"Um homem também chora", Luisa Barbosa

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Um homem também chora Por Luisa Barbosa “(...) Um homem se humilha se castram seu sonho Seu sonho é sua vida e vida é trabalho E sem o seu trabalho, o homem não tem honra E sem a sua honra, se morre, se mata (...)” (Trecho da música “Um homem também chora” do cantor e compositor brasileiro Gonzaguinha) José Moura1 tem 56 anos e há 40 “dedica” sua vida aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Filho e neto de operários navais, viu o Estaleiro construir embarcações de pesca de bacalhau, navios de guerra, de carga, químicos e até mesmo navios de alto luxo para a travessia dos Açores (Luisa Barbosa Pereira) Acompanhou o seu crescimento, sua nacionalização, os áureos tempos de construção de navios porta contentores e químicos para a União Soviética e para a Alemanha. Refere-­‐se à “época do patrão” como se após a Revolução de Abril o patrão deixasse de existir. Emociona-­‐se com orgulho, saudade e olhos mareados, quando se lembra do ano em que pôs a flutuar 11 navios. Navios químicos com 120 metros de comprimento. O quadro atual é completamente outro e Seu José não esconde a tristeza... Os Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) passam atualmente por um processo de desmonte. Cerca de 600 operários, que como Seu José trabalharam praticamente toda a vida nos Estaleiros, passam o dia inteiro sem nada produzir, apesar de não faltarem encomendas. Atualmente a ativa carteira dos ENVC soma mais de 600 milhões de euros e conta com um navio de patrulha oceânica, dois navios de combate à poluição, cinco lanchas de fiscalização costeira e dois grandes navios para transporte de asfalto. Navios estes já parcialmente pagos pela petrolífera venezuelana PDVSA. Os ENVC são hoje os únicos voltados para construção naval em Portugal. Com uma mão de obra altamente qualificada – com experiência na construção de diferentes tipos de embarcações – e altamente coesa – marcada pelos laços que 1 Personagem real, nome fictício.


se estendem da família à empresa – foram fundados em 1944, nacionalizados em 1975 e desde o ano de 2012 passam por um processo de reprivatização. Contudo, a tentativa de privatização já vinha sendo construída nos últimos anos a partir da redução progressiva da mão de obra, da difusão do medo do desemprego e do desespero proporcionado pelo desemprego interno com baixos salários. Os ENVC contam com um pequeno “exército industrial de reserva interno” composto por pouco mais de 600 trabalhadores. A quem serve o desemprego interno? Seu José entrou na empresa no dia 7 de outubro de 1973 quando esta construía os seus 96º e 97º navio e o trabalho era bastante perigoso. “Há colegas que caíram nos tanques de navios e que morreram. Que caíram ao fundo da doca. Tais a ver a altura !?”. No “tempo do patrão” também as condições de higiene eram precárias. As pessoas urinavam nos navios. Os sanitários obrigavam o operário a ficar de cócoras, para que se sentisse desconfortável e perdesse apenas o mínimo do tempo de trabalho. “Tu sabias que na década de 1970, quando se fazia o navio, havia uma área da empresa que se chamava a sala do risco?”, brinca Seu José e logo se explica: apesar do trabalho “arriscado” do sector naval nos anos 1970 a sala de “risco” era o espaço onde as chapas de aço eram “riscadas” a partir de moldes de madeira. A brincadeira dura pouco. O sorriso de Seu José se fecha quando é perguntado sobre a seu trabalho atual. Exerce a profissão de “montador de estruturas metálicas pesadas”, tarefa muito similar a sua antiga e extinta função de “montador de casco”. O que realmente mudou em seu sector, segundo o próprio, foi a quantidade de trabalho desempenhada no dia a dia: “Eu chego na empresa e moralmente não me sinto a vontade de sentar com meus colegas para jogar as cartas. Isso para mim está fora de questão. Hoje eu vesti a minha roupa de trabalho, desentupi umas sarjetas, fui plantar duas palmeiras (...) esse foi meu


trabalho hoje (...) as pessoas andam a pescar, a apanhar camarão para se alimentar (...) é muito triste”. A situação de desemprego em Portugal espalha o medo da demissão e da reprivatização. O desemprego interno nos ENVC estimula ainda o rebaixamento dos salário, faz com que os trabalhadores se sintam desmotivados e pode ainda servir como fator inibidor das reivindicações operárias. Para o Seu José, tudo não passa de um subterfúgio dos “bandidos legalizados” que administraram e administram tanto o governo quanto a empresa, e já há tempos planejam a reprivatização. A construção do último navio pelos ENVC, o Atlântida, evidencia esta estratégia. Encomendado pelo Governo dos Açores, o Atlântida seria construído para realizar a travessia das Ilhas mas seu projeto foi alterado no curso da produção. Transformado em um navio de luxo, o Atlântida custou 57 milhões de euros (10 milhões a mais do que o previsto) e acabou sendo recusado pelos Açores em 2009. O Atlântida está parado a apodrecer na Base do Alfeite desde agosto de 2011 enquanto o governo Açoriano paga cerca de 1 milhão de euros por mês ao navio italiano que atualmente faz a travessia das ilhas. “O navio que eles alugaram aos italianos tem 32 anos. Navio bélico, sem condição de números. Com esse um milhão de euros que sai do Governo do Estado dos Açores, já podia pagar o navio. Tais a entender?” Tenta explicar Seu José esta difícil equação que sangra os cofres públicos e o orgulho dos trabalhadores do ENVC. “Temos mais de 65 anos de história e nunca um navio foi recusado. O que estão fazendo é um assalto à mão armada”. Os ENVC não contratam novos trabalhadores desde 2006 e quase a cada mês um trabalhador é reformado. No dia 13 de agosto de 2012 o governo português aprovou o Decreto Lei 186/2012 que autorizou a reprivatização dos Estaleiros, com a justificativa de “flexibilizar e modernizar a empresa ao quadro da livre concorrência”. Desde então o processo segue, em ritmo lento, emperrado pelos trabalhadores através de diferentes ações (que levaram inclusive a demissão do presidente da comissão responsável pela reprivatização) e pela Comissão Européia, que desde dezembro de 2012 exige explicações relativas aos apoios estatais dados aos ENVC por parte do governo.


Inicialmente, quatro grupos empresariais estavam na corrida para adquirir o Estaleiro: um brasileiro, um norueguês, um português e um russo. As últimas notícias indicam que atualmente apenas o russo continua interessado. Os outros grupos desistiram em virtude dos frequentes atrasos. Os futuros compradores adquiriram também o navio Atlântida e a carteira de encomendas do Estaleiro. Seu José diz, com toda a razão, que são os trabalhadores os legítimos donos do ENVC. Foram eles que dedicaram vidas de famílias inteiras ao progresso da empresa, agregaram valor ao complexo bem material produzido, e não receberam de volta a riqueza gerada. A teoria marxista prova que a mercadoria “trabalho” é vendida por um preço inferior ao seu verdadeiro valor. Essa riqueza produzida mas não paga ao trabalhador, apropriada pelo capitalismo na forma de mais valia, é o que alimenta o sistema do capital. Seu José entende a teoria na sua prática diária e defende a ocupação da empresa pelos trabalhadores. Ele não é o único. Portugal tem na sua história não muito distante, o exemplo da ocupação de várias fábricas no período revolucionário da década de 1970. A classe trabalhadora da Argentina frente a crise do início dos anos 2000 também recuperou fábricas em processo de fechamento e colocou-­‐as em produção novamente. No Brasil operários navais da Indústria Verolme Ishibrás S/A (IVI) no final dos anos 1990, após uma ocupação de 72 horas, conquistaram o pagamento de salários em atraso. Conseguiram garantir também a retomada industrial do pátio da empresa, a partir da associação de uma empresa subsidiária com membros da então comissão de fábrica da IVI. Também no Brasil surgiu em 2002 o Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO), com as experiências das fábricas Cipla, Interfibra (na cidade de Joinville) e Flaskô (na cidade de Sumaré). Seu José não está só. Os trabalhadores dos ENVC seguem, tentando sobreviver as incertezas do presente com a esperança de mudança profunda para o futuro próximo. Uns desentopem sarjetas. Outros pescam camarões, plantam palmeiras, jogam as cartas. Lutam e defendem a ocupação da empresa... Mas o que queriam mesmo era trabalhar.


BOX Exército Industrial de Reserva Exército industrial de reserva é um conceito desenvolvido por Marx em “O Capital” que se refere ao contingente de desempregados necessário ao sistema capitalista. Esse exército serve como um inibidor das reivindicações dos trabalhadores e contribui para o rebaixamento dos salários. É elemento fundamental para que o capitalismo mantenha a alta taxa de lucro as custas da maior exploração da força de trabalho.


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