Da casa à luta - Luenne Neri | TFG FAUUSP

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Da casa À LUTA LUENNE NERI FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

TRABALHO FINAL DE GRADUAÇÃO

2017

ORIENTAÇÃO: PROFª Dra. PAULA FREIRE SANTORO


Apresentação Em virtude da divisão sexual do trabalho, às mulheres foi atribuído o papel da administração doméstica, fazendo com que ficassem por muito tempo excluídas da economia ativa. Em decorrência dessa responsabilidade pela família, elas passaram a sentir situações de emergência de forma mais imediata que seus companheiros e começaram a assumir responsabilidade pela organização de protestos em seus bairros. Este trabalho busca entender de que forma algumas experiências decorrentes do papel social atribuído às mulheres têm influência na sua participação nos movimentos de moradia e de mobilidade urbana. E também, a partir disso, entender a importância da liderança feminina para esses movimentos.


AGRADECIMENTOS

À Paula e à Raquel, pelo entusiasmo e pela orientação paciente. A todas as mulheres que se dispuseram a me ajudar neste trabalho: Ana, Aline, Antonia, Carol, Evaniza, Fátima, Graça, Helô, Ivaneti, Letícia, Marina, Meli e Silvia. À Ma e à Sophi, primeiras companheiras de alegrias e inquietações fauanas. Ao Piratinha, pelos desabafos e pelo companheirismo, da LAAUSP pra vida. Ao Pedrico, pelo carinho e proteção incondicionais nas crises de vestibular, nas dificuldades em NY e em todos esses anos de FAU. Ao Thi e ao Pietra, por me ajudarem e me acalmarem nos momentos de crise. Ao Will, ao Pimentinha, ao Para, à Lau, à Gi e aos amigos de FAU que estiveram presentes, desde os primeiros anos até hoje. Aos 28, Pri, Bahia, Jane, Fe, Tinho e Jonas, pelas viagens, gargalhadas, brigas (haja treta) e ensinamentos, e à Tica, pelas palavras certeiras nos momentos mais felizes e difíceis da minha vida.

À Keka, por sempre me ajudar e torcer pelas minhas conquistas, e à Carol, pela parceria incansável, do choro ao rolê. À Fefê, por sempre me encorajar, por todas as conversas antes de dormir, as risadas, as tristezas e aprendizados juntas. Ao Deizers queridos, Gu e Manu, e também à Isa e à Carol, por terem vivido comigo um dos melhores anos da minha vida. À Atlética, que me proporcionou amizades e conhecimentos pra vida toda, e a todas as gerações de atleticanos. Ao Giba, pela paciência, por estar sempre disposto a me acalmar, pelo carinho e por me acompanhar em tantas noites viradas. E especialmente à minha mãe, ao meu pai e ao meu irmão, pelo amor, pelo apoio, pelo exemplo e por sempre acreditarem em mim.




01 ANTECEDENTES

[11]

02 Processo

[12]

Primeiro recorte: movimento de moradia

[12]

Domesticidade feminina

[12]

Diferenças das mulheres na liderança

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Segundo recorte: movimento de mobilidade

[14]

Mapeamento dos movimentos, formas de abordagem dos movimentos e das lideranças

[16]

As mulheres da mobilidade e da moradia

[17]

Sobre os movimentos pesquisados

[17]

Roteiro de entrevista

[19]

Captação de imagens e entrevistas

[21]

Formato adotado

[22]


03 Breve Panorama sobre o feminismo no brasil

[47]

Participação feminina na política

[50]

e nos movimentos

Sumário

Lideranças femininas x Feminismo

[52]

04 Perspectivas da análise

[79]

Natureza da mulher

[80]

Corpo e violência

[86]

Consequências da liderança feminina

[91]

05 Considerações Finais

[115]

Da casa à luta

[116]

Reflexões

[117]

Anexo: Roteiro de entrevistas

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Referências bibliográficas

[122]





01 Antecedentes

Foram muitas as discussões em torno das referências que deram início à pesquisa que originou este trabalho sobre “Lideranças femininas em movimentos urbanos”. Em meio às que tratavam do papel imposto à mulher nos âmbitos público e privado, surgiu a vontade de pesquisar e entender as relações entre gênero e liderança nas lutas sociais, com destaque para o movimento de ocupações de moradias e, posteriormente, movimento de mobilidade urbana. A aproximação com o tema aconteceu à medida que o assunto aparecia ao longo dos últimos anos da graduação. O documentário “Dia de Festa”, de Toni Venturi, foi o principal responsável por despertar os questionamentos centrais que deram início ao projeto e por dar destaque à luta por moradia. Ele mostra o dia a dia de quatro mulheres do MTSC (Movimento Sem Teto do Centro), filiado à FLM (Frente de Luta por Moradia) em São Paulo. A obra visa, entre outras coisas, conscientizar sobre a realidade das ocupações a partir do relato das militantes. De imediato, algumas das semelhanças entre as líderes dos movimentos chamaram a atenção para possíveis análises. O fato de todas terem começado a trabalhar desde cedo e a força de vontade para mudarem suas condições de vida e a de suas famílias é algo muito presente na história das quatro, mas não apenas delas. A necessidade de cuidar do coletivo, a sensação de terem sido salvas pelo movimento e os

discursos recorrentes sobre a maternidade são fatores que ligam muitas mulheres no comando de ocupações. Além disso, muitas ainda são motivadas pela determinação em criar bem os filhos e sentem que têm algo a provar. Apesar de já possuir uma década de idade, o documentário ainda se mostra atual. Hoje, as mulheres ainda são maioria nos vários movimentos que lutam por teto ou terra Brasil afora. Mesmo que o documentário tenha sido o ponto de partida para esse interesse, alguns outros momentos foram cruciais no processo de decisão do tema. No intercâmbio, participei de grupos e eventos feministas. Inspirada por elas, fiz – como projeto de conclusão de uma das disciplinas – um livro que reúne relatos e fotos de 100 mulheres entrevistadas nas ruas de Nova York. Esse projeto pretendia retratar a autonomia feminina de algumas mulheres de Nova York e propor uma discussão sobre sororidade e suporte. Essas conversas foram feitas nas ruas e espaços públicos da cidade e foram publicadas em um livro com a intenção de dar a outras mulheres a oportunidade de se relacionarem e de se inspirarem através do compartilhamento das experiências. Surpreendentemente, quase todas as mulheres entrevistadas tinham histórias novas e fascinantes para contar, porém um dos pontos mais intrigantes foi o


de que muitas daquelas mulheres eram mães, solteiras, tinham empregos e atuavam em organizações de trabalho social “nas horas vagas”. Isso foi algo que, para mim, evidenciou a realidade de mulheres que possuem duplas e triplas jornadas de trabalho.

02 Processo

PRIMEIRO RECORTE: MOVIMENTO DE MORADIA_ Outro tópico que influenciou o processo de decisão foi minha militância no feminismo, que teve início em 2012. Existem muitas discussões dentro da luta feminista a respeito do exercício de empatia e respeito com outras mulheres e sobre até que ponto conseguimos pôr em prática a sororidade. Esse termo, que essencialmente consiste em uma aliança entre mulheres baseada na compreensão e identificação das realidades do cotidiano feminino, é foco de desentendimentos dentro do movimento. Sobretudo do feminismo interseccional, vertente na qual se reconhece que mulheres de diferentes contextos urbanos, socioeconômicos, raciais e de gênero convivem diariamente com tipos de opressões e graus de intensidade diferentes. Apesar de ter sido influenciada a ler artigos e teses sobre o assunto e conseguir chegar em um recorte em grande parte por decorrência do engajamento na militância, algumas ponderações – como a própria crítica à falta de alcance do discurso interseccional

– fizeram crescer o cuidado para que a pauta feminista não tomasse conta. Ainda assim, por ter tido influência na bibliografia e muitos questionamentos terem inegável presença dentro das reflexões abordadas durante o aprofundamento do estudo, a luta feminista e suas bandeiras por vezes se manifestaram ao longo do processo. Tendo isso em mente, fica fácil entender o porquê dos conteúdos tratados. O trabalho proposto inicialmente envolvia uma série de temas, o que exigiu um recorte. O tema que sempre esteve presente foi o da luta por moradia. A recorrência da discussão, aliada à vasta quantidade de material de pesquisa, fizeram convergir cada vez mais para trabalhar em torno dessas lideranças. Na busca de um recorte, depois de folhear bibliografias sobre movimentos sociais urbanos e descobrir que as lideranças femininas, bem como a mera presença majoritária de mulheres, nas lutas sociais eram pouco ou nada reconhecidas – ainda que esta invisibilidade venha diminuindo –, optei por abordar este movimento, especialmente por não ter a questão de gênero como foco principal. DOMESTICIDADE FEMININA_ O livro “Feminismo e Política”, de Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli (2014), foi o primeiro material que usei para buscar ideias e também a fonte à qual mais recorri quando procurei entender melhor novas leituras durante a primeira etapa. Eles abordam com as-


sertividade as decorrências da relação entre a mulher e o espaço público e o privado, recurso básico para a compreensão das atividades impostas a ela na sociedade. Para isso, utilizam Pateman (1990), que expõe a história não contada da construção da esfera pública e dos direitos individuais na modernidade a partir das mulheres. Dentro dessas decorrências, fica a ideia de que a vocação da mulher resume-se exclusivamente à gerência do lar, excluindo-a do âmbito público e das relações que se dão nele, além de invisibilizar qualquer tipo de reação ou protesto dentro do âmbito privado, transformando agressões e abusos em pautas restritas ao núcleo familiar. “Somam-se, a essa percepção, estereótipos de gênero desvantajosos para as mulheres. Características atribuídas a elas, como a dedicação prioritária à vida doméstica e aos familiares, colaboraram para que a domesticidade feminina fosse vista como um traço natural e distintivo, mas também como um valor a partir do qual outros comportamentos seriam caracterizados como desvios”

(MIGUEL & BIROLI, 2014, l.574).

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Esse trecho do livro é importante por encontrar a linha do trabalho em dois momentos com focos diferentes: a ideia de que se consideraria um desvio

o comportamento daquela que pretendesse ir contra a “natureza” feminina – dificultando reações e colaborando para a perpetuação do papel social da mulher – e a própria naturalização da responsabilidade doméstica, que se utiliza de uma suposta condição biológica para reforçar a visão de que mulheres economicamente ativas não são tão interessantes para a sociedade quanto os homens. DIFERENÇAS DAS MULHERES NA LIDERANÇA_ As questões que o trabalho aborda foram se desenhando melhor durante a pesquisa. Antes das entrevistas feitas com as militantes dos movimentos escolhidos, alguns questionamentos começaram a surgir. Entender como uma liderança feminina muda um movimento foi o primeiro deles e sua importância foi crescendo conforme conversava com participantes dos dois grupos estudados nesse trabalho, já que o mero reconhecimento da presença feminina encontrou em um deles – e ainda encontra no outro – muitos obstáculos. Essa falta de visibilidade feminina dentro de organizações sociais que não tinham como foco reivindicações de gênero foi percebida tanto pela pouca importância dada a esse fator na literatura mais básica sobre movimentos sociais urbanos quanto pelos relatos de algumas mulheres que tiveram trajetórias de militância iniciadas nos anos 70. Foi a partir dessa percepção que fui estimulada a


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entender se existem e quais são as diferenças fundamentais da condução de uma organização quando esta é feita por lideranças mulheres.

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Ao mesmo tempo, o fato de mulheres estarem em postos de liderança dentro de alguns movimentos – como o de moradia – pode ser interpretado tanto de maneira positiva como negativa. Por um lado, a mulher ocupando uma posição de poder deveria significar maior chance de compreensão sobre as questões das mulheres e maior representatividade, visto que os homens representam apenas uma média de 30% de participação na maioria desses movimentos. Por outro lado, suspeita-se que essa liderança muitas vezes só é permitida porque os cenários principais dessa luta – a comunidade, o bairro ou a ocupação – confundem-se com uma extensão alegórica do conceito de lar. A ideia de que a mulher suporta com mais maturidade o sentimento de possíveis derrotas sobretudo por não desistir com tanta facilidade de tentar cuidar dos filhos também é recorrente na literatura de movimentos urbanos. Paralelamente à ideia de instinto materno incondicional que é atribuído à mulher, essa hipótese trouxe destaque para a influência do seu papel como cuidadora, ligado à maternidade, como possível motivador da inserção feminina no movimento de moradia.

Considero que esses questionamentos, e as possíveis polêmicas que os envolvem, às vezes acabam sendo costurados por pautas do discurso feminista, como são os casos de abusos por parte dos homens que fazem com que as mulheres saiam de casa com seus filhos; sua desvalorização e a discriminação de gênero, que reflete na escassez de cargos de liderança ocupados por mulheres no Brasil e o contraste salarial; a realidade das múltiplas jornadas de trabalho diárias que sobrecarregam as mulheres; a diferenciação na criação de meninas e meninos; a criminalização do aborto; entre outras. SEGUNDO RECORTE: MOVIMENTO DE MOBILIDADE URBANA_ Ao tentar entender essas pautas dentro do movimento de moradia, surgiu a vontade de descobrir quais seriam as diferenças entre os movimentos sociais com lideranças femininas diferentes. Foi assim que se abriu a possibilidade de observar um outro movimento, o da mobilidade urbana – envolvendo principalmente os que lutam pela mobilidade ativa, por bicicleta ou à pé – neste estudo e a curiosidade de compreender como que aquelas indagações despertadas por um movimento poderiam ter influência em outro com um perfil diferente.


PROCESSO

O movimento da mobilidade, com alguns grupos liderados por mulheres e outros com um crescimento mais recente da atuação feminina, tornou-se um objeto de estudo cada vez mais interessante em termos de comparação, pois logo despertou a reflexão sobre como essa área pode representar uma transição da íntima relação da mulher com a casa para uma tímida relação com a rua. Lembrando de alguns conceitos apresentados por Flávia Biroli: “Essa dualidade [entre a esfera pública e a privada] corresponde a uma compreensão restrita da política, que em nome da universalidade na esfera pública define uma série de tópicos e experiências como privados e, como tal, não políticos. É uma forma de isolar a política das relações de poder na vida cotidiana, negando ou desinflando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho e das relações familiares. O destaque para as exclusões que estão implicadas na conformação de uma esfera pública mostra que os valores que nela imperam não são abstratos e universais, mas se definiram, historicamente, a partir da perspectiva de alguns indivíduos, em detrimento de outros.”

(MIGUEL & BIROLI, 2014, l.563)

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Alguns dos conceitos em torno dessa temática sobre o público e o privado abordam, resumidamente, que se fez acreditar por muito tempo que o lu-

gar da mulher seria dentro de casa, desfrutando de uma suposta autoridade, que, na verdade, limitava-se ao espaço privado e às decisões que afetariam aquele ambiente, desde que fossem cumpridos deveres como cuidar da limpeza, organização e eventuais obrigações relativas à criação dos filhos e ao bem estar dos homens. O movimento de mobilidade, na direção oposta, é onde as mulheres que estão na rua se colocam. PLANO DE TRABALHO_ o objeto Lideranças femininas em movimentos urbanos que não têm o tema gênero como principal: o movimento de moradia e o movimento de mobilidade urbana. os objetivos Contribuir com o debate da relação entre gênero e cidade, e, tendo isso como base, identificar, estudar e visibilizar movimentos sociais que possuem lideranças femininas e que lutam pelo direito à cidade; Compreender as motivações de se tornarem líderes e os benefícios de serem mulheres ocupando esses espaços; Fazer uma análise comparativa das diferenças na liderança feminina em diferentes movimentos. o método _Mapeamento de alguns movimentos e suas lideranças femininas para a escolha das entrevistadas, que se deu


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através do conhecimento prévio destas lideranças e do método “bola de neve”, cada entrevistada sugeria outras; _Estudo da história e objetivo destes grupos, procurando entender a relação desses com a luta social urbana; _Elaboração de roteiro base para as entrevistas. Este serviu como guia para as entrevistas, nem sempre foi seguido de forma rígida, pois o objetivo não era estabelecer uma pesquisa quantitativa e sim qualitativa, possibilitando captar questões mais abstratas, não previamente mapeadas, nem necessariamente quantificáveis; _Realização de entrevistas em vídeo e gravadas com lideranças mulheres nos dois movimentos estudados; _Diálogo e acompanhamento destas líderes e das atividades de movimentos para a coleta de informações com primeiros registros fotográficos e audiovisuais; _Edição e finalização de um vídeo síntese das questões identificadas, utilizando os materiais audiovisuais captados. o produto: um vídeo Por acreditar que esse tipo de pesquisa acadêmica tem a capacidade de gerar um produto considerado denso, a ideia foi torná-lo um pouco mais acessível, coletando o máximo de registros fotográficos e audiovisuais, que culminaram em um projeto de vídeo documentário de curta duração. O objetivo do vídeo seria fazer emergir as reflexões que foram se delineando ao longo do trabalho de captação e entrevistas, apresentadas ao final deste caderno. Pode-

ria ser utilizado em atividades de capacitação e fortalecimento da autonomia das lideranças para o desenvolvimento das suas lutas.

MAPEAMENTO DOS MOVIMENTOS, FORMAS DE ABORDAGEM DOS MOVIMENTOS E DAS LIDERANÇAS_ A tentativa de mapear alguns movimentos serviu para dar um impulso inicial para as primeiras entrevistas e também para gerar uma reflexão sobre como esses movimentos estão em constante renovação. A concepção inicial do projeto sugeria a utilização de grupos focais, o que logo se mostrou caro e trabalhoso, alterando a metodologia para entrevistas individuais em profundidade. Aos primeiros contatos e conversas, a experiência individual mostrou-se muito mais propícia a este estudo. Muitas opiniões repetiram-se, como era esperado, porém a aproximação com cada uma acabou fazendo os detalhes aparecerem, o que talvez não ficaria tão perceptível se fosse feito em um grupo focal, onde consensos – e não dissensos – são construídos. Uma das apostas para o desenvolvimento de grupos focais baseava-se na otimização do tempo para que a leitura da bibliografia pudesse seguir em paralelo, na crença de que, para conseguir falar com maior segurança sobre o assunto, tivesse que me debruçar sobre pilhas e pilhas de referências bi-


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bliográficas para então ir a campo procurar entender esses questionamentos na prática. Ao engatar nesse ciclo de entrevistas, o processo mostrou-se extremamente gratificante ao comprovar algumas análises – que haviam sido baseadas fundamentalmente em leituras – através de confirmações dessas conversas. O que se captou das entrevistas foi igualmente importante ao que aprendi da referência bibliográfica. Grande parte do roteiro decidido nessa etapa foi cumprido, porém, pela limitação de tempo, que foi subestimada no início do projeto, algumas formas de abordar os movimentos e as lideranças tiveram de ser descartadas. Basicamente comecei a dar preferência às saídas a campo quando percebi que conseguiria extrair mais aprendizados dessas experiências e, assim, deixei estratégias – como a de criação de modelos de conteúdo – e vontades – como a de priorizar a linguagem audiovisual – em segundo plano. Ainda assim, até mesmo esse processo de decisões acabou sendo relevante para o desenvolvimento pessoal dentro do trabalho e da própria maturidade do projeto.

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AS MULHERES DA MOBILIDADE E DA MORADIA_ Os primeiros passos para engajar na fase de entrevistas foram um pouco conturbados pela falta de familiaridade com algumas dinâmicas e por um processo não muito eficiente de agendamentos.

Foi quando conversei com as líderes da UMM que comecei a ter progresso. Foram feitas entrevistas com sete lideranças do movimento de moradia: três da União dos Movimentos de Moradia – a Graça, a Evaniza e a Fátima –, três da Frente de Luta por Moradia (FLM) – a Antonia, a Ivaneti e a Helô – e uma do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) – a Carol. Já no movimento por mobilidade urbana, foram 6 entrevistadas: A Aline e a Marina, que são referências no cicloativismo, e a Ana, a Letícia, a Meli e a Silvia, que são atuantes nos movimentos de mobilidade a pé. Apesar de se dedicarem prioritariamente a um tipo de mobilidade, a maioria tem envolvimento em mais de uma organização dentro do movimento. SOBRE OS MOVIMENTOS PESQUISADOS_ A título de contextualização, considero necessária uma breve apresentação de alguns dos grupos com que tive contato através das entrevistadas, seja pela participação das mesmas, seja pela importância histórica no contexto dessas lutas. A União de Movimentos de Moradia (UMM) e a Frente de Luta por Moradia (FLM) são filiadas à Central de Movimentos Populares (CMP), que teve sua formação junto às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) – das quais tantas mulheres fizeram parte e deram início às suas trajetórias de luta. Sendo que ambos têm como princípios básicos o direito à moradia, a


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defesa da reforma urbana e a ocupação como ferramenta de luta. A Frente tem a característica de ser mais focada no centro, enquanto a UMM tenta ser um pouco mais distribuída, além de ter como foco a autogestão – conquistar terra e recurso para construir e fazer a gestão da produção habitacional com as próprias famílias. Apesar de ambos possuírem a ocupação como ferramenta, a União costuma utilizá-la apenas como instrumento de pressão enquanto que a Frente normalmente ocupa com o objetivo de negociar a aquisição do imóvel pelo governo para as famílias ocupantes, sendo assim uma política de resistência a partir da permanência. O Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) também tem como foco de luta a reforma urbana e o direito de moradia digna. Nasceu em Pernambuco nos anos 90 e, junto a movimentos como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST), compõem a Frente Povo Sem Medo (FPSM). Atualmente existem muitas organizações em prol da mobilidade urbana que são referência em São Paulo, porém aqui vou comentar apenas daquelas das quais as entrevistadas participam mais ativamente, que é o caso do SampaPé – do qual fazem parte a Ana e a Letícia –, do Corrida Amiga – fundado pela Silvia –, da Ciclocidade – onde a Marina coordena o GT gênero – e d’oGANGORRA – co-fundado pela Aline. Os dois primeiros atuam na mo-

bilidade a pé enquanto os outros focam no cicloativismo. O SampaPé e o Corrida Amiga têm como foco incentivar que as pessoas deixem seus carros na garagem e optem mais pela caminhada como meio de locomoção. O primeiro tem como uma das ferramentas os passeios temáticos, que, através da experimentação e do reconhecimento lúdico da cidade, estimula a vontade de caminhar mais e a consequente aproximação dos indivíduos com a mesma. Já o segundo promove caminhadas e corridas não só como meios de transporte, mas também como ferramentas para otimizar o tempo e alcançar uma vida mais saudável. Separei essas organizações em dois grupos pelo simples motivo das duas primeiras terem como foco principal a mobilidade a pé e as outras o cicloativismo. Contudo, acho válido ressaltar que, apesar de atuarem mais ativamente em grupos específicos, as militantes da mobilidade mostraram-se engajadas e muito esclarecidas no tema de uma forma geral, sempre elucidando dúvidas minhas, fossem elas sobre o movimentos dos ciclistas, fossem sobre deslocamentos a pé. Algumas inclusive participam em outros grupos, citados e não citados aqui. A Ciclocidade é um deles. Com uma política bem aberta para novas participações, a organização possui diversos grupos de trabalho e projetos com abordagens diferentes no


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universo do ciclismo urbano e acolhe pessoas engajadas no assunto e interessadas em colaborar. Um dos objetivos da Ciclocidade é promover o debate sobre a garantia de acesso a direitos na mobilidade e acredita na bicicleta como meio para alcançarmos uma cidade mais sustentável. oGANGORRA é uma empresa social que reúne entidades comprometidas com o desenvolvimento das cidades e acreditam na bicicleta como um dos meios de deslocamento mais favoráveis para esse fim. Nasceu de uma união de diversos grupos que são referências no assunto, com o sonho de juntar empreendedorismo ao ativismo e a paixão pela bicicleta. ROTEIRO DE ENTREVISTA_ Um roteiro de entrevista foi delineado com perguntas básicas como idade, estado civil e quantidade de filhos, além das mais direcionadas aos movimentos, como dedicação diária, atuação, vivências e tipos de conflitos vividos, foram abordadas seguindo a linha de raciocínio do projeto na primeira etapa de trabalho. Elas foram pensadas e divididas levando em consideração o envolvimento com o âmbito privado e público.

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Para essas entrevistas, foram preparados questionários com perguntas que serviriam de roteiro, a princípio diferentes para cada grupo. Porém, depois das primeiras entrevistas, considerei juntar os dois questionários e aplicar as mesmas perguntas, já que possuíam questões muito parecidas e surgiu a

curiosidade de saber como as perguntas diferentes manifestariam-se nas respostas dessas mulheres. Além disso, algumas novas perguntas começaram a parecer relevantes e outras passaram a perder em parte o sentido e foram ignoradas. Mesmo que não seja denunciado pelas informações pessoais das entrevistadas, a questão etária demonstrou ser um fator relevante no conteúdo das conversas, no sentido de que o movimento de mobilidade mostra-se como um movimento mais jovem enquanto que, no de moradia, muitas lideranças começaram nas comunidades eclesiais de base, nos anos 70 e 80, e participam até hoje. Destaco que os perfis das entrevistadas não denunciam isso com precisão por apresentarem uma variedade considerável nas idades amostrais. Também é assim na questão da naturalidade, já que seis são paulistanas – três de cada movimento. Outro ponto interessante foi perceber de que forma a administração do tempo cotidiano delas é feito para conciliar e separar os assuntos pessoais e os da militância. É curioso pensar que, apesar de darem respostas parecidas sobre as dedicações diárias ao movimento, o momento do descanso pode ter interpretações diferentes para cada um. Por um lado, apesar de dedicarem grande parte do tempo às atividades relacionadas ao movimento – muitas vezes como parte de seus empregos –,


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a casa como lugar de descanso do trabalho – remunerado ou não – só vale integralmente quando o objeto de suas lutas não é o próprio lar, como é o caso das lideranças que são responsáveis por administrar as ocupações nas quais vivem.

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É importante destacar que o interesse do bem-estar coletivo também é uma motivação para a participação nesses movimentos. Mesmo que exista o interesse de conquista pessoal a priori, um aspecto é comum a quase todas as falas das entrevistadas: a vontade de conquistar coletivamente melhorias no contexto do desenvolvimento urbano através dos seus movimentos. Existe também a consciência de que, através de mudanças internas em movimentos pontuais, elas são capazes de lutar melhor pelo direito à cidade. Essa vontade de construir coletivamente é percebida tanto pelas falas despretensiosas em momentos soltos das conversas quanto pelas opções feitas por elas ao longo do próprio envolvimento na luta. A escolha por engajar em qualquer tipo de ativismo por si só já denuncia a disposição em usar o tempo próprio em benefício do coletivo. É interessante observar que muitas dessas mulheres que estão nesses movimentos – não só as entrevistadas – acabam escolhendo incorporar essas pautas cada vez mais em suas vidas, seja pelos estudos e profissões, seja pela simples vontade de

permanecer na luta mesmo tendo filhos ou depois de suas vontades pessoais já terem sido atendidas. É importante destacar também que existe a consciência de que fatores de raça e classe são de extrema importância na análise desses movimentos e de seus atores. Essa consciência, inclusive, é muito presente em ambos os grupos, sendo que, dentro do discurso das mulheres da mobilidade, existe ainda a percepção de que é necessário que essa militância chegue nas periferias e que exista a discussão frequente sobre classe, raça e acessibilidade dentro do movimento. É possível que o perfil socioeconômico desses movimentos também interfira em como eles são vistos e julgados pela mídia, e consequentemente pela sociedade de modo geral. Mesmo quando analisamos as ferramentas de luta que são semelhantes – se for o caso de analisarmos as manifestações nas ruas –, existe uma clara diferença na recepção e adesão das pessoas de modo geral. Ainda existe a aversão aos movimentos de luta por moradia que se manifesta em opiniões construídas a partir do rótulo de invasores, como se o movimento procurasse de forma oportunista se apropriar de algo que não é seu por direito. O que não é verdade. Já os movimentos de mobilidade a pé e de bike têm sido cada vez mais bem recebidos, tanto pela mídia quanto pelos moradores da cidade de todas as classes. Não há aqui pretensão alguma de desvalorizar


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um movimento simplesmente pela felicidade de possuir apoio dos meios de comunicação, mesmo porque tenho plena consciência de que não há o menor propósito desses movimentos de se compararem. Como já foi dito anteriormente, a escolha deles foi feita pelo reconhecimento da necessidade das pautas como moradora da cidade de São Paulo. Apenas exponho aqui essas noções para reflexão própria e pela desconstrução das afirmações que acabamos naturalizando por influência de alguns meios de comunicação e preconceitos sociais. Outros temas de cunho socioeconômico das conversas, como a quantidade de filhos e escolaridade, foram pontos de partida para reflexões mais alongadas e portanto serão abordadas com maior atenção em outros capítulos deste caderno.

mentos de Moradia. Foi nesse episódio que comecei a identificar os temas que até então só havia lido sobre.

CAPTAÇÃO DE IMAGENS E ENTREVISTAS_ A fase de captação de imagens e entrevistas teve um início um pouco linear, havia uma lista de possíveis entrevistadas, mas não se sabia precisamente quantas e nem quais militantes seriam entrevistadas. De todo modo, mesmo os ensaios feitos inicialmente, que não couberam na discussão proposta, tiveram impacto pessoal e não foram descartados ou interpretados como desperdício.

Por precisar tomar decisões sobre as imagens que seriam mais relevantes para a edição do vídeo, notei que me aproximei dos movimentos de duas formas diferentes. Observar os movimentos de moradia de um ponto de vista mais interno despertou uma valorização ainda maior do compromisso e cuidado com os trabalhos feitos dentro dessas organizações. E tentar observar as relações de mulheres diferentes com a rua intensificou a percepção da minha própria interação com a cidade, com os meus meios de locomoção e com o espaço público enquanto mulher.

A definição do produto só começou a tomar forma quando fui convidada, pela coordenadora Evaniza, a participar de uma Plenária da UMM - União dos Movi-

Nesse dia, dei início à série de entrevistas e, a partir dele, passei a me organizar melhor quanto aos atos, reuniões e eventos diversos. Conforme as entrevistas eram feitas e a aproximação aumentava, passei a perceber que o produto final propendia mais para a produção de um vídeo do que para um projeto fotográfico. Além da capacidade de traduzir melhor as questões que passaram a ser centrais, esse tipo de produção consegue se aproximar melhor das particularidades de cada movimento e das percepções individuais das entrevistadas. Aceitei também que, com a fotografia, teria mais obstáculos para transmitir com igualdade a complexidade dos dois grupos.


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FORMATO ADOTADO_ Por conta dessa proximidade, outra coisa que se fortaleceu foi o desejo de tentar dar maior visibilidade ao projeto e por isso tenho me esforçado para concretizar a ideia de reunir todo o conteúdo de pesquisa, fotografia e vídeo em um site. Diferente do caderno – que costuma ser o único produto de exposição dos trabalhos de conclusão de curso na FAU e fica, na maioria das vezes, restrito à biblioteca e àqueles que possuem uma cópia, ou à exemplares em formato digital na plataforma issuu – tenho a impressão de que uma plataforma online pode ser um meio um pouco mais democrático e acessível a um público mais amplo para a divulgação desta pesquisa. O site daria a possibilidade de hierarquizar conteúdos de visualização rápida e de maior profundidade, a fim de que o usuário possa escolher com maior facilidade aquilo que deseja ver. A idealização desse site foi uma das primeiras vontades no processo deste trabalho e será algo com que poderei continuar envolvendo-me posteriormente, mesmo que não seja consolidada até a conclusão dessa etapa. Essas aspirações, de modo geral, são partes também de um resultado de intensas reflexões ao longo da graduação sobre o meu papel enquanto estudante da FAU. Delas também surgiram muitas preocupações sobre a minha formação enquanto arquiteta e o insuficiente interesse – e vocação – para o “projetar”. Durante todos esses anos, rara-

mente presenciei alunos ou docentes falarem de “Projeto” para se referirem a algo que não fosse relacionado às disciplinas de projetos de edificações. Essa observação, junto à minha autoavaliada diminuta vocação, fez-me acreditar aos poucos na ideia de que o projeto que não possuísse essa definição teria menor validade na minha formação em Arquitetura e Urbanismo. Contudo, por meio de todo esse processo – de pesquisa, de aprofundamento e de autonomia na escolha das diretrizes – que desenvolvi neste trabalho de conclusão de curso, consegui me afastar cada vez mais dessa preocupação que me cercou desde os primeiros semestres de FAU. Percebi isso em muitos momentos durante o TFG, porém, de forma mais precisa, o sentimento foi mais forte quando me vi desempenhando o papel de estudante – pois algumas reuniões e entrevistas foram como aulas para mim –, colaboradora – quando fui convidada a ajudar na organização de um evento – e compartilhadora – ao ser convidada por uma colega para compor a mesa de uma discussão sobre feminismo e mobilidade urbana no Instituto de Relações Internacionais da USP. Para mim, esses acontecimentos, que acabaram decorrendo das decisões que envolveram esse trabalho, fizeram-me reaproximar da noção de que essa diversidade de abordagens e interesses dentro da FAU foi de extrema relevância para a minha formação.


























03 Breve Panorama do feminismo no Brasil

Muito se fala da necessidade de debater sobre o tema da subordinação feminina antes de ingressar em uma análise sobre as relações de gênero e movimentos sociais (Whitehead, 1979). E esse tema é recorrentemente conectado ao papel social da mulher que adveio da divisão sexual do trabalho (Mackintosh, 1984). Acredita-se que essa divisão de funções para homens e mulheres têm responsabilidade na perpetuação da subordinação feminina ao homem. Uma das questões trazidas pelo termo “divisão sexual do trabalho” já está na própria escolha das palavras, no sentido de que o termo “sexo”

traz polêmicas por tratar-se de uma denominação baseada em uma categorização biológica, sendo que homens e mulheres fazem parte de categorias psicológicas, sociais e políticas (Scott, 1986). O termo “gênero” abrange essas categorias e abraça a variabilidade enquanto que “sexo” pressupõe uma invariância embasada em conceitos biológicos (Oakley, 1972). Até porque alguns desses papéis e as tarefas associadas a eles muitas vezes variam de cultura para cultura, ou seja, papéis atribuídos aos homens em uma cultura podem ser de domínio feminino em outra. Sendo assim, alguns autores acabam usando o termo “divisão de trabalho por linhas de gênero” no


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lugar (Rubin, 1975 e O’Brien, 1981). Divisão essa que determina que para sociedades diferentes de maneiras diferentes, mulheres e homens têm papéis separados, influenciados pelas transformações econômicas que determinado espaço sofre em função do tempo. A Segunda Revolução Industrial, sendo um marco para o desenvolvimento de várias tecnologias, fez com que o foco da unidade básica de produção passasse da família para as organizações empresariais. A produção familiar e a capitalista conviveram durante um tempo na Europa do século XIX, quando famílias inteiras de camponeses começaram a ser empregadas por esse sistema. Porém, pela inviabilidade da convivência causada pelo fortalecimento do sistema industrial, passou-se a priorizar a produção capitalista. A esse fenômeno, deu-se o nome de separação entre o lar e o local de trabalho. Foi a partir dessa separação que a relação da mulher com a casa foi ficando cada vez mais próxima, restrita, já que, para as mulheres, as oportunidades de emprego que surgiram nesse contexto eram muito semelhantes às tarefas domésticas. À medida que se desenvolvia o mercado de trabalho, intensificava-se essa divisão do trabalho por linhas de gênero e as mulheres começaram a perpetuar-se como as primeiras responsáveis

pela administração doméstica e todas as atividades associadas a esse papel. Além de serem responsabilizadas por um tipo de trabalho ao qual se dá pouquíssimo valor, essas mulheres foram privadas de tempo para o trabalho remunerado. E, quando tinham emprego, foram obrigadas a cumprir duplas jornadas de trabalho, visto que culturalmente as tarefas relacionadas à limpeza, manutenção e cuidado com os filhos são de exclusividade da mulher. Quando não são, os homens no máximo dizem “ajudar”, reforçando essa exclusividade. Muitas vezes, para embasar essa designação, apela-se para a hipótese de que essas funções só recaem sobre a mulher por uma suposta natureza organizacional, de cuidados e higiene que se mostra mais óbvia no instinto feminino. Isso, é claro, também é fruto dessa construção do papel social da mulher e de seu reflexo presente em como criamos meninos e meninas de forma evidentemente distintas. Muito se discute sobre os principais causadores dessa divisão. Porém um dos consensos é o de que existia a visão de que a mulher no mercado de trabalho era prejudicial ao Capital e, por isso, esse processo de isolamento e construção de funções e empregos “tipicamente femininos” foi iniciado, deixando a mulher cada vez mais


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atrelada a uma força de trabalho secundária e afastando-a da possibilidade de uma existência autônoma.

filhos, passaram a ter mais tempo para atividades econômicas e menor necessidade de dedicação no ambiente privado.

Apesar de estarmos evoluindo nessas questões, a tentativa de manter a mulher afastada do mercado de trabalho ainda é uma realidade muito presente. Além do obstáculo da discriminação e dos salários mais baixos para desenvolver funções idênticas às do homem, quando conseguimos atravessar essas barreiras, temos que lidar com outras dentro do ambiente de trabalho, como a necessidade constante de provar que somos capazes de executar certas tarefas consideradas masculinas, lidar com colegas que tentam diariamente nos invisibilizar e apropriar-se de falas e ideias propostas por mulheres, além dos diversos tipos de assédios.

Apesar de termos tido um desenvolvimento significativo nas áreas da saúde, educação e até na redução da desigualdade de gênero no ambiente de trabalho, as mulheres ainda encontram fortes barreiras quando falamos de cargos de poder, tanto na esfera política quanto na econômica. Mesmo compondo a maioria da população brasileira com nível de educação superior e agregando cada vez mais no mercado de trabalho – inclusive com a diminuição de disparidades salariais –, ainda não conseguimos nos livrar das responsabilidades oriundas da divisão do trabalho por gênero. Ou seja, estamos lentamente conquistando os espaços onde não éramos bem-vindas e estamos alcançando autonomia econômica, porém ainda não nos desfizemos completamente da responsabilidade administrativa do lar, o que faz com que nos conformemos e naturalizemos as realidades das jornadas duplas, triplas, múltiplas como coisas não só possíveis como inteiramente aceitáveis.

Em alguns aspectos, esse processo foi semelhante no Brasil. Ainda no início do século XX, o país tinha sua economia baseada no meio rural. Quando a economia urbana começou a avançar e o governo pôde direcionar mais recursos para educação, saúde e políticas públicas em geral, houve um aumento significativo da população urbana e as taxas brutas de natalidade e mortalidade começaram a cair. Essas quedas indicam, superficialmente, que as mulheres passaram a ter mais tempo de idade produtiva e, com menos

Coincidência ou não, ainda estamos longe de uma distribuição igualitária de gênero nos cargos relevantes da política brasileira. Cargos esses que concentram o poder de atuação neces-


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1 Leis reguladoras da responsabilidade materna – como a reduzida licença paternidade –, proibitivas – como a criminalização do aborto – e as de “proteção” – como no caso daquelas que, ao alegar uma suposta debilidade física da mulher, criam implicações nas relações trabalhistas por conta dessa diferenciação por gênero. Por exemplo, conforme o Artigo 375 da CLT, “Mulher nenhuma poderá ter o seu horário de trabalho prorrogado, sem que esteja para isso autorizada por atestado médico oficial, constante de sua carteira profissional.”

sário para criar e modificar as leis e políticas públicas que interferem diretamente nas vidas das mulheres. Isso faz com que elas sejam mantidas em posições sociais secundárias por leis que indiretamente tornam a mulher desinteressante do ponto de vista produtivo.¹ PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA E NOS MOVIMENTOS_ A contextualização dessa divisão é importante para o desenvolvimento deste trabalho por ter forte influência no que diz respeito à participação feminina dentro dos movimentos estudados. Por um lado, a divisão do trabalho por linhas de gênero ter feito da mulher a personagem mais íntima da casa faz também com que ela seja a mais preocupada, por sentir com mais urgência as deficiências nas políticas habitacionais. Por outro lado, ao ensinarmos e perpetuarmos esses papéis dentro de casa, na criação dos filhos, reforçamos a noção de que as ruas não são feitas para mulheres e naturalizamos o desconforto dos assédios e agressões que sofrem ao se deslocarem pelas cidades. Diante do reconhecimento dessa disparidade e o envolvimento crescente da sociedade nas discussões sobre gênero, as mulheres começaram a integrar cada vez mais as discussões sobre mobilidade urbana.

Ambas percepções, apesar de se relacionarem de formas diferentes com cada um dos movimentos, têm razões enraizadas na construção de papéis sociais e de como mulheres e homens devem se portar na casa e na rua. Isso tudo é percebido com a consciência de que temos outros fatores extremamente relevantes para cada um dos envolvimentos, como classe, raça, endereço, idade, arranjos familiares e uso do tempo. “Fizeram-se religião, arte, literatura, tudo calcado sobre o princípio da inferioridade feminina e com o intuito exclusivista de tornar irremediável essa inferioridade”

(MOURA apud LEITE, 1984, pg. 112) A história da inserção da mulher na política tem pouco mais de cem anos. No Brasil, o Rio Grande do Norte, primeiro Estado a conceder às mulheres o direito de voto e eleger uma prefeita, deu início a esse processo somente nos anos 20. Nos anos que sucederam o golpe de Getúlio, tivemos – dessa vez no Brasil todo – uma pequena amostra de liberdade eleitoral feminina, ao passo que se permitiu, através de um Código Eleitoral Provisório, que algumas mulheres pudessem votar – com a permissão do marido ou, no caso das solteiras, com renda “apropriada”.


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O Partido Comunista Brasileiro começou a ter presença cada vez mais forte na oposição ao governo de Getúlio e, mesmo que tivesse a característica de “acolher” mais mulheres do que os outros partidos, esse acolhimento traduzia-se em cargos baixos, desvalorizados e denunciava como o funcionamento do partido não era diferente da sociedade como um todo. Maria Werneck, uma das torturadas na primeira prisão política feminina do Brasil, relata em seu livro “Sala 4: Primeira Prisão Política Feminina” (1988) que apesar de terem cargos desimportantes e desempenharem praticamente apenas tarefas de cunho doméstico, as mulheres do partido foram torturadas do mesmo jeito que os homens.

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Essa falsa aceitação da presença feminina em ambientes de debates políticos persiste até os dias de hoje. Aliás, ela ainda se manifesta em outros meios e de outras formas, seja pelas disparidades salariais e pelas falas dominadas por homens em reuniões de trabalho, seja pelo arranjo familiar e a falsa distribuição igualitária de tarefas domésticas. No contexto da esquerda brasileira da primeira metade do século XX, a participação feminina era restringida com o argumento de que a inserção da pauta de gênero impediria ou atrasaria a verdadeira luta, a de classes. Essa mentalidade repetiu-se ao longo do tempo e, anos depois, manifestou-se em falas

de grupos de esquerda sobre a questão da violência doméstica. O Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) chegou a alegar que aquelas que davam muita importância a essa pauta corroboravam o “jogo da ditadura”, “oprimindo o operário que chegava cansado do trabalho e batia na mulher” (Costa, 2010). Ainda em meados do século XX, feministas-marxistas começaram a questionar-se da exclusividade da responsabilidade do capital sobre as hierarquias de gênero. Passaram a perceber que o partido, ainda que progressista, refletia a realidade patriarcal da sociedade brasileira e, apesar de estar vagarosamente conquistando alguns espaços na política, as mulheres continuavam sofrendo da mesma forma com a violência de gênero. Nos anos 60, paralelamente à perseguição generalizada a grupos políticos, os movimentos de mulheres e os grupos feministas ganharam força e mantiveram-se ativos durante a ditadura. Reivindicações por demandas que ainda precisavam ser supridas, como a de creches e serviços de saúde mais decentes, começaram a ser recorrentes, fazendo com que mulheres fossem às ruas para protestar. Essas manifestações foram importantes por eventualmente darem voz a denúncias sobre a realidade da violência doméstica. Já


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na década seguinte – muitas vezes pela articulação dos movimentos das mulheres –, feministas e não feministas passaram a reivindicar nas portas das prefeituras soluções para esses problemas da vida cotidiana. A partir do sucesso dessa ação, muitas outras reivindicações por políticas públicas começaram a aflorar (Blay, 1985).

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Uma das primeiras integrações dos grupos feministas com a política brasileira foi através da Frente de Mulheres Feministas (FMF) e da elaboração de estratégias que decorreu dela. Temas de cunho feminista, como questões trabalhistas, aborto, violência doméstica e abuso sexual começaram a repercutir na mídia. A FMF acolhia pessoas de diversos grupos e abordava questões sobre homossexualidade e violência racial, e por isso se acredita que a luta das feministas acabou parcialmente inspirando a manifestação política de outros grupos marginalizados. Sabemos que, no que diz respeito ao fim da segregação política das mulheres, dos negros e negras e da comunidade LGBTT, obtivemos muitos avanços nos últimos anos, apesar de lentos. Porém ainda restam muitos desafios a esses grupos na política. Como sociedade, reforçamos ainda com muita naturalidade a violência e subordinação do corpo feminino, por exemplo. E, por isso, além de abraçarmos esses avanços, ainda lutamos para

conquistar ajustes políticos, sociais e econômicos na área dos direitos das mulheres. LIDERANÇAS FEMININAS X FEMINISMO_ Acredito que essa contextualização do panorama sobre o feminismo no Brasil é importante não só para expor as conquistas relativas às libertações das mulheres, mas também para dar base a outra discussão: a da necessidade de não confundirmos lideranças femininas com feminismo. Fiz essa análise para que o estudo das razões que motivaram o ingresso das mulheres nos movimentos estudados não deixe de lado a relevância da luta feminista para a libertação dos mesmos, pois, assim como algumas das pautas feministas, essas razões são em grande parte derivadas da divisão sexual do trabalho. Ainda assim, cabe apontar questionamentos sobre a desvalorização dada a certos modos de se combater um sistema no papel de mulher. A luta pela superação da subordinação deve ser feita, porém sem negar a importância que muitas mulheres que estavam submetidas a esse contexto de subordinação também tiveram conquistas e proporcionaram melhorias no bem-estar de suas famílias e comunidades. Importante destacar também que muitas vezes a luta das mulheres acaba conscientizando as mesmas de suas posições subordinadas não só pelos aprendizados na militância como também ao notarem as reações negativas de seus par-


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ceiros em relação ao envolvimento na luta. Já a luta por mobilidade urbana transita entre a casa e a rua, porque já parte do afastamento da função doméstica feminina e entra no debate sobre os direitos que ainda não foram conquistados de locomover-se na cidade. Tendo esclarecido isso, fica mais fácil o entendimento para a escolha desses dois movimentos. Moradia e mobilidade são pautas inevitáveis de qualquer pessoa que viva em uma cidade. E, mesmo que não proponham prioritariamente a discussão de gênero, despertam a vontade de entender a influência da presença feminina sobre eles. Presença que, apesar de ignorada por alguns estudiosos, tem se provado extremamente importante.



























04 Perspectivas da análise

Como já foi dito anteriormente, um dos objetivos deste trabalho foi entender as motivações para o envolvimento feminino em movimentos cuja pauta não fosse a questão de gênero. Feito o recorte, a pesquisa e as conversas com as militantes, veio a necessidade de organizar as perspectivas e conclusões que adotei para guiá-lo. Com isso em mente, coloquei no papel os temas que mais me despertaram interesse e, em seguida, agrupei-os da seguinte forma: separei o que trata da natureza

feminina dos tópicos que tratam da percepção da mulher sobre corpo e violência. E, então, englobei os dois como fatores de envolvimento por gênero. A ponte entre eles é feita através do questionamento sobre o papel social feminino e a romantização do mesmo. Os resultados mais perceptíveis dessas lideranças e as discussões que eles despertam ficaram como assuntos conclusivos, por serem abordados como meio de compreensão da necessidade da saída da casa à luta.


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2 Fala de Ivaneti Araújo, durante a entrevista concedida.

NATUREZA DA MULHER_ É sabido que o movimento por moradia no Brasil é composto majoritariamente por mulheres e que uma boa parcela dessas mulheres possuem filhos. Confirmado isso, veio a necessidade de descobrir de que modo a maternidade afeta o engajamento das militantes da luta. Escolhi colocar tal debate nesse grupo pelo fato dele se desenrolar e trazer à tona o termo “instinto” muitas vezes. E o instinto materno, tratando-se de uma condição vista como própria da biologia das mulheres, encaixa-se como natureza. Colocado o tema da maternidade em pauta, fez-se necessária a divisão dos debates em dois lados, já que essa condição pode atuar de formas diferentes na vida das mulheres e, portanto, na forma com que elas a conciliam com o movimento. Por um lado – que é o que ocorre com clareza na atuação das mulheres da moradia – a maternidade pode acabar sendo a causa da entrada de muitas delas no movimento. Lidar com aluguéis caros, que comem boa parte da renda familiar, já é uma realidade bem complexa para a maior parte da população brasileira. Ser mãe acaba tornando essa barreira financeira bem mais preocupante, em parte por carregar a responsabilidade constante de ter que deixar algum patrimônio aos filhos se algo acontecer a ela. Essa é a fala que mais aparece sobre as motivações das mães tanto na UMM quanto na FLM ou no MLB.

A mulher acaba assumindo e buscando mais pelo fato de ter aquela responsabilidade materna. Ela não pensa nela vivendo no momento com os filhos. A maioria das falas são assim: ‘eu vou porque pode acontecer algo no futuro e aí eu tenho um lugarzinho onde deixar meus filhos’.2


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As mulheres são ensinadas desde cedo a cuidar dos futuros filhos. Dá-se a boneca, o fogãozinho, a responsabilidade de cuidar dos irmãos, aprende cedo a brincar de casinha e dela cuidar. Aprende cedo a administrar tudo que remete à esfera reprodutiva e esse aprendizado nos alcança na idade adulta, quando, vez ou outra, surge a responsabilidade de cuidar dos idosos da família. Além disso, as mulheres também são ensinadas desde sempre a amar, e eu digo isso da forma menos poética possível. Somos ensinadas – e eu não estou restringindo esse ensinamento ao núcleo familiar – que o maior objetivo das nossas vidas deve ser o de casar e construir família e, por isso, acabamos aprendendo que somos mais sentimentais. Isso, de alguma forma, nos autoriza a nos sentirmos bem por dividirmos experiências, demonstrar afeto e, naturalmente, sermos as responsáveis pelo bem da família. Sentimento esse que, quando surge no homem ou no menino é abafado e reprimido na maioria das vezes. A facilidade nas trocas de experiências também pode ser vista como um motivador adicional da entrada de mais mães no movimento. Muitas pessoas, a princípio, têm uma imagem da luta por moradia influenciada pela mídia e acabam desconfiando que o movimento não é acolhedor. A partir do momento em que é reconhecida a presença materna – por exemplo, em uma ocupação

–, a identificação dos mesmos obstáculos vividos por outra mãe e a espontaneidade ao dividir suas bagagens tornam a aproximação mais fácil. Com frequência, fala-se também que a “natureza” corajosa do homem não costuma se manifestar no movimento de forma geral, e que a coragem da mulher acaba aflorando em momentos de confronto. Carol, do MLB, conta em um momento da entrevista que, nos dias de ocupação, as mulheres costumam admitir que estão com medo, mas que querem ir. Antonia, da FLM, cita um exemplo de quando passou por um momento de medo e que deixou de senti-lo quando a filha disse acreditar em sua capacidade de lidar com a situação. Cito esses exemplos aqui para, de alguma forma, mostrar que se entende dentro do movimento que a maternidade influencia as dinâmicas internas. E influencia até mesmo no modo com que as mulheres vão se portando, conquistando a confiança do grupo e, aos poucos, sendo consideradas líderes por tudo que adicionaram – e também pela coragem. O lado restritivo da maternidade – e esse já se aplica a quase todas as esferas profissionais da mulher – dá-se pela administração do tempo em conjunto com a responsabilidade educativa assimétrica na maioria das famílias. Resumindo: as mães acabam tendo menos tempo que os pais


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para atividades que não envolvam seus filhos, sejam elas remuneradas, acadêmicas, de lazer ou ativismo. O IBGE chegou a publicar, alguns anos atrás, a declaração de que, neste século, as mulheres passaram a ser responsáveis por jornadas triplas de trabalho, considerando os cuidados com a casa e filhos, os empregos e os cuidados com idosos (SOARES, 2007). O Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, divulgado pelo IPEA, analisou que a jornada total média das mulheres era, por semana, sete horas e meia maior que a do homem (2015, p. 4). Faz tempo que a dupla jornada da mulher é tratada como algo banal, chegando ao ponto de tratarmos essa exploração do trabalho feminino como heroísmo, mascarando de elogio um assunto que naturaliza a inserção da mulher no mercado de trabalho como um meio de só complementar uma renda doméstica já “resolvida” pelo homem. Acho válido relembrar aqui que muitos dos questionamentos deste trabalho encontraram suas raízes na divisão sexual do trabalho. Essa divisão interfere no debate da mobilidade urbana com o foco de gênero em muitos sentidos. No que se refere à maternidade, vou expor as principais reflexões que me ocorreram. A primeira delas foi ao tentar traçar conexões entre o papel social da mulher e o fato de que repre-

sentamos a maioria dos deslocamentos feitos a pé e de transporte público. Uma dessas conexões é simples: visto que em grande parte o “principal” trabalho remunerado da casa é atribuído ao homem e que a administração doméstica é de responsabilidade feminina, podemos pensar que: 1. se a família possui um automóvel, esse automóvel vai ser de uso primordial do homem, primeiro porque os trajetos casa-trabalho na Região Metropolitana de São Paulo não costumam ser predominantemente caminháveis, e segundo que, existindo a consciência de domínio da renda, muitas vezes o homem entende como seu o direito de usufruto pela compra do carro. 2. o mercado, a escola do filho, a farmácia, o açougue, a padaria, o médico ou o posto, enfim, os lugares para onde as mães precisam ir para cumprir as tarefas relacionadas ao lar, na maioria das vezes estão localizados em seus próprios bairros, o que faz com que esses deslocamentos sejam facilmente cumpridos a pé ou de ônibus. Falo disso porque, apesar de serem a maioria das pessoas que se deslocam a pé, elas caminham em boa parte pela condição de guardiãs do lar e, por essa mesma condição, dispõem de me-


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nos tempo para lidar com questões externas de interesse pessoal. E isso inclui o ativismo. Isso se mostra mais presente ainda quando falamos em bicicleta, já que essas mesmas atividades tornam-se impeditivos maiores – muitas vezes pela anatomia da bike – em cima de duas rodas. Trago essas reflexões para mostrar que a responsabilidade de cuidar da casa e ter um filho influenciam no número de mulheres pedalando e acaba fazendo com que tenhamos menos mulheres tomando decisões nas políticas dessa área, perpetuando homens como principais tomadores de decisão.

fator do combustível ainda é central para a maternidade e o movimento. Porém, levando em conta que quando passam a atuar mais ativamente, a administração do tempo afeta igualmente na preocupação com o filho, fazem-se necessárias novas dinâmicas familiares ou arranjos com as próprias companheiras de luta. A luta por moradia tem uma particularidade nesse caso que é a presença em peso de mulheres e, portanto, da compreensão mais facilitada da necessidade de ajustes para que as lideranças possam atuar tranquilamente.

A própria condição materna fez, ao afastá-las das decisões sobre mobilidade a pé, com que elas tenham sido, por muito tempo, ignoradas e tido a mobilidade comprometida enquanto mães. E falo tudo isso tendo em mente que a participação feminina tem crescido no movimento pela mobilidade urbana – exatamente por isso é um dos focos do meu trabalho – e que alguns ajustes têm sido feitos nesse sentido. Porém as disparidades ainda existem. Sabe-se que a paternidade, por exemplo, não afeta e nunca afetou do mesmo modo a participação dos homens no cicloativismo.

Na mobilidade isso já é bem diferente. Por mais que esse aspecto esteja começando a aparecer, ainda é novo. Na verdade, o quanto essa pauta é colocada nesses espaços eu não tenho exatamente como comparar. Tenho apenas o exemplo da Aline, que se fez necessária a partir da conquista do seu próprio espaço e reconhecimento como uma peça importante no movimento. E, para que fosse possível continuar participando ativamente de reuniões, pelas exigências feitas para suprir as demandas do cuidado com o filho de 1 ano, ela acabou conquistando – junto a outras mães – esse passo em direção à conciliação da maternidade com a militância na mobilidade.

Esse lado impeditivo também aparece no movimento de moradia, porém com especificidades. O

Os arranjos que são feitos nos bairros, nas bases e nas ocupações de moradia para que as líderes


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mães consigam participar de reuniões são valorizadas, pois acabam cumprindo um papel que é de responsabilidade do poder público. É possível que o bom funcionamento dos mesmos seja em parte fruto de uma cultura de autogestão bem consolidada. Estima-se que existem mais de 5 milhões de crianças sem o registro paterno no Brasil.3 Em São Paulo, esse número chega perto dos 700 mil, sendo que na periferia a chance de ser mãe solteira acaba sendo em média três vezes maior que no centro expandido.4 A cultura do abandono paterno no Brasil alimenta a ideia de que a mulher preocupa-se mais com a família, tanto pela própria estatística do abandono quanto pelo cuidado extra que a mulher passa a ter com relação a seus filhos ao considerar que está sujeita a essa situação.

3 De acordo com estudos do Programa Pai Presente, do CNJ, com base nos dados do Censo Escolar de 2012. 4 Segundo pesquisa do Estadão Dados e Ibope, de 2013.

A isso se somam os fatores que sustentam o estereótipo de que a mulher é mais sensível e, portanto, mais empática por natureza. E mesmo que seja um motivador importante para a entrada e importância da mulher no movimento de moradia, esse estereótipo faz com que não incentivemos, enquanto sociedade, as mulheres a serem líderes de outros meios que não a casa. Isso é exemplificado ao escutarmos cotidianamente que temos mais homens ocupando cargos de liderança por não se-

rem emocionais demais. Mas essa característica supostamente feminina interfere nas determinações de cargos nas várias esferas da vida. Isso é perceptível nos relatos das mulheres da mobilidade quando contam que, até mesmo sem perceber, alguns homens acabam tratando as tarefas organizacionais como exclusividade feminina. Supondo que de fato as mulheres sejam mais sensíveis à vulnerabilidade alheia e, por isso, mais inclinadas à proteção humana, cabe citar alguns dos tipos de impacto que essa “vocação” teria nos movimentos. Algumas afirmações mais frequentes nas entrevistas foram: as mulheres acreditam mais, têm maior preocupação social, possuem maior inteligência emocional, relacionam-se melhor e se preocupam constantemente com o bem-estar coletivo. Esse último, por exemplo, confirma-se no movimento de moradia quando observamos que muitas das mulheres, mesmo após conquistarem o próprio teto, não abandonam a luta, o que faz com que os parceiros delas frequentemente comecem a desconfiar dos motivos da permanência e das inúmeras reuniões. Mas seria a constante preocupação com o bem-estar coletivo resultada dessa condição supostamente feminina? Ou seria a realização pessoal por estar aos poucos conquistando espaços de decisão? Talvez ambos.


5 Fala de Ana Carol Nunes, em entrevista concedida.

Entende-se que existem muitos homens que possuem muitas dessas características citadas, contudo me limito aqui a falar dessa noção do estereótipo construído sobre a natureza feminina como veículo para a consolidação do papel social da mulher. Digo isso porque faço parte da parcela da sociedade que desacredita e questiona essas atribuições, que são extremamente romantizadas e acabam sustentando a categorização de cargos por gênero. Por mais que estejamos trazendo pautas feministas com maior receptividade nos lugares que ocupamos, o interesse genuíno em inserir as pautas de gênero dentro do movimento é das mulheres e, mesmo que o movimento como um todo se mostre acolhedor dessas discussões, elas continuam sendo a maioria – às vezes a totalidade – nos grupos de trabalho e reuniões com esse foco. Isso já demonstra um importante avanço, porém, para que consigamos de fato mudar realidades como a violência e o assédio dos homens, tanto em casa quanto nas ruas, precisamos também que os mesmos façam parte desse debate.

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Por último, vale também ressaltar que no caminho inverso ao da romantização desses papéis, temos casos em que as mulheres sentem que só serão levadas a sério e poderão conquistar espaços de poder através de um processo de

A gente quer continuar reforçando a desigualdade de gênero e colocar a mulher onde ela, no papel social dela, serve? Ou a gente quer democratizar a cidade como um todo e ver qual é a nova cidade que sai a partir disso? Eu não acho que faça sentido colocarmos mulheres nos espaços para torná-los mais humanos. As mulheres tem que estar nos espaços porque eles precisam ser equânimes.5


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masculinização de suas posturas, como líderes ou até como transeuntes na cidade. Cientes ou não dessa condição, ao longo da vida percebemos que essas qualidades tidas como femininas não passam credibilidade em muitas das esferas de decisões políticas, o que faz com que algumas características que se aproximam mais da “natureza” masculina – como se impor, falar mais alto, passar a impressão de ser uma pessoa brava – passem a ser mais valorizadas por nós. CORPO E VIOLÊNCIA_ A tentativa de mulheres de todas as idades de se “masculinizarem” enquanto pedestres e no transporte público tem como motivador primário a convivência cotidiana com o assédio. O assédio sexual nas ruas, desde as cantadas mais sutis até as encoxadas invasivas, constrói o medo que se traduz em um dos maiores impeditivos do livre desbravamento da cidade por parte das mulheres. E ele costuma ser ainda mais agravante para negras, transexuais, lésbicas e bissexuais – lembrando que nos dois últimos a própria tática de masculinização no modo de nos vestirmos pode surtir o efeito contrário e tornar-se instigador de violências.

6 Disponível em: <https://goo.gl/cPbENp>

A campanha “Chega de Fiu Fiu” de 2013, do blog Think Olga, colheu informações de 7.762 participantes sobre as experiências de assédio que sofriam nas ruas. Descobriu-se que 99,6% das par-

ticipantes já haviam sofrido assédio, sendo que 98% delas já foram assediadas nas ruas. 64% no transporte público.6 Existem meios bem conhecidos de tornar a rua um ambiente mais acolhedor e seguro, como estender os horários de funcionamento de equipamentos públicos, a criação de projetos de iluminação mais bem distribuídos e a implantação de calçadas ativas. “É uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não. Mas como é que isso ocorre, na verdade? E o que faz uma rua ser movimentada ou evitada? […] Uma rua com infra-estrutura para receber desconhecidos e ter a segurança como um trunfo devido à presença deles - como as ruas os bairros prósperos - precisa ter três características principais: Primeira, deve ser nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado. O espaço público e o privado não podem misturar-se, como normalmente ocorre em subúrbios ou em conjuntos habitacionais. Segunda, devem existir olhos para a rua, os olhos daqueles que podemos chamar de proprietários naturais da rua. Os edifícios de uma rua prepara-


PERSPECTIVAS DA ANÁLISE

da para receber estranhos e garantir a segurança tanto deles quanto dos moradores devem estar voltados para a rua. Eles não podem estar com os fundos ou um lado morto para a rua e deixá-la cega. E terceira, a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, tanto para aumentar na rua o número de olhos atentos quanto para induzir um número suficiente de pessoas de dentro dos edifícios da rua a observar as calçadas. Ninguém gosta de ficar na soleira de uma casa ou na janela olhando uma rua vazia. Quase ninguém faz isso. Há muita gente que gosta de entreter-se, de quando em quando, olhando o movimento da rua.”

(JACOBS, 2011, p.34)

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Lembrando que mesmo com o conceito dos “olhos para as ruas” em prática, às vezes não solucionamos a sensação de insegurança na perspectiva feminina. Não por falhas no conceito, mas sim por não conseguirmos mudar a cultura do assédio. Mais de uma vez, ao descer no ponto e caminhar até a minha casa à noite, desejei que um determinado bar estivesse fechado. Não podemos ignorar que a ideia de passar na frente de um estabelecimento onde se encontram grupos compostos inteiramente por homens – normalmente alcoolizados – costuma passar longe do

ideal de segurança para muitas mulheres. Isso acaba fazendo com que filtremos os tipos de “olhos” que queremos para os nossos deslocamentos. Há muito tempo, as cidades têm sido planejadas por homens, brancos, cisgêneros, heterossexuais de classe média e alta. Isso significa que os deslocamentos casa-trabalho têm sido priorizados por décadas. Fazendo com que o transporte público e os instrumentos da mobilidade não motorizada tenham sido deixados em segundo plano. Isso denuncia que esses homens, que estão bem distantes dessa realidade de locomoção, são desqualificados para fazerem sozinhos um planejamento urbano adequado e democrático. É preciso reconhecer a necessidade da inserção feminina no planejamento. A percepção de corpo da mulher na rua denuncia de forma mais urgente os problemas urbanos. E nesse contexto é interessante usar a bicicleta como exemplo, pois se acredita que falar de mulher e bicicleta é unir dois tipos de vulnerabilidades, porque concentra muitas das questões sobre corpo, discriminação, violência e luta pelo espaço urbano. Como já mencionei antes, a sociedade tem criado meninos e meninas de formas muito diferentes. Ensinando as meninas a serem princesas,


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delicadas e as presenteando com bonecas. Elas brincam de casinha, enquanto os meninos – com suas bicicletas, skates, patins e bola – sujam-se, arriscam-se e aprendem desde cedo a cair. Às vezes se sentem desafiados e até estimulados a não usar proteção, porque o medo de se machucar é sinal de fragilidade, “coisa de menina”. E que, se é coisa de menina, é algo ruim. Assim, acabam absorvendo a ideia, anos mais tarde, que desempenhar alguma atividade “como uma mulher” é uma ofensa. Enfim, os homens, através de suas criações – pela família e pela sociedade – baseadas no papel social atribuído, conseguem lidar melhor com a hostilidade das ruas em cima da bicicleta.

LEE apud VIYUELA, 2016. Adaptação de texto originalmente escrito em inglês. Disponível em: <https://goo.gl/HNGjkz> 7

Como já foi exposto no outro capítulo, por muito tempo os homens foram os responsáveis primários pelo trabalho remunerado – na configuração familiar padrão – e, portanto, os usuários preferenciais do carro quando a família possui um. Primeiro porque, tendo ele o emprego que muitas vezes não é próximo ao lar, fica com ele o direito ao uso do carro, tanto pela distância quanto pelo direito à compra que fez com o dinheiro do seu trabalho. Além disso, também existe a associação do automóvel à ideia de poder. A publicidade utilizou-se muito da ideia de velocidade, potência e virilidade masculina para construir

uma relação intensa do homem com a máquina. Construiu-se também a noção de que mulheres não entendem desse sentimento, sendo assim, “carro não é coisa de mulher”. Muito da ideia das vias, avenidas, ruas e rodovias serem hostis vem da ligação entre virilidade e volante.

O que é ser uma mulher nas ruas de uma cidade? Para entender, basta subir em uma bicicleta e começar a pedalar: a partir daí a experiência de constante apreensão e vulnerabilidade às pessoas a sua volta tomará conta de todos os músculos contraídos do seu corpo. As entranhas se reviram e os sobressaltos são ininterruptos.7


PERSPECTIVAS DA ANÁLISE

Uso o exemplo da bicicleta para abordar temas mais gerais, porém, quando falamos em mulheres e deslocamentos, conseguimos apontar problemas do assédio e violência, estejam elas de carro, de bicicleta ou a pé. O problema é que em qualquer um deles, quando estamos sozinhas ou andando à noite, somos dominadas pelo medo. Medo que passa de relance pelos bens materiais. Homens costumam sentir medo de serem assaltados. O ponto de concentração da vulnerabilidade deles ao andar pela cidade está no bolso, com suas carteiras e celulares. Eu enxergo que muitas mulheres também sentem esse medo material, mas acredito que a maioria das mulheres quando caminham, transitam e pedalam pela cidade temem pelo próprio corpo acima de tudo. E essa tensão vai desde o assédio verbal ao medo do estupro. Sendo assim, identificamos em um piscar de olhos a maioria dos problemas de planejamento de um lugar.

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Muitas de nós quando entramos num metrô ou ônibus lotado, pensamos em estratégias para evitar aproximações inapropriadas. Quando andamos sozinhas na rua, apertamos o passo e trocamos de calçada ao avistarmos um grupo de homens. Num ponto de ônibus, em lugares menos movimentados, às vezes ficamos alertas para prever qualquer aproximação estranha.

Quando adolescentes, fase em que normalmente começam a caminhar sozinhas nas ruas, as meninas começam a perceber que precisam escolher suas roupas, não baseadas em fatores meteorológicos, mas sim em quão tolerantes e pacientes elas estão para ouvir comentários depreciativos ao caminharem. Também começam a ter ciência que provavelmente serão elas as responsabilizadas por possíveis agressões morais e físicas ao escolherem uma roupa mais curta. Isso quando somos nós as responsáveis pela escolha de mudar a roupa. Existe um tipo de violência que determina aspectos de diversas esferas da vida e do corpo de uma mulher: a permissão dos homens. E essa permissão – do namorado, do companheiro, do pai, do irmão – afeta desde o comprimento da roupa até o comprometimento na luta. Pedalinas é um grupo de ciclistas mulheres que promovem passeios e discussões sobre bicicleta e a perspectiva feminina. Aline conta como houve casos em que as mulheres deixaram de ir porque o namorado não permitiu, já que homens não poderiam participar do grupo. Essas barreiras são presentes e atuam como resquícios de uma subordinação recém-superada da mulher que ainda se manifesta, mesmo que sutilmente, em campos como o ativismo, interações sociais e


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oportunidades de emprego – muitos desses são frutos de relacionamentos abusivos. Quando essas barreiras são superadas, nos deparamos com elas de formas mais sutis ainda, como quando homens usam-se de mecanismos para diminuir a mulher nessas esferas da vida pública. A realidade da violência doméstica decorre dessa noção de domínio masculino e submissão feminina, e usa-se frequentemente o relacionamento como forma de naturalizar, abafar e romantizar abusos. A permissão masculina atua no movimento de moradia desde a própria inserção da mulher nesse movimento na história até hoje, quando os companheiros passam a ter problemas com o envolvimento de suas esposas e namoradas com o movimento chegando a acusá-las de traição e proibindo que compareçam às reuniões Essas mulheres, a partir do momento que reconhecem suas condições de subordinadas, com a ajuda de outras companheiras, começam um processo de libertação da subordinação patriarcal.

8 Fala de Evaniza Rodrigues, em entrevista concedida.

O surgimento de grupos de apoio e capacitação, junto à criação de políticas de combate a essas violências dentro do movimento indicam um primeiro afloramento da introdução da pauta de gênero – enquanto luta feminista – dentro do movimento.

“ Muitas mulheres tiveram que romper essas relações pra conseguir, não só fazer a militância. Mas quando elas se descobriram, se entenderam como pessoa e falaram: ‘Peraí, eu estou lutando para que as pessoas tenham dignidade humana e eu não tenho essa compreensão dentro da minha casa. Não faz sentido’ A gente até brinca: ‘O movimento é pra fazer a mulherada descasar'.8


PERSPECTIVAS DA ANÁLISE

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CONSEQUÊNCIAS DA LIDERANÇA FEMININA_ Quando buscamos entender a história do feminismo no Brasil e dos movimentos sociais urbanos, pode ser que cruzemos algumas vezes com anotações sobre a necessidade de separá-los. Pode-se supor então que essas lutas talvez tenham sido confundidas com frequência em algum momento. Esse fato me instigou a entender de onde poderiam ter vindo essas confusões, fazendo com que um dos meus questionamentos em certo momento do trabalho fosse: em algum ponto, um movimento que tem maioria de mulheres pode ser considerado um movimento feminista? E quando que um movimento que tem uma causa considerada feminina acaba trazendo feministas para a discussão? A partir do momento que reconhece a força da presença feminina internamente, algumas mulheres do movimento de moradia passam a incluir a pauta de gênero para as outras participantes. O que parece acontecer no movimento de mobilidade é um caminho inverso, ou seja, por se considerar que a discussão da mobilidade urbana é uma causa feminina – por sermos igualmente partes da cidade e sermos afetadas de forma diferente –, é possível que se atraia cada vez mais mulheres que se consideram feministas. A proposta deste capítulo é discutir os benefícios das lideranças femininas no movimento, tanto à causa quanto a si mesmas.

Não é à toa que se fala da mobilidade como uma causa feminina. Sendo as mulheres a maioria nos deslocamentos a pé e de transporte público – e minoria nos de bicicleta – são elas que sentem as necessidades mais urgentes de mudanças nas políticas públicas desses setores. Sentem mais ainda quando adicionamos necessidades especiais nas viagens – ao acompanharem os filhos de diferentes idades e idosos – ou quando as expomos aos riscos de assédio e violências. Ao colocarem cada vez mais isso em evidência, maiores são as chances de mulheres engajadas na luta pela igualdade de gênero atraírem-se pela causa, para que possam aplicar o princípio desta igualdade ao direito à cidade, convertendo benefícios especificamente femininos em gerais. No sentido inverso – do movimento social à luta feminista – podemos analisar que existe, em certo momento da trajetória na militância por habitação, um reconhecimento de poder pessoal e de reivindicação de condições mais igualitárias dentro das suas próprias casas. Algumas das lideranças comentam nas entrevistas sobre o momento – na vida das que sofrem abusos psicológicos e físicos pelos companheiros – da assimilação da contradição que sofrem: lutam por condições minimamente dignas de morar na cidade, porém não possuem essa dignidade dentro de casa. Daí em diante,


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grupos de apoio e trocas dessas experiências de abusos começaram a ganhar forma. Graça, por exemplo, hoje é referência da luta feminista dentro da UMM – onde faz trabalhos de capacitação para as mulheres – e fora – representando o Brasil n’A Rede Mulher e Hábitat da América Latina.

Como que eu consegui trabalhar, criar três filhos e fazer uma faculdade? Foi quando eu me dei conta que se eu não tivesse essa relação com os movimentos eu não conseguiria ter feito tudo isso.

Só consegui fazer tudo isso porque, no mutirão, todo mundo conhecia todo mundo. Então no mutirão as pessoas ajudaram a criar os meus filhos.9 9 Fala de Graça Xavier, em entrevista concedida.

Outra forma de ganho pessoal possibilitado pela militância da moradia é retratado pelo caso daquelas que, descobrindo as oportunidades que o movimento traz, procuram completar os estudos ou investir em uma graduação. Esse retorno aos estudos também pode ser visto como um passo na direção da libertação da subordinação patriarcal. Por um lado, pela superação da violência doméstica e da permissão do companheiro, e, por outro, por querer investir nos meios de alcançar cada vez mais a autonomia de conhecimento, passando para os meios acadêmicos e para o desenvolvimento profissional. Fala-se sobre a liderança feminina ter se expandido nos movimentos sociais urbanos nos anos 1970 também por terem sido “permitidas” pelos homens (CARDOSO, 2008). Ou seja, encarava-se que essa liderança inesperada de tantas mulheres em alguns movimentos políticos só teria acontecido com a espontaneidade que aconteceu porque os movimentos contra a carestia tinham forte ligação com o lar e as tarefas que o envolviam, mantendo as mulheres afastadas de quaisquer outros grupos políticos. Vale lembrar que, mesmo que o movimento de moradia tenha essa característica, são as mulheres que escolhem abraçar esse papel social e, a partir disso, brigar por melhores condições


PERSPECTIVAS DA ANÁLISE

para suas famílias. O que não estava previsto era que, ao entrarem nesses movimentos, elas os transformariam em um espaço onde, através da discussão e reivindicação de políticas públicas, mesmo que voltadas à casa, passariam a se descobrir como articuladoras e, em seguida, começariam a se introduzir na política não só através dos atos e manifestações, mas também através dos estudos e ocupando cargos em secretarias municipais. O espaço tornou-se importante articulador do desenvolvimento de sua autonomia. As mulheres da mobilidade, já com diplomas em mãos, encaminhando mestrados e doutorados, começam a envolver a luta pelo direito à cidade em suas próprias profissões e pesquisas. Assim, passam a conquistar esses espaços de debate, inteiradas sobre termos técnicos – que comumente eram usados por homens como ferramentas de silenciamento –, mas, mais ainda, com embasamento e vivências ainda mais amplos que aqueles que têm sido apresentados por tantos anos.

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Com essa perspectiva, podemos nos voltar aos benefícios da atuação feminina aos movimentos. Essencialmente, entende-se que existem questões que só são trazidas pelas mulheres aos movimentos por serem sentidas com mais urgência por elas. Sendo ou não frutos da divisão de

trabalho por linhas de gênero e do papel social das mulheres, essas visões femininas, embora muitas vezes romantizadas e tratadas como condição biológica, acabam revelando o ideal de cidade que é acolhedor e mais democrático a todas as esferas e tipos de pessoas. Existe o lado que sugere que a mulher, ao estar no papel de minoria e também na condição de oprimida, terá mais empatia pelas necessidades de outros grupos. E tem o lado que é motivado pela crença de que a mulher é naturalmente mais empática, organizada, sensível à vulnerabilidade humana, delicada e paciente. De qualquer forma, a diversidade dos fatores de envolvimento que foram analisados nesse processo pode ser encarada como uma fórmula de ver a cidade de forma diferente, no sentido de ter a capacidade de visualizar o que precisa ser mudado com mais urgência que os homens, fazendo com que a cidade torne-se mais justa, não só para ela, mas da forma mais abrangente possível. Para a mobilidade, é bacana apontar que se tem a consciência de que não basta que tenhamos só mulheres no movimento. Precisamos que mais mulheres, de diferentes lugares da cidade, diferentes condições físicas, de diferentes idades, classes sociais e raças sejam cada vez mais in-


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cluídas nesses debates. O motivo das cidades serem carrocêntricas e desiguais tem a ver com a tomada de decisões por muito tempo ter sido feita só por homens brancos. Em ambos os movimentos, fala-se em menor preocupação social por parte dos homens, mostrando que a relação de liderança entre mulheres acaba sendo mais produtiva e sincera, fazendo com que as informações sejam mais claras e melhor repassadas.

DA CASA À LUTA

Por fim, fala-se recorrentemente que a mulher tem a tendência de acreditar mais que as investidas vão dar certo. Em ocupações, por exemplo, aparentemente é dado que os homens acabam não se envolvendo muito no processo por não acreditarem que “vai dar em alguma coisa”. Alguns só acreditam com a chave na mão. Mais de uma vez esse exemplo foi citado para dar base à hipótese de que um movimento liderado só por homens talvez nem fosse possível.






















05 Considerações finais

Nos meses finais, questionei-me bastante sobre a pertinência do debate que escolhi apresentar com este trabalho. A montagem do caderno foi extremamente significativa nesse aspecto por ter feito com que a linha de raciocínio utilizada fosse organizada em texto. Esse processo elucidou questões pessoais sobre a validade da proposta do trabalho e parei de me preocupar em apresentar os temas abordados com

originalidade absoluta. Isso porque, ao desenrolar todas as conclusões feitas durantes esses meses, pude acompanhar o meu progresso pessoal sob outra perspectiva. Aprofundei-me em temas que me interessavam, introduzi-me em muitos com os quais não tinha intimidade, estudei as histórias de movimentos no Brasil e no mundo, reconheci memórias de família nos depoimentos, identifiquei-me em outros, tive contato com realidades distantes e fui muito bem acolhida por todas.


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DA CASA À LUTA_ Em dado momento da pesquisa, durante uma tentativa de explicar a linha do trabalho, surgiu uma imagem que passou a ser lembrada conforme novas conclusões surgiram: a tentativa de desenho da trajetória das lideranças femininas da casa à rua, de duas formas diferentes, livres de escalas quantitativas e cronológicas.

DA CASA À LUTA

São duas linhas – uma para cada movimento – com ponto de partida fixo na divisão do trabalho e na relação da mulher com a casa. As duas linhas seguem em direção à rua, como uma representação de libertação desse papel doméstico atribuído historicamente. Imagina-se que a linha que representa a liderança da moradia está presa à casa, estica-se até outro ponto e está tensionada, porque, apesar de ainda estar ligada à casa – e continuará, visto que essa é a pauta central do movimento –, ela alcançou a rua através da luta interna. Ela fez com que as mulheres que a compõe atuem politicamente, vão para as ruas e conquistem direitos à cidade, mas o movimento em si permanece com a pauta da moradia. Contudo, isso não significa que o movimento não se renove e não recrie as formas de se articular “pelas laterais”. Talvez essa linha adquira “elasticidade”.

A outra linha “quebrou-se” em um ponto logo depois de ter se esticado por completo. E continua em movimento pela ponta da frente, ou seja, a partir do ponto em que a mulher já está inserida no âmbito público, concentra-se na necessidade de romper com as mentalidades provenientes do papel social da mulher, que refletem em como a cidade configura-se hoje. Faz-se necessária a presença e a percepção femininas na luta por uma cidade mais sustentável e acolhedora do ponto de vista da mobilidade urbana. Ainda assim, esse envolvimento que está quase inteiramente na rua é novo e tem muitas possibilidades de direcionamentos. Sendo que o que as liga à casa já não é mais a mesma linha, e sim as sequelas que aquela divisão deixou de herança para as interações da mulher com a cidade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFLEXÕES_ A divisão sexual do trabalho fez com que as mulheres por muito tempo se sentissem estrangeiras na própria cidade. Por mais que estejamos nos afastando dessa visão, ainda não alcançamos a liberdade genuína de vivenciar os espaços urbanos, no que diz respeito à igualdade de direitos - por homens e mulheres - à cidade. Não se sentir parte de um espaço provoca estranhamento e medo e é assim que acontece, na maioria das vezes, com as mulheres e a cidade. Por terem sido restringidas ao âmbito doméstico e privadas da livre circulação nas cidades, impuseram-se barreiras ao direito à mobilidade urbana e ao planejamento da cidade por parte das mulheres. Ao mesmo tempo, essas restrições constroem ao longo dos anos nas próprias mulheres e na sociedade a ideia de que são incontestavelmente guardiãs do lar, dando-lhes uma falsa sensação de pertencimento à casa, quando na verdade esse “cargo” pressupõe as tarefas de organizar a vida familiar e doméstica para que o “verdadeiro dono” sinta-se em casa.

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Essas privações fazem com que as mulheres tanto lutem pelos direitos no papel de administradoras domésticas quanto - quando libertas dessas funções e já inseridas nos espaços urbanos - lutem pelo desempenho básico do direito de ir e vir. Descobriu-se que, a partir de abordagens de questões

de gênero na mobilidade e da preocupação familiar na luta por moradia conseguimos alcançar conquistas amplas suficientes para suprir necessidades básicas para a cidade e os movimentos sociais. Habitar e transitar são pautas inevitáveis de pessoas que moram na cidade. A perspectiva de gênero sobre esses movimentos fizeram surgir muitos detalhes que não costumavam ser levantados por anos. A partir da análise dos materiais e das consequências da inserção feminina nos movimentos sociais para elas próprias e para a cidade, percebemos que ainda temos muitas conquistas a serem feitas. Contudo, já reconhecemos e celebramos muitas delas: as inserções políticas e econômicas que se consolidaram e as conquistas do espaço que se iniciaram e introduzem a saída da mulher da casa à luta.


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PERGUNTAS BASE PARA AS ENTREVISTAS_ 1. Nome | 2. Idade | 3. Local de nascimento 4. Último bairro | 5. Filhos e Idades | 6. Estado Civil 7. Bairro atual | 8. Renda | 9. Fonte de Renda 10. Escolaridade | 11. Meios de transporte usados 12. Como entrou para o movimento 13. Atuação no movimento 14. Dedicação diária 15. Tipos de conflitos vividos 16. Já se sentiu subestimada? Por homens ou mulheres? 17. Como define uma líder? 18. Tem essas características? 19. Qual é a diferença de uma lider para um líder? 20. A liderança do movimento influencia na relação familiar? 21. Considera que ser mãe é um fator relevante para envolvimento maior ou menor no movimento? 22. Quando começou a se reconhecer como liderança/referência?





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Filmes e Vídeos DIA DE FESTA. Direção: Toni Venturi, Produção: Giba Cuscianna, Sérgio Kieling, Stefano Macchi. São Paulo: Olhar Imaginário, 2006 BIKE vs. CARROS. Direção: Fredrik Gertten, Produção: Margarete Jangård, Elin Kamlert. Suécia, 2015 WRI BRASIL CIDADES SUSTENTÁVEIS Seminário Mobilidade Urbana e a Perspectiva das Mulheres. São Paulo, 2016. In: https://goo.gl/RHwydY



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