos novos moradores. “Então, essa discussão na época a gente fez com a [Secretaria de] Educação, e ela não dava conta de fazer mais uma escola, para atender essa demanda. E não é só escola,
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a Saúde ficou sobrecarregada”. Mas, na perspectiva dela, “não dava pra não fazer habitação esperando que tivesse tudo pronto”, e alega que, apesar das carências, “uma das vantagens nossas é que não estão perdidos no meio do mato, eles estão dentro da cidade, com alguns problemas de acesso a vagas na escola, por exemplo”. Pra situar: O conflito Norte x Sul: Em Bauru existe um adensamento populacional e de serviços na sua região sul. Diante disso, a intenção do PDP foi incentivar e induzir a expansão para o norte. Para Rigitano, a intenção que se tinha era que os empresários “olhassem para o norte”, na nova região aberta pela construção da Avenida Nações Unidas Norte. “Em compensação, na região sul, onde todo mundo quer construir, porque é chique e é equipada, nós temos um problema gravíssimo de abastecimento de água, porque o Batalha abastece essa região da cidade, e ele está no limite. Além disso há o problema de drenagem na região”, diz. Por conta desses problemas, existe a preocupação com o adensamento da região, com a construção de prédios, por exemplo. Para isso, o PDP constituiu a região da Nações Norte como Zona de Interesse de Expansão, com um coeficiente de aproveitamento básico de 2,5, podendo chegar a 4.
Urbanismo para pessoas
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Cristian Anderson ouve as reclamações e demandas dos moradores do Residencial Três Américas II na manhã daquele sábado. Após a conversa, retoma a rápida caminhada que faz entre os blocos do condomínio. Vai passando por trás de cada construção, de olho no gramado que margeia a calçada. Nem bem tinha começado a tarefa, se agacha e começa a contar: um, dois, três, quatro… A cada número vai enchendo um copinho plástico com pinos de cocaína que encontra pelo chão. Deu a volta em um bloco e já foi possível completar a metade de um copo de 250ml. Era por volta das 11h. Às 09h ele já tinha passado fazendo a mesma tarefa, o que lhe rendera um copo cheio.
Raquel Rolnik, num dos textos com os quais alimenta seu blog, afirma que em grande parte dos conjuntos habitacionais distribuídos pelo governo existem problemas de gestão, como conflitos ou repasse de casa para outras pessoas, “justamente em função da adoção de um critério supostamente mais isonômico – o sorteio ou o reassentamento de áreas variadas de remoção, sem nenhuma preocupação com a manutenção de laços preexistentes, com os locais anteriores, as redes de sociabilidade, etc”. Cristian concorda que o consumo de drogas dentro do residencial influencia no conflito entre os moradores. Porém, também pesa a falta de orientação e instrução dos órgãos envolvidos no programa MCMV para com os moradores, desde a criação do projeto. Para ele, isso “reflete e explode em ‘guerra’ cada vez que um morador exerce seu direito sobre o outro que o infringe”. “Grande parte dessa culpa”, argumenta o síndico, “é o despreparo das assistentes sociais nesses casos”, e critica também a quantidade “exacerbada” de informações destinadas aos moradores e a falta de tempo para que essas informações cheguem a todos eles. David Harvey, quando escreveu sobre o “Direito à Cidade”, identificou como uma tendência pós-modernista os incentivos à formação de nichos de mercado que envolvem os hábitos de consumo e até as expressões culturais. Essa tendência, argumentou ele, “envolve a experiência urbana contemporânea numa aura de liberdade de escolha – desde que se tenha dinheiro”. Em Bauru também se vê a iniciativa de formação de grupos específicos no âmbito do mercado imobiliário. Para Xaides, a cidade é um “exemplo clássico” dessa tendência que ele chama de “apartheid social”. Na visão do professor, vende-se muito para a sociedade o ato de classificar e categorizar as pessoas, segregando-as no espaço. “É visível”, diz ele, “as lutas classistas e de preconceito sociais somadas às ações de marketing especulativo, que descobriu na segregação social um filão de vendas”. “Nessas condições”, teoriza Harvey, “os ideais de identidade urbana, cidadania e pertencimento se tornam muito mais difíceis de sustentar”. Na cidade de Nova York, entre as décadas de 1950 e 1960, despontou no debate público a jornalista e ativista Jane Jacobs10. Em 1961, quando era editora da revista “Architectural Forum”, publicou seu livro chamado “Vida e Morte das Cidades Americanas”, um manifesto contra a suburbanização das cidades e uma crítica aos planeTexto Raquel Rolnik sobre MCMV, ver https://goo.gl/44r6j0
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jadores urbanos que elaboravam cidades padronizadas e monótonas, segundo ela. Para a jornalista, quanto maior a diversidade e a vida nas ruas das cidades, melhor será a experiência urbana. Como conta Raul Juste Lores, repórter especial da Folha, em artigo na “Ilustríssima”, Jacobs tinha ideias diferentes do padrão dos conjuntos habitacionais modernos. Ela imaginava que, para se criar um espaço seguro, seriam necessários o que ela chamou de “Olhos das Ruas”, ou seja, aquela vigilância natural das pessoas que existe em ruas com movimento, permeadas de comércios e prédios com janelas viradas para a calçada. Nas palavras de Lores, “ao descrever sua saída de casa pela manhã para levar o lixo, ela descreve os ‘rituais’ que via no seu Village: o dono da lavanderia abrindo suas portas, o barbeiro, a abertura da quitanda, cadeiras do lado de fora, pais chamando a atenção de filhos indo para escola. Esse “intrincado balé na calçada” só seria possível em quarteirões curtos, que estimulassem o pedestre a sair mais a pé e que misturassem moradia, comércio e trabalho”. A tendência de segregação das pessoas dentro do espaço urbano impede aquilo que o professor Xaides chama de “Cidade Miscelânea” - locais onde é possível a convivência de diversas classes sociais. E essa convivência tem vantagens práticas, pois, para morar ali, “a classe alta exigiria um preço mais baixo e você estaria rebaixando o valor da casa, dos apartamentos, dos aluguéis”, diz. Se por um lado existe a segregação das classes baixas em conjuntos habitacionais nas periferias, por outro as classes altas também se isolam do convívio coletivo, gerando a formação daquilo que é conhecido como “Cidade de Muros”. “Sob o ponto de vista humano isso é uma tragédia social como nunca. Porque ela divide as pessoas, ela cria e fortalece esse divisionismo. Num ponto de vista histórico, nós estamos numa regressão. Fortalecer esse sentimento de segregação é algo pós-moderno, e que é um retrocesso civilizatório, é um retrocesso do papel do poder público democrático e do papel do urbanismo”, observa Xaides. O avanço de empreendimentos imobiliários “de alto padrão”, conhecidos como condomínios de luxo, acaba gerando outro processo de segregação urbana, a gentrificação. Segundo Kazuo Nakano, arquiteto e urbanista do Instituto Pólis, em entrevista ao Jornal Nexo, a gentrificação diz respeito ao processo de valoriza-
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Reportagem “A Aventura da ativista urbana Jane JAcobs”, na Ilustríssima, ver https://goo.gl/xmWqO1
ção imobiliária (e em consequência elevação do preço de terrenos e casas), no qual os moradores e comerciantes originários de um lugar vão sendo substituídos por novos ocupantes que tenham renda mais alta e que conseguem bancar o custo de vida nesse local. A cidade de Bauru também passa por processos de gentrificação. Um deles acontece no Jardim Niceia. O bairro ainda é um assentamento informal, pois não está regularizado, o que faz com que seus moradores não sejam os donos daquela terra. Ao lado do bairro existem dois loteamentos de alto padrão. Na explicação da Fernanda Corghi, “se você pegar os habitantes originais do Nicéia, quando eles chegaram lá, eles iam pegar água lá no Córrego da Água Comprida, lá na baixada. Então eles acham bom quando chegam os loteamentos, porque é com isso que foi possível colocar galeria e consertar a erosão, e é dali que se consegue articular toda a infraestrutura do assentamento”. Porém, explica Fernanda, esse fato traz um problema muitas vezes invisível para a população. “É que vai mudando o público do bairro. Naturalmente os “Niceia raiz” vão indo embora, porque eles não tem condição de se manter ali. Os que melhoraram [de renda] se mantém, mas aqueles que não conseguem, não vão nem esperar regularizar a terra, vão ir pra outro assentamento que está sendo aberto, que não tem casa e que eles estão cortando eucalipto ainda pra começar do zero”. E esse processo de deslocamento - a gentrificação, envolve toda a região. “Se hoje o Niceia tem luz, tem água, mesmo sendo uma infraestrutura informal, isso vale dinheiro. E é o que faz uma pessoa hoje sair do Geisel e ir pro Niceia. Isso faz com que o povo mais pobre do Niceia venda sua casa e vá tentar a vida em outro lugar”, conclui. De acordo com o Diagnóstico Urbano feito na época de elaboração do Plano Diretor Participativo de Bauru, a cidade acompanhou a rápida urbanização do país durante o século XX, fazendo com que a população urbana que era metade do total na década de 1940, saltasse para 98% no ano 2000. Tal transformação, segundo o diagnóstico, modificou a sociedade, “produzindo uma urbanização predatória, desigual e injusta”. Em Bauru, “o alto custo do terreno, devido à intensa procura, fez com que grande parte da população procurasse áreas cada vez mais distantes, muitas vezes fora do perímetro urbano, já que a terra tinha valor reduzido, em função da falta de infraestrutura e melhoramentos”. Entrevista Kazuo Nakano ao Nexo, ver https://goo.gl/L4zXR3
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“O resultado”, afirma o plano, “é uma forte segregação espacial, onde a população mais abastada ocupa as áreas mais bem servidas de melhoramentos públicos e a população carente mora cada vez mais distante, nos loteamentos periféricos, precariamente servidos de infraestrutura”, o que pode impactar até mesmo no desenvolvimento de atividades econômicas e sociais por parte da população. Ao mesmo tempo, os vazios urbanos permanecem dentro do perímetro urbano, mas estão sem nenhuma utilização, ou seja, sem o cumprimento da função social da propriedade privada. Simultaneamente, a cidade tem 22 favelas, contando com aproximadamente 3.000 barracos, sendo que muitas vezes em Áreas de Preservação Permanente (APP), o que contribui para a degradação ambiental e social. Como apontou o PDP, a área urbana de Bauru é cortada pelo Rio Bauru e seus 10 afluentes, ao longo dos quais existem muitas ocupações irregulares dentro de APPs. “A maioria dos córregos está em processo avançado de assoreamento, recebendo ainda esgoto “in natura” e resíduos sólidos que contaminam esses corpos d’água”. “As pessoas são o maior capital possível de articular os poderes e fazer essa história continuar acontecendo”, acredita Fernanda. “É o único poder que pode lutar hoje contra a tendência da gente financeirizar todo o território da cidade. Só quem pode evitar isso são as pessoas que entendem esse território como valor de uso”, completa ela. Para Xaides, esse fato confirma a necessidade de empoderamento e organização das pessoas, para que tenham conhecimento e capacidade de se entender no mundo e entender que têm direitos. “No Planejamento Urbano, a gente chama essa capacidade das pessoas serem autônomas, do ponto de vista do direito, de desenvolvimento do Capital Social”. Se meia dúzia de bairros na cidade se organizassem, a Prefeitura estaria um caos”, observa.
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Acompanhando e registrando a democracia: manifestante grava discussões da Audiência Pública, na Câmara de Bauru. Abaixo, dois lados da mesma moeda: empreendimento do MCMV divide a cena com acampamento da FNL.
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Parte 3
Resistência e organização Construir e contar a própria história
O traçado dos trilhos é o mesmo. As pedras, os dormentes e os próprios trilhos é que são outros. Saindo da Estação Ferroviária Central, a linha da outrora efervescente e pujante Estrada de Ferro Noroeste do Brasil segue em direção à Vila Dutra, antigo bairro de Curuçá, que já foi uma vila operária durante os tempos da Noroeste e da Rede Ferroviária Federal. Chegando naquela área, o vento corre sem obstáculos. Para se alcançar aquela região, pega-se a avenida Pinheiro Machado até o seu final, ponto no qual, dando continuidade a ela, aparece uma rua de terra, numa descida que contém mais uma quadra de casas. O trecho ali tem erosão. O caminho leva a mais algumas casas e até uma baixada, onde uma ponte faz a ligação por cima do córrego. Continuando mais alguns metros, chega-se ao leito da ferrovia. Mais um pouco à frente, do lado esquerdo, um descampado se abre à vista, com cercas que dividem os lotes de cada morador. À direita da linha do trem, blocos de prédios com 4 andares se enfileiram. São os residenciais Três Américas II e Córrego da Grama, ambos do Minha Casa Minha Vida. O descampado é o Acampamento “Virgínia Rainha”, localizado ao lado da Vila Dutra, em Bauru. Vinculado ao movimento social Força Nacional de Luta - FNL, que busca locais para assentamentos da agricultura familiar, atualmente são 63 lotes, cada um com uma família. Segundo conta Valdemir Santos Arruda, conhecido como Denis, coordenador do acampamento, eles estão no local há cerca de três anos. Antes disso, parte do pessoal estava dividido - 39 80 famílias no Acampamento “Berro D’água” e o restante no “Terra So-
nho Meu”, que se uniram e entraram na área da Vila Dutra. A área ocupada pelos assentados pertence à União. Segundo Denis, logo que eles chegaram no local se articularam para regularizar o terreno, foram até o Chico Maia (Secretário de Agricultura e Abastecimento), que encaminhou uma carta à superintendência paulista do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). “Agora temos essa carta assinada e já tá pronto pra dar início”, diz ele. “Falta só mapear a área, o tamanho, fazer os cortes dos lotes, e dar início mesmo. Aí, a partir disso já dá pra buscar o benefício do MCMV-Rural”, explica o líder, que lamenta pela demora: “só precisa dar esse andamento, mas diz que falta verba pra Prefeitura. E a gente tem fé que, até 2018, vai sair alguma coisa. Antes disso, eu já falo que não sai”. O local não está regularizado, o que afasta a mudança definitiva da maioria dos futuros moradores, que ainda mantêm casas de aluguel na cidade. “Durante o dia o pessoal tem que trabalhar normalmente, porque a ideia é viver daquilo, daquela areazinha ali. O projeto é esse, é viver da terra”, comenta Denis. “Eu tenho meu serviço, trabalho de mecânico, e o Estado ajuda a gente com um cesta básica”. Conforme explica Denis, a ideia é aplicar no Virgínia Rainha a modalidade de assentamento “Casulo”, do INCRA. Segundo o site do instituto, o Projeto de Assentamento Casulo (PCA) é implantado em parceria com as prefeituras, que se comprometem a acompanhar o assentamento e estimular atividades economicamente viáveis e ecologicamente sustentáveis, passando a incluir as famílias assentadas nas políticas públicas federais, estaduais e municipais. O INCRA faz o cadastro das famílias e possibilita o acesso delas aos benefícios do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). De acordo com o INCRA, “as áreas destinadas a um PCA são localizadas no entorno do núcleo urbano do município, permitindo aos beneficiários fácil acesso à infraestrutura já existente no município, como escolas e hospitais”. Por ser um território da União, não houve problemas de reintegração de posse e muitos moradores da Vila Dutra acharam benéfica a presença deles. “Lá, quando a gente entrou, era um mato, tinha muito usuário de droga lá dentro. Então, a gente ocupou ali, limpou, fez bastante coisa. Agora dá pro pessoal transitar de um bairro para o outro”, diz Denis. Para o coordenador, as terras da cidade dariam conta de
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atender às demandas de quem tem necessidade. “Se a Prefeitura quiser, tem área aí que dá pra todo mundo, tem bastante”, afirma. “Tem muitas pessoas que entram porque não têm nem condição de pagar um aluguel, não têm condições de sobreviver. O que ela ganha vai pra pagar o aluguel, mas aí vai comer o quê?”, questiona. “O meu caso é esse”, diz Jair Gonçalves, que já fez parte de assentamentos na região de Bauru. “O que eu ganho eu pago só o aluguel e como. Só, e mais nada, vai tudo pro aluguel, setecentos pau”, revela ele. “Como vai fazer, pra comer, beber e pagar aluguel? Não tem como. Então, se sair essa área mesmo, dividido certinho, dá pra gente viver da terra”. Outro ponto a que ele chama a atenção é quanto à responsabilidade que o movimento social tem, principalmente na figura do coordenador. “Aquela área da Vila Dutra, antes de ocupar a gente procurou o vereador Roque[Ferreira-PSOL], o Chico Maia, pra gente ter certeza que não ia ter problema e que ninguém ia tirar a gente dali. Não foi arriscando a sorte de entrar num lugar e ver no que dá, fazendo as famílias sofrer”, explica. “O coordenador é responsável pelas famílias, você é um líder, tem que saber o que está fazendo, você está conduzindo um pessoal”. “Como que nós vamos plantar num lugar que não é nosso? Não tem como. Pra depois o prefeito chegar e mandar arrancar tudo?”, explica Jair. Apesar dessa responsabilidade, existem movimentos que se aproveitam da condição das famílias assentadas. Segundo Jair, no seu caso o líder pegava todo o dinheiro levantado “cinquenta pau por mês”, protesta. “Os caras se aproveitam, cobram das famílias pra ficar lá, e nem dão cesta básica nem nada”, revela ele. Gislaine Aparecida de Oliveira tem 41 anos de idade. Nasceu em Itapuí, região de Jaú. Por trinta e três anos viveu em sítio, trabalhando na roça. Quando venderam a fazenda, se mudou, e foi perdendo o contato com os parentes próximos. Está há dez anos em Bauru. Na cidade, o acampamento “Virgínia Rainha” é seu terceiro endereço. Está ali desde o início da ocupação, quando tudo ainda era mato. “Já chegamos e cada um foi fazendo seus barracos”, lembra ela, que explica que ali a maioria vem de final de semana pra mexer no lote, plantar ou cuidar da terra. “Eu, como não tenho casa própria ,moro aqui mesmo”, diz. Dentro da casa construída por ela e pelo marido, alguns móveis. Uma cômoda pra guardar roupa, algumas prateleiras e a televisão, possível de funcionar graças a um gato de energia que ela puxou 82 da rua, a oitocentos metros dali. À frente da TV, uma cadeira e, do
lado dela, a cama que é dividida com o marido e o neto - Lekatron, que ela considera como filho. Sentada na cama junto com o neto, Gislaine olha ao redor e diz “Se um dia pedirem aqui, a gente ou vai pra outro canto ou vai pra casa de aluguel, fazer o quê?”. Depois da regularização mais pessoas viriam pra cá? Sim, bastante gente vai vir morar. Gente que está no aluguel vai vir pra cá. Quem não queria ter uma casa própria? Os que vêm de final de semana moram em outro lugar? Eles têm casa própria, tem umas que são alugadas, e aqui estão segurando o espaço pra eles virem depois. Porque falaram que aqui a gente já ganhou, mas parece que tem que esperar o papel pra ver se ganhamos mesmo. Ainda não tá regularizado, mas já tem o papel por escrito que aqui já é nosso. Então a gente espera a turma do INCRA, o pessoal da Prefeitura, pra ver isso. Vai melhorar as condições depois que regularizar? Quando regularizar aqui vai pôr força, água, vai fazer rua. Por isso que é importante eles verem esse papel aí e fazerem pra gente. E na verdade esse processo deveria ser mais rápido. Eles iam passar a resposta pra nós dia 30 de novembro, e nada aconteceu, nada foi falado. Então estamos esperando. A Força aqui que eu tenho é porque eu fiz um gato, puxei lá da Av. Pinheiro Machado. Mas é muito fraca, porque o fio também é fraco, então só dá pra ligar a televisão mesmo. De equipamento elétrico é só a TV e o celular. A geladeira eu ganhei uma mas não dá pra por pra funcionar. Se ligar ela não funciona mais nada. Aí de comida a gente tem que pegar de pouquinho, pra não ter que guardar muito. De esgoto a gente fez uma fossa. A água, pra lavar as coisas a gente busca da mina ali na frente, mas agora por causa da chuva eu nem tô indo mais. A gente fez uma gambiarra e armazena água da chuva. Aí a gente arruma cozinha, toma banho, lava roupa. Agora pra beber a gente tem que ir buscar. Aqui é só eu que tenho luz, comprei 800 metros de fio e fiz. E pra se manter, se sustentar? É difícil, o meu marido agora começou a fazer bico, porque ele não consegue serviço registrado, então é complicado. Ele teve câncer e ele ficou com sequelas no cérebro. Você conversa com ele hoje e mais à tarde você vai conversar e ele não lembra mais. Ele tava trabalhando,
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aí pedem pra ele buscar areia, aí vai e chega na metade do caminho ele voltava pra perguntar o que era pra fazer. Então ele foi mandado embora. Ele não consegue guardar nada na cabeça. E eu só trabalhei em roça. Mas já mandei currículo por aí. Quando falei que eu morava aqui, porque eu não vou ficar mentindo pras pessoas, a mulher pegou, rasgou a ficha na minha frente e falou que não podia. Era numa sorveteria, aqui na [Av.] Bernardino de Campos. Ela rasgou meu currículo e falou que não pegava de sem-terra. Mas como foi isso? É que eu tinha mandado o endereço da minha sogra, mas eu falei assim, ‘Dona, eu não vou mentir porque não preciso disso, mas eu moro no acampamento sem-terra na Vila Dutra. Aí ela falou ‘Você mora com os sem-terra?’, pegou meu currículo e rasgou. E falou ainda ‘Por favor, saia do meu estabelecimento’. Eu até ia chamar a polícia, mas deixei quieto. Não vou julgar os outros não. Ela nem sabe do que tá falando. Peguei e vim embora. Como que é esse preconceito? Quando fala que é sem-terra a gente é muito humilhado, as pessoas costumam virar a cara. Eu não sei o que acontece, mas o povo despreza o sem-terra. Falam que aqui tem bastante ladrão, mas tem que ver. Cada um tem uma situação e cada um tem um modo de viver. Eu, graças a Deus, nunca precisei roubar, ando honesta. E tem vez que a gente passa apertado demais aqui. Aí tem o bico de meu marido, eu cato reciclagem pra poder manter a casa. E isso dá um complemento. A Bolsa Família, se eu não me engano, o meu já cortou. Cortou de quinhentas pessoas. Por quê? Não sei. Dois daqui do acampamento já foram cortados também. E eu não, não falaram nada. Só falaram que foram receber e tava cortado. E agora dia 23 é o meu, e não sei se vou receber ou não. É um benefício que ajuda bem. Mês passado eu não tinha um dinheiro pra comprar o gás, aí o Bolsa Família que ajudou. Porque aqui a gente usa mais o fogão de lenha, mas como tá esse tempo chovendo não acha madeira seca. Aí é tanto pra cozinhar como pôr água pra esquentar e poder tomar banho, porque não tem chuveiro.
84 E sobre a família?
Minha filha morava aqui com a gente, tinha mais duas crianças, mas ontem ela mudou, foi embora. Falou que não aguenta ficar aqui não. Mas aqui é assim mesmo, pra morar em acampamento, ocupação, tem que ser muito forte e ser de opinião. Senão não fica. Tem que ter convicção, senão não fica não. Como foi quando vocês chegaram aqui? Aqui quando a gente chegou teve um sorteio, cada um ficou com um lote. E aqui era um mato, tinha umas ‘arvona’. Aí a gente limpou e fez os barraquinho. O que você pode comentar desse processo de regularização do assentamento? Tudo depende deles lá né. Um colega meu falou numa reunião com o INCRA: ‘Eu queria que vocês ficassem pelo menos uma semana morando do jeito que a gente mora lá, aí vocês iam ver a realidade’. Aqui tem dia de chuva muito forte que entra água. Dá pra ter uma segurança, uma tranquilidade com a posse? Se uma simples caneta assinasse e desse a posse pra gente, aí poderia ficar tranquilo. Porque hoje a gente não sabe o dia de amanhã. E se chegar uma reintegração? Pra onde eu vou? Tem que desmanchar tudo senão o trator passa e derruba tudo.
Canaã, a terra prometida “Moradia não é nem um direito básico da pessoa, é um direito mesmo. Tá na Lei, foi decretado que todo mundo tem direito à moradia. Mas aqui, se a gente não lutar, a gente perde. Porque prefeito nenhum vai chegar aqui e dar essa terra pra você. Se a gente não lutar pela terra não vai ter terra”. É o que conta Aline Pereira, que faz parte da coordenação do acampamento “Nova Canaã”, região do Jardim Mary, em Bauru, próximo ao Instituto de Pesquisas Meteorológicas - IPMet, da Unesp. Segundo ela, no pedaço de terra que ocupam, são oitocentos lotes, contando com um total de seiscentas famílias. Hoje o local abrange um topo de morro com declive não muito acentuado, e cada lote contém moradias de madeira, em níveis diferentes de acabamento. Para a coordenadora, ali estão morando famílias que realmente necessitam de um lugar, por não terem condições de pagar aluguel e
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pela falta de trabalho, que também está escasso na cidade. “O aluguel tá muito caro, e as pessoas não tem condições, aí acabam procurando um refúgio. É por isso que a gente montou a bandeira do MSL, pra ajudar as pessoas na luta por moradia”. O Movimento Social de Luta - MSL tem um ano de existência, e está na missão de assentar os trabalhadores urbanos sem moradia. “Quando vamos fazer alguma luta”, explica Aline, “é porque estão querendo tirar a área que está com algum de nós”. A área do Canaã está ocupada pelas famílias há cerca de 7 meses, numa terra que pertence à União, como conta a coordenadora, que ainda não foi formalizada. “Aqui por não estar regularizado, a gente corre o risco de ser despejado. Então a gente passa medo aqui, porque a gente se arrisca”, conta ela. “Não tem aquela segurança. Tem pessoas aqui que arriscam a vida inteira pra ter uma terrinha, uma coisa que é só dela, pra que ninguém chegue e fale ‘essa terra é minha, você tem que sair’”. Aline expõe que as táticas do movimento são diferentes de outros grupos, com regras diferentes, “A gente não vai pra brigar, a gente vai pra mostrar que o MSL tá aqui pra ajudar. Nós temos uma organização que não pode fazer baderna. Onde a gente vai não pode pegar ou quebrar nada de ninguém”. Como em outros movimentos que lutam por moradia, as famílias que compõem o Canaã estavam no aluguel ou em situações mais críticas. “Antes de montarmos aqui as famílias estavam no aluguel mesmo, tinha gente que não tinha nem casa pra morar, tinha quem tava sendo despejado”, lembra ela, que diz que também veio gente que estava morando na rua. Atualmente, por conta da informalidade, o assentamento não possui água ou energia elétrica, a não ser por gatos, que ainda não abrangem a totalidade das casas. “Ficamos 6 meses sem luz, tudo na vela”, recorda Aline. “Tem muita gente que tem criança, tem gente que tem doença e precisa do aparelho de respiração, então precisa de energia”. A água também requer um trabalho para chegar até lá. “Tem que buscar lá na Unesp, tem uma torneira lá, eles enchem a garrafas e trazem aqui, e de tudo que é jeito, a pé, de carro, de moto”, diz. “Precisamos também de ônibus de escola né, porque tem um monte de criança aqui. Em dia de chuva, a criança perde aula”. “O movimento de moradias, no geral, está na vanguarda de todas as lutas sociais que temos no Brasil”, declara José Xaides. “Mas é um enfrentamento das classes dominantes e da concepção do que
é propriedade privada e de até onde vai o papel do poder público”. Para o professor, a cidade tem nos dias de hoje terras particulares que foram alvo da expansão de fazendeiros desde o século XIX, por meio da grilagem. No Brasil, grileiro é aquele que toma posse de terras de terceiros mediante métodos ilícitos, como a falsificação de documentos. “Tem muitas terras que no papel são questionáveis do ponto de vista de propriedade privada”, comenta ele. “Aqui, além do MSL, que está nessa área, tem grileiros que querem pegar terra”, denuncia Aline. “Tem gente com dinheiro, que quer pegar a terra pra ganhar em cima, pra revender”, diz. Ela explica que a coordenação do acampamento cobra um taxa de R$ 50,00 dos moradores, como forma de manter o trabalho de advogados do movimento. “Se a pessoa puder pagar, paga, mas se não puder não tem como fazer nada”. Para Xaides, os meios de comunicação também cumprem um papel importante na relação entre os movimentos pelo direito à terra e o restante da população. “O que acontece é que a nossa sociedade e nossos jornais acabam por colocá-los como movimentos ilegítimos, contra a propriedade, quando na verdade sabemos que a coisa é mais embaixo”, resume. Aline compartilha dessa ideia. “Esse povo da internet, tem bastante gente que critica. Falam que a gente é ladrão, vagabundo. Mas se é vagabundo e desocupado é porque não temos trabalho”, esclarece ela. “Nenhum de nós aqui é vagabundo, nenhum é ladrão. Aqui existem regras dentro do acampamento, então nada aqui é desorganizado. E quando esse povo começa a falar assim na internet, eu só acho que eles deveriam participar mais do acampamento”, provoca. “Acho que eles deveriam vir aqui pra ver como que é o dia-a-dia da família. Como que é ficar sem lavar uma roupa, não ter água pra esbanjar. Pensa no tanto de criança que tem aqui”, reflete Aline.
Protagonismo, cidadania e expressão
“Eu gostaria de ser conhecido como Terena. Mas como as pessoas podem me reconhecer assim se elas não me conhecem? É por isso que vem esse trabalho de difusão”, conta Irineu Nje’a, indígena da etnia Terena da cidade de Avaí-SP e presidente da ARACI Cultura Indígena, entidade que trata do resgate, difusão e disseminação do tema na cidade. Para ele, o cerne do trabalho é democratizar e tornar mais acessível o conhecimento da causa indígena na cidade. “Bauru tem na sua região a reserva indígena de Araribá, e as pessoas 87
desconhecem e não sabem nem o povo que tem lá, como os Terena, Kaygang, Guarani”, afirma. Segundo o presidente entidade, a principal luta envolvendo a questão indígena é relacionada à demarcação de terras. Em janeiro de 2017 o governo Michel Temer (PMDB), por intermédio de Alexandre de Moraes, Ministro da Justiça e Cidadania, publicou a Portaria nº 80/17, uma versão reduzida de outro documento revogado pelo próprio ministro, após críticas de entidades ligadas ao movimento indígena. A nova portaria mantém pontos da anterior, como a criação do Grupo Técnico Especializado (GTE), que teria a finalidade de validar os trabalhos técnicos de demarcação de terras indígenas realizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Organizações da Sociedade Civil que atuam com a temática, como o Instituto Socioambiental (ISA), consideraram a medida uma forma de fragilizar o trabalho da Funai, que é vinculada ao Ministério da Justiça e é a executora da política indigenista federal. “O agronegócio não quer que demarque”, explica Irineu. “O agronegócio quer que o governo invista no desenvolvimento do agronegócio, onde diz que ele é tudo, que o agro é pop. Mas não é”. Segundo ele, a democracia brasileira é excludente e o protagonismo indígena envolve uma participação de resistência, mirando na defesa de direitos. “E a gente resiste com base na Pedagogia da Resistência. É a resistência através da educação. O indígena hoje deve resistir para existir”, diz. “Esse sistema não deixa as pessoas viverem livremente. A gente tá numa cadeia alimentar que ou você vai matar ou vai morrer. É a sobrevivência, é a selva. E alguém ali sentado vendo tudo isso”, diz Thiago NGO, rapper de Bauru e responsável pela “Produto do Gueto Records” (PDG Records), gravadora independente de Hip Hop. Dentro do estúdio de sua gravadora, na Bela Vista, Thiago está sentado em frente ao computador. Em ambos os lados da mesa, poderosas caixas de som. Sobre a espuma que recobre todas as paredes do estúdio, coloridos quadros de madeira com graffitis. “Aqui a gente abre portas, tá ligado?”, começa ele. “Além de você vir gravar seu CD, graças aos nossos contatos, a gente consegue passar pra frente, conseguir lançar num programa de rádio, num canal de TV, fazer um clipe no YouTube. Então, a gente tem esse veículo de comunicação muito grande, pra gente conseguir divulgar o trampo de alguém que acabou de começar”, explica.
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Matéria ISA sobre publicação da Portaria nº 80/17: https://goo.gl/prfyBc
Thiago diz acreditar muito no Rap de Bauru, por ser um estilo consciente. “Além de mostrar um pouco do que viveu, aqui a maioria dos artistas são focados em citar essa consciência, daquilo que pode te levar a uma morte, à cadeia, que pode te fazer levar um pau na quebrada”, relata ele. “É claro que tem outros gêneros musicais, mas eu creio que o Rap é o que está resgatando nas periferias”, diz. Na sua visão, o Rap sinaliza uma mudança, pois instrui e conscientiza. “É uma resistência que já tava aí de uns anos, mas agora é que tão olhando direito, e a massa está começando a ficar tão resistente, que a resistência está se encorpando. Agora ela não é mais só no papel, é concreto e se solidificou”, acredita NGO. Tanto para Irineu quanto para Thiago, estão presentes as ideias de autonomia e tomada de consciência, buscando construir “um outro lado” da história. “Aquele preconceito que foi criado lá em 1500, e percorre esses cinco séculos, tem que ser desconstruído. Temos que desmontar essa história totalmente equivocada e errônea”, ressalta o presidente da ARACI. “Esse é o momento do protagonismo indígena. Eu sou Terena e tou contando a própria história do meu povo”, diz. “Chega de fantasiar”, brada Thiago. “Esse desenho já tá rasgado, sem cor e sem vida. Olha a massa que é o Brasil. É isso que o Rap vem buscando, uma igualdade para todos”, conta. “E o único jeito de mudar é esse: o Rap ganhar voz e ganhar força de conseguir entrar no Congresso e falar ‘mano ou vocês vão mudar ou nós vamos parar o país’”. “Veja só, uma vez eu tinha ido na Funai, e a mulher que tava lá falou assim ‘ah, tem um índio aí’. Aquilo me arrepiou dos pés à cabeça”, descreve Irineu. “Parece que tinha tirado minha identidade. Índio não! A partir do momento que começou minha consciência crítica pra luta e para o ativismo na questão indígena, eu comecei a entender que tenho uma identidade. Que eu sou Terena”, declara. “Querendo ou não, cada um tem seu lado ativo politicamente”, comenta Thiago. “Todo mundo ali no café da manhã para pra trocar ideia sobre política, não são só algumas pessoas que têm que acompanhar isso, até porque muitos se interessam pelo assunto”. Para ele, a população que foi “deixada de lado” pelo sistema é sua maior ameaça. “Os caras ficaram ali entre eles mesmo, e o que aconteceu? Eles foram diminuindo e a população aumentando. E se essa massa inteira se organizar, eles ficam em choque”, reflete. “A minha ideia é essa, revolucionar o barato, e tendo umas
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referências fortes por cima. Eu tenho essa visão porque estudei muito Tupac1, os Panteras Negras2, Malcolm X3, Martin Luther King4, li muito”, revela o dono da PDG, que passa a argumentar: “enquanto eles ficam atrás de maioridade penal, os cara tinham que pôr a mão na cabeça e pensar que o crime não vai parar por causa que a Facção tá usando menor de idade”, diz. “É que o país abandonou até os menores. O governo tirou todos os meios de ganhar dinheiro, tirou os meios dos pais dessas crianças de ganhar dinheiro. Aí querem colocar a criança mais cedo na cadeia? O que que os moleque tem culpa? Eles tão abandonado. Não têm escola, não têm esporte, não tem uma TV, um livro”. “As grandes mídias acabam reforçando o preconceito”, resume Irineu. “O que elas querem? É estar junto com o agronegócio e os grandes latifundiários”, explica, dizendo que, no Brasil, o agronegócio não mantém o país, quem mantém são os pequenos produtores. “Com os grandes é só exportação, e uma pessoa é dona de uma vasta quantidade de terra”, analisa. “O argumento que eles usam é de perguntar pra quê o indígena vai querer terra. Mas no nosso caso é uma comunidade que mora nessa terra, e essa comunidade está lá só pra sobreviver. Não é nem um negócio”, explica.
Tecnologia, Mídia radical e comunicação alternativa Cerca de 102 milhões de pessoas se conectaram à internet no ano de 2015, segundo dados da Pnad divulgada pelo IBGE em novembro de 2016. Esse número representou um aumento de 7,1% em relação ao ano anterior. Nunca no país tantas pessoas estiveram conectadas com a rede mundial de computadores - essa quantidade significa que 57,5% da população brasileira. No entanto, a televisão ainda continua sendo o meio de comunicação mais presente na vida do brasileiro. De acordo com dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), do Comitê Gestor da Internet no Brasil, a televisão está em 97% dos domicílios do país. Depois da TV, o aparelho mais comum nos lares brasileiros é o telefone celular, que consta em 93% dos domicílios. Já o percentual de domicílios com acesso à internet representa pouco mais do que a metade - 51% das casas no
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Números de internautas no Brasil, segundo IBGE: https://goo.gl/wSa1Gf Dados do Cetic sobre tecnologia, ver https://goo.gl/jzrasb
Brasil estão conectadas. Dentro das residências com acesso à internet, a forma mais comum de conexão é a banda larga fixa, que está presente em quase 7 de cada 10 domicílios brasileiros. As estatísticas apontam para um crescimento no número de internautas e maior familiarização com aparelhos eletrônicos que se conectam à internet, apesar de ainda não abranger a maioria da população brasileira. A televisão ainda é o principal meio de comunicação no Brasil, o que faz dela a mais importante fonte de informações para a população. Todas as emissoras de TV são concessões públicas, ou seja, elas exercem o direito de transmissão por terem uma permissão do Poder Público, pois entende-se que o espaço utilizado para a operação dos canais (o espectro eletromagnético) seja um bem da população, portanto, um bem público. Além disso, diferentemente dos meios impressos (jornais, revistas), a comunicação por rádio ou televisão tem um limite físico, determinado pelas faixas de frequência dos sinais de cada emissora. O espectro eletromagnético comporta um número limitado de emissoras de TV. Baseado nessa concessão, as empresas privadas que se utilizam desse espaço devem obedecer a uma série de diretrizes. Segundo o Código Brasileiro de Telecomunicações, por exemplo, ao menos 5% da programação das emissoras deve ser destinada à transmissão de notícias e 5 horas semanais devem ser usadas para programas educativos. Outras questões dizem respeito à pluralidade e diversidade da sociedade brasileira, que devem ser representadas nas transmissões, além da proibição dos monopólios - a formação de grupos de comunicação que dominam a produção de conteúdo nacional, como é o caso das grandes emissoras de TV e suas emissoras afiliadas. Nesse sentido, a criação de narrativas, conteúdos e interpretações políticas que tradicionalmente informam o cidadão é feita por esses grupos de empresas de comunicação. Por isso é necessário uma visão diferente sobre o que costuma ser veiculado, para mostrar, dentre outras coisas, outros lados não abordados em notícias e para representar grupos que não costumam ter visibilidade na mídia. Essa é a visão de Cláudia Rocha, representante do Centro de Estudos da Mídia Alternativa “Barão de Itararé”,5 uma entidade que luta pela democratização da comunicação, visando conquistar maior pluralidade e diversidade informativa e cultural no país. “Rádio e TV no Brasil, uma terra sem lei”, matéria da revista Carta Capital, ver https://goo.gl/PzsTX6
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Segundo ela, é “fundamental” continuar na resistência através das mídias alternativas. “A grande mídia ainda tem uma relevância muito grande na sociedade e até do ponto de vista da credibilidade. A Rede Globo, por exemplo, tem um alcance de cerca de 98% do território nacional. Ela é praticamente unânime, todas as pessoas têm acesso à ela”, reconhece a ativista, que entende os atuais limites das mídias alternativas, também conhecidas como “contra hegemônicas”: “Os veículos alternativos atuais estão muito ligados à internet, sua principal atuação hoje está nas redes sociais, e elas têm um limite técnico de alcance que são os algoritmos, fazendo com que as pessoas tenham acesso só àquilo que já é do interesse delas”, explica. Segundo Patrícia Cornils, jornalista e ativista pelo direito à privacidade e liberdade de expressão na internet, atualmente parte da disputa pela opinião pública se dá na esfera conectada e em publicações online independentes da grande mídia, apesar de guardarem ainda uma relação de poder entre elas. Para a Cornils, “jornais, tevês e revistas da imprensa tradicional não têm mais o poder quase exclusivo de formar opiniões e são menos incontestáveis do que há duas décadas. Mas ainda são, inclusive na internet, responsáveis pelas notícias mais lidas e compartilhadas”. A própria difusão da tecnologia contribui para o fortalecimento de discursos e interpretações alternativas na sociedade. Segundo dados do Cetic, aumentou a presença de tecnologias de informação e comunicação nas casas brasileiras. Computadores portáteis passaram de 3% em 2008 para figurar em 32% dos domicílios em 2015. Tablets, de 2% em 2012 para 19% em 2015 e os celulares, que já estavam em 72% das casas em 2008, passaram para 93% delas em 2015. “Na minha época que comecei, com 14 anos, começo dos anos 2000, não tinha tudo isso, a tecnologia não era assim tão próxima. Você não tinha um computador na sua casa, você não tinha internet, eram outras ideias, outra época”, lembra Thiago NGO. Segundo o rapper, hoje as chances de visibilidade são maiores, devido à tecnologia. Por conta disso, ele aposta e investe nos novos meios. “Essa evolução ajudou bastante, porque a gente nunca virou as costas pra isso, pelo contrário, a gente sempre usou a internet como meio de comunicação e fonte de informação”, diz ele. A tecnologia também se revela um meio de articulação de grupos e comunidades. O síndico do Residencial Três Américas II, Cristian, utiliza desse meios para organizar o condomínio. “A tecnologia é ferramenta rápida de informação. Toda situação, raras exceções, são
transmitidas via email ou facebook ou whatssapp”, explica. Além de auxiliar na realização de reuniões entre os moradores do MCMV, esses meios são úteis em momentos de urgência ou catástrofes naturais, conforme ele explica. “Assim evita-se que aleguem ignorância de fatos; agiliza o recebimento assuntos diversos... Enfim, uma gama de oportunidades para facilitar a resolução da ocorrência”. “Trabalhamos com a internet, várias plataformas, são vários meios de mostrar e dar continuidade ao nosso trabalho”, explica Thiago. Na opinião dele, chegou o momento de “quebrar o tabu”, pois “o Rap uma hora ia parar na mídia, tocar na rádio, ter clipe na internet. E é o que está acontecendo aqui no Brasil”, e emenda: “Não é porque você é de periferia e canta Rap que você não pode ser um ator, fazer um filme, ser um diretor, tudo depende de você”. A chamada “grande mídia”, ou mídia tradicional é aquela que se configura como empresa de comunicação, e detém um poder de influência na sociedade, devido à credibilidade atribuída a esses veículos, o que gera sua consolidação no meio informativo. Em Bauru, esses meios consolidados acompanharam a evolução do debate sobre o urbanismo na cidade. Segundo o promotor Varonez, os meios de comunicação da cidade, de cinco anos atrás, pouco noticiavam da temática. “Se olhar hoje percebe-se a importância que o urbanismo tomou nos meios de comunicação”, diz ele. Se por um lado aumentou-se a importância da questão urbana na mídia bauruense, por outro a representação se dá de forma distorcida ou mesmo ofensiva. Foi o que considerou Gislaine, do acampamento “Virgínia Rainha”. “E eu saí no jornal, vieram me gravar aqui. Aí saiu lá ‘A miséria e um canto para morar’, em cima da minha foto. Acabou comigo”. Ela se refere à matéria publicada pelo Jornal da Cidade no dia 4 de setembro de 2016, “O custo da miséria social e um canto para morar”. Sua foto está apenas na versão impressa do jornal. “Eu cato reciclagem, aí um monte de gente me viu. Eu não achei ruim por mostrar, mas pela palavra, porque me chamou de miserável na cara”, reclama ela, que diz que não foi avisada que sairia no jornal. “Não conversei com ele depois, mas ele só veio, entrevistou, começou a fazer perguntas e tirar fotos. Não sabia que ia sair no jornal, ele nem falou. Eu fui desrespeitada e essas palavras caíram muito mal”. Para Claudia Rocha, ciente dos limites da comunicação alternativa, a ideia é continuar denunciando irregularidades e aborMatéria Jornal da Cidade “O custo da miséria social e um canto para morar”., ver https://goo.gl/haUukU
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dando temas que não são tradicionalmente retratados, para conseguir “pautar” e influenciar os grandes meios. “Quando o barulho é muito grande nas redes, a grande mídia acaba sendo obrigada a falar”, diz. Nesse sentido, a comunicação também cumpre o papel de informativo e empoderador dos cidadãos, ampliando a noção de direitos e consciência dos processos legais. Como explica Varonez, “não basta que o direito conste na Lei, é preciso fazer com que a população se aproprie desse direito”. Para o promotor, a maior dificuldade é criar na sociedade a consciência de que ela tem que ter esse direito. A ideia de comunicação, em especial aquela feita através das mídias, tem nesse ponto uma ruptura. Pelo menos na visão de John Downing. A mídia alternativa, e aqui se enquadra a comunicação feita pelos movimentos sociais, deve ter acrescentado a ela o Radical - ou seja, aquilo que penetra na raiz das questões. Em entrevista realizada em 2008, Downing explica que o “significado de ‘raiz’ não existe se um confronto não tem um significado político”. Para o autor, a ideia de “mídia” e “comunicação” devem ser entendidas como coisas maiores do que se entendem que são. E aqui entram zines, panfletos, cartazes, graffitis, pixos, stencils, lambes, música de protesto, uma letra de Rap, uma peça de teatro. “Para mim a mídia radical alternativa está na base de tudo que é a comunicação entre pessoas ativas, e essa comunicação possa ou não, ser mediada por aparelhos”, afirmou ele. “Acho que para além do diálogo com a própria sociedade, também é preciso tentar pautar os grandes meios, seja com atos, ocupações ou com a própria mídia mesmo, tentando denunciar e escancarando a censura que é feita com relação aos movimentos”, diz Claudia. “Hoje o que a gente tem de resistência na mídia alternativa vêm de movimentos sociais, principalmente experiências de sindicatos, MST e coletivos”.
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Esgoto corre a céu aberto no Niceía, bairro ainda não regularizado. Abaixo, Câmara de Bauru lotada com a presença do MSL e movimentos por moradia.
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Parte 4
Estado versus mercado: Considerações finais Brasília, 13 de dezembro de 2016. Em segunda votação realizada no Senado Federal, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estabelece um teto para os gastos públicos pelos próximos 20 anos é aprovada por 56 votos contra 16. Encaminhada pelo Governo Michel Temer (PMDB) e popularmente conhecida como “PEC do Teto”, a medida é sua receita para a superação da crise econômica e retomada do crescimento do Brasil. A alteração dos governos ocorrida com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) explicitou para o debate público as diferenças políticas e econômicas na maneira de entender o mundo e de agir dentro dele, para além das conhecidas oposições entre esquerda e direita, liberal e conservador, ortodoxo e heterodoxo. Elas mostraram as relações entre duas instâncias da sociedade e seus respectivos papéis: o Estado e o Mercado. Segundo os economistas Marcos de Barros Lisboa e Samuel Pessôa, em artigo na “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo, esse debate começa com as possibilidades de organização da produção e da seguridade social em qualquer país. Em resumo, eles sustentam que ou se pode tolerar maior desigualdade a fim de gerar mais crescimento ou se aceita um menor crescimento buscando diminuir a desigualdade. Seguindo o raciocínio dos economistas, essa oposição se dá em torno de dois eixos: no tamanho da oferta da rede de bem-estar e seguridade social e na intervenção do setor público nos mercados. As duas posições dizem respeito ao papel que o Estado deve ter na Economia. De acordo com Jessé Souza, a sociedade moderna funciona em torno das suas duas instituições fundamentais: o mercado competitivo e o Estado centralizado. O pesquisador considera que ambas são “ambivalentes” - têm aspectos positivos e negativos. Conforme
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“O funcionamento da economia segundo a direita e a esquerda”, artigo de Lisboa e Pêssoa na Ilustríssima: https://goo.gl/aOrDrs
ele explica, é inegável que o mercado capitalista seja a maneira mais eficiente que o ser humano inventou para produzir riqueza material, mas ele também é causador de desigualdades e “sofrimentos” causados por trabalhos “repetitivos e desinteressantes” e pela “imposição” de um estilo de vida que se baseia na “aparência” e no “consumo banal” como formas de distinção. Seguindo sua análise, Jessé também sustenta a ambiguidade do Estado, que tanto pode ser um “poderoso elemento” que concentra riqueza e poder para corrigir injustiças com os “inadaptados” ao mercado como também pode ser usado para concentrar renda e privilégios. “Mercado e Estado não são ‘bons’ ou ‘maus’ em si. Seu uso refletido implica a consciência de suas ambiguidades constitutivas”, conclui ele. Para Herculano Souza, o Estado brasileiro está “longe” de ser redistributivo “do jeito que gostaríamos”. Segundo ele, “gastamos muito com pagamentos, subsídios e benefícios às camadas mais ricas. Em teoria, seria possível conciliar ajuste fiscal e proteção aos mais necessitados. Se isso vai acontecer na prática, ou não, é uma outra história, que depende das lideranças políticas”. Já Adriana Brito da Silva entende que os planos de congelamentos sobre os gastos públicos “incidem diretamente” na vida da população empobrecida. “Os brasileiros, principalmente os que vivem da venda do trabalho, correm riscos e isto não é uma propaganda alarmista”, defende. Nesse sentido, de acordo com Ilan Lapyda, deve-se atentar a duas questões no debate sobre o controle de gastos do governo. Segundo ele, uma delas é o sistema tributário, “uma das questões político-econômicas cruciais do Brasil” e que demandaria não uma reforma, mas “uma revolução”. “Calcula-se que os “super-ricos” paguem algo em torno de 6% de sua renda em impostos, ao passo que os mais pobres comprometem aproximadamente metade de sua renda”, diz. Outra questão é a Previdência, que envolve posições diferentes quanto à existência de um déficit e a necessidade de reformas. Segundo ele, “é difícil calcular o impacto da PEC do Teto, dado seu quase ineditismo no mundo (em termos da magnitude do congelamento, do tempo previsto – 20 anos – e do formato jurídico – inscrever na constituição)”, argumenta. Os desdobramentos da relação Estado x Mercado são visíveis na urbanização e no direito à cidade. No entendimento de Fernanda Corghi, a ausência do Estado para a maior parte da população de renda mais baixa define a ilegalidade da política da habitação e sua dualidade, pois comporta uma produção “tipicamente capitalista” e
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uma outra de subsistência, que se configura no espaço da miséria. “O problema da produção de moradia é deixado por conta do indivíduo”. Para Corghi, a relação “centro-periferia” passa a ser redefinida pela criação de “ilhas” de classe média “incrustadas na periferia”. “Sob esse ponto de vista, se tem uma cidade fragmentada, que não se relaciona entre si, seja pela presença de vazios urbanos, seja pelos muros segregadores dos residenciais fechados. O convívio forçado dos estratos médios e altos com os setores populares num contexto de desagregação social e de baixo crescimento econômico, tende a aumentar os preconceitos sociais, com a identificação dos pobres como classe perigosa”, afirma. É nesse contexto que se configuram aquilo que o geógrafo brasileiro Milton Santos chamou de “Circuitos Superior e Inferior da Economia Urbana” - uma teoria proposta em diversos livros seus, mas que foi aprofundada em seu livro “Espaço Dividido” (1979). Nessa compreensão, o espaço é encarado como uma instância social, palco das realizações tanto materiais como simbólicas da sociedade. Essa teoria refere-se ao modo como as cidades dos países periféricos funcionam a partir desses dois sub-sistemas urbanos: o Superior (a cidade iluminada, formada pelas grandes empresas, bancos e instituições financeiras, estruturas organizacionais sólidas e largo uso de tecnologia) e o Inferior (a cidade opaca, caracterizada pelas pequenas atividades, pela baixa organização institucional, pela informalidade e, em geral, baixa remuneração). Segundo o autor, a existência de ambos evidencia as ligações estruturais entre pobreza e riqueza, e eles variam de acordo com a magnitude de capitais empregados, com o nível de emprego da tecnologia disponível e em relação ao estágio organizacional das atividades produtivas. As diferenças entre cada setor e a relação de convivência que eles mantêm repercute na construção do espaço público. Como sustenta em um artigo Raquel Rolnik, “a rua perde seu papel de espaço social, enquanto os condôminos se enclausuram em suas ilhas particulares de conforto e lazer. Cada vez mais o espaço público se transforma numa ‘terra de ninguém’, tomada pelos circuitos criminais, enquanto se espalha uma arquitetura dos espaços semipúblicos privados e controlados, e a fortaleza dos condomínios”. Voltando à ideia de David Harvey sobre o direito à cidade,
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“Planejamento Urbano nos anos 90: Novas perspectivas para velhos temas”, artigo de Raquel Rolnik: https://goo.gl/IUFnHF
uma vez que a urbanização, segundo ele, é um dos principais canais de uso do dinheiro que vem do Mundo do Capital, a necessidade que surge é criar um maior controle democrático sobre a utilização desses recursos. “O neoliberalismo também criou novos sistemas de governança que integraram os interesses estatais e empresariais, garantindo que os projetos governamentais para as cidades favoreçam as grandes empresas e as classes mais altas”, expõe. Para o autor, aumentar a proporção do dinheiro que está sob controle estatal e, por consequência, aumentar o poder do Estado, só terá um impacto positivo se o próprio Estado voltar a ficar sob controle democrático.
O momento da Movimentação No livro “Cidades Rebeldes”, organizado pela Boitempo Editorial em parceria com o portal Carta Maior, Venício Artur de Lima, jornalista, cientista político e professor, considera ser “indispensável” no Brasil um reforma política que inclua em sua esteira a regulação das comunicações no país, “como garantia”, diz ele, “de que se estabeleçam as condições para a formação de uma opinião pública capaz de agregar mais vozes ao debate público, vale dizer, para que mais brasileiros – e não só os rebeldes urbanos – sejam democraticamente representados”. Seguindo esse pensamento, a democracia - que pressupõe cidadania, direitos, deveres e participação política, não está colocada para todos. O filósofo Slavoj Žižek, no mesmo livro, defende que a tendência geral do capitalismo global seja mesmo essa. O esvaziamento da democracia ao se direcionar a expansão do mercado “combinada” com o enclausuramento do espaço público, diminuição de serviços públicos (saúde, educação, cultura) e ao aumento do funcionamento autoritário do poder político. “Tomemos como exemplo uma revolta motivada por um pedido de justiça”, ilustra o filósofo. “Uma vez que as pessoas tornam-se de fato envolvidas, percebem que é necessário muito mais para que seja feita a verdadeira justiça do que apenas as limitadas solicitações com que começaram (revogação de algumas leis, etc.)”. A questão que ele coloca é essa: O que seria esse “muito mais”? Para ele, a crença na democracia liberal faz parecer possível que os problemas sejam resolvidos gradualmente, um a um. “Mas e se os problemas de funcionamento do capitalismo,
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em vez de distúrbios acidentais, forem estruturalmente necessários?”, provoca. “Muito se falou da violência por parte dos manifestantes. Mas o que é essa violência quando comparada àquela necessária para sustentar o sistema capitalista global funcionando ‘normalmente’?”. Periodicamente isso termina em revolta. Se, como parece provável, as dificuldades aumentarem e a fase até agora bem-sucedida, neoliberal, pós-moderna e consumista do investimento na urbanização estiver no fim e uma crise mais ampla se seguir, então surge a pergunta: onde está o nosso 1968, ou, ainda mais dramaticamente, a nossa versão da Comuna de Paris? Tal como acontece com o sistema financeiro, a resposta tende a ser mais complexa porque o processo urbano hoje tem âmbito mundial. Ao contrário do sistema financeiro, entretanto, os movimentos sociais urbanos e das periferias das cidades não têm em geral conexão uns com os outros. E se, de alguma forma, eles vierem a se unir, o que deveriam exigir? Nesse ponto da história, essa tem de ser uma luta global, predominantemente contra o capital financeiro, pois essa é a escala em que ocorrem hoje os processos de urbanização. Sem dúvida, a tarefa política de organizar um tal confronto é difícil, se não desanimadora. Mas as oportunidades são múltiplas, pois, como mostra esta breve história, as crises eclodem repetidas vezes em torno da urbanização e a metrópole é hoje o ponto de confronto – ousaríamos chamar de luta de classes? — a respeito da acumulação de capital pela desapropriação dos menos favorecidos e do tipo de desenvolvimento que procura colonizar espaços para os ricos. (David Harvey, Direito à Cidade)
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Notas INTRODUÇÃO 1-David Harvey: geógrafo britânico marxista formado na Universidade de Cambridge (Inglaterra), trabalha na análise geográfica das dinâmicas do capital. Desde 2001 É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York. Autor de livros como Os limites do Capital, Condição Pós-Moderna, A produção capitalista do espaço, dentre outros. Mais informações: https://goo. gl/vHlqtQ 2-Thomas Piketty: Economista francês, doutor em filosofia na Escola de Londres de Economia. Autor de O Capital no Século XXI, livro que lhe garantiu prestígio internacional, no qual defende que no capitalismo existe a tendência inerente à concentração de renda, fato que intensifica a desigualdade sócio-econômica. Mais informações: https://goo.gl/QG5Lhq 3-Jessé Souza: Sociólogo brasileiro, doutor em sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg (Alemanha), professor titular de ciência política na Universidade Federal Fluminense. Ex-diretor do IPEA, é autor de livros como A Ralé Brasileira e A Construção Social da Subcidadania. Mais informações: https://goo.gl/wzaGHs 4-Raquel Rolnik: Arquiteta e urbanista brasileira, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada (2008 a 2014). É autora dos livros A Cidade e a Lei, O que é Cidade e Guerra dos Lugares. Mais informações: https://goo. gl/XAYXvO 5-Milton Santos: (1926-2001), geógrafo brasileiro, doutor em Geografia pela Universidade de Strasbourg (França). Destaque para seus estudos da urbanização do Terceiro Mundo. Primeiro e até então único geógrafo da América Latina a ter ganhado o prêmio Vautrin Lud, considerado o “Nobel da Geografia”. Autor de livros como Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal e A urbanização brasileira. Mais informações: https://goo.gl/zjgJze 6-Occupy Wall Street: Ocupe Wall Street foi um movimento de pro-101
testo iniciado em setembro e 2011 contra a desigualdade econômica e social iniciado em Nova York na região de Wall Street, símbolo do poder financeiro mundial. Teve como slogan a luta dos 99% da população contra o 1% que “comanda” o mundo. Mais informações: https://goo.gl/TRufA6 7-Slavoj Žižek: Sociólogo, filósofo e teórico esloveno. Professor da European Graduate School (Suíça). Autor de livros como Bem-vindo ao deserto do Real!, Em defesa das causas perdidas e Vivendo no fim dos tempos. Mais informações: https://goo.gl/ILVsb1 8-John Downing: Professor e pesquisador britânico da Southern Illinois University (EUA). Dedica seu trabalho aos estudos da Mídia alternativa e relações com movimentos sociais. Autor do livro Mídia Radical Alternativa - Rebeldia nas Comunicações e Movimentos Sociais (2001). Mais informações: https://goo.gl/9hZqGZ 9-Ricardo Gandour: Jornalista e pesquisador brasileiro. Como pesquisador visitante da Universidade de Columbia (EUA) trabalhou com a fragmentação e polarização da mídia nas redes sociais. Atualmente é diretor executivo da Rádio CBN. 10-Zygmunt Bauman: (1925-2017), sociólogo polonês, professor emérito de sociologia das universidades de Leeds (Inglaterra) e Varsóvia (Polônia). Criador do conceito de “modernidade líquida” e crítico das crescentes desigualdades sociais. Autor de livros como Modernidade Líquida, A sociedade individualizada, Desafios do mundo moderno, A riqueza de poucos beneficia todos nós? entre outros. Morreu no início de 2017. Mais informações:https://goo.gl/s6Pui1 11-José Xaides: Arquiteto e urbanista brasileiro, doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Unesp de Bauru. É pesquisador na área de Planejamento Participativo Regional, Urbano e Rural; Direito Urbanístico. PARTE 1 1-Mehmet Ciplak: Policial turco que encontrou o corpo do menino Aylan Kurdi na praia. Suas ações aqui descritas baseiam-se nos depoimentos que ele próprio concedeu à imprensa turca. Mains informações: https://goo.gl/x0pIM3 2-Nilüfer Demir: Repórter fotográfica turca da agência de notícias Dogan. Seu registro fotográfico foi eleita pela revista americana Time umas das 100 maiores fotos de 2015. Mais informações: http:// www.dha.com.tr/photo-of-aylan-kurdi-among-times-top-100-photos-_1092274.html
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3-Eric Hobsbawm: (1917-2012), historiador e marxista britânico, considerado um dos mais influentes na área. Autor de livros como A Era das Revoluções e A Era dos Extremos. Mais informações: https:// goo.gl/zPXffQ 4-Pedro Herculano Souza: Pesquisador e sociólogo brasileiro, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador do IPEA, no qual realiza estudos na área de desigualdade social e políticas sociais. 5-Ilan Lapyda: Sociólogo brasileiro, mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Estuda os temas de financeirização e marxismo. 6-Henry Ford: (1863-1947), industrial e empresário americano. Criador da linha de montagem móvel e das técnicas de fabrico em série, que definiram o padrão industrial na primeira metade do século XX. Mais informações: https://goo.gl/2anKX6 7-John Maynard Keynes: (1883-1946), economista britânico, considerado um dos economistas mais influentes do século XX e o fundador da macroeconomia moderna. Sua principal defesa foi a do papel regulatório do Estado para minimizar as instabilidades do mercado. Mais informações: https://goo.gl/0oau5N 8-Karl Marx: (1818-1883), filósofo e sociólogo alemão, seu pensamento influenciou diversas áreas do conhecimento e serviu de base para o entendimento do trabalho e suas relações com o capital. Autor de obras como O Capital e Manifesto Comunista. 9-OPEP: Organização dos Países Exportadores de Petróleo, organização internacional criada em 1960 na Conferência de Bagdá para coordenar e centralizar as decisões sobre exportação de petróleo dos países que a compõem. Pode regular a oferta do combustível no mercado internacional, influenciado no preço de venda. Mais informações: https://goo.gl/w0zDxw 10-Milton Fridman: (1912-2006), economista e escritor americano, professor da Universidade de Chicago (EUA). Influenciou a corrente de pensamento “monetarista”, que visava se opor ao keynesianismo. Foi conselheiro do governo Nixon e Reagan (EUA), e líder da chamada “Escola de Chicago”, influente corrente econômica. Mais informações: https://goo.gl/WBaQi1 11-Friedrich Hayeck: (1899-1992), economista e filósofo austríaco, professor na London School of Economics (Inglaterra). Um dos expoentes da “Escola Austríaca de Economia”, foi também referência para o liberalismo no século XX. Sua obra O Caminho da Servidão
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(1944) faz o alerta para movimentos políticos que ameaçam as liberdades individuais. Mais informações: https://goo.gl/VI9jn2 12-John Stuart Mill: (1806-1873), filósofo e economista britânico. Influenciador do pensamento liberal moderno. Defensor do utilitarismo - teoria ética proposta inicialmente por Jeremy Bentham. Chegou a combinar ideias de socialistas utópicos, como o altruísmo de Saint-Simon com o liberalismo. Mais informações: https://goo.gl/ sBva7P 13-Jeramy Bentham: (1748-1832), filósofo e jurista britânico, líder e maior influência do utilitarismo, teoria ética normativa com viés funcionalista - busca a felicidade maximizando a utilidade das ações humanas. Sua doutrina se sobrepôs às escolas cartesianas e kantianas. Mais informações:https://goo.gl/5bmjPT 14-Consenso de Washington: Documento elaborado em 1989, por instituições como o Banco Mundial, o Departamento do Tesouro Americano e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Ganhou esse nome por ter acontecido na capital americana. É um receituário de política macroeconômica que, através do FMI, orientou as economias dos países “em desenvolvimento” durante os anos 90. Propõe, entre outras medidas, disciplina fiscal, redução de gastos públicos, reforma tributária, investimento estrangeiro direto. PARTE 2 1-Thomas Morus: (1478-1535), diplomata, jurista e escritor britânico, é considerado umas das referências do humanismo no Renascimento. Foi canonizado como mártir da Igreja Católica. Sua obra Utopia é uma crítica à sociedade inglesa e ao feudalismo já decadente em sua época. Mais informações: https://goo.gl/iCOU5D 2-Américo Vespúcio: (1454-1512), mercador, navegador e cosmógrafo italiano. Participou de expedições no oceano Atlântico com diversos navegadores, escrevendo relatos sobre as novas terras. Foi um dos primeiros a defender a ideia de que essas terras não fariam parte da Ásia, mas seria um “novo mundo”. O nome “América” dado ao continente é em sua homenagem. 3-Pero Vaz de Caminha (1450-1500), escrivão português da armada de Pedro Álvares Cabral, que chegou no litoral brasileiro em abril de 1500. Autor da carta enviada ao rei de Portugal, D. Manuel I, sobre a “descoberta” da nova terra. 4-Henri Lefebvre: (1901-1991), filósofo marxista e sociólogo fran104cês. Contribuiu com estudos sobre o espaço urbano. Suas obras O Di-
reito à Cidade e A Revolução Urbana refletem sobre a influência do sistema capitalista no modelamento da cidade e da sociedade. Mais informações: https://goo.gl/yNS7Oi 5-Dom Black: Júlio César Bastos, o Dom Black, é um rapper da cidade de Bauru-SP. Tem os álbuns Bonificação e Resiliência gravados e comercializados de forma independente. Mais informações: https:// goo.gl/D7QpMy 6-Mike Davis: Historiador, teórico urbano e ativista americano. É professor da Universidade da Califórnia (EUA) e faz parte do conselho editorial da revista New Left Review. Mais informações: https:// goo.gl/VPBWPM 7-Fernanda Nascimento Corghi: Arquiteta e urbanista brasileira, doutora em Engenharia Civil mestre em Geografia pela Universidade de Campinas (Unicamp). É professora do departamento de Arquitetura e Urbanismo e Artes Aplicadas da Universidade Federal de São João del-Rei. 8-Hermínia Maricato: Urbanista, pesquisadora e ativista brasileira. Foi foi Secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo e Secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003- 2005). Mais informações: https://goo.gl/w14Rli 9-Maria Helena de Carvalho Rigitano: Arquiteta e urbanista brasileira, mestre em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos. Foi arquiteta da Prefeitura de Bauru, onde coordenou a elaboração do Plano Diretor Participativo do Município de Bauru e do Plano Municipal de Habitação de Interesse Social - PLHIS. É professora da Unesp Bauru. 10-Jane Jacobs: (1916-2006), jornalista e ativista americana. Participou de mobilizações populares contra o planejamento tecnocrata das cidades, dando valor às comunidades e sua construção de identidade. Sua obra mais famosa, Morte e Vida de Grandes Cidades Americanas, critica as renovações do espaço urbano. Ela propõe três condições para a segurança nas cidades: Deve ser nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado; Devem existir os olhos da rua; A calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente. Mais informações: https://goo.gl/5KFQQK PARTE 3 1-Tupac: (1971-1996), Tupac Amaru Shakur, rapper e ativista americano, considerado o “maior rapper” de todos os tempos. Tratou de temas como miséria, violência e racismo. Foi assassinado depois de105
sair de uma luta de boxe. Sua mãe, Afeni Shakur, foi empresária e ativista, tendo participado dos Panteras Negras. Mais informações: https://goo.gl/vumuJg 2-Panteras Negras: Partido dos Panteras Negras, organização política revolucionária americana, fundada em 1966. Originalmente tinha a finalidade de autoproteção dos negros contra os abusos da polícia, tendo se desenvolvido em grupo revolucionário marxista, defendendo isenção de impostas para os negros e o seu armamento. Mais informações: https://goo.gl/UFA6xq 3-Malcolm X: (1925-1965), ativista político americano. Defendia o Nacionalismo Negro nos Estados Unidos e fundou a Organização para a Unidade Afro-Americana, de inspiração separatista. Militante pelos direitos civis, influenciou muito do movimento de afirmação negra. Foi morto com 13 tiros enquanto discursava. Mais informações:https://goo.gl/68YdHN 4-Martin Luther King: (1929-1968), pastor protestante e ativista político americano. Ganhador do Prêmio Nobel da PAz em 1964 e um dos líderes mais importantes do movimento pelos direitos civis dos negros. Em 1968 foi morto por um atirador momentos antes de uma marcha, em um hotel de Memphis (EUA). Mais informações: https:// goo.gl/gOZmSB 5-Centro de Estudos da Mídia Alternativa “Barão de Itararé”: Grupo de comunicadores e pesquisadores que, junto com entidades e movimentos sociais, luta pela democratização da comunicação, a fim de garantir maior pluralidade e diversidade informativa e cultural no país. Barão de Itararé era o pseudônimo irreverente do jornalista gaúcho Apparício Torelli (1895-1971) – é considerado um dos criadores do jornalismo alternativo no país e o pai do humorismo brasileiro. Mais informações: https://goo.gl/DoBWOL Impresso em Bauru, fevereiro de 2017. FORA TEMER!
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Cidade Quebrada, um livro-reportagem de Bauru Em assentamentos na periferia de Bauru, famílias aguardam a regularização das terras. Também nas periferias, empreendimentos do Minha Casa Minha Vida espalham moradores pela cidade, que têm que conviver com as distâncias ou a falta de serviços públicos. Na “cidade sem limites”, a desigualdade social mostra sua cara. Enquanto tem a 21ª maior economia do estado, mais de 100 mil pessoas recebem benefícios assistenciais. A urbanização e os direitos à moradia e à cidade se chocam com a especulação imobiliária, a periferização e a cidade murada. A experiência urbana moderna é antidemocrática e resultado da crise de acumulação do capital. Num mundo em que impera o processo de globalização, as forças do mercado ditam não apenas os rumos da economia, mas também — e por consequência disso — o modo como são construídas sociabilidades e identidades na urbanização das cidades e no direito à apropriação de seu espaço.
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