Dramaturgia I
Sérgio de Carvalho
03.06.11
Fragmento baseado no conto Primeiro de Maio de Mário de Andrade
Na estação de Ontem Personagens: Narrador/ 35‐ carregador de malas/ Safada Encarnada/ Dama de Vermelho/ Menino Mais Novo/ Menino Mais Velho/ Mulher/ 15/ 22/ 31/ 47‐ carregadores de malas 486‐ fiscal passageiros da estação Madame Pastor Funcionário da Igreja
Na estação de ontem
Lucas Paz
SONHO 35/ SAFADA ENCARNADA/ NARRADOR‐ Ela… cadela… Cadê ela? É lá? Elás, elas estico. E lá… E lá pelos pelados pêlos de peles a se chocar nasce um vestido deslumbrante, luzio vermelho, encarna o couro, do coro de tetas a se tocar pós peleja de peles estranhas sem nome. Que Homem, Qui Hômi! Saí rasgada em quatro partes, hemisférios, semi‐fera, do Oiapoque ao Chuí, faltou um pouquim. Só um pouquim: o gozo do tilt na máquina, na engrenagem que malenrosca, na rosca sem parafuso, no parafuso sem porca, na porca agora sem rabo, com o rabo cortado voltando pra vida (e que vida!/?) antes que a morte chegue! EU, eu sou uma Lady, fiz a noite e outras noites em sonho daquele catete, num boquete, na saliva‐azeite, EU, eu sou uma Rede, embalo transmissões de ócio mofo e despacho. Em delivery. EU, eu estou fechada para balanço. Almoço/ Janta NARRADOR‐ Num ranço de pernas azedas mal comidas que o odor fedido dos sovacos se mistura com o dos lábios mal lavados lá de baixo. Aparta‐se cada um a seu modo pro seu lado, via contrária [ano bissexto, um dia em atraso pro 1o, 1o de maio] vetor oposto no quarto: banheiro/porta de saída; na rua, mão dupla. Impregnado um toque de Glade nos dedos, um perfume em promoção do Boticário no colo, um Rexona congelado no sovaco nu. Na cabeça... um só perseguido: TRABALHO. Os dedos cúmplices do ato‐memória recente já superposta, peixe azedo: no almoço. Na janta. MULHER‐ Acorda. Barulho de trem desgovernado, e sua buzina apitando. Foco frontal formando sombra de 35 na parede. MENINO MAIS NOVO‐ Acorda. MENINO MAIS VELHO‐ Acorda. PASTOR‐ Acorda. FUNCIONÁRIO DA IGREJA‐ Acorda. 15/22/31/47/486‐ Acorda.
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Na estação de ontem
Lucas Paz
MADAME‐ Acorda. NARRADOR‐ A corda. 35 no fundo, um foco a pino, ele puxando a própria corda que o enforca, na ponta da corda uma maleta. MORTE [Conversando com a Dama de Vermelho (MORTE)] Dama de Vermelho (MORTE): Homem travestido de mulher, misticismo indiano caboclopombagira. Elementos como incenso e taça de cristal. Cores: vermelho, preto e prata. Tecidos flanantes que criem texturas, dobras. Armadura metálica vazada em que se vê as roupas por baixo, refletora. 35 (alucinando)‐ éter...n...idade de novo me invade, éter...n...idade de novo me invade, éter...n...idade de novo me invade, eternidade de novo me invade, eternidade de novo me invade, eternidade de novo me invade. NARRADOR‐ não disse oi, nem se despediria, vai sem que a gente visse, ah quando a gente era rei do mundo! DAMA DE VERMELHO‐ De onde tu vem? Pr’onde tu vai? (estalo) Passou, (estalo) passou, (estalo) passou. Incontável horológio em decomposição. 35, eu quero ação, ação, ação ‐ Como vai a vida? *‐ senão te tomo de supetão, tão, tão. Tão curta. *NARRADOR(cantando na penumbra ao fundo ritmadamente)‐ TRABALHA, TRABALHA, TRABALHA 35‐ Tão.tão... tão curta... DAMA DE VERMELHO (vai lentamente despencando o braço tendo a mão como condutora do movimento, enquanto com a outra pressiona a descarga)‐ Uhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh‐U/A agudo que vem da nuca, acompanhando o movimento de queda que a mão faz. NARRADOR‐ Sentado com ela no píer do rio Sena, madrugada, com uma coca‐ cola na mão, um whisky barato largado vazio, vendo a vida passar, praguejando contra a raça humana. Parado por alguns minutos no Box do banheiro, debaixo do chuveiro, gotas caindo, mirando o vazio, sem saber exatamente aonde estava.
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Lucas Paz
MULHER‐ Vou‐me embora pra Pasárgada lá sou amiga da rainha. Lá tenho os homens que eu quero para comer de colherinha. FAMÍLIA MULHER‐ Abre a porta eu tô atrasada. Filho da puta, desgraçado. (Abriu) Eu te amo. (Aperta seu pênis). O MENINO MAIS VELHO fazendo experimentos no MENINO MAIS NOVO Pão de ontem TV ligada no noticiário matinal: “País Rico é País sem pobreza A geração de mais 300.000 empregos neste último mês dá garantia total a um Brasil fora da crise que assola as antigas potencias do Globo. Inflação aumenta de 6,7% para 13,89% em menos de três meses. Brasil comanda o G4 da ONU, à frente a primeira mulher presidente a assumir esse cargo. O PAC sofre alterações em seu estatuto e agora recebe nova sigla, vigente a partir da próxima semana: PMCD‐ Programa de Manutenção do Crescimento Desordenado. Especula‐se um grande investimento de potências emergentes, a destacar Índia, Cuba, Japão e Rússia, e imigração para regiões menos habitadas do país, estrangeiros vindos principalmente de países como Portugal, Espanha, Grécia e Estados Unidos.” 35 distraído com o noticiário raspando o pote de manteiga agora vazio para passar no pão.
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Na estação de ontem
Lucas Paz
TRABALHO NARRADOR‐ Parecia mesmo nem conseguir fabular essa figura invisível que era seu patrão. Era uma história de o patrão pra cá o patrão pra lá... Sem roupa, sem corpo, sem rosto. Tinha o 46, que ele por algum acaso ouvira um dia: Zé. Não havia como saber. Bem o Zé, quero dizer, o 46 era o que pagava o ordenado, vigiava os carregadores, enfim , punha ordem. Não passava de outro pau mandado vindo da antiga REFESA, já estava ali há anos. Um pau mandadozinho que mandava um pouquinho. Não sem constância esse tal ordenado sempre dava um jeito de vir em atraso alguns dias. Aí tome menino a chorar em casa e mulher fazendo greve de sexo. Ao que 35 se resolvia fechando‐se em seu mundinho de sonho com a Safada Encarnada ou mesmo num téte a téte monossilábico com a dama de vermelho regado a muitos olhares e silêncios confusos buscando desvendar algo eminente. Nesses dias tudo o que o 35 queria era arranjar um culpado, o primeiro que fosse, a primeira dondoca enjoada que passasse, o primeiro transviado que cruzasse, o primeiro magnata estrangeiro rodeado em seguranças que deslizasse num desequilíbrio, se fosse um cachorro então... resolvia fácil num chute! Mas não, ele arquitetava mesmo era trancar mala com todos eles dentro, e jogar de uma vez lá, bem no meio, bem na hora em que o trem estivesse passando. Seria preso, sim, mas finalmente encontrando o dito culpado de suas intermináveis dores nos rins. Enquanto isso... Nos dias de distração e leveza, serviço pouco, pouco movimento, algo quase impossível, ficava ele a imaginar como seria trancar‐se na mala de um dos passageiros e descobrir‐se em meio a Paris, ou França quem sabe, talvez um fosse perto do outro, ouviu falar que lá na França tem vários países perto um do outro: Portugal, Barcelona, Suíça, Los Angeles... chegaria o dia dele sim, ah se chegaria, e todos os companheiros dele de trabalho, uns bostas, estariam a seus pés, para cima e para baixo carregando suas malas.
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Na estação de ontem
Lucas Paz
RELIGIÃO NARRADOR‐ Tocasse o sino por 40 minutos que fosse, ele prostrava‐se com mãos erguidas para cima até o último badalar. Estranha fé essa, tão devota e ferrenha. O mundo parava por instantes para o carro avassalador de anjos e santos passar pela mente de 35. No último blém acordava de sobressalto, mesma carruagem que movia o carregador dia‐a‐dia para cima e para baixo na estação. (47, 22, 31 sentados num banco em horário de almoço, tomando um café com bolachas água e sal) 47‐ Menino, outro dia desse fui no culto ali da UNIVERSAL, chegou na hora do dízimo tinha um tão desesperado pra rapar tudo dos “crente”, que chega o Pastor se assustou, eu vi na cara dele. Eu só lembrei desse 35, viu. Ele mesmo é ver um trem bala cego sem freio. 22‐ Se duvidar, mais rápido do que essas latas‐velhas que sobraram da REFESA, hehehe. 31‐ Só para quando lhe enfiam a borracha, oh, a bolacha! 22‐ É, é ferro na boneca... quer ver? (Para 35 que corre atrás de passageiros desembarcantes) Oh, 35! 35! Quantas missas tem um terço? Hehehe 35 para de supetão, entre sem ter ouvido ou entendido a pergunta. À sua frente vem outro carregador apressado e cheio de malas. Sem vê‐lo esbarra nele, caem todas as malas. A madame que já havia passado, dona das malas, começa um escândalo ininteligível (em gramelot), em segundo plano. 15‐ Porra 35, é impressionante, você sempre fica parado no meio do caminho, deixa de ser preguiçoso, “rapá”! Ainda atrapalha o trabalho dos outros, eu tenho filho pra sustentar, “mermão”, não posso perder esse emprego por causa de folgado que nem você não, porra. 47‐ É 35, vai trabalhar vagabundo! Olha que já, já o 486 tá passando aí pra fiscalizar o serviço. Hehehe 31‐ Deixa ele é avoado assim mesmo. Entrega na mão de Deus, 35. NARRADOR‐ Rezasse o quanto rezasse e trabalhasse o quanto trabalhasse, nada parecia ser suficiente para ganhar o respeito de seus colegas. 35‐ (estrebuchando) Carma!
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NARRADOR/MULHER‐ Calma, 35, calma. NARRADOR‐ Ela já vem vindo, passageira, arrancar esse teu tormento. (Aparecem as duas, uma de cada fundo do palco ‐esquerdo e direito‐ Safada Encarnada e Dama de Vermelho, sob contras, só se vêem as silhuetas) 35‐ Quem? BLACKOUT Lucas Paz
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