UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE ARTES – CEART DESIGN – HABILITAÇÃO DESIGN GRÁFICO
LUCKAS FRIGO FURTADO
A MARCA ALÉM DO LOGO: ANÁLISE DA OBRA DO ESTÚDIO HANNA-BARBERA NOS ANOS 1950 E 1960
FLORIANÓPOLIS, SC 2010
LUCKAS FRIGO FURTADO
A MARCA ALÉM DO LOGO: ANÁLISE DA OBRA DO ESTÚDIO HANNA-BARBERA NOS ANOS 1950 E 1960 Trabalho apresentado como requisito parcial para conclusão da disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso, do curso de graduação em Design Gráfico da Universidade do Estado de Santa Catarina. Orientador: Prof. Murilo Scóz, Msc.
FLORIANÓPOLIS, SC 2010
LUCKAS FRIGO FURTADO
A MARCA ALÉM DO LOGO ANÁLISE DA OBRA DO ESTÚDIO HANNA-BARBERA NOS ANOS 1950 E 1960
Trabalho de Conclusão de Curso aprovado como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel, no curso de graduação em Design Gráfico da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Banca Examinadora:
Orientador:
_____________________________________________________________ Profª. Murilo Scóz, Msc. Universidade do Estado de Santa Catarina
Membro:
_____________________________________________________________ Prof. Claudio de São Plácido Brandão, Msc. Universidade do Estado de Santa Catarina
Membro:
_____________________________________________________________ Prof. João Calligaris Neto, Msc. Universidade do Estado de Santa Catarina
Florianópolis - SC, 29/ 11/ 2010
À minha mãe, que com esforço e dedicação conseguiu educar quatro filhos, aos meus três irmãos e à Manu.
"Yabba-dabba-doo!� Fred Flintstone
RESUMO
O presente trabalho propõe-se a analisar a identidade da marca Hanna-Barbera entre 1957, seu ano de fundação, e 1969. Para isso foi necessário compreender a história prévia dos estúdios de animação, bem como o contexto histórico no qual o estúdio foi criado. Em um segundo momento, para a melhor compreensão do conceito de marca, são abordadas teorias referentes à gestão da mesma. Por fim, analisamos os desenhos animados produzidos pelo estúdio com o intuito de extrair de sua obra a identidade que a Hanna-Barbera cria dela mesma. Palavra-chave: design, marca, branding, animação, desenho animado, hanna-barbera.
ABSTRACT
This study proposes to examine the brand identity of Hanna-Barbera from 1957, its founding year, and 1969. This requires understanding the history of animation studios, as well as the historical context in which the studio was created. In a second step, to better understand the concept of brand, we discuss theories related to its management. Finally, we analyze the cartoons produced by the studio in order to extract from its work the identity that HannaBarbera creates about herself. Keywords: design, branding, animation, cartoon, hanna-barbera.
SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................8 1.1 OBJETIVOS....................................................................................................................14 1.1.1 Objetivos Específicos...................................................................................................14 1.2 METODOLOGIA ...........................................................................................................15 2 APAGUEM AS LUZES: O DESENHO ANIMADO NO CINEMA ................................17 2.1 OS PRIMEIROS ESBOÇOS ..........................................................................................19 2.2 A ILUSÃO DA VIDA: SURGIMENTO E ASCENSÃO DOS ESTÚDIOS DISNEY...25 2.3 O PEQUENO GRANDE ESTÚDIO: HARMAN-ISING PRODUCTIONS..................30 2.4 O COELHO DOS OVOS DE OURO: O SURGIMENTO DA WARNER BROS. ........33 2.5 O RUGIDO DO LEÃO: CRIAÇÃO, CRESCIMENTO E DECLÍNIO DA MGM .......36 2.6 REDEFININDO AS FORMAS: UPA E O CARTOON MODERNO ............................40 3 NA TELA DA TV..................................................................................................................46 3.1 A ESTÉTICA DA ANIMAÇÃO PARA TELEVISÃO ...................................................48 3.2 A MIGRAÇÃO DO CINEMA PARA A TV....................................................................52 3.3 HANNA-BARBERA CHEGA AO MERCADO ............................................................54 4 A MARCA HANNA-BARBERA.........................................................................................61 4.1 O QUE (NÃO) É MARCA? ...........................................................................................63 4.1.1 Evolução do Conceito de Marca ..................................................................................64 4.2 CRESCIMENTO DA MARCA HANNA-BARBERA ...................................................65 4.2.1 O Logo .........................................................................................................................67 4.3 ANÁLISE DAS MANIFESTAÇÕES DA MARCA HANNA-BARBERA ...................74 4.3.1 Os Desenhos Contam a História ..................................................................................80 4.3.1.1 Zé Colméia ................................................................................................................80 4.3.1.2 Os Flintstones............................................................................................................82 4.3.1.3 Corrida Maluca..........................................................................................................83 4.3.1.4 Scooby-Doo, Cadê Você?..........................................................................................84 4.3.2 A História que os Desenhos Contam............................................................................85 5 CONCLUSÃO ......................................................................................................................90 5.1 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................90 5.2 SUGESTÕES PARA TRABALHOS FUTUROS...........................................................92 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................93 BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA....................................................................................95
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1 INTRODUÇÃO Do ponto de vista de um espectador, a animação é um fenômeno mágico. Desenhos possuem a capacidade de nos fazer entrever um mundo fantástico de forma que pareça ser real. O envolvimento do público com os chamados desenhos animados é sem dúvida instigante. A este propósito, podemos mencionar a nostalgia que desenhos animados como Os Flintstones, Manda-Chuva, Os Jetsons e tantos outros nos fazem sentir. A sua importância desperta a curiosidade pelo que há por trás desse universo de animais falantes, carros voadores, geringonças da idade da pedra e inacreditáveis personagens. Como uma criança que tenta desvendar os truques de um mágico (sem se dar conta que tal “investigação” é que a encanta), este trabalho lança um olhar sobre o mundo da animação, tentando desvendar-lhe alguns de seus encantos mais recorrentes. Este trabalho de pesquisa trata do impacto gerado pelo surgimento da televisão no mercado de animação e consequentemente na sociedade da época. Para tal esse estudo se apoiará na obra de um dos principais estúdios de animação surgidos durante a década de 50 após o boom da televisão nos EUA. O estúdio fundado por William Hanna e Joseph Barbera iniciou seus trabalhos no ano de 1957 com o desenho animado The Ruffy and Reddy Show, transmitido pela rede americana de televisão NBC. Do ponto de vista do design gráfico podemos destacar esse período da história da animação como um separador de águas, em termos estéticos, formais e conceituais. A forte influência que os movimentos artísticos que precederam a Segunda Guerra Mundial exerceram sobre o desenho animado desse período é notável. As linhas, cores e o ritmo dos quadros de Kandinsky, as geometrizações do corpo humano e quebras de perspectivas das telas de Picasso, os rompimentos com as leis naturais das obras de Dalí; todos são elementos encontrados nas animações produzidas durante o período pós-guerra.
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Esse estilo que combina referências marcantes do cubismo, modernismo, futurismo e por vezes surrealismo, também presente nos desenhos Hanna-Barbera desse período, dominou completamente a animação dos anos 1950 até meados dos anos 1960. Um estilo iniciado dentro da UPA e que acabou influenciando todo o mercado de animação norte-americano. Mesmo os estúdios Disney, que até os anos 40 dominavam o mercado, além de ser a principal referência em termos estéticos, sofreram alguma influência desse estilo, o que por exemplo é percebido de maneira mais leve na cena do desfile dos elefantes cor-de-rosa em Dumbo (1941), com bastante força no curta Toot, Whistle, Plunk and Bloom (1953) e com certa sutileza em 101 Dalmatians (1961) - no Brasil 101 Dálmatas. Os anos 1950 e 60 compõem um período importantíssimo, porém pouco discutido, da história da animação - mais especificamente da história do desenho animado - como conhecemos hoje. Esse é o período em que os desenhos animados se tornaram mais populares entre as crianças, criando uma ideia sustendada até os dias atuais de que esse é um gênero de entretenimento infantil. Essa mudança de entendimento se deveu principalmente ao chamado Baby Boom americano após o fim da 2ª Guerra Mundial. As principais séries de desenhos conhecidas atualmente como clássicos da televisão foram pelas primeira vez assistidas por essa nova geração. Esses desenhos se tornaram tão populares entre as crianças que pouco a pouco as séries animadas passaram a ser orientadas para esse público. No entanto esse nunca foi o plano inicial. A inclusão de desenhos animados na televisão se deu pelo simples fato de que as emissoras necessitavam de programas para preencher sua grade de horários, e desenhos animados eram uma boa opção. Além de possuírem baixo custo, agradavam tanto crianças quanto adultos. Para exemplificar esse argumento podemos citar a série Os Flintstones, que completou 50 anos de existência em 30 de setembro de 2010, e que desde sua estréia, em 1960, frequentou o horário nobre - ou primetime como é chamado nos EUA. Algumas animações famosas surgidas antes mesmo do sucesso da televisão e que possuíam temas primariamente adultos reforçam a tese de que os desenhos animados não estavam primariamente destinados ao entretenimento infantil. Dentre esses estão a série original do Gato Felix, de Pat Sullivan, o filme Fantasia (1940), de Walt Disney, a
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personagem Betty Boop, dos irmãos Fleischer, os desenhos produzidos por Tex Avery durante sua permanência na MGM, bem como as animações da UPA - ambas nas décadas de 1940 e 50 - além de tantas outras. Ainda assim esses mesmos desenhos animados inspiraram diversas gerações, tendo sido exibidos e reprisados por completo dezenas - talvez centenas - de vezes na televisão aberta ou em canais de TV à cabo por toda a segunda metade do século XX. Os desenhos, assim como outras formas de entretenimento, cumprem um papel importantíssimo na sociedade: encenando os valores de seu espectador adulto, contribui para a constituição dos valores de seu espectador infantil. Prova disso é a utilização militar das animações nos anos 1940, bem como as ações políticas dessa época utilizando-se dessa mídia. Logo após o surgimento e popularização da televisão nos EUA - e em consequência desse fato - um grande número de estúdios de animação surgiu no país. Alguns focados exclusivamente no entretenimento, outros na publicidade e tantos outros em ambos. No entanto, poucos foram os que sobreviveram e mantiveram um nome tão forte quanto o estúdio Hanna-Barbera. Outros estúdios que transitaram pelo mercado desse mesmo período e que ainda tem grande notoriedade e reconhecimento internacional podem ser citados: Disney, Warner Bros., MGM (atualmente fora do mercado de animação) e UPA. O último, apesar de não atuar mais no mercado em questão desde meados dos anos 1960 e ter sido quase esquecido pelo público em geral, desempenhou um papel marcante na mudança dos rumos do desenho animado. Por esta razão, pesquisadores da animação frequentemente fazem referência à importância de seu legado. Cada um desses estúdios deixou uma marca específica. Seja através de um personagem famoso, de um partido estético, de uma forma de articular a narrativa ou de uma técnica produtiva específica, eles contribuíram significativamente para a definição da linguagem dos desenhos animados e exatamente por isso serão discutidos ao longo desse trabalho. Contudo, o estúdio de William Hanna e Joseph Barbera ganha aqui maior atenção por sua fundação bastante tardia e pela importância pronunciada no mercado como um dos mais importantes produtores da história. As produções da dupla são transmitidas até hoje, figurando entre os maiores clássicos do desenho animado.
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A dimensão da marca Hanna-Barbera pode ser atribuída a um conjunto de circunstâncias. Numa fase em que o mercado de desenhos animados para o cinema se encontrava em decadência, ao passo que a televisão florescia, seus proprietários tiveram a oportunidade de incorporar uma gama artistas originados dos diversos estúdios existentes. No presente trabalho, esta estratégia é estudada pelo viés da estruturação de uma identidade de marca única, que se mostrou decisiva à consolidação do estúdio Hanna-Barbera. De um ponto de vista estético podemos visualizar o estilo quase único e a identidade muito forte mantidos pelo estúdio até o final dos anos 1960. Apesar de possuir algumas características estéticas comuns a diversos estúdios do mesmo período, os desenhos animados de Bill e Joe possuíam um algo a mais. As estruturas narrativas, a construção “arquetípica” das personagens, o design dos tipos físicos e dos cenários, tudo isso ajudou a consolidar uma linguagem única, trabalhada fortemente pelo estúdio durante esse período de de pouco mais de 10 anos. Em certa medida, podemos dizer que essa imagem construída se ancora em princípios de design. Se partirmos do princípio que a linguagem do design gráfico se baseia no encadeamento das linhas, formas e cores com o objetivo de transmitir uma mensagem ou, como diria Greimas, um texto, e se percebermos como o desenho animado busca os mesmos objetivos, utilizando-se dos mesmos elementos acrescido da ilusão do movimento, não poderíamos então chegar à conclusão que o desenho animado é exatamente o que poderíamos chamar de design gráfico em movimento? A própria concepção de um personagem e dos elementos que o rodeiam a partir de um conceito, de um briefing e de limitações técnicas pode ser relacionado ao fazer design. A linguagem utilizada é importantissima para a inteligibilidade da mensagem, o que convencionou-se chamar de esfera da recepção. A escolha das formas e cores cria préconceitos antes mesmo que a mensagem principal possa ser passada. Quando pensamos em um projeto de design gráfico pensamos não só no conteúdo da mensagem mas também nos elementos contrutivos, nos processos produtivos, nos meios de comunicação, de forma que a sintaxe empregada garanta a efetividade do processo comunicativo. O processo ocorre da mesma forma quando pensamos em design de animação. A estrutura do personagem se reflete em alterações no processo de animação em si, a
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complexidade dos cenários depende do tamanho do suporte final, a escolha das cores deve agradar ao espectador. No fim das contas são essas definições anteriores ao processo de produção, somadas à narrativa, que definem a linguagem do produto final. O processo de animação em si, se comparado ao design, pode ser encarado como a aplicação do projeto gráfico ao suporte final. Os atributos formais, estéticos e narrativos desenvolvidos por William Hanna e Joseph Barbera fez com que seus nomes fossem vinculados fortemente à sua obra. Curiosamente, o estúdio Hanna-Barbera não possui uma assinatura visual forte e marcante, como nos casos de Disney e Warner Bros. Mesmo assim, possui uma identificação muito forte junto ao público. Um destes traços estéticos que facilmente é relacionado à grife Hanna-Barbera é o uso de gravatas, colares, golas altas ou qualquer outro acessório no pescoço por praticamente todos os seus personagens, em função do processo de animação utilizada pelo estúdio, fato sobre o qual falaremos no capítulo 4. Muito embora o estúdio criado por Hanna e Barbera tenha produzido mais de 160 desenhos animados diferentes antes do final do século XX, o presente estudo terá como enfoque os desenhos clássicos produzidos de 1957 a 1969. Esse é o período em que personagens tidos como clássicos foram criados e que as fundações desta marca começaram a ser desenhadas, o que de certa forma garantiu o encaminhamento que sua identidade tomou no período subseqüente. Ainda hoje o estúdio HB é um dos nomes mais conhecidos na produção de desenhos animados. Em 1991 o estúdio foi comprado por uma compania de televisão, a Turner Broadcasting System, com o objetivo de produzir desenhos animados para seu novo canal, o Cartoon Network. Em meados da década de 1990 a Turner foi comprada pela Time Warner, subsidiária da Warner Bros. Ao final da década, após o estúdio ter produzido alguns desenhos bastantes conhecidos até hoje, como As Meninas Superpoderosas, Johnny Bravo e O Laboratório de Dexter, a Hanna Barbera Productions - e o direito sobre suas obras - foi divida, se tornando em parte Cartoon Network Studio e tendo o restante anexado à Warner Bros. Animation. Em 2001 - por coincidência o mesmo ano da morte de William Hanna - a Warner extinguiu a Hanna Barbera Productions, mantendo a marca para fins comerciais.
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Quando falamos em marca, a primeira coisa que costuma vir à cabeça são logotipos. No entanto a marca de uma empresa ou instituição não se resume à sua assinatura visual. Ela pode ser entendida como um sistema complexo de sentido que liga a instituição a um conceito, confirmando um certo compromisso assumido informalmente com o consumidor através de experiências de comunicação prévias. Se analisarmos grandes marcas notaremos que além de uma assinatura visual elas possuem um conceito central, uma filosofia ou o que podemos chamar de um acervo simbólico, da qual aquela primeira é manifestação. Não importa se estamos observando Nike ou McDonalds, Coca-Cola ou Apple. A lógica da marca é a mesma, e fundamenta-se na construção de um conjunto de associações e valores criados a partir da relação da própria marca com o consumidor. Essa idéia é muito mais forte e persistente do que uma simples assinatura. Como forma de ilustrar esse ponto, podemos citar uma frase do diretor Christopher Nolan em seu filme Inception (2010): Qual é o parasita mais resistente? A bactéria? O vírus? Uma idéia. Resistente e altamente contagiosa. Uma vez que uma idéia se apodera do cérebro, é quase impossível erradicá-la. Uma idéia que é totalmente formada e compreendida, permanece.
No entanto, para que uma idéia resista por longo tempo, como no caso das marcas supracitadas, é necessário que tenhamos símbolos que nos façam lembrá-la e que nos façam acreditar que pertencemos àquele mundo. Vejamos o exemplo da Disney. Apesar de possuir uma assinatura - e nesse caso a logotipia de sua marca é efetivamente uma assinatura - muito forte, conhecida e praticamente imutável há pelo menos 25 anos, a Disney possui diversos símbolos que nos fazem relacionarmo-nos diretamente com ela. Seu principal personagem e símbolo mais famoso é globalmente reconhecido através de uma simples silhueta composta por três circunferências pretas (Figura 1), ou seja, uma associação entre cor e forma extremamente simples. O próprio parque Walt Disney World nos transporta para esse mundo de fantasia e mexe com nosso imaginário, nos trazendo justamente a filosofia da Disney, que é a de criar a ilusão da vida.
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Figura 1: Silhueta do personagem Mickey Mouse de Walt Disney, representado por três circunferências.
Focando exatamente em nosso problema, a construção da identidade Hanna-Barbera a partir de sua obra, analisaremos, então, quais são esses símbolos e idéias com que seus desenhos trabalham, e que em certo sentido dão contornos tangíveis a sua marca. Para quem eles são destinados e qual a mensagem que eles deixam? Qual a imagem construída pelo estúdio Hanna-Barbera? Em outras palavras, tais questões buscam orientar a investigação acerca do modo de construção da marca Hanna-Barbera.
1.1 OBJETIVOS O objetivo desse trabalho é buscar, dentro da perspectiva do design gráfico, a identidade do estúdio Hanna-Barbera através da análise de sua obra, produzida nos anos de 1957 a 1969.
1.1.1 Objetivos Específicos - Agrupar as séries de desenho animado produzidas pelo estúdio Hanna-Barbera em diferentes categorias para análise; - Selecionar as séries e personagens de maior destaque; - Buscar os traços sintáticos e semânticos reiterados na obra, seja na forma de arquétipos, mitos, símbolos ou estereótipos; - Analisar o projeto de branding avant la lettre que o estúdio realizava; - Descobrir os efeitos que o trabalho realizado nesse período causaram à marca nos dias atuais.
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1.2 METODOLOGIA O presente estudo está organizado em duas fases. Em um primeiro momento é realizado um levantamento bibliográfico como parte de uma pesquisa exploratória. De acordo com Cervo e Bervian (1996 apud SILVA, 2005, p. 49) a pesquisa bibliográfica serve para “explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas em documentos”. Essa primeira fase da pesquisa visa dar contornos mais claros ao histórico da animação - mais especificamente do desenho animado - e à situação dos estúdios e artistas envolvidos com esse mercado. Esse levantamento histórico ocorrerá ao longo dos capítulos 2 e 3 a partir, principalmente, das linhas históricas traçadas por Barbosa Júnior (2002) e Barrier (1999) referente à animação cinematográfica, e Amidi (2006) e Lenburg (2009), referente à animação para a TV. Em um segundo momento, no capítulo 4, são abordadas questões relativas ao branding e ao marketing, de acordo com a linha de raciocínio de Neumeier (2008), Chevalier e Mazzalovo (2007) e Calder (2006), de modo a compreender a dinâmica de desenvolvimento das marcas, o que associa-se diretamente ao percurso de consolidação do estúdio HannaBarbera. No mesmo capítulo é apresentado um levantamento histórico da marca, abordando de forma geral suas produções e produtos, bem como os logos utilizados pelo estúdio durante sua existência, partindo dos estudos de Hanna e Ito (1996), Sennett (1989) e Beck (2007) e das informações extraídas do portal Closing Logos 1. Ainda no mesmo capítulo, é apresentada uma análise da marca e obra do estúdio Hanna-Barbera, a partir de técnicas de geração de sentido da semiótica greimasiana. Para tanto analisamos os planos da expressão e do conteúdo de algumas séries escolhidas dentro do portfólio dos primeiros anos do estúdio, em busca de traços que sejam reiterados. Partindo deste modelo semiótico, espera-se demonstrar a manifestação da identidade do estúdio Hanna-Barbera em aspectos próprios da linguagem da animação, associando-os a aspectos da linguagem do design gráfico, o que diz respeito aos processos de construção das marcas de maneira geral.
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Fonte: <http://www.closinglogos.com/page/Hanna-Barbera+Cartoons,+Inc.> (Acesso em: 16 nov. 2010)
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Fechando esse estudo temos o capítulo 5, onde serão expressas as considerações finais do autor acerca desse trabalho.
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2 APAGUEM AS LUZES: O DESENHO ANIMADO NO CINEMA Praticamente qualquer dos trabalhos acadêmicos, aos quais esse pesquisador teve acesso, que abordem a animação como tema principal, trazem em seu corpo um extenso histórico sobre o surgimento da animação, a origem da técnica , a vinda das sombras chinesas para o ocidente, a invenção do fenaquistoscópio e outros aparatos, o surgimento do cinema, animações em stop-motion e diversos outros fatos históricos relacionados à evolução da animação como um todo. Esses são todos fatos de suma importância em relação ao presente tema e por isso mesmo são recorrentemente documentados. Um panorama histórico completo da atividade pode ser encontrado na obra de Barbosa Júnior, Arte da Animação: técnica e estética através da história (2002). Pela ampla exploração do tema, e pela recorrência de tal exposição, em nosso entendimento seria de certa forma redundante tal relato. Analogamente, equivaleria a recontar a história do design gráfico desde seus primórdios ao iniciarmos qualquer debate ou estudo sobre algum ponto particular do mesmo, como, por exemplo, identidade visual. No entanto, uma breve contextualização sempre se faz importante para o esclarecimento do tema e, mais especificamente, do objeto de estudo. A animação já provou ser uma atividade complexa, que envolve diferentes disciplinas, subdisciplinas, variadas áreas de conhecimento e aplicação, bem como diversas técnicas de produção. Este estatuto é confirmado nos curriculos de diferentes escolas, dedicadas exclusivamente ao estudo e pesquisa da animação, como a famosa escola francesa Gobelins, a americana The Art Institute of California e, por que não citar, o curso de design de animação da Universidade Federal de Santa Catarina. Portanto, enquanto disciplina, ela pode e deve ser trabalhada em suas particularidades. A proposta desse trabalho recai sobre uma técnica em particular, a técnica tradicional de animação, também conhecida como animação 2D (em oposição à animação 3D). Ao longo
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desse trabalho será utilizado o termo “desenho animado” em referencia a essa técnica. Tal escolha se deve tanto à familiaridade do mesmo quanto por um fator de ordem etimológica sua tradução quase que literal do termo original em inglês, animated cartoon. A origem da palavra data do final do século XVI, durante o Renascimento, quando o termo cartoon se referia à um projeto em tamanho real preparatório para uma obra de arte em outro meio. Geralmente um desenho preliminar feito em papel, utilizado como referência para uma pintura, afresco ou tapeçaria. A palavra deriva do italiano cartone, que significa simplesmente uma grande folha de papel. O verbete cartoon no Dicionário Oxford da Língua Inglesa, traz como principal significado do termo “um desenho simples mostrando as feições de seus sujeitos de forma humorísticamente exagerada, especialmente um [desenho] satírico em um jornal ou revista; uma tirinha.” O termo, como utilizado atualmente, foi cunhado pela revista britânica Punch, durante o século XIX. De acordo com o site da revista: Naquele tempo, a parte mais importante da revista era o desenho satírico de página inteira, conhecido como The Big Cut e entitulado Mr Punchs’s pencilings[2 ]. Mas em julho de 1843, The Big Cut foi substituído por uma semana pela entrada da própria revista sobre a exibição do Parlamento. Em uma série de desenhos que ela [a revista] ironicamente intitulou “cartoons”, a Punch contrastou a suntuosidade dos planos do Parlamento com a miséria da população faminta.[...] Como resultado disso, a palavra “cartoon” ficou associada à sátira pictórica e eventualmente com desenhos de humor. Nos anos que se seguiram à famosa gravura de Leech, tanto cartoons políticos como cômicos floresceram na Punch, desenvolvidos em geral por grupos de artistas distintos. (HISTORY..., 2010, tradução do autor)
Devido à similaridade estilística e também dos temas das primeiras animações em relação aos cartoons encontrados em revistas e jornais do mesmo período, além do fato dos primeiros animadores terem se originado dessas mídias, o termo acabou sendo adotado pela nova atividade. Mais tarde, em meados da década de 1930, o termo foi contraído para apenas toon, no entanto a palavra original não caiu em desuso. Ambos os termos, bem como a expressão animated cartoon são normalmente utilizados para designar animações 2D, geralmente de curta metragem3 (apesar de não haver uma regra exata que defina a não utilização do termo em desenhos animados de longa
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Desenhos do Sr. Punch. (Tradução do autor)
Filme com menos de 40 minutos, o que seria equivalente a dois rolos de película. (fonte: http://www.oscars.org/ awards/academyawards/rules/83aa_rules.pdf, acesso em: 12 out. 2010)
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duração). Porém, não é comum ver o termo ser aplicado à animações que envolvam elementos do mundo real, como na técnica de stop-motion. A partir dessa definição, adotaremos a expressão desenho animado - ou somente desenho - e por vezes o termo cartoon ao longo do presente trabalho por parecerem as escolhas mais adequadas. A seguir, o presente capítulo investiga como os desenhos animados para o cinema e os estúdios que os produziam evoluíram até o final os anos 1950, época em se daria a popularização da televisão. Esse foi o evento principal que possibilitou o surgimento do estúdio Hanna-Barbera.
2.1 OS PRIMEIROS ESBOÇOS Das primeiras tentativas de representar o movimento através de desenhos nas paredes de cavernas, a cerca de 30 mil anos, aos primeiros estudos de animação de Winsor McCay, as mudanças técnicas observadas foram radicais. Se por um lado as pinturas pré-históricas possuíam um cunho ritualístico motivado pela caça e portanto pela sobrevivência, as primeiras animações do século XX pareciam ter como pura orientação o entretenimento. De acordo com Barbosa Júnior (2002), “para o desenho e a pintura, a natureza já oferecia os materiais básicos necessários à produção visual. A animação, entretanto, [...] requeria um elevado grau de desenvolvimento científico e técnico para ser viabilizada enquanto arte.” Esse desenvolvimento tecnológico começa a se ver possível quando em 1645 Athanasius Kircher inventa a lanterna mágica. No entanto, foi durante o século XIX que começaram a surgir os primeiros estudos sobre a persistência da visão e também invenções como o fenaquistoscópio e o zootroscópio (Figura 2). Ao final do mesmo século surgiria o invento que possibilitaria realmente que a animação fosse posta em pratica. Em 1906, aproximadamente 10 anos após a invenção do cinema pelos irmão Lumière, os primeiros experimentos com animação seriam feitos por James Stuart Blackton. No entanto foi com Winsor McCay que o desenho animado começou realmente a ganhar corpo.
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Figura 2: Animação antes do cinema. À esquerda um fenaquistoscópio e à direita um zootroscópio. Fonte: <http://animadin.wordpress.com/2010/08/13/animacao-sem-camera-2/> (Acesso em: 28 out. 2010)
Segundo Barbosa Júnior (2002), “McCay já desfrutava de fama e reconhecimento quando resolveu entrar no cinema de animação.” Os quadrinhos Little Nemo in Slumberland e Dreams of a Rarebit Fiend, de sua autoria, eram publicados pelo jornal New York Herald. No ano de 1911, com 40 anos de idade4, após 4 anos de trabalho e exatamente 4 mil desenhos feitos à mão, McCay lançou seu primeiro desenho animado, chamado Winsor McCay: the Famous Cartoonist of the N.Y. Herald5 , mas que ficaria famoso como Little Nemo, devido à aparição dos personagens saídos de suas tirinhas de jornais. De acordo com Barrier (1999) o filme não foi inicialmente pensado para o cinema, no entanto foi transmitido em diversos cinemas e ganhou grande notoriedade. O curta tinha pouco mais de 10 minutos no total e apenas 2 de fato animados.6 O artista produziu ainda dois outros curtas: How a Mosquito Operates (1912)7, com pouco mais de 5 minutos e meio de puro desenho animado, e Gertie (1914)8, no qual o próprio artista interage com um dinossauro animado em um bloco de papel.
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Embora hajam divergências quanto à sua verdadeira data de nascimento.
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Pode ser visto em <http://www.youtube.com/watch?v=kcSp2ej2S00> (Acesso em: 06 nov. 2010).
6 A história
completa mostra como McCay ganhou uma aposta feita à seus amigos na qual conseguiria confeccionar 4 mil desenhos e fazê-los se movimentar. 7
Pode ser visto em <http://www.youtube.com/watch?v=OclJyH1-CKY> (Acesso em: 06 nov. 2010).
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Pode ser visto em <http://www.youtube.com/watch?v=mnuhP2URCoo> (Acesso em: 06 nov. 2010).
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O sucesso dos desenhos animados de McCay despertou o interesse de muitos - dentre os quais diversos cartunistas como ele - pela animação. Durante esses primeiros anos muitos estúdios de garagem surgiram, principalmente ao redor de Nova York. Hanna e Ito (1996, p. 5, tradução nossa) atentam para o fato de que “em 1910 [...] Henry Ford embarcou agressivamente em um conceito de produção revolucionário chamado linha de montagem.” Os próximos anos foram fortemente marcados pelas idéias fordistas de produção em série e aceleração do processo de produção. Durante os primeiros anos do século a indústria como um todo se voltou para esses conceitos a fim de reduzir seus custos e aumentar a eficiência de suas fábricas. A indústria da animação não seguiu senão o mesmo caminho. Os métodos utilizados por Winsor McCay eram muito lentos e custosos para serem aplicados no mercado, principalmente no que dizia respeito à utilização de cenários. Em Gertie the Dinossaur (1914) seu assistente teve de redesenhar o cenário ao fundo do dinossauro em cada quadro da animação. Alguns dos estúdios surgidos durante esses primeiros anos da década de 1910, tinham como intuito principal tornar esse processo o mais rápido possível. A maior parte desses pequenos estúdios traziam diversos nomes vindos dos quadrinhos, que nesse momento eram extremamente populares nos jornais. Cada um desses artistas tentou seus próprios métodos para acelerar a produção de desenhos animados. Mas, segundo Barrier (1999), foi Earl Hurd quem primeiro patenteou a idéia de executar os próprios desenhos sobre o papel de celulóide9, em dezembro de 1914. Apesar da patente, o uso de celulóide passou a ser utilizado por quase todos os estúdios já que era virtualmente impossível existir um controle efetivo sobre o método de produção que cada estúdio utilizava. Do meio para o fim da década alguns estúdios já possuíam um número consideravelmente grande de empregados, mas ainda longe do número de empregados que estúdios como Disney viriam a ter no início dos anos 1930. John Randolph Bray, por exemplo, de acordo com Barrier (1999) ao final de 1916 possuía em seu estúdio 9 animadores, 4 operadores de câmera e trinta artistas assistentes. Esse foi o período em que o 9
Plástico transparente fabricado em folhas, mais conhecido como acetato. O nome correto do material é acetato de celulóide.
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estúdio de Bray começou a produzir, através da Paramount, uma série de desenhos animados de instrução militar para as forças armadas americanas. Talvez por sorte, ou talvez por influência do destino, esse foi exatamente o mesmo período em que Max Fleischer passou a trabalhar para Bray. Fleischer e seu irmão haviam desenvolvido um novo método de produção de desenhos animados que eles chamaram de rotoscopia (Figura 3).
Figura 3: Patente do processo de rotoscopia por Max Fleischer em 1917. Fonte: <http:// cacb.files.wordpress.com/2009/05/listing-ebay.jpg> (Acesso em: 07 nov. 2010)
O método consistia em filmar uma pessoa ou objeto e depois projetar a imagem por trás da prancheta do animador, frame a frame10 . O objetivo dessa técnica é fazer com que o animador não precise se preocupar com o movimento e com o tempo entre os desenhos, já que os mesmos já se encontram pré-definidos nas imagens capturadas, além de produzir movimentos incrivelmente mais realistas. O processo de rotoscopia obviamente ajudou Bray
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Pode ser traduzido como quadro. O termo identifica uma fração de segundo (geralmete 1/24), tempo pelo qual um único desenho é exposto.
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na produção dos filmes militares e mais tarde, com o fim da Guerra, filmes instrucionais para a indústria em geral. Mais tarde, em 1921, dois anos após Bray ter trocado a Paramount pela Goldwyn11 , o estúdio começou a perder importância no mercado. Os irmãos Fleischer resolveram, então, seguir por conta própria e abriram seu próprio estúdio ainda em Nova York. Devido à série Out of the Inkwell - estrelada pelo palhaço Koko e seu ajudante canino Fitz (Figura 4) - que os irmãos haviam trazido junto consigo, o estúdio foi primeiramente chamado Out of the Inkwell Films, Inc., mas logo passou a se chamar simplesmente Fleischer Studios.
Figura 4: Koko o palhaço e seu amigo canino Fitz. Fonte: <http://www.drawingboard.org/files/fle01.jpg> (Acesso em: 07 nov. 2010).
Durante essa década os irmãos produziram outras séries próprias, além da série Out of the Inkwell (1918). Mais tarde os irmãos viriam a produzir séries famosas como Betty Boop (1930), Popeye (1933)12 e Superman (1941), além do longa metragem Gulliver’s Travels (1939), se tornando, nas palavras de Barbosa Júnior (2002, p. 121, tradução nossa) “a grande força a contrapor-se ao domínio total de Disney” na década de 1930.
11 12
Goldwyn Pictures Corporation, que mais tarde unida a dois estúdios forma a MGM (Metro-Goldwyn-Mayer).
Todos os episódios clássicos de Popeye de 1933 a 1943 podem ser vistos em <http://www.youtube.com/user/ Longoaiphong#grid/user/FFAAB6453D54FB10> (Acesso em: 07 nov. 2010)
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Por ter sido abandonada por Bray, a Paramount possuía uma brecha em sua magazine13 semanal. Para preencher essa lacuna, o estúdio decidiu contratar animadores independentes. Dentre esses se encontrava o pequeno estúdio de Pat Sullivan, que de acordo com Barrier (1999) contava apenas com dois animadores, poucos assistentes e um cameraman. Segundo Barrier (1999, p. 29, tradução nossa) “quando Sullivan assinou um contrato com a Paramount em março de 1920, um dos personagens especificados para [aparecerem em] seus desenhos era um gato preto, Felix, que havia sido introduzido (como “Master Tom”) em um dos desenhos da Paramount Magazine chamado Feline Folies 14.” De acordo com Barbosa Júnior (2002), Felix foi na verdade criação de Otto Messmer, o principal animador do estúdio de Sullivan. O autor afirma que “não apenas o aspecto plástico, mas o temperamento, as histórias, as tiradas de humor, o ambiente. Felix era o resultado da visão de mundo desse artista num período efervescente da história.” (BARBOSA JÚNIOR, 2002, p. 76). Em relação ao aspecto formal da concepção do personagem, ele afirma que nada houve de aleatório. De fato, se analisarmos seu texto, podemos perceber que as escolhas feitas por Messmer se justificam em premissas muito semelhantes às levadas em consideração ao elaborarmos um projeto gráfico: Foi uma abordagem racional de ordem estética e funcional. Muito embora as tentativas de solução industrial para a introdução do som e da cor no cinema estivessem avançando, tecnologicamente continuava restrito a poucas experiências. Por isso, o desenho de Felix tinha de considerar as condições técnicas da mídia em preto-e-branco, a agilidade necessária ao processo de confecção em série dos fimes e, ao mesmo tempo. não descuidar do apelo visual. Bem de acordo com as logo conhecidas teorias psicológicas da gestalt, naturalmente se optou por formas arredondadas, reconhecidamente atraentes. Formas circulares seriam também mais fáceis e rápidas para desenhar, recobrir e pintar. Chapar o corpo de preto facilitava a pintura, destacava e dava unidade ao personagem - aliada à forma arredondada, propiciava também melhor harmonia na animação. Essa opção foi particularmente feliz, pois abrandava uma certa dureza nos movimentos do personagem, uma saída radical em busca de gestos e ações que estabelecessem plena identificação e empatia. No cenário predominaria o branco, com desenhos com poucas linhas. Criava-se um contraste com o personagem. Esse conjunto visual sintético se mostrou extremamente eficaz na comunicação de imagens em movimento, reforçando a atenção nas seqüências de gags inteligentemente bem-concebidas.” (BARBOSA JÚNIOR, 2002, p. 77).
As escolhas tomadas por Messmer são tão coerentes com o contexto da época, que na segunda metáde da década de 1920 - auge do sucesso de Felix - seriam adotadas na concepção 13
Programa de cinema que combinava pequenos assuntos, tais como notícias, especulações e entretenimento, dentre essa última categoria, desenhos animados. 14
O curta de 1919 pode ser encontrado em <http://www.youtube.com/watch?v=-ZVlEF9XRR0> (Acesso em: 07 nov. 2010).
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de um personagem que se tornaria um do maiores (senão o maior) ícone da história da animação. Mickey Mouse, o principal personagem dos estúdios Disney, possui aspectos formais claramente baseados no gato de Pat Sullivan. As formas baseadas em círculos, o preenchimento preto de grande parte do corpo, os grandes olhos redondos, o nariz em forma de elipse, até mesmo alguns dos movimentos são características comuns entre Felix e Mickey (Figura 5). O sucesso de Felix foi tamanho que em 1928, a primeira transmissão de TV já feita mostrava o próprio gato em uma versão de 13 polegadas produzido em papel machê.
Figura 5: Semelhanças entre Félix e Mickey. Fonte: <http://www.youtube.com/watch?v=sxailD4Ofq4> e <http://www.youtube.com/watch?v=kCZPzHg0h80> (Acesso em: 15 out. 2010)
2.2 A ILUSÃO DA VIDA: SURGIMENTO E ASCENSÃO DOS ESTÚDIOS DISNEY Ainda no início dos anos 1920 diversos estúdios de cinema começaram a mover suas sedes para Hollywood. Hanna e Ito (1996) relata que no começo de 1920 haviam 20 estúdios de cinema nos arredores de Hollywood. No entanto os principais estúdios de animação permaneciam em Nova York. Apesar disso, os irmãos Walt e Roy fundaram em 1923 seu próprio estúdio em Los Angeles. O estúdio dos irmão Disney, inicialmente chamado Disney
26
Brothers Studio havia conseguido um contrato de distribuição para a série denominada Alice Comedies, uma mistura de desenho animado e live-action 15. Nessa época o estúdio possuía em sua equipe apenas os dois irmãos, sendo Walt o animador e diretor, e Roy o cinegrafista. Em fevereiro de 1924 o estúdio expandiu seu quadro pela primeira vez, contratando um novo animador. Em agosto do mesmo ano Ub Iwerks se juntou ao time. Ub foi o principal animador do estúdio Disney até o início dos anos 30, tendo definido praticamente todo o estilo dos personagens e das animações desse período, incluindo a aparência do coelho Oswald, e mais tarde de Mickey Mouse. No ano de 1925 Hugh Harman e Rudolph Ising, vindos da costa leste, foram contratados, mas deixariam o estúdio pouquíssimos anos mais tarde, para abrir seu próprio estúdio.16 Dois anos mais tarde Disney passou a produzir uma nova série animada, Oswald the Lucky Rabbit, para ser distribuída pela Universal, que ficaria com os direitos da série. Na série, o coelho Oswald usa suas propriedades de desenho animado para se dar bem em certas situações. No episódio Oh What a Knight (1928) (Figura 6) o personagem principal, tal qual o gato Felix, se torce, estica, separa a cabeça dos ombros e até mesmo cede sua espada à própria sombra, que então luta por ele. Isso tudo além de “nadar” no ar e trocar beijos com uma pretensa versão feminina do próprio gato de Pat Sullivan. De acordo com Barrier (1999), durante a segunda metade da década, o estúdio Disney - agora Walt Disney Productions - não era um lugar muito bom para se trabalhar. A pressões impostas por Walt em relação ao tempo, sua forte cobrança em relação à qualidade dos trabalhos e salários não tão altos quanto o trabalho sugeria fizeram com que várias pessoas de sua equipe deixassem o estúdio, e outros, como Rudy Ising fossem demitidos. Nesse mesmo período, Charles Mintz - responsável pela distribuição dos desenhos de Disney junto à Universal - decidiu encerrar o contrato com Disney e produzir ele mesmo os desenhos de Oswald. Para tal, Mintz contratou Ising e Harman - o último ainda trabalhando para Disney - para dirigir a produção.
15
Tipo de filme em que são utilizados pessoas reais.
16
Para mais informações sobre a partida de Harman e Ising veja a seção 3.2.1.
27
Figura 6: O coelho Oswald no desenho Oh What a Knight (1928). Fonte: <http://www.youtube.com/watch? v=JPtxPEG3ltc> (Acesso em: 07 nov. 2010)
Enquanto a equipe de Disney ainda produzia os últimos episódios do coelho Oswald previstos em contrato, Ub Iwerks foi separado do resto para produzir secretamente o primeiro episódio do rato Mickey, Plane Crazy (1928). Quando Harman e alguns outros animadores finalmente deixaram a folha de pagamento de Disney, em maio de 1928, Plane Crazy estava completamente finalizado e The Gallopin’ Gaucho iniciava sua produção. Barrier (1999) conta que ao final de agosto Walt Disney estava viajando para Nova York, a fim de gravar a trilha sonora de Steamboat Willie. Ao fim do mês de setembro ele possuía a versão final e sonorizada do primeiro desenho animado com áudio sincronizado da história. Durante o mês de outubro, ainda em Nova York, Walt gravou ainda a trilha de Plane Crazy (1928), The Gallopin’ Gaucho (1928) e também de The Barn Dance (1929), um quarto desenho de Mickey que havia sido escrito por Disney em Nova York e animado por Iwerks durante o afastamento de Walt.17
17
Os quatro primeiros curtas de Mickey podem ser assistidos respectivamente em <http://www.youtube.com/ watch?v=J6uzf_z_OXg>, <http://www.youtube.com/watch?v=jMoAXM96ZE0>, <http://www.youtube.com/ watch?v=l52CeZ-2K0Q> e <http://www.youtube.com/watch?v=6aeTSoxApnI> (acessados em 07 nov. 2010).
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De acordo com Barrier (1999), Steamboat Willie teve sua première18 realizada em 18 de novembro de 1928. Após as duas semanas de exibição e a excelente resposta da mídia, o curta foi distribuído por todo o país. Em 1929, o estúdio de Walt Disney começou a desenvolver novos episódios para os desenhos animados de Mickey. Ao mesmo tempo uma nova série, batizada de Silly Symphonies, passou a ser produzida. A nova série tinha um foco mais musical e teve como seu primeiro filme The Skeleton Dance (1929). Ao final do verão do mesmo ano, o terceiro Silly Symphonie entrou em produção. Em 1930, Ub Iwerks e Carl Stalling - os principais colaboradores de Disney deixavam o estúdio para trabalhar em seus próprios desenhos animados. Iwerks produziu desenhos de seus personagens Flip the Frog e mais tarde a série Willie Whopper, que foram distribuídos pela MGM, no entanto seus desenhos animados estavam parados no tempo em relação à Disney. Ele continuou produzindo animações para a MGM até meados de 1936. Após isso fez alguns trabalhos para outros estúdios e eventualmente retonou à Disney em 1940. Com a saída de Iwerks, os animadores do estúdio perderam muito da referência visual trazida por ele. Nesse período a equipe total do estúdio possuía em torno de trinta pessoas. Sem um artista forte para liderar a equipe, cada um dos animadores acabava produzindo em seu próprio estilo, o que fez com que durante certo tempo as animações produzidas por Disney perdessem sua unidade. Mesmo assim Walt Disney continuou produzindo suas duas séries. Entre os primeiros Silly Symphonies estava Flowers and Trees (1932). Esse foi o primeiro filme de todos os tempos a ser produzido através do processo de três cores da Technicolor19. De acordo com Barbosa Júnior (2002, p. 108) “Disney assinou um contrato com a Technicolor que lhe deu exclusividade por dois anos no uso do processo de três cores.”
18 19
Primeira exibição.
Processo de "exposição sucessiva", em que cada quadro era capturado três vezes através de um filtro vermelho, um azul e um verde produzindo três filmes preto-e-branco que eram transpostos nas três matrizes coloridas correspondentes. (fonte: http://www.filmreference.com/encyclopedia/Academy-Awards-Crime-Films/ Color-THREE-STRIP-TECHNICOLOR.html#ixzz12Cd02PLW)
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Esse fato claramente ajudou o estúdio a conquistar a posição de maior estúdio de animação da década de 1930. Ao longo da década Disney continuou produzindo sua série Silly Symphonies, da qual muitos desenhos famosos surgiram, entre eles: Three Little Pigs (1933) e The Wise Little Hen (1934) - primeira aparição do Pato Donald. Ao final de 1932 o estúdio já havia mais do que triplicado o número de empregados em relação à 1930. Foi em Three Little Pigs que o estúdio Disney reencontrou o estilo perdido com a partida de Ub Iwerks. A animação dos porquinhos desenhada por Fred Moore, um recémpromovido animador, se mostrou tão realista que segundo Barrier (1999) os três pareciam realmente feitos de carne e osso. Walt Disney começava a criar desenhos animados como ele sempre imaginara, desenhos que trouxessem de fato a “Ilusão da Vida”. De acordo com Barbosa Júnior (2002, p. 105), “Disney institu um programa de treinamento para elevar ao máximo a habilidade de seu pessoal” que segundo Barrier (1999) não foi bem aceito entre os empregados, mas acabou sendo retomado em 1932 a partir da formação de grupos de estudos de artes e anatomia entre ospróprios empregados. De acordo com as palavras de Walt Disney: Nosso estúdio havia se tornado mais como uma escola do que como um negócio[...]. Como resultado, nossas personagens estavam começando a agir e se comportar como pessoas reais. Por causa disso nós pudemos começar a pôr sentimentos reais e carisma em nossas caracterizações. Afinal de contas, você não pode esperar carisma de palitos animados, e é isso que Mickey Mouse era em seus primeiros desenhos. (WALT DISNEY apud BARRIER, 1999, p. 86, tradução do autor)
Em consequência da melhora técnica proporcionada, os diretores do estúdio passaram a apostar em personagens cada vez mais reais e humanos. Quando Disney percebeu que seus personagens já apresentavam uma “ilusão da vida” bastante satisfatória, decidiu apostar suas fichas na produção do que seria considerado20 o primeiro filme de animação em longametragem21 da história. Snow White and the Seven Dwarfs - traduzido para o português como Branca de Neve e os Sete Anões - foi lançado em 21 de dezembro de 1937 (Figura 7).
20
De acordo com Barbosa Júnior (2002, p. 117), houveram outros longa-metragens, porém irrelevantes para a evolução da animação. 21
Termo oposto ao curta-metragem. Filme com 40 minutos ou mais, o que seria equivalente a dois rolos de película. (fonte: http://www.oscars.org/awards/academyawards/rules/83aa_rules.pdf, em 12 de outubro 2010)
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O sucesso foi estrondoso. De acordo com Doyle (2008), o filme arrecadou em torno de 10 milhões de dólares ao longo do mundo. Só a venda de brinquedos até essa data superou os custos de produção do filme, que foram estimados em U$ 1.488.422.74 de acordo com Barrier (1999). Esse passo definitivamente estabeleceu o estúdio de Walt Disney como líder na produção de desenhos animados para o cinema.
Figura 7: Um dos cartazes de lançamento de Branca de Neve em 1937. Fonte: <http://www.flickr.com/photos/ skittleydoo04/3095808662/> (Acesso em: 07 nov. 2010)
2.3 O PEQUENO GRANDE ESTÚDIO: HARMAN-ISING PRODUCTIONS Durante a década de 1930, existiu um pequeno estúdio formados por dois grandes animadores, e que apesar do tamanho produziram obras que concorriam de perto com os desenhos de Disney. Hugh Harman e Rudolph Ising são duas figuras essenciais para o presente trabalho por duas razões: a primeira está ligada ao surgimento do departamento de animação da Warner Bros., grande concorrente da Disney até os dias de hoje e atual detentora das obras do estúdio Hanna-Barbera; a segunda tem relação com a origem do estúdio de
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animação da MGM, que mais tarde levaria à fundação de nosso objeto de estudo, o estúdio de William Hanna e Joseph Barbera. Em 1928, assim que saíram da Disney, Hugh Harman e Rudolph Ising assumiram a produção dos desenhos do coelho Oswald. No entanto, um ano mais tarde a Universal detentora dos direitos de Oswald - decidiu abrir seu próprio estúdio de animação, colocando Walter Lantz no comando. De acordo com Barrier (1999), Hugh Harman já vinha pensando em desenvolver desenhos animados com som há algum tempo. Juntando o desejo de Harman com a necessidade de conseguir alguém que os contratasse para produzir uma série, ele e Ising decidiram fazer seu próprio desenho animado sonoro. O personagem principal seria Bosko (Figura 8), um garoto negro, registrado por Harman em 1928, quando ainda trabalhava para Disney.
Figura 8: Bosko, o garoto negro. Fonte: BARRIER, 1999, p. 154
Apesar das semalhanças do personagem com os primeiros personagens da Disney, o episódio piloto de Bosko se diferencia primeiramente pelo fato de enfocar o diálogo ao invés da música e da trilha sonora. De fato, o episódio de cinco minutos (Figura 9) - que nunca foi mostrado ao público -, lembra muito mais os primeiros episódios do palhaço Koko, produzido pelos Fleischer, devido à interação entre o animador (Rudolph Ising) e seu desenho.
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Figura 9: Rudolph Ising conversa com o personagem Bosko em um episódio piloto. Fonte: <http:// www.youtube.com/watch?v=J_klMz7GVYw> (Acesso em: 17 out. 2010)
Em janeiro de 1930 Harman e Ising, após baterem em muitas portas, fecharam um acordo de 3 anos com Leon Schlesinger. O acordo estipulava que eles produziriam uma série chamada Looney Tunes, um título que imitava Silly Symphonies da Disney 22. Schlesinger por sua vez já havia assinado um contrato de dois anos com a Warner Bros. Após a produção do primeiro desenho da série, estrelado por Bosko - como tantos outros viriam a ser -, a Warner ordenou a produção de outros onze. O estúdio havia publicado The Jazz Singer em 1927, o primeiro filme sonoro da história, e portanto possuía a tecnologia necessária - e dinheiro suficiente - para arcar com a sincronização dos áudios. No meio da primeira temporada de Looney Tunes o sucesso já era tal que a Warner dobrou o contrato com Schlesinger, solicitanto uma nova série chamada Merry Melodies. Por ser dona de várias gravadoras, a Warner tinha interesse em fazer dos desenhos um veículo para a divulgação de músicas. Dessa forma, ao mesmo tempo que as músicas eram divulgadas através dos desenhos, os desenhos se tornavem atrativos por possuírem músicas famosas. A diferença entre as séries se dava basicamente pelo fato de que enquanto Looney Tunes era estrelada por Bosko, Merry Melodies costumava ter personagens diferentes a cada novo episódio. Foi durante esse período, mais precisamente em 1930, que William Hanna teve seu primeiro contato com a indústria da animação. Os tempos eram difíceis para as pessoas
22 A série
“Silly Symphonies” foi traduzida para o português como “Sinfonias Ingênuas”, enquanto “Looney Tunes” se fosse traduzido seria algo como “Harmonias Lunáticas.”
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comuns, e a grande depressão tomava conta de todo o país. Em busca de emprego Hanna acabou batendo na porta de Harman e Ising. Nas palavras dele: Havia pouco protocolo envolvido no negócio de encontrar um emprego. Eu simplesmente entrei no estúdio e perguntei por trabalho à primeira pessoa que encontrei. Fui levado a um homem chamado Ray Katz que era aparentemente uma espécie de diretor de pessoal e ele me introduziu à Hugh Harman e Rudolph Ising. Alguns momentos depois eu havia aceitado uma oferta de trabalho deles para trabalhar como servente para o estúdio a dezoito dólares por semana. (HANNA; ITO, 1996, p. 18, tradução do autor)
Em poucos meses Hanna se tornou chefe do departamento de finalização e utilizava suas noites para ajudar Ising a elaborar os roteiros e piadas. A depressão logo trouxe grandes problemas financeiros também aos grandes estúdio de Hollywood. Em 1933 a Warner não podia mais suportar o preço gasto com cada desenho o que levou à reajustes em seu contrato com Leon Schlesinger. Hugh Harman e Rudolph Ising, não satisfeitos com os novos valores, encerraram o acordo com Schlesinger, entregando o último desenho em agosto daquele ano. A compania de Schlesinger passou a produzir ela mesma os desenhos para a Warner Bros., levando parte da equipe do estúdio Harman-Ising. Hanna e Ito (1996) relatam que aproximadamente 3 meses após o rompimento, Harman e Ising conseguiram um contrato de distribuição diretamente para a Metro-GoldwynMayer, que segundo Barrier (1999) era o maior e mais poderoso entre os estúdio de Hollywood na época. A MGM concordou em pagar U$ 12,500 por cada desenho animado, num total de 13 desenhos por ano durante cinco anos. Ambos os estúdios mantiveram um bom relacionamento, até 1937, quando a MetroGoldwyn-Mayer decidiu abrir seu próprio estúdio de animação. A migração de grande parte dos animadores e diretores para a MGM fez com que o estúdio acabasse fechando naquele mesmo ano.
2.4 O COELHO DOS OVOS DE OURO: O SURGIMENTO DA WARNER BROS. Quando Leon Schlesinger rompeu a parceria com Harman e Ising, em 1933, precisou montar seu próprio estúdio para desenvolver as animações para a Warner Bros. Para tal, começou a contratar animadores experientes de outros estúdios.
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Por nunca ter sido um animador, mas sim um homem de negócios, Schlesinger não possuía capacidade para dirigir seus filmes, por isso contratou Tom Palmer para fazê-lo. No entanto, após produzir algus desenhos rejeitados pela Warner por sua falta de criatividade e muitas vezes coerência, Palmer foi demitido. Schlesinger seguiu contratando diretor após diretor, sem real sucesso. Foi apenas em 1935 que Frederic Bean Avery apareceu às portas de Schlesinger pedindo emprego e identificando a si mesmo como diretor. De acordo com Barrier, o texano de 27 anos foi contratado exatamente na época em que “o estúdio como um todo estava atolado em fazer desenhos medíocres que não carregavam nenhuma semente de nada melhor” (BARRIER, 1999, p. 328, tradução nossa). Avery no entanto foi um dos maiores diretores que o desenho animado já viu. Tex, como ficou conhecido na indústria de cartoons por causa de seu forte sotaque, possuía um humor exagerado, que ele trouxe para seus desenhos. O crescimento do estúdio de Schlesinger e o sucesso de Tex Avery, fez com que o mesmo ganhasse um unidade própria em um prédio separado e com seus próprios animadores. O grupo fez com que o personagem Porky Pig (Gaguinho) se tornasse um sucesso como personagem principal da série Looney Tunes (Figura 10), o que não acontecia desde Bosko23. Tex trouxe para as telas também diversos dos personagens conhecidos até hoje como Looney Tunes, dentre eles Daffy Duck (Patolino), em Porky's Duck Hunt (1937), e Elmer Fudd (Hortelino Troca-Letra), em Egghead Rides Again (1937), inicialmente conhecido apenas como Egghead 24.
23
Hugh Harman possuia o personagem, o que impediu a Warner de continuar a usá-lo.
24
Cabeça de Ovo (tradução nossa).
35
Figura 10: Alguns dos personagens do elenco de Looney Tunes. Fonte: <http://cooldesktopbackgroundsx.com/ wp-content/uploads/2010/08/looney-tunes.jpg> (Acesso em: 9 nov. 2010)
No entanto, a maior contribuição de Tex em relação à criação de personagens é sem dúvida a introdução de Bugs Bunny (Pernalonga) (Figura 10) na série Looney Tunes. Apesar de haverem divergências quanto à primeira aparição do personagem - e portanto quem foi seu criador - Barrier (1999) afirma que sem dúvida foi Tex quem definiu a personalidade do personagem como nós conhecemos hoje: [...] a questão sobre que tipo de personagem Pernalonga seria foi definida por A Wild Hare de Tex Avery, lançado em 27 de julho de 1940. Essa é provavelmente a melhor escolha para o dia de nascimento de Perna25 . O Pernalonga de A Wild Hare não possui diferenças radicais em relação ao Pernalonga de Elmer’s Candid Camera, mas ele é instantaneamente reconhecível como Pernalonga, ao passo que o coelho em Candid Camera não o é. (BARRIER, 1999, p. 361, tradução do autor)
Figura 11: Pernalonga em sua aparição em A Wild Hare (1940), à esquerda, e sua posterior evolução, à direita. Fonte: <http://johnkstuff.blogspot.com/uploaded_images/WildHare_ModelSheet-775227.jpg> e <http://cacb.files.wordpress.com/2010/09/bugsmod-37857.jpg> (Acesso em: 08 nov. 2010)
25
T.A. - no original apenas Bugs.
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Avery trabalhou para Schlesinger até agosto de 1941, quando foi chamado para trabalhar para a MGM. Apesar disso, tanto seus personagens quanto seu estilo de humor foram mantidos nos desenhos que o estúdio continuou a produzir. Em 1944 a Warner comprou o estúdio de Schlesinger - que já estava instalado dentro dos estúdios da Warner em Hollywood -, transformando-o em Warner Bros. Cartoon. Pernalonga eventualmente se tornou o principal personagem da Warner, exercendo seu papel como mascote tanto do departamento de animação como da Warner Bros. como um todo. Ele foi provavelmente o primeiro personagem da história a de fato concorrer em fama com Mickey Mouse, inclusive tendo seu nome eternizado na calçada da fama em Hollywood.
2.5 O RUGIDO DO LEÃO: CRIAÇÃO, CRESCIMENTO E DECLÍNIO DA MGM Em meados de 1937, William Hanna recebeu um telefonema de Fred Quimby, diretor do departamento de desenhos animados da MGM. Quimby estava impressionado pela qualidade do curta To Spring (1936), até então o único desenho dirigido por Hanna. O telefonema era para convidar Hanna, assim como ele estava fazendo com diversos outros empregados do estúdio de Harman e Ising, à um jantar para propor que os mesmos se juntassem ao recém aberto estúdio da MGM: Tanto quanto lembro, nós fomos todos unânimes em nossa aceitação à proposta de Quimby. [...]Eu senti que essa mudança não era apenas crítica à minha carreira em animação, mas também a possível fronteira para um dramático crescimento criativo pessoal. Fred Quimby e a MGM haviam nos convidado para ajudar a criar algo novo e ambicioso no negócio de desenhos animados. Nós fomos desafiados a ser mais que artistas e animadores trabalhando em nossas mesas de desenho. Se nós fizéssemos nossos trabalhos direito, nós estaríamos criando a arquitetura de um jovem estúdio que poderia se tornar um dos principais competidores na animação comercial. (HANNA; ITO, 1996, p. 31)
Quimby havia contratado não apenas a equipe de Harman-Ising, mas diretores, animadores e escritores de diversos estúdios. Entre alguns dos recém-chegados de Nova York, em sua maioria saídos da Terrytoons, estava Joseph Barbera. Essa foi a ocasião em que ele e William Hanna se encontraram pela primeira vez. O primeiro trabalho do estúdio produzindo a série The Captain and The Kids nunca fez sucesso. Consciente de que o estúdio necessitava de algo realmente bom para se manter de pé, Quimby concedeu permissão para que cada diretor criasse seus próprios cartoons. Alguns
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membros da equipe, deixaram a MGM logo no começo devido à decepção com o que estava sendo produzido. Para preencher essa lacuna e tentar retomar o que havia de bom nos desenhos do antigo estúdio, Quimby convidou Hugh Harman e Rudolph Ising a se juntarem à equipe, cada um com sua própria unidade. Logo Hanna se viu sentado frente à frente com Barbera, trabalhando com Ising. Desse ponto em diante os dois nunca deixaram de trabalhar juntos. Enquanto William Hanna que nunca tivera formação artística, nem mesmo havia animado qualquer coisa na vida, havia subido ao posto de diretor por ser o único no estúdio Harman-Ising a entender o suficiente de música para compreender como sincronizar as animações com áudio, Joseph Barbera era seu completo oposto, seu complemento. Assim que se formou conseguiu um emprego em uma companhia de seguro de Nova York. Logo ele arrumou emprego em meio à indústria de animação no estúdio dos irmãos Fleischer pintando e finalizando celulóides 26. Em 1930, apenas uma semana após conseguir o trabalho Joe resolveu sair e logo conseguiu emprego nos estúdios Van Beuren, de Nova York. Aproximadamente seis anos mais tarde o estúdio fechou e Barbera, mais uma vez desempregado, conseguiu trabalho como animador no estúdio Terrytoons, o estúdio de Paul Terry. Durante um ano ele trabalhou para Terry até que, em 1937, foi chamado para fazer parte da MGM. (HANNA; ITO, 1996) Hanna e Barbera passaram a trabalhar sob a direção de Ising. No entanto ambos tinham bastante - para não dizer completa - liberdade de criação, já que o diretor estava envolvido m mais de um projeto ao mesmo tempo. O primeiro trabalho realizado pelos dois em parceria foi Puss Gets the Boots (1940), estrelado pelo gato Jasper e pelo rato Jinx (Figura 12). Mais tarde os mesmo personagens se tornariam Tom e Jerry, dois dos personagens mais marcantes dos desenhos animados.
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Não existe tradução para o termo cel utilizado originalmente para designar uma folha de acetato de celulóide contendo o desenho relativo a um frame. O termo é a contração da palavra celuloid.
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Figura 12: Estudos para Jasper e Jinx, futuros Tom e Jerry, para Puss Gets the Boots (1940), por Joseph Barbera. Fonte: <http://photos1.blogger.com/x/blogger/4525/2278/1600/329840/tjms42T2.jpg> (Acesso em: 16 out. 2010)
Por trabalharem para a unidade de Rudolph, foi ele quem recebeu os créditos em tela pela direção do curta. No entanto, o sucesso do desenho, juntamente com a primeira indicação ao Academy Award27 do departamento de animação da MGM, fez com que os dois ganhassem sua própria unidade de produção. Pouco depois, em 1941, tanto Harman quanto Ising deixaram a MGM. No mesmo período Tex Avery, o prodígio diretor dos estúdios Schlesinger, foi contratato para fazer parte do time da MGM, ganhando também sua própria unidade. As unidades de Tex Avery e de William Hanna e Joseph Barbera passaram a ser as principais unidades de trabalho. De acordo com Barrier (1999) as duas unidades operavam praticamente como estúdios diferentes, cada um com seus próprios escritores, animadores, personagens e estilos. Durante os anos em que esteve na MGM, Tex Avery nunca se preocupou em produzir personagens marcantes, seu foco estava nas histórias, nas piadas e principalmente no timing28
27
Conhecido no Brasil como Oscar, é um prêmio entregue anualmente aos maiores destaques do cinema naquele ano, em diversas categorias. O prêmio foi concebido em 1927 e a primeira cerimônia realizada em 1929, mas foi só em 1932 que a academia passou a premiar desenhos animados. 28
Não existe tradução literal para o português. No entanto de acordo com o dicionário Oxford da Língua Inglesa (http://oxforddictionaries.com) o termo se refere à escolha, julgamento ou controle de quando algo deve ser feito.
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certo para provocar risadas. Ainda assim alguns de seus personagens ficaram famososo como o cachorro Droopy e a garota de Red Hot Riding Hood (1943).
Figura 13: À esquerda a garota de Tex Avery e à direita o cachorro Droopy. Fonte: <http:// www.leconcombre.com/droopy/img/tex-girl-wallpaper.jpg> e <http://www.emergiblog.com/wpcontent/uploads/2007/08/droopydog3.jpg> (Acesso em: 16 out. 2010)
Durante os anos 1950 Tex chegou a arriscar alguns cartoons com um estilo visual mais moderno, lembrando de certa forma os trabalhos realizados pela UPA. Entre esses títulos estão Symphony in Slang (1951) e Deputy Droopy (1955), empregando nesse último o animador Ed Benedict como designer de personagens e layout, contratado em 1952 para a própria unidade de Avery e que mais tarde será um dos principais designers de personagens dos primeiros anos do estúdio Hanna-Barbera.
Figura 14: Modelos do personagem Droopy feitos por Ed Benedict. Fonte: <http://photos1.blogger.com/blogger/ 6884/1394/1600/prod282.jpg> (Acesso em: 16 out. 2010) e AMIDI, 2006, p. 60.
Durante os anos que se seguiram Hanna e Barbera continuaram produzindo a série Tom e Jerry. Ao longo de 17 anos de trabalho a dupla fez poucos trabalhos além da série, entre eles estão alguns filmes animados de treinamento para as forças armadas americanas,
40
em 1943. Já os dois personagens participaram de aproximadamente 150 episódios e alguns filmes onde contracenavam com atores reais. Antes de Quimby se aposentar eles haviam ganho 7 Academy Awards. Em 1955, Fred Quimby se aposentou e deixou Bill e Joe em seu lugar, como diretores gerais do estúdio. Pouco depois, em 1957, a MGM decide fechar seu departamento de desenhos animados. Segundo a revista Times (1960, tradução nossa) a decisão foi tomada “durante uma das ondas de pânico periódicas de Hollywood”.
2.6 REDEFININDO AS FORMAS: UPA E O CARTOON MODERNO Ao mesmo tempo em que Branca de Neve estava sendo finalizado para ir para os cinemas, Walt Disney já estava trabalhando em seus próximos filmes. Em consequência disso a equipe de produção foi aumentada para dar conta de tamanha produção. Segundo Amid Amidi: Durante o alto da Depressão, em meados da década de 1930, quando trabalhos pelo país eram escassos, Walt Disney estava expandindo seu estúdio em ritmo acelerado, contratando mais pessoal para produzir seu filme, A Branca de Neve e os Sete Anões (1937). O estúdio conseguiu atrair um incrível grupo de artistas de todo o país, muitos dos quais educados em escolas de artes, com ambições nas belas artes e apenas haviam aceitado os empregos em animação por causa da necessidade econômica durante a depressão. (AMIDI, 2006, p. 13, tradução do autor)
Grande parte desses artistas se tornaram decepcionados com o extremo realismo e paletas de cores limitadas impostos por Disney. O descontentamento se tornou ainda pior quando Disney resolveu gratificar seus empregados que haviam trabalhado em Branca de Neve com aumentos de salário. Walt decidiu beneficiar mais aqueles que mais mereciam, no entanto a falta de contato com sua equipe - que de acordo com Thomas e Johnston (1984) já beirava a mil funcionários - fez com que os aumentos ocorressem de acordo com indicações, o que levou a uma incoerência salarial pela qual um empregado podia ganhar até o dobro de um outro fazendo exatamente o mesmo trabalho. O lançamento de Pinnochio (1940), que não chegou perto do sucesso causado por Branca de Neve, somado à mudança de todo o estúdio para uma nova sede, provocou uma drástica diminuição nos cofres do estúdio, dessa vez obrigando o estúdio a realizar cortes nos salários. Diferente de Roy, que segundo Barrier (1999, p. 283) diminuiu em 10% os salários
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de todo o setor administrativo igualmente, Walt decidiu cortar os salário daqueles que ele achava estarem sendo muito bem pagos. Essa nova decisão arbitrária em relação aos salários juntamente com a negativa de Disney em discutir a situação com a associação dos empregados levou a uma greve de aproximadamente 300 dos funcionários em 28 de maio de 1941. Após esse incidente centenas de funcionários foram demitidos ou deixaram o estúdio, muitos dos quais nunca mais voltaram a trabalhar com animação novamente. Muitos acabaram seguindo carreira em estúdios diferentes ou por conta própria. Em 1942, homens de todos os estúdios de animação de Hollywood aderiram ao serviço militar. A maioria daqueles soldados não foram colocados em unidades de combate, ao invés disso passaram a trabalhar em filmes animados voltados ao treinamento militar (Barrier, 1999, p. 501). Existiam basicamente duas maneiras de trabalhar para os militares: a primeira delas era de fato se tornar um militar a serviço de uma das unidades instituídas para o desenvolvimento de animações, a segunda forma era ter seu estúdio designado pelos militares para produzir as animações. Zach Schwarts, David Hilberman e Stephen Bosustow, artistas graduados, saídos da Disney após a greve de 1941, estavam agora trabalhando para diferentes estúdios, fazendo trabalhos para os militares. Sentindo a necessidade de fazer algo mais artístico por eles mesmos, eles alugaram juntos um pequeno ateliê onde podiam se encontrar e pintar sempre que tivessem vontade. À partir de um pequeno trabalho surgido em 1943, os três resolveram se unir de fato e criaram a Industrial Films, com o intuito de fazer desenhos animados em seu próprio estilo. O primeiro trabalho importante produzido pelos três foi Hell-Bent for Election (1944) (Figura 14), filme apoiando a re-eleição do presidente Franklin Delano Roosevelt. O fato de fazer filmes políticos fez com que os três começassem a repensar o nome do estúdio. Hilberman apud Barrier (1999, p. 511) diz que “nós começamos a visualizar nós mesmos como um estúdio que trabalharia com filmes políticos, para a união29 . O nome ‘Industrial Film’ começou a ser um peso, e nós começamos a pensar em termos de Union Films, e de Union Films veio ‘United’.” A UPA - United Productions of America - continuou
29
Referindo-se ao governo.
42
tendo as agências do governo como seu principal cliente até 1947, quando os atos do governo em relação ao pós-Guerra começaram a diminuir.
Figura 14: Algumas cenas de Hell-Bent for Election (1944). Fonte: <http://www.youtube.com/watch? v=xhykCuN_BpY> (Acesso em: 17 out. 2010)
Em 1948 a UPA conseguiu um contrato de produção de curtas para o cinema. Nesse período Schwartz e Hilberman já haviam deixado a UPA há aproximadamente dois anos, deixando o estúdio nas mãos de Bosustow. No entanto o estúdio já havia crescido o suficiente para não depender mais de seus fundadores. Durante o fim da década de 1940 e toda a década de 1950 a UPA produziu filmes para a Columbia, tanto de curta como de longa metragens. O estúdio produziu ainda dezenas de comerciais e desenhos para a televisão. Apesar de possuir um foco bastante maior na história do que nos personagens em si, a UPA produziu alguns tipos de sucesso como Mr. Magoo (Figura 15), o qual fez sua primeira aparição em Ragtime Bear (1949), e Gerald McBoing Boing (Figura 16), que apareceu pela
43
primeira vez em 1951 em um curta com o próprio nome do personagem baseado em uma história do Dr. Seuss 30.
Figura 15: O personagem Mr. Magoo em duas cenas de sua série. Fonte: <http://www.collider.com/uploads/ imageGallery/Mr_Magoo_DVD/mr._magoo__1_.jpg> e <http://www.collider.com/uploads/ imageGallery/Mr_Magoo_DVD/mr._magoo__2_.jpg> (Acesso em: 17 out. 2010)
Figura 16: Estudos para os personagens de Gerald McBoing Boing (1951). Fonte: <http:// www.animationarchive.org/pics/upamod01-big.jpg> (Acesso em: 17 out. 2010)
A quebra completa com os padrões estabelecidos por Disney colocou a UPA em um novo patamar. Amidi lembra que:
30
Theodore Seuss Geisel (1904-1991). Escritor de histórias infantis que foi o criador do personagem Grinch.
44
Quando o animador da Disney e MGM Preston Blair escreveu seu clássico manual de animação, simplesmente entitulado Animation, ele [...] convenientemente quebra a construção dos personagens em bolas, ovais, ovos e formas de pêra. As características e detalhes do rosto estão ancorados em formas circulares via linhas centrais que indicam o posicionamento. Essa abordagem de linhas centrais para basear o design dos personagens penetrou na indústria de animação nos anos 1930 e 1940. (AMIDI, 2006, p. 9, tradução do autor)
A UPA foi a primeira a desafiar essa abordagem adotada por Disney e todos os demais estúdios de animação da época. Personagens e cenários possuem uma flexibilidade sem igual, que em sua simplicidade conseguem passar a mensagem de forma efetiva. Ao pegarmos como exemplo Gerald McBoing Boing (1951) podemos perceber que toda a atmosfera do desenho se molda de forma a capturar a emoção da cena. Tanto background31 quanto persongens mudam suas formas e cores afim de expressar a mensagem desejada (Figura 17), ainda assim sem se descaracterizar ou provocar estranheza na audiência. O background nem se quer existe de fato, como nos desenhos Disney, cada elemento é um objeto completamente integrado à cena como um todo32.
Figura 17: A cor de Gerald McBoing Boing e os planos de fundo mudam de acordo com o humor da cena. Fonte: <http://version1.itsnicethat.com/images/529.jpg> (Acesso em: 17 out. 2010)
31
Imagem de fundo.
32 A seção
3.1 desse trabalho aborda o assunto mais profundamente.
45
Apesar da UPA não possuir um estilo único, todos seus trabalhos carregavam um estilo próprio e completamente diferente do que vinha sendo produzido. Isso fez com que o estúdio ditasse a nova tendência nas produções hollywoodianas. De acordo com Michael Barrier: [...]UPA foi, no início dos anos 1950, exatamente o que o estúdio de Disney havia sido nos anos 1930: o ponto de referência, o estúdio com o qual qualquer outro estúdio automaticamente comparava seus cartoons, mesmo que tal estúdio não estivesse tentando emular os filmes da UPA. (BARRIER, 1999, p. 537, tradução do autor)
Essa influência se tornou ainda mais visível ligeiramente mais tarde com o advento da televisão. O enfraquecimento do mercado de desenhos animados para o cinema durante os anos 1950, fez com que a UPA eventualmente também migrasse para a nova mídia. Em 1950 a UPA abriu uma filial em Nova York para prouzir exclusivamente comerciais para a TV. Infelizmente, por questões financeiras a filiai foi fechada em 1959. Por questões contratuais com a Columbia a UPA passou a produzir cada vez menos desenhos novos, até ficar presa à produção da série Mr. Magoo apenas.
46
3 NA TELA DA TV Após o fim da Segunda Guerra Mundial um incontável número de americanos se casou e se moveu para as áreas metropolitanas, à fim de conseguir trabalhos. Esse acontecimento, somado ao fim da Grande Depressão vivida pelos EUA desde a crise de 1929, provocou um explosão demográfica nunca antes vista. O número de crianças nascidas nesse período superou qualquer outro período da história americana. Entre 1946 e 1964, 79 milhões de crianças nasceram nos EUA.33 Esse evento ficou conhecido como Baby Boom. O surgimento da televisão nesse mesmo período foi uma revolução no modo de vida americano. A própria estrutura da sala de estar agora tinha que se adaptar à presença de um novo móvel - que logo se tornou o principal. O tempo livre dos membros da família, que até então era gasto com suas próprias formas de lazer, passou a ser gasto em conjunto, em frente à televisão. Família e amigos se reuniam à frente da pequena tela preto-e-branco e assistiam àquilo que o pequeno aparelho tinha para dizer e mostrar. Principalmente para as famílias suburbanas, a televisão de tornou a principal forma de entretenimento, já que era mais barato e fácil possuir uma televisão em casa do que se deslocar ao centro da cidade para assistir à filmes, noticiários ou programas de humor no cinema, o que era comum até então. Michael Barrier lembra que durante sua infância, no fim dos anos 1940 e início do 1950 era comum ir toda semana à matinê de sábado para assistir à um ou dois desenhos animados (BARRIER, 1999, p. ix). O alcance da televisão tomou proporções gigantescas durante os primeiros 10 anos com a proliferação dos canais de televisão nos EUA. Enquanto em 1946 apenas seis estações de TV existiam em todo o país 34, atingindo menos de 0,1% da população, em 1955, 64% das casas americanas possuíam um aparelho de TV e 458 emissoras se espalhavam pelo território 33
Fonte: http://geography.about.com/od/populationgeography/a/babyboom.htm
34
Três em Nova York e uma para cada em Schenectady, Chicago e Filadélfia. (EDGERTON, 2007, p. 102)
47
do país. Dados precisos a esse respeito aparecem na tabela a seguir, retirada do livro The Columbia History of American Television (2007), de Gary R. Edgerton. Tabela 1: Número de aparelhos de televisão por habitante nos EUA entre 1946 e 1955. Nº de TVs nos EUA
Percentual de Casas com TV
Nº de Estações de TV
1946
20.000
0,02
6 em 4 cidades
1947
44.000
0,04
18 em 11 cidades
1948
350.000
0,66
30 em 29 cidades
1949
1 milhão
2,0
69 em 57 cidades
1950
3.9 milhões
8,1
104 em 65 cidades
1951
10.3 milhões
21,5
107 em 65 cidades
1952
15.3 milhões
32,0
108 em 65 cidades
1953
20.4 milhões
42,5
198 em 241 cidades
1954
28.5 milhões
59,4
380 (não disponível)
1955
30.5 milhões
64,0
458 (não disponível)
Fonte: EDGERTON, 2007, p. 103.
A constituição de um modo de pensar americano foi fortemente influenciado pela televisão. Com a criação de redes nacionais como ABC, NBC e CBS, todo o país passou a ter acesso a um conteúdo homogêneo, diferente das programações de rádio que possuíam um conteúdo bastante local. Apesar de grande parte do conteúdo dos canais ainda ser distribuído por subsidiárias regionais, muito desse conteúdo local era apenas repetição do que era transmitido em todo o país, principalmente quando nos referimos à programas de entretenimento. Outro ponto importantíssimo a ser ressaltado em relação ao desenvolvimento da mídia televisão é a lógica comercial da mesma. Diferente do cinema, onde a pessoa deve comprar sua entrada na sessão para assistir ao programa transmitido, a televisão possui uma programação aberta, sem um retorno financeiro direto à emissora por parte do consumidor. Dessa maneira os canais de televisão, para sobreviver, vendem espaços em meio à sua programação para anunciantes divulgarem seus produtos, tal qual as emissoras de rádio. Esse tipo de comercialização implica uma valorização dos horários com um maior número de telespectadores, já que quanto mais pessoas são atingidas, mais caro custa esse
48
espaço na TV. Consequentemente as empresas que tinham a oportunidade de divulgar seus produtos nos melhores horários acabavam tendo um melhor reconhecimento junto ao público, criando uma relação de confiança que gerava um retorno do público em termos de compra. Essa nova forma de publicidade gerou nos EUA um novo ramo de negócio, o de estúdios especializados na produção de comerciais para a TV.
3.1 A ESTÉTICA DA ANIMAÇÃO PARA TELEVISÃO A abertura desse novo mercado fez surgir aproximadamente 3 dúzias de estúdios de animação entre a metade dos anos 1940 e o fim dos anos 1950 - grande parte especializada na produção de comerciais -, bem como a migração de estúdios vindos do mercado de cinema, como foi o caso da UPA. O estilo visual bastante característico dos desenhos desse período, principalmente no contexto dos comerciais de televisão, tem suas razões. A influência que a UPA possuía sobre as demais produtoras nesse período está entre os principais fatores da estética da animação que acaba sendo produzida para a televisão. Assim como no cinema, seu estilo acabou se destacando na nova mídia, levando os demais estúdios a emular tanto soluções técnicas quanto estéticas. No entanto o fator preponderante do aspecto visual das animações televisivas se deve ao fato de que a animação era vista de uma forma completamente diferente daquela no interior das salas de cinema. Ao longo de seu estudo, Amidi (2006) ressalta como os comerciais de TV demandavam que os animadores se comunicassem com sua audiência de forma muito mais limitada, tanto em questão de tempo quanto de tamanho e cores. Os comerciais de aproximadamente um minuto eram, durante quase toda a década de 1950, transmitidos em preto-e-branco. A falta de padronização do tamanho e formato dos televisores também era um fator crítico. Apesar de existirem desde 1951 aparelhos de 30”35 - que mesmo para os padrões atuais não são tão pequenos - grande parte dos aparelhos possuíam entre 7” e 14”, com formatos de tela variando de retângulos à circulos, sem um padrão definido pela indústria. Mesmo as telas maiores eram bastante pequenas se comparadas às telas de cinema. Por esses motivos os comerciais “demandavam uma linguagem graficamente simples que pudesse ser lida rapidamente pelos olhos” (AMIDI, 2006, p. 12, tradução nossa) ao 35
Fonte: <http://www.earlytelevision.org/dumont_ra119.html> (Acesso em: 3 nov. 2010)
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mesmo tempo em que mantinham seu apelo gráfico e comunicavam sua mensagem principal, a venda do produto em questão. “Como resultado, personagens eram cada vez mais projetados com grossas linhas externas para legibilidade e frequentemente com cabeças e atributos faciais desproporcionalmente grandes para acentuar suas expressões, possibilitando que telespectadores se relacionassem emocionalmente com eles.” (AMIDI, 2006, p. 12, tradução nossa).
Existem algumas características que grande parte dos desenhos animados desse período carregavam e que podem ser categorizadas para melhor exemplificar o estilo visual do período. O primeiro ponto comum diz respeito ao design dos personagens, que deixou de ser baseado em esferas e linhas centrais, como no caso de desenhos no estilo Disney. Segundo Amidi (2006), nesse período designers abraçaram o fato de que seus personagens eram nada mais que um conjunto de linhas e formas desenhados e vistos em duas dimensões e por isso deveriam ser tratados como tal. A simetria espacial é praticamente abandonada, sendo os personagens dificilmente vistos em posições completamente frontais ou laterais. Formas completamente orgânicas se misturam perfeitamente bem a elementos geométricos e bastante angulares. Essas diferenças na concepção são mais claramente percebidas se compararmos a construção de personagens desse período, como do desenho Tom Terrific (1957) (Figura 18) do estúdio Terrytoons, com o de produções anteriores, como Tom e Jerry (Figura 19) da MGM, por exemplo.
Figura 18: O personagem Tom Terrific e seu cão, produzidos pelo estúdio Terrytoons. Fonte: <http:// www.michaelspornanimation.com/splog/wp-content/c/Tom%20Terrific.jpg> (Acesso em: 3 nov. 2010)
50
Figura 19: Modelo de contrução Disney aplicado na construção dos personagens Tom e Jerry. Fonte: BLAIR, 1947, p. 4.
Um segundo ponto diz respeito à animação em si. Grande parte das animações desse período utiliza-se da técnica conhecida como “animação limitada” (ou animação planejada). Utilizada inicialmente pelo diretor Ward Kimball, dentro da própria Disney, esse tipo de técnica consiste em manter a maior parte do personagem estático, enquanto apenas o necessário é animado. Apesar de Amidi (2006) afirmar que Kimball se utilizou desse tipo de animação como um recurso estilístico, essa técnica foi adaptada pela a indústria como forma de reduzir custos, mantendo as partes estáticas em camadas separadas das animadas, o que barateava a produção dos filmes por eliminar as etapas de redesenho. Infelizmente não é possível apresentar exemplos para comparação através da presente mídia. Como última das características mais recorrentes podemos citar o layout e pintura dos backgrounds. Diferente das animações produzidas até esse período, cenários e backgrounds não eram mais tão detalhados, com cores e iluminação realista. Pelo contrário, para os artistas desse período, segundo Amidi (2006, p. 11), “não era mais um erro mostrar sua técnica.” As grossas pinceladas e os “erros” de preenchimento passaram a ser cada vez mais visíveis e as perspectivas cada vez menos precisas.
51
Essas características obviamente só se manifestam quando existe um cenário, em alguns casos o background se resume a um tom chapado sobre o qual os personagens interagem. As diferenças entre o estilo visual dos anos 1950 e das animações anteriores feitas para o cinema podem ser facilmente percebidas se compararmos por exemplo um cenário de Branca de Neve (1937) da Disney (Figura 20), com o de Destination Earth (1956) produzido pela John Sutherland Productions (Figura 21). Na primeira é possível perceber claramente as nuances de luz e sombra, as cores bastante realistas e o detalhamento de cada camada do cenário, chegando a haver um desfoque da camada mais próxima, simulando a própria visão de uma câmera real. Já na segunda, as cores são mais vivas e chapadas, com traços bastante simples e uma perspectiva que remete ao cubismo.
Figura 20: Um dos cenários do filme “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937). Fonte: <http:// 2.bp.blogspot.com/_QdHn8FT7SdY/SL-M8C44L2I/AAAAAAAADpc/tLAnx4Ux_Mw/s400/ snowwhite001sm.jpg> (Acesso em: 05 nov. 2010)
Figura 21: Cenários do curta “Destination Earth” (1956) produzido pela John Sutherland Productions. Fonte: <http://www.youtube.com/watch?v=1_6DjkrsPOw> (Acesso em: 05 nov. 2010)
52
3.2 A MIGRAÇÃO DO CINEMA PARA A TV Durante os primeiros anos a escassa programação da televisão se concentrou na produção de conteúdo para o público adulto, que em geral só começava a chegar em casa ao final da tarde. Por esse motivo não existia muita preocupação por parte das emissoras em manter uma programação regular antes desse horário. Desenhos animados originalmente transmitidos no cinema começaram a ser adquiridos pelos canais a fim de preencher lacunas na programação. “Tal qual ocorria nos cinemas, os desenhos animados eram exibidos a qualquer hora na TV, preenchendo o tempo disponível entre um programa e outro, quando não conseguiam completar a cota de comerciais para aquele determinado horário.” (FURQUIM, 2010).
Com o passar dos anos, a grade televisiva foi sendo preenchida e a programação foi se tornando cada vez mais orientada aos públicos de cada horário. Logo alguns canais passaram a direcionar parte da programação para o público infantil. A primeira tentativa de produção de desenho animado exclusivo para televisão foi em 1950 com a série Crusader Rabbit (Figura 22), transmitida por algumas subsidiárias da rede NBC. A série foi transmitida em 195 episódios de 5 minutos, em preto-e-branco, durante aproximadamente um ano. A Television Arts Productions, criada exclusivamente com o intuito de produzir a série, desapareceu assim que a mesma parou de ser produzida.
Figura 22: Crusader Rabbit (1950), o primeiro desenho animado produzido exclusivamente para a TV. Fonte: <http://4.bp.blogspot.com/_fgS9cGBJpxk/S361PVVWn7I/AAAAAAAAVzc/-5WqbqaOr5E/ s400/01.jpg> (Acesso em: 03 nov. 2010)
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Após Crusader Rabbit e até 1957, nenhum outro material dessa natureza foi produzido para a televisão devido aos altos custos atrelados à criação de um desenho animado. Nenhuma rede de TV estava disposta a sustentar um estúdio inteiro e poucos eram os estúdios de animação para o cinema que tinham interesse em migrar para a nova mídia naquele momento. De acordo com Hanna e Ito (1996), cada curta de 7 minutos da série Tom e Jerry que a MGM produzia tinha um custo de U$ 35.000,00. Em 1950, pouco mais de 8% da população possuía aparelhos de TV, o que fazia com que o comercial de televisão não fosse tão popular entre os anunciantes e mantinha o valor para anunciar muito baixo, não cobrindo os custos de produção de um curta animado. Em 1949, a Suprema Corte americana criou uma lei que proibia a prática - bastante comum na época - de vender filmes de longa metragem atrelados à aquisição de curtas. Isso deu liberdade aos donos de cinema de escolher se comprariam os curtas ou apenas o filme principal. Algumas séries de sucesso, como o caso de Tom e Jerry continuaram a ser exibidas mesmo separadamente. No entanto, diversas produções que dependiam de parte do lucro dos filmes para garantir seu sustento acabaram desaparecendo. Esse fato, unido ao interesse cada vez menor da população em ir ao cinema - em função da televisão -, fez com que muitos estúdios simplesmente abandonassem a produção de animação para a grande tela. O último a deixar esse mercado foi Walter Lantz - criador do personagem Pica-Pau - em 1972. De acordo com Lantz (apud Lenburg 2009, p.7, tradução do autor) “nós não paramos de fazer cartoons porque a popularidade deles morreu, mas por que não podíamos pagar para produzí-los.” Durante essa década, até mesmo Disney teve que se render à nova mídia, produzindo especiais de fim de ano para a ABC a fim de ajudar a arcar com os custos da construção da Disneylândia. Em 1953 a CBS estreou o primeiro programa da televisão completamente para o público infantil. Barker Bill’s Cartoon Show (Figura 23) era apresentado durante a semana, com programas de 15 minutos mostrando os desenhos que o estúdio Terrytoons havia produzido para o cinema. Seguindo o exemplo muitos canais criaram seus próprios shows infantis. Lenburg (2009, p.8, tradução do autor) lembra que “em janeiro de 1955 mais de 400 estações de televisão estavam transmitindo desenhos animados.” Fossem apresentados por
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palhaços, heróis ou fantoches, os programas continuavam transmitindo os mesmos desenhos que haviam sido feitos para o cinema anos atrás.
Figura 23: Cena de abertura do programa Barker Bill’s Cartoon Show. Fonte: <http://tviv.org/w/images/1/10/ Barkerbill.jpg> (Acesso em: 03 nov. 2010)
Durante esses anos a maior parte dos canais estabeleceu uma faixa de horários fixa para o público infantil, geralmente aos sábados de manhã, que é mantida até hoje por alguns canais36. Por esse motivo desenhos clássicos como os da Hanna-Barbera ou Warner Bros. (mesmo que esses não tenham sido produzidos originalmente para a TV) são até hoje conhecidos como Saturday Morning Cartoons, nos EUA.
3.3 HANNA-BARBERA CHEGA AO MERCADO Em 1957 a MGM percebeu que não valia mais a pena manter seu próprio estúdio de cartoons. A grande biblioteca de desenhos animados que estúdio havia produzido durante seus 20 anos de existência era vasta o suficiente para ser redistribuída no circuito de cinema, ainda que por preços mais baixos que os originais. Em junho desse ano a MGM fechou as portas de seu estúdio de animação. Os dois diretores chefes do departamento de animação da MGM, agora desempregados, decidiram manter sua parceria, que vinha dando certo durante os 17 anos em que produziram a série Tom e Jerry. Juntando o dinheiro que possuíam, ambos alugaram um pequeno estúdio em Hollywood, onde podiam produzir seus próprios desenhos. e começaram
36
Esse formato também é utilizado hoje por grande parte dos canais abertos no Brasil.
55
a trabalhar no conceito de seu primeiro projeto. Por decisão de ambos, o estúdio seria o primeiro da história americana a se dedicar exclusivamente à produção para a televisão. De acordo com
o próprio William Hanna “não existiam precursores nesse campo, nenhum
precedente estabelecido de métodos de produção ou venda - e nenhuma garantia de sucesso.” (HANNA; ITO, 1996, p. 80, tradução do autor). Apesar de Lenburg (2009), Amidi (2006) e Furquim (2010) afirmarem que o processo de animação limitada já existia, e isso ser de fato comprovado pelas próprias produções da época, como Gerald McBoing Boing (1951) por exemplo - já citado nesse trabalho37 -, Lenburg (2009) faz questão de ressaltar que foi a dupla que realmente otimizou o processo como um todo. O que Joe Barbera e Bill Hanna fizeram foi reduzir não só o número de desenhos por pé de rolo de filme38 - de 16 para uma média de 1 ou 2 -, mas cortar etapas inteiras do processo de produção, planejando ao máximo as poses principais de cada personagem com o intuito de economizar cada frame possível. Eu pouco tempo ambos criaram uma nova dupla de personagens, dessa vez um gato e um cachorro, que ao contrário de Tom e Jerry, eram amigos inseparávis. Seus nomes eram Ruffy e Reddy 39. O desenho, que narrava algumas aventuras da dupla, utilizava repetidamente recursos de zoom e close-up, se valendo ocasionalmente de planos abertos para dar ritmo à sequência. Dessa forma economizando desenhos desnecessários para investir melhor em cenas mais expressivas. Como William Hanna relembra: Os desenhos chave para essas tomadas eram feitos para ilustrar os personagens em poses expressivas o suficiente para enfatizar seu diálogo. [...]Nós eliminamos backgrounds detalhados que nós sabíamos que não apareceriam propriamente na tela da TV e desenvolvemos traços mais simples porém coloridos e com apelo visual para nossos personagens. (HANNA; ITO, 1996, p. 85, tradução do autor).
O que Hanna e Barbera estavam criando era praticamente uma linha de produção de desenhos animados. Após diversas negociações a dupla conseguiu que a NBC comprasse 5 episódios do desenho a um custo de menos de U$ 3.000 por episódio, valor mais de 10 vezes menor do que a dupla tinha para produzir cada desenho na MGM. Em contrapartida os 37
Ver página 43.
38
Cada pé (30,5 cm) de filme possui 16 frames. Como projetores movem os filmes à 24 frames por segundo, são necessário 1,5 pés de filme para criar cada segundo de animação. Fonte: <http:// entertainment.howstuffworks.com/movie-projector2.htm> (Acesso em: 03 nov. 2010) 39
No Brasil Jambo e Ruivão, respectivamente.
56
episódios tinham aproximadamente metade da duração de um desenho de Tom e Jerry. The Ruffy and Reddy Show (Figura 24) estreou na NBC em dezembro de 1957. A recompensa pelo esforço veio quando, após a exibição do 5 primeiros episódios, a rede de TV assinou um contrato de 5 anos de produção da série.
Figura 24: Celulóide original de um dos episódios de The Ruff and Reddy Show (1957). Fonte: <http:// farm4.static.flickr.com/3245/3001317563_7caeefe09b.jpg> (Acesso em: 21 set. 2010)
O sucesso foi grande o suficiente para que menos de um ano depois o estúdio conseguisse que a Kellogg’s - fabricante de cereais matinais - patrocinasse seu próximo show, The Huckleberry Hound Show (Figura 26), estrelado pelo cão azul chamado Huckleberry - ou apenas Huck -, que ficou conhecido no Brasil como Dom Pixote. O programa de meia hora era composto por 3 desenhos de aproximadamente 7 minutos cada: o próprio desenho de Dom Pixote, Pixie and Dixie and Mr. Jinx40 e Yogi Bear - que no Brasil ganhou o nome de Zé Colméia (Figura 27). O último ganhou seu próprio programa em 1960, acompanhado por Yakky Doodle e Snagglepuss41, sendo substituído pelo desenho Hockey Wolf42 no programa de Dom Pixote.
40
No Brasil Plic, Ploc & Chuvisco.
41
O Patinho Duque e Leão da Montanha em português, respectivamente.
42
No Brasil esse desenho ficou conhecido como Joca & Dingue-Lingue, sendo Joca o nome do lobo originalmente chamado Hokey e Dingue-Lingue seu pequeno parceiro.
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Figura 26: Os três desenhos de The Huckleberry Hound Show em 1960. Da esquerda para a direita: Don Pixote, Joca & Dingue-Lingue e Plic, Ploc & Chuvisco. Fonte: <http://www.youtube.com/watch? v=bfqOXB1mKYo>, <http://www.youtube.com/watch?v=3JjBK5AoCKU> e <http:// www.youtube.com/watch?v=HOBmDqLxP1g> (Acesso em: 9 nov. 2010)
Figura 27: A turma do Zé Colméia. Fonte: <http://www.infantv.com.br/zecolmeia.jpg> (Acesso em: 9 nov. 2010)
O programa foi notável pelo grande número de primeiros lugares que ele colecionou. Sennett (1989, p. 55, tradução do autor) cita que “‘Dom Pixote’ se tornou a primeira série de desenho animado a receber um Emmy Award por realizações de destaque na programação infantil”. Beck (2007, p. 39) não só afirma que “é justo dizer que ele foi a primeira grande celebridade da pequena tela,” como defende essa idéia trazendo dados que dizem que aproximadamente 16 milhões de espectadores assistiam ao programa toda semana, sendo estimado que 65% desses eram adultos. Dom Pixote foi também o primeiro personagem do estúdio a ser licenciado. Quando o programa foi lançado já era possível encontrar revistas em quadrinhos coms os personagens do programa em bancas (Figura 28). E logo diversos produtos surgiram, de tigelas de cereais a quebra-cabeças, e muitos outros brinquedos.
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Figura 28: Edições de Dom Pixote e seus amigos lançadas em 1960 e 1961. Fonte: <http:// powsley.blogspot.com/2010/03/vintage-huckleberry-hound-comic-book.html> (Acesso em: 9 nov. 2010)
Em 1960 o estúdio criou uma de suas séries mais famosas até hoje, Os Flintstones (Figura 29), que completou 50 anos no dia 30 de setembro de 2010. A série, que estreou no canal ABC, sendo a primeira da história produzida para o horário nobre, apresenta uma família da idade das cavernas vivendo os problemas cotidianos de uma família americana média. O programa “era direcionado aos adultos. Ele foi também o primeiro desenho animado para a TV a contar sua história no formato de uma sitcom43 de meia hora, e foi a mais longa série animada para o horário nobre da TV até ‘Os Simpsons’ superá-la recentemente.” (BECK, 2007, p. 69, tradução do autor).
Figura 29: Os Flintstones, a família moderna da idade da pedra. Fonte: <http://sharetv.org/images/ the_flintstones-show.jpg> (Acesso em: 9 nov. 2010)
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O termo sitcom é uma abreviação em inglês da expressão "comédia de situação" (situation comedy). Esse termo é utilizado para definir séries de comédia, geralmente com meia hora de duração, baseadas em situações do cotidiano dos personagens. Fonte: http://lazer.hsw.uol.com.br/sitcom.htm
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Após o enorme sucesso de Os Flintstones o nome do estúdio ganhou fama junto ao público, tanto pelas assinaturas visuais que emergiam da tela antes ou depois de cada desenho, quanto pelos diversos produto licenciados, como revistas em quadrinhos. Essas últimas foram essenciais para a ascensão do nome Hanna-Barbera, já que mostravam em suas páginas uma união entre quase todos os personagens do estúdio, mesmo que pertencentes a canais de TV diferentes, criando o mundo imaginário próprio do estúdio, seguindo os passos de seu predecessor dos cinemas, Walt Disney. De acordo com Hanna e Ito (1996, p. 107, tradução do autor) Hanna-Barbera “havia se tornado o estudio de desenhos animados dominante na indústria da televisão, ofuscando até mesmo Walt Disney em produção.” A marca do estúdio havia de fato se tornado tão forte que em 1962 foi lançado o programa The New Hanna-Barbera Cartoons44, que diferente de todos os desenhos anteriores trazia no título o nome do estúdio ao invés do nome de qualquer dos personagens. Esse novo programa foi distribuído para diversas emissoras regionais no mesmo formato que já havia sido utilizado tanto em Dom Pixote, quanto na série Pepe Legal45 de 1959, em que no período de meia hora são apresentados 3 desenhos diferentes. Nesse caso os desenhos eram Wally Gator 46, Lippy e Hardy e Tartaruga Touché. 47 Durante toda a década de 1960 o estúdio ganhou força no mercado, estando presente na programação do Saturday Morning de praticamente todos os principais canais de TV do país. De sua data de criação até 1969 o estúdio produziu 56 séries de desenhos animados para a televisão (Figura 30), fora alguns longa-metragens de suas próprias séries e uma única série feita para o cinema chamada Loopy the Loop, traduzida para o português como Loopy Le Beau por causa do sotaque francês do personagem principal. Apesar da simplicidade dos traços dos personagens, Bill e Joe desenvolveram um estilo visual bastante característico em seus desenhos. Esse estilo, apesar de refletir de certa 44
Os Novos Desenhos de Hanna-Barbera (tradução do autor).
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The Quick Draw McGraw Show no original, no qual também apareciam os desenhos Auggie Doggie and Doggie Daddy (Bilbo Pai e Bóbi Filho) e Snooper and Blabber (Olho-Vivo e Faro Fino). 46
Como no original.
47
“Lippy the Lion & Hardy Har Har” e “Touché Turtle” no original, respectivamente.
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forma a própria personalidade de cada personagem não basta para expressar a complexidade de um personagem e torná-lo carismático. Como o próprio William Hanna coloca ao falar sobre a concepção de Zé Colméia: O ambiente visual de um desenho animado é também um ingrediente utilizado para estabelecer a identidade do personagem. O local onde os personagens estão colocados sugere um grande entendimento de quem eles são. Para dar à Zé Colméia e Catatau espaço suficiente para vagar, nós decidimos criar um parque nacional inteiro chamado “Jellystone” que Zé Colméia poderia declarar como seu próprio domínio. [...] Em essência, o parque era uma área campestre protegida e pastoril que realçava a essencial inocência de nossos personagens que, apesar da acentuada vaidade de Zé Colméia, era na verdade bastante mundana. (HANNA; ITO, 1996, p. 107, tradução do autor)
Figura 30: Grande parte dos personagens do estúdio Hanna-Barbera na em seus primeiros anos eram animais. Fonte: <http://powsley.blogspot.com/2010/04/hanna-barbera-tv-stars-18x24-color_05.html> (Acesso em: 9 nov. 2010)
Criando identidades tão fortes para seus personagens e atrelando elas à um estilo visual bastante conciso aplicado de maneira consistente à grande parte de seu panteão, Hanna e Barbera acabaram desenvolvendo, quase sem querer, uma identidade de marca bastante forte, sobre a qual falaremos adiante.
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4 A MARCA HANNA-BARBERA O presente capítulo se destina a desvendar a marca Hanna-Barbera e a construção de sua identidade enquanto empresa. Para tal, nos apoiaremos em alguns momentos em exemplos de outras marcas, principalmente na Disney, por ser uma marca muito bem estabelecida no mercado e na mente das pessoas, além de ter sido em dado momento sua concorrente direta. Conceitos de branding e de gestão e análise de marcas nos ajudarão a fundamentar as escolhas tomadas ao longo desse percurso de análise. Até o momento, pudemos ver como os desenhos animados evoluíram ao longo da primeira metade do século XX, aprimorando sua técnica, aperfeiçoando sua narrativa e diversificando seu estilo. A indústria da animação começou a prosperar e se alastrar por novas mídias. Do cinema a animação se transportou para a televisão, trouxe seus personagens para as histórias em quadrinhos e os transformou nos mais diversos brinquedos e produtos. Com Walt Disney a animação invadiu o mundo real, trazendo consigo toda sua fantasia. Com a criação da Disneylândia em 1955, Walt Disney trouxe à vida todos os personagens que havia criado e que residiam no imaginário dos cidadãos americanos. Segundo a biografia de Walt Disney 48 em três décadas “mais de 250 milhões de pessoas, incluindo presidentes, reis e rainhas, e nobres de todo o mundo” haviam visitado o parque. Disney se tornou uma lenda viva, uma figura paternal e uma referência mundial em termos de entretenimento. No momento em que a Disneylândia nasceu, a Walt Disney Productions deixou se ser um estúdio de animação para se tornar uma companhia, The Walt Disney Company. O nome de seu fundador deixou de identificar a pessoa Walt Disney para identificar toda uma corporação. Ao mesmo tempo em que se apoderou de seu nome, a companhia emprestou
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Biografia resumida encontrada no site oficial de arquivos da Disney. <http://disney.go.com/vault/read/walt/ index.html> (Acesso em: 10 nov. 2010).
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também sua identidade, sua personalidade e seu jeito familiar e carismático. Walt Disney se tornou patrimônio de seu próprio legado. A marca Walt Disney transcendeu seu status de produtora de desenhos animados para se tornar a maior empresa de entretenimento do mundo, produzindo de séries de televisão a jogos de vídeo game, passando por filmes, histórias em quadrinhos, resorts e parques de diversão. A assinatura de Walt Disney e seu mascote, Mickey Mouse, se tornaram duas das representações gráficas mais reconhecidas, se não do mundo, com certeza da América, sendo fortemente associadas à marca disney. Ambos são diversas vezes utilizados em conjunto para compor o logo de algumas das submarcas do grupo Disney (Figura 31). Mickey é talvez o primeiro logo mutante da história, antes mesmo desse termo ser cunhado.
Figura 31: Dois exemplos em que Mickey é utilizado em conjunto com a assinatura de Walt Disney para compor o logo de duas de suas submarcas. Fonte: <http://www.brandsoftheworld.com/logo/disney-channel-2> e <http://www.brandsoftheworld.com/logo/walt-disney-records> (Acesso em: 10 nov. 2010)
Apesar de outros estúdios, principalmente os ligados inicialmente à produção de filmes live-action, como no caso da Warner Bros., haverem se estabelecido como marca talvez antes mesmo de Disney, nenhum se tornou tão forte quanto esse último. Isso abriu precedentes para que outros estúdios, como Hanna-Barbera, seguissem os mesmos passos no fortalecimento de suas marcas - embora não necessariamente nesses termos - e consequentemente de suas empresas. Para entendermos melhor a rápida trajetória de construção e fortalecimento da marca Hanna-Barbera, devemos primeiramente entender o conceito de marca e como isso se aplica à esse caso específico.
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4.1 O QUE (NÃO) É MARCA? Não é uma tarefa exatamente fácil explicar o que é uma marca. Apesar de vivermos num mundo rodeado por elas, é extremamente difícil conseguirmos conceituar de forma sucinta o significado do termo marca. De acordo com Calder (2006, p. 28) “se você perguntar o que é marca, a resposta é frequentemente longa [...] e, geralmente, varia fortemente entre empresas, consultores e diferentes autores.” Segundo o autor, alguns definem a marca como um posicionamento, alguns como uma promessa e alguns como um valor. No entanto essas definições não são suficientes para responder ao nosso questionamento. Para tal, utilizaremos uma abordagem diferente, defendida por Marty Neumeier (2008). Por existirem muitas definições confusas e imprecisas sobre o que é a marca, uma boa estratégia para um conceito mais preciso é definir o que a marca não é. De acordo com o autor, existem 3 conceitos que são frequentemente entendidos como marca, principalmente entre profissionais de design e marketing, e que devem ser questionados. “Primeiro, marca não é logo.” (NEUMEIER, 2008, p. 1). O termo logo é a contração da palavra logotipo, que segundo Chevalier e Mazzalovo (2007, p. 47) “originalmente [...] designava um grupo de sinais impressos simultaneamente e que faziam parte de um mesmo caractere tipográfico” e que posteriormente passou a designar sinais gráficos que representavam uma corporação. Tanto Neumeier quanto Chevalier e Mazzalovo chegam à mesma conclusão de que o logo não é a marca, mas “simplesmente um símbolo da marca” (NEUMEIER, 2008, p. 1) ou “uma forma particular de escrever a marca.” (CHEVALIER; MAZZALOVO, 2007, p. 47). Resumidamente, o logo é uma das representações gráficas pela qual a marca é reconhecida. “Segundo, marca não é sistema de identidade visual corporativa.” (NEUMEIER, 2008, p. 1). Segundo o glossário da ADG Brasil, identidade visual se refere ao conjunto sistematizado de elementos gráficos que identificam visualmente uma empresa, uma instituição, um produto ou um evento, personalizando-os, tais como um logotipo, um símbolo gráfico, uma tipografia, um conjunto de cores. (ADG Brasil, 2004, p. 180)
Um sistema de identidade visual bem planejado é de fato necessário para que as manifestações da marca mantenham uma consistência visual coerente com seu conceito. No entanto, essa consistência visual sozinha não é suficiente para estabelecer uma marca.
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“Finalmente, marca não é produto.” (NEUMEIER, 2008, p. 2). De acordo com Neumeier (2008) o gerenciamento de marcas é muitas vezes atrelado ao gerenciamento de produtos: sua qualidade, sua distribuição, suas variedades, sua divulgação, seus pontos de venda, etc. Essa é uma visão de marketing que de fato faz parte do gerenciamento da marca. O produto em si é uma das manifestações da marca. No entanto, o produto não consegue expressar o que é a marca, apesar de nos dar pistas que ajudam a identificar quem é essa marca. A marca, como afirma Calder (2006, p. 28), é fundamentalmente um conceito. Esse conceito se forma e transforma no subconsciente de cada consumidor a cada nova experiência. Neumeier (2008, p. 2) define marca como sendo “a percepção íntima, o sentimento visceral de uma pessoa em relação a um produto, serviço ou empresa,” que é provocado a cada manifestação da marca com a qual se tem contato. Esse sistema complexo de sentido que é a marca faz com que o consumidor crie uma ligação emocional com essa instituição, produto ou serviço - seja positiva ou negativamente.
4.1.1 Evolução do Conceito de Marca Para que uma marca consiga se afirmar no mercado, é necessário que ela tenha carisma. Uma marca que não consegue cativar seu público não conseguirá de forma alguma se estabelecer. Coca-Cola, Disney, Apple e Nike são bons exemplos de marcas que conseguiram explorar esse fator em toda a extensão de sua comunição, de seus produtos à suas campanhas publicitárias. A confiança é outro fator fundamental para o fortalecimento da marca e que é só é adquirido após muitas interações positivas do consumidor com a mesma. Nesse ponto a qualidade dos produtos e serviços, bem como a coerência entre eles é quem dita essa relação de confiança que o consumidor tem com a marca. Por exemplo, se hoje a Coca-Cola decidisse fabricar carros, seus consumidores provavelmente estranhariam tal estratégia. No entanto, a empresa hoje entende que sua marca é forte o suficiente para se lançar no mercado têxtil. A empresa entende que dessa forma ela está estendendo a experiência da marca de forma mais abrangente à seus consumidores. Em contrapartida, os mesmos têm a oportunidade de afirmar sua individualidade demonstrando sua paixão ou não pela Coca-Cola. Porém essa nem sempre foi a abordagem das marcas.
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Segundo Neumeier (2008, p. 38) “conforme passamos de uma economia ‘tamanho único’ para uma economia de customização de massa, a atenção do marketing mudou das características para os benefícios, para a experiência, para a identificação tribal.” De acordo com o autor as marcas do início do século XX tinham uma função de identificação do produtos, focando primeiramente nas características que ele possuía, e posteriormente nos benefícios ele poderia trazer. No entanto, durante os anos 1950, paralelamente à inclusão da TV nos lares americanos, as empresas passaram a entender que a experiência era mais importante que os próprios benefícios. A Disney, como já citado, conseguiu através de seus parques temáticos aproveitar isso ao máximo, oferecendo a seus consumidores a experiência de, por algumas horas, fazerem parte de um mundo fantástico que até então só existia em seu imaginário. O licenciamento de brinquedos e outros artefatos contendo personagens de seu universo é também uma forma de trazer essa experiência para o mundo real. No entanto isso só foi possível porque nesse momento a Disney já havia cativado seu público, conquistando sua confiança. Como veremos a seguir, o estúdio Hanna-Barbera seguiu um rumo bastante parecido.
4.2 CRESCIMENTO DA MARCA HANNA-BARBERA Tal qual Walt Disney, William Hanna e Joseph Barbera souberam souberam fazer valer seus nomes. O maior alcance proporcionado pela TV nos anos 1950 em relação ao cinema na década de 1920, possibilitou que o estúdio se efetivasse mais rapidamente no mercado do que seu predecessor havia feito. Enquanto Walt Disney levou 7 anos para licenciar seus primeiros produtos49, Hanna e Barbera o fizeram em aproximadamente um ano após a fundação do estúdio. Desta forma, o nome do estúdio se espalhou muito rapidamente no mercado. Porém a abordagem comercial do estúdio foi muito mais agressiva. Jogos, bonecos, lancheiras, canecas, livros de colorir, cartões colecionáveis, figurinhas de chiclete. Se uma criança pudesse se divertir com algum tipo de produto, lá estava a marca Hanna-Barbera.
49
Brinquedos e Revistas em quadrinhos de Mickey Mouse foram pela primeira vez licenciados em 1930. Fonte: (THE WALT..., 2010)
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Figura 32: Alguns dos produtos que carregavam os rostos dos personagens da Hanna-Barbera: figurinhas de chiclete, lancheiras, projetores de slides e cartões colecionáveis. Fonte: BECK, 2007, p. 63; <http:// powsley.blogspot.com/2008/12/hanna-barbera-pin-me-ups-kelloggs-1962.html> e <http:// www.rubylane.com/ni/iteml/123265-826> (Acesso em: 15 nov. 2010)
O grande carisma destes personagens foi fator decisivo para o sucesso comercial desta variada gama de licenciamentos. Zé Colméia - um dos primeiros personagens a ser licenciado - cativou o público de tal forma que em 1960 ganhou seu próprio show. Segundo Beck (2007) produtos estampando o urso chegaram a render mais de 40 milhões de dólares por ano. Enquanto os personagens do estúdio apareciam em seus próprios programas transmitidos por diferentes emissoras, as revistas em quadrinhos realizavam o papel de reunir todos em um único universo nos quais os personagens interagiam uns com os outros. O nome Hanna-Barbera aparecia para selar essas relações, atestando a amizade existente entre seus personagens e construindo uma ideia de unidade em torno da marca. Desse modo, além de se fortalecer comercialmente, o estúdio conseguiu ganhar a atenção do público infantil e a confiança dos pais.
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Apesar da preocupação em fazer aparecer o nome do estúdio, Hanna e Barbera nunca pareceram dar muita atenção à manutenção de uma assinatura visual constante, fato que pode ser observado a seguir na evolução do logo da empresa. Este inventário visual, retirado do portal Closing Logos50 , traz um importante registro das variadas transformações da assinatura visual do estúdio que acompanhava a apresentação dos desenhos na tela da TV. Não foi possível encontrar dados consistentes sobre o uso da marca Hanna-Barbera em outras mídias ao longo desses anos.
4.2.1 O Logo O primeiro logo utilizado nas aberturas de Ruff and Reddy Show trazia dois quadriláteros (um vermelho e outro azul) justapostos e desalinhados, que continham respectivamente as letras H e B em branco. Esse logo foi logo atualizado para figurar nos desenhos posteriores, porém foi utilizado apenas até 1959 (Figura 33).
Figura 33: À esquerda o primeiro logo do estúdio e à direita o logo utilizado até 1959. Fonte: <http:// www.closinglogos.com/page/Hanna-Barbera+Cartoons,+Inc.> (Acesso em: 15 nov. 2010)
As assinaturas em produtos em geral, como brinquedos e jogos por exemplo, não eram padronizadas. Qualquer fonte era utilizada, contanto que a embalagem trouxesse a informação de que aquele era um produto pertencente à Hanna-Barbera Productions, o que geralmente ocorria de forma bastante discreta. Após 1959 o logo que assinava a abertura ou encerramento dos desenhos na TV deixou de ser padronizado completamente, e o nome Hanna-Barbera passou a ser escrito de formas bastante variadas, não importando tipografia, cor ou hierarquia das informações (Figura 34). Mesmo com a padronização do logo de abertura em 1966, essas assinaturas não padronizadas continuou a aparecer até o início dos anos 1990, em geral no encerramento dos programas. 50
Fonte: <http://www.closinglogos.com/page/Hanna-Barbera+Cartoons,+Inc.> (Acesso em: 16 nov. 2010)
68
Figura 34: Algumas das assinaturas visuais utilizadas pelo estúdio desde 1959. Fonte: <http:// www.closinglogos.com/page/Hanna-Barbera+Cartoons,+Inc.> (Acesso em: 15 nov. 2010)
Em 1966 o logo de abertura foi finalmente definido, trazendo o nome do estúdio em caixa baixa com uma tipografia não serifada e as iniciais H e B ao fundo, com formas bastante geométricas. A animação do logo e suas cores podiam variar, como verificado na figura a seguir. Essa assinatura foi utilizada até 1974.51
Figura 35: Logo do estúdio Hanna-Barbera utilizado em seus desenhos a partir de 1966. Fonte: <http:// www.closinglogos.com/page/Hanna-Barbera+Cartoons,+Inc.> (Acesso em: 15 nov. 2010) 51 A versão
animada desses logos podem ser encontradas em <http://www.youtube.com/watch?v=baiWt-sgJxA>, <http://www.youtube.com/watch?v=sK5x69G-ftw> e <http://www.youtube.com/watch?v=AghSNB3Kc4s> (Acesso em: 17 nov. 2010)
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Em 1974 o logo sofreu um redesign, passando a utilizar as letras H e B fundidas em uma forma bastante sólida, com preenchimento em degradê e o nome Hanna-Barbera sendo utilizado como uma textura tipográfica, centralizadas sobre um fundo preto. Esse logo foi utilizado até 1979.52
Figura 36: Logo do estúdio Hanna-Barbera utilizado no encerramento dos desenhos entre 1974 e 1979. Fonte: <http://www.closinglogos.com/page/Hanna-Barbera+Cartoons,+Inc.> (Acesso em: 15 nov. 2010)
A partir de 1979, o símbolo presente no logo do estúdio passou a ser o mesmo da Taft International Pictures, subsidiária da Taft Entertainment Company, que comprou o estúdio Hanna-Barbera em 1967. The Swirling Star, como esse logo foi apelidado, foi redesenhado em 1986 e utilizado oficialmente até 1992. Curiosamente esse foi o primeiro logo do estúdio a utilizar a fonte cursiva com o escrito “Hanna-Barbera”, que se tornou característica dos desenhos do estúdio nos anos 1990.
Figura 37: O logo conhecido como The Swirling Star do estúdio Hanna-Barbera utilizado entre 1979 e 1992. Em ordem: a versão original, a versão com fonte cursiva e por último a versão atualizada em 1986. Fonte: <http://www.closinglogos.com/page/Hanna-Barbera+Cartoons,+Inc.> (Acesso em: 15 nov. 2010)
Quando Fred Seibert assumiu a presidência do estúdio, em 1992, a assinatura visual do estúdio mudou novamente, e desta vez dando indícios de uma nova concepção acerca da 52 A versão
animada desse logo pode ser encontrada em <http://www.youtube.com/watch?v=GmZKKjpuAZk> (Acesso em: 17 nov. 2010)
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identidade da empresa. A característica mais marcante desse novo sistema de identidade visual é o fato de pela primeira vez os personagens do estúdio serem de fato vistos como parte da marca, retratados no próprio logo juntamente com a assinatura tipográfica, que utilizava a escrita cursiva, já adotada anteriormente de forma aleatória. Nessa versão figuravam tanto personagens clássicos, como Fred Flintstone, Zé Colméia e Scooby-Doo, quanto novos, como Dexter e Johnny Bravo. Esse foi o logo mantido até o estúdio Hanna-Barbera ter sido agregado pela Warner, se tornando Cartoon Network Studios. Esse logo mutante podia variar entre personagens, cores, disposição da tipografia, formatos e orientação da moldura, que podiam ser elipses ou retângulos.
Figura 38: Diversas versões da marca Hanna-Barbera utilizada durtante os anos 1990. Fontes: <http:// www.closinglogos.com/page/Hanna-Barbera+Cartoons,+Inc.> e <http://www.flickr.com/photos/ 84568447@N00/tags/hannabarbera/> (Acesso em: 18 nov. 2010)
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Figura 39: Cartões de William Hanna e Joseph Barbera utilizados durante a presidência de Fred Seibert. Fonte: <http://www.flickr.com/photos/84568447@N00/tags/hannabarbera/> (Acesso em: 18 nov. 2010)
Figura 40: Fachada do estúdio em Hollywood, no ano de 1993. Fonte: <http://www.flickr.com/photos/ 84568447@N00/2612660500/> (Acesso em: 18 nov. 2010)
Como podemos perceber através dessa retomada histórica da marca Hanna-Barbera, a comunicação visual da empresa, centralizada na figura do logo, era o produto de uma estratégia de veiculação pouco planejada até a década de 1990. A comunicação desta assinatura não era consistente, se resumindo à mídia televisiva, e pouco aparecendo nos produtos pelos quais os personagens do estúdio transitavam. Os nomes Hanna e Barbera, no entanto, como o do próprio Walt Disney, ganharam força como personalidades do entretenimento, tendo da mesma forma suas figuras diretamente associadas ao estúdio. Seguindo ainda o exemplo do ilustre antecessor dos cinemas, um parque temático figurando os personagens clássicos do estúdio veio a ser criado mais tarde. O Hanna-Barbera Land, no entanto, não conseguiu obter sucesso, sendo inclusive ignorado em grande parte das bibliografias especializadas na história do estúdio.
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Assim como a Disney, Hanna-Barbera demorou para se comportar de fato como uma marca. Principalmente durante suas primeiras décadas de existência, o nome se limitou a identificar o estúdio pelo qual os desenhos eram produzidos, cabendo aos próprios desenhos estabelecer a interface de comunicação com o mercado. Nesse contexto o nome do esúdio figurava de forma bastante discreta, como que unindo os personagens em uma única família. Já no final da década de 1960 e início da década de 1970 o estúdio perdeu seu foco, passando a produzir massivamente desenhos de super-heróis, dos quais muitos nem se quer eram propriedade intelectual do estúdio, tais como O Quarteto Fantástico, Super Amigos e The Galaxy Trio. Durante todos os anos 1970 o estúdio seguiu criando desenhos de superheróis e reaproveitando a fórmula de desenhos de sucesso, tais como Scooby-Doo, com inúmeros grupos de adolescentes detetives, em geral membros de alguma banda de música. Além disso, os personagens do estúdio foram reaproveitados e clonados até a exaustão em desenhos de competição que em muito lembravam o original Wacky Races (1968), com desenhos como Scooby`s Laff-A-Lympics (1977), que misturava diversos personagens do estúdio, dividindo-os em grupos que se confrontavam em diversos tipos de competições, e Yogi's Space Race (1978), que misturava personagens clássicos e novos em uma espécie de Corrida Maluca no espaço.53 Durante esse período o estúdio chegou a produzir personagens bastante originais, como Hong Kong Fu e o Capitão Caverna. Porém, esses foram poucos em relação ao grande número de séries produzido nesse mesmo período. O próximo e último sucesso do estúdio antes dos anos 1990, foi Smurfs de 1981, saída dos quadrinhos do belga Peyo. A série foi ao ar até 1990, gerando uma série de produtos, brinquedos e jogos de videogame. O estúdio Hanna-Barbera só recuperou sua visibilidade no início da década de 1990, justamente com a redefinição da identidade visual promovida por Fred Seibert (como citado anteriormente54 ). Seibert assumiu a presidência do estúdio após sua compra pela Turner Broadcasting em 1992, e recuperou como marca o capital simbólico dos personagens já ilustres. Trazendo os personagens clássicos para o núcleo da marca, ele proporcionou uma 53
No Brasil o nome desses desenhos é respectivamente Corrida Maluca, Ho-Ho-Límpicos e A Corrida Espacial do Zé Colméia. 54
Ver página 68.
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espécie de reaquecimento dos vínculos do público com o estúdio, o que foi extremamente eficaz associado à fundação do canal de TV Cartoon Network. Estes dois fatores deram certo fôlego às produções, até que em 2001, ano da morte de William Hanna, o estúdio foi dissolvido pela Warner - agora detentora da Turner. A Hanna-Barbera foi então transformanda em Cartoon Network Studios. Sua biblioteca de personagens clássicos foi absorvida pela Warner Bros. Animation, que hoje ainda os comercializa sob a marca Hanna-Barbera.
Figura 41: Associação do logo do Cartoon Network com os personagens de Hanna-Barbera e MGM (Droopy) para uso publicitário no ano de lançamento do canal. Fonte: <http://www.flickr.com/photos/ kerrytoonz/3198126243/> (Acesso em: 18 nov. 2010)
A partir das ações de Seibert podemos perceber que, assim como Mickey, os personagens do universo Hanna-Barbera são, de certa forma, a própria representação da marca. Se levarmos em consideração o crescimento do estúdio durante a década de 1960 e somarmos a esse fator a ausência de uma estratégia de gerenciamento dessa marca nesse mesmo período, podemos concluir que a identificação do público com as obras e produtos do estúdio Hanna-Barbera ocorre, de fato, através dos próprios desenhos. Os personagens, agora vistos como marca, passaram inclusive a ter manuais de aplicação, tal qual um logo, para usos promocionais e de comunicação (Figura 42).
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Figura 42: Duas páginas do manual de identidade do Cartoon Network em 1998, definindo as cores padrão para aplicação dos personagens: Dick Vigarista e Mutley (à esquerda) e Leão da Montanha (à direita). Fonte: <http://www.flickr.com/photos/kerrytoonz/tags/styleguide/> (Acesso em: 18 nov. 2010)
Portanto, para definirmos a identidade que William Hanna e Joseph Barbera construiram durante os primeiros anos do estúdio, analisaremos os personagens de maior destaque nesse período através das mesmas ferramentas utilizadas para a análise de uma marca convencional. Utilizaremos o instrumental analítico da semiótica discursiva, tal qual proposto por Chevalier e Mazzalovo (2007).
4.3 ANÁLISE DAS MANIFESTAÇÕES DA MARCA HANNA-BARBERA Antes de iniciarmos nossa análise, é fundamental identificarmos os diferentes grupos de personagens criadas pelo estúdio durante seus primeiros anos. Não existe uma separação efetiva das categorias de desenhos produzidos pela Hanna-Barbera. Porém, agruparemos alguns desenhos por características comuns para fins de análise. Para tal, levaremos em consideração propriedades plásticas, temáticas e figurativas. Apesar dos limites entre categorias serem confusos, buscaremos manter a coerência necessária ao cumprimento dos objetivos dessa pesquisa.
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Entre 1957 e 1969, o estúdio produziu basicamente 3 tipos de desenhos animados: heróis de ação, grupos adolescentes e personagens de humor. No primeiro grupo, os representantes de maior destaque são: Jonny Quest (1964), Os Impossíveis (1966), Frankenstein Jr. (1966), Space Ghost (1966), Homem-Pássaro (1967), Herculóides (1967) e O Poderoso Mightor (1967). Nessa mesma categoria se encontram desenhos produzidos pelo estúdio, mas que não pertenciam ao mesmo, tal como o Quarteto Fantástico (1967). Poderíamos ainda considerar Formiga Atômica (1965) e Esquilo Secreto (1965) como parte desse mesmo grupo, por se tratar também de um herói com super-poderes, contudo, como veremos adiante, a estética “cartunesca” e a abordagem cômica nos fazem optar por uni-los ao segundo grupo.
Figura 43: Space Ghost (1966), Herculóides (1967), Homem-Pássaro (1967) e O Poderoso Mightor (1967), respectivamente. Fontes: <http://chud.com/nextraimages/Dec17SG.jpg>, <http:// cryptofyesteryear.blogspot.com/2009/07/space-ghost-original-1966-1968.html>, <http:// www.squidoo.com/harvey-birdman> e <http://desenhosantigos80.blogspot.com/2009/03/ mightor.html> (Acessado em: 18 nov. 2010)
As manifestações posteriores da marca Hanna-Barbera, nos permitem perceber que a ligação do público com o estúdio se encontra – principalmente no período de 1957 a 1969 – quase completamente ancorada aos personagens de humor. Com exceção de Space Ghost, que teve seus personagens transportados para séries de humor nos anos 1990 e 2000 – Space
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Ghost de Costa a Costa (1994), Cartoon Planet (1995) e O Show do Brak (2000) – os demais heróis mantiveram-se um tanto afastados do universo principal da marca. A primeira e mais bem sucedida série de ação produzida pela Hanna-Barbera foi Jonny Quest (1964). A série foi a primeira tentativa do estúdio em tentar diversificar o seu estilo, contando as aventuras de Jonny, sua família e amigos em um mundo realista. Os conflitos e ameaças provinham do universo das ciências e do contato com culturas diferentes, algo bastante representativo do clima da época era algo completamente diferente de tudo que a Hanna-Barbera havia produzido. O sucesso de Jonny Quest rendeu duas novas séries - As Novas Aventuras de Jonny Quest (1986) e As Incríveis Aventuras de Jonny Quest (1996) - e o anseio da Hanna-Barbera em investir em novas séries de ação, que se manifestou na criação de desenhos de super-heróis.
Figura 44: Grupo original do desenho Jonny Quest (1964). Fonte: <http://www.flickr.com/photos/ 84568447@N00/2062841574> (Acessado em: 18 nov. 2010)
Essa categoria de desenhos animados é fruto de um período onde o grande público infantil, os chamados baby boomers, passou a demandar histórias com mais ação, influenciados principalmente por histórias em quadrinhos de super-heróis e séries live-action, como Batman (1966). “Os primeiros esforços eram na maioria paródias, refletindo a longa
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história de comédia da H-B. Os primeiros a aparecem foram Formiga Atômica e Esquilo Secreto, que ainda se enquadravam firmemente no modelo ‘animal engraçado.’” (BECK, 2007, p. 115, tradução nossa) Uma esforço um pouco maior em direção à ficção científica e super-poderes veio com Frankstein Jr e Os Impossíveis, que no entanto ainda traziam muito da identidade humorística do estúdio. Foi preciso contratar o ex-quadrinista Alex Toth para criar os argumentos e designs dos desenhos de super-heróis. O estúdio permaneceu produzindo esse tipo de séries ao longo dos anos, mas sem deixar de produzir seus principais produtos, os desenhos de humor. Muito embora estes personagens dotados de super-poderes e corpos musculosos, enfrentando perigos reais, tenham alcançado enorme notoriedade, é de nosso entendimento que ocupam um universo a parte, pois a marca da empresa manteve-se mais fortemente vinculada a outras referências. Essa é, portanto uma categoria sobre a qual não nos aprofundaremos durante a análise da marca. A segunda categoria, de grupos adolescentes, engloba apenas um desenho animado dentros ne nosso corpus e diversos outros produzidos posteriormente com base no mesmo modelo. Scooby-Doo, Cadê Você? (1969) foi o desenho que inaugurou e deu formas à essa categoria de desenhos produzida ao longo de praticamente toda a década de 1970. ScoobyDoo foi “o personagem de maior sucesso na história do estúdio Hanna-Barbera, ao menos em termos de números de episódios originais e diferentes encarnações.” (BECK, 2007, p. 139, tradução nossa). Episódios das aventuras do mais famoso cachorro dos desenhos animados são produzidos até hoje, pela Warner Bros. Animation, que adotou o simpático cão como criação própria. Scooby-Doo definitivamente colaborou para a construção da identidade da marca Hanna-Barbera. Unindo o espírito humorístico de Hanna e Barbera com os traços mais realista, porém ainda cômicos do designer de personagens Iwao Takamoto, foi possível criar uma série com narrativas mais bem elaboradas, com doses de mistério e humor. O grupo formado por 4 adolescentes e um cachorro tinha uma fórmula popular que foi, frustradamente repetida à exaustão pelo estúdio ao longo da década seguinte. Apesar da quebra do estilo visual, em relação às produções anteriores, Scooby-Doo mantém a essência cômica e a forte personalidade encontrada nos demais personagens clássicos da Hanna-Barbera.
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Figura 45: Formação original do desenho Scooby-Doo, Cadê Você?: Fred, Velma, Scooby, Salsicha e Daphne. Fonte: <http://www.comicfortress.com/mm5/popups/CC1196%20Mystery%20Gang%20Model %20Sheet.jpg> (Acesso em: 18 nov. 2010)
A terceira e mais clássica categoria é a de programas de humor. Nessa categoria todos os personagens (mesmo que oriundos de diferentes desenhos) parecem pertencer a um mesmo universo, seja pela estética em comum, pelas leis que regem esse universo imaginário ou pela própria interação entre eles. Essa categoria engloba basicamente três famílias de programas: o primeiro, em que os personagens centrais são animais, o segundo, dos sitcoms, em que os personagens centrais são famílias ou bandos, e o terceiro, de competições. No primeiro grupo Zé Colméia é geralmente apontado como o de maior destaque, tanto em termos de reconhecimento junto ao público quanto em termos de retorno financeiro. Juntamente com Dom Pixote, Pepe Legal e outros personagens desse mesmo período, Zé Colméia encabeça um grande grupo de amigos que vez por outra fazem participações nos desenhos uns dos outros. Mais tarde esses mesmos desenhos seriam reunidos para criar novos
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programas, como A Turma do Zé Colméia (1973), A Corrida Espacial do Zé Colméia (1978) e Zé Colméia e os Caça Tesouros (1985), além de diversas outras séries e episódios especiais. Podemos incluir nessa mesma família praticamente todas as séries de animais produzidas até 1965, como Lippy e Hardy (1959), Peter Potamus (1963) e Esquilo Secreto (1965). Os Flintstones é sem dúvida a principal série produzida pelo estúdio no formato sitcom. Essa categoria é também ocupada por Manda-Chuva e Jetsons. Apesar de MandaChuva ser também um animal, o formato do programa, seus temas e estrutura narrativa se enquadram de forma mais adequada nesse grupo de desenhos do que no anterior. Por fim, representando os desenhos de competição está Corrida Maluca (1968), único dessa categoria no período analisado. Esse mesmo formato, porém, foi utilizado em outras produções posteriores, como Ho-Ho-Límpicos (1977) e A Corrida Espacial do Zé Colméia (1978). Tomando como premissa o fato de ser virtualmente impossível analisar cada desenho produzido pelo estúdio, elencaremos a partir da classificação acima descrita desenhos e personagens chave para a definição da identidade do estúdio, pontuando a cada momento como as características formais e conceituais se reiteram. Para definir esses personagens chave adotaremos, além dos apontamentos feitos por autores especializados no estúdio Hanna-Barbera, como Sennet (1989) e Beck (2007), resultados da enquente “What is your Hanna-Barbera top 10?”, realizada no fórum do portal The Big Cartoon DataBase55 entre agosto de 2007 e abril de 2008. De acordo com esses levantamentos, temos como principais objetos da análise: Os Flintstones, Zé Colméia, Scooby-Doo e Corrida Maluca. A partir destes, tentaremos clarear os aspectos discursivos da construção da marca Hanna-Barbera, buscando as reiterações temáticas e figurativas mais comuns na obra do estúdio.
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Fonte: <http://forum.bcdb.com/forum/What_is_your_Hanna-Barbera_top_10_P79675/> (Acesso em: 17 nov. 2010)
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4.3.1 Os Desenhos Contam a História Partindo dos objetos definidos acima, descreveremos os personagens e as linhas narrativas gerais de cada desenho animado, procurando estender essas características para as demais produções do estúdio. Para melhor entendimento da construção propriamente dita da identidade, descreveremos esses desenhos em ordem cronológica.
4.3.1.1 Zé Colméia Zé Colméia é um urso que vive no parque Jellystone, que ele considera seu domínio. Como todo sujeito é definido narrativamente por seu objeto de valor, ou seja, por aquilo que persegue, o urso está sempre arquitetando maneiras de roubar a comida dos outros. Sempre acompanhado de seu companheiro Catatau, os dois estão sempre fugindo do guarda Smith, que constantemente tenta impedir que Zé Colméia roube sua comida ou as cestas de piquenique dos visitantes do parque, nem sempre com sucesso. Essa mesma relação de amizada e lealdade que existe entre Catatau e seu pretenso mentor é constante nos desenhos do estúdio, se repetindo em outras séries como Pepe Legal, Lippy e Hardy e Manda-Chuva. Zé Colméia, que se acha o urso mais inteligente do parque, como seu próprio jargão diz “I`m smarter than the average bear!”56 , está sempre se metendo em confusões, enquanto seu fiel parceiro constantemente o alerta para o perigo dizendo: “The Ranger is not going to like this, Yogi.”57 Mesmo sabendo que no final as coisas não darão certo, Catatau mantém sua fidelidade e segue Zé Colméia para onde ele for. Esse mesmo comportamento é constantemente reproduzido por diversos outros personagens coadjuvantes como Babalu, Batatinha, Hardy Har Har, Dingue-Lingue e Dum-Dum. O guarda Smith é o responsável por manter a ordem no parque, sendo neste contexto o representante do “sistema”, aquela instituição que Zé Colméia está sempre tentando transgredir. Ao mesmo tempo o urso é bondoso com seus amigos e demais animais do parque, sempre os ajudando quando necessitam. Essa personalidade ambígua, que mistura transgressão e bondade é compartilhada por boa parte dos personagens do estúdio, excetuando
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“Eu sou mais inteligente que o urso comum!” (tradução nossa)
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“O guarda não vai gostar nada disso, Zé” (tradução nossa)
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os que se caracterizam como heróis, aqueles de moral incorruptível, tal qual a Tartaruga Touché, ou por serem vilões, como Dick Vigarista e Mutley. A simplicidade dos traços no desenho dos personagens, proporcionados pelo designer Ed Benedict, não impede em momento algum que Zé Colméia e Catatau possuam personalidades singulares. Pelo contrário, o design colabora para a formação desse caráter. Apesar de viverem na natureza os personagens não são de forma alguma selvagens. Essa característica é principalmente marcada pelo uso de acessórios de vestuário tal qual gravatas e chapéus, e é compartilhada por toda essa fauna de personagens falantes. Tais adereços estão presentes no design desses personagens primariamente por questões técnicas referentes à animação limitada. Separam diferentes layers do desenho, permitindo ao animador movimentar partes independentes dos corpos, sem ter que redesenhálos por inteiro. No entanto, do ponto de vista semântico, agregam à personalidade dos personagens traços como a vaidade e a masculinidade, além de reforçar o caráter antropomórfico. O grande porte de Zé Colméia, unido a seu vestuário, dá ao urso um ar de homem responsável pelos negócios, em contraponto à estatura reduzida de Catatau, que somada à sua gravata borboleta lhe da um ar infantil e inocente. Até mesmo Cindy, o caso amoroso do urso, tem sua feminilidade reafirmada pelo uso da saia, sombrinha, flor no cabelo e lenço no pescoço. Essas características se extendem por toda a gama de personagens criados pelo estúdio nesse mesmo período. Zé Colméia frequentemente visita ou é visitado pelos personagens dos demais desenhos. Dom Pixote, Pepe Legal e Leão da Montanha são seus amigos mais notáveis. A constante ligação entre todos esses personagens criou uma espécie de família, que além de compor o núcleo da marca Hanna-Barbera, possibilitou a criação de diversos outros desenhos envolvendo esses personagens, como mencionado anteriormente. Além disso, estas participações reforçam a ideia de um mesmo mundo ocupado por diferentes personagens, o que dá um contorno mais vivo a essa estranha lógica proposta pela Hanna-Barbera, em que animais e homens conversam, interagem e reproduzem os conflitos da sociedade moderna.
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4.3.1.2 Os Flintstones Saltando dois anos à frente e milhares de anos ao passado, o estúdio Hanna-Barbera produziu Os Flintstones. Essa série ambientada na idade das cavernas, em que os humanos supostamente viveram em harmonia com os dinossauros, conta a história de uma família vivendo no subúrbio da cidade de Bedrock, levando o típico estilo de vida americano dos anos 1960. Essa mesma temática é também abordada na série Os Jetsons, com a diferença de essa ser ambientada em um futuro fictício, no ano de 2062 - exatamente um século após o lançamento da série. Fred, o chefe da família e responsável por trazer o dinheiro para o lar é casado com Wilma, uma dona de casa dedicada porém rigorosa. Seus vizinhos são Barney e Betty Rubble. Enquanto Betty é a melhor amiga de Wilma, Barney é, como o próprio Fred gosta de ressaltar de tempos em tempos, “ My close friend, bosom buddy and lifelong pal.”58 Além de narrar o cotidiano entre família e vizinhos, abordando problemas no relacionamento e no trabalho, a série retrata a amizade de Fred e Barney enquanto ambos tentam escapar de suas esposas para jogar boliche ou ir à reunião do Clube dos Búfalos D’água. De tempos em tempos Fred faz planos para melhorar de vida ou ganhar dinheiro fácil. Nesses momentos a dupla se porta como uma clássica dupla de amigos dos desenhos HannaBarbera, tal qual Zé Colméia e Catatau ou Manda-Chuva e Batatinha. Quando tais planos dão certo, Fred costuma soltar seu famoso “Yabba-dabba-doo!”, porém quando algo sai errado a dupla costuma brigar, cabendo às esposas uni-los novamente. Posteriormente a série evolui, com a inserção de filhos, deixando a temática central ainda mais familiar. O design criado também por Ed Benedict proporciona aos personagens da série um diálogo visual com os demais desenhos criados pelo estúdio até então. Todavía o aspecto mais relevante do design dessa série é referente à ambientação. As casas e móveis completamente feitos de pedra dão a certeza de quando a narrativa se passa, enquanto os utensílios domésticos criados à partir de animais parodiam o estilo de vida americano.
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“Meu camarada, amigo do peito e parceiro para toda a vida.” (tradução nossa)
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4.3.1.3 Corrida Maluca Retornando a 1968, temos a criação da Corrida Maluca, primeiro programa de competição produzido por Hanna e Barbera. A idéia inicial do programa era que as crianças ligassem para o canal votando em quem ganharia cada corrida, dando prêmios aos acertadores, contudo essa proposta acabou sendo abandonada. Após 1970, o estúdio introduziu diversos outros desenhos de competição no mesmo estilo, mas que, diferentemente da Corrida Maluca, utilizavam em sua maioria personagens já conhecidos do estúdio. A corrida maluca, pelo contrário, possuía 23 personagens originais distribuídos em 11 carros. Durante 34 episódios os competidores correm para ganhar cada corrida, que é disputada em diferentes lugares do território norte-americano, enquanto um narrador descreve os acontecimentos. O destaque do desenho vai não só para o design dos personagens, mas principalmente dos carros, que refletem as características e personalidades dos participantes da corrida, que podem ser gangsters, monstros, cientístas malucos ou uma bela e fútil donzela. Os personagens de maior destaque na série são Penélope Charmosa, única personagem feminina, e Dick Vigarista e Muttley, a dupla de mal-feitores tenta constantemente retirar os demais competidores da corrida, sem nunca obter sucesso. O êxito desses personagens proporcionou o surgimento de dois spin-offs 59 no ano seguinte: Dick Vigarista & Muttley Máquinas Voadores e Os Apuros de Penélope Charmosa. Um fato curioso é que Dick Vigarista e Muttley são os únicos personagens a se comunicarem diretamente com o narrador, enquanto os demais competidores parecem ignorar a presença do mesmo.
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Programa saído de um outro programa.
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Figura 46: Em ordem de numeração, os carros da Corrida Maluca. Fonte: <http://www.flickr.com/photos/ mrscroobs/tags/wackyraces/> (Acesso em: 18 nov. 2010)
4.3.1.4 Scooby-Doo, Cadê Você? Apesar de utilizarem roupas que remetem ao final dos anos 1960 e de viajarem na Máquina do Mistério, um furgão que poderia tranquilamente ter saído do festival de Woodstock 60 - ocorrido no ano de lançamento do desenho -, o grupo de adolescentes poderia facilmente ter suas histórias ambientadas nos dias de hoje61 . 60
Um dos maiores eventos musicais (senão o maior) de todos os tempos, realizado em 1969 na cidade de White Lake, NY. Fonte: <http://www.woodstockstory.com/> (Acessado em: 18 nov. 2010) 61
Isso de fato ocorre, já que a Warner Bros. Animation publica atualmente uma nova versão do desenho. Fonte: <http://www.cartoonnetwork.com/tv_shows/scoobydoomysteryinc/index.html> (Acesso em: 18 nov. 2010)
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A Mistérios, Ltda. é a companhia de investigação formada por Fred, Daphne, Velma, Salsicha e o cachorro Scooby-Doo. Durante os episódios o grupo persegue pistas, visita mansões mal-assombradas e foge de vilões, sempre tentando desvendar o mistério por trás dos monstros e assombrações, que quase sempre são pessoas fantasiadas tentando afastar os desavisados por algum motivo ganancioso. Após aceitar cada desafio, o grupo costuma se dividir sob a frase do líder, Fred: “Bem, vamos nos separar e procurar pistas.” Enquanto Fred e Daphne vão para um lado, Scooby e Salsicha acompanham Velma, a mais inteligente do grupo. Scooby e Salsicha são amigos inseparáveis e sem dúvida os mais medrosos do grupo. O medo, porém, é sempre superado pela fome interminável dos dois que, assim como Zé Colméia, estão sempre à procura de comida. O ápice de cada desenho é atingido quando os heróis prendem o pretenso monstro, momento em que Velma revela as pistas e a máscara do vilão é retirada. Scooby-doo é provavelmente o desenho do estúdio com o maior número de frases de efeito. Cada um dos personagens tem suas várias frases que são repetidas em todos os episódios. Até mesmo os vilões alardeiam ao final de todo episódio: “Eu teria conseguido, se não fossem essas crianças intrometidas e esse cachorro!”. É importante notar que os personagens mais famosos do estúdio, e portanto os que contribuem de maneira mais marcante para a imagem da marca, são também detentores de jargões bastante conhecidos, exaustivamente repetidos. É o caso do “Yabba-dabba-doo!” de Fred Flintstones, do “Scooby-dooby-doo!” de Scooby-doo, do “Hey, hey, hey, hey!” de Zé Colméia ou mesmo da característica risada arranhada de Mutley. Outros personagens que valem ser citados por jargões famosos são Dom Pixote (“Oh, querida! Oh, querida! Oh, querida Clementina!”), Leão da Montanha (“Saída rápida pela esquerda!”) e Hardy Har Har (“Oh, céus! Oh, vida! Oh, azar! Isso não vai dar certo!”).
4.3.2 A História que os Desenhos Contam Nessa seção utilizaremos o percurso gerativo de sentido para tentar compreender as narrativas criadas por Hanna e Barbera. Esse instrumento de análise da semiótica greimasiana quebra o texto em dois planos: o do conteúdo e o da expressão. O primeiro nos revela as tramas do nível dos significados figurativo-narrativos, enquanto o segundo nos mostra a
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forma pela qual essa mensagem é transmitida, a partir de sua plasticidade. Contudo esses dois planos apenas fazem sentido quando analisados em conjunto. O percurso gerativo prevê três níveis de profundidade em um texto: o nível fundamental, o nível narrativo e por fim o discursivo. O primeiro e mais profundo é o nível fundamental enquanto o mais superficial é o discursivo. Ao analisarmos os níveis fundamental e narrativo, percebemos uma relação isotópica dos episódios de uma mesma série. Isto quer dizer que as narrativas se repetem, e geralmente os personagens acabam como começaram, pois não há uma seqüencialidade entre episódios. A turma de Manda-chuva sempre inicia no beco, Fred e Barney sempre tem que trabalhar, e assim por diante. Em outras palavras, os percursos narrativos e a moral da história são sempre mantidos. Já no nível discursivo, percebemos variações entre os episódios, que ora falam dos rubis de um marajá, ora de um concurso de beleza ou de uma viagem para o Havai. Dom Pixote e Pepe Legal falam em seu nível fundamental da justiça em oposição à vilania. Já Manda-Chuva reiteradamente opõe a marginalidade (algo positivo para seu grupo de amigos) a uma vida correta. Nos Flintstones, fundamentalmente vemos retratado o cotidiano suburbano, com as contradições entre os vícios e as virtudes dos trabalhadores em seus pequenos conflitos familiares. No nível narrativo também percebemos essa distinção entre os desenhos. A construção da mesma, em linhas gerais, ocorre de maneira diferente. Se analisarmos o desenho Dom Pixote podemos perceber que a única premissa existente em cada episódio é a presença do personagem principal. O personagem funciona basicamente como um ator, sendo colocado em lugares, tempos e situações diferentes a cada episódio, interagindo com personagens diferentes e utilizando-se do recurso da narração para contextualizar o telespectador. Em Scooby-Doo, o telespectador sabe antes mesmo do episódio ter início que o mesmo grupo de adolescentes vai chegar a um local mal-assombrado em seu furgão e desvendar algum mistério, para num próximo episódio partir em busca de uma nova aventura. Apesar do desenho pressupor que os personagens de Scooby-Doo vivam vidas contínuas, diferentemente de Dom Pixote, cada episódio não provoca qualquer mudança no curso geral do desenho.
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Os Flintstones, por sua vez, possuem episódios sem uma continuidade direta. Porém a série evolui de acordo com determinados acontecimentos. Ao longo da série temos episódios determinantes, como a entrada de Dino para a família e a mudança de emprego de Barney, durante a primeira temporada, ou o nascimento de Pedrita na terceira e a adoção de Bam-bam na quarta, bem como o envelhecimento dos personagens durante os vários anos em que a série foi transmitida. Todos esses são eventos que afetam o rumo da série e de seus personagens. O que podemos concluir a partir disso é que a identidade de cada um desses desenhos e a construção que os mesmos fazem da identidade do estúdio Hanna-Barbera não se encontra na maneira como as histórias são narradas, mas em como os temas são abordados e como os personagens e suas relações são construídas. Ou seja, o caminho para a identidade da marca Hanna-Barbera passa predominantemente por seus personagens, seus comportamentos e seus valores. Apesar dos temas abordados pelos desenhos serem diversos, eles são constantemente reiterados. E apesar de nem todos os temas estarem presentes em todos os desenhos, podemos identificar uma constância no desenvolvimento de certas temáticas. O primeiro e mais recorrente tema do qual podemos falar é o companheirismo. Ele está presente em muitos desenhos animados, principalmente os direcionados ao público infantil. Da relação de Jambo e Ruivão, à Scooby-Doo e Salsicha, praticamente todos os desenhos do estúdio exaltam a amizade enquanto virtude. O companheirismo entre os personagens costuma ser retratado na forma de duplas: Pepe Legal e Babalu, Zé Colméia e Catatau, Fred Flintstone e Barney Rubble, Lippy e Hardy, Touché e Dum-dum, até mesmo na dupla de vilões Dick Vigarista e Mutley o companheirismo está presente. É comum vermos nesse tipo de relação o contraste entre esses companheiros. O primeiro e geralmente o mais alto costuma ser o personagem principal e a metade ativa da dupla. Insatisfeito com sua própria situação, esse personagem é um transgressor, tentando se aproveitar da bondade ou inocência dos outros. A ânsia em alcançar seu objeto de valor - seja esse comida, riqueza, ascensão social, uma cesta de piquenique ou o prêmio de uma corrida faz com que passe por cima da amizade, o que acaba implicando nos descaminhos de sua jornada e na privação de seu objetivo. Nesse perfil podemos enquadrar: Zé Colméia, MandaChuva, Fred Flintstone, Lippy o Leão e Dick Vigarista.
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O segundo é geralmente representado como o personagem menor e mais inocente, que em contraste ao personagem principal costuma ser mais acomodado com a própria situação, mas que participa das jornadas arquitetadas pelo protagonista. É geralmente quem preza mais pela amizade do que pela vontade de mudar. A euforia de seu companheiro costuma fazer dele alguém mais cauteloso e por vezes mais inteligente, o que normalmente o faz operar como consciência do primeiro, colocando sempre de início as razões contrárias aos planos. Neste perfil podemos enquadrar: Catatau, Babalu, Barney, Batatinha e Hardy Har Har. Associado ao companheirismo, temos um segundo tema também bastante recorrente nesses desenhos, que é a questão do convívio em grupo. Esse tema é figurativizado tanto na questão da vida familiar, como em Os Flintstones, Os Jetsons e Família Buscapé (1965), quanto no trabalho em equipe apresentado em desenhos como Manda-Chuva, Scooby-Doo e até mesmo na relação de Zé Colméia com os personagens dos desenhos que o cercam. Ao abordar esse tema os desenhos costumam mostrar como as coisas podem dar certo ao trabalharmos coletivamente. Um tema pouco presente nos desenhos da Hanna-Barbera e, no entanto, merecedor de destaque é a questão da marginalidade. Tratado principalmente na série Manda-Chuva, esse tema é curiosamente euforizado, refletindo a liberdade e a malícia desses gatos de rua vivendo à margem da sociedade. Sobrevivendo através de pequenos golpes, eles são constantemente antagonizados pelo guarda Belo, que nesse contexto representa a autoridade, ou o sistema. Esse confronto nos leva a uma nova questão, que é justamente a da transgressão em oposição à autoridade. A transgressão aparece mais como um recurso narrativo do que como um incentivo à prática de tais atos. Ao assistir ao Manda-Chuva ludibriar o guarda Belo ou ver Zé Colméia roubando uma cesta de piquenique, o telespectador parece satisfazer-se na consumação de um ato de transgressão que jamais seria capaz de cometer. Desta forma, este impulso não se realiza pela própria promessa de realização dos desenhos. Em contrapartida, Dom Pixote, Pepe Legal, Tartaruga Touché e Scooby-Doo falam de heroísmo e ajuda ao próximo, sempre da forma mais positiva possível. Os personagens desses desenhos que, por assim dizer, estão alinhados ao sistema, não são necessariamente rivais de personagens transgressores, como Zé Colméia e Manda-Chuva. Pelo contrário, Dom Pixote e Pepe Legal são sempre que possível mostrados como amigos do personagem Zé Colméia.
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A soma desses fatores nos leva a crer que em um plano geral a marca Hanna-Barbera satiriza o modo de vida americano e o sistema vigente de forma sutil, ao tratar as figuras de autoridade, como guarda Belo e Smith, com certa insolência ou ao mostrar que da Idade da Pedra ao futuro mais distante os problemas do dia-a-dia continuam sendo exatamente os mesmos. Valores familiares de convívio, amizade, colaboração e ajuda ao próximo são sempre superiores a qualquer outro julgamento de valor, sendo sempre tratados com valoração, seja ao mostrar a relação de amizade entre Fred e Barney, ao exaltar o resultado positivo do trabalho em conjunto de Scooby-Doo e sua turma, ou até mesmo ao negar a vitória a Dick Vigarista em função de suas atitudes reprováveis. Por fim, percebemos nesses desenhos que a inteligência sempre prevalece sobre a força bruta. Como se podia imaginar, os valores, temas e histórias colocados nos desenhos animados parecem indicar que a preocupação da marca é muito mais divertir que educar. Existem nas narrativas momentos para a realização de pequenos impulsos, pequenas fantasias, pequenos desejos, sejam eles de transgressão ou de enriquecimento. No entanto, ainda há espaço para o ensinamento de bons valores, principalmente quanto à amizade, o convívio em família e a ajuda ao próximo.
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5 CONCLUSÃO
5.1 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo dessa pesquisa foi possível compreender a importância e a participação de cada estúdio de animação no desenvolvimento da linguagem da animação tal qual conhecemos hoje. O aprimoramento da técnica e da narrativa, realizado por Disney, bem como a criação de um universo imaginário próprio, proporcionou o desenvolvimento do mercado de animação como um todo, se tornando um exemplo que foi seguido por praticamente todos os estúdios que viriam. O humor escrachado e a expressividade exagerada dos personagens desenvolvidos por Tex Avery, tanto na Warner quanto na MGM, moldaram a a forma como os desenhos são contados. A UPA, por sua vez, redefiniu os padrões estéticos do desenho animado, trazendo para essa indústria a liberdade estilística que a mesma necessitava. Percebemos como o grando impacto gerado pela inserção da televisão nos lares americanos teve reflexo na economia do país, na sociedade que se restruturava após a guerra e principalmente nas casas. Ao redor desta mídia foram reorganizadas as dinâmicas familiares, e por conta desta nova ordem os conteúdos televisivos também experimentaram um momento de direcionamento e segmentação, algo que com o tempo mostrou-se o novo paradigma comunicacional. A orientação de programas a determinados públicos está na gênese da consolidação do sistema de televisão via cabo, que distribui conteúdo altamente específico ao redor do mundo, permitindo uma ampla diversificação de interesse e de gostos. A mudança na estrutura e hierarquia familiar criou uma geração completamente diferente da que havia partido para a 2ª Guerra Mundial. Foi nessa nova sociedade, agora muito mais informada e também mais consumista que o estúdio Hanna-Barbera surgiu, aproveitando as novas características do público e ao mesmo tempo criando um mercado que não estava consolidado: o de desenhos animados para a televisão. Seguindo os passos do que Disney havia feito no cinema, Willian Hanna e Joseph Barbera deram cara e movimento a gerações de personagens, que até hoje povoam o imaginário das sociedades que recebem influencia da cultura americana.
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O entendimento desse contexto histórico nos permite compreender as decisões de nível plástico, conceitual e narrativo adotadas na produção desses desenhos, e que sedimentaram a marca do estúdio Hanna-Barbera ao longo dos seus 44 anos de funcionamento. Essas escolhas feitas a partir de algumas premissas nos ajudam a visualizar como os conceitos de projeto e suas metodologias, aprendidos ao longo do curso de design gráfico, podem ser aplicados a áreas distintas da indústria. Os conceitos de branding e gerenciamento de marca vistos ao longo do capítulo 4, preciosos para a profissão, nos direcionam à compreensão de um processo de gerenciamento de marca anterior aos achados teóricos do branding. Enquanto conceito primitivo, criado pelas relações do próprio usuário com as manifestações da marca, esta marca se construiu de maneira sólida ancorada na pregnante figuratividade das animações, nas estruturas narrativas repetidas, e na construção de personagens plausíveis. Por esse motivo as conclusões acerca da identidade da marca analisada não devem ser de forma alguma entendidas como definitivas. Essa é nada mais que uma tentativa de compreender a relação que a marca Hanna-Barbera possuía com seu público em seus primeiros anos de existência. Vale ressaltar que existe aqui uma defasagem de aproximadamente meio século e alguns milhares de kilômetros. Se analisássemos a marca da mesma empresa no mercado atual, provavelmente a relação entre ela e seu público estaria muito mais ligada à nostalgia que seus personagens provocam do que à própria diversão. Entretanto, o que nos parece mais significativo é grafar que na inexistência de um padrão visual para o que convencionamos chamar marca (sua assinatura gráfica), este estúdio foi pioneiro na construção de uma identidade fortíssima através da manutenção de um universo mágico e ao mesmo tempo bastante concreto. Firmemente apoiado na realidade cultural da sociedade americana das décadas de 50 e 60, Hanna e Barbera deram cara, corpo, gravata e chapéu ao simulacro de sua empresa, o que lhes permitiu ser acompanhados de perto por americanos (ou não) de todas as idades. De fato, se um aspecto essencial estava contemplado nas assinaturas que introduziam cada um dos episódios, era a possibilidade dada aos telespectadores de reconhecer um desenho do estúdio. Da mesma forma, reconhecer entre os personagens um mesmo aspecto,
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ou um grupo de traços semelhantes, possibilitou aos espectadores construir uma familiaridade com eles. Não haveria surpresa, nem mesmo no nível das narrativas. Acima de tudo essa pesquisa desfaz um mito do design gráfico, mostrando através da história de uma empresa, cujo produto residia na comunicação, que a marca está muito mais ligada à relação que o público possui com as manifestações da mesma do que à figura do logo. Sendo a última apenas mais uma dentre as muitas manifestações da marca.
5.2 SUGESTÕES PARA TRABALHOS FUTUROS Ao longo dessa pesquisa surgiram alguns temas que despertaram nesse autor o interesse pelo aprofundamento, mas que no entanto não couberam no escopo desse trabalho. Por esse motivo deixamos aqui algumas sugestões que podem ser futuramente aprofundados. O design de produtos aplicado ao desenho animado é um tema pouco explorado e com bastante material disponível. Tal qual vemos em Os Flintstones ou em Os Jetsons, onde os mais diversos apetrechos são imaginados de forma a dar riqueza ao universo criado, esse tipo de criação pode abranger o design de jóias e acessórios, utensílios domésticos ou até mesmo automóveis. Seguindo ainda por essa linha de raciocínio podemos sugerir a discussão da arquitetura na animação. Da mesma forma que o designer de produto, o arquiteto tem liberdade infinita para criar dentro desse universo por não estar preso às leis da física tal qual conhecemos. No viés do design gráfico pode-se trabalhar a questão do design de personagens, no qual o processo de criação dos mesmos ocorre a partir de um conceito, um briefing e limitações técnicas. A utilização de marcas em universos de ficção também pode ser bastante explorada. Esse tema pode tratar tanto do processo de desenvolvimento de logotipos para o uso em produtos diversos desse mundo fictício, como o caso da cerveja Duff da série Os Simpsons, quanto do processo de “gestão de marca” dessas corporações fictícias, como vemos no filme Wall-e (2008) com a empresa “Buy-N-Large Corporation.” Deixamos como útima sugestão o estudo da transposição de marcas fictícias para o mundo real, como é o caso da supracitada Duff.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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