A Vontade de Memória nos Lugares

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L U C A S

T A R A B A L

A VON D MEMÓ NO LUGA

NTADE E ÓRIA OS ARES A VONTADE DE MEMÓRIA NOS LUGARES Os lugares de memória em Bento Rodrigues e no cinema de Andrei Tarkovski Trabalho de Conclusão de Curso – Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo – IFMG Santa Luzia Orientação Dra. Simone Cortezão Freire



A VONTADE DE MEMÓRIA NOS LUGARES


Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Minas Gerais Campus Santa Luzia Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo

Trabalho de Finalização de Graduação apresentado ao curso de Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

Orientadora: Profa. Dra. Simone Cortezão Freire

Foto de capa: Douglas Magno

Santa Luzia, 2021


Lucas Tarabal

A VONTADE DE MEMÓRIA NOS LUGARES Os Lugares de Memória em Bento Rodrigues e no cinema de Andrei Tarkovski



Privado da memória, o homem torna-se prisioneiro de uma existência ilusória; ao ficar à margem do tempo, ele é incapaz de compreender os elos que o ligam ao mundo exterior - em outras palavras, vê-se condenado à loucura. ANDREI TARKOVSKI


SUMÁRIO


PRIMEIRO PLANO

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NOTÍCIAS OU NARRATIVAS

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A IMAGEM DA RUÍNA A matéria e a memória Inconsciente ótico Ruínas

38 39 56 60

PAISAGENS MÓVEIS Alterações Neblina Água Árvores e capins

76 77 87 95 106

VONTADE DE MEMÓRIA Rua São Bento Rituais Datcha Fragmentos de memória A memória no patrimônio

118 119 131 143 152 165

O TEMPO DA MATÉRIA MG-129 Os três tempos da ruína Esculturas de tempo Postes, placas e porcas

174 175 187 197 212

ÚLTIMO PLANO

224

BIBLIOGRAFIA

242

FILMOGRAFIA

248

AGRADECIMENTOS

249



PRIMEIRO PLANO


A Vontade de Memória nos Lugares

A neblina baixa, próxima ao chão, ainda persiste apesar dos primeiros raios de sol da manhã, formando pequenas manchas que vão se modificando pela ação lenta das brisas. Esta metamorfose constante e vagarosa provoca uma sensação diferente do transcorrer temporal, que parece mais devagar, quase letárgico. Ainda há umidade e as folhas estão molhadas. A composição da paisagem é onírica, mas a sensação de que algo abrupto pode provocar seu desmanche total é latente. As montanhas ao fundo, completamente tomadas pela vegetação, enquadram a paisagem e situam um lugar longe das grandes cidades, são poucos os vestígios humanos a esta distância. Mais próximo, as silhuetas das árvores dividem o plano distante do primeiro plano, como espécie de divisória entre uma natureza abundante, já consolidada, de outra jovem, de poucos anos, ainda em arbustos e gramíneas, formando uma paisagem diferente da noção romântica de natureza intocada. A neblina caminha lentamente das montanhas e chega a uma porção mais retilínea da paisagem, à distância é difícil distinguir se tratar de uma parte da terra alagada. O capim não está somente nas margens, mas já toma parte da superfície da água, tornando seus limites pouco precisos e impossibilitando, ao primeiro olhar, nomear a porção alagada de lago ou riacho. Seu aspecto pode ser dividido em duas porções distintas, na primeira, a coloração é barrenta, laranja avermelhada, de

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Primeiro Plano

textura densa, quase sólida. Nas outras porções, a superfície é lisa, refletindo o ondular da neblina e o verde das vegetações laterais. Há certo grau de artificialidade e é possível que a água tenha sido represada ali. Um olhar atento certamente identificaria os diques construídos em uma das extremidades. Próximo aos diques, e emoldurado pelas montanhas ao redor, está o que restou da ocupação humana. Um povoado, uma vila ou alguma ocupação menor ali existiu. Pelo que se pode constatar, ela não se estende por longas distâncias, é mais concentrada, como aquelas pequenas vilas que surgem em Minas Gerais com o ciclo do ouro ou aquelas vilas operárias que crescem, de forma contida, ao redor de uma fábrica ou uma usina. A ocupação parece ter acontecido à margem de algum curso d’água, desta forma, ela está na parte mais baixa entre as montanhas que a circunda, como se estivesse no centro de uma tigela. Mas parte da extensão antes ocupada está submersa por esta água, e nesta superfície aquosa sobressaem algumas construções, as mais altas ou as que melhor resistiram, se insinuam. Este lugar não é apenas um, mas são muitos. É Bento Rodrigues, vilarejo distante e pequeno, depois de ser quase totalmente engolido pela lama que veio indiscriminadamente das barragens de rejeitos de minério acima daquela ocupação humana em 2015. É esse lugar que, mesmo depois de abruptamente desocupado, tem sua importância única, ainda é

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A Vontade de Memória nos Lugares

carregado de significados e signos. Como também é a Zona, lugar em que os personagens de Stalker, filme de Andrei Tarkovski, adentram em busca da realização de seus desejos e para a manutenção dos ritos de um deles, que mantém uma íntima relação com aquele espaço. O lugar de uma ocupação humana também destruído por um evento catastrófico. Mas pode ser também alguns outros lugares da filmografia de Tarkovski e aqueles outros espaços atingidos pelo rompimento de algumas das tantas barragens de rejeitos de Minas Gerais. O que sobrou das construções deste lugar está mais próximo do ponto onde se observa. Poucas delas conservaram seu telhado, nas outras, a luz entra por todas as aberturas laterais e por cima. As paredes perderam sua cor original, dificilmente se imagina qual seria. Um aspecto comum destes objetos disformes que emergem da vegetação baixa são as manchas provocadas pelo escorrimento da água, que levam os pigmentos e detritos, criando linhas de diferentes tons de uma mesma cor. As portas e janelas, quando existem, têm seus vidros quebrados, a madeira escurecida e o metal se enferruja passando a ter a cor alaranjada ou escurecida da terra. Os pisos destas construções são de camadas de terra acima do revestimento original. Algumas delas guardam os restos do telhado colapsado sobre si mesmo. Nas paredes, rachaduras formam linhas orgânicas de um ponto ao outro. Estas ruínas

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Primeiro Plano

marcam a paisagem e, de certa forma, esta paisagem só é formada a partir delas. A vegetação que cresce ao redor e dentro das ruínas permite dizer que elas surgiram há alguns anos. E esta matéria que está se desmanchando, retornando ao solo, diz muito sobre um tempo anterior, um momento onde tudo era, onde estas construções eram casas, comércios, igrejas e fábricas. Desempenhando a função para a qual foram construídas e designadas. Mas elas, no presente, são o que sobrou, o que resistiu, uma representação problemática, pois incompleta, deste estado de coisas do passado. E como ruína, em processo constante e inevitável de arruinamento, elas indicam um futuro certo, a sua completa degradação, um momento em que nenhum vestígio material será percebido na paisagem. Ao andar por este espaço, por caminhos de chão ou sobre a vegetação rasteira, objetos vão surgindo em meio às construções que se desmancham. Alguns deles parecem pertencer ao lugar, carregam parte dele e das memórias que foram vividas ou criadas neste espaço, são como sínteses da memória. Outros falam de memórias diferentes, mais próximas do campo da história, são objetos inseridos, como se jogados de fora para dentro, estes lembram que aquela paisagem foi alterada não por processos contínuos e lentos, mas abruptos, repentinos. No primeiro grupo de objetos estão aqueles que certamente, em uma mudança planejada com calma, estariam

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em uma caixa a ser transportada com enorme cuidado, bem como aqueles não tão importantes, mas indispensáveis à vida humana, estes últimos são aqueles que vão sendo carregados de memória durante uma vida de uso, são objetos do antes. O segundo grupo inclui estruturas que formam barreiras, indicam percursos, delimitam lugares seguros e perigosos, são aqueles que provocam medo, suscitam sentimentos não tão bons, que engessam a paisagem criando artificialidades. São os objetos do depois. Uma característica que salta aos olhos e gera aquele tipo de espanto quase óbvio, mas ainda surpreendente, é a forma como a natureza vai, lentamente, retomando seu lugar nesta paisagem. As construções em arruinamento fazem lembrar que o local não era apenas domínio exclusivo da natureza, mas ela vai invadindo o lugar, deixando estas construções cada vez mais camufladas pela vegetação quando vistas de longe, elas parecem estar submergindo no verde quase claustrofóbico da mata. As gramíneas vão lentamente abrindo espaço no concreto ou entre as pedras, dando oportunidade para que as sementes trazidas por animais germinem e se transformem em pequenas árvores cercadas por muros. É grande o número daquelas espécies de vegetações que são constantemente podadas, roçadas, arrancadas ou cortadas ao redor das construções afastadas

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Primeiro Plano

das cidades, exatamente para conter seu avanço contínuo e lento. Fica evidente que este trabalho foi interrompido. Apesar

da

aparência

ser

próxima

daquelas

construções abandonadas na beira das estradas, que vão sumindo lentamente do olhar e da memória à medida que vamos passando ocasionalmente por aquele percurso e que um dia somem, de forma estranhamente repentina, este lugar ainda carrega alguns indícios da ocupação humana. Não aquela ocupação do morar, do viver, das relações sociais e econômicas da cidade, mas uma ocupação mais discreta, relacionada ao andar, que consolidam caminhos entre a vegetação. Cestas construções aparentam também ser utilizadas de alguma forma, talvez como continuidade de um uso pregresso, um resquício de um rito, um simbolismo ou alguma ação da memória que ainda persiste no lugar. Quando olhado por esse aspecto, se assemelha àqueles lugares de peregrinação, que são únicos no mundo, e são palco de ritos que não podem acontecer em nenhum outro lugar, como as sete voltas ao redor da Caaba em Meca, a cremação de corpos às margens do Ganges e os pagamentos de promessas em Aparecida do Norte, todos eles ritos indissociáveis de seus lugares. Essa ocupação persistente, esse resquício do humano apesar dos processos de arruinamento contínuos e do abandono

apenas

aparente,

indicam

uma

resistência.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Resistência a um fim, iminente e inevitável, mas sempre postergado, um fim onde a natureza retoma por completo o espaço. Esses homens e mulheres que certamente andam nestes lugares são esta resistência. Uma resistência talvez ineficaz para aquelas construções já quase submersas, mas eficiente para a memória do lugar, que é mantida por cada pegada que amassa a grama prestes a crescer, cada mínimo rito do olhar lançado às construções, cada enfileiramento de homens atrás de respostas, de fé, de lamentações, ou de lembranças. Por cada homem que ali retorna, e às vezes por aqueles que pisam em seu solo pela primeira vez.

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Primeiro Plano

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NOTÍCIAS OU NARRATIVAS


A Vontade de Memória nos Lugares

Foi um dos anos mais quentes já registrados em Belo Horizonte, a temperatura, meses antes, chegou a quase 38 graus. O calor daquela tarde de quinta-feira parecia chegar próximo desse número, mesmo assim, decidimos fechar as janelas e as cortinas buscando a escuridão necessária para ver o filme projetado na parede. Os ventiladores da sala apenas faziam circular o ar quente e seu ruído constante se misturava à trilha sonora composta por Michael Gordon, criando um quase overture para os próximos dias. O calor junto à penumbra da sala provocava estados de sonolência, entre o cochilar rápido e o despertar, as imagens disformes de Decasia, de Bill Morrison, se formavam na parede e se inscreviam na mente, também um prenúncio parecia estar ali. Quando a aula de Cinema Experimental terminou e voltamos à realidade fora daquela sala, algo tinha mudado. Era quintafeira, dia 5 de novembro de 2015. Quando catástrofes acontecem, a memória parece registrar com mais exatidão o que fazíamos naquele exato momento. Assim aconteceu quando, às 15 horas e 30 minutos, a barragem de Fundão, acima de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, rompeu-se despejando milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério. Já era a matéria principal nos telejornais da noite e nos jornais impressos do outro dia. Aquele pequeno lugar, com cerca de 600 moradores, chegava a outras partes do mundo da pior forma possível. Questões econômicas,

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Notícias ou Narrativas

ambientais, sociais e históricas foram incansavelmente discutidas à medida que a lama seguia seu curso pelo Rio Doce até o mar. A mineradora Samarco foi questionada, assim como a Vale e a anglo-australiana BHP Billiton, que também controlavam a barragem. As imagens daquela destruição eram vistas por toda parte. Como toda catástrofe, sua repercussão tem um prazo de validade, que vence quando outra questão toma os noticiários, e foi o que aconteceu após o dia 2 de dezembro daquele ano. Com o transcorrer dos dias e meses, Bento Rodrigues foi retornando ao seu isolamento, sendo esquecido dos noticiários gradualmente, apesar de um corpo continuar, até hoje, debaixo daquela massa laranja-avermelhada que ali foi depositada. As imagens foram se esvaindo e retornavam, pontualmente, naquelas datas em que o desastre completava meses, e depois anos. Bento Rodrigues seria novamente lembrado em 2019, junto a mais dois nomes, Brumadinho e Vale. Dois anos depois do rompimento, em 2017, as imagens de Bento Rodrigues retornaram da minha memória. Os filmes do cineasta russo Andrei Tarkovski 1, na tela do 1

As transliterações do alfabeto cirílico, empregado na Rússia, para o latino mais comumente empregadas no Brasil considera as transliterações feitas do russo ao inglês. Desta forma, apesar de recentes traduções terem tomado caminhos distintos, neste trabalho optou-se por adotar as transliterações comumente utilizadas. Neste caso, o nome do cineasta Андре́й Тарко́вский 22


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cinema, me provocaram enorme espanto e fascínio logo nos primeiros encontros. Alguns lugares em seus filmes me remetiam diretamente ao que restou de Bento após aquele novembro de 2015. As ruínas de Tarkovski tinham condições muito parecidas com aquelas que ficaram em Bento Rodrigues e algumas também eram fruto da catástrofe. A relação que alguns personagens dos filmes tinham com estes espaços em arruinamento, enquanto um processo contínuo que leva ao fim da matéria, eram semelhantes às relações que os atingidos pelo rompimento da barragem tinham com o subdistrito. A imagem destas ruínas era semelhante, a matéria que vai sendo tomada e degradada, gradativamente, pela vegetação e pela água, estava nos dois espaços, e a progressão do tempo neles era muito parecida. Algumas memórias pulsavam nestes espaços, como se Tarkovski os tivesse dotado, na sua película, de um tipo de memória que, anos depois de suas filmagens, estaria naquelas ruínas do lugar atingido pelos rejeitos da barragem de Fundão. A maior parte da filmografia de Tarkovski é cercada pelo espaço em arruinamento, seja ele apenas enquanto cenário, ou até se transformando em um personagem de seus filmes. Esta relação de Tarkovski com a ruína já está presente

é transliterado aqui como Andrei Tarkovski, apesar de existirem publicações com a grafia Tarkóvski ou Tarkovsky. No entanto, quando se trata das referências, optou-se por manter a grafia utilizada na obra em questão. 23


Notícias ou Narrativas

em suas primeiras produções, como é o caso de A Infância de Ivan2 e de Andrei Rublióv3, que vão dispor seus personagens em meio aos arruinamentos provocados pela guerra, a 2ª Grande Guerra no caso do primeiro e os conflitos da Rússia medieval no caso do segundo. Mas é em Stalker4

5

que o

cineasta vai transformar o espaço arruinado da Zona em personagem, criando um lugar repleto de memória de algum evento que ali ocorreu, também detentor de uma nova memória proporcionada por aqueles personagens que ali vagam6. A paisagem cinemática criado por Tarkovski em Stalker pode ser lida segundo a definição de Lugares de Memória criada pelo historiador francês Pierre Nora (1993). O conceito foi criado a partir do fim, segundo o autor, das sociedades de memória. Sociedades estas em que a memória é vivida na realidade e é passada, de forma fluída, espontânea e mutável, do passo ao futuro via os meios de memória. Com

Иваново Детство (A Infância de Ivan). Direção de Andrei Tarkovski. Rússia: Mosfilm, 1962. (95 min.) 3 Андрей Рублёв (Andrei Rublióv). Direção de Andrei Tarkovski. Rússia: Mosfilm, 1966. (183 min.) 4 Сталкер (Stalker). Direção de Andrei Tarkovski. Rússia: Mosfilm, 1979. (161 min.) 5 O protagonista do filme, o Stalker, é quem dá nome ao filme. Portanto, quando o texto traz a palavra Stalker em itálico, refere-se ao filme, quando a palavra Stalker aparece sem itálico, refere-se ao personagem. 6 Poderíamos citar também a abadia arruinada em Nostalgia e a casa do protagonista de O Sacrifício, ambos os lugares funcionam de forma parecida com a Zona de Stalker. 2

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A Vontade de Memória nos Lugares

o fim destas sociedades e o início do que o autor chamará de sociedades

históricas,

a

memória

irá

se

abrigar

em

determinados lugares, que são significados como resquícios e tentativas de proteger

a memória dos processos de

apropriação feitos pela história. Estes lugares possuem três dimensões: uma material, uma simbólica e uma funcional. A paisagem da Zona em Stalker possui estas três dimensões, a materialidade arruinada nela é o suporte para seu simbolismo dentro do filme e sua função é sempre afirmada pelo protagonista. Ela detém memória e, neste espaço, ritos são feitos para que esta memória seja mantida. Mas o conceito de Lugar de Memória também pode ser incorporado ao campo do patrimônio cultural, como vêm acontecendo, para definir como alguns lugares são detentores desta relação com a memória, dentre eles, se destaca o caso de Bento Rodrigues. Após o rompimento da barragem em 2015 que lançou cerca de 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, logo acima do vilarejo de Bento Rodrigues, boa parte do lugar sofreu um abrupto processo de arruinamento. A partir daquele momento, o espaço foi muito ressignificado em função do evento catastrófico, passando a ter uma dimensão material, simbólica e funcional que possibilita sua definição enquanto Lugar de Memória. Dentro desta leitura, a dimensão material está na materialidade em arruinamento do lugar, a simbólica se constitui enquanto signo dos nocivos processos de mineração

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Notícias ou Narrativas

em Minas Gerais, enquanto resistência a ele e enquanto um lugar de especial importância para seus antigos moradores, por fim, a funcional, enquanto suporte para várias práticas de sociabilidade da comunidade que ainda ali ocorrem e enquanto espaço que suscita várias memórias. Neste sentido, uma das propostas de tombamento do núcleo atingido de Bento Rodrigues já vê este lugar como um Lugar de Memória (CASTRIOTA, 2019). Portanto, esta paisagem em Bento Rodrigues se assemelha, seja pela definição de Nora, ou por algumas outras dinâmicas, com a paisagem da “Zona” criada por Tarkovski em Stalker, mas também a alguns outros lugares criados pelo cineasta. Dessa forma, este texto procura ler, interpretar e relacionar estes dois Lugares de Memória, tanto o relativo à filmografia de Tarkovski, mais especificamente em seus filmes Stalker, Nostalgia7 e O Espelho8, quanto ao remanescente em Bento Rodrigues. Tendo esses dois focos principais da produção, é importante ressaltar que o texto dar-se à um pouco além deles, se detendo também nos caminhos que ligam um ao outro a partir do conceito de Lugares de Memória, seja no que se refere propriamente à memória - criada, interpretada ou reinterpretada - e seus mecanismos. Como também na

7

NOSTALGHIA (Nostalgia). Direção de Andrei Tarkovski. Itália: RAI2, 1983. (125 min.) 8 ЗЕ́ РКАЛО (O Espelho). Direção de Andrei Tarkovski. Rússia: Mosfilm, 1975. (106 min.) 26


A Vontade de Memória nos Lugares

paisagem enquanto espaço significado, na imagética das ruínas e no tempo outro desses lugares. Após esta leitura, são feitas algumas considerações que indicam formas de lidar com a paisagem de Bento Rodrigues dentro das lógicas do patrimônio cultural. Portanto,

busca-se

discutir

quatro

dimensões

específicas destes lugares. Dimensões estas suscitadas pelas próprias paisagens, e delimitadas enquanto interesse de pesquisa desta monografia a partir da problemática inicial dos Lugares de Memória. A primeira dimensão é a Imagética, instância primeira destes lugares, onde se estabelece um diálogo inicial entre eles, mas também, como estas imagens são trabalhadas na filmografia de Tarkovski e nos processos do patrimônio cultural. A segunda dimensão é aquela relativa à Paisagem enquanto espaço dotado de alguma significação, enquanto construção social que se pretende a algum fim específico e como potência ao patrimônio cultural. A terceira dimensão é a da Memória, dimensão que se fixa na materialidade

destes

lugares

por

diversos

processos,

espontâneos ou não, e cria, a partir de uma vontade de memória, a possibilidade dos Lugares de Memória. A dimensão do Tempo é a quarta a ser estudada neste trabalho, dimensão que parte de um transcorrer do tempo que acontece de forma diferente nestes lugares, possui dinâmicas próprias e processos de construção e desconstrução peculiares.

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Notícias ou Narrativas

O tombamento de sítios identificados como Lugares de Memória é relativamente novo no Brasil, como é observado pelo

Dossiê

de

Tombamento

de

Bento

Rodrigues

(CASTRIOTA, 2019). Desta forma, ainda necessita de algumas fundamentações teóricas e entendimentos estéticos de validação que são fundamentais ao campo da educação patrimonial e nos processos de novos tombamentos. Essa carência parece ser ainda mais latente em Minas Gerais, que está nos primeiros passos para tombamentos desse gênero. Portanto,

o

trabalho

tem

a

pretensão

de

servir

de

fundamentação teórica e estética que auxilie no maior entendimento das dinâmicas estabelecidas nestes sítios, tanto aos profissionais do campo do patrimônio cultural, quanto aos demais interessados. Além disso, propõem-se avançar teoricamente no campo do cinema de ruína, principalmente naquele universo criado por Andrei Tarkovski, entendendo de que forma e com qual intuito a matéria em arruinamento é utilizada pelo cinema além da composição de cenários de destruição, mas enquanto narrativa cinematográfica. Assim, o texto pretende criar precedentes para pesquisas que possam surgir neste campo de estudo, bem como em campos ligados à prática patrimonial, abrindo caminhos para o diálogo com outras e novas pesquisas. Por fim, pretende-se gerar algum subsídio para ações patrimoniais e para novos tombamentos de sítios em

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A Vontade de Memória nos Lugares

arruinamento, ou em locais que possam se assemelhar tematicamente com as questões aqui abordadas, indicando diretrizes para esta apropriação do espaço pelo patrimônio cultural. De forma geral, são três as metodologias principais empregadas. A primeira é a revisão bibliográfica. Boa parte dos assuntos desta pesquisa já foram tratados e discutidos por vários pesquisadores. Assim, o texto busca relacionar estas produções dentro dos dois espaços estudados, observando como cada questão já foi trabalhada e qual contribuição ela dará ao diálogo. A segunda metodologia é aquela relacionada às imagens no texto, que também se dão como balizadoras da relação estética entre estes dois lugares. Elas, quando aparecem em partes separadas do texto, são utilizadas no trabalho em uma lógica de pares, comparativamente. Portanto, são retiradas diretamente dos filmes estudados e dos bancos de imagens disponíveis, buscando um diálogo estético entre estas imagens que dê continuidade ao texto escrito, não apenas

ilustrando-o.

A

terceira

e

última

metodologia

empregada é a utilização de imagens e relatos sobre Bento Rodrigues em veículos de imprensa e em sites de busca, a fim de servirem como gatilhos ou ilustrações das questões teóricas do trabalho. Buscando também capturar e documentar estes relatos e estas imagens que ajudam a entender este espaço e

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Notícias ou Narrativas

suas várias dinâmicas, mas tentando manter, no caso dos relatos, seu caráter mnemônico. O texto se dá em cinco capítulos. O capítulo inicial, Olhar o Arruinamento, é uma primeira visada sobre os dois espaços em arruinamento. Nele, o diálogo se estabelece pelo que é visto nestes lugares, como eles se parecem, como se relacionam e dialogam nos processos do olhar, partindo do texto Pequena História da Fotografia de Walter Benjamin (2012) e da obra A Câmara Clara de Roland Barthes (2018). Nesta parte, uma primeira leitura da relação entre a filmografia de Andrei Tarkovski com a memória é feita e também se discute de que forma a ruína, importante componente da imagem de Bento Rodrigues e dos filmes do cineasta russo, é apropriada pelo patrimônio cultural. Neste capítulo se inicia o comparativo imagético entre os dois lugares estudados. Paisagens Móveis busca tratar do espaço dotado de significado, como delimitação intencional da natureza, e como construção social a partir do conceito de paisagem delimitado por Simon Schama em Paisagem e Memória (1996) e por Georg Simmel (2009). Entendendo, portanto, sob quais aspectos e de quais formas a paisagem de Bento Rodrigues e da filmografia de Tarkovski são criadas. Mas também, como a paisagem é interpretada pelo campo do patrimônio cultural e de que forma esta interpretação incide sobre Bento Rodrigues.

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A Vontade de Memória nos Lugares

As questões relativas à memória são tratadas no capítulo Vontade de Memória, que busca identificar como a memória se fixa nestes lugares, de que forma ela é introjetada neles, como ela é operacionalizada dentro do conceito de Lugar de Memória de Pierre Nora (1993) e utilizando uma técnica da memória identificada por Mary Carruthers em sua obra sobre as técnicas mnemônicas medievais (2011). Neste capítulo também é feita uma discussão sobre a maneira com que alguns filmes de Tarkovski lidam com a memória e como esta relação pode contribuir para a leitura deste aspecto em Bento Rodrigues. Por fim, uma discussão da aplicação do conceito de Lugares de Memória no campo do patrimônio cultural é feita, a fim de se entender qual o lugar de Bento Rodrigues nesta dinâmica. Em O Tempo da Matéria não serão tratadas as noções do tempo guardado, que de certa forma é a memória, mas do tempo transcorrido desses e nesses lugares. Sua temporalidade acontece e transcorre de forma diferente que o habitual, uma fissura temporal parece ocorrer ali e sua identificação é necessária. Para isto, o capítulo utiliza a teoria de montagem criada por Tarkovski em seu livro Esculpir o Tempo (2010) para entender como se dá este tempo outro. Bem como, o tempo destes lugares é discutido a partir do conceito de tempo duração (ROSSETTI, 2017), dos três

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Notícias ou Narrativas

tempos da ruína (MATOS, 1995) e da catástrofe como um marcador temporal. Por fim, o trabalho é concluído no capítulo Último Plano, em que se faz uma leitura das condições atuais de Bento Rodrigues em relação a sua materialidade e diante das apropriações pelo patrimônio cultural que o lugar já passou e pode vir a passar. Algumas diretrizes para esta apropriação em Bento Rodrigues são propostas nesta parte, tendo em vista as discussões empreendidas pelo trabalho e com a ajuda de alguns filmes de Tarkovski. Ao final, as possibilidades de pesquisas futuras a partir deste texto são indicadas.

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Ruínas em Bento Rodrigues. Cristiano Mascaro e Pedro Mascaro, 2016.


Paisagem da Zona em Stalker. Stalker, 1979, 52’.


Ruínas em Bento Rodrigues. Agence France-Presse, 2019.


Paisagem da Zona em Stalker. Stalker, 1979, 48’.



A IMAGEM DA RUÍNA


A Vontade de Memória nos Lugares

A matéria e a memória

Bento Rodrigues poderia ser descrita como uma localidade de ocupação característica das pequenas vilas mineiras, com ruas de pequeno porte que se multiplicam a partir de um caminho tronco, neste caso, uma porção da Estrada Real, com casas de um ou dois pavimentos, no máximo três, que variam de um estilo contemporâneo simples a algumas edificações de características marcadamente coloniais. Poderíamos dizer das suas 180 casas de lotes grandes e com pomares, suas duas capelas, algumas pequenas vendas, do bar da Sandra, do Barbosa, do Paulo ou do Juca, da policlínica, de alguns galpões, do ginásio poliesportivo ou da Assembleia de Deus. Poderia falar também da horta comunitária, da praça central e da associação de moradores. Entretanto, este trabalho se detém à paisagem pós desastre, pois tudo que estes lugares significavam, sua morfologia, as relações de ocupação e os equipamentos urbanos foram radicalmente alterados pela implacável lama. Das 180 casas de Bento Rodrigues, apenas 22 não foram diretamente afetadas pela lama, mas foram atingidas, posteriormente, pelos saques que se seguiram após a retirada

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A Imagem da Ruína

de todos os moradores do lugar. Portanto, não é raro encontrar tentativas dos habitantes dessas casas em dar alguma proteção maior a elas. Assim como aconteceu com a Capela de Nossa Senhora das Mercês, poupada pela destruição por estar em uma cota mais elevada, teve de ser cercada por tapumes metálicos e seus bens móveis realocados na sede de Mariana para evitar estes saques. Já a capela principal do vilarejo, a de São Bento, que tinha uma ampla praça à sua frente onde aconteciam as festas, e estava ao lado do Bar da Sandra, foi quase completamente arruinada, sobrando apenas a base das paredes laterais e seu tabuado em campas. Partes do seu altar-mor e alguns de seus ícones de devoção foram encontrados na lama que desceu o rio, e hoje também estão acondicionados na sede de Mariana. As

ruas

sumiram

em

meio

a

lama,

mas,

posteriormente, foram parcialmente limpas a fim de garantir um trânsito mais facilitado das pessoas e das máquinas. Dois galpões, a igreja evangélica, a associação de moradores e o ginásio poliesportivo ainda permaneceram de pé. Se for descrita a morfologia atual das casas atingidas, pode-se dizer que todas têm a mesma cor, um laranja-avermelhado que caminha cada vez mais aos tons escuros. Quase todas perderam seus telhados. As esquadrias, quando não foram arrancadas pela lama ou pelos saques, têm seus vidros quebrados, suas madeiras empenadas e o metal retorcido e

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A Vontade de Memória nos Lugares

enferrujado. É comum ver os túneis construídos pelos cupins nas paredes, formando desenhos parecidos com artérias ou bacias hidrográficas. Frases como: “Essa marcou nossas vidas.”, “Bento Rodrigues Saudades”, “Jesus amava o povo de Bento Rodrigues” e “Samarco queria nos matar mas Jesus nos salvou.” estão escritas em algumas das paredes que permaneceram de pé. Nos locais que antes eram ocupados por postes, foram fixadas placas de sinalização indicando medidas de segurança em caso de rompimento de barragens que parecem ter sido implantadas com certo atraso. Cruzes foram fixadas em alguns pontos lembrando as vidas encobertas pela lama. O espaço que tem características mais próximas a Bento Rodrigues na filmografia de Tarkovski é a Zona, de Stalker, apesar de haver semelhanças também entre os lugares atingidos pela guerra em A Infância de Ivan e em outras obras do cineasta, no entanto, o caso da Zona é mais emblemático. Stalker, o último filme do período soviético de Tarkovski, lançado em 1979, traz a história de um personagem de mesmo nome do filme. Esta figura é a responsável por guiar o Escritor e o Professor para dentro do ambiente chamado Zona em busca de uma possível realização dos seus desejos mais íntimos, poder este supostamente dado a uma sala na Zona. Como este guia, Stalker conhece e respeita a Zona, ele mantém uma relação com este espaço quase religioso, de

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A Imagem da Ruína

crença em suas possibilidades e de profunda conexão e cuidado com sua integridade, seu simbolismo e sua potência. A relação do personagem com o espaço parece ser de muitos anos, mas, ao contrário do vilarejo de Mariana, somos apresentados a este lugar com poucas informações sobre o que aconteceu ali9 além do texto de introdução do filme: ...O que foi isto? A queda de um meteorito? Uma visita de seres do abismo cósmico? Fosse como fosse, no nosso pequeno país surgiu o milagre dos milagres: a Zona. Enviamos tropas para lá. Não voltaram. Cercamos a Zona com cordões policiais... E fizemos bem... Aliás, não sei... Da entrevista do Professor Walles - Prêmio Nobel. (STALKER, 1979, 3’ - 4’)

Mas o filme configura a Zona como um espaço místico, em que parece existir uma espécie de consciência; é um espaço que muda sua formação o tempo todo, apesar destas mudanças não serem visuais, mas sentidas pelos personagens. Um espaço que produz medo e provoca grandes reflexões naqueles que ali estão. Mas este lugar também guarda a

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Apesar do livro que Tarkovski se baseou para filmar Stalker, a obra “Piquenique na Estrada” de Arkádi & Boris Strugátski, descrever que o espaço das Zonas foram áreas ocupadas em uma invasão alienígena e que ainda guardam objetos e lugares desconhecidos e com reações estranhas a presença humana, no filme, pouco é mencionada além deste texto na sua introdução. Fonte: STRUGÁTSKI, Arkádi; STRUGÁTSKI, Boris. Piquenique na Estrada. São Paulo: Aleph, 2017. 42


A Vontade de Memória nos Lugares

matéria de uma ocupação humana não mais existente, pois este evento, seja qual fosse, interrompeu estas ocupações que existiam e permitiu que os processos de arruinamento pudessem ser continuamente mantidos nas construções que sobraram. A Zona também não possui mais seus acessos, suas vias são inexistentes ou foram bloqueadas, os caminhos que entremeiam as construções estão tomados por mato, não há uma formalização de percurso. As construções existentes já passaram por um processo de arruinamento mais longo, e estão mais escurecidas como se demonstrasse uma cor futura de Bento Rodrigues. A água, tão presente em Bento Rodrigues após a construção dos diques de contenção no rio Gualaxo do Norte, que encobriu parte do vilarejo, também está amplamente presente no espaço da Zona, ela é um elemento de continuidade no processo da ruína. Nos dois lugares a presença da água é constante, ela lembra que a ruína não é uma condição estática, mas uma progressão lenta que flui para um fim, portanto, a palavra correta a se empregar seria “arruinamento”. Em Stalker, sempre há alguma poça de água ou algum alagamento no interior das construções, nos ambientes externos; este elemento pode aparecer estático, quase denso, ou possuir muito movimento, como cascatas. Gotas de água sempre estão caindo de algum lugar e o som delas é quase incessante, como marcadores de uma constante

43


A Imagem da Ruína

e inevitável passagem do tempo para aquelas construções e aqueles lugares.

44


Canal de água em Bento Rodrigues. José Cruz, 2017.


Canal de água da Zona em Stalker. Stalker, 1979, 90’.


A Vontade de Memória nos Lugares

A filmografia de Tarkovski é repleta destes lugares arruinados, onde a água atua como fator constante do processo de arruinamento e onde a memória, assim como em Bento Rodrigues, parece se inscrever, seja na própria materialidade ou por via dos personagens que passam em meio a ela. Nesta filmografia, a memória é um dos assuntos centrais, considerando a relação que Tarkovski cria entre memória e tempo, a matéria básica de sua obra: “O tempo e a memória incorporam-se numa só entidade; são como os dois lados de uma medalha. É por demais óbvio que, sem o Tempo, a memória também não pode existir.” (TARKOVSKI, 1998, p. 64 - 65). E esta memória é dinâmica, não é só a memória dos personagens dentro do filme, mas também a memória do próprio diretor, a memória do povo russo e as memórias dos espectadores, que atuam ainda como significadores de sua obra (TARKOVSKI, 1998). O lugar em arruinamento em Tarkovski, portanto, é um dos muitos meios pelo qual o cineasta deposita as memórias de seus personagens, como também é em meio a elas que alguns deles terão um contato com alguma memória, seja ela qual for. É por meio dela que Tarkovski dirá de uma transitoriedade, de um espaço e de alguma relação em colapso, de alguma memória rompida e de um lugar que pode transformar os personagens, pois, assim como as ruínas, eles são passíveis de metamorfoses. Pelo tempo ambíguo das

47


A Imagem da Ruína

ruínas, que se colocam em posições temporais distintas simultaneamente (MATOS, 1995), o diretor as utilizará para tratar de um tempo outro, um tempo da transitoriedade e do pensamento poético de seus filmes. Elas, em alguns contextos, ainda funcionam como uma tentativa material de interromper um esvair-se da memória ou sua incorporação à história (NORA,1993), pois são signos dessa memória. Estes lugares estão presentes desde seu primeiro filme comercial10, A Infância de Ivan, de 1962, com um enredo sobre um garoto que trabalha como informante militar na Segunda Grande Guerra. Além dos cenários clássicos de guerra, a alagadiça terra de ninguém e os bunkers, em determinado momento, Ivan encontra um velho que habita uma casa em arruinamento; ali só estão de pé a estrutura da chaminé, o fogão e a porta que continua sendo utilizada por seu morador acima do piso enlameado. Ele procura um prego para pendurar, na parede que sobrou do fogão, um quadro, deixando a casa pronta para o regresso da sua esposa, morta pelos alemães. Esta ruína ainda é um lugar das memórias desse senhor, ela ainda é funcional, deve ser tratada com cuidado. Ivan tenta oferecer um prego ao velho, que o rejeita, é preciso usar, mesmo na ruína, o melhor prego. Esta ainda é

10

O primeiro longa-metragem de Tarkovski é O Rolo Compressor e o Violinista, de 1961. Ele foi realizado como trabalho de conclusão de curso da Universidade Panrusa Guerásimov de Cinematografia, a VGIK (RATTON, 2017). 48


A Vontade de Memória nos Lugares

uma casa com memórias, com função e materialidade, mesmo que prestes a desaparecer. Assim como Bento Rodrigues ainda é o lugar das memórias de seus antigos moradores.

Ivan encontra o velho que habita a ruína. A Infância de Ivan, 1962, 27’.

Em O Espelho, filme autobiográfico de 1975, Tarkovski mescla na narrativa suas memórias de infância do antes, durante e depois da Segunda Grande Guerra, com as memórias do povo russo e, de certa forma, com a memória da infância dos espectadores, que acabam as depositando na imagem projetada na tela (TARKOVSKI, 1998). São vários os lugares arruinados repletos de memória neste filme, sejam eles

49


A Imagem da Ruína

em sonhos, como o em que Maria, uma das mães do filme 11, após lavar seus cabelos, se percebe em uma sala que vai se desmanchando com a abundante umidade, a memória é nebulosa, não sabemos ao certo de qual se trata. Ou mais ao final do filme, quando a câmera capta, de forma insistente, as ruínas de um poço com alguns objetos sem mais utilidade prática, mas que servem como suscitadores de pequenas memórias, pequenas relações que foram estabelecidas com eles. De forma bastante semelhante àqueles objetos deixados para trás na abrupta fuga da lama em Bento Rodrigues.

11

Como o filme retrata três momentos históricos distintos, Maria, uma das protagonistas do filme e mãe de Alexei, aparece em três momentos distintos da vida, no antes, no durante e no depois da Segunda Grande Guerra. 50


A Vontade de Memória nos Lugares

O sonho de Maria. O Espelho, 1975, 18’.

O poço. O Espelho, 1975, 107’.

51


A Imagem da Ruína

Em Nostalgia, de 1983, filmado quando Tarkovski já estava exilado da Rússia na Itália. O diretor trata deste sentimento presente no título do filme. O poeta Gorchakov, seu protagonista, vaga, em busca de um sentido metafísico, por vários lugares em arruinamento: uma abadia gótica já sem sua cobertura e com piso tomado pela vegetação, uma pequena igreja alagada onde trepadeiras crescem por todos os lados e a casa de outro personagem, Domenico, com paredes escurecidas pela umidade e com poças de água por toda parte12. Todos estes lugares possuem grande carga de memória, seja a da própria população italiana, mas agora também daquele personagem que, não estando em sua terra natal, acaba utilizando estes espaços como gatilhos e depositário de suas memórias, neste vago espacial que é o exílio.

12

Uma das ideias iniciais de Tarkovski para Nostalgia era que Gorchakov fosse um arquiteto, não um poeta, ou tivesse como hobby a arquitetura, o que justificaria o gosto do personagem em andar em meio a monumentos italianos, principalmente aqueles em arruinamento. No filme, o poeta mantém este gosto (TARKOVSKI, 2012). 52


A Vontade de Memória nos Lugares

A casa de Domenico. Nostalgia, 1983, 61’.

Gorchakov, protagonista de Nostalgia em meio às ruínas da Abadia de San Galgano, em Chiusdino, na Itália. Nostalgia, 1983, 93’.

53


A Imagem da Ruína

Esta relação do cineasta com a memória e com os processos de arruinamento persiste também nas suas outras obras13. Em Andrei Rublióv, de 1996 e ambientado na Rússia medieval, após a invasão de uma cidade, o diretor mostra a grande iconóstase, pintada pelo protagonista que dá título ao filme, sendo lentamente consumida pelo fogo junto das memórias do pintor e dos devotos daquela cidade. Em Solaris14, de 1972, onde as memórias dos habitantes de uma estação espacial se materializarão, muitos dos equipamentos estão arruinados, os ambientes têm suas paredes danificadas ou são isolados por completo, como ruínas do futuro e como materialização das ruínas da memória. O Sacrifício15, de 1986 e última obra de Tarkovski, tem-se a ruína quase instantânea. Em uma das últimas cenas do filme, o protagonista põe fogo em sua casa, receptáculo de sua memória, como sacrífico à promessa feita por ele.

13

Aqui não foi considerado o documentário, dirigido em conjunto com Tonino Guerra, Tempo de Viagem, de 1983. 14 СОЛЯРИС (Solaris). Direção: Andrei Tarkovski. União Soviética: Mosfilm, 1972. (166 min.) 15 OFFRET (O Sacrifício). Direção: Andrei Tarkovski. Suécia: Svenska Filminstitutet, Argos Film e Film Four International, 1986. (142 min.)

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A Vontade de Memória nos Lugares

A casa em chamas em O Sacrifício. O Sacrifício, 1986, 140’.

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A Imagem da Ruína

I n c o n sc i e n t e ó t i c o

Ao caracterizar as obras-primas no seu livro sobre o fazer cinematográfico “Esculpir o Tempo”, Tarkovski, como se descrevesse inconscientemente seu próprio trabalho, diz que “As obras-primas alinham-se nos locais de possíveis ou iminentes cataclismos históricos, como sinais de perigo à beira de precipícios e pântanos.” (TARKOVSKI, 1998, p. 60) Assim, quando o diretor russo cria, dentre outros espaços, a Zona em Stalker, como este espaço pós-catástrofe, com dinâmicas muito próprias e muito parecidas com Bento Rodrigues, ele indica este sinal de perigo, esta distopia que acaba indo ao encontro do real, principalmente enquanto imagética. Tarkovski cria um prenúncio de realidade, de uma conformação de paisagem, não só própria dos lugares arruinados por catástrofes, mas daqueles lugares em que alguma vivência, alguma relação, ainda existe no pós-catástrofe. De certa forma, ao criar não só o cenário da Zona em Stalker, mas outros lugares como a igreja alagada e a abadia em arruinamento de Nostalgia, Tarkovski consegue captar algo inapreensível na paisagem desses lugares como prenúncio indicativo de um futuro. Algo que, segundo Walter Benjamin,

56


A Vontade de Memória nos Lugares

está no campo do inconsciente ótico, “a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás.” (BENJAMIN, 2012, p. 94). Portanto, Tarkovski suga “a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda” (BENJAMIN, 2012, p. 101), e que, transportada por seus filmes como ficção, acabam se reverberando na realidade, como prenúncio da catástrofe, inclusive das relações que surgiram no espaço do arruinamento. Tendo visto os filmes de Tarkovski e as imagens geradas pela mídia sobre Bento Rodrigues após o desastre de 2015, ou mesmo tempos depois em trabalhos artísticos ou pesquisas, fica clara a ligação entre estes dois campos imagéticos. Como a paisagem vai sendo transformada durante os anos, como a vegetação e a umidade vão deixando suas marcas na matéria, e como as relações sociais vão se desenvolver nestes lugares. Principalmente por serem imagens que reverberam, se inscreveram e vão sendo revisitadas pela memória, como dito por Barthes (2018), obrigando a erguer a cabeça e fechar os olhos. Estas imagens, tanto as geradas por Bento Rodrigues quanto as de Tarkovski, também vão possuir o que Barthes denomina de punctum, um acaso da própria foto, neste caso também incluindo o fotograma do cinema, que

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A Imagem da Ruína

capta o espectador, o punge, mas também o mortifica e fere (BARTHES, 2018). Este punctum se associa a uma confrontação que a imagem gera com aquela realidade própria das ruínas, suspensa no tempo, pois liga, ao mesmo tempo, um passado que não mais existe, a um futuro onde tudo estará perdido. Nessas imagens, há também aquele outro punctum definido por Barthes, o ligado ao tempo. Aquela constatação por meio da imagem de que “isso será e isso foi” (BARTHES, 2018, p. 81). De fato, a relação poderia ser melhor estabelecida com a imagem desses espaços antes da catástrofe, pois elas realmente vão constatar aquele momento antes do desastre, antes da morte que já aconteceu, afirmando que “isso foi” e gerando este outro punctum da imagem. No entanto, a ruína é um indicador temporal ambíguo, pois indica um passado, aquele que a matéria relata de sua existência enquanto forma completa, um estado presente, aquele da ruína no momento em que olhamos ou que a imagem é captada, bem como de uma “morte no futuro”, onde há “um esmagamento do Tempo: isso está morto e isso vai morrer.”(BARTHES, 2018, p. 81), pois a ruína é um indicativo do fim, o estado penúltimo da matéria, mesmo que ele seja postergado pelas ações de conservação. Portanto, a imagem destas ruínas acaba indicando este tempo futuro, de certa forma já acontecido, e delimitado em sua própria matéria.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Nesta ambiguidade temporal da ruína, as imagens que surgem dos lugares em arruinamento após a catástrofe possuem um caráter de transitoriedade. As ruínas estão sempre em metamorfose, em movimento, a matéria nunca é a mesma, sempre há uma corrosão a mais, uma rachadura avança um pouco ou as raízes de uma árvore se desenvolvem sobre uma parede ou janela. Mesmo nas imagens em movimento de Tarkovski, a matéria captada por ele era a de um determinado estado, em determinado momento da filmagem. Portanto, estas imagens funcionam como atestadores de uma existência momentânea que não mais existe, foi modificada pelo tempo. Atestando que “o que vejo de fato existiu” (BARTHES, 2018, p. 71), como certificado de uma presença transitória e modificável.

59


A Imagem da Ruína

Ruínas

A palavra ruína tem sua origem no termo latino ruina, ligado ao colapso, à queda e ao desabamento, não só da materialidade, mas também da perda moral. A palavra ainda tem origem no termo ruere, ou seja, cair violentamente, desabar. Os adjetivos indicam o desolador, como um sentimento de fim e de um estado acabado, onde há impossibilidades de retorno. Brandi descreve as ruínas como “tudo aquilo que é testemunho da história humana, mas com aspecto bastante diverso e quase irreconhecível em relação àquele de que se revestia antes.” (BRANDI, 2004, p. 65). Pois a perda material que a ruína evoca impossibilita a completa fruição desta história transmitida pelo objeto arquitetônico. Mas, por outro lado, a ruína se revela como uma busca por este “testemunho

da

história

humana”

que

se perdeu

na

materialidade, como arqueologia, busca de memória e história. Françoise Choay indica que os monumentos históricos não são desejados e criados para servir a este fim, mas são construídos posteriormente em uma seleção feita por historiadores e amantes da arte entre os edifícios existentes. Ao contrário do monumento, que já é criado com a intenção

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A Vontade de Memória nos Lugares

mnemônica e comemorativa prévia.(CHOAY, 2014). É esta seleção entre a massa arquitetônica construída que o homem do renascimento fará entre as construções greco-romanas, como monumento referencial e como constitutivo de uma história ocidental, de um mito fundador. Neste contexto, as ruínas, em sua maior parte greco-romanas, começam a ser vistas não mais como fonte de materiais construtivos, de cal e pedras já polidas, mas como matéria a ser preservada e utilizada como modelo, “Fragmentos tangíveis da matriz genitora de toda uma cultura.” (AMARANTE, 2013, p. 36). São dadas às ruínas importância iconológica e histórica, podendo ser, também, o início de sua institucionalização como monumento dentro da mesma cultura. Tornaram-se documentos e espaços para a construção desta memória. Apropriar-se do tempo e construir um passado, ou melhor, inventar este passado, re-inventar! Assim está determinadamente atrelada às reminiscências e fragmentos mnemônicos inventariados e colecionados. (AMARANTE, 2013, p. 36)

Roma, a partir do século XIV, se transforma em uma cidade a ser pesquisada e visitada por estudiosos e artistas, e novos conceitos de preservação e conservação começam a ser aplicados nos edifícios da cidade. Os papas vão assumir a tarefa de preservação, “Mas trata-se, agora, de uma conservação moderna, já não apropriadora e lesiva, mas

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A Imagem da Ruína

distanciada, objectiva e provida de medidas de restauro e de protecção dos edifícios antigos contra as agressões múltiplas de que são alvo.” (CHOAY, 2014, p. 53 - 54). E a ruína adentra o imaginário humano, com importância documental e histórica, mas também como modelo e inspiração. A iconografia da ruína comumente aparecerá nas artes a partir de então, como acontece na iconografia da natividade, indicando uma sociedade outra, mas que é um ponto de origem de uma nova crença.

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A Vontade de Memória nos Lugares

A Adoração dos Magos, Leonardo da Vinci, 1481. Óleo sobre madeira, 246 cm x 243 cm, Galeria Uffizi, Florença16.

Posteriormente, no contexto da Revolução Francesa, a criação da Comissão Provisória das Artes, como gesto contrário à destruição de monumentos e objetos relacionados

16

Este trabalho de Da Vinci aparece em dois momentos do filme O Sacrifício, de 1986. Nos créditos iniciais, onde a câmera de detém em uma porção a direita da pintura e na cena em que o sacrifício é proposto para o protagonista do longa-metragem, em que a imagem aparece dentro de uma moldura na parede. 63


A Imagem da Ruína

ao Antigo Regime e à monarquia, abre uma discussão sobre a preservação da matéria que simboliza poderes e valores execráveis para um determinado período histórico. Uma vez que, mesmo representando um modelo a não ser seguido, ao contrário do pensamento renascentista, esses elementos, como monumentos de memória e história, faziam parte da construção de nação na França. Choay salienta que “Romper com o passado não significa nem abolir a sua memória, nem destruir os seus monumentos, mas conservar uns e outros num movimento

dialético

que,

simultaneamente,

assume

e

ultrapassa o seu significado histórico original, ao integrá-lo num novo estado semântico.” (CHOAY, 2014, P. 117) Com a Revolução Industrial, novo significado é dado às ruínas e aos monumentos históricos, que terão nova valorização e consolidação frente aos avanços técnicos impostos no período. A introdução da produção em massa e, por conseguinte, dos gostos massificados, provoca um medo das mudanças introduzidas socialmente, o que gera a consolidação dos monumentos históricos, como segurança referencial em meio a tantas mudanças e como constitutivo de um tempo irremediavelmente passado. Sobre isso, Le Goff dirá que “A aceleração da história levou as massas dos países industrializados a ligarem-se nostalgicamente às suas raízes: daí a moda retrô, o gosto pela história e pela arqueologia, o interesse pelo folclore, o entusiasmo pela fotografia, criadora

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A Vontade de Memória nos Lugares

de memórias e recordações, o prestígio da noção de patrimônio.” (LE GOFF, 2003, p. 224). Se a industrialização acelerada é responsável pela consolidação das ideias de preservação e restauração das ruínas

e

dos

monumentos

históricos,

ela

também é

responsável pela criação de várias outras ruínas, mais imediatas e cotidianas. A velocidade de produção e geração de matéria e capital impulsionam rápidos movimentos de construção,

utilização

e

descarte

das

construções.

E

considerando os interesses relacionados à criação de uma identidade nacional e aos do patrimônio como produto de consumo, há, entre as ruínas, uma escolha clara entre o que passará pelos processos do patrimônio cultural e será considerado um bem patrimonial, e o que será esquecido, se transformando em uma ruína cotidiana que não passa pela legitimação do patrimônio. Esta última não será sustentadora de mitos de origem e de signos que conformam determinada “manutenção de uma memória social reconhecida pelo estado.” (AMARANTE, 2013, p. 26), como acontece com as ruínas transformadas em monumentos históricos. Estas outras ruínas, não incorporadas na massa do patrimônio cultural, geralmente não são notadas,

são

elementos aparentemente disfuncionais em meio ao urbano ou ao isolamento e a vegetação do rural. Não cumprem mais sua função frente ao capital ou são um fruto indesejado dele, se 65


A Imagem da Ruína

tornaram obsoletas e não constituem uma memória coletiva considerada significativa pelos agentes patrimoniais no meio político em questão. São contrárias às vontades do período, do gosto imediatamente desejado e de uma estética empreendida pelo mercado. Podem se originar em contextos de abusos; são mórbidos, e, portanto, são frequentemente escondidos, cercados e mantidos intocados no caminho para o fim. No entanto, estas ruínas ainda podem ser detentoras de memória, elas ainda podem constituir uma memória coletiva ou individual. Mesmo que não seja incorporada ao patrimônio oficial, é constitutiva de algum patrimônio mais privado, individualizado ou de determinado grupo. É um tipo de ruína composta por casas, prédios, construções industriais, vilas e cidades abandonadas. Os casos das ruínas da catástrofe, seja ela fruto de um desastre tecnológico abrupto como no caso de Bento Rodrigues, ou fruto de um desastre incerto no caso da Zona de Stalker, enquanto um dos principais componentes imagéticos destes lugares, estão em um limiar bastante complexo. Se por um lado tais ruínas podem constituir esse patrimônio outro, aquele

esquecido

e

marginalizado, não

captado

pelo

patrimônio formal e institucional, a detenção de memória de determinado grupo inserida nela a impulsiona a ser apropriada pelos processos do patrimônio cultural oficial. A matéria em arruinamento de Bento Rodrigues é fruto de um processo

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A Vontade de Memória nos Lugares

econômico que originou uma ruptura, um evento catastrófico em sua gênese nefasto e ligado não a momentos a serem louvados como os grandes feitos humanos, mas aqueles onde a capacidade humana falhou. Portanto, elas têm esse impulso ao esquecimento, principalmente como esquecimento de um erro. Erro como aquele cometido pela sociedade em Stalker, que envia para a Zona soldados que não mais retornam, por isso também ela é cercada, em um processo de tentativa de esquecimento daquele lugar, como se fosse um limbo, um nãolugar. No entanto, o patrimônio cultural contemporâneo tem se voltado a outras narrativas, mais inclusivas, e não apenas relacionadas aos grandes feitos e conquistas humanas, mas também aqueles relacionados às tragédias, opressões, as dores e as rupturas traumáticas. Assim como as grandes sociedades pregressas e suas conquistas são constitutivas da história de um povo, os momentos funestos também são, como um outro lado da ideia de patrimonialização das ruínas no renascimento, talvez mais relacionadas com o patrimônio apropriado durante a Revolução Francesa, como dialética. Elas se configuram “muito longe daquela visão de patrimônio que prevaleceu uma geração atrás, quando estávamos quase inteiramente preocupados em proteger as grandes e belas criações, reflexos do gênio criativo da humanidade, e não o

67


A Imagem da Ruína

contrário - o lado destrutivo e cruel da história” (LOGAN; REVES, 2009, p.1 apud CASTRIOTA, 2019, p. XIX). Esse interesse recente por estes outros patrimônios, reconhecidos como "patrimônio da dor” ou "patrimônio difícil", dão origem a vários processos de salvaguarda, (CASTRIOTA, 2019, p. XIX) como o da Ilha de Gorée, no Senegal, da Cúpula Genbaku de Hiroshima, no Japão, Auschwitz-Birkenau, na Polônia e o Cais do Valongo do Rio de Janeiro, no Brasil. Todos estes listados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como Patrimônio da Humanidade. E é relevante notar que, como estes lugares são apropriados pelo patrimônio cultural em um momento posterior ao evento nefasto que nele ocorreu, geralmente estes lugares estão em processo de arruinamento, pois foram abandonados ou parcialmente destruídos. Inclusive, eles podem ser apreendidos pelo patrimônio cultural como “Sítios de Consciência", lugar em que se confronta ativamente o ocorrido, a fim de gerar reflexão e estimulação de ação perante o evento (CASTRIOTA, 2019).

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A Vontade de Memória nos Lugares

Forte d’Estrées na Ilha de Gorée, no Senegal, atual Museu Histórico do Senegal. Ji-Elle, Wikipédia.

Cúpula Genbaku em Hiroshima, no Japão. Japan Hoppers

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A Imagem da Ruína

Ruínas do crematório IV, em Auschwitz II, na Polônia. Diether, Wikipédia.

Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, Brasil. Diário do Rio.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Bento Rodrigues e a Zona de Stalker, apesar de estarem dentro desta lógica do patrimônio difícil, ainda são a matéria constitutiva da memória de determinada população. Bento Rodrigues ainda é um local de importância simbólica e mnemônica para seus antigos moradores. Antes de qualquer apropriação do patrimônio cultural, ela já é patrimônio para aquele povo que ali viveu e que ali construiu relações com aquele espaço. Assim como acontece na Zona, ainda apropriada pela figura do Stalker, que mantém uma íntima relação com aquele lugar. É ali que estão as suas crenças, e seus signos. A Zona é patrimônio para o Stalker. E estas memórias e a importância simbólica destes lugares para determinados indivíduos ou populações é indissociável da paisagem alterada17 que eles possuem, principalmente depois do evento catastrófico ou do início do processo de arruinamento da materialidade do lugar.

O termo “Paisagem Alterada” é empregado por Simone Freire na tese Terras Remotas (2017) para definir os espaços “formados pelos remanescentes finais, as sobras dos processos das contínuas retiradas das camadas de terra que definimos como recursos naturais (...)” (FREIRE, 2017, p. 81) 17

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A Imagem da Ruína

72


Vista de Bento Rodrigues. Thiago Gabriel, 2018.


Vista de Zona em Stalker. Stalker, 1979, 44”’.



PAISAGENS MÓVEIS


A Vontade de Memória nos Lugares

Alterações

Edson

trabalhava

como

vigia

na

estação

de

distribuição de energia da Samarco, poucos quilômetros acima de Bento Rodrigues18. Sentado na guarita, ele olhava a paisagem a sua volta, a estação estava no meio da mata densa e fechada, próximo aquele rio de pouca água. Apesar da pequena televisão ligada em um canal qualquer, seu pensamento se dispersava, o expediente já estava quase no fim. Foi quando o barulho das máquinas da estação cessou, as bombas pararam, sua televisão desligou de repente. Por um breve instante, o silêncio que parecia absoluto foi dando lugar a um enorme barulho de correnteza. Pensando que alguma tubulação havia estourado, ele sai da guarita para conferir, se virando de costas ao pequeno rio. As tubulações estavam intactas, quando virou de volta à guarita, notou que, de repente, a água no rio havia levantado uns quatro metros. Sua cor estava laranja e, apesar de parecer pastoso, ele corria rápido, carregando árvores inteiras que subiam e submergiam no meio da correnteza mostrando suas copas, troncos e raízes. Edson

18

Narrativa baseada no relato do vigia Edson Borges ao G1 no dia 06/11/2015. Edson trabalhava como vigia da Samarco no dia do rompimento da barragem em Bento Rodrigues. Disponível em https://cutt.ly/az129AZ, acessado em 12/10/2020. 77


Paisagens Móveis

então pensou que, assim como aquelas árvores, Bento Rodrigues seria carregado por inteiro, como barco de papel na correnteza das chuvas de verão.

Estação de distribuição de energia da Samarco acima do vilarejo de Bento Rodrigues após o rompimento da barragem. Fábio Venâncio, 2015.

Entrevista de Edson ao Bom Dia Minas, da Rede Globo em 06/11/2015. Globo Minas, 2015.

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A Vontade de Memória nos Lugares

No livro Notícias do Mundo, Michel Serres (2001) fala do avesso da paisagem como resultado de eventos sismológicos. O estremecimento das placas tectônicas faz com que a terra se desenrole, destruindo em um instante “as aparências precariamente desenhadas, durante milhões de anos, pela fauna e flora, pelos camponeses, pelos operários, pelos arquitetos e pelas jardineiras” (SERRES, 2001, p. 67). Esse movimento deixa transparecer o avesso da paisagem, o oculto, como a abertura de uma fronteira para uma realidade jamais vista. “Como chamar o terreno descoberto sob essas ruínas, do qual ninguém sabe dizer, nesse dia de cólera e de alegria, se ele traz consigo o fim ou o início do mundo?” (SERRES, 2001, p. 67) Esse movimento revela a matéria escondida da terra já conhecida pelos trabalhadores da mineração. O avesso da paisagem não é apenas o resultado de eventos sísmicos, mas também é resultado do rompimento das barragens que retêm as sobras da terra. Aquela quinta-feira, dia 5 de novembro de 2015 seria marcada como símbolo de um dos maiores desastres tecnológicos19 do Brasil até o famigerado ano de 2019, com o também rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho, 19

Segundo a Instrução Normativa nº 1 de 24/07/2012, desastre tecnológico são “aqueles originados de condições tecnológicas ou industriais, incluindo acidentes, procedimentos perigosos, falhas na infraestrutura ou atividades humanas específicas, que podem implicar em perdas humanas ou outros impactos à saúde, danos ao meio ambiente, à propriedade, interrupção dos serviços e distúrbios sociais e econômicos” (BRASIL, 2012, p. 5). 79


Paisagens Móveis

Minas Gerais. Poucos instantes depois das 15 horas e 30 minutos, aquele lugar, com mais de 300 anos de ocupação, seria radicalmente alterado. Quase todas aquelas casas, suas ruas, a capela e parte da vegetação ao redor foram afetadas. A paisagem de Bento Rodrigues, que antes era associada ao bucolismo típico das pequenas vilas de Minas Gerais que surgem ao redor da exploração aurífera e que depois vão estar quase à margem de um desenvolvimento metropolitano, se voltando as atividades ligadas ao trabalho rural, ao setor de serviços e a mineração, será brutalmente modificada. Esta paisagem era aquela que abarcava um modo de vida mais desacelerado, onde o tempo ágil da contemporaneidade parecia demorar a chegar. De certo modo, ele chegava pela mineração, mas ela mantinha certa distância, era cercada e escondida,

mesmo

sendo

um

dos

responsáveis

pela

movimentação econômica do subdistrito. A paisagem que existia antes do rompimento da barragem em 2015 era grande caracterizadora de Bento Rodrigues. O número reduzido de construções e suas baixas estaturas, que permitiam uma visada dos morros e serras que circundam o lugar e mostram as matas, como também os pastos, ajudavam a formar um imaginário e um simbolismo deste ambiente rural, lugar que se afasta dos grandes centros urbanos, bem como, se afirma como espécie de mito de origem do povo mineiro. E é também a paisagem histórica, dos

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A Vontade de Memória nos Lugares

percursos do ouro, do caminho tronco de onde se proliferam outras pequenas ruas, das quase constantes capelas dos povoados mineiros. Paisagem das pequenas hortas, das cercas de arame farpado ou de bambu, do capim, dos bananais e bambuzais, do pouco asfalto, de criações de animais. Uma paisagem também marcada pelo turismo da Estrada Real que passa por Bento e traz alguns turistas, alguns ciclistas e viajantes. Era a paisagem repleta de significados, indissociável daquele povo que ali morava e se apropriava dela. Mas, após 2015, é nesta paisagem que será operada uma marcante modificação simbólica. Estes marcadores da paisagem do lugar serão alterados, alguns ainda existirão, outros

serão

completamente

removidos.

Aqueles

que

sobreviveram à lama serão retirados do seu contexto, seu uso será alterado ou mesmo impedido. E se antes a paisagem deste lugar era significada por eles, agora ela será significada por meio da lama e pelas modificações que ela irá operar no espaço e mesmo nestes marcadores. Todos eles serão analisados, interpretados e incorporados tendo em vista a lama. Ela agora é o grande estigma de Bento Rodrigues. Deste modo, é nesta paisagem alterada (FREIRE, 2017) que ocorrerá uma modificação simbólica. Apesar de Bento Rodrigues se caracterizar muito além da mineração e do desastre de 2015, ao senso comum, este lugar já é indissociável do acontecimento que destrói parte do 81


Paisagens Móveis

subdistrito. Ao pesquisar o nome “Bento Rodrigues” no Google Imagens, apenas um dos primeiros nove resultados retrata o lugar antes de 2015, mesmo assim, se trata de uma imagem dividida com o período pós catástrofe. Ainda, outras duas são referências às obras da “Nova Bento Rodrigues”, sendo uma delas a reportagem que menciona a sua inauguração para 2020. O artigo sobre Bento Rodrigues na Wikipédia dispõe de mais tempo para falar sobre o rompimento da barragem de Fundão do que sobre qualquer outra questão 20. Assim, criouse progressivamente um imaginário de Bento Rodrigues como indissociável da mineração, do rompimento da barragem em 2015, da Samarco. Nesse imaginário, Bento Rodrigues nunca existiu sem um destes elementos, se existiu, era uma espécie de lenda distante, lugar inacessível, como atesta o comentário deixado por alguém na reportagem em que Edson e outras pessoas relatam suas experiências relacionadas ao desastre.

Comentário na reportagem do Bom Dia Minas, da Rede Globo em 06/11/2015.

20

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bento_Rodrigues, acesso em 10/03/2021. 82


A Vontade de Memória nos Lugares

Pesquisa do termo “Bento Rodrigues” no Google Imagens. Google Imagens em 08/02/2021.

No ensaio “A Filosofia da Paisagem”, Georg Simmel (2009) delimita quais fatores formam e quais são as caracterizações da paisagem. Neste texto, o autor faz uma diferenciação entre a natureza e a paisagem. Visto que a natureza é uma junção infinita de coisas, indivisíveis e que formam uma “unidade sem fronteiras” que “só pode existir como uma onda da torrente conjunta que é a ‘natureza’.” (SIMMEL, 2009, p.6) Já a paisagem é uma demarcação, um

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Paisagens Móveis

conjunto de singularidades dentro desta unidade que é a natureza, movimento de abarcar um horizonte, de forma momentânea ou duradoura. A percepção desta unidade se dá por uma contemplação de uma unidade autossuficiente na natureza. “A natureza, que no seu ser e no seu sentido profundo nada sabe da individualidade, graças ao olhar humano que a divide e das partes constitui unidades particulares, é reorganizada para ser a individualidade respectiva que apelidamos de ‘paisagem’” (SIMMEL, 2009, p.7). A unidade que dá forma à paisagem acontece em um movimento de “extrair da torrente e da infinidade caóticas do mundo imediatamente dado um fragmento, apreendê-lo e formá-lo como uma unidade, que agora encontra em si mesma o seu sentido e intercepta os fios que a ligam ao universo e os reata de novo no ponto central que lhe é peculiar” (SIMMEL, 2009, p.9). Mas esta formação da paisagem acontece a partir de certa “energia fundadora”, uma atuação de “tipos de configuração” que, estando já paisagem, são captadas e permitem a junção dos elementos que podem dar forma a ela. O que suporta esta unidade é denominado por Simmel como “disposição anímica”, do alemão stimmung, uma atmosfera, um humor ou disposição da paisagem. Para Simmel “a disposição anímica da paisagem penetra todos os seus elementos particulares, sem que, muitas vezes, nela se consiga fazer

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A Vontade de Memória nos Lugares

sobressair um só; cada qual, de um modo dificilmente designável, tem nela parte - mas ela nem subsiste fora destes contributos nem deles é composta.” (SIMMEL, 2009, p.13 - 14). Portanto, a disposição anímica de uma paisagem, que só nasce a partir da confrontação humana com a natureza, é dada pela paisagem percebida, já está nela. E, segundo Simmel, essa disposição da paisagem, que acaba sendo o uníssono dos elementos individuais que ela constitui, pode ser modificada caso ocorra alguma alteração na própria paisagem, o que provocaria a formação de outra paisagem, pois esta disposição outra, nascente, geraria diferente unidade na natureza. A alteração que ocorreu na paisagem de Bento Rodrigues após o rompimento da barragem em 2015, e também na paisagem da Zona, em Stalker, após o evento que não sabemos ao certo do que se trata, acabam gerando este movimento. Pois a disposição anímica foi alterada como consequência da catástrofe particular de cada espaço, o que modifica a forma com que estes elementos da natureza são aglomerados para a formação da paisagem. Após o desastre tecnológico em Bento Rodrigues, e aquele evento incerto na Zona, de certa forma, a unidade dos elementos na paisagem se dá agora em função do próprio desastre, o que torna a paisagem indissociável do ocorrido e gera, como se observa, o estigma da catástrofe nelas. A partir de então, portanto, estas paisagens só podem ser entendidas tendo em vista a alteração

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Paisagens Móveis

que nelas aconteceu. Assim, outra paisagem se formou, há uma paisagem antes e depois do desastre que nelas ocorreu.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Neblina

Os aspectos físico-ambientais de Bento Rodrigues foram completamente alterados pelo rompimento da barragem em novembro de 2015. Apenas o clima macro da região foi mantido, que era caracterizado como subtropical de altitude, com inverno seco e verão ameno, com temperaturas variando dos 18 aos 22 graus. Um aspecto interessante deste local é a neblina da manhã (GODOY, 2017). Sob essa neblina que se movimenta sujeita aos ventos sudoeste, muitas relações simbólicas foram criadas, ela certamente faz parte do imaginário dos atingidos e moldam seus modos de vida 21 (GODOY, 2017) e como resistência, ela ainda insiste em percorrer, nas primeiras horas da manhã, as casas em arruinamento e a mata levada abaixo pela lama, até que os

21

Dentro do diagnóstico preliminar dos bens culturais das localidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão realizado pela Pólen Consulturia, Godoy faz a seguinte observação sobre a neblina no imaginário das populações atingidas: “Nas pesquisas de campo para este diagnóstico, realizada em maio do ano corrente, tanto na região de Paracatu de Baixo como em Bento Rodrigues, uma característica marcante é a neblina que compõe a paisagem no início da manhã. Sob essa neblina, crianças iam para escola, trabalhadores iam para o campo, meninos andavam a cavalo dentro dessa massa de ar úmido que certamente faz parte do imaginário dos nativos. Desprezar essas características é não levar em consideração especificidades que moldaram os modos de vida dessas populações.” (GODOY, 2017, p. 26). 87


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raios solares a dispersem. Esta neblina traz para a matéria a latência própria da memória, a temporalidade distendida, vagarosa, de um lugar em que os fluxos sociais foram interrompidos. A neblina como condicionadora de um tempo distendido na paisagem também está presente em muitos filmes de Tarkovski, que, com seu caminhar lento pela paisagem, dá aos lugares uma noção de progressão temporal mais vagarosa22. A neblina, assim como as ruínas que agora fazem parte destas paisagens, são elementos que condicionam o tempo

nestes

lugares.

Ela

é

uma

continuidade

da

temporalidade mais lenta da vida em Bento Rodrigues do antes ao depois do rompimento, como um tempo que, mesmo tendo se alterado o lugar, persiste na paisagem. Nos filmes de Tarkovski, ela também condiciona o tempo ao dotar a paisagem, a partir de sua lenta metamorfose no espaço, de certo movimento, um movimento lento que modifica a apreensão que temos da paisagem vista na tela. Em certos momentos, a neblina condiciona a paisagem a um estado onírico ou de uma rememoração própria das memórias distantes, já alteradas pelo tempo. É o que parece acontecer na cena inicial de Nostalgia, que dispõem alguns personagens na paisagem com esta neblina: a jovem, a mulher, a velha e o

22

A ideia da neblina como uma condicionadora do tempo em Bento Rodrigues e na filmografia de Tarkovski é tratada no capítulo O Tempo da Matéria. 88


A Vontade de Memória nos Lugares

menino, o cão e o cavalo. Não sabemos se as imagens tratam de um sonho, ou uma memória distante. Mas a neblina, junto do pouco movimento da cena, cria esta outra temporalidade na paisagem. Uma cena muito parecida retorna um pouco mais tarde no filme, agora como espécie de tableau vivant23, mas a neblina permanece, e o tempo percebido na paisagem também é o mesmo.

23

Tableau vivant é um termo francês traduzido como imagem viva que se caracteriza como uma montagem de cena estática contendo alguns ou um personagem que não produzem qualquer movimento ou som. Era prática muito comum na Europa antes da invenção do cinema, como representação viva de pinturas e como diversão burguesa. Teve alguma utilização no teatro e na fotografia. No cinema, é prática empregada desde Buñuel e Parajanov em A Cor da Romã, de 1969, até na contemporaneidade, quando aparece quase como totalidade em O Moinho e a Cruz, dirigido por Lech Majewski em 2012 e em Na Ventania, do estoniano Martti Helde, de 2014. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Tableau_vivant, acesso em 10/02/2021. 89


Paisagens Móveis

A cena inicial de Nostalgia. Nostalgia, 1983, 0’.

A segunda aparição da cena da paisagem com neblina em Nostalgia. Nostalgia, 1983, 80’.

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A Vontade de Memória nos Lugares

As ruínas também condicionam a temporalidade da paisagem, se colocando como elementos fora do tempo, naquela contradição temporal que lhes é própria, sendo elementos do passado, no presente e do futuro (MATOS, 1995). Elas indicam a formação de uma unidade de paisagem ligada a um tempo próprio. Em Bento Rodrigues, ajudam na conformação da paisagem com tempo diferente e distante de uma realidade dos grandes centros urbanos. Em Tarkovski, elas fazem da paisagem um ambiente com o tempo próximo de um tempo poético, ou um tempo da memória e do onírico, de todo diferente da percepção temporal corriqueira. Estes dois elementos visuais, a neblina e as ruínas, são constitutivos da natureza destes espaços que formaram uma unidade temporal entre si, originando, como apontado por Simmel (2009), em uma disposição anímica que dá origem ao entendimento de determinada paisagem enquanto unidade autônoma do todo da natureza. Portanto, o tempo outro nestes lugares, a ser tratado no último capítulo deste trabalho, é também uma disposição anímica que dá forma à apreensão da paisagem, uma apreensão que se dá pelo tempo, instância suscitadas

por

estes

dois

elementos.

Eles

agem,

principalmente as ruínas, como elemento de junção presentes na natureza que formam a paisagem, mas uma formação que se dá pelo tempo outro inscrito na matéria da ruína, e na percepção da neblina enquanto lentidão temporal. Certamente,

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Paisagens Móveis

esta não é a única disposição que forma as paisagens estudadas aqui, ela se aglutina também de outras formas, como a partir do já apontado desastre, mas esta disposição é de uma natureza visual e é um dos condicionantes do tempo próprio destes lugares.

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Neblina em Bento Rodrigues Pólen Consultoria. L. Godoy, fevereiro 2017, p.27


Uma das cenas iniciais de Nostalgia Nostalgia, 1983, 5’.


A Vontade de Memória nos Lugares

Água

O rio, aquele chamado Gualacho do Norte, que circundava Bento Rodrigues e desaguava no Rio do Carmo, que por sua vez ia até o Rio Doce, foi completamente desfigurado. Em seu local, junto a Bento Rodrigues, foram construídos dois diques que impediam que mais lama fosse levada com as chuvas concentradas no final e no início do ano. Para sua construção, parte das casas, ruas e terrenos tiveram de ser novamente alagados. A ruína úmida teve de continuar, e ainda continua, como aquela constante água que cai nas muitas construções dos filmes de Tarkovski e que vão, lenta e gradualmente, transformando a matéria construída em pó. Um muro de pedra, de muito simbolismo para aqueles que viviam em Bento Rodrigues, foi parcialmente submerso e recoberto de lona, na tentativa de o proteger, mas com o destino muito próximo daquela igreja em Nostalgia.

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Paisagens Móveis

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Muro de Pedras envelopado do dique S4. Samantha Nery, 2019.


A igreja alagada de Nostalgia. Nostalgia, 1983, 82’.


Dique S4 visto da Capela de São Bento. Anielle Freitas, 2017.


Paisagem da Zona em Stalker. Stalker, 1979, 90’.


A Vontade de Memória nos Lugares

Estes cursos d’água hoje alterados, antes eram cenário da busca do ouro no local, que, pertencente ao “Quadrilátero Ferrífero”, tem uma íntima ligação com a exploração mineral desde o surgimento da localidade. É até estranho imaginar que Bento Rodrigues tem sua história ligada ao solo que está abaixo das suas casas. Sua ocupação foi criada a partir dos movimentos pela busca de ouro em Minas Gerais e sua grande ruptura também está relacionada à composição do seu solo, que contém expressivas reservas de manganês e minério de ferro. É também este solo que será revolvido pelos grandes tratores da mineração, sendo retirado a parte que é de interesse ao mercado global e, as sobras, os rejeitos (FREIRE, 2017), serão a causa do arruinamento e chegarão dentro das casas, modificando profundamente a natureza deste lugar. Em Paisagem e Memória, Simon Schama (1996) discute os significados dados às paisagens naturais em diversos tempos, por diversos povos. O autor conceitua a paisagem de forma diferente do espaço, pois a paisagem é um espaço que passou por algum processo de significação. Deste modo, a paisagem é uma construção, não é algo dado e necessita de ação humana para existir; neste caso, a ideia de natureza também é uma construção. A natureza e a percepção humana são inseparáveis. A paisagem, pois, é obra da mente, e ela também é composta por lembranças. A bagagem cultural

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Paisagens Móveis

que carregamos define o espaço. O autor cita que, mesmo nas visões de completo isolamento dos escritos de Thoreau, a natureza selvagem já não é mais pura pelo simples fato de ser pensada. Para o autor, esta natureza selvagem não se autointitula, não se demarca ou nomeia, mas é titulada, demarcada e nomeada. Simon Schama cita como os grandes parques nos Estados

Unidos

passaram

por

esses

processos

de

significação, como eles se tornaram paisagem. A visão daqueles espaços da natureza em sua exuberância, intocados, como o cenário estadunidense de origem da nação, foi uma construção de determinado momento, com determinada intenção. O autor também narra que, quando criança, para coletar donativos em benefício do seu templo judeu, devia-se juntar dinheiro. E, a cada seis moedas, uma folha era adicionada a uma árvore de papel. Quando a árvore já tinha muitas folhas, a caixa com o dinheiro era enviada ao templo e uma árvore com o nome da turma era plantada na Judéia. O autor diz ser esta uma construção de paisagem a distância, pois os alunos não sabiam quais e como as árvores eram plantadas, mas tinham um pensamento sobre isso, gerando um significado sobre o espaço. Também, se a paisagem é uma construção simbólica, Schama menciona a possibilidade de seu uso como instrumento simbólico, com um objetivo específico e que acaba por, novamente, significar a paisagem.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Neste caso, a paisagem também pode ser entendida como construção política. O conceito levantado pelo autor inglês é fundamental para entender como as paisagens de Bento Rodrigues e as da filmografia de Tarkovski podem ser criadas e acabam também sendo fruto de grupos sociais, no caso da primeira, ou de um diretor, no caso da segunda, que ainda pode incluir aqueles que assistem aos filmes do diretor russo, pois, ao pensar sobre seus filmes, acabam contribuindo para a criação das paisagens existentes neles. Bento Rodrigues, após o desastre de 2015, passou por um abrupto e grandioso processo de significação, o termo mais correto, entretanto, seria ressignificação, pois ali já existia uma paisagem constituída. Após a catástrofe, aquela paisagem muda radicalmente, pois outros agentes vão dar novos significados ao local, que incluem também agentes externos; a população não diretamente ligada a Bento Rodrigues, mas que significa aquele espaço a partir das imagens da mídia do pós rompimento. Deste modo, a paisagem atual de Bento só pode ser entendida a partir deste jogo simbólico que ali se instala. Depois do rompimento, as apropriações que a população ainda terá com o lugar, seus usos pós-desastre vão gerar outros sentidos a ela, enquanto resistência, enquanto persistência e enquanto singularidade, o que garante sua proteção e apropriação.

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Igualmente, as paisagens criadas por Tarkovski em seus filmes são espaços dotados de profundos significados, sejam os do próprio cineasta, ou até mesmo os significados dados pelos personagens dentro dos próprios filmes, o que cria e modifica as paisagens. Em Nostalgia, o personagem exilado da Rússia na Itália, o poeta Gorchakov, em determinado momento do filme vaga em meio às ruínas da Abadia de San Galgano. Neste momento ele começa a dotar esta paisagem de significados, sejam aqueles relacionados à sua angústia, ao seu sentimento de perda, mas principalmente à sua nostalgia. Posteriormente, aquela abadia já foi tão significada que, ao final do filme, a casa da infância do poeta é transportada para dentro da construção, em uma metamorfose de duas outras paisagens, criando uma nova. Nesta nova paisagem, até mesmo os acontecimentos climáticos são criados, a fina camada de neblina e a neve estão ali.

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A Vontade de Memória nos Lugares

A metamorfose das paisagens em Nostalgia. Nostalgia’, 1983, 124’.

Esta possibilidade de criação e modificação, enquanto política, da paisagem apontada por Schama, junto da possível modificação da

vontade

anímica contida nelas, como

demonstra Simmel, criam amplas possibilidades para que as paisagens possam modificar seu sentido em uma direção. Seja por meio de uma mudança no próprio espaço ou pela modificação em sua apropriação por determinadas culturas. A partir desta mudança na paisagem e em seus significados, que agora já são outros, estes lugares podem reter sobras de memórias, pois a memória viva originada pela vivência dos moradores já não existe mais naquele espaço, ela se cristaliza na paisagem criada. Elas agora podem conter o simbolismo necessário para a sua identificação enquanto Lugares de Memória.

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Árvores e capins

A vegetação de Bento Rodrigues que não foi levada pela lama está nas cotas mais altas que a linha do percurso de destruição. Nos morros que circundam o vilarejo, a vegetação de transição entre o Cerrado e a Mata Atlântica, com suas árvores de médio a grande porte, compete com áreas de pasto e pequenas culturas. Em alguns pontos, as matas de eucalipto, um signo da mão humana e sua intervenção modificadora na natureza, estão ao lado das matas de galerias entremeadas por pequenos cursos d’água. Já nas áreas em que a lama deixou a marca do seu percurso, poucas árvores que entremeavam as casas restaram, algumas com suas folhas, outras esqueléticas, como se secas. No entanto, tempos depois, a natureza, implacável, retomou seu lugar. Distante da foice, gramíneas vão crescendo por cima da lama, nos lugares das ruas, no meio das casas, dentro das casas. Bananeiras, de rápido desenvolvimento, começam a brotar junto das trepadeiras, que vão tomando as casas de assalto (FREIRE, 2017). Apesar das limpezas que acontecem em alguns pontos, onde geralmente eram as ruas, a natureza desce os morros onde estava delimitada, levada pela fauna de pássaros que ainda resiste ali. Ela ocupa aquele lugar onde a lama criou novamente seu

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A Vontade de Memória nos Lugares

terreno de desenvolvimento e onde alguns outros animais vão encontrar seu pasto. Em determinado momento da tese Terras Remotas, de Simone Freire, a autora narra, dentro de suas pesquisas sobre os lugares gerados pelos processos econômicos de exploração mineral, sua viagem a Bento Rodrigues sete dias após o rompimento da barragem de rejeitos. Em meio àquele espaço recentemente atingido pelo desastre, em que o cheiro da putrefação ainda era forte e a lama, com sua marcante coloração laranja-avermelhado, ainda ocupava boa parte do campo visual, algumas plantas já começavam a crescer. Mesmo com o movimento ainda existente das pessoas em suas buscas por objetos e moradores desaparecidos, as bananeiras já surgiam no solo junto de outras plantas que já despontavam em meio à lama (FREIRE, 2017). Após sofrer o evento que é chamado de invasão interplanetária e passar também por processos de ruína, o espaço da Zona, em Stalker, também assiste o implacável retorno da natureza, que vai entrando lentamente nos prédios, tornando-os úmidos, verdes e fazendo com que a matéria construída vá ao chão, assim como acontece em Bento Rodrigues. Longe do controle humano, ao passo que as águas vão penetrando nas construções, as trepadeiras vão subindo pelas paredes. Assim também acontece com uma igreja que o personagem principal de Nostalgia entra em meio a um de seus

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monólogos. Invadida pela água, o lodo cresce em suas paredes, algumas pequenas árvores encontram fendas nas pedras e vão pulverizando suas raízes. Nos locais onde os escombros estão acima da linha da água, arbustos vão crescendo. Eles crescem até mesmo embaixo da água, encobrindo o piso e um anjo branco caído de lado.

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Construção em Bento Rodrigues. Samantha Nery, 2016.


A igreja alagada de Nostalgia. Nostalgia, 1983, 82’.


A Vontade de Memória nos Lugares

Segundo Rafael Ribeiro no artigo para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) intitulado Paisagem (2020), o patrimônio cultural se apropria da paisagem a partir de duas tendências principais. A primeira delas é a da paisagem enquanto vista, colocando em ênfase uma tradição visual do conceito. A segunda é a da paisagem enquanto produto da relação entre sociedade e natureza, proveniente de conceitos da geografia dos finais do século XIX e início do século XX24 e de um crescimento da preocupação com as questões ambientais, o que inclui aqui os cenários idealizados da natureza. A ideia de paisagem enquanto vista já estava presente nos primeiros anos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)25, com a ação sobre a paisagem a partir de “tradições oriundas do paisagismo e com uma concepção de paisagem como panorama ou como ambiência de bens arquitetônicos de interesse patrimonial” (RIBEIRO, 2020, p. 23), o que se justificava pela formação em arquitetura na Escola de Belas Artes pela maior parte dos integrantes do SPHAN na época26. Nesse sentido, a concepção

24

A ideia de paisagem como produto da relação sociedade e natureza aparece na geografia nas obras de Paul Vidal de la Blache, apontado como fundador da escola de geografia regional francesa e Carl Ortwin Sauer, principal membro da Escola de Barkeley de Geografia Cultural (RIBEIRO, 2020). 25 O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional posteriormente será transformado em instituto, originando o IPHAN. 26 A ideia de paisagem enquanto vista também é apoiada por algumas cartas patrimoniais, como a carta de Atenas, de 1931, onde aparecem preocupações com a paisagem, seja ela natural ou construída, mas a partir de um bem que se atribui valor cultural. Desse modo, há uma preocupação na preservação de 111


Paisagens Móveis

da paisagem é dada como vista e é bastante presente “um caráter de apreciação estética” (RIBEIRO, 2020, p.23), o que não está dissociado da apreciação da natureza, talvez até idealizada. No caso da paisagem enquanto relação da sociedade com a natureza, ou o que Ribeiro chama de “a captura ambiental da paisagem" (2020, p. 26), em um primeiro momento ela se dará com o processo de patrimonialização de parques e jardins, uma vez que estes são entendidos como representantes de um espaço ligado a fruição da natureza constituído por seus elementos. Este entendimento também aparecerá nas cidades em que a relação com a natureza era ressaltada. Posteriormente, a paisagem será entendida acrescida do termo cultural, muito em função da atuação da UNESCO, que definirá a Paisagem Cultural como “trabalho combinado da natureza e do homem” (UNESCO, 1999, p. 09). Assim, a paisagem ilustra a evolução da sociedade e das ocupações

humanas

ao

longo

do

tempo

sobre

as

determinações do ambiente natural e das forças sociais, econômicas e culturais, sejam elas internas ou externas. Nesse caso, acontece uma busca em apontar como a interação entre determinada cultura e o meio ambiente “desenvolveram um modo específico de viver que se manifesta na configuração

perspectivas e vegetações nativas que constituem a ambiência de determinado lugar (RIBEIRO, 2020). 112


A Vontade de Memória nos Lugares

espacial, nas práticas, hábitos e demais manifestações culturais” (RIBEIRO, 2020, p. 28). Nesta concepção em que predomina a natureza e um caráter cênico determina as apropriações da paisagem pelo patrimônio, a paisagem de Bento Rodrigues antes do desastre poderia ser entendida como aquela produzida a partir da interação, durante os mais de 300 anos de sua ocupação, das culturas ali presentes com o ambiente. O que criou uma paisagem específica indissociável da natureza que predomina ao redor deste espaço. Um panorama de Bento Rodrigues antes do rompimento deixava esta relação clara, como pode ser visto em uma das muitas capturas da localidade pelo Google Street View, a natureza é aquela que faz prevalecer um elemento cênico, formando uma vista.

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Paisagens Móveis

Vista de Bento Rodrigues a partir de um de seus acessos captada pelo carro do Glogle Street View. Google Maps, acesso em 09/02/2021.

Mas a paisagem de Bento Rodrigues é a paisagem alterada (FREIRE, 2017). Os elementos da natureza que nela estão não são aqueles que formam uma mata densa e uniforme, é a natureza recente, que cresce em meio às ruínas. Se a paisagem cultural é entendida como o resultado da interação entre uma cultura e a natureza, não só em Bento Rodrigues, mas também na Zona de Stalker, estas paisagens, mesmo após os desastres, são ainda o produto desta interação. Mas agora também uma interação nociva e predatória, uma interação que entrou em colapso e arruinou a paisagem que ali antes existia. Não é a interação que cria grandes feitos da arquitetura e do urbanismo, mas aquela que gerou a quase completa destruição, tanto da matéria quanto

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A Vontade de Memória nos Lugares

das outras relações que ali haviam entre a natureza e a cultura, a própria dos moradores. É uma paisagem que ilustra a evolução da sociedade, enquanto movimento modificador, sobre a influência das forças econômicas, no caso de Bento Rodrigues, e sociais, no caso da Zona. É a paisagem cultural relacionada ao patrimônio difícil, mas em que, mesmo com grande destruição, alguma outra relação entre a sociedade ali antes existente e a paisagem ainda persiste. Alguma relação entre uma cultura e a natureza ainda ali acontecerá, talvez como continuidade da evolução da sociedade expressa na paisagem, dotando-a de novos significados. Significados que constituem os Lugares de Memória. E só são possíveis por serem as paisagens construções sociais e passíveis de modificação.

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Paisagens Móveis

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VONTADE DE MEMÓRIA


A Vontade de Memória nos Lugares

Rua São Bento

As imagens produzidas pela câmera indiferente presa ao carro do Google no Street View27 de Bento Rodrigues em 2012 captaram muitas relações sociais e modos de vida que seriam alterados no evento de 2015. As pessoas de rosto borrado, anônimas, pararam para olhar aquele carro com um objeto estranho acoplado, se detendo no momento em que estavam inseridos nas dinâmicas daquela sociedade na rua São Bento. Uma senhora escorada nas grades de sua casa rosa olha um jovem, sem camisa e de chinelos, em cima de uma moto suja de barro. Um senhor com camisa social de botão segura seu boné amarelo, sorrindo ao lado do portão que acabou de abrir para um outro jovem rapaz guardar ou retirar sua moto. Um menino anda de bicicleta sozinho na rua. Em um bar na praça central, ao lado de um carro com o porta-malas entreaberto, um casal está abraçado, nas mesas do bar, um grupo parece entretido entre uma cerveja e outra, na mesa ao lado, dois homens conversam. Na varanda de uma casa amarela de grades verdes, uma senhora segura o portão aberto, outra está descalça na soleira da porta, na frente das

27

GOOGLE, Google Street View em Bento Rodrigues, setembro de 2012. https://cutt.ly/4z13U47, acesso em 15/02/2021. 119


Vontade de Memória

duas, na rua, uma outra se posiciona tranquilamente, o passar do carro interrompeu uma boa conversa. Mais à frente, após passar ao lado de um cavalo atado à placa indicativa da escola, um homem ajeita a cueca e outro vai saindo de uma casa sem incomodar o cachorro deitado na escadaria da porta. Após o avanço do carro, outros três jovens, todos de chinelo e boné, saem da mesma casa. Na esquina da Rua São Bento com Dona Olinda está uma casa branca com janelas azuis, na porta onde foi afixado um crucifixo vermelho, um senhor descalço e de chapéu de palha olha um grupo de quatro crianças que vai andando junto ao carro, subindo a rua. Mais acima, outra figura de chapéu, mas de bota, desceu de seu cavalo de sela vermelha para conversar com um casal na porta de sua casa.

Captura da rua São Bento em Bento Rodrigues. Google Street View, 2012.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Captura da rua São Bento em Bento Rodrigues. Google Street View, 2012.

Captura da rua São Bento em Bento Rodrigues. Google Street View, 2012.

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Vontade de Memória

Captura da rua São Bento em Bento Rodrigues. Google Street View, 2012.

Essas

imagens

revelam

uma

realidade

hoje

inexistente, como documentação, elas acrescentam o que Barthes dirá do terrível que há nas fotografias: o retorno de uma realidade morta. A constatação de se “observar com horror um futuro anterior cuja aposta é a morte.” (BARTHES, 2018, p. 81), a imagem que diz da morte no futuro. E ainda, há nestas imagens a certificação de uma realidade, que acontece a partir de uma captura indiferente, mas reveladora, pois ocorre quase que de forma inesperada, espontânea. Uma realidade que existiu, mesmo que, na imagem coletiva de Bento Rodrigues, só exista o momento depois de novembro de 2015. Nestas imagens foram cristalizadas relações, modos de vida, tradições das mais corriqueiras que atestam uma ligação de um povo

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A Vontade de Memória nos Lugares

com sua terra. Relações que existem de forma espontânea no lugar, não são racionalizadas, explicadas, ou delimitadas. A apropriação do espaço que se instaura desde o amarrar o cavalo na placa de trânsito ou estar na praça, conversar com aquele conhecido que passa na rua. Todas estas relações foram interrompidas pelo rompimento da barragem em 2015, os moradores, dispersos por vários locais, a maior parte deles no distrito sede de Mariana, viram sua sociabilidade se esvair. Os vizinhos não são mais os mesmos, eles agora estão longe. As praças agora são outras, as movimentadas e turísticas de Mariana. Os pontos de encontro e conversa foram substituídos pelas reuniões, assembleias, manifestações e visitas à casa de parentes e amigos. Aqueles que tinham sua produção econômica ligada ao local, como os donos de bares, de vendas, os produtores da geleia de pimenta biquinho, os que tinham hortas, roças, criações, ou foram para outras atividades ou passaram a depender de auxílios e indenizações. A economia de Bento Rodrigues foi também soterrada pela lama. Mas um aspecto social que ainda ficou naquele lugar foi o simbólico, ligado à memória inscrita na paisagem, às tradições, à religião e ao místico. Os meios no qual a memória se inscrevia nas relações sociais daquelas pessoas ainda permaneceram, de alguma forma, em Bento Rodrigues.

123


Vontade de Memória

O historiador francês Pierre Nora desenvolve o conceito de Lugares de Memória em seu ensaio introdutório a série de livros Les lieux de mémoire intitulado “Entre Memória e História: a problemática dos lugares” (1993) dentro de seus estudos sobre a criação da identidade nacional francesa. Segundo Nora, em um determinado momento da história, provavelmente com as migrações do campo para a cidade durante a Revolução Industrial, houve um deslocamento da memória, que foi, progressivamente, substituída pela história, provocando o fim do que o autor chama de sociedades baseadas na memória. Nestas sociedades, a memória é vivida por um grupo de pessoas de forma espontânea, sem intermédios e fazendo transposições fluídas do passado ao presente a partir dos meios de memória. Para o autor, o conceito de memória e história são opostos. A memória sempre é carregada por grupos vivos, passa por processos de metamorfose a partir de lembranças ou esquecimentos, é vulnerável a usos e manipulações, pode passar longos períodos

sem

grandes

mudanças,

como

também

ser

modificada de forma abrupta. Já a história é um recorte, uma reconstrução problemática e incompleta de algo já inexistente, portanto, uma representação do passado que necessita de análise e discurso crítico.28

28

O filme colombiano Pássaros de Verão, dirigido por Ciro Guerra e Cristina Gallego em 2019, é um valioso retrato da transposição das sociedades de 124


A Vontade de Memória nos Lugares

Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares

ou

simbólicas,

sensível

a

todas

as

transferências, cenas, censuras ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizados, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quanto grupos existentes; o que é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A memória só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA, 1993, P. 9)

Neste contexto, Nora aponta que os processos históricos operam em lógicas de apropriação dos processos de memória, transformando-os em história, “No coração da história trabalha um criticismo destruidor

de memória

espontânea. A memória é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e a repelir. A história é

memória para as sociedades de história e suas consequências no processo de ruptura com os meios de memória. O filme também indica como este processo interessa ao capitalismo 125


Vontade de Memória

deslegitimação do passado vivido.” (NORA, 1993, p. 9) Como esta memória apontada pelo autor está em risco, ela acaba se cristalizando em alguns lugares, como portos de segurança à sua integridade sempre ameaçada, estes são os Lugares de Memória. Eles são restos, sobras de memória, tentativas de impedir que virem história, pois partem daqueles mesmos processos da memória, de sua dinamicidade, seu simbolismo. Eles só existem pois, se a memória fosse vivida plenamente nas comunidades, eles não seriam necessários. Sua existência é condicionada ao fim dos meios de memória. Os Lugares de Memória possuem obrigatoriamente três dimensões, que existem simultaneamente, mas em graus diversos: a dimensão material,

a

simbólica

e

a

funcional.

Eles

não

são

necessariamente espaços, mas podem ser manuais de aula, um testamento, um minuto de silêncio ou uma associação de antigos

combatentes,

se

detendo

exclusivamente

nos

exemplos dados pelo autor. Ainda são conceitos dos Lugares de Memória algumas contradições, como sua simplicidade e ambiguidade, ele pode ter aparência de existir espontaneamente, mas é artificial, ao passo que funcionam como contenção de memória, pois ela já não opera de forma natural, não mais existem os meios de memória. Estes Lugares devem possuir alguma vontade de memória, onde a operação da rememoração é fundamental, pois se não há esta intenção, que é criada por meio das

126


A Vontade de Memória nos Lugares

entidades que significam o lugar, eles são apenas lugares de história. Há também uma intenção de parar o tempo, bloquear um processo de esquecimento, tornar fixo um estado de coisas, imortalizando um fim, que seria dado pelo processo racional da história. Alguns tipos de acontecimentos também podem ser classificados como Lugares de Memória, sendo de dois tipos. Os

primeiros

são

aqueles

quase

ínfimos,

notados

momentaneamente, mas que são, no futuro, dotados de grande simbolismo e significados, como pontos de ruptura. O segundo são aqueles acontecimentos onde, no limiar, nada acontece, mas são imediatamente dotados de simbolismo, sendo, eles mesmo, sua própria comemoração antecipada. Os espaços tratados aqui são, efetivamente, Lugares de Memória, eles possuem as três dimensões salientadas por Nora, possuem vontade de memória e operam por meio dela, bem como, tentam impedir sua apropriação por meio da história. Nestes espaços, os meios de memória já foram perdidos. Seja a casa da infância de Tarkovski, retratada nebulosamente em meio a sonhos e pequenos processos de ruína, ou na Zona, ambiente por si só todo simbólico, sofrendo metamorfoses

constantes

e

sendo

a

todo

momento

interpretado e reinterpretado, ou no lugar habitado por Domenico, repleto de suas memórias e também em processo úmido de ruína, apenas para citar o caso dos filmes de Tarkovski: O Espelho, Stalker e Nostalgia, respectivamente,

127


Vontade de Memória

todos são Lugares de Memória. Estes espaços das produções cinematográficas do diretor russo compartilham deste mesmo conceito com o espaço remanescente em Bento Rodrigues após o rompimento da barragem de Fundão, tendo, inclusive, as mesmas características em comum. O Dossiê de Tombamento de Bento Rodrigues (CASTRIOTA, 2019) é onde, pela primeira vez, se liga o espaço remanescente da localidade às ideias de Lugar de Memória de Pierre Nora. O documento de 2019, que pretende ser um instrumento para o futuro tombamento mais abrangente de Bento Rodrigues, traz do texto de Nora, além do conceito de Lugar de Memória, a definição de meio de memória (NORA, 1993). Antes do rompimento da barragem de Fundão, os modos de vida tradicionais eram mantidos com certa estabilidade em Bento Rodrigues, o que era garantido, também, pela espacialidade existente ali. Neste lugar, o espaço e o tempo vão de encontro à memória, que permanece viva e é reafirmada, portanto, há meios de memória. E é exatamente esta realidade que as câmeras do Google Street View captaram em 2012. No entanto, após o desastre de 2015, quando a paisagem do lugar é radicalmente alterada, os modos de vida, e também aquela memória, são deslocados, chacoalhados. Nesta sobra, há um romper da ligação feita por meio da memória com o passado, assim, rompe-se a memória. Então,

128


A Vontade de Memória nos Lugares

se não há mais um ambiente de memória, há o Lugar de Memória, em uma tentativa de impedir essa completa ruptura, preservando velhos significados, mas criando novos, muitos deles associados ao evento ocorrido no lugar e as narrativas criadas a partir dele. O dossiê salienta que o conceito criado por Nora é muito abrangente, portanto, cabe-se ater a definição proposta pelo documento produzido por uma equipe de especialistas contratada pelo Word Heritage Center para a Internacional Colalition of Sites of Conscience que define o Lugar de Memória como “uma localidade específica com evidência arquitetônica ou arqueológica, ou mesmo com específicas características de paisagem, que podem ser relacionados aos aspectos memoriais do lugar” (WCH, 2018, P.11 apud CASTRIOTA, 2019). Considerando esta ruptura que acontece em Bento Rodrigues e interrompe os meios de memória existentes ali, após passar por processos de ressignificação, inclusive aqueles que se dão na paisagem, aquele espaço se tornará um Lugar de Memória que possui três dimensões. A primeira é a material, dos resquícios das construções, dos restos das ruas, dos postes, das árvores e da agora, denominada por Freire (2017), paisagem alterada. O segundo é o funcional, Bento ainda é suporte para várias relações sociais, principalmente as religiosas. Lá ainda acontecem as tradicionais festas da comunidade, a de São Bento, o santo padroeiro, em 11 de julho, a de Santo Antônio, em 13 de junho e a de Nossa 129


Vontade de Memória

Senhora Aparecida, em 12 de outubro. Suas procissões são feitas em meio às ruínas, também tendo como suporte a capela não atingida de Nossa Senhora das Mercês e mesmo as ruínas da Capela de São Bento. Até mesmo uma festa junina, tradição da comunidade, foi organizada no ano de 2017 (CASTRIOTA, 2019). E o lugar ainda tem a função de suscitar memórias, tanto as dos moradores, quanto a de seus visitantes. Por fim, temos a terceira dimensão, a simbólica.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Rituais

O ano era 2017, dois anos haviam se passado desde a última vez em que a procissão de São Bento percorria as ruas do vilarejo29. A bandeira do padroeiro já estaria enfeitada para puxar a procissão, mas ela estava na casa dos festeiros quando a lama a levou rio abaixo, junto da imagem do santo padroeiro, que nunca foi encontrada. Mauro sobe em um barranco perto das ruínas da Escola Municipal Bento Rodrigues e solta os primeiros foguetes que anunciam o início da festa. A tradição havia se iniciado com seu pai, que em 1983 retomou a realização da festa e, junto de seus filhos, fez a primeira alvorada, às cinco e meia da manhã do dia 11 de julho daquele ano. Dividido entre as várias funções que tomou na festa, Mauro veste uma camiseta com a imagem de algumas pessoas abraçadas, era o grupo Loucos por Bento Rodrigues. O grupo foi organizado entre aqueles que insistiam, mesmo com os alertas da Defesa Civil e da Samarco para que se afastassem da área, em ir a Bento quase todos os finais de

29

Narrativa baseada em reportagem sobre a festa de São Bento de 2016, que não foi realizada em Bento Rodrigues, e sobre a festa de 2017, está já realizada, pela primeira vez desde 2015, no vilarejo. Disponível em https://cutt.ly/ez18ff5, acesso em 15/02/2021, e em https://cutt.ly/9z18EyX, acesso em 15/02/2021. 131


Vontade de Memória

semana e datas comemorativas, celebrando o carnaval, a semana santa, o ano novo ou simplesmente fazendo uma oração em frente às ruínas da Capela de São Bento. O louco do nome não é apenas um indicativo de um grande apreço pelo lugar, mas um manifesto e uma provocação àqueles que, não querendo voltar ao subdistrito, se referiam ao grupo desta forma. Os integrantes do grupo e a banda de música, com seus uniformes ainda limpos da fina poeira laranja que cobre o chão, esperam o início da missa. Neste ajuntamento, uma calça se destaca das outras, que estão limpas, bem passadas, roupa de ver Deus. Ela está imunda de terra, como se seu dono, a caminho da festa, tivesse que passar por um atoleiro. Aquele que a veste é Antônio, irmão da Sandra, dona do bar ao lado da Capela de São Bento. Desde o rompimento da barragem, Antônio nunca lava sua calça, que não está suja de qualquer lama, mas daquela lama que destruiu o bar da sua irmã. Como uma roupa cerimonial, todas as vezes que vai a Bento ele veste a calça. Suja de lama tal qual a terra por onde caminha. A missa é celebrada e a procissão sai em meio às ruínas. A imagem de São Bento que vai no andor, à frente da procissão, é diferente daquela que Mauro tirou em seu celular em algum momento antes de 2015, e o número de pessoas também é menor que aquele que pode ser visto em outra foto tirada por Mauro de uma das antigas festas. A palavra Procissão vem do latim procedere, ou seja, seguir em frente. É

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A Vontade de Memória nos Lugares

a junção de pro, à frente, e cedere, ir. Assim fazem estes moradores que perpetuam os rituais e a memória em Bento Rodrigues, mesmo quase tudo à sua volta ter sido mudado. Eles seguem a procissão passando pelas ruínas de suas casas, de seus comércios, dos lugares que antes estavam em seu cotidiano. Assim, não é um seguir em frente que esqueça o passado, mas que vai junto dele, ainda como existência.

Foto captada pelo celular de Mauro da imagem de São Bento que se perdeu no desastre de 2015. Acervo pessoal de Mauro da Silva.

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Vontade de Memória

Festa de São Bento em 2013. Acervo pessoal de Mauro da Silva.

Bento Rodrigues do pós-desastre carrega poderosa carga simbólica, que têm principalmente nos moradores sua manutenção. O lugar não é só símbolo de um modo de vida tradicional das cidades mineiras, das sociabilidades que existiam ali, das relações sociais, e das árvores genealógicas que ali cresceram, mas é também símbolo do crescimento por meio da mineração e de seus nocivos modos de produção. É símbolo de certo descaso público e privado. Símbolo de resistência dos atingidos, resistência contra esse modo de produção predatória, mesmo após todo o evento, alguma matéria ainda resiste como este símbolo. As capelas de Bento

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A Vontade de Memória nos Lugares

Rodrigues também são símbolos de relações religiosas que só podem acontecer naqueles locais, a capela de São Bento é única, por isso a missa da festa do padroeiro deve acontecer ali, não em qualquer outro lugar, pois as três dimensões, a funcional, a material e a simbólica coexistem, dependem uma da outra para sobreviver. Se os símbolos não existissem, não há motivo para manter a materialidade, ela pode desaparecer, virar apenas história, pois o simbólico também gera apropriação, suscitando a função do lugar e o dotando dessa importância única no mundo. Se não há materialidade, não há onde o simbólico se inscrever, não há uma função a ser seguida, não podem existir símbolos sem matéria ou funções que não são fruto de uma materialidade 30 nos Lugares de Memória. E se não há função, não há motivo para o simbólico ou o material existirem, pois a função de um lugar está relacionada ao que ele representa, ao que ele simboliza e ao que sua materialidade suscita.

30

O aspecto de materialidade dos lugares não está relacionado apenas a uma materialidade palpável, como uma construção, um livro ou um arquivo, mas a materialidade como algo que exista, mesmo que de forma abstrata. Sobre isso, Nora traz um exemplo: “Mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada centrada na lembrança.” (NORA, 1993, p. 21 - 22). 135


Vontade de Memória

136


Procissão de Nossa Senhora das Mercês e de Santo Antônio em Bento Rodrigues antes da primeira festa de São Bento após o rompimento da barragem. Cristiano Sales, 2016.


Os três personagens principais de Stalker andando na Zona. Stalker, 1979, 59’.


A Vontade de Memória nos Lugares

A relação dos moradores com Bento Rodrigues, este Lugar de Memória, é muito marcada pela luta na manutenção da memória no lugar, que, como diz Nora (1993), está a todo momento em risco de se transformar em história. Eles são os guardiões da memória, é por meio deles que os símbolos são mantidos, levando a manutenção das outras dimensões. Esses moradores têm uma função muito parecida com a do personagem Stalker do filme de mesmo nome. Mesmo com as constantes ameaças ao simbólico na Zona, tanto por um poder estatal, quanto pelos outros personagens, é sua função reafirmar a Zona como símbolo quase religioso. O personagem Stalker, após retornar da jornada pela Zona com o professor e o poeta, reclama, aos prantos, da falta de fé e de crença dos outros dois personagens na Zona e na sua possibilidade de realizar os desejos mais íntimos. Segundo o Stalker, eles “Têm o órgão da fé atrofiado. Não precisam dele (...) Podem pessoas iguais a estas acreditarem em algo? (...) Ninguém acredita. Não só esses dois. Ninguém!” (STALKER, 1979, 150’ - 154’). Portanto, a Zona, assim como nas festas de São Bento, exige respeito, manutenção de regras e veneração. Os dois espaços, portanto, são vistos como lugares sagrados. Inclusive pois, segundo Nora, estes ritos e celebrações são fundamentais para manter a memória no lugar e impedir que ele seja apropriado pela história: Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso

139


Vontade de Memória

criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. mas se o que eles se rendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e putrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento da história, mas que lhe são devolvidos. Não mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memória viva. (NORA, 1993, p. 13)

Mas percebe-se que, assim como o problema de crença do professor e do poeta em Stalker, os rituais em Bento Rodrigues também sofrem de alguns problemas. São poucas as pessoas que vão retomar as festas, são festas menores, mais contidas e, certamente, não são as mesmas celebrações, com as mesmas dinâmicas, de antes do rompimento, onde elas aconteciam por via do meio de memória, portanto, eram espontâneas, sem justificativas ou argumentos. Essas festas já

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A Vontade de Memória nos Lugares

eram parte intrínseca da vida no lugar. Mas, a partir do momento em que Bento se torna um Lugar de Memória, elas são feitas como essa rememoração artificial, com esforço, necessitando

mais

movimentações

e

passando

por

dificuldades e questionamentos. É o que Nora dirá da aparente artificialidade dos Lugares de Memória: Lugares salvos de uma memória na qual não mais habitamos, semi-oficiais e institucionais, semi-afetivos e sentimentais; lugares de unanimidade sem unanimismo que não

exprimem

mais

nem

convicção

militante

nem

participação apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simbólica. (NORA, 1993, p. 14)

Assim, esses ritos e os próprios lugares existem entre a vida e a morte, entre uma apropriação custosa e uma iminente apropriação pela história, que decretaria seu fim (NORA, 1993). Fim este que estaria em um ponto onde o lugar não mais é apropriado pelas pessoas, não é mais símbolo de algo, não mais é suporte para estas festas, ou para memórias, se tornando apenas uma fonte para o trabalho da história. Nesse sentido, os Lugares de Memória só existem em sua aptidão para a metamorfose, como acontece com a memória, que é a todo tempo passível de modificação. Se estes lugares não se modificassem, se as festas que ocorriam ali não se adaptarem à nova realidade de Bento Rodrigues, se o Stalker não modificasse seu caminhar passando por outros lugares da

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Vontade de Memória

Zona, que também está em constante movimento, essas práticas de apropriação do lugar logo morreriam e se tornariam o material inerte da história.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Datcha

O pôr do sol se insinua no horizonte. O som de grilos vai, aos poucos, dando espaço à ária O Mensch, bewein dein Sünde groß, da oratória Paixão Segundo São João, de Bach. O movimento lateral da câmera leva até a Datcha. A pequena casa de madeira, tão comum nos campos russos, está em meio a árvores. Próximo a ela, um casal está deitado na grama, um dos dois é a mãe do protagonista do filme que, emocionada, fita a câmera. No próximo plano, vemos esta mesma mulher, anos mais velhas, com duas crianças. A câmera se detém em detalhes, resquícios em meio a madeira putrefata e a água parada de um poço, alguns objetos indistintos estão jogados. Próximo plano, a senhora vem andando por entre os arbustos, pega pela mão uma das crianças. Outra criança, sentada nos restos de madeira usados para secar alguns panos brancos, segue os dois. Novamente vemos a mulher mais nova emocionada. Outro plano da senhora com as duas crianças, no campo aberto, os três vão até mais próximo da câmera, ao fundo, na paisagem, a mulher mais jovem está olhando. Um dos meninos, o mais velho, dá um grito que interrompe a música, a câmera vai se afastando em meio a floresta enquanto a senhora se distancia com as duas crianças pelo campo.

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Vontade de Memória

A Datcha em O Espelho. O Espelho, 1975, 101’.

Na sequência final de O Espelho, Tarkovski faz uma operação mnemônico muito indicativa da ideia que ele possui de memória e a forma com que o diretor lida com este aspecto é um indicativo dos Lugares de Memória em sua filmografia. O Espelho é formado por três linhas narrativas principais, mas não exclusivas, em tempos diferentes. Têm se o tempo do período antes da Segunda Grande Guerra, o tempo durante esta guerra e o terceiro, o depois. Nos dois primeiros, o protagonista é uma criança, mas em idades diferentes, no terceiro ele já está adulto. Nesta última cena, que acontece na casa de campo da infância do protagonista, a senhora que está com as crianças é a mãe deles, mas da terceira linha temporal

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A Vontade de Memória nos Lugares

e a moça mais jovem, é a mãe da primeira linha temporal. Sendo assim, em uma mesma cena, eixos temporais distintos se organizam em um mesmo espaço (COSTA, 2017). Esta mesma simultaneidade temporal pode ser vista em outros momentos do filme, quando essas duas mulheres, a representação mais jovem e a mais velha, estão na mesma cena. A ideia de memória em Tarkovski está também ligada, portanto, a uma fusão, em um mesmo espaço, de um conjunto de vivências (COSTA, 2017). Essas vivências se condensam nas paisagens do filme de Tarkovski, formando Lugares de Memória, como parece ser o caso deste ambiente da Datcha em O Espelho. Ali, a materialidade da casa e dos campos ao redor retém uma memória de infância, simboliza este espaço protegido da guerra que acontecia em seu exterior, e onde diferentes memórias surgirão simultaneamente. Esta memória nos espaços provém da memória que Tarkovski diz se fixar em nós, como vestígio do tempo (COSTA, 2017). O diretor tem um especial apreço por estes lugares em que a memória, como resquício, parece se cristalizar, eles estão presentes em boa parte de seus filmes. E não são memórias esquecidas, memórias utilizadas pela história, são memórias ainda vividas por alguma pessoa, ou algum grupo.

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Vontade de Memória

Ao falar sobre a busca de Tarkovski por locações para a filmagem de Nostalgia na Itália31, Maria do Céu Diel (2017) relata o encontro do cineasta com o Bagno Vignoni, que seria utilizada como uma das locações principais do filme: Terrífico encontro consigo mesmo, ver-se como um ente que circula com familiaridade num mundo líquido e gasoso. Reconhecer-se como um viajante melancólico, pouco dado aos grandes monumentos, ao verão alegre, às confraternizações e às banalidades. Tarkovski está em seu elemento familiar, o pântano visual, o terreno viscoso da memória. Ali, em Bagno Vignoni, fará circular entre os corredores e pelas piscinas vaporosas seu Gorchakov e seu pétreo silêncio. Entre a dor e a compaixão pelo mundo, seu personagem é incapaz de suportar a existência. O cenário é um entremundo, uma sobreposição de imagens feitas de vidro e tinta decantada, imagens feitas de restos e fuligens do passado, intraduzíveis. (DIEL, 2017, p. 275)

Este lugar que Tarkovski buscava para seu filme parece muito próximo das delimitações dos Lugares de Memória e a descrição de Diel faz a relação ser ainda mais evidente. A imagem do Bagno Vignoni é feita de restos, fuligens do passado, assim como os Lugares de Memória, são restos dos meios de memória que se inscrevem na matéria, resquícios de

31

Algumas destas cenas de Tarkovski na Itália compõem o documentário Tempo de Viagem, dirigido pelo diretor russo em conjunto com Tonino Guerra em 1983. 146


A Vontade de Memória nos Lugares

um passado em que estes meios existiam. Os Lugares de Memória, portanto, poderiam ser descritos como o “terreno viscoso da memória” (DIEL, 2017, p. 275), viscoso pois não completamente palpável, a memória, com seus meios, não está ali por completo, mas apenas uma lembrança dela, um rastro. E é este espaço que Tarkovski busca em seus filmes, esse espaço com o rastro da memória. Tarkovski também vai dotar estes espaços de rituais, assim como acontece na Zona de Stalker e da mesma forma com que os Lugares de Memória necessitam dele para existir (NORA, 1993). Em certo momento do filme, o protagonista de Nostalgia, o russo exilado na Itália Gorchakov, conhece Domenico. Este morador do Bagno Vignoni, tradicional terma medicinal da Itália que teria recebido a visita de Santa Catarina de Siena, é tido como louco por ter passado sete anos trancado em casa com sua família com um enorme medo. A identificação entre Gorchakov e Domenico faz com que os dois tenham longas conversas no filme. Em determinado momento, Domenico delega a Gorchakov uma missão de grande simbolismo: atravessar as piscinas termais do Bagno Vignoni com uma vela acesa, em um dos poucos momentos do ano em que a terma é esvaziada para limpeza. Não há um sentido explícito no filme para este ritual, mas ele certamente ajuda a manter a memória de algum acontecimento tradicional e passado nas termas, seja de um grupo ou simplesmente de

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Vontade de Memória

Domenico. E é interessante notar que o rito é transmitido de um personagem italiano a um estrangeiro que, ao manter este rito, se apropria das memórias do lugar e, de certa forma, passa a ser também parte dele.

Gorchakov e o rito da vela. Nostalgia, 1983, 114’.

Quando Tarkovski insere um personagem de outro lugar, um russo nostálgico de sua terra na Itália, dentro das dinâmicas dos lugares italianos, o diretor apresenta uma operação muito comum aos seus filmes. Os Lugares de Memória na filmografia de Tarkovski não são lugares apenas da memória de um povo, ou de algumas pessoas, mas são lugares de múltiplas memórias cristalizadas neles. O Bagno Vignoni enquanto Lugar de Memória para o povo italiano também passa, após o ritual da vela, a ser um Lugar de

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A Vontade de Memória nos Lugares

Memória para Gorchakov. Em outros momentos de Nostalgia, o protagonista anda em meio às ruínas de uma igreja alagada, que são “fragmentos de uma civilização simultaneamente universal e estranha” (TARKOVSKI, 2010, p. 246) para ele, mas que penetra em sua consciência e acaba sendo significada enquanto um Lugar de Memórias múltiplas. Ali, na ruína italiana, ele pensa sobre seu país e sobre “os rostos dos que lhe são caros e que lhe tomam de assalto a memória juntamente com os sons e os cheiros da pátria” (TARKOVSKI, 2010, p. 244). Este mesmo aspecto, de múltiplas memórias em um lugar acontece também em O Espelho, ali estão as memórias não só dos personagens relativamente autobiográficos (TARKOVSKI, 2010), mas também a memória do povo russo: Além desta memória individual, há a presença do que seria a memória coletiva do povo russo diante de momentos marcantes da sua história no século XX. Estes momentos coletivos são apresentados entremeados aos da vida do personagem principal, que partilha das memórias pessoais de Tarkovski. (COSTA, 2017, p. 243)32

32

A utilização, no filme, das memórias do povo russo durante a Segunda Grande Guerra fica clara no uso das imagens de arquivo em O Espelho. Em determinados momentos do filme, o diretor usa, por exemplo, gravações deste período que encontrou em um arquivo e que estavam esquecidas, portanto, haviam sido ignoradas pelos processos da história. Estas gravações trazem ao filme a memória não da Grande Guerra Patriótica histórica dos russos, mas um momento dela em que os soldados lutam para transpor um atoleiro, é, 149


Vontade de Memória

E até mesmo memórias do próprio espectador cinematográfico parecem se inscrever nos lugares apresentados neste filme de Tarkovski: De que fala esse filme? De um homem. Não daquele homem em particular, cuja voz ressoa por trás da tela, representado por Innokenti Smoktunovsky. É um filme sobre você, o seu pai, o seu avô, sobre alguém que viverá depois de você, e que, ainda assim, será “você”. Sobre um homem que vive na terra, que é parte da terra, a qual, por sua vez, é parte dele, sobre o fato de que um homem responde com a vida tanto ao passado quanto ao futuro. (COSTA, 2017, p. 243)33

Mesmo em Stalker, onde o espaço da Zona carrega a memória de sua ocupação antes do evento catastrófico que ali aconteceu, mas também as memórias do Stalker e a forma como ele dota o lugar de significado. Os Lugares de Memória em Tarkovski, portanto, são sempre aqueles de uma memória confrontada com outra(as), mais distante(s) e geralmente de um agente externo. A junção destas várias memórias se

portanto, uma memória outra, não oficial e que Tarkovski traz em seu filme, a revivendo. Assim como as vitórias da Grande Guerra Patriótica, as derrotas também fazem parte da memória do povo russo. Para outras informações sobre o uso destas imagens de arquivos, ver capítulo V. “A Imagem Cinematográfica” da obra TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 33 Tarkovski diz muito sobre a sua relação com o espectador cinematográfico e a importância que ele tem na construção simbólica de seus filmes na obra Esculpir o Tempo. E a resposta do público fica clara nas cartas endereçadas ao cineasta que são trazidas em seu livro, TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 150


A Vontade de Memória nos Lugares

cristaliza no Lugar, constituindo uma terceira memória. Essa junção de memórias dá forma e sentido ao lugar, um lugar diferente, ambíguo e artificial, como nos diz Nora (1993), e que nos faz percebê-lo “como um lugar diferente, um lugar que é e não é, realidade, e simultaneamente, um lugar da alma, da memória.” (ANTUNES, 2017, p. 261). Esta mesma junção de memórias parece acontecer em Bento Rodrigues. Após o desastre de 2015 e com a repercussão nacional do caso, o lugar não detém apenas a memória dos antigos moradores, que é indiscutivelmente a mais presente no lugar e a que nele mais incide, mas também a memória de uma população que agora imagina Bento Rodrigues como indissociável do desastre de 2015, conforme já mencionado anteriormente. Assim, existe, como nos filmes de Tarkovski, uma memória de origem e que produzia os meios de memória antes do lugar se transformar em um Lugar de Memória. Mas após esta transformação, o lugar também vai reter uma outra memória, de outros agentes, mais externos, e que também vão dotar o lugar de significados, e talvez até de função34. Ajudando, de qualquer maneira, a constituir, manter e tornar fluídas as três dimensões dos Lugares de Memória.

34

Se for pensada na ideia de patrimonialização de Bento Rodrigues, a localidade ganha uma função enquanto importância coletiva para o relato de determinada situação e enquanto pedagogia da história pública (ver subcapítulo “A Memória no Patrimônio''). 151


Vontade de Memória

Fragmentos de memória

A construção não era a que se imagina ao pensar em um ateliê de restauração ou a sede de uma empresa. Mais parecida com uma casa qualquer de dois andares, nenhuma identificação existia. Sem o endereço correto, seria muito difícil localizar o lugar em uma rua sem saída, a alguma distância do centro histórico de Mariana, que marcava a paisagem com as torres de suas igrejas barrocas. A construção era cercada por cerca elétrica e arame farpado, em todas as esquinas havia alguma câmera e ao entrarmos, nossa identidade teve de ser deixada na mesa do segurança. No andar de cima funcionava o ateliê de restauração, ali, em destaque, algumas imagens sacras dos séculos XVIII e XIX, de diferentes portes, estavam em pedestais retangulares. Algumas ainda tinham as marcas da lama, outras faltavam a mão ou alguma parte do panejamento, uma estava sem a cabeça. Estas imagens desceram o Rio Doce com a lama da barragem de Fundão. Foram encontradas em toda sua extensão por pescadores, fazendeiros, trabalhadores, ou alguém que via em meio ao mato a cabeça alaranjada de um santo. Todo este material foi

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A Vontade de Memória nos Lugares

levado à uma das sedes da Fundação Renova35, onde foi acondicionado e passava por processos de restauração. Em meio às imagens sacras tipicamente barrocas, algumas mais singelas também estavam nas mesas de trabalho, imagens de gesso de feitura bastante industrial e facilmente comercializadas. Em uma prateleira metálica que estava no canto da grande sala, alguns objetos foram depositados. Um papel de pipoca doce Plinc, uma lâmpada incandescente quebrada e um lustre igualmente quebrado. Um calendário com a folha de novembro de 2015 por cima e uma barra de sabonete meio gasta, dentre outros objetos comuns. Perguntei a um dos funcionários porque estes objetos estavam guardados ali, junto às peças sacras de 200 ou 300 anos. Me apontando o sabonete gasto, ele disse ser aquele o sabonete utilizado pelo bispo ao celebrar a um missa em Bento Rodrigues num dos poucos momentos em que esta entidade religiosa passava pelo subdistrito. Segundo o funcionário, todos os objetos acondicionados ali passavam pela aprovação 35

A Fundação Renova, de nome bastante presunçoso, é descrita em seu site como “uma entidade responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Tratase de uma organização sem fins lucrativos, resultado de um compromisso jurídico chamado Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC).” Fonte: https://www.fundacaorenova.org/a-fundacao/. No momento em que se escreve esta parte do trabalho, em 24 de Fevereiro de 2021, o Ministério Público de Minas Gerais entrou com uma ação na justiça solicitando a intervenção e extinção da instituição alegando “grave desvio de finalidade na utilização de recursos da fundação”. Fonte: https://cutt.ly/Rz14vQH, acesso em 24/02/2021. 153


Vontade de Memória

da comunidade atingida, cabia a ela julgar se um papel de pipoca era importante de ser guardado como registro de algo ou como um objeto de valor. Neste papel de pipoca, ou no sabonete usado, a memória também se incrustrava. Os meios de memória que, de alguma forma estes objetos haviam feito parte, estavam ainda como reminiscências dos resquícios de memória. Partes da memória também estavam em uma sala do andar de baixo desta construção, onde eram acondicionados os objetos que aguardavam o restauro ou algum outro fim. Lá estava o andor da festa do padroeiro de Bento Rodrigues, já higienizado da lama, pois havia sido utilizado nas festas de 2017 e 2018. Como também os pedaços do altar-mor da igreja de São Bento, que não foi completamente encontrado. Todos aqueles objetos, das peças do altar e pedaços de castiçais ao madeirame de compensado utilizado nas festas ou pedaços de TNT que tinham algum fim nos ritos religiosos, eram parte da memória que, quando vistos e admirados, suscitavam toda a memória de uma comunidade, todos os meios de memória que já não mais existem como antes de 2015. Eram pedaços do Lugar de Memória que é Bento Rodrigues. Na obra A Técnica do Pensamento, Marry Carruthers (2011) examina as técnicas da meditação monástica medieval dentro de seus estudos da memória na cultura deste período. As delimitações que Carruthers faz da ideia de memória e de

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A Vontade de Memória nos Lugares

como algumas técnicas mnemônicas eram empregadas durante a idade média podem explicar como a memória se fixa nos Lugares de Memória. Considerando que a sociedade medieval no qual Carruthers se refere ainda é, segundo a delimitação temporal trazida por Nora (1993), uma sociedade de memória, onde os meios de memória ainda são bastante vivos, como é o caso desta prática monástica. Para a autora, a memória medieval, diferentemente do conceito contemporâneo de memória, não é apenas uma repetição, ou reprodução de algo, (...) mas como a matriz de uma cogitação reminiscente, que mistura e confronta "coisas" armazenadas em um esquema ou conjunto de esquemas de memória de acesso aleatório uma arquitetura da memória e uma biblioteca construídas ao longo de toda a vida, com a expressa intenção de serem usadas inventivamente. A memória medieval era uma máquina de pensar universal, machina memorialis, ao mesmo tempo o moinho que moía o grão de nossas experiências (incluindo tudo o que se lesse) e o transformava em uma farinha mental com a qual se podia fazer um benéfico pão novo, e também o elevador ou guindaste que todo mestre-pedreiro sábio aprendia a fazer e a usar na construção de novos materiais. (CARRUTHERS, 2011, p. 27)

É, portanto, uma memória fluída, passível de modificação, que pode ser acessada de diferentes formas, novamente próximo da ideia de memória que tem Pierre Nora (1993). E uma das

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Vontade de Memória

técnicas que Carruthers identifica na prática monástica medieval é a produção de conteúdos concentrados e breves de determinado assunto ou texto que se pretendia memorizar, como alguma parte das escrituras sagradas. Esse conteúdo, resquício do texto completo, era então “recordado de memória e visto com os olhos da mente, até que ele comece a brilhar e a irradiar, ressoando com a intensa energia espiritual de uma mente que inicia seu trabalho de memória.” (CARRUTHERS, 2011, p. 103 - 104). Dentro desta técnica, portanto, ao se deparar com um texto a ser memorizado, ele deveria ser dividido em fragmentos breves e memorizáveis, segundo um dos religiosos do período citado por Carruthers, Hugu de St. Victor: A memória humana é, contudo, limitada em sua capacidade de armazenar e lembrar a um só tempo: portanto, para lembrar alguma coisa longa e complicada, é necessário dividi-la, para o armazenamento na memória, em fragmentos que respeitem a extensão da ‘memória de curta duração’ humana (como a chamamos agora), ou (como diziam os escritores medievais) daquilo que o olho da mente pode captar com uma única visada (conspectus). Cada ambiente ou cena mnemônica é constituído pela extensão de um olhar mental desse tipo, e as pistas mnemônicas individuais dentro de cada cena não podem ser superiores em número ou complexidade àquilo que se consegue distinguir com clareza em um único olhar da memória. (CARRUTHERS, 2011, p. 104 - 105)

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A Vontade de Memória nos Lugares

Neste contexto, portanto, a ideia resumo pode, posteriormente e se contemplada, não apenas provocar a lembrança, mas vir mentalmente e constituir um discurso ou ação nova a partir deste fragmento, não necessariamente sendo a reprodução exata da ideia anterior ao resumo. Hugu de Rouen citado por Carruthers dirá, portanto, que “a energia da memória [virtus memoriae] medra mais fecundamente: somente ela faz o passado presente, reúne as coisas, recorda a

sabedoria

divina

[sapientia],

perscruta

o

futuro”

(CARRUTHERS, 2011, p. 109). Hugo diz desta memória que, ao ser recordada a partir do fragmento, incide no presente e no futuro. As matérias que a memória apresenta são usadas para persuadir e motivar, para criar emoção e espicaçar a vontade. E a ‘exatidão’ ou ‘autenticidade’ dessas memórias sua simulação de um passado real - é de longe menos importante (de fato, algo que dificilmente se considera) que seu uso para motivar o presente e afetar o futuro. Embora seja certamente uma forma de conhecer, lembrar é também uma questão de vontade, de ser movido, preeminentemente uma atividade moral, e não algo que qualificamos como intelectual ou racional.” (CARRUTHERS, 2011, p. 110)

E esta recordação, enquanto partícula, pode ser tanto de obras literárias quanto sensoriais. Carruthers cita como exemplo cheiros, alimentos, sons, pinturas, os edifícios e suas partes. O que é necessário a esta técnica do pensamento, portanto é

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Vontade de Memória

uma imagem enquanto uma utilidade cognitiva, elas são “sítios sobre os quais e por meio dos quais a mente humana pode edificar suas composições” (CARRUTHERS, 2011, p. 117). A memória, portanto, precisa de uma imagem, que a condiciona e a indica um caminho, uma forma material por meio da qual uma memória pode ser ancorada. Para a prática memorial é necessário algo a se olhar, elas são instrumentos construídos mentalmente e mantidos pela memória e para a memória (CARRUTHERS, 2011). Aqueles objetos tidos pelos antigos moradores de Bento Rodrigues como importantes são objetos em que a memória, em partes, se fixa. Como os resumos dos grandes textos feitos pelos monges medievais, estes objetos são partes, partes de antigas relações, antigas dinâmicas, antigos meios de memória. São espécies de resumos da memória que era viva em Bento Rodrigues. E quando contemplados, eles dizem muito sobre a memória que se perdeu no rompimento da barragem de Fundão, e podem ser utilizados em novas narrativas, de novas formas, aquelas que dão o simbólico do lugar. Não somente os objetos, mas a materialidade em arruinamento do lugar também funciona desta forma, são uma representação dividida e fragmentada dos meios de memória, resquícios, pois não mais são formas inteiras, completas. Eles são também a imagem em que a prática da memória pode acontecer e por onde o Lugar de Memória pode se dar.

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A Vontade de Memória nos Lugares

Os meios de memória que estavam em Bento Rodrigues acabam se fixando nestas partes, e ajudam a formar a materialidade dos Lugares de Memória. E, quando vistos, pensados ou utilizados nos rituais, formam também as instâncias funcionais e simbólicas destes Lugares. As ruínas de Bento Rodrigues são, portanto, a imagem em que a memória pode ter como caminho e um fragmento desta memória, pedaços e resquícios. A operação também está em Tarkovski, os muitos objetos que o diretor coloca em suas cenas são os fragmentos de memórias outras, distantes, dos meios de memória não mais existentes. Pouco antes da cena da vela em Nostalgia, por exemplo, vemos os objetos retirados da piscina da terma, cada objeto é uma memória daquele lugar, um resquício de uma apropriação do lugar que pode já não existir, um fragmento. Estes objetos também aparecem em O Espelho, objetos quebrados, sem utilidade aparente, mas que são mostrados por Tarkovski, que insiste em demonstrar meios de memória rompidos, em pedaços como estes objetos. Eles também estão presentes em vários planos de Stalker, são objetos esquecidos, geralmente submersos por água. Sua utilidade, de fato, é reter estes resquícios de memória, como o sabonete usado ou a lâmpada quebrada de Bento Rodrigues. São eles sumários para a memória.

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Vontade de Memória

Objetos retirados da piscina termal no Bagno Vignoni Nostalgia, 1983, 107’.

As construções arruinadas ou não em Tarkovski também fazem parte desta delimitação. A Dotcha de O Espelho condensa em si mesma várias memórias, ela é parte dos meios de memória que ali já estiveram. Sua visualização também é um caminho da memória, uma imagem onde a memória pode se desenvolver, como as imagens sagradas aos monges medievais. As ruínas de Stalker são ainda mais misteriosas, pois não sabemos ao certo de qual memória os fragmentos representados por elas fazem referência, quais meios de memória existiam na Zona antes do evento que nela ocorrem e que possibilita sua nova apropriação. Mas certamente ela constitui as partes das memórias que o Stalker atualmente dispõe sobre o lugar. Portanto, todos estes elementos, ajudam a formar a complexidade do Lugar de Memória e explicam de

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A Vontade de Memória nos Lugares

qual forma os meios de memória passam, desafiando os processos da história, a se condensarem nos Lugares de Memória.

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Vontade de Memória

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Objetos em uma casa de Bento Rodrigues. Douglas Magno


Objetos imersos na água em Stalker. Stalker, 1979, 86’.


A Vontade de Memória nos Lugares

A memória no patrimônio

A ideia de Lugares de Memória foi trazida por Pierre Nora em um momento histórico considerado por ele de aceleração da história e esfacelamento da memória. Apesar do termo ajudar a explicar os mecanismos de funcionamento e muitas das relações presentes nestes lugares dotados de vontade de memória, a forma como a ideia vem sendo apropriada pelo campo do patrimônio, em princípio, e do patrimônio cultural36 é uma questão a ser abordada. No final do século XX o patrimônio cultural, a partir do que Alois Riegl irá chamar

de

culto

moderno

dos

monumentos,

será

consideravelmente ampliado, passando a constituir um componente de caráter cultural da ideia de pertencimento de um povo (RIEGL, 2019). Neste contexto, talvez o principal elemento seja o monumento histórico, como objeto este que sofre uma modificação em seu significado, além da função original de sua concepção (CHOAY, 2014). Assim, esse elemento passa de uma função anterior que detinha em uma

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Diferente da ideia de patrimônio, o patrimônio cultural, noção lançada na França nos anos 1950, não se preocupa apenas com a preservação de monumentos históricos e artísticos, mas em bens culturais, o que permitiria uma ampliação do olhar preservacionista em relação aos bens, relação esta mais antropológica (JÚNIOR, 2015). 165


Vontade de Memória

cultura, para ter uma função memorial histórica. Para Nora, os monumentos históricos, portanto, “seriam uma evidência dos Lugares de Memória relacionados à nação (...) A conclusão evidente é que o patrimônio, nesse sentido, seria um lugar de memória, não a própria memória.”(JÚNIOR, 2015, p. 257), ou seja, boa parte do acervo do patrimônio cultural poderia ser identificado como Lugar de Memória. No entanto, esta delimitação do patrimônio enquanto Lugar de Memória encontra dificuldades de aplicação. Contra esta ideia do patrimônio como, inevitavelmente, um Lugar de Memória, existe o fato de “uma vez patrimonializado, o bem cultural deixa de se submeter à dinâmica da memória, pois fica menos sujeito às revisões e aos escrutínios” (TOMASO, 2012, p. 29 apud JÚNIOR, 2015, p. 259). Portanto, as ações do patrimônio cultural tendem a criar regras e leis sobre um determinado bem, impedindo que ele sofra as mudanças próprias da memória, dentro da conceituação do termo por Nora. Mais próximo da lógica do patrimônio imaterial, os Lugares de Memória possuem um dinamismo próprio, pois os rituais que nele acontecem, tendem a se modificar durante os anos, incorporando novas práticas, novos elementos e novas técnicas trazidas, muito em parte, pela passagem de geração em geração deste rito. Esta mudança, inclusive, incide na representação memorial que o Lugar tem para determinado grupo. Bem como para a sociedade como um todo, basta

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A Vontade de Memória nos Lugares

pensar de que forma Bento Rodrigues passa a figurar no imaginário e na apropriação pela população que vê, na maior parte do tempo, o subdistrito relacionado com o desastre de 2015 por meio das mídias jornalísticas. O caso das ruínas ilustra bem o dinamismo memorial dos Lugares de Memória. Historicamente elas são dotadas de diferentes significados durante os anos, como a apropriação das ruínas greco-romanas pelo homem renascentista ou as ruínas góticas no período romântico, principalmente na Inglaterra, na França e na Alemanha. No caso do Brasil, as ruínas do barroco mineiro apropriadas no discurso moderno são outro exemplo. Mas todos estes casos indicam uma reinterpretação do significado de determinada ruína por um grupo, o que provoca a exclusão de outras ruínas, aquelas esquecidas e não incorporadas ao patrimônio cultural, mesmo que possuam uma vontade de memória. Portanto, apenas algumas ruínas são privilegiadas com o termo no sentido atribuído por Pierre Nora (JÚNIOR, 2015). Retornando a ideia do patrimônio cultural como Lugar de Memória, a partir da “antropologização das noções de patrimônio" (JÚNIOR, 2015, p. 261) após os anos 1950, com a utilização do termo “bem cultural”, o chamado direito da memória pode ser difundido como representação das minorias, entre elas as raciais, nacionais, étnicas e sexuais. O que acaba provocando uma notoriedade da memória, do qual o termo de 167


Vontade de Memória

Pierre Nora também é fruto. “A abertura para a cultura do patrimônio demonstra que o lugar de memória, em vez de um ritual de uma sociedade com memória fraturada, é um exercício múltiplo de formação dos passados das diversas comunidades culturais.”(JÚNIOR, 2015, p. 262). Assim, esta sociedade que agora incorpora o direito à memória acaba evoluindo o que François Hartog chamará de obrigação do patrimônio (HARTOG, 2006), estando, portanto, os Lugares de Memória como fundamento da epistemologia do patrimônio. Neste uso dos Lugares de Memória, não há apenas os valores de memória do bem, mas ele concorre com outros, não necessariamente relacionados com esta instância, mas aqueles próprios do patrimônio cultural (JÚNIOR, 2015). Ao incorporar a ideia de Lugares de Memória ao discurso do patrimônio cultural, há um deslocamento da ideia original de Pierre Nora. Ao patrimônio cultural, o termo do autor francês acabou servindo para uma articulação da pedagogia pública do passado no patrimônio, ironicamente, como uma nova forma de escrita da história, uma história pública37 que utiliza do patrimônio cultural como meio (JÚNIOR, 2015). Em um artigo de 1998 intitulado A Aventura dos Lugares de

37

História pública é o ramo da história que se preocupa com a divulgação e apresentação desta ciência ao grande público como forma de engajamento com a sociedade, de maneira a responder suas demandas. Fonte: https://historiapublica.sites.ufsc.br/o-que-e-historia-publica/, acesso em 19/02/2021. 168


A Vontade de Memória nos Lugares

Memória, Pierre Nora já reconhecia o surgimento de uma história-patrimônio como diagnóstico destes novos rumos do patrimônio cultural. Aqui está um dos cernes da questão: a “patrimoniografia” tenta privilegiar a abordagem do patrimônio pela fusão de seu poder memorial e construção de cidadania cultural, direcionando assim a significação do passado e do tempo e o fenômeno cultural do patrimônio se define pelos múltiplos usos e valores atribuíveis que nele coexistem, excedendo o ritual memorial da sociedade sem ritual, como diria Nora sobre a problemática dos lugares. (JÚNIOR, 2015, p. 264)

Em 1992, no texto Comment écrire l’histoire de France?, Nora apresenta uma definição mais atualizada de seus Lugares de Memória. No artigo, o autor diz da justaposição de duas ordens nos Lugares, uma realidade inscrita no espaço, tangível e apreensível e outra realidade puramente simbólica, portadora de uma história. Neste texto, os Lugares de Memória são definidos como uma unidade significativa de ordem material ou ideal convertida em um elemento simbólico do que o autor chama de patrimônio memorial de uma comunidade. A operação se dá via vontade dos homens ou o trabalho do tempo (NORA, 1992). O uso do termo patrimônio memorial relaciona diretamente o patrimônio a uma memória coletiva, e transforma o patrimônio em uma questão de Lugar de Memória, o que os torna um objeto da história passíveis de constituir a

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Vontade de Memória

memória nacional, se distanciando de uma espontaneidade da memória e pode ser utilizada como benefício aos jogos de poder sociais (JÚNIOR, 2015). No entanto, a patrimonialização recente das memórias por meio dos Lugares de Memória poderia ser um efeito da “emergência de consciências históricas sociais subalternas que usam das noções de legado, herança, tradição e patrimônio para mostrar que a sociedade atual precisa de novos passados justamente porque os passados atuantes na esfera pública não reconhecem a diversidade dos sujeitos sociais.” (JÚNIOR, 2015, p. 272) Nesse sentido, Bento Rodrigues enquanto Lugar de Memória se insere nesta nova lógica do patrimônio, mais cidadã e representativa, longe das formas tradicionalistas e que inclui agentes não diretamente ligados às esferas de poder. Mesmo que acabe se transformando em um objeto de uma história pública como didatismo, a memória ainda insiste ali, e deve persistir mesmo com os processos de patrimonialização que já ocorreram e podem vir a ocorrer no subdistrito. O patrimônio que surge em Bento

Rodrigues,

estritamente

ligado

aos

processos

mnemônicos, se liga às memórias de um povo por vezes marginalizado, vitimado por um desastre e que sofre processos de esquecimento. Daí vem a importância dos tombamentos que vão surgir naquele espaço. Além da intenção clara de tombamentos 170


A Vontade de Memória nos Lugares

a nível estadual e federal que o Dossiê de Tombamento de Bento Rodrigues (CASTRIOTA, 2019) traz, a capela de Nossa Senhora das Mercês do subdistrito possui tombamento a nível municipal, pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (COMPAT), de 07/04/2016 e a nível estadual, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG)38 de 17/10/2018, e o núcleo urbano possui tombamento a nível municipal, também pelo COMPAT 39, de 28/04/2016, que inclui as localidades atingidas de Paracatu de Cima e de Baixo. Esses tombamentos, mesmo que acabem sendo utilizados pela história, podem contribuir para a manutenção e conservação, em primeira instância, da materialidade em Bento Rodrigues e vão impedir movimentos de esquecimento que podem acontecer por meio da destruição dos resquícios da materialidade. Mas esta materialidade é apenas um dos aspectos formadores dos Lugares de Memória. Caso os ritos e a apropriação do lugar desapareçam, Bento Rodrigues deixaria de ser um Lugar de Memória. A proteção destes ritos e apropriação do espaço, no entanto, ainda não foi contemplada por nenhum processo de tombamento, apesar de já estar indicado no Dossiê de Tombamento de Bento Rodrigues (CASTRIOTA, 2019). Portanto, a proteção da instância

38

O tombamento estadual da Capela de Nossa Senhora das Mercês foi aprovado pela Deliberação CONEP 19/2018, de 17 de outrubro de 2018, e inscrito nos Livros de Tombo II – de Belas Artes – e III – Histórico, das obras de Arte Históricas e dos Documentos Paleográficos ou Bibliográficos. 39 Deliberação COMPAT nº 002/2016. 171


Vontade de Memória

imaterial, relacionada à funcionalidade e ao simbólico, é fundamental para a manutenção do Lugar de Memória e sua apropriação pelo patrimônio cultural pode ser fundamental.

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O TEMPO DA MATÉRIA


A Vontade de Memória nos Lugares

MG-129

Chega-se em Bento Rodrigues pelo Sul ou pelo Norte, pode-se passar por Catas Altas, município que faz fronteira com Mariana ao Norte, descendo pelo distrito de Morro da Água Quente. Pelo Sul, passa-se pelo distrito sede de Mariana. Mas, nos dois casos, usa-se a MG-129, estrada estadual que serve não só a mina de Germano, mas as outras da região, como a Timbopeba e a Mina Fazendão, já em Catas Altas. Por ela saem uma série de pequenas estradas de terra que chegam a Bento Rodrigues. É estranho notar que a MG-129, asfaltada e possivelmente mantida pelas mineradoras, ao passar no meio da mina de Germano, não possui nenhum ponto onde se vê a paisagem alterada pela mineração. Até mesmo nos locais mais próximos da mina, a estrada ainda possui, em suas laterais, cobertura vegetal suficiente para criar um muro que impeça a visão além de três ou quatro metros. Por vezes, essa estrada é interceptada

pelos

pontos

de

acesso

da

mineradora,

minerodutos e viadutos. A mineração geralmente tenta esconder os aspectos visuais de sua ação na natureza, seja construindo acessos e vias públicas sem visada ao seu trabalho, levantando muros

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O Tempo da Matéria

que encobrem as cavas ou se circundando por florestas, muitas das vezes, de eucaliptos. Esta floresta que encobre as áreas de mineração é “parte de uma paisagem inteiramente alterada e que fazia fronteira com muitos lugares. Entre elas estavam as montanhas escavadas, as montanhas de minério e as chaminés fumegantes de fumaça química.” (FREIRE, 2017, p. 76). Esta floresta é um delimitador, um divisor que demarca outras realidades, outras formas de tempo e de matéria, Freire cita Schama para dizer que a etimologia da palavra floresta “muito provavelmente (...) deriva de foris que indica fora, no sentido de uma parte separada dos códigos e leis” (FREIRE, 2017, p. 77). Assim, a mineração vai escondendo sua ação, não somente a ação direta do seu modo de produção, mas também aquela que incide indiretamente em outros lugares. Assim foi nos primeiros momentos após aquele novembro de 2015, Bento Rodrigues foi isolado, primeiro foi impedido seu acesso, depois, ele foi controlado. A ponte sobre o Rio Gualacho foi atingida pela lama, o que impedia um acesso facilitado vindo da sede de Mariana, voltas tinham de ser dadas (CASTRIOTA, 2019). Hoje, o lugar desta ponte está submerso por um dos diques, mas, curiosamente, ainda pode ser percorrido por aquele Google Street View desatualizado que captou suas ruas em 2012. A transposição que ela proporcionava hoje está em um ponto mais elevado, entre os diques S3 e S4. O acesso a Bento ainda hoje é controlado, suas

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A Vontade de Memória nos Lugares

as estradas são ruins e dificilmente se chega nos dias mais chuvosos do ano. Assim como na Zona, que é cercada e vigiada, esses espaços da catástrofe são controlados, seu acesso é impedido ou monitorado. Em Bento, mesmo que as visitas não sejam impedidas, é sempre preciso falar com alguém que se vai lá40. Mesmo antes do rompimento da barragem de Fundão em 2015, Bento Rodrigues já possuía algum isolamento em relação aos outros núcleos urbanos mais próximos. A construção da MG-129 possibilitou um outro trajeto, mais rápido e que não passasse por dentro do subdistrito para as mineradoras, mas também entre as cidades de Catas Altas e a sede de Mariana: Para atender às mineradoras e a população foi aberto um novo traçado da antiga MG-129, entre Ouro Preto e Santa Bárbara, passando por Antônio Pereira e por fora da sede do distrito de Santa Rita Durão e dos povoados de Bento Rodrigues e Camargos, por onde as minas passaram a ser alcançadas. Se por um lado a estrada que serve ao tráfego

40

Dentro das diretrizes propostas pelo Dossiê de Tombamento de Bento Rodrigues, a diretriz 16 trata especificamente desta questão, delimitando: “16. Deverá ser garantido o total e irrestrito acesso à região tombada.” (CASTRIOTA, 2019, p. 242). Ainda, em 23 de agosto de 2017, o Ministério Público de Minas Gerais solicitou complementação de um acordo judicial celebrado anteriormente requerendo: “6) Promoção de segurança no local e permissão do livre acesso sem restrição de horário ou dia da semana aos moradores de Bento Rodrigues.” (CASTRIOTA, 2019, p. 305) 177


O Tempo da Matéria

de caminhões de minério, com o novo trajeto encurtou distâncias, evitou a poluição do ar e reduziu os riscos de acidentes de trânsito no povoado, por outro, ela contribuiu para o isolamento de Bento. (CASTRIOTA, 2019, p. 71)

Portanto, Bento Rodrigues já tinha em seu imaginário a ideia do espaço outro, isolado, o que fica ainda mais evidente após o rompimento, onde acessos são limitados, vias são danificadas, e, inevitavelmente, há um monitoramento. Esse processo acaba gerando, em um espaço isolado, uma ideia de uma outra espacialidade, diferente, de outra realidade, em um tempo outro. Este procedimento, que também acontece na filmografia de Tarkovski, fica evidente nos momentos anteriores à entrada dos personagens principais na Zona de Stalker. A Zona é um espaço cercado, dividido da sociedade, vigiado e monitorado. Para entrar nela, os três personagens precisam esperar uma rápida oportunidade de passar por um dos portões de vigilância no momento em que este é aberto para a passagem de uma locomotiva. E mesmo após esta passagem,

em

que

tiros

são

disparados

contra

os

personagens, um longo caminho ainda deve ser percorrido entre esta borda cercada da Zona e o seu interior.

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A Vontade de Memória nos Lugares

A passagem pelo posto de vigilância que cerca a Zona. Stalker, 1979, 30’.

O caminho que o Stalker, o Poeta e o Professor têm de fazer, no vagonete, é o divisor entre dois espaços bem delimitados e completamente diferentes. A cena do caminho no vagonete, de quase quatro minutos, leva o espectador, tal qual os três personagens, a um outro tempo. A diferença é evidente quando, após sairmos das cenas de cortes mais rápidos e ágeis das perseguições antes da entrada na Zona, e passar pelos quatro minutos com o som incessante do vagonete sobre os trilhos, somos transpostos a essa outra realidade, este outro tempo, com uma longa cena, a primeira completamente colorida do filme, da paisagem calma e quase silenciosa da

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O Tempo da Matéria

Zona. Têm-se a nítida sensação de entrar em um tempo outro, tempo guardado em um isolamento, tempo de outra realidade, um tempo marcado pela catástrofe e pela memória.

O caminho percorrido no vagonete para a Zona. Stalker, 1979, 36’.

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A Vontade de Memória nos Lugares

A primeira vista da Zona. Stalker, 1979, 38’.

Este tempo outro que se adentra nestes lugares não é um tempo cronológico, de “um tempo exterior independente e existente fora de nós.”(ROSSETTI, 2017, p. 81), tempo das medidas do movimento, tempo físico e científico, o tempo do senso comum, linear ou cíclico, medido por anos, dias, estações do ano, um tempo mensurável (ROSSETTI, 2017). Mas está relacionado a outra percepção do tempo duração, definido por Bergson como aquele “que se constitui como

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O Tempo da Matéria

movimento contínuo e como mudança constante.”(ROSSETTI, 2017, p. 81)41. Tempo duração significa passagem, transitoriedade, devir, movimento, mudança e transformação e está em oposição à permanência, à estabilidade, à subsistência e à imobilidade. Como a explosão de fogos de artifício, esse tempo traz a mudança em direções diversas, em sentidos radiantes. Assim, a mudança não é somente para frente, como o é no tempo linear, mas pode ser no sentido da evolução ou da degradação, do progresso ou do retrocesso, ou até mesmo em sentidos intermediários e divergentes. A dualidade é superada no tempo duração. (ROSSETTI, 2017, p. 81 -

82) E este tempo pode possuir, como é o caso destes lugares isolados, ritmos diferentes: “em realidade, não há um ritmo único da duração; é possível imaginar muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou mais rápidos, mediram o grau de tensão ou de relaxamento das consciências, e deste modo, fixariam seus respectivos lugares na série dos seres.” As durações internas, próprias das consciências envolvidas no processo de comunicação,

41

A discussão acerca da irrealidade do tempo cronológico e da realidade do tempo duração, que não é feita aqui, pode ser consultada no texto ROSSETTI, Regina. Supressão do Tempo na Sociedade Midiatizada. In: MUSSE, Christina Ferraz; VARGAS, Herom; NICOLAU, Marcos. (Org.). Comunicação, Mídias e Temporalidades. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2017. p. 79 - 96. 182


A Vontade de Memória nos Lugares

possuem ritmos próprios e podem ora acelerar, ora alentarse conforme o estado de espírito desses participantes. Assim, em certos momentos, podem coincidir com o tempo cronológico das mensagens e dos meios, mas podem também divergir desse tempo cronológico. (ROSSETTI,

2017, p. 85) Na Zona de Stalker, e em alguns outros espaços da filmografia de Tarkovski, como a já mencionada casa de O Espelho ou as ruínas em Nostalgia, e em Bento Rodrigues, há um outro tempo de caráter duração, não cronológico. Apesar destes espaços poderem também ser lidos a partir do tempo cronológico, quando se fala do marcador temporal que é o desastre ou quando se coloca as ruínas destes lugares em uma linha do tempo que considera passado, presente e futuro. Mas o isolamento destes lugares, primeira instância temporal analisada aqui, faz com que se tenha outra noção de tempo duração, seja ele em um movimento existente nestes lugares, movimento rumo a degradação e a completa tomada pela natureza. Como também uma temporalidade percebida pelo receptor do lugar, que chega de uma realidade a uma outra cercada e isolada, de ritmo mais lento, como duração que é interna ao lugar e transmitida àquele que nele está. Portanto, é um tempo outro vivido no lugar, não sua representação lógica. A distância percorrida até a chegada nestes lugares ajuda a desacelerar este tempo percebido, que parece estar

183


O Tempo da Matéria

cercado por um espaço de transição. Este espaço está tanto nas estradas de terra que ligam Bento Rodrigues a MG - 129, quanto no percurso percorrido pelos três personagens de Stalker até a Zona no vagonete. É neste percurso que o tempo pode se desacelerar da realidade externa à interna. Em Bento Rodrigues, além do isolamento que já existia antes do rompimento da barragem de 2015, sua duração interna, de ritmo mais lento, também está relacionado à sua desocupação, a uma quase completa ausência de movimentos humanos e de sua ocupação no espaço, mas também, a prevalência da natureza que vêm, progressivamente, tomando o lugar. Em Bento Rodrigues, os movimentos da paisagem apreendidos pelo olhar geralmente são lentos e vagarosos, como é o caso do movimento da neblina na paisagem, movimento não mensurado, mas apreendido. Na Zona de Stalker, este tempo é estabelecido também, e de forma principal, pela montagem de Tarkovski e pela duração dos planos dentro do espaço da Zona, dentro do que o diretor irá chamar de “Esculpir o Tempo”, a ser tratado mais adiante e que também estabelece este tempo outro em algumas cenas de O Espelho e Nostalgia.

184


Portão controlado pela polícia no acesso a Bento Rodrigues após o desastre. Malkes, 2015.


Um dos portões controlados de acesso a Zona em Stalker. Stalker, 1979, 29’.


A Vontade de Memória nos Lugares

Os três tempos da ruína

Ao andar em meio às ruínas de Bento Rodrigues, durante as festas de São Bento de 2017, aquele homem com a calça suja de lama da barragem de Fundão chega próximo a uma das construções em arruinamento 42. Tomada por mato e completamente alaranjada, mas um alaranjado antigo, a ruína está próxima a capela de São Bento, ao lado do que restou do Bar da Sandra. O homem mostra as ruínas e diz ser aquele o local onde ficava sua casa. A utilização deste tempo passado, pretérito

imperfeito

do

indicativo,

pode

indicar

um

distanciamento do lugar, um não reconhecimento de algo que já se encontra no passado. Mas o homem aponta para uma cama de casal, de alvenaria. Quebra um ramo de mamona, uma das plantas de crescimento rápido que toma, com muita frequência, o lugar em arruinamento, e tira a poeira que se depositou sobre a cama. O gesto, quase automático, indica uma transposição à ruína de uma prática comum à matéria de sua casa que existia

42

Narrativa também baseada na reportagem sobre a festa de São Bento em 2017. Disponível em https://cutt.ly/9z18EyX, acesso em 05/03/2021. 187


O Tempo da Matéria

no passado. A ruína do presente não é sua casa, é agora o lugar onde ficava sua casa, mas ainda é um lugar que requer algum nível de cuidado e zelo, que ainda possui alguma ligação sentimental. Inevitavelmente, um dia aquela cama de alvenaria será

completamente

tomada

pela

vegetação,

irá

se

desmanchar por completo e não mais existirá. Mas, até lá, e enquanto houverem pessoas que mantêm alguma relação com suas antigas casas, ou com as antigas casas de seus pais e seus avós, estes lugares ainda serão significados e zelados no presente. Estas ruínas, portanto, guardam três tempos, um passado, um presente e um futuro. A materialidade dos Lugares de Memória em Bento Rodrigues, na Zona, de Stalker e em alguns lugares de O Espelho e Nostalgia é marcada pela ruína. Ela é um dos objetos predominantes na paisagem e condiciona a maneira como esta é formada enquanto unidade separada da totalidade da natureza, e uma formação que acontece pela via temporal. As ruínas são um dos fatores que provoca o tempo outro nesses lugares, elas são objetos ambíguos, não inseridos nas lógicas transitórias e resistentes ao poder destruidor do tempo (MATOS, 1995). Esta materialidade em arruinamento, ao manter um diálogo íntimo com a temporalidade, opera em três tempos distintos “Seja como testemunha de um tempo passado, seja na compreensão do presente, ou na constatação do devir, do futuro.” (AMARANTE, 2013, p. 27).

188


A Vontade de Memória nos Lugares

Ao testemunhar sobre o tempo passado, a ruína é a transição fragmentada da materialidade que antes existia, transposta ao presente, e também como “vestígios do invisível” (MATOS, 1998, p. 84), vestígio dos meios de memória. Elas, vistas no presente, estão inseridas como materialidade dos Lugares de Memória, como signos e como objetos necessários aos ritos no lugar. Ao futuro, indicam um fim, uma morte lenta do esvair por completo, um desmanche que, inevitavelmente, chegará ao fim. Nesta dinâmica dos três tempos, a ruína contradiz um estado cronológico: As

ruínas

contrariam

o

devir

abstrato

do

tempo,

compensando a sistemática tripartição -antes, durante, depois- pela dinâmica "pas encore" (ainda não) e "jamais plus" (nunca mais): "As ruínas ocupam um justo meio entre o desmoronamento total e uma linha, por assim dizer, inteira; este justo meio se mantém em equilíbrio, em suspenso (...); permite estabelecer um elo da transitoriedade com um mundo para o qual chegou a hora final. Na mescla de efêmero e de apoteose, as ruínas são mais que belas, são veneráveis". Instante único, as ruínas atestam um tempo antes do qual nada foi consumado e depois do qual tudo estará perdido. (MATOS, 1995, mais!, p.5)

Portanto, estas ruínas estão nesse tempo ambíguo entre o fim e a impossibilidade de um retorno ao estado antes de seu arruinamento, que, no caso de Bento Rodrigues e da Zona de Stalker, foi dado a partir de uma instantaneidade, ou seja, da

189


O Tempo da Matéria

catástrofe que, em instantes, transforma a matéria em ruína. Sendo elas parte dos Lugares de Memória, vistas pela história, que a todo tempo quer transformá-la em um lugar de história, elas “desafiam a ordem espacial com a desordem das lembranças” (MATOS, 1995, mais!, p.5), lembranças que estão no campo da memória, dos resquícios dos meios de memória que estão nestes lugares e que são mantidos pelos agentes inseridos neles. Nesta temporalidade ambígua, a ruína se coloca, portanto, como resíduo e lembrança, “Em meio ao desaparecimento, são as ruínas guardiãs do imperecível.” (MATOS, 1995, mais!, p.5). Como resistência a um poder destruidor do tempo, a ruína permanece, mesmo que aspire a morte. Nela, a “mais bela vitalidade, o mais belo esplendor desapareceram.” (MATOS, 1995, mais!, p.5). Matos também traz outra contradição das ruínas, dentro desta lógica dos seus três tempos, que é a ideia de que nela “tudo é inédito e, ao mesmo tempo, já acontecido, tudo já morreu e ainda não nasceu” (MATOS, 1995, mais!, p.5). A sua matéria já saiu do estado de completa forma, de utilidade que a ela foi posta desde sua construção, ela não é a arquitetura em sua totalidade, mas também, não é o fim consumado, uma desaparição completa. E o caso das ruínas nos Lugares de Memória é ainda mais ambíguo pois, mesmo já não sendo este estado completo da matéria, ainda carrega símbolos e funções que antes ainda

190


A Vontade de Memória nos Lugares

estavam no espaço. E, nesses casos estudados aqui, podem ganhar até novos símbolos. As ruínas da Zona, em Stalker, que antes de passar por

seu

evento

catastrófico

eram

construções

que

desempenhavam sua função frente aos seus usuários, após se tornarem ruína, não tiveram um fim decretado, mas passaram a possuir funções outras e novas, possuir novos símbolos. Ela agora é um lugar para a manutenção de um rito, símbolo de uma crença. A Capela de São Bento, em Bento Rodrigues, também não é mais a capela completa que existia antes do rompimento da barragem em 2015, mas, como objeto ambíguo, ela ainda mantém sua função como lugar de crenças, de simbolismos e de ritos. Estas ruínas, portanto, não são nem um antes nem um depois completo, estão nessa linha tênue entre os dois. Como objetos do passado, em sua representação incompleta

dele,

utilizados

no

presente,

ainda

com

reminiscências do passado, e que, inevitavelmente, estão próximas do fim, da completa desaparição. Quando apreendido pelo patrimônio cultural, cada um destes três tempos da ruína apresenta um desafio e coloca uma questão. O tempo passado, daquele aspecto diverso e quase irreconhecível do que se tinha antes, salientado por Cesare Brandi (2004), pode indicar tanto o reconhecimento destas ruínas com um passado nostálgico, que contenha um mito fundador de alguma noção, como acontece no período do

191


O Tempo da Matéria

renascimento europeu (CHOAY, 2014), quando indicar uma dinâmica ligada a matéria que não mais existe. Neste caso, as ruínas em Bento Rodrigues guardam resquícios dos meios de memória que antes existiam, são indicativos de formas de vivência e sociabilidades hoje quase inexistentes. Mas algumas destas sociabilidades chegam ao presente, indicando o segundo tempo. As ruínas são objetos no presente, em alguns casos, elas podem ainda conter as dinâmicas antes existentes, podem ainda ser suporte para alguma relação, alguma sociabilidade e algum rito, é o caso da Capela de São Bento, é o caso da Zona. A Capela de Bento Rodrigues ainda recebe a festa de São Bento e é na Zona que algumas pessoas ainda vão buscar a realização de um desejo, baseado na crença desta possibilidade. Quanto ao tempo futuro, ao se aproximar de um fim último, a completa desaparição, as ruínas se apresentam como desafio à vontade de sua manutenção. Caso seja suporte de alguma relação viva, alguma importância histórica, artística ou etnográfica, algumas práticas de preservação e conservação acabam

incidindo

nas

ruínas,

interrompendo

momentaneamente e postergando, cada vez mais, este momento último. Mas seu fim acaba sendo inevitável, e um dia chegará (RUSKIN, 2008). O futuro da ruína, portanto, é inevitavelmente certo, é apenas postergado. Sua contradição, portanto, é clara, sustenta-se um estado da matéria, talvez até

192


A Vontade de Memória nos Lugares

com vontade que ela não chegue a um fim, mas sua chegada é inevitável. Até a chegada deste momento, o patrimônio cultural se serve da ruína, como rememoração de um passado nostálgico (CHOAY, 2014), como suporte para sociabilidades e ritos (NORA, 1993), para a história pública (JÚNIOR, 2015), ou para a conscientização do patrimônio difícil (CASTRIOTA, 2019).

193


O Tempo da Matéria

194


Janela de uma das casas de Bento Rodrigues. Márcia Foletto, 2018.


A paisagem da Zona vista através da janela de um carro. Stalker, 1979, 50’.


A Vontade de Memória nos Lugares

E sc u l t u r a s d e t e m p o

Aquele que anda pelo espaço em arruinamento geralmente o faz a pé, as pequenas ruas entre as casas, asfaltadas ou de terra, estão debaixo da lama ou da vegetação, no caso de Bento Rodrigues, poucas delas foram novamente consolidadas. Esses delimitadores de percurso retiram certo ordenamento do caminhar, portanto, há a possibilidade de se vagar pelo espaço, entrar nas casas arruinadas, andar pelos quintais indivisíveis da rua. Desse modo, os espaços, tanto em Bento Rodrigues como na Zona ou nas igrejas e ruínas de Nostalgia, permitem que o andar não seja fundamentalmente linear, mas ziguezagueante, como se perdido, principalmente tendo em vista a natureza que brota em todo lugar. Mas talvez para aquele antigo morador, que reconheça sua casa e a de seus vizinhos, apesar de seu andar parecer perdido, ele é assertivo, sabe-se por onde pisa e para onde se quer chegar, assim como o andar do Stalker, que reconhece o lugar da Zona e sabe de seus caminhos e percursos. O trajeto do Stalker na Zona se faz, à primeira vista, em círculos, apesar do questionamento do Escritor, que vê mais lógica em andar em linha reta em detrimento deste

197


O Tempo da Matéria

caminhar labiríntico. Mas o Stalker sempre salienta que naquele espaço não há em linha reta, apenas a lógica interna do lugar existe em detrimento de qualquer outra. A lógica da Zona deve ser seguida e respeitada (JALLAGEAS, 2007). Em determinado momento do filme, os três personagens principais, após terem percorrido um considerável percurso, param para descansar. Stalker se coloca deitado em uma superfície mais elevada cercada por alagadiços. Esta cena é descrita por Jallageas: (...) Stalker terá uma espécie de sonho, ou podemos imaginar que o tempo se suspendeu para que o espaço do repouso se preenchesse da história de uma civilização que existiu, ou do futuro da civilização que teima por existir. Desfilam na tela, sob a água que recobre o que teria sido um dia o piso de uma casa, ou uma calçada; uma imagem de um santo, moedas, uma seringa, uma arma, um relógio e outros fragmentos de instrumentos, equipamentos, maquinaria. Uma voz feminina sussurra

uma

passagem

bíblica,

do

Apocalipse.”

(JALLAGEAS, 2007, p. 139)

Nesta cena em travelling43, Tarkovski trabalha com a instância do tempo ao colocar o espectador em uma temporalidade 43

Travelling é um tipo de movimento dado pela própria câmera no cinema, que se desloca no espaço. Difere-se da panorâmica, onde a câmera gira apenas em seu próprio eixo. No caso desta cena em Stalker, a câmera foi disposta em um trilho acima dos objetos a serem filmados, conferindo um deslocamento mais suave e contínuo em sentido ascendente no quadro. Fonte: AUMONT, Jacques & MARIE, Michel: Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus Editora, 2003, pp. 201-202. 198


A Vontade de Memória nos Lugares

diferente daquela vivida até o momento no espaço fílmico. Neste outro espaço-tempo, objetos aparecem na câmera, objetos carregados de memória e “literalmente encharcados de tempo, esses cronótopos úmidos - a começar pela mão de Stalker, através da qual desde o início do travelling seguimos até surgirem, um a um, os objetos, adensados pela força aquática que os afunda no tempo imemorial.” (JALLAGEAS, 2007, p. 236). Nesta cena Tarkovski capta um tempo do lugar em que filma, e também dos objetos, que indicam um tipo de movimento do tempo. Os objetos estão também em ruínas, e seus três tempos irão se inscrever. Três tempos captados pelo espectador na água com seus objetos, são como receptáculos “da memória, vestígios da passagem do humano pelo planeta, alerta

para

o

futuro,

localização

(JALLAGEAS, 2007, p. 238).

199

para

o

presente.”


O Tempo da Matéria

Objetos submersos em água na cena em travelling de Stalker. Stalker, 1979, 85’.

200


A Vontade de Memória nos Lugares

Objetos submersos em água na cena em travelling de Stalker. Stalker, 1979, 85’.

201


O Tempo da Matéria

Objetos submersos em água na cena em travelling de Stalker. Stalker, 1979, 86’.

202


A Vontade de Memória nos Lugares

Objetos submersos em água na cena em travelling de Stalker. Stalker, 1979, 86’.

203


O Tempo da Matéria

Objetos submersos em água na cena em travelling de Stalker. Stalker, 1979, 87’.

Segundo Andrei Tarkovski, o tempo é a matéria principal de sua obra cinematográfica (TISSI, 2019) e o cinema é a única arte capaz de registrar uma impressão do tempo (TARKOVSKI, 2010). Nesse sentido, com o advento do aparato cinematográfico: Pela primeira vez na história das artes, na história da cultura, o homem descobria um modo de registrar uma impressão do tempo.

Surgia,

simultaneamente,

a

possibilidade

de

reproduzir na tela esse tempo, e de fazê-lo quantas vezes se desejasse, de repeti-lo e retornar a ele. Conquistara-se uma matriz do tempo real. Tendo sido registrado, o tempo agora

204


A Vontade de Memória nos Lugares

podia ser conservado em caixas metálicas por muito tempo (teoricamente, para sempre). (TARKOVSKI, 2010, p. 71)

Portanto, há uma apropriação do tempo pelo cinema que cria uma imagem cinematográfica, que consiste, segundo o cineasta, na observação dos eventos da vida dentro do tempo. E

esta

imagem

é

indissociável

do

tempo,

e

é

verdadeiramente cinematográfica quando “não apenas vive no tempo, mas quando o tempo também está vivo em seu interior, dentro mesmo de cada um dos fotogramas.” (TARKOVSKI, 2010, p. 78). A temporalidade nos filmes da Tarkovski nasce da ideia do cinema enquanto uma arte fundamentada no registro de uma impressão do tempo. Nos filmes do cineasta, o tempo cinematográfico não é fruto exclusivo da montagem, pois ele já é captado durante as filmagens, cabendo a montagem a junção, por meio de uma lógica de continuidade temporal, das tomadas: Durante as filmagens, portanto, concentro-me na passagem do tempo no quadro, para reproduzi-la e registrá-la. A montagem reúne tomadas que já estão impregnadas de tempo, e organiza a estrutura viva e unificada inerente ao filme; no interior de cujos vasos sanguíneos pulsa um tempo de

diferentes pressões

(TARKOVSKI, 2010, p. 135)

205

rítmicas

que

lhe

dão

vida.


O Tempo da Matéria

A montagem, em última instância, nada mais é que a variante ideal da junção das tomadas, necessariamente contidas no material que foi colocado no rolo de película. Montar um filme corretamente, com competências, significa permitir que as cenas e tomadas se juntem espontaneamente, uma vez que, em certo sentido, elas se montam por si mesmas, combinando-se segundo o seu próprio padrão intrínseco. Trata-se, simplesmente, de reconhecer e seguir esse padrão durante o processo de juntar e cortar. (TARKOVSKI, 2010, p. 136)

A montagem, então, deve acontecer com base na consistência do tempo que ocorre através do plano já captado nas filmagens e que possuem uma densidade ou intensidade do qual o diretor denominou de “pressão do tempo”. Na montagem não são gerados ou criados novos tempos, mas é nela que o tempo presente nas tomadas é esculpido, a partir da combinação de peças maiores ou menores portadoras de tempos diversos. Este tempo é sentido na tomada a partir de uma percepção daquilo que se vê no quadro não se esgota apenas por sua configuração visual, mas indica algo que se estende para além do quadro, além da imagem na película. É um tempo que suscita mais reflexões e ideias do que aquelas colocadas pelo autor conscientemente, permitindo que o espectador sinta e interprete cada movimento do seu modo específico. Neste caso, “ao registar fielmente na película o tempo que flui para além dos limites do fotograma, o verdadeiro filme vive no

206


A Vontade de Memória nos Lugares

tempo, se o tempo também estiver vivo nele: este processo de interação é um fator fundamental do cinema.” (TARKOVSKI, 2010, p. 140). O cinema também possui uma capacidade de dar uma forma real e visível ao tempo, registrando-o através de signos exteriores

e

visíveis,

passível

de

identificação,

como

fundamento do cinema, assim como o som é na música e a cor é na pintura (TARKOVSKI, 2010). Esta forma real e visível também comunica o ritmo temporal da tomada: “Assim como se pode determinar o tipo de corrente e de pressão existente num rio pelo movimento de um junco, da mesma forma podemos identificar o tipo de movimento do tempo a partir do fluxo do processo vital reproduzido na tomada.” (TARKOVSKI, 2010, p. 143). Estes processos vitais nas tomadas, que indicam o ritmo do tempo, são muito presentes nos filmes de Tarkovski. Como elemento do ritmo lento e sonolento pode-se citar as neblinas da Zona em Stalker ou em alguns lugares em Nostalgia. Outro elemento importante são os movimentos de água, às vezes lenta e vagarosa, quase parada, ou como corredeiras e cascatas, as duas temporalidades presentes na Zona. Assim, “O cinema utiliza-se dos materiais oferecidos pela própria natureza, pela passagem do tempo, manifesto dentro do espaço que observamos ao nosso redor e no qual vivemos.” (TARKOVSKI, 2010, p. 212).

207


O Tempo da Matéria

A forma como Tarkovski cria um tempo muito específico nos lugares de seus filmes, principalmente naqueles identificados aqui como Lugares de Memória, objetos desta pesquisa, podem ajudar a entender este tempo outro em Bento Rodrigues e quais elementos o configuram. Ao captar o tempo na película durante a tomada, criando planos mais contínuos, onde seus personagens podem vagar pelo espaço, Tarkovski parece trazer um tempo próprio da memória, dos processos de rememoração. Um tempo que, assim como aquela cena de Stalker, interrompe um estado temporal e o substitui por outro, o tempo em que objetos suscitam relações, lembranças e memórias. Um tempo duração, pois é sentido e até mesmo visualizado, não um tempo mensurável, um tempo cronológico. Os personagens de Tarkovski caminham em meio ao Lugar de Memória durante o tempo da memória, tempo distendido e que permite com que o personagem sinta o lugar, se torne parte dele e se reconheça, enquanto identidade nele. Um tempo que permite que os personagens dotem os lugares de memória e consigam apreender a memória existente no lugar. Este tempo da memória também é evidente na cena descrita por Jallageas (2007). Os vários objetos mostrados no travelling não são apresentados de forma rápida e instantânea. Mas em um plano sequência mais lento, onde cada objeto pode se mostrar por meio da imagem por um tempo maior. O que dá a possibilidade do espectador cinematográfico apreender, no

208


A Vontade de Memória nos Lugares

fluxo da memória, cada um dos objetos, entendê-los de forma não instantânea e possibilitando que cada objeto suscite uma memória do espectador44. O processo é parecido com o processo

de

rememoração

das

sínteses

de

memória

(CARRUTHERS, 2011). Cada objeto, como síntese de memória, é passível de visualização e expansão de sua memória, movimento que só é possibilitado pelo tempo da tomada que Tarkovski trás. E este tipo de cena, em que vários objetos são vistos, geralmente imersos na água, está presente em outras cenas de Stalker e em outros filmes, como em alguns momentos de O Espelho e de Nostalgia. Esta relação entre memória e tempo fica muito clara nos diários de Tarkovski (2012). Para Jallageas, o diretor revelou nestes diários um “interesse em criar um mundo como memória, um mundo através do qual pudéssemos ver o tempo de tal forma que lhe

captássemos

a

materialidade.”

(JALLAGEAS, 2007, p. 10). E para as lentes de Tarkovski, a memória é entendida como um tempo cravado na matéria, (...) o que abrange tanto o “tempo impresso” em uma película de acetato quanto o tempo impresso na materialidade da vida terrena em elementos “naturais”: a terra, a água, o ar, a madeira, os metais, o fogo, a luz, e ainda em elementos culturais, de grande extensão: as guerras, a literatura, a

44

Esta cena pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=VwHcNAZqE8. 209


O Tempo da Matéria

música, as artes visuais, a tecnologia, a arquitetura, a religião, o próprio cinema, o amor. (JALLAGEAS, 2007, p. 183)

Deste modo, Tarkovski, por meio de seus filmes, faz com que o tempo seja passível de captação pela própria materialidade e esta materialidade determina também o ritmo do tempo, sua densidade ou intensidade, a “pressão do tempo” (TARKOVSKI, 2010). A partir desta possibilidade que Tarkovski trás em seus filmes, é possível perceber que o tempo também se inscreve na materialidade de Bento Rodrigues. Seja na ambiguidade temporal trazida pelas ruínas, ou na memória que a materialidade de Bento trará. Cada elemento do subdistrito é detentor de uma memória, portanto, indica um tempo ali existente. O tempo é percebido na neblina da manhã de Bento Rodrigues, no crescimento da vegetação cada vez mais proeminente, no leve movimento da água dos diques construídos, uma água mais vagarosa, pois represada, constituindo as instâncias materiais e simbólicas dos lugares de memória. Visto que o tempo também é um constitutivo da materialidade. Estes elementos, que são visualmente lentos e vagarosos, também indicam a pressão do tempo, sua intensidade. Um tempo que se estabelece na lentidão, no vagaroso, no tempo que parece distendido e dilatado, assim como nas tomadas de Tarkovski. Nestas tomadas do filme,

210


A Vontade de Memória nos Lugares

Tarkovski deixa transparecer este tempo lento, deixa com que os lentos elementos da natureza possam completar ciclos de movimentos. Há uma cena em Stalker onde a câmera se detém sobre um lago coberto com uma densa espuma, quase terrosa45. O vento faz com que a camada de espuma se movimente lentamente e possibilita que a poeira se desenhe no ar, formando redemoinhos. O movimento lento da espuma se contrasta com o delinear rápido da ventania. O tempo, talvez de um sonho ou do próprio espaço da Zona, é sentido. O tempo se fez matéria, como o tempo incrustado na neblina, nas ruínas ou nos diques de Bento Rodrigues.

45

A cena também pode ser vista no início https://www.youtube.com/watch?v=Vw-HcNAZqE8. 211

do

vídeo

em


O Tempo da Matéria

P o st e s, p l a c a s e p o r c a s

Nos caminhos hoje percorridos em Bento Rodrigues se destacam quatro mobiliários urbanos principais que demarcam os dois tempos do lugar, o antes e o depois. Do antes temos os postes, alguns ainda de pé, outros curvados, fincados na terra, alguns carregam a marca da altura em que os rejeitos chegaram, funcionando como uma régua fluviométrica da lama. Do depois temos as placas de sinalização: “Perigo”, "Proibido permanecer nesta área”, “Segurança”, “Ao ouvir a sirene evacue a área”, “As rotas de fuga e pontos de encontro estão identificadas por placas”. Elas funcionam, talvez mais que para alertar, como signos de uma ação que chegou tarde demais. Outra presença na paisagem são os tapumes metálicos, em formato de telha, eles fecham ainda mais o espaço. Foram instalados nas edificações com maior risco de saques, como as duas capelas. As cruzes também marcam a paisagem, fincadas em alguns pontos em cima de pequenos montes de terra ou escoradas nas paredes manchadas, são o mobiliário simbólico de várias presenças inexistentes.

212


A Vontade de Memória nos Lugares

Tapume metálico em Bento Rodrigues. Samantha Nery, 2016.

Placa de alerta em Bento Rodrigues. Raquel Freitas, 2016.

213


O Tempo da Matéria

Cruzes em Bento Rodrigues. João Pedro Otoni, abril de 2019.

A palavra desastre vem do latim disaster, que é a junção de dis, que significa mau, contrário e inadequado, e aster, de astro. Portanto, a origem da palavra está ligada a uma desgraça ocasionada por influências negativas e danosas dos astros. Na transposição do latim para o português, a palavra perde a relação que tem com os astros, relação religiosa, e passa a indicar um evento ocasionado por efeito da natureza ou por consequência humana. A instrução normativa que estabelece os critérios para decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública no Brasil (BRASIL, 2012) qualifica desastre neste sentido, como um resultado de eventos adversos de origem natural ou

214


A Vontade de Memória nos Lugares

provocados pelo homem sobre um cenário vulnerável, “causando grave perturbação ao funcionamento de uma comunidade ou sociedade envolvendo extensivas perdas e danos humanos, materiais, econômicos ou ambientais, que excede a sua capacidade de lidar com o problema usando meios próprios;” (BRASIL, 2012, p. 1). Esta mesma instrução divide os desastres entre aqueles de origem ou causas naturais e aqueles tecnológicos, sendo o caso do rompimento da barragem em Bento Rodrigues classificado como um desastre tecnológico (CASTRIOTA, 2019), “aqueles originados de condições tecnológicas ou industriais, incluindo acidentes, procedimentos perigosos, falhas na infraestrutura ou atividades humanas específicas, que podem implicar em perdas humanas ou outros impactos à saúde, danos ao meio ambiente, à propriedade, interrupção dos serviços e distúrbios sociais e econômicos.” (BRASIL, 2012, p. 5). Os desastres, portanto, ao provocarem esta grave perturbação no funcionamento de uma comunidade, acabam se tornando um delimitador do tempo no lugar. Eles se comportam, neste sentido, como um marco, um ponto quase instantâneo que divide o tempo do lugar em um momento do antes, onde tudo era, e um momento depois, onde as coisas quando são, são de forma diferente, não em sua totalidade ou normalidade. E considerando o desastre como ponto de partida para que o espaço se transforme em um Lugar de Memória, ele

215


O Tempo da Matéria

também vai delimitar um momento temporal em que a comunidade de Bento Rodrigues vivia com seus meios de memória e o momento em que esta memória será transposta, da forma dita por Nora (1993), para os Lugares de Memória. O desastre também é um marco na Zona, em Stalker, mesmo que não seja possível chamar o desastre de tecnológico. Mas a Zona certamente é um espaço diferente no antes e no depois de sua ocorrência. Se antes do desastre tínhamos ali meios de memória, não se sabe, mas, certamente, o desastre possibilita que o espaço se torne um Lugar de Memória. Portanto, estes dois lugares possuem um marco temporal, o desastre. Considerando fundamental

para

o

que

este

marco

entendimento

temporal

destes

como

lugares,

a

materialidade destes espaços pode ser dividida entre aqueles objetos e aquelas construções do antes do desastre, e aqueles que são posteriores, que perfazem uma materialidade oriunda do desastre ou que passa a lidar com suas diretas consequências. Aquela materialidade que já estava presente no lugar antes do desastre, como foi afetada por ele, guarda vestígios, registros do desastre. Sejam eles registros físicos, como as marcas da lama, a própria destruição e o abandono, ou registros do âmbito da memória e do simbólico, da matéria que detém a memória do acontecimento no lugar e que simboliza os processos nocivos que ali ocorreram. Já na materialidade posterior ao desastre, que marca este tempo

216


A Vontade de Memória nos Lugares

após,

estão

os

objetos

diretamente

relacionados

às

consequências do desastre, ou seja, as contenções, os cercamentos, as construções provisórias, placas indicativas de emergência. Mas há também materialidades

que são

fundamentais às funções atuais dos lugares, as funções relacionadas à memória, aos rituais. Neste sentido, a materialidade das ruínas é objeto ambíguo, pois ela é um objeto eminentemente em três tempos, ela é tanto o resto de uma materialidade do antes, mas é também uma materialidade do após, pois ainda é suporte de algumas relações no presente, é signo no presente. Em Bento Rodrigues, como objetos do tempo antes, além dos postes, há também os objetos deixados na fuga da lama, e que guardam algum resquício material do desastre, são sínteses de memória. É uma cama, uma foto, uma luminária ou um simples sabonete, todos objetos que revelam o tempo antes do desastre, mas marcados por ele. Nos objetos do depois, além daqueles que são fruto direto do desastre, como as cruzes, as placas, as contenções e tapumes, são fundamentais para a construção dos Lugares de Memória os objetos relacionados aos rituais. São as imagens sacras que sobreviveram a lama, que não são mais objetos simplesmente do antes, mas foram transpostas para o depois, pois ajudam na manutenção dos Lugares de Memória. Não são objetos que apenas

217

guardam

alguma

memória,

mas

são

objetos


O Tempo da Matéria

fundamentais para a manutenção dos ritos em Bento Rodrigues. A Zona do filme Stalker também possui estes objetos do antes e do depois do desastre. No entanto, alguns deles não sabemos ao certo se são do momento anterior ou posterior ao desastre. Ali há vários objetos que parecem ter sido esquecidos na desocupação do lugar, objetos cotidianos, que parecem ser objetos do antes, mas há também tanques de guerra enferrujados, máquinas e carros destruídos que podem ser objetos diretamente ligados a catástrofe, do período após, como também são os cercamentos, a barreira policial que cerca a Zona. Aqui é preciso recordar o letreiro inicial de Stalker que diz sobre o envio de tropas que não retornaram da Zona. Mas um dos objetos do depois, que é fundamental para a função atual da Zona são as porcas, objetos necessários ao andar. Quando chegam a Zona, o Professor, o Poeta e o Stalker preparam algumas porcas atadas a tiras de pano. Ao andar pela Zona em um percurso não linear, mas labiríntico, antes de avançar o Stalker lança ao ar um destes aparatos, como forma de certificar alguma segurança, mas também uma maneira de marcar por onde se caminha, como as migalhas deixadas por João e Maria no conto de fadas. Estes também

218


A Vontade de Memória nos Lugares

são objetos ritualísticos46, a Zona requer em seu caminhar respeito e cuidado, as porcas são o símbolo deste respeito.

Stalker lança uma das porcas que demarcam o caminhar na Zona. Stalker, 1979, 54’.

46

As porcas também são ferramentas que Tarkovski utiliza no filme para marcar como o espaço da Zona é passível de metamorfoses. Em determinado momento de Stalker os personagens chegam a um lugar que acham nunca ter passado, mas encontram uma porca no chão. 219


O Tempo da Matéria

220


Objetos em Bento Rodrigues. Douglas Magno, 2015.


Objetos e peixes na Zona. Stalker, 1979, 143’.



ÚLTIMO PLANO


A Vontade de Memória nos Lugares

Alguns dos caminhos de Bento Rodrigues foram abertos e consolidados como ruas, as procissões podem andar por elas em meio às ruínas. Dentro das casas, o chão de lama foi substituído gradualmente por gramíneas, depois pelos arbustos, agora árvores já se insinuam dentro das casas. As paredes viraram cercados para o verde. Algumas casas foram trancadas, outras receberam placas de advertência, aquelas construções mais importantes foram cercadas por tapumes metálicos. Vários elementos na paisagem foram adicionados lembrando que aquele lugar ainda tem dono. Se afastando um pouco e vendo de cima, as ruínas já são quase imperceptíveis, têm-se cada vez mais a sensação de olhar para um vale pouco arborizado ladeado por dois lagos. Longe, a exatos 11,7 quilômetros, ou a 27 minutos de carro, a mata foi colocada ao chão, a terra foi revolvida, ruas foram abertas e alicerces foram construídos. As obras da Nova Bento Rodrigues seguem em ritmo lento. Aquele observador que, vindo da agora, por consequência lógica da linguagem, Velha Bento Rodrigues, pode pensar qual o futuro dos lugares chamados velhos. O futuro de áreas afetadas por grandes catástrofes é teoricamente complexo, se por um lado se pretende a manutenção das ruínas, elas sempre vão se desenvolver, pois a vegetação vai crescer sobre elas, e o processo de arruinamento continuará até o fim inevitável das materialidades no local. Se por outro lado há a consolidação da matéria

225


Último Plano

arruinada, corre-se o risco de apagar marcas da memória, impedir este retorno da natureza ou até mesmo apagar os vestígios do ocorrido ali. Até o momento, poucas ações foram realizadas em Bento Rodrigues após o rompimento da barragem em 2015, como as já mencionadas limpezas de vias, a construção dos diques, e instalações de placas e tapumes, mas a maior parte das edificações segue, assim como naquelas da Zona em Stalker, seu lento processo de arruinamento. Talvez a exceção seja a capela de São Bento, que foi limpa dos escombros, passou por processo de prospecção, e já tem projeto de restauração, que consolida suas ruínas. Esta construção já tem condições de abrigar celebrações, mesmo que de forma improvisada. No que se refere a proteção legal, os tombamentos da capela de Nossa Senhora das Mercês, tanto em âmbito municipal quanto o estadual, garantem uma manutenção de sua materialidade, de seus bens móveis e do seu entorno 47, assim como o tombamento de Bento Rodrigues como um todo realizado na instância municipal de Mariana. Mas o principal indício de projetos para Bento Rodrigues está no mencionado “Dossiê de Tombamento de Bento Rodrigues” (CASTRIOTA,

47

O tombamento a nível estadual também protege um caminho traçado da Capela das Mercês à Capela de São Bento, incluindo esta última como área de entorno de tombamento. Fonte: Deliberação CONEP 19/2018, de 17 de outubro de 2018.

226


A Vontade de Memória nos Lugares

2019). Sua primeira contribuição que indica alguns futuros no local está delimitada pelas diretrizes de tombamento, elas determinam um perímetro de proteção e de entorno, onde as ruínas das edificações devem ser preservadas como se encontram, incluindo as marcas de rejeitos, respeitando o direito de propriedade dos moradores e sua anuência. Os rejeitos devem ser mantidos no local, com algumas exceções para maior fruição da paisagem. As duas capelas devem ser preservadas e tombadas isoladamente, a fim de dar continuidade as suas funções. As visadas para a Serra do Caraça e o Pico do Inficcionado, dois marcos importantes ao lugar, devem ser preservadas junto das marcas visuais do caminho dos rejeitos desde a barragem, que deve também ter garantida sua visada do povoado. Os acessos a Bento Rodrigues devem ser mantidos e as áreas inundadas pelos diques devem ser recuperadas. Por fim, o dossiê delimita que o uso do território pela comunidade deve ser garantido para a realização de suas manifestações religiosas e culturais. (CASTRIOTA, 2019). Outro indicativo de mudanças na paisagem que devem surgir em Bento Rodrigues é a criação de um Museu de Território e de um memorial adjacente, proposta também do Dossiê de Tombamento (CASTRIOTA, 2019). O Museu de Território é um espaço onde se integram a paisagem cultural e natural, aos valores tangíveis e intangíveis, a comunidade, a

227


Último Plano

identidade, a memória e ao tempo. Busca retratar as relações de um povo com seu território e os percursos históricos de sua ocupação e, neste caso, dos processos de ruptura. A museografia destes espaços procura reconhecer aquela comunidade, reforçando seus valores e seus bens. A criação deste museu foi uma necessidade levantada pelos atingidos, como ferramenta de preservação de suas memórias e suas tradições. De certa forma, o museu reforça as características do Lugar de Memória, mesmo que passando por processos racionais, eles reforçariam o simbólico do lugar e sua relação com a memória (CASTRIOTA, 2019). Os Lugares de Memória estudados neste trabalho, mais especificamente aquele arruinado em Bento Rodrigues, possuem características inscritas em sua materialidade que apontam possíveis futuros. De certa forma, esses possíveis futuros, como novíssimos católicos 48, são indicados em alguns dos filmes de Tarkovski enquanto três possibilidades distintas. O primeiro deles está em Stalker. A Zona, apesar de espaço arruinado, é indissociável de certos personagens que dependem dela enquanto relação quase religiosa. Deste modo,

48

Dentro da doutrina do catolicismo, os novíssimos são os quatro destinos últimos de cada indivíduo na terra, sendo eles: a morte, o juízo, o inferno e o paraíso. Os novíssimos também são conhecidos como escatologia individual. Fonte: CAMPOS, Adalgisa Arantes. Escatologia, iconografia e práticas funerárias no barroco das Geraes. In: RESENDE, Maria Efigênia (comp.); Villalta, Luiz (comp.) História de Minas Gerais, As Minas Setecentistas. Vol 2. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007. p. 383 – 426. 228


A Vontade de Memória nos Lugares

há uma manutenção do Lugar de Memória que possui sua dimensão funcional ligada a uma presença no espaço enquanto lugar único no mundo, daí também sua dinâmica simbólica. Ele é o suporte fundamental e insubstituível de certas relações sociais. A memória no lugar, mesmo ameaçada, continua viva e dinâmica. O segundo, naqueles espaços arruinados de Nostalgia, que têm sua dimensão funcional e simbólica como suscitadora de outras memórias, sejam elas pessoais ou coletivas, enquanto nostalgia. O espaço sobrevivendo como gatilho de memória, mas lugares em que os ritos são quase inexistentes, os Lugares de Memória já são quase lugares de história, estão em um caminho de transição. Por fim, temos ainda uma terceira possibilidade, aquela da casa em chamas em O Sacrifício e que também aparece em um momento de O Espelho, que é a possibilidade de um fim último, um total esquecimento, talvez provocado. As chamas deixam poucas possibilidades para as ruínas, desta forma, é perdido a instância material, não há mais Lugar de Memória e aquela paisagem acaba se tornando um Lugar de História, é, portanto, um processo escatológico para a memória. Das três dimensões que compõem os Lugares de Memória, a material, a funcional e a simbólica, a material, enquanto estado de ruína em Bento Rodrigues chegará, inevitavelmente, a um fim, um estado de completo desmanche

229


Último Plano

e desaparição. Mas

até que este fim chegue, esta

materialidade deve ser utilizada para suscitar as outras duas instâncias, que são fundamentais para a apropriação do lugar pelos seus antigos moradores. Considerando a importância de Bento Rodrigues para a manutenção da memória de uma população, este fim deve ser postergado, garantindo que a população tenha uma materialidade no qual possa realizar seus ritos e que também sirva como um gatilho da memória. Neste sentido, os processos de salvaguarda realizados em Bento Rodrigues, e aqueles que ainda podem acontecer, são fundamentais

para

garantir

materialidade

seja

mantida,

que

a

existência

observando,

desta

conforme

mencionado por Castriota (2019), o direito de propriedade, quando este for cabível. Propondo ações que preservem esta materialidade, postergue seu fim e consolide um estado de arruinamento. E aqui também se incluem os objetos, aqueles que sintetizam a memória, que possuem marcas do desastre e que são também utilizados nos ritos de Bento Rodrigues. Estes objetos devem ser salvaguardados, podem ser incluídos nas propostas museológicas, mas alguns deles, como aqueles pertencentes aos ritos religiosos, devem ser mantidos a fim de que sempre sirvam a sua função ritualística enquanto manutenção do Lugar de Memória. No caso da dimensão funcional, Bento Rodrigues deve continuar servindo como suscitador de memórias, tanto das

230


A Vontade de Memória nos Lugares

memórias dos seus antigos moradores e dos meios de memória que ali antes existiam, como também do desastre e de suas funestas consequências. Neste caso, a ideia de Bento Rodrigues como um integrante do Patrimônio Difícil pode vir a garantir essa memória do desastre, confrontando ativamente o erro social cometido neste lugar, como fruto de uma interação danosa entre a sociedade e a natureza, percebida por meio da materialidade arruinada do lugar e por meio da paisagem. O que constitui uma instância paisagística para a salvaguarda. Mas, principalmente, provoca reflexão e questionamentos próprios dos sítios identificados como Patrimônio Difícil. Por se tratar de um lugar que detém funções ritualísticas, do lugar como cenário para as sociabilidades que ainda acontecem no subdistrito, é necessário que estes processos de salvaguarda contemplem também instâncias imateriais do lugar, como as festas que ali acontecem, os ritos e as apropriações da população com o lugar, seja por meio da instituição do registro, ou por meio de ações que promovam a manutenção dos ritos. De forma que as dinâmicas imateriais sejam entendidas de forma indissociável da materialidade, do que pode constituir patrimônio material em Bento Rodrigues. Mas há de se cuidar para que a apropriação de subdistrito pelo patrimônio cultural possa prever a dinâmica da memória, possibilitando sua constante sujeição a revisões e a novos escrutínios, inclusive aqueles trazidos por novas gerações que

231


Último Plano

virão se apropriar do lugar, aqui também como uma instância simbólica dos Lugares de Memória. E considerando que estas modificações e adaptações do que constitui a imaterialidade são fundamentais para que o lugar não seja tomado pela história, pois reavivam os ritos, mantendo-os vivos. Neste caso, é relevante a proposta feita pelo Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que institui o registro de bens imateriais no Brasil, delimitando a manutenção de reavaliações do registro a cada dez anos, no mínimo, a fim de verificar as modificações que as práticas culturais sofreram no período (BRASIL, 2000). A dimensão simbólica de Bento Rodrigues também deve ser mantida pelos processos de salvaguarda e a proposta do Museu de Território e do Memorial caminham nesse sentido. Mas nestes casos, deve-se cuidar para que o lugar não seja apenas um objeto da história pública, mas continue com os símbolos que garantem a manutenção do Lugar de Memória, impedindo que ele seja completamente apropriado pela história e acabe se transformando em um lugar para ela, sem apropriação

social.

materialidades,

não

Neste podem

sentido, se

suas

tornar

ruínas,

aquelas

suas ruínas

esquecidas, que avançam solitárias e lentamente para o fim, mas ruínas vivas, apropriadas pela população e como símbolos vivos de meios de memória hoje inexistentes, como aquela constatação de um passado, e como símbolo de práticas econômicas

nocivas.

Inclusive

proporcionando

sua

232


A Vontade de Memória nos Lugares

apropriação também pelas populações não nativas do lugar, que também devem conhecer e interagir com o Lugar de Memória, entendendo os processos que ali ocorreram e as sociabilidades que ainda podem ocorrer. Estas indicações, estas práticas que processos de salvaguarda devem observar em Bento Rodrigues caminham no sentido de, fundamentalmente, manter o espaço enquanto Lugar de Memória, pois é nítido neste espaço sua vontade de memória, suas características que levam a manutenção dos resquícios de memórias, e as diversas interações sociais no lugar que levam a esta manutenção. Bem como, a partir da existência de grupos que também têm, fundamentalmente, direito à sua memória. Mas sempre deve-se lembrar que os Lugares de Memória correm risco, ele é parte constitutiva de sua existência, sem este risco, não haveria motivo em se manter um lugar para a memória. Estes lugares, portanto, estão sempre sujeitos a completa apropriação pela história, que acabaria retirando o direito à memória, e uma memória viva destas populações afetadas pelo desastre tecnológico de 2015. Assim, as indicações feitas não se propõem a definir qual a melhor intervenção, ou qual a melhor estratégia de salvaguarda a ser feita em Bento Rodrigues. Mas, sobretudo, indicar alguns aspectos que essa intervenção e essa estratégia devem possuir, partindo do entendimento de todas as relações abordadas por este texto, mas deixando claro que não são os

233


Último Plano

únicos aspectos, pois a temática ainda é vasta. Mas indicando estes aspectos de forma que qualquer intervenção neste lugar seja respeitosa com os que ali mantêm íntimas relações, com a memória dos que se foram, e com a memória inscrita no lugar. Este futuro que se busca também deve servir como rememoração fundamental de determinada relação econômica que, naquela situação, com aquelas dinâmicas, se mostrou predatória e nociva, foi um fim de várias relações sociais, econômicas e culturais. Mas, sobretudo, deve-se evitar o fim último do esquecimento, do processo de arruinamento que tem seu fim na desaparição, evitando que este espaço seja tomado pelas dinâmicas da história e não seja suporte, ainda, de relações de memória. A indicação destes futuros só foi possível, neste trabalho, a partir da leitura de Bento Rodrigues enquanto um Lugar de Memória, e tendo em vista os Lugares de Memória da filmografia de Andrei Tarkovski como facilitadores da leitura do primeiro espaço. Mas também, a partir da leitura e interpretação das imagens criadas pelo cineasta russo, em um movimento que também se deu ao contrário, da leitura dos Lugares de Memória em Tarkovski tendo em vista o Lugar da Memória que é Bento Rodrigues. E Lugares de Memória que são compostos e mantidos por várias outras características além das memórias e seus dinâmicos processos, suas possíveis sínteses e multiplicidades. Eles são também

234


A Vontade de Memória nos Lugares

compostos por meio de suas imagens, sempre mergulhadas em memória, como constatações do passado e tendo a ruína como um de seus principais componentes visuais e narrativos. Também pela paisagem, um principal componente dos Lugares de Memória, como materialidade, bem como enquanto construção de temporalidade própria, enquanto construção social e inserida nas lógicas do patrimônio cultural. E, por fim, também é composto pelo tempo, tempo duração, sentido e percebido, tempo constituído de três dinâmicas temporais das ruínas, tempo múltiplo e que se manifesta no espaço, tempo marcado pela catástrofe. Chegado ao fim deste trabalho, há a constatação que, apesar da realização de alguns entendimentos sobre estes espaços, o de Bento Rodrigues e da filmografia de Tarkovski, muitos outros entendimentos foram abertos aqui e podem ainda ser explorados e estudados. A temática dos processos de arruinamento nos Lugares de Memória ainda é vasta, e o conceito de Pierre Nora ainda está em processo de aplicação e mudança. A partir deste estudo, várias outras linhas de pesquisa podem ser abertas, como a dos Lugares de Memória na filmografia de outros cineastas, de outras relações do cinema com o patrimônio cultural, das paisagens enquanto Lugares de Memória, de outros processos de arruinamento, das implicações psicológicas destes espaços em seus usuários, e dos processos de salvaguarda possíveis a estes

235


Último Plano

lugares. Todas estas temáticas se apresentam, a partir daqui, como potência de futuras pesquisas e desdobramentos deste trabalho. Os estudos das relações entre memória, patrimônio e tempo é vasto e pode continuar sendo explorado. Por fim, lembro-me da cena final de O Espelho. Nesta cena, em que estão no mesmo plano, além das duas crianças, a mãe mais velha e a mais nova, as crianças caminham junto da mãe mais velha, não da mais nova. Em alguns planos antes, as ruínas do poço e de alguma construção que era utilizada para secar lençóis, estava tomada pela natureza, como nas ruínas de Stalker e em Nostalgia. Nesta última cena de O Espelho, Tarkovski parece anunciar o início de um novo ciclo, um recomeço, como em um eterno retorno. O fim anunciado pela ruína também encontra o início no renascer e no recuperar da natureza, assim como a senhora mais velha que anda ao lado das crianças, dando continuidade a um ciclo. Não digo com isso que o desastre de Bento Rodrigues pode ser entendido como uma necessidade ou como acontecimento com algum aspecto bom. Seria preferível não ter de lidar com ele, seria ótimo que ele nunca tivesse acontecido. Mas como fato dado, ele não pode apenas indicar o fim de uma comunidade e de suas relações, um esquecimento. Mas que, a partir dele, haja alguma continuidade, outra, diferente (FREIRE, 2017). Não como eterno retorno exatamente ao mesmo, mas que considera o desastre, lida com ele de forma crítica e enquanto

consciência,

tentando

evitar

outros.

E

que,

236


A Vontade de Memória nos Lugares

fundamentalmente, respeite as memórias, componente que constitui a identidade de um povo. Citando Tarkovski: “Privado da memória, o homem torna-se prisioneiro de uma existência ilusória; ao ficar à margem do tempo, ele é incapaz de compreender os elos que o ligam ao mundo exterior - em outras palavras, vê-se condenado à loucura.” (TARKOVSKI, 2010, p. 65).

237


Último Plano

238



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248


A Vontade de Memória nos Lugares

AGRADECIMENTOS

Lembro-me de todos aqueles que me ajudaram na construção deste texto com grande carinho, vocês certamente estarão em minhas memórias e nas memórias deste trabalho. Agradeço a Aline e a minha Mãe pela paciência que tiveram comigo neste tempo em que só falava de um assunto, obrigado por me ouvirem e por me entenderem. Obrigado pela cuidadosa leitura que fizeram deste texto e pela valiosa contribuição de cada uma. Agradeço também pela atenta e criteriosa leitura das minhas amigas Ana e Sofia. Também lembro aqui das valiosas discussões cinematográficas do Clube da Sete, que certamente contribuíram com este trabalho, dando ideias, esclarecendo alguns pontos e levantando discussões. Agradeço também a minha orientadora Simone Cortezão pelas criteriosas observações, por indicar sábios caminhos e pela sinceridade. Obrigado pelas maravilhosas conversar, por ampliar em mim o gosto pelo cinema e pelas narrativas. Também agradeço ao Francisco Macedo pelos esclarecimentos quando a teoria mostrou sua complexidade.

249


Agradecimentos

Por fim, lembro-me de todos aqueles que ajudam na manutenção da memória de Bento Rodrigues, aqueles que contam suas memórias, que mantém suas tradições, que defendem seus Lugares de Memória. Aos quais dedico este trabalho.

250




O desastre tecnológico ocorrido em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana - MG, em 2015, alterou profundamente a paisagem daquele lugar. Desde então, várias transformações e ressignificações vêm ocorrendo neste espaço que, a partir de 2019, começa a ser entendido como um Lugar de Memória, conceito criado por Pierre Nora em seu texto de 1993. Partindo desta definição, este trabalho lê e interpreta esta paisagem alterada em paralelo com alguns espaços criados pelo cineasta russo Andrei Tarkovski (1932 - 1986) que, em parte de seus filmes, criou lugares que podem também ser entendidos como Lugares de Memória. Os filmes utilizados nesta pesquisa não são apenas material bibliográfico e ligação estética que ajudam em um maior entendimento das relações que se estabelecem em Bento Rodrigues, mas são indicativos de certo olhar que este espaço demanda, de sua temporalidade peculiar e podem também mostrar caminhos futuros a ele. Estes dois espaços, o da filmografia de Tarkovski e Bento Rodrigues, são analisados em quatro dimensões principais: a imagética, entendida a partir da teoria fotográfica de Walter Benjamin e de Roland Barthes; a relativa à paisagem, tendo em vista o conceito em Simon Schama e em Georg Simmel; a da memória, onde se discute a problemática dos Lugares de Memória a partir do texto de Pierre Nora e de Mary Carruthers; e a dimensão temporal destes lugares, considerando a teoria cinematográfica criada por Tarkovski em sua obra “Esculpir o Tempo” como também as definições de tempo duração, dos três tempos da ruína e da catástrofe como marcador temporal. Cada uma destas dimensões também é analisada dentro do histórico e das questões do patrimônio cultural e em relação a um diálogo visual entre os dois lugares pesquisados, a fim de dar continuidade ao texto escrito, extrapolando-o. Bem como, utilizando imagens e relatos de arquivos digitais ou reportagens sobre o desastre de 2015. Finalmente, o trabalho aponta algumas diretrizes para a apropriação de Bento Rodrigues pelo patrimônio cultural,

considerando as temáticas discutidas no trabalho e a filmografia de Andrei Tarkovski.

Lugar de Memória - Bento Rodrigues Tarkovski - Patrimônio Cultural - Ruína


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