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E há quem ainda acredite em revoluções. Se a filosofia moderna aniquilou a ideia de metafísica, tornou incoerente a noção de transcendência que é o cerne do próprio conceito de revolução. Como trocar o que está aí por outra coisa, ainda incerta, se este outro estado não O existe, se a questão mais importante é o aqui e o agora? O caso não é de pôr abaixo o semestre instituído para no local erguer um novo modo de vivência que, cedo ou torna, se torna da Copa um novo elefante branco, um castelo de cartas de controvérsias que se faz necessário das Copas. derrubar. Marcado Então, como lidar? Provocando curto-circuitos, é o que propomos. Ao invés de por muitos propor inversões de estados, não seria mais interessante realizar interferências feriados. De baixa no centro do que está estabelecido? Tomar pequenas decisões e realizar atos freqüência em sala cotidianos que, acumulados, tem potencial de mudança. Daí a ideia de rupturas: de aula. Marcado pela um rasgo que não é total. Uma fratura, um trinco, um arranhão que possa minha ausência - por rachar o status quo e exibir o que há por baixo - o que pode ser melhor. duas vezes - por problemas A troca de uma instituição por outro pode se revelar uma manobra de saúde. Esta turma realizou mais reacionária do que parece, como nos mostra o exemplo ucraniano, o 3x4 Nêga, um exemplar de analisado em ensaio da revista. Mais vantajoso é operar com raro brilho, no semestre anterior. pequenas atitudes: o movimento social que abranda suas ações para Um 2014/1 com a expectativa melhor focar no avanços já conseguidos, as pessoas que apesar da realização de uma Sextante da idade buscam a alfabetização tardia, aqueles que tomam excepcional, até mesmo pelo fato de a própria vida como campo de experimentações. Rupturas que ocorre, quase sempre, um acréscimo até mesmo corporais: desnaturalizar o asco que o próprio de experiências. Em alguns momentos, pela sangue inspira para desarmar preconceitos. fragmentação, tive o sentimento de que não O jornalismo entra no processo com a missão teríamos uma boa revista. Mas, ao contrário, na dever? - de narrar este mundo em processo, atento às reta final o esforço dos que estavam envolvidos mínimas mudanças, ciente de que a transformação com o projeto salvou o semestre. E não posso deixar pode ser um processo lento e quase de destacar o ensaio fotográfico da aluna Yamini. Não imperceptível. O jornalismo tem de aprender me lembro de ter visto alguma coisa parecida. Ousadia e a lidar com o outro - é o imperativo básico bom gosto em imagens não só da aluna, mas igualmente das de sua existência. O jornalismo tem de modelos. se liberar de suas seculares convenções, Mais uma vez, talvez pela milésima vez, por ser o buscando novas formas e modelos mundo acadêmico um mundo de repetições, preciso dizer que para melhor entender esta sociedade os alunos que aproveitaram esta oportunidade (única) terão em volátil na qual se insere. É o que suas respectivas histórias um importante ponto de referência, no esta revista que você tem em futuro. A turma escolheu o tema, cada um escolheu a sua pauta e com mãos tenta. Em maior e em inteira liberdade cada um selecionou suas fontes e fez o que texto como menor grau, acertando achou melhor. Liberdade absolutamente impossível quando trabalhamos ou não, a Sextante se na mídia corporativa, onde cada vez mais não se faz jornalismo, onde o grosso quer como um espaço da produção é uma quantidade espantosa de secos e molhados, de perfumarias de rompimentos. e variedades. Só lamento que, pelas mais variadas razões, a mobilização por esta Se algum dos oportunidade rara venha diminuindo com o passar dos anos. Nesse semestre, da curto-circuitos Copa das Copas, confesso que estive confuso e com dificuldades para localizar os que, propostos verdadeiramente, possuem o DNA da profissão. Leiam e tirem suas próprias conclusões. terminar em Não posso deixar de pedir desculpas a esta turma por não ter conseguido incêndio, passar uma alta dose de energia e entusiasmo como única forma de superação das melhor. dificuldades. Tenho cada vez mais dificuldades de estar em sala de aula repetindo e repetindo. E não é por falta de uma renovação, através de novas leituras e descobertas. Não é também pela idade. Mas o ensino de comunicologia é o ensino da covardia. E as atuais “mudanças” programadas não irão mudar nada.
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SUMÁRIO/ MARCA PÁGINAS
É DURO TANTO TER QUE CAMINHAR Gabrielle de Paula 5
UCRÂNIA LUTA Glauber Winck 11
O PAPA VOLTOU A SER POP Marina Pagno 18
#INSTALOVE Laura Xavier 22
NOVIDADE NO COMANDO Manuela Ramos 25
UMA PAIXÃO SEM INFLUÊNCIAS Diego Felipe Weiler 29
NÃO MAIS, MAS AINDA SIM Luis Felipe Abreu 32
MALDITA GISELE! Ana Carolina Nodari Giollo Matheus Bertoldo Bazeggio da Rocha 36
SANGRAMOS Yamini Benites 42
SUMÁRIO/ MARCA PÁGINAS
ROMPENDO O SILÊNCIO Jônatha Bittencourt 52
FIDELIDADE EM ALTA Rafael Lindemann 57
SINEWAVE Leonardo Baldessarelli 63
ALGUMAS HISTÓRIAS Hudson Nogueira 66
UMA CARREIRA INTERROMPIDA Jefferson Bredow 68
HELENA IGNEZ Luciano Viegas 71
PAULO SCOTT ESTÁ CANSADO Luis Felipe Abreu 74
LIVROS PELA LADEIRA Gabriele Müller Lucas Ebbesen 79
HISTÓRIAS ROMPIDAS COM LÁPIS E PAPEL Lucilene Athaide Luíza Mattia 82
SUMÁRIO/ MARCA PÁGINAS
É DURO TANTO TER QUE CAMINHAR Gabrielle de Paula 5
UCRÂNIA LUTA Glauber Winck 11
O PAPA VOLTOU A SER POP Marina Pagno 18
#INSTALOVE Laura Xavier 22
NOVIDADE NO COMANDO Manuela Ramos 25
UMA PAIXÃO SEM INFLUÊNCIAS Diego Felipe Weiler 29
NÃO MAIS, MAS AINDA SIM Luis Felipe Abreu 32
MALDITA GISELE! Ana Carolina Nodari Giollo Matheus Bertoldo Bazeggio da Rocha 36
SANGRAMOS Yamini Benites 42
SUMÁRIO/ MARCA PÁGINAS
ROMPENDO O SILÊNCIO Jônatha Bittencourt 52
FIDELIDADE EM ALTA Rafael Lindemann 57
SINEWAVE Leonardo Baldessarelli 63
ALGUMAS HISTÓRIAS Hudson Nogueira 66
UMA CARREIRA INTERROMPIDA Jefferson Bredow 68
HELENA IGNEZ Luciano Viegas 71
PAULO SCOTT ESTÁ CANSADO Luis Felipe Abreu 74
LIVROS PELA LADEIRA Gabriele Müller Lucas Ebbesen 79
HISTÓRIAS ROMPIDAS COM LÁPIS E PAPEL Lucilene Athaide Luíza Mattia 82
Yamini Benites
Em 2014, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra completa 30 anos
Gabrielle de Paula (gabriellepaula@ig.com.br)
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F
oi para romper com o modelo de reforma agrária adotado pelos militares que, há 30 anos, surgia o principal movimento social brasileiro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – o MST.
E ter que demonstrar sua coragem, à margem do que possa parecer Em 1984, era realizado o 1º Encontro Nacional dos SemTerra, no Paraná. A reunião que marca o início da construção do Movimento contou com centenas de trabalhadores rurais. Juntos, decidiram pela fundação de um movimento social camponês autônomo, que lutasse por reforma agrária e por transformações sociais. Segundo o MST, o encontro reuniu trabalhadores que estavam desprovidos do seu direito de produzir alimentos e foram expulsos por um projeto autoritário para o campo brasileiro, capitaneado pela ditadura militar. O modelo de reforma agrária adotado pelo regime priorizava a “colonização” de terras devolutas em regiões remotas, tais como as áreas ao longo da rodovia Transamazônica. Um projeto que, de acordo com os sem-terra, anunciava a modernização do campo, mas, “na verdade, estimulava o uso massivo de agrotóxicos e a mecanização, baseados em fartos (e exclusivos ao latifúndio) créditos rurais”. Para João Pedro Stédile, membro da coordenação nacional do Movimento, o surgimento do MST representa a continuidade de outros movimentos camponeses que a ditadura militar havia destruído, como as Ligas Camponesas, o Master do RS, e as Ultabs. A atuação de Stédile tem início em 1977, em um conflito agrário entre colonos e indígenas, na Reserva Cacique Nonoai, no norte do estado.
A cada dia mais numerosos, colonos expulsos do campo começavam a formar um exército “maltrapilho”, como denomina o jornalista Caco Barcellos em uma passagem do livro Repórteres. Caco Barcellos comenta que em um primeiro momento torcia para os índios, mas as circunstâncias o levaram a reconhecer que, na realidade, era uma guerra de maltrapilhos e esfarrapados. Sobre este episódio, Stédile afirma ter sido um momento importante: “As lutas sociais foram se multiplicando em todo o país, e depois, em 1984, deram o substrato social organizativo para surgir o MST como um movimento nacional”.
E ver que toda essa engrenagem, já sente a ferrugem lhe comer Um dos primeiros códigos inteiramente elaborados pelo Governo Militar no Brasil foi o Estatuto da Terra, concebido como uma forma de colocar um freio nos movimentos campesinos que se multiplicavam. No entanto, para Roberto Ramos, superintendente do Incra do Rio Grande do Sul, o estatuto é de certo modo “revolucionário”: “Se considerarmos a época (1964), foi uma legislação bem avançada, pois ele tira o direito ao imóvel rural como propriedade absoluta, a terra é tua desde que tu cumpras a função social”. Embora os ruralistas tenham imposto emendas na Constituição de 1988, que significaram um retrocesso em relação ao Estatuto da Terra, os movimentos sociais tiveram uma importante conquista. Os artigos 184 e 186 fazem referência à função social da terra, que consiste, basicamente, na produtividade, e no cumprimento das legislações ambiental e trabalhista. De acordo com o Estatuto, o território que
não obedecer esses critérios será desapropriado para fins de reforma agrária. A fiscalização cabe ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, que é dividido em Superintendências Regionais descentralizadas, responsáveis pela execução das ações nos estados. O estado do Pará, devido às dimensões e características dos conflitos, possui três superintendências. Em tese, propriedades que cometem crimes ambientais e trabalhistas, como o trabalho escravo, não seriam produtivas. Mas, até hoje, o Incra não desapropriou nenhuma fazenda por esses delitos. Stédile classifica a atuação do órgão como “vergonhosa”: “É uma falta de coragem, e um verdadeiro comprometimento do governo federal com o agronegócio. Ou seja, o governo está comprometido com suas alianças partidárias, com setores conservadores do campo, e com isso, o Incra não tem força para realizar as desapropriações das fazendas”. Ramos justifica que a dificuldade está relacionada ao fato de esses crimes terem legislações próprias: “A produtividade da terra é o Incra que fiscaliza, mas a questão trabalhista é o Ministério do Trabalho, por exemplo, que sabe caracterizar o que é trabalho escravo e já estabelece uma punição”. Apesar de o Movimento dos Sem-Terra ser considerado uma continuidade das Ligas Camponesas, ele inovava na forma de atuação. Em 1985, o MST realizou seu 1º Congresso Nacional, em Curitiba, cuja palavra de ordem era: “Ocupação é a única solução”. Neste mesmo ano, o governo de José Sarney aprova o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que tinha por objetivo dar aplicação rápida ao Estatuto da Terra, mas pressionado pelos interesses do latifúndio, ao
Yamini Benites
Para a sergipana Gorete, “a luta pela terra não tem fronteiras” final de um mandato de cinco anos, assentou menos de 90 mil famílias.
Lá fora faz um tempo confortável, a vigilância cuida do normal O superintende do Incra no estado, Roberto Ramos, destaca que setores conservadores, como a bancada ruralista, fazem uma grande pressão política. No Rio Grande do Sul, a Federação da Agricultura (Farsul), é uma das instituições mais organizadas: “Em 2008, nós tivemos um contra movimento. A Farsul impedia o Incra de fazer as vistorias nas fazendas, trancando as estradas”. Segundo Ramos, os ruralistas também atuam no processo de
compra e venda, fazendo pressão para que propriedades não sejam vendidas ao Instituto. Além da pressão política, os semterra ainda convivem com a violência e a impunidade. Não é de hoje que o vermelho da terra se mistura com o vermelho do sangue. No país que se expandiu sobre a dominação e assassinatos de indígenas por portugueses e tantos outros conflitos, o cenário agrário brasileiro ainda teria uma barbárie promovida pelo aparato de segurança do Estado: O massacre de Eldorado do Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, no Pará. Mil e quinhentos trabalhadores ligados ao MST faziam parte
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do acampamento da Fazenda Macacheira e deslocavam-se para Belém para exigir do Incra e do Governo do Estado o cumprimento de um acordo, que previa a desapropriação da fazenda. Após um cerco policial para desobstruir a rodovia, o batalhão comandado pelo Coronel Mário Colares Pantoja avançou disparando e lançando bombas de efeito moral. Com os primeiros disparos, os policiais acertaram o lavrador surdo-mudo Amancio dos Santos. Muitos sobreviventes acreditam que o número de mortos supere os 19 que foram divulgados. Várias das pessoas que estavam acampadas eram garimpeiros ou vítimas de trabalho
escravo, que não tinham vínculo familiar, nem registro. Situação favorável para a ocultação de cadáveres. Metade dos mortos foram executados à queima-roupa. Quatro deles receberam tiros na testa a curta distância, depois de rendidos. Os demais apresentavam sinais de terem sido barbaramente espancados antes da execução. Dos 155 policiais que participaram da ação, Mário Pantoja e José Maria de Oliveira, comandantes da operação, foram os únicos condenados. As penas superaram os 150 anos, porém o processo judicial se arrasta após um pedido de apelação. Os dois estão em prisão domiciliar num quartel da PM de Belém, em apartamentos com todas as regalias de oficiais. No Rio Grande do Sul não é diferente. Admirado pelos ruralistas por resistir a assentamentos, o município de São Gabriel foi palco de disputas acirradas entre sem-terras e produtores rurais. Em reportagem de André de Oliveira e Jefferson Pinheiro publicada pela Agência Pública em 2012, há a reprodução de um panfleto divulgado na cidade, na época em que várias famílias foram assentadas na região. Um trecho pede: “Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em voo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles”. Em 2009, também em São Gabriel, o acampado Elton Brum foi brutalmente assassinado pela Brigada Militar, com um tiro pelas costas, durante a desocupação de um latifúndio. Dezenas de pessoas ficaram feridas e até hoje ninguém foi punido. Em 2013,
trinta e quatro pessoas morreram em conflitos agrários, no Brasil. Neste ano, em Faxinalzinho, no norte do estado, dois agricultores foram mortos em uma região de conflito com indígenas. Em reunião marcada para promover o diálogo entre camponeses e indígenas, sete índios caingangues foram presos pela Polícia Federal. Parece que a guerra de “maltrapilhos e esfarrapados” continua por essas bandas. Nos últimos anos, o MST tem demonstrado um comportamento diferente. Mais do que a ocupação para forçar as desapropriações, o Movimento, estrategicamente, diz priorizar melhorias nos assentamentos existentes, com melhor qualidade de vida, além de adoção da agroecologia e da
sem estrada. Essa é uma realidade que vem mudando a passos muito lentos, no assentamento Nova Esperança, em Charqueadas. Os lotes das 14 famílias estão divididos. O documento da terra ainda não chegou. Sem a carta, os assentados não recebem o talão de produtor, o que impede o desenvolvimento da produção agrícola para a venda. “A gente se vira como pode”, conta a assentada Neli da Silva. A luta pelos serviços básicos tem sido uma constante, segundo Gilberto Soares. O Cigano, como é conhecido, se destaca como uma das lideranças do local e empilha ofícios de pedidos de melhorias para os órgãos responsáveis. Segundo dados do Incra, o Rio Grande do Sul possui 339 assentamentos, entre estaduais e federais, o que corresponde a uma área superior a 290 mil hectares. O Instituto apresenta diversos programas para o desenvolvimento das famílias, como assistência técnica e financiamentos: “Temos disponibilizado um técnico para cada 70 famílias, também oferecemos crédito para aquisição de pequenas ferramentas, incentivos para a produção de subsistência, por exemplo”, afirma Roberto Ramos. Porém, para os assentados do Nova Esperança, “o Incra ainda não sinalizou a implantação de nenhum programa”, de acordo com Cigano. Ao mesmo tempo, alguns assentados demonstram um sentimento de abandono por parte do próprio MST. A assentada Samanta Soares comenta a contradição: “Eles falam que tem que melhorar os assentamentos que já existem, mas estão dando mais atenção aos acampamentos”.
Mais do que a ocupação para forçar as desapropriações, o Movimento, estrategicamente, diz priorizar melhorias nos assentamentos existentes agroindústria. “A estratégia é que os camponeses precisam se aliar com os setores organizados da cidade, para derrotar o agronegócio como modelo de reprodução agrícola”, afirma Stédile. Mesmo assim, neste ano, em meio às celebrações dos 30 anos do Movimento, no 6° Congresso Nacional, foram decididas uma série de ações para marcar o Abril Vermelho. Em Passo Fundo, 300 pessoas acamparam na propriedade da família de um advogado foragido da Justiça. Também houve ocupações em Pelotas e Capão do Leão, na zona sul, Catuípe, no Planalto Médio, e Cruz Alta, no Alto Jacuí.
Demoram-se na beira da estrada, e passam a contar o que sobrou! Êh, oô, vida de gado Três anos sem água, sem luz e
Yamini Benites
Dona Neli espera por dias melhores em Charqueadas
Além da angustiante espera por avanços, a insegurança também preocupa: “Eu não sei como alguém que tem família, consegue assentar pessoas ao lado de um presídio”, diz Neli da Silva. O assentamento é a possível rota de fuga dos presidiários da vizinha Colônia Penal de Charqueadas. Cigano comenta que no momento a movimentação está tranquila, mas que já sofreram com a repressão durante as rondas policiais na área, buscando por fugitivos. Ele também lamenta a perda de uma gleba do assentamento para a penitenciária. Por outro lado, assentamentos mais antigos vêm mostrando
uma boa estrutura. É o caso do Itapuí, em Nova Santa Rita, onde moram 52 famílias. Recordando um passado de luta e repressão, Juraci de Oliveira conta: “Tu não tem ideia a alegria do povo quando chega o documento da terra”. Ela faz parte da coordenadoria regional dos assentamentos da região metropolitana de Porto Alegre e explica que o desenvolvimento do local se deve também ao surgimento de uma cooperativa. Segundo ela, os programas do governo ainda são insuficientes, mas “é melhor ter do que não ter”. O sentimento de pertencimento ao MST fica mais evidenciado por aqui e Juraci
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demonstra um discurso alinhado com o do Movimento: “Antes a luta era contra o latifúndio, hoje a gente luta contra o agronegócio”. Apesar do ambiente aparentemente próspero, o agricultor Olair Nunes comenta que o campo ainda está muito sucateado e a vida não é fácil: “A gente trabalha demais pra ter uma vida boa, os filhos da gente também estão indo embora”. Outra queixa no Itapuí é referente à venda de lotes por parte de alguns assentados, o que constitui uma das principais críticas realizadas por setores conservadores ao MST. A sergipana, Gorete Menezes, contesta: “A luta agrária não tem
fronteira, o Movimento Sem-Terra é uma grande família, e como toda família tem gente que não presta”.
E sonham com melhores tempos idos, contemplam esta vida numa cela Esperam nova possibilidade, de verem esse mundo se acabar Outra conquista do assentamento de Nova Santa Rita, é a escola estadual Nova Sociedade, fundada por eles. Andar pelo colégio é perceber a preservação de uma consciência política e social, desde as bandeiras do Movimento nas paredes às atividades de horta no pátio. Elisabete Witcel foi professora de uma das escolas itinerantes do MST que foram fechadas durante a gestão de Yeda Crusius no Governo do Estado. Hoje é diretora da escola Nova Sociedade e salienta a procura de alunos externos ao assentamento: “Nós temos alunos que vem de fora, e que estão desenvolvendo essa consciência de transformação social junto com a gente”. O casal Olair e Gorete, também é exemplo de respeito à natureza e à saúde. Eles exibem uma grande diversidade de produtos plantados em sua lavoura sem nenhum agrotóxico: “Trabalhar com alimento é vida, e questão de respeito com a sociedade”, reflete seu Olair. João Pedro Stédile garante que o MST tem incentivado muito a agroecologia nos assentamentos: “Fazemos um enorme esforço para construir a matriz tecnológica da agroecologia nos assentamentos. Porém isso é um longo processo, que começa na necessidade de termos escolas de agronomia, de nível médio”. Trabalhar com a agroecologia é uma vontade de Neli da Silva, do assentamento Nova Esperança, assim que os programas de
desenvolvimento chegarem. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, ela garante que não irá desistir: “Depois que a gente conquista a terra, não dá pra largar”. Cigano também demonstra força: “Agora a gente enfrenta na cara e na coragem, mas espero que da próxima vez que tu venha aqui, eu tenha a minha lavoura”. Crentes em dias melhores, parecem encarnar o nome do assentamento. O que se percebe ao colher relatos dos envolvidos ao MST é de que lutar pela reforma agrária é
romper com um sistema que coloca muito nas mãos de poucos. É romper com o medo da repressão. É romper até mesmo com as estratégias. Inegavelmente, com todas as rupturas, o MST segue sendo a principal bandeira de esperança e luta pela terra. Luta dos filhos deste solo, por um pedaço de chão nessa imensidão chamada Brasil. Os entretítulos desta matéria são trechos da música Admirável gado novo, do cantor Zé Ramalho.
Yamini Benites
Cigano é um dos líderes do assentamento Nova Esperança
Stoyan Nenov/Reuter
UCRANIA
LUTA Glauber Winck (glauberwinck@gmail.com)
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Apos 23 anos de independencia e duas revolucoes, a Ucrania tenta sair do lugar
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s dificuldades políticas e econômicas da Ucrânia já não são novidade há pelo menos 10 anos. Mas, até o início das manifestações em novembro de 2013, dificilmente se pensaria que o país pudesse sofrer uma convulsão destas proporções. Mesmo com toda a complexidade e incertezas desta crise, pode-se ter certeza de que este é um dos maiores acontecimentos no cenário geopolítico atual. Analisar a situação da Ucrânia neste panorama é extremamente difícil. O país tem uma formação histórico-cultural complexa. É fundamental, ao menos, conhecer a divisão regional da Ucrânia: Oeste, Centro e Sudeste. A população do país possui origem étnica majoritariamente ucraniana (77% da população), mas também russa (17%), distribuídas nas regiões Oeste/Centro e Sudeste, respectivamente. O mesmo acontece com a divisão linguística entre ucraniano e russo. Cerca de 30% da população tem o russo como língua materna e mais da metade o usa no dia-a-dia, a expandindo para além das finalidades étnicas. Nas questões políticas, desde o fim da União Soviética, uma característica comum na política do país vem sendo o uso das diferenças culturais como instrumento para angariar votos em campanhas populistas. Como em outros países do Leste Europeu, após a implosão da USSR, reina uma percepção de que tudo que é anti-soviético/
anticomunista é automaticamente democrático, daí o renascimento do nacionalismo como uma força política. Essas são tendências perigosas no âmbito de um país nem um pouco “monolítico” como a Ucrânia.
Revolução, eleição, revolução... Para tentar entender a crise na Ucrânia é preciso conhecer um pouco do cenário político do país nos últimos 10 anos, principalmente a chamada Revolução Laranja de 2004. Nas eleições presidenciais de 2004, concorriam ao cargo três
Ucrânia declarasse que não era possível definir o ganhador e que seria necessário realizar uma nova votação. O resultado desta nova consulta se inverteu: Yushenko foi eleito com 8% de vantagem. Acabava a Revolução Laranja (chamada assim devido a cor do partido de Yushenko). Revolução feita, Yulia Timoshenko é nomeada Primeira Ministra, os senadores americanos John McCain e Hillary Clinton indicam Yushenko ao Prêmio Nobel e o presidente eleito registra os direitos autorais dos símbolos da revolução no nome de seu filho. Tudo fica em ordem. Nos cinco anos que se seguem: Yulia Timoshenko, após conflitos com o Secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia, Petro Poroshenko, é substituída pelo candidato à Presidência derrotado pela revolução, Viktor Yanukovich; o parlamento é dissolvido; e Timoshenko é novamente nomeada ao cargo de Primeiro Ministro da Ucrânia. Nas eleições de 2010, Viktor Yushenko tenta a reeleição, mas consegue somente 5% dos votos. Viktor Yanukovich, o mesmo que não pôde assumir em 2004, é eleito no segundo turno com 49% dos votos, contra 45% de Yulia Timoshenko. As eleições foram declaradas legítimas por observadores internacionais. Durante seu mandato, Yanukovich, apesar da posição
Desde o fim da União Soviética, uma característica comum na política ucraniana vem sendo o uso das diferenças culturais como instrumento em campanhas populistas grandes figuras políticas, Viktor Yanukovich (então primeiro ministro), Viktor Yushenko e Yulia Timoshenko. O resultado da eleição foi a vitória, no segundo turno, de Yanukovich com 49% dos votos, contra 46% de Yushenko. Este resultado foi contestado pelo último, que formou um bloco com todos partidos de oposição e, com a força do apoio internacional (os EUA declararam que o pleito havia sido falsificado) conseguiu colocar milhares de pessoas na praça central de Kiev, a Praça da Independência (Maidan Nezalezhnosti). Os protestos foram pacíficos e não houve interferência da polícia. A pressão popular e internacional fez com que a Suprema Corte da
Reuters
Além do poder político, as próprias tradições e costumes ucranianos se encontram em jogo
populista que tinha adotado para garantir os votos do Leste do país, não tomou nenhuma medida drasticamente pró-Rússia. Sua administração foi marcada ora por uma proximidade com o ocidente, ora com a Rússia, dependendo das vantagens oferecidas por cada lado. É imprescindível entender que a aproximação da Ucrânia com a Rússia durante o governo de Yanukovich não foi uma tentativa de se afastar do ocidente e sim uma forma de manter relações equilibradas com os dois blocos. O alinhamento total com qualquer um deles eliminaria a soberania do país. Assim, por exemplo, mesmo com a aproximação russa, a Ucrânia manteve relações com a OTAN,
participando de exercícios militares conjuntos, na guerra do Afeganistão e na Força de Resposta da OTAN. Já nas questões internas, o governo de Yanukovich foi corrupto, zelou pelos interesses dos poderosos oligarcas e perseguiu seus adversários políticos. Economicamente, o presidente estava encurralado entre União Européia e Rússia, que pressionava o país a entrar na União Aduaneira que liderava, junto com Belarus e Cazaquistão. Quando Yanukovich declarou que estaria disposto a levar em frente o Acordo de Associação com a UE só depois que a Ucrânia estivesse economicamente pronta para isso, em novembro de 2013, tiveram início os protestos massivos
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que levaram milhares de pessoas às ruas e ficaram conhecidos como Euromaidan.
Euromaidan, o putsch e o novo governo Após o início dos protestos, os líderes da oposição, Vitaliy Klitschko, Arseniy Yatsenyuk e Oleh Tyahnybok, dos partidos UDAR, Pátria e Svoboda, respectivamente, formam um bloco e iniciam uma campanha de agitação contra o governo. O primeiro confronto entre manifestantes e forças de segurança aconteceu no dia 29 de novembro. Oleksandr Turchynov, Chefe do Comitê Central do partido Pátria, coordena o início do
bloqueio e ocupação dos prédios administrativos do governo. No mesmo dia, um grupo de manifestantes com máscaras, armados com correntes de metal e no controle de uma retroescavadeira tentam invadir o prédio da Administração do Presidente, mas são impedidos pela segurança do local. No dia 3 de dezembro, o Primeiro Ministro, Nikolay Azarov, em discurso no Parlamento, pede desculpas ao povo pela violência das forças de segurança e promete uma investigação e a punição dos culpados. Durante o mês de dezembro, são formados grupos de Autodefesa do Maidan, que cooperam com uma variedade de grupos de direita/fascistas, como o Pravy Sektor (Setor de Direita) e o Patriot Ukrainy (Patriotas da Ucrânia). Eles continuam a tomada de prédios administrativos e organizam a construção de barricadas para garantir a manutenção do território tomado. Deputados da oposição utilizam sua imunidade parlamentar e distribuem bastões e varas de madeira para os grupos de autodefesa do Maidan. Os confrontos se seguem e no dia 16 de janeiro o Parlamento aprova uma série de leis restritivas na tentativa de conter as manifestações. Entre as medidas estão a proibição do uso de máscaras durante as manifestações e a obrigatoriedade do registro das organizações políticas com financiamento do exterior. A oposição classifica as leis como ditatoriais, denuncia a transformação da Ucrânia num “Estado Policial”, clama pela formação de um governo popular e exige, além do
cancelamento das restrições, a anistia de todos manifestantes que haviam sido presos. Klitschko, Yatsenyuk e o presidente Yanukovich se reúnem e acertam o cancelamento do pacote e a aprovação da anistia. Yanukovich oferece o cargo de Primeiro Ministro para Yatsenyuk, que recusa. A maioria das leis é cancelada em 28 de janeiro e resto cai por decreto do Presidente, no dia 31. Também é anunciada a libertação dos manifestantes presos, com a condição de que os protestos no Maidan cessem a violência. A oposição critica duramente o governo e exige uma anistia sem qualquer exigência. Arseniy Yatsenyuk declara que está disposto a assumir o cargo de
política. No acordo foi decidida a volta da constituição de 2004, o adiantamento das eleições até o fim de 2014, a retirada das forças de segurança do centro de Kiev e a entrega das armas dos grupos de oposição. Dmitriy Yarosh, líder do grupo Pravy Sektor, declara que o acordo não é suficiente e exige a renúncia do presidente até às 10h do dia 22, caso contrário os manifestantes tomariam a administração e o Parlamento. No dia 22, Yanukovich desaparece. O Departamento de Estado dos EUA informa que o chefe de Estado se localiza na cidade de Kharkov. Oleksandr Turchynov se torna o novo líder do Parlamento e é aprovada a remoção do presidente. Turchynov assina a própria nomeação e assume os poderes presidenciais. Com prisão decretada, acusado de assassinato em massa, Yanukovich foge para a Rússia. Uma série de protestos antiMaidan se espalha pelo sudeste da Ucrânia. A população, que até o momento não havia participado das manifestações, não aprova o golpe e a situação piora quando o novo governo resolve cancelar a lei aprovada em 2012 que garantia o status especial da língua russa nas regiões com mais de 10% de falantes nativos. O novo governo temporário é formado somente pela oposição e tem como Primeiro Ministro Arseniy Yatsenyuk. Os protestos se intensificam no Sudeste. Manifestantes são presos e os levantes são proibidos. As demandas se transformam de uma maior autonomia para as regiões do sudeste do país para a federalização
Uma série de protestos anti-Maidan se espalha pelo sudeste da Ucrânia. A população, que até o momento não havia participado das manifestações, não aprova o golpe e a situação piora Primeiro Ministro, desde que seja restaurada a constituição de 2004 e que o Gabinete dos Ministros seja formado somente por membros da oposição. No Oeste da Ucrânia são tomados diversos prédios administrativos. Na região de Lviv, departamentos de polícia são invadidos e 1500 armas de fogo e munição desaparecem. Os dias 18, 19 e 20 de fevereiro testemunharam os confrontos mais violentos entre manifestantes e forças de segurança. No dia 20, a situação se agravou ao máximo quando, durante um confronto, atiradores de elite não identificados balearam dezenas de pessoas, manifestantes e policiais. No dia 21, o presidente Yanukovich se reuniu pela última vez com os líderes da oposição para assinar um acordo de resolução da crise
da Ucrânia. Em março o Parlamento da Criméia vota pela realização de um referendo para decidir a separação da Ucrânia e a entrada na Federação Russa. Os EUA declaram, por antecedência, que o referendo será falsificado e que não irão reconhecêlo. Duas semanas depois a votação é realizada e a Criméia passa a fazer parte da Rússia. As demandas por autonomia do Sudeste se transformam em lutas separatistas. Turchynov, como presidente do governo temporário, anuncia o início das operações “antiterrorismo”, a fim de combater os separatistas no sudeste do país. No dia 25 de maio são realizadas novas eleições presidenciais. É eleito Petro Poroshenko, um dos oligarcas mais ricos do país, conhecido como
o Rei do Chocolate por controlar o maior grupo de produção de doces da Ucrânia.
O sonho europeu como estopim O início dos protestos que derrubaram o governo ucraniano foi motivado pela não assinatura do Acordo de Associação com a União Europeia. Mas que acordo é esse? O que ele realmente significa? Antes de mais nada, o que o acordo não significa é a entrada da Ucrânia na União Européia. É preciso levar em conta que o tal acordo já foi fechado com países como: África do Sul, Argélia, Chile, Egito, Israel, Jordânia, Líbano, Marrocos, Síria, Tunísia, Turquia e com os nações da ACP (associação de 79 países da África, Caribe e
Pacífico). É claro, nenhum desses países tem a mínima chance de se tornar membro da UE. A Turquia, por exemplo, já comemora 50 anos da assinatura deste acordo, em 1964. Os que defendem a assinatura do acordo veem nele a possibilidade de modernização do país através da proximidade com a União Europeia. Porém, a quase completa inexistência de investimentos sérios de países da UE na Ucrânia nos 23 anos de independência do país indica que há pouco interesse nisso. De fato, o que a União Europeia precisa é de novos mercados consumidores para os seus produtos, o que está na raiz da absorção dos países do Leste Europeu, que, ao se integrarem à UE, viram a queda das suas exportações e um aumento gigantesco das importações, além da
Efrem Lukatsky/AP Photo
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quebra do setor rural. Para que o acordo fosse fechado, a Ucrânia deveria se ajustar a uma série de critérios europeus – econômicos, políticos, jurídicos, etc. Dificilmente a frágil economia ucraniana teria condições de suportar essas adaptações sem drásticas medidas econômicas que afetariam diretamente a população, o que, a propósito, eram as condições oferecidas pelo FMI para que o país recebesse ajuda financeira: aumento drástico nas tarifas de serviços básicos, congelamento de pensões, cancelamento de subsídios agrícolas, etc. As velhas reformas neoliberais. Além do mais, muitos produtos ucranianos não são capazes de concorrer com os produtos europeus e estariam sujeitos a cotas para a entrada no mercado da EU. É interessante verificar que, até fevereiro de 2014, o próprio Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, afirmava que a UE não estava pronta para oferecer adesão para nenhum país a curto prazo e dizia que a Ucrânia não estava economicamente pronta para ser membro da União. Mas, depois da troca de poder, no fim de fevereiro, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução que admitia a possibilidade da entrada da Ucrânia na UE, embora sem detalhes ou prazo para isso. Durante a crise, no dia 12 de dezembro, o governo de Yanukovich ainda tentou buscar a ajuda da União Europeia, quando o Gabinete dos Ministros da Ucrânia enviou um pedido de ajuda financeira a Alemanha. A ajuda foi negada, sob o seguinte argumento, posto pelo porta-voz do governo alemão, Georg Streiter: “Desta forma, o governo ucraniano estaria tentando desviar a atenção da situação política atual e fugir da responsabilidade sobre ela”. O governo temporário de
Turchynov e Yatsenyuk, que antes exigiam que o acordo fosse aprovado imediatamente, adiou sua assinatura.
Expectativas, interesses e um futuro incerto O fim do Euromaidan e a ascensão do novo governo significam o começo dos problemas para a Ucrânia. A revolta da população ucraniana era justa, sendo a rebelião de um povo que não aguenta mais a sociedade capitalista-feudal em que vive, onde o dinheiro é o poder político e oligarcas são donos extraoficiais de regiões inteiras do país – uma estrutura que se criou a partir do bacanal de privatizações a preço de banana dos anos 90 e continua até hoje. A tragédia do povo ucraniano é que a mudança de poder foi uma troca de seis por meia-dúzia. Basta analisar quem subiu ao poder com a queda de Yanukovich, todos são crias da mesma estrutura corrupta. Turchynov foi Chefe do Serviço Secreto da Ucrânia; Yatsenyuk, Ministro da Economia, Ministro das Relações Exteriores e Presidente do Parlamento; Poroshenko, Secretário do Conselho de Segurança Nacional, Ministro das Relações Exteriores e Chefe do Conselho do Banco Nacional da Ucrânia. Essa mesma oposição já esteve no poder e foi um governo tão impopular que Yanukovich, depois de ter sido “barrado” pela Revolução Laranja, foi eleito na eleição seguinte. A cisão no país é outro exemplo das consequências trágicas desta crise. Mesmo que Poroshenko consiga pacificar o país, o que é improvável, a divisão Leste-Oeste já se tornou muito profunda. As intenções de aproximar a Ucrânia do ocidente, mantendo relações hostis com a Rússia, só tornará pior a situação interna do país.
A população não esquecerá que os mesmos que se colocaram ativamente contra a violência contra manifestantes “pacíficos” com coquetéis molotov nas mãos, fecham os olhos quando o novo governo declara os rebeldes no Sudeste “terroristas” e manda tanques e aviões para bombardear áreas civis. Dois pesos e duas medidas. Durante as manifestações, diversos representantes dos EUA e União Europeia visitaram a Praça da Independência declarando seu apoio incondicional aos manifestantes. A Secretária de Estado Assistente para Assuntos da Eurásia dos EUA, Victoria Nuland, distribuiu pãezinhos e biscoitos para os manifestantes e se encontou com a oposição. O senador americano John McCain se encontrou com o líder do partido Svoboda, Oleh Tyahnybok. Políticos europeus distribuíram luvas e cozinharam pratos típicos para os manifestantes. É claro que esse apoio incondicional e repentino do ocidente pela liberdade e o desejo de democracia ucranianos não saíra de graça. União Europeia e EUA têm interesses muito específicos na Ucrânia. Para a UE, além da necessidade de obter novos mercados, a Ucrânia representa uma questão de segurança energética. A Rússia fornece ¼ do gás natural que a União Europeia consome, com Alemanha e Itália consumindo quase 50% do combustível. Das tubulações que levam o gás russo para a Europa, 80% cruzam a Ucrânia. Levando em conta que o fornecimento para a Europa já foi cortado antes, quando o governo ucraniano resolveu usar este gás ao invés de mandá-lo para outras localidades, a anexação econômica e política que a entrada na União Europeia representa garantiria muito mais segurança e controle.
Já os EUA têm claros interesses militares. Barack Obama abertamente culpou a Rússia pela desestabilização da Ucrânia, numa retórica de Guerra Fria que deixa clara a intenção norte-americana de mostrar a Rússia como uma ameaça imperialista que deve ser contida com intimidação militar. Uma grande justificativa para novos e gigantescos gastos com armamentos e um sorriso no rosto dos fabricantes de armas. Mas se UE e EUA estão do mesmo lado, a relação entre eles não é tão leal quanto parece. Durante a crise ucraniana, uma conversação telefônica entre Victoria Nuland e o Embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, vazou na internet. Na conversa, eles discutem a formação do novo governo ucraniano, decidindo que Yatsenyuk deve assumir a liderança – o que, de fato, aconteceu. A solução de Nuland vem alta e clara: “Foda-se a UE”. Pyatt, a propósito, tem a sua própria pérola. Em relação aos protestos, disse: “A oposição demonstra uma paciência de Gandhi. Tocam os sinos da igreja.” Minimizar o ânimo violento da oposição e a participação dos
grupos de extrema direita durante a crise foi uma constante necessária para dar o tom democrático e legitimar o golpe de Estado. Nisso, a cumplicidade da mídia foi indispensável. E não é coincidência que ao fim do Euromaidan o dono do maior grupo de mídia da Ucrânia, Igor Kolomoyskiy, tenha sido nomeado governador da região de Dnepropetrovsk. Na verdade, as ações da oposição podem ter sido bem mais sérias do que se pensa. Foi o que revelou a segunda conversação telefônica a vazar na internet durante a crise, entre a VicePresidente da Comissão Europeia, Catherine Ashton, e o Ministro das Relações Exteriores da Estônia, Urmas Paet. Nela, após visitar a Ucrânia, Paet revela que “Há uma compreensão cada vez mais forte de que por trás dos atiradores de elite não estava Yanukovich. Foi alguém da nova coalisão”. Grupos de extrema direita começaram a coordenar suas ações logo após a não assinatura do Acordo de Associação com a UE, mas antes do início dos protestos populares. O mais destacado entre eles é o grupo Pravy Sektor, de Dmitriy Yarosh, mas existem dezenas de outros. E se o partido Svoboda ainda faz alguns malabarismos retóricos para esconder suas raízes nacionalsocialistas, o Pravy Sektor não esconde seus esforços para a realização de uma revolução nacional. E mesmo que o grupo ainda não seja uma força motriz na política do país, sua popularidade vem aumentando. Foi ele que resgatou lemas tradicionais dos fascistas ucranianos dos anos 30: “Glória à Ucrânia! Glória aos heróis!”, “Glória à nação! Morte aos inimigos!”, “Ucrânia acima de tudo!”, muito populares durante
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as manifestações. Diretamente, esses grupos não ocupam cargos chave no novo governo, mas contam com aliados importantes, como o Diretor do Serviço de Segurança da Ucrânia (antiga KGB), Valentin Nalivaychenko, muito próximo de Dmitriy Yarosh e de uma organização de extrema direita, a Trizub. Mas o fato destes grupos não terem recebido cargos mais significativos no novo governo não diminui a força que eles terão de agora em diante. Estarão livres de se sujarem com a política, ponderando sempre se apresentar como “guardiães da revolução”, a nova “força moral” na política ucraniana. Em 2012, o pensador búlgaro Tzvetan Todorov escreveu o livro Os inimigos íntimos da democracia, em que alerta como forças contrárias a democracia são geradas dentro dela própria. Ele aponta: “Combatêlas e neutralizá-las [as força antidemocráticas] é tanto mais difícil quanto mais elas invocam o espírito democrático e possuem, assim, as aparências da legitimidade.” A Ucrânia nos traz um exemplo excepcional disso.
O PAPA VOLTOU A SER POP Marina Pagno (marina.pagno@gmail.com) Regina Maria Sivori não sabia, mas o dia 17 de dezembro de 1936 iria representar muito mais do que o nascimento do seu filho. Do seu ventre, também renasceria a esperança de 1 bilhão de católicos espalhados pelo mundo. Após 76 anos, seu filho e atual Arcebispo da Argentina, Jorge Mario Bergoglio, saia do bairro Flores, em Buenos Aires, com destino a Roma. Na pauta, a votação para eleger o novo papa, já que Bento XVI havia renunciado. Bergoglio entrou no Vaticano como cardeal. Lá, 24 horas depois, foi batizado novamente. E reapareceu na janela da Capela Sistina como o novo Papa. A partir daí, Francisco passou a representar a mudança que todo mundo queria. Na época, a Igreja Católica estava rodeada de escândalos e convivia com a descrença dos fiéis. Mas o argentino foi mais além. Bergoglio resgatou a imagem humilde de Jesus na figura do Papa. Tornou-se mais próximo do povo e menos preocupado com si mesmo. Mesmo sendo Papa, ignorou as novas vestes e se uniu ao seu rebanho. Com atitudes simples, passou a compreender os interesses dos católicos e se tornou o novo oxigênio da Igreja Católica. No dia 13 de março de 2013, o Papa voltou a ser pop.
Divulgação Vaticano
Já no início, a revolução Bergoglio mostrou a que veio no mesmo dia da realização do Conclave que o elegeu o novo Papa. Tudo começou pela escolha do nome. Com formação jesuíta, o argentino escolheu se chamar Francisco durante seu pontificado. Nas suas primeiras palavras como líder máximo da Igreja Católica, Francisco começou a dar sinais de que iria caminhar pelo lastro da humildade, pregada tanto por Cristo como por Francisco de Assis. Descontraído, Francisco afirmou: “parece que seus colegas cardeais foram buscar o Papa no fim do mundo”, numa referência a sua cidade natal, Buenos Aires. Em um tom mais sério, o argentino pediu aos católicos para “empreender um caminho de fraternidade, de amor e de evangelização”. Parece pouco quando nos referimos à figura de um Papa, um ser quase inatingível para a população. Mas é justamente essa imagem que Francisco desmanchou. Já no primeiro dia como Papa, o argentino se recusou a viver no apartamento exclusivo destinado ao pontífice, além de abandonar a tradição de usar roupas pomposas. No refeitório da Casa Santa Marta, Francisco faz questão de servir sua própria comida, além de sentar à mesa com os outros sacerdotes. Depois de fazer uma revolução de si, Francisco começou uma mudança externa. Por meio de frases e gestos, o novo Papa se tornou um Pastor. Entre várias atitudes, o argentino incluiu uma mulher muçulmana no grupo de jovens infratores, e chegou a lavar seus pés durante a Páscoa. Ele também abraçou um homem que tinha o rosto desfigurado por causa de uma grave doença. Além disso, Francisco tem o costume de ligar para seus amigos de infância e companheiros de vida religiosa. Um dos relatos mais impressionantes é o
Francisco se tornou uma figura simples e carismática. de Irmã Teresa, freira da congregação Filhas de Sant’Anna. “Vi um número longo”, ela disse. Do outro lado, uma voz falou “aqui é o papa Francisco”. Em estado de choque, a irmã não acreditou. Rindo, o argentino disse “sou eu sim, o pai Bergoglio”. Um pai, um irmão, um avô. Pouco importa o que Jorge Mario Bergoglio se tornou. Nem mesmo a figura do Papa foi capaz de abandonar sua visão de simplicidade do mundo. O que entra em questão aqui é que isso chamou a atenção do público, e dos próprios curadores do Vaticano. Vários estudiosos já encaram as atitudes do novo papa como uma revolução suave que vem ocorrendo na Igreja Católica. Mas qual seria o segredo de Francisco? Com a mesma simplicidade do Papa, a resposta está em uma palavra: comunicação.
O jeito Francisco de falar Francisco acredita em uma Igreja pobre para os pobres. A partir dessa ideia, ele constrói seu pontificado em gestos, atos e palavras simples. O novo Papa simplesmente mostrou que Deus não é uma figura inatingível, distante, mas sim é um Deus que acredita no amor e na fé de um povo. O Papa está aí somente para mostrar que isso é possível para uma legião de católicos. Algumas frases pronunciadas por
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Francisco chamam atenção. Percebese que, através delas, Bergoglio está tentando romper uma casca dura construída ao longo do tempo que envolve o Vaticano. Para ilustrar esse esforço, selecionamos cinco frases pronunciadas por Francisco em 1 ano de papado: - “Eu não poderia viver sozinho no Palácio. Preciso de gente, encontrar pessoas, falar com as pessoas...” - “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído às ruas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças.” - “Com toda comida que sobra e é jogada fora, poderíamos alimentar tantos. Se fôssemos capazes de parar de desperdiçar e começássemos a reciclar comida, a fome do mundo diminuiria muito.” - “O celibato não é um dogma de fé, é uma regra de vida [...]. Não sendo um dogma de fé, sempre está a porta aberta”. - “Se uma pessoa é gay e está em busca do Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” É notório o esforço de Francisco para que assuntos batidos dentro dos muros da Igreja Católica sejam questionados pela população. Até ontem, celibato era dogma do
Vaticano, e a homossexualidade era estritamente proibida. No entanto, pelas palavras do Papa, tudo pode ser discutido. O pontífice latinoamericano quer somente mostrar para o povo que “a porta está sempre aberta”. E que rupturas existem. Para o diretor da Faculdade de Teologia da PUCRS, o papa agregou uma postura mais próxima dos fiéis, em uma linguagem mais acessível. “Francisco fala de uma forma mais simples, mais direta, algumas verdades que todos nós sabíamos. A questão é que, antes, o conteúdo não estava chegando ao receptor de uma forma acessível”, diz o professor e padre Leandro Chiarello. Apesar de minimizar o impacto das frases de Francisco dentro do Vaticano, o professor admite que o argentino inaugurou um tempo novo para a Igreja Católica. “Bergoglio agregou um novo instrumento de comunicação. Os outros papas escreviam cartas, encíclicas... Ele não. Ele pega o microfone e fala, simples assim. Então, realmente, estamos vivendo um tempo novo”, diz Chiarello. Mas as atitudes de Francisco não se limitam à comunicação e à mudança de foco clerical. O papa tem se mostrado incansável na tentativa de apagar a imagem deixada por seu antecessor, Bento XVI. O argentino escolheu um conselho de oito cardeais para ajudá-lo na reforma da Cúria do Vaticano. Algumas sugestões propostas pelo chamado G8 já estão começando a ser implantadas, principalmente na erradicação dos casos de pedofilia e abuso sexual de menores por padres e sacerdotes. Francisco também tomou medidas para resolver irregularidades na administração do Banco do Vaticano. Outra decisão corajosa foi a de agregar um membro da Teologia da Libertação como prefeito da Sagrada Congregação
para a Doutrina da Fé. Para muitos, a Teologia da Libertação é considerada a vertente marxista da Igreja Católica. Para outros, como o papa, ela é uma doutrina humanista, que prevê a redistribuição da riqueza entre os pobres. Francisco também possui uma ideia ousada em mente. O argentino sugeriu que o poder e a autoridade, até então centradas na figura do Papa, sejam redistribuídos através das conferências de bispos ao redor do mundo. Ou seja, a autoridade do Papa dentro da Igreja Católica iria ser espalhada por representantes, englobando todos os continentes. Em entrevista a BBC, John Allen, do jornal americano National Catholic Reporter, afirmou: “Agora, temos um papa dizendo ‘podemos confiar em bispos locais para tomar as decisões’. No longo prazo, é uma mudança de poder do centro à periferia. Se Francisco conseguir alcançar seu objetivo, é de importância histórica para a vida católica.” Se as atitudes de Francisco não representam uma ruptura, então devemos rever o conceito da palavra ruptura nos dicionários clericais.
conectado às novas tecnologias. Provavelmente, logo pela manhã, ao abrir sua conta no Twitter, você vai ver em sua timeline uma menção à Francisco – seja através de um tuíte ou de um retuíte. Quase todo dia, Bergoglio posta alguma mensagem, que vai desde recados de força até pedidos de orações. No momento da elaboração desta matéria, Francisco pedia para que os fiéis o acompanhassem e mandassem orações para sua viagem na Terra Santa, feita na última semana de maio. Olhando tuítes mais antigos, encontramos, por exemplo, frases que incentivam os cristãos a tomar a imagem de Jesus como modelo de comportamento. Em 140 caracteres, Francisco consegue passar a ideia desta revolução suave que vem ocorrendo na Igreja Católica. Segundo um estudo divulgado pelo Pew Research Institute, 84% dos posts no Twitter em que o atual Papa é citado são positivos. Com Bento XVI, apenas 30% das menções eram positivas. Números que só comprovam a popularidade de Francisco nas redes sociais e na vida de 1 bilhão de católicos.
O Papa que também é pop no twitter
Até tu, Papa?
Não vem de agora a participação de um Papa em uma rede social. A abertura de uma conta papal no Twitter foi feita no dia 12 de dezembro de 2012, ainda sob o comando de Bento XVI. Disponível em nove línguas diferentes, a conta @ Pontifex possuía cerca de 3 milhões de seguidores em março de 2013, mês que Jorge Bergoglio assumiu o pontificado. Após um ano do pontificado argentino, esse número chegou a marca de 12 milhões de seguidores. Por meio das redes sociais, Francisco transmite suas mensagens para uma legião de fiéis que vive
Outra atitude de Francisco que chamou a atenção foi a participação do Papa em seu primeiro selfie. A expressão em inglês define o ato de tirar foto de si mesmo, e virou moda nas redes sociais no mundo todo. O caso aconteceu em agosto de 2013, quando Francisco foi abordado por três jovens dentro da Basílica de São Pedro. Sem perguntar, eles logo sacaram o celular do bolso e posaram para a foto com o pontífice. Estava sacramentado a primeira selfie de um Papa nada convencional. A partir daí, tirar selfies com o Papa também virou moda na Cidade do Vaticano. E até ele gostou da história. Em um domingo de abril,
Francisco surpreendeu o público presente na Praça de São Pedro ao descer de seu papamóvel para tirar fotos com os fiéis. Uma multidão de 100 mil pessoas reunidas para a missa de Domingo de Ramos e atrás de uma foto coladinho com o Papa. “Não me mordam”, disse Bergoglio, rindo, ao se aproximar do grupo.
O futuro a Deus pertence Sem sombra de dúvidas, estamos vivendo uma época intitulada de “Franciscomania”. As atitudes de Bergoglio fizeram com que o número de fiéis presentes em cerimônias na Praça de São Pedro dobrasse em apenas um ano de pontificado. Além disso, Francisco fez o Angelus
se tornar o programa mais visto da TV pública italiana nas manhãs de domingo. Até quem não é católico apostólico romano consegue sentir as mudanças que Francisco vem fazendo no Vaticano. A presidente da Federação Espírita do Rio Grande do Sul, Maria Elisabeth da Silva Barbieri, afirma que é importante para todas as religiões a ascensão de uma figura que se propõe a resgatar o cristianismo ensinado por Jesus. “Em um determinado momento, a Igreja Católica foi se distanciando da proposta do cristianismo verdadeiro, ensinado por Jesus. Nos alegra muito quando uma figura
A primeira selfie do papa Francisco foi parar nas redes sociais. No Twitter, Francisco tem mais de 1 milhão de seguidores no seu perfil em português.
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exponencial como o Papa vem tentar aproximar novamente o catolicismo desse cristianismo verdadeiro. No Espiritismo, há todas as religiões. E, no final, formaremos uma grande família universal”, diz Maria Elisabeth. Tanto carisma e simplicidade levou o Papa a ser escolhido como a personalidade do ano de 2013 pela revista Time. Francisco também foi capa da revista Rolling Stone, um símbolo da cultura pop. Na manchete: “Papa Francisco: os tempos estão mudando”. Apesar de ter feito muita coisa em tão pouco tempo, Francisco ainda tem um caminho árduo pela frente. Algumas questões ligadas a proibição do uso de métodos contraceptivos para prevenir a AIDS, por exemplo, ainda são tratadas como um tabu difícil de ser quebrado. As portas ainda estão abertas para uma série de questões, mas a passagem por elas é complicada. “O papa tem reiterado o respeito à pessoa, mas ele não tem ensinado nada daquilo que a Igreja não ensinou, até porque ele nem pode fazer isso, ensinar diferente do que os outros ensinaram”, diz o padre Leandro Chiarello. Migalha por migalha, Francisco vai quebrado a casca grossa que envolve uma Igreja Católica ainda obscura para muitos fiéis. Com a simplicidade de um homem que é torcedor fanático do San Lorenzo e amante do famoso tango argentino, Jorge Mario Bergoglio tem em suas mãos a oportunidade de fazer mudanças significativas na instituição mais antiga do mundo. Se passar pelas portas citadas pelo Papa for realmente difícil, pelo menos agora os católicos possuem, na imagem dele, uma figura próxima e confiável para encarar um futuro não muito distante. Um futuro que, literalmente, só a Deus pertence.
lauracxavier
5m
#instalove C
riado em 2010 o Instagram já possui mais de 200 milhões de usuários em todo o mundo. O programa foi desenvolvido por Kevin Systrom (@ kevin - CEO da empresa) e pelo brasileiro Mike Krieger (@mikeyk), ambos formados na Universidade de Stanford. Depois de trabalhar em empresas de tecnologia como o Google e o Twitter decidiram montar sua própria rede social. O aplicativo permite fazer o upload de uma foto do celular, editá-la com efeitos, marcar os amigos e publicar no seu perfil. Quem quiser acompanhar suas capturas pode seguir o usuário e ter todas as suas atualizações na página inicial. Os fundadores descrevem o aplicativo gratuito como “uma maneira engraçada e peculiar de dividir a sua vida com seus amigos através de uma série de fotos. Capture uma foto com o seu celular e escolha um filtro para transformar a imagem em uma memória que você poderá guardar pra sempre.”
Os criadores afirmam que imaginam um mundo mais conectado através das fotos. O nome diferente foi desenvolvido a partir das câmeras instantâneas da infância de Kevin e Mike, com a ideia de que as fotos tiradas pareciam telegramas. Assim sendo, Instant + telegram = Instagram. No projeto original, o Instagram resolveria três problemas: as fotos de celular sempre saem com baixa qualidade, portanto, os filtros foram criados para transformar fotos ordinárias em extraordinárias. Compartilhar as fotos em todas
as redes sociais dá certo trabalho, então na hora de publicar há a opção de automaticamente mandar para todas as suas redes sociais, como Facebook, Twitter, Flickr e Foursquare. E por último, a maioria dos carregamentos de foto demora muito tempo, no Instagram a ideia é que ele seja rápido e eficaz. Mas quando o hábito de postar fotos tornou-se uma obsessão por capturar todos nossos momentos e mostrar o que comemos, onde estamos passando nossas férias e qual o nosso look do dia para os seguidores? Com a adesão das celebridades à plataforma e a exibição de suas vidas cheias de glamour, novas contas foram criadas para fazer parte da rede, seguir os famosos e dividir fotos com os amigos. Mas se os famosos podem ostentar seus carros, joias, roupas, amigos, por que também não o fazer? O desejo de mostrar ao mundo alguns detalhes da nossa rotina, nossos amigos, nossos animais de estimação, nossos pés
na praia e nosso prato de comida cresceu. Criamos o hábito de primeiro tirar a foto para postar no #Insta e depois comer, soltar o gato, sair com os amigos, tirar a maquiagem. Eduardo Seidl (@fototaxia), fotógrafo e professor de Fotojornalismo na PUCRS, não se considera um usuário frenético de redes sociais. Prefere muitas vezes ver outras publicações a fazer suas próprias postagens. No Instagram, opta por não publicar suas fotos profissionais, pois para ele o aplicativo é apenas uma rede social que tem como base a câmera do próprio celular ou tablet. Eduardo usa o aplicativo para mostrar sua inquietação com o cotidiano e registrar tudo o que o comove. Analisando suas próprias postagens, conclui que o assunto mais fotografado por ele é a questão da mobilidade urbana. Assim como as fotos profissionais têm seus espaços, para o professor cada destino tem sua própria produção e, com o aumento da qualidade das câmeras de celular, as imagens postadas na rede social conseguem obter bons resultados. “O importante é não deixar o equipamento dominar a foto e
sim usar a linguagem para obter o resultado desejado”, afirma Eduardo. As hashtags, criadas com o intuito de tornar palavras-chave hiperlinks, são compostas pelo símbolo # e o termo ou expressão que o usuário deseja ser indexado. Clicando em cima das tags, o
o make e o hair style, esse tipo de foto requer, teoricamente, apenas que apareça o rosto da pessoa, ou do grupo de amigos. Algumas celebridades vão além e mostram mais do que o rosto, como as Kardashians (@ kimkardashian, @khloekardashian, @kourtneykardash) grandes adeptas das câmeras invertidas, as usam para mostrar como emagreceram pós-parto, pósseparação, pósacademia, antes de ir pro red carpet ou fazer uma sessão de fotos. Outro fã das selfies é James Franco (@jamesfrancotv) que tem o hábito de postar diversas fotos inusitadas. As últimas causaram polêmica quando o ator pousou diante de um espelho, de roupa íntima, mostrando seus dotes naturais. James afirmou para David Letterman em seu talk show que não pensava muito antes de postar e botava apenas o que ele achava que seus fãs iam curtir, já que para ele a rede social é uma maneira de se aproximar dos fãs. As selfies preferidas do ator são na cama e sem camiseta.
O importante é não deixar o equipamento dominar a foto e sim usar a linguagem para obter o resultado desejado servidor faz uma busca com todas as vezes que essa hashtag foi usada. Esse mecanismo teve início no Twitter e se espalhou para o Instagram, Facebook e outras redes. Atualmente, as fotos no Instagram podem até ser classificadas dentro dessas hashtags. Temos as #selfies, #tbt, #flashbackfriday, #ootd, #foodporn, #regram, #fitness. Segundo o Huffington Post, em 2013, a tag #love foi a mais utilizada pelos usuários da rede, mostrando pessoas, lugares, comidas e tudo que tinha algum significado especial.
BUT FIRST LET ME TAKE A SELFIE As selfies, fotos tiradas de si mesmo são as campeãs do Instagram. Altamente utilizada pelos famosos para mostrar todo
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OSTENTANDO As fotos ostentação no Instagram são aquelas na praia,
com um drink na mão, mostrando o carro, joias, com um famoso. Ou por que não pilhas de notas de cem dólares? 50cent (@50cent) compartilhou com os fãs o seu helicóptero, escrevendo para quem disse que ele não ia conseguir na vida, que conseguiu. E alguns dias depois decidiu publicar fotos com todas as celebridades com as quais ele já havia encontrado, como Oprah, Tom Hanks, Madonna, Beyonce e Jake Gyllenhaal. Dentro da ostentação, podemos incluir a turma do #fitness, com suas fotos de academia e dos corpos sarados. Afinal, perfis como o de @ gabrielapugliesi, que atualmente até lucra com suas fotos no Instagram, mostrando sua rotina de exercícios e alimentação, apresentam diferentes estilos de vida. A ideia é se orgulhar do que tem e do que se é.
alguns restaurantes postam fotos de pratos maravilhosos para atrair novos clientes, mas as imagens de comida normalmente vêm do amigo que foi jantar no Outback ou da colega que fez aquele bolo de chocolate maravilhoso. Também é usada frequentemente a #foodporn, insinuando que a apresentação “glamuralizada” da comida seria até obsceno.
THROWBACK THURSDAY / FLASHBACK FRIDAY / WAY BACK WEDNESDAY #tbt, ou throwback Thursday, é utilizada para relembrar fotos antigas. Seria algo como quinta-
usuários ainda criaram a flashback Friday e a way back Wednesday, com o mesmo propósito, apenas em dias de semana diferentes. Portanto, guarde suas fotos antigas para postar nas quartas, quintas e sextas-feiras.
LOOK DO DIA Seja quando a pessoa está de pijama, de roupa de ginástica, ou pronta pra balada, mas curtiu o look, gostou do que viu no espelho e quer publicar nas redes sociais a tag é #lookdodia ou #ootd (outfit of the day, ou seja, roupa do dia). Claro que essa é a tag favorita das blogueiras de moda do Instagram, que usam as fotos pra mostrar seu estilo, como @ thassianaves, @ lalanoleto e @ lalatrussardirudge. Com a soma de dois milhões de seguidores juntas as blogueiras postam foto das suas roupas, das suas atividades diárias, dos sapatos, do que comem... E como, aparentemente, o apelido Lala faz sucesso, vou ali criar minha nova conta @lalaxavier e postar fotos dos meus glamourosos looks pro inverno de Porto Alegre.
As imagens de comida normalmente vêm do amigo que foi jantar no Outback ou da colega que fez aquele bolo de chocolate maravilhoso
INSTAFOOD Essa tag só serve para dois motivos: dar inveja nos outros e não se sentir tão mal com a gordice que estás prestes a fazer. Claro que
feira das lembranças, ou do retorno ao passado, já que a expressão não encontra uma tradução literária em português. A ideia é postar uma foto de infância, de parentes ou até aproveitar uma foto da última viagem que não foi publicada. E como relembrar é preciso, os
NOVIDADE NO
COMANDO Manuela Ramos (manukaramos@hotmail.com)
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om um elenco de dezessete novatos o Brasil disputou a Copa do Mundo. Mas para por aí. A novidade só estava dentro das quatro linhas. Na casamata, o último campeão mundial, Felipão. No Campeonato Brasileiro foi diferente. Sem ter a certeza de quais seriam as novas apostas, a novidade estava mesmo no banco de reservas. Dos vinte clubes da série A, apenas cinco escolheram como comandante grandes estrelas do nosso futebol. Dentre eles, Paulo Autuori. Campeão brasileiro treinando o Botafogo em 1995, Autuori conquistou a Taça Libertadores
da América dois anos depois no Cruzeiro. Mas seu auge foi em 2005 quando conquistou a Libertadores e o Mundial de Clubes pelo São Paulo. Depois disso, nunca mais foi o mesmo; não conseguiu completar um ano de trabalho em nenhuma das equipes que treinou em seguida. Fez carreira no Catar e voltou como solução para os problemas gremistas, em 2009. De nada adiantou. Idas e vindas para fora do Brasil e nenhum outro título de expressão foi conquistado. Mesmo assim, o Atlético Mineiro apostou todas suas fichas nele para o bi da América e o Brasileirão. Vinte e três jogos depois,
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o técnico foi demitido, com onze vitórias, nove empates e três derrotas, com um aproveitamento de 61%. Muricy Ramalho foi tri campeão brasileiro treinando o São Paulo, sua melhor sequência como técnico. Muitas outras taças são colecionadas pelo comandante: Brasileirão de 2010 pelo Fluminense, Libertadores pelo Santos, em 2011, e Recopa Sulamericana, em 2012. Após péssimo desempenho do tricolor paulista no Campeonato Brasileiro de 2013 – comandado por Paulo Autuori-, Muricy foi chamado às pressas para salvar o time do rebaixamento. Dado como um dos
Cristiano Oliveski / Grêmio FBPA
Enderson Moreira, aposta do Grêmio para 2014, é sintoma de uma tendência do futebol: os técnicos novatos
certos que iria cair, a equipe foi salva da maior vergonha de sua história e acabou o campeonato em nono lugar - classificado para a Sulamericana. Nada mais justo que uma nova oportunidade para quem trouxe tantas alegrias. Campeão da série B do Campeonato Brasileiro pelo Goiás, Enderson Moreira foi um dos grandes destaques do Brasileirão de 2013, quando levou o esmeraldino a conquistar uma vaga para a tão sonhada Libertadores da América. Mas nem deu tempo do técnico
preparar sua equipe para a disputa. O mercado foi mais rápido. Mineiro de Belo Horizonte, Enderson passou por poucas equipes antes de ser contratado pelo Grêmio. Em 2008, começou no Ipatinga de
Fluminense como auxiliar-técnico permanente e ficou a frente do tricolor das laranjeiras por treze partidas antes da chegada do técnico Abel Braga. Escolhido pela direção gremista para substituir o ídolo Renato Portaluppi, Enderson tinha como missão conquistar um título para a equipe gaúcha – que não conquista nenhuma taça nacional ou internacional desde 2002. A principal competição era a Libertadores da América. Toda esperança gremista estava ali. O time caiu no grupo da morte; antes
Dos vinte clubes da série A, apenas cinco escolheram como comandante grandes estrelas do nosso futebol Minas Gerais. No ano seguinte foi chamado pelo Internacional para treinar o time B. Em quase três anos no posto, chegou a comandar a equipe principal no Campeonato Gaúcho de 2011. Foi, então, para o
mesmo de começar, diziam que nem para a próxima fase iria. Após estrear com vitória, a equipe comandada por Enderson acabou a primeira fase como líder do grupo e com a segunda melhor campanha do torneio. Mas o sonho parou por aí. Eliminados da competição nas oitavas de final, o técnico foi contestado. Não apenas por ter terminado com a possibilidade mais desejada de título, mas também
por ter levado seis gols em Grenais, na decisão do Campeonato Gaúcho – vencida pelo maior rival. A torcida e a imprensa começaram a questionar as suas capacidades de dirigir um time grande e a falta de responsabilidade ao admitir ser normal a derrota para o Internacional. Fábio Koff e o restante da direção bancou a permanência de Enderson que seguiu pressionado para a disputa do Campeonato
Brasileiro e da Copa do Brasil. O estilo de comando também mudou. Para João Paulo Fontoura, assessor de imprensa do Grêmio, a relação do treinador com o assessor mudou. “O Vanderlei Luxemburgo era um cara ultra-atento, queria saber o que as rádios estavam falando, o que saia nos jornais, quem foi que falou”, explica. “Já o Renato, por exemplo, é um cara que não se importava
Washington Alves/VIPCOMM
Entre os novatos na casamata, Marcelo Oliveira é o mais vitorioso dos brasileiros
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com o que saia na imprensa sobre ele. Isso de certa maneira acabava limitando o meu trabalho”, comenta JP, como o profissional é conhecido. Ele ainda ressalta que não havia tanto a preocupação do que iam falar. “O Enderson tem o perfil do técnico emergente, mas a relação com ele é ótima. Tem uma mente super aberta, tem um perfil de ouvir bastante, respeita todas as funções do vestiário e principalmente a minha,” e ressalta que Enderson sempre dá ouvidos para suas sugestões, pois sabe que ele tem uma visão mais ampla da imprensa do que ele. Assim, fica mais fácil o diálogo com o treinador. Na maioria das vezes, segundo JP, o técnico vai falar o que for passado a ele na conversa anterior. Esse trabalho de antecipação das pautas é melhor para o profissional, porque ele vai para a entrevista com mais noção de quais perguntas serão feitas e quais assuntos serão tratados. Sobre imposições feitas pelos diversos perfis de treinadores que já passaram pelo Grêmio, JP conta que cada um tem sua filosofia de trabalho, mas que o assessor tem a obrigação de escolher quem vai falar ou não, mesmo sendo um técnico de renome. “O clube tem que manter sua filosofia de trabalho, quem determina quem fala e quando fala é o assessor de imprensa”, conta. O retorno do estilo de comando também é comentado pelos vestiários. Informalmente, há comentários sobre os jogadores e profissionais que trabalham diretamente com o Enderson estarem mais satisfeitos com o seu trabalho e com a relação entre eles, além do ambiente estar mais tranquilo. E não é só o técnico gremista que tem esse perfil de quem escuta; Marcelo Oliveira, do Cruzeiro, também é assim. Sem gritos na beira do
gramado, o comandante representa bem o estilo mineiro, com conversas a sós com os jogadores. Para ele, a cobrança é a mesma nas duas maneiras e os atletas preferem assim. Com uma renda mais apertada e maiores gastos, a maioria dos clubes optou por treinadores emergentes devido ao não tão alto salário. A Pluri Consultoria divulgou um estudo no final de 2013 mostrando o gasto com os técnicos no Brasil. Os doze clubes com maior faturamento – Atlético MG, Botafogo, Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Fluminense, Grêmio, Inter, Palmeiras, Santos, São Paulo, Vasco - acabaram 2013 pagando R$ 4,5 milhões por mês a seus técnicos. Esse valor representa 14% a menos que na mesma época em 2012, quando pagavam R$ 5,2 milhões. Dos cinco treinadores mais experientes do Brasileiro deste ano, três possuem o maior salário. Abel,
Já o Flamengo tem o menor índice, com 0,9%. Miguel Ángel Portugal (Atlético PR), Marquinhos Santos (Bahia), Eduardo Hungaro (Botafogo), Gilmar Dal Pozzo (Chapecoense), Dado Cavalcanti (Coritiba), Ricardo Drubscky (Criciúma), Vinícius Eutrópio (Figuerense), Jayme de Almeida (Flamengo), Claudinei Oliveira (Goiás), Enderson Moreira (Grêmio), Gilson Kleina (Palmeiras), Oswaldo de Oliveira (Santos), Geninho (Sport) e Ney Franco (Vitória) foram os técnicos nem tão badalados que começaram o Campeonato Brasileiro de 2014. Muitos deles não permaneceram nos cargos*, mas a mudança no perfil do comandante brasileiro está acontecendo. Prova disso é que muitos figurões já estão exercendo outras profissões, como Antônio Lopes, ex-treinador do Atlético PR, que agora é diretor do Furacão. Mário Sergio e René Simões são comentaristas da Copa do Mundo de um canal fechado de televisão. Dunga seguiu o mesmo caminho, mas pela imprensa mexicana. O espaço para mudança está sendo dado pelos clubes. Falta agora os novos técnicos se fazerem presentes e mostrarem do que são capazes. Marcelo Oliveira é a prova viva. Depois de duas finais com o Coritiba pela Copa do Brasil, foi campeão brasileiro com o Cruzeiro em 2013. Seu exemplo tem de ser seguido para que essa renovação aconteça.
Com uma renda mais apertada e maiores gastos, a maioria dos clubes optou por treinadores emergentes devido ao não tão alto salário. Mano e Muricy recebem R$ 500mil por mês, enquanto em 2012 o maior salário também era de Abel Braga que recebia R$ 700 mil reais pagos pelo Fluminense. O São Paulo foi o clube que mais elevou os gastos com o salário do técnico em 2013, 67% a mais, devido à chegada de Muricy Ramalho. Quem se deu melhor com o aumento de salário foi Jayme de Almeida. O ex-técnico flamenguista teve o melhor custo benefício do ano, recebendo o dobro em relação ao ano passado. Os salários dos técnicos analisados corresponderam, em 2013, em média a 2,5% do faturamento anual de seus respectivos clubes, baseado nos balanços de 2012. O Cruzeiro foi o clube que maior teve esse número, com 4,9% de sua receita.
A reportagem foi escrita após o fim da nona rodada do Campeonato Brasileiro – na parada para a Copa do Mundo. Mudanças nos comandos podem ter sido feitas.
Diego Weiler (diegofelipeweiler@hotmail.com)
P
resentear uma criança recémnascida com camisetas de clubes de futebol é um costume brasileiro. Às vezes a criança nem sequer nasceu e já possui uniforme, utensílios e até quarto decorado com as cores do time que deverá torcer quando vier ao mundo. Bolas de futebol também estão entre os presentes mais comuns nos aniversários infantis, já cedo indicando o esporte prioritário a ser praticado pelos pequenos. No entanto, mesmo com todas as adversidades de se escolher outro esporte que não o futebol como hobby, um grupo de porto-alegrenses segue remando contra a corrente e pratica o futebol americano, sem deixar de cultuar a paixão pelo clube de futebol do coração. Lucas Vallim é um deles. O designer gráfico, de 25 anos, é gremista “desde piá”, como ele mesmo se define. Em 2005, associou-se ao Grêmio e desde
então dificilmente falta a algum jogo do Tricolor na Arena ou no Olímpico, anteriormente. Mas ele, junto com outros 54 torcedores de Grêmio e Inter, optou por praticar o futebol americano, outra paixão que o acompanha desde a infância. “Desde pequeno eu gostava, mas não entendia direito. Quando comecei a entender as regras e passei a jogar, aí sim comecei a gostar bem mais”, conta. De semelhanças com o futebol tradicional, o americano possui apenas o nome, as medidas do gramado e o número de jogadores em campo. Os 11 atacantes de um time confrontam os 11 defensores do outro, tendo quatro tentativas para avançar dez jardas (que equivalem a aproximadamente um metro cada uma). “O futebol americano é muito baseado na conquista de território”, explica Vallim. Gols também existem no esporte norte-americano, no entanto, eles
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não são a pontuação máxima. Um field goal, que consiste em chutar a bola para dentro das traves atrás da zona de finalização, equivale a três pontos. Já o touchdown - ápice do esporte norte-americano - consiste em invadir a linha de fundo do adversário em posse da bola: rende seis pontos e a chance de conquistar ainda mais um ou dois pontos extras em chute ou jogada bônus. Por fim, quem consegue o maior escore vence a partida. O jogo, assim, resumidamente parece simples, mas não é. A complexidade, entretanto, não está nas regras ou algo do tipo, e sim na falta de opções e de apoio à prática do esporte aqui no Brasil. Diferentemente das quadras de futebol - que existem aos montes - na capital gaúcha não há nenhum local preparado para futebol americano. O Porto Alegre Pumpkins, clube que Lucas defende, treina aos domingos pela manhã em uma quadra alugada
Arthur Perez
Vallim e sua paixão, dividida entre os dois esportes e improvisada para rugby, na Esef (Escola de Educação Física da UFRGS). Em competições mais importantes, o clube aluga o campo da PUCRS, onde há estrutura e gramado em melhores condições, entretanto os valores são altos e o local não possui as goleiras - que precisam ser deslocadas até lá para as partidas. Fundado em 2005, o Porto Alegre Pumpkins foi o primeiro time de futebol americano do Rio Grande do Sul. Em 2014, o time contratou um treinador norte-americano e sagrouse campeão gaúcho pela quarta vez. Mas mesmo com essa notoriedade,
apenas este ano o clube conseguiu um patrocínio. Segundo Lucas, “é muito complicado conseguir apoio, principalmente nas cidades grandes, como Porto Alegre”. O designer conta que no interior, como em Santa Cruz do Sul e Santa Maria, os patrocinadores investem e promovem viagens aos times para expandir o clube e também as suas marcas. Na capital, esse investimento não ocorre ou pouco acontece. Com isso, são os jogadores que bancam as despesas. “A gente é que paga tudo. Para viajar, para treinar, tudo é do nosso bolso.”, relata. E o custo não é barato. Para
manter a paixão pelo futebol americano, Vallim e os demais atletas do Porto Alegre Pumpkins investem R$ 30 como mensalidade de sócio do clube. O gasto maior vem na hora de entrar em campo, seja aqui em Porto Alegre ou longe: no equipamento, o camisa 93 do Pumpkins conta que gastou cerca de R$ 600. A camisa de jogo, mais R$ 100, e dependendo o lugar da partida, um gasto entre R$ 30 e R$ 100 com a viagem. “Nós fazemos rifas para arrecadar dinheiro e se mesmo assim alguém não consegue o dinheiro, a gente racha entre o pessoal do time”, conta. Os valores assustam, mas eles
Arthur Perez
se assemelham aos que Lucas gasta para assistir aos jogos do Grêmio na Arena. De mensalidade são R$ 98, o que soma, no ano, R$ 1176. Nas partidas, o gasto médio com consumo e transporte fica em torno de R$ 15, que tendo em média duas partidas por mês nos 12 meses do ano resulta num custo de R$ 360. O designer também coleciona camisetas do Tricolor. Com isso, são mais R$ 200, em média, comprando a camiseta do ano ou negociando alguma mais antiga. Totalizando os gastos anuais de Vallim com os dois esportes, a diferença fica em apenas R$ 176. Mesmo com valores relativamente altos para praticar, o camisa 93
acredita em uma popularização do esporte norte-americano no Brasil nos próximos anos. “Não como o futebol”, ele deixa claro, mas como um segundo esporte preferido no país. “Cada vez mais a liga brasileira está se profissionalizando e o público que assiste o Super Bowl (final da liga americana) está crescendo”, afirma. Mesmo que o interesse maior dos brasileiros ainda seja assistir apenas à final da NFL (National Football League), a liga estadunidense, algumas emissoras, como a ESPN e a Bandsports, perceberam o crescimento do esporte no Brasil e já aderiram à programação semanal a transmissão de jogos de futebol
GASTO ANUAL
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americano. “Acordar domingo de manhã para treinar, às vezes em dias de semana também, e pagando tudo do nosso bolso é muito por amor mesmo”. Com esse sentimento e vontade, sem desapegar do gosto pelo futebol tradicional trazido desde a infância, Lucas e os outros jogadores do Porto Alegre Pumpkins vão lutando contra as adversidades que praticar um esporte menos popular no Brasil acarreta. O esforço é recompensado a cada conquista do clube, mas principalmente na realização de praticar, sem pré-influências, o esporte escolhido por eles mesmos como paixão.
Three studies for a self-portrait/Francis Bacon
NÃO MAIS, MAIS AINDA SIM
três contos de ser enquanto estar (e permanecer)
N
asceu em uma noite sem lua. Talvez em outras tribos isso significasse algo, mas para a dele não era nada. Como se desse para chamar de tribo: há muito corridos de suas terras natais, o grupo vivia em um ajuntamento localizado nas encostas de um morro periférico. Lá nasceu e cresceu, sem nunca entender porque, em suas incursões pelo mundo externo à comunidade, lhe diziam que não parecia índio. “Índio de verdade mora em oca”, ouviu mais de uma vez. O casebre em que vivia era de madeira, mas não dava para chamar oca. Cresceu índio de mentira.
Dezoito anos após, a universidade local inaugurou seu programa de ações sociais que, entre outras medidas tomadas, criava a reserva de vagas para alunos indígenas em determinados cursos, como ficou sabendo quando um grupo de funcionários, solícitos e sorridentes, desembarcou de sua van na entrada da comunidade, trazendo panfletos e promessas como se fossem espelhos reluzentes. Era considerado pelos adultos o jovem mais inteligente do lugar. Foi chamado. Iria estudar. Foi empurrado ao curso de Direito, sem saber muito bem o motivo. “É o mais promissor”, lhe disseram.
Seu primeiro dia de aula também foi a data escolhida pelos estudantes da universidade para a organização de um grande protesto contra a implementação do programa. QUER UMA VAGA? PASSE NO VESTIBULAR lia-se na imensa bandeira que guiava a massa, um corpo que pulsava aos gritos de IH, FORA, IH, FORA!, um corpo que ele assistia do lado externo do campus onde fora impedido de entrar. Ainda que não conhecesse os códigos sociais dos brancos, não era ingênuo: compreendeu as boasvindas. Estudava mais do que qualquer
outro aluno. Das aulas, subia para a biblioteca e de lá para casa. Não se permitia um só momento de descanso. Se mudou da comunidade para o albergue estudantil, onde passou a ser conhecido como Touro Sentado. Formou-se em tempo recorde, com láureas acadêmicas. Seu trabalho de conclusão de curso, um detalhado compêndio a respeito do direito fundiário, foi avaliado com todos os méritos possíveis, sendo publicado pela universidade. Foi usado como publicidade pelo programa de ações sociais e esperavase que, dado seu ramo de interesse, retornasse para sua comunidade e ajudasse no processo de demarcações de terras indígenas que abalava a região, uma empresa local requisitava o terreno do morro. Ao invés disso, abriu um escritório no centro da cidade. Quanto ao caso de sua comunidade, atuou: defendeu a empresa. Ganhou a causa e destaque. Passou a circular pelo interior, tornando-se figura recorrente nos embates entre indígenas e o agronegócio – militava por estes últimos. Nunca perdeu uma causa. À boca pequena dizia-se que o fato de ver um índio adentrar o tribunal
contra outros índios impressionava júris e juízes de forma irremediável. Se ele, que é índio, acha que eles estão errados, quem sou eu para julgar? Agora está prestes a entrar no tribunal defendendo a maior causa de sua metórica carreira. Há poucos dias explodiu um conflito no norte do Estado: fazendeiros foram acusados de terem assassinado dois indígenas locais e exposto seus corpos diante da reserva, uma espécie de aviso para que findassem sua luta por terras no local. Dois capatazes foram indiciados pelo crime. De imediato seus patrões sabiam qual advogado chamar. Antes de adentrar o fórum improvisado na escola da cidadezinha, repassa o processo em uma sala reservada no local. Levantese. É a hora de seu ritual, aquele que sempre realiza antes de uma defesa, aquele que desenvolveu desde as apresentações na faculdade. Da mala que trouxe da Capital retira um vistoso cocar, adornado com penas de aves em azul, amarelo e verde. O coloca na cabeça e segue para o espelho que há diante do armário, se vê refletido na superfície e começa a entoar o cântico que o pai lhe
ensinou aos cinco anos como modo de esconjurar dos trovões.
* Baby we livin’ in the moment I’ve been a menace for the longest But I ain’t finished, I’m devoted And you know it, and you know it
T
odos os dias raspa a cabeça para que não vejam o pixaim que adensa ali quando esquece de usar a máquina por uma semana que seja. Para que não vejam, mas de que adianta se a pele que a ausência de cabelo revela é preta? Guarda a máquina embaixo da pia, levanta a gola do casaco de couro, vê a si emoldurado no espelho, passa o dedo pelo relevo da pele, as pequenas cicatrizes aqui e ali, riscos escuros resultados de facas, navalhas e unhas, o lóbulo da orelha esquerda deformado após uma mordida, vê o próprio rosto, a história da violência escrita na própria cara. Engraxa os coturnos e sai. LÍDER DE GRUPO SKINHEAD É DETIDO APÓS BRIGA NA CIDADE BAIXA
Three studies for a self-portrait/Francis Bacon
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Three studies for a self-portrait/Francis Bacon
Está combinado: será um dos que atacarão a delegacia por trás. É o ato mais ousado do grupo até então, uma medida desesperada, necessária após a prisão do Careca, ele que mesmo entre tantos outros raspado é conhecido como o Careca, exceção que confirma seu poder. O grupo, esta entidade. Como o grupo o aceitou?, ele cujo rosto negro bem poderia estar em um desses folhetos que distribuem clandestinamente pelos bares apoiadores da causa, folhetos que listam os ódios do grupo, as causas a serem combatidas. Lembra bem: na sua primeira noite com o grupo foi incumbido de espancar outro negro. Qualquer um. Rodariam pela madrugada até encontrem um preto incauto, caminhando sozinho pelo escuro da cidade adormecida, existindo - o pior pecado que um tição pode cometer. E bateu, como bateu. No meio do processo a coisa já havia se tornado automática. Nem percebeu quando lhe puseram o soco inglês em uma das mãos. E o som ao redor: Briga de macaco, briga de macaco, briga de macaco. Foi aceito. Não acolhido: aceito. Sente sempre sob as costas o olhar de esguelha dos outros, o tom de escárnio que ameaça vez ou outra escapar de suas vozes quando lhe dirigem a palavra,
como se construíssem ao longo de todo esse tempo uma invisível porém engenhosa armadilha, esperando o momento certo em que o crioulo vai pôr o pé no lugar errado e aí sim. Por isso não pode vacilar. Por isso agarra forte com a mão esquerda a garrafa cheia de álcool, com a mão direita o isqueiro. Vai começar. E agora o nosso repórter, com informações ao vivo do centro da cidade… é isso mesm… peço desculpas aos ouvintes, o barulho aqui é insportá… o caos… grupo de neo-nazistas tentam incendi… a polícia ag… Ele abre caminho em meio a fumaça das bombas e do incêndio, tão espessa que precisa afastar a nuvem diante de si com as mãos. Ouve gritos, vê uma criança moradora de rua acuada contra uma parede, cercada por polícias militares. O menino é preto e leva um tapa na cara. Ele arremete contra os policiais, os derrubando de surpresa e dando tempo para o moleque escapar, manobra que executa em sequência. Correndo, ouve um estampido e sente a pressão na perna esquerda. sirenes sirenes sirenes sirenes
Mancando segue por uma viela escura, afastando-se da confusão. À perna ferida amarrou um trapo arrancado da camisa. A jaqueta jogou fora e, para complementar o disfarce, leva na cabeça um boné encontrado no lixo. Do outro lado do beco, passos. Da penumbra à luz surge um trio de policiais. Ele estanca. Eles o avaliam de alto a baixo. “Será que esse não era um dos envolvidos na confusão dos nazis?”, pergunta um. “Tá louco? Nazi? Esse criolo?”, responde outro. Eles vão embora. Ele segue. Nos fones de ouvido, Jorge Ben e seu Zumbi. Angola Congo Benguela Monjolo Cabinda Mina Quiloa Rebolo
*
...porque, saibam, falo por conhecer, sim, isso mesmo, venho aqui para lhes trazer a palavra, lhes contar que eu, sim até mesmo eu, já vivi este pecado, já fui gay, já vivi e me deitei nos pecados da carne, uma imoralidade já presente na Bíblia, lembrem Levítico 18:22, “com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é”, eu era uma abominação, cheguei a me ver como uma mulher presa dentro de um homem, maldizendo Ele por cometer o erro de me pôr
no corpo errado, cheio de revolta neguei o Senhor e neguei Jesus, me entreguei à devassidão, fui travesti, sim, fui travesti, frequentava orgias e dava o meu corpo a quem quer que fosse, era ignorante, tinha medo de ler a Bíblia, me apoiava em fariseus que desacreditavam a cura Dele, eu, sei que talvez vocês não acreditem, mas a palavra que trago é real, é um testemunho sincero do poder da fé, eu, meus companheiros, cheguei a ser aidético, isso mesmo, o pecado em mim era tanto que se formou em doença, cheguei a ter 30kg, entrei em coma e mesmo quando acordei não entendi os sinais Dele, voltei aos velhos pecados, me transvestia, negando meu próprio nome e meu batismo, era um monstro, sei agora ao ler em Deuteronômio 22:5, “não haverá traje de homem na mulher, e nem vestirá o homem roupa de mulher; porque, qualquer que faz isto, abominação é ao Senhor teu Deus”, mas mudou, tudo mudou, Jesus veio a mim, não teve medo de vir a mim em meio às orgias e à rotina de devassidão, Jesus ficou comigo quando eu era ignorante e achava que o pecado era o caminho, conheci Jesus e mudei, abram em
II Coríntios 5:17, “assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”, novo é a palavra, me fiz um novo homem, homem é a palavra, cortei o cabelo, queimei as roupas de desviado que usava, as pinturas hereges que me atrevia a colocar na cara, passei a frequentar este templo, esta casa do Senhor que era tudo que eu tinha, este local capaz de operar milagres, e aproveito para pedir a vocês uma contribuição para a manutenção da Igreja, vocês sabem como é difícil, por isso neste momento estará passando entre vocês o encarregado por recolher os donativos, ajudem, fiéis, e não se preocupem, ele passa entre vós portando não apenas um cesto, mas também uma máquina de cartões, toda ajuda é válida para Ele, aceitamos também cheques, desde que não pré-datados, claros, os milagres de Jesus não podem esperar, vale-alimentação também será aceito, esta casa tem tantas bocas a alimentar, tantas vidas a tirar da escuridão como um dia tirou a minha, amém, irmãos, deem as mãos, deem as mãos e me acompanhem, juntos podemos combater o mal
que caminha sobre a Terra tentando os homens, gerando os desviados, pois não conheço homossexual feliz, a felicidade só é possível em face Dele, creiam, creiam que a palavra do Senhor vai curar tua alma, Amém, irmãos, repitam comigo, Amém, e que Ele brilhe sua luz sobre vós, gritou o pastor. Sua, traz até mesmo o blazer encharcado, e arfa, sem fôlego. Os ombros caídos enquanto recebe a ovação da igreja inteira. Levanta a mão direita em um esforço débil, acena para os presentes, murmura um muito obrigado, com uma mesura pede licença e segue para o camarim atrás do pulpito, o fazendo em uma caminhada torta, como se mancasse. Que homem!, pensam os fiéis ao presenciar a cena, que voz!, que entrega, meu Deus, que entrega!, o homem se doa de tal forma que não sobra nada para si, entrega o corpo e todas as energias para a palavra Dele e tem como recompensa apenas esta total falta de energia que o impede até mesmo de caminhar, pensam os fiéis sem saber que os passos dados em falso se devem a uma calcinha fio-dental abusada, desconhecedora de seus limites. Three studies for a self-portrait/Francis Bacon
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MALD TA G SELE
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Lina Sumizono
Ana Carolina Nodari Giollo (anagiollo@gmail.com) Matheus Bertoldo Bazeggio da Rocha (matheus.bazeggio@gmail.com)
de tudo que é nego torto do mangue e do cais do porto ela já foi namorada o seu corpo é dos errantes dos cegos, dos retirantes é de quem não tem mais nada...
G
abriela. Milena. Marcelly. Bruna. Essas são algumas das meninas apresentadas em cerca de uma hora pelo ator e dramaturgo Silvero Pereira, em seu espetáculo BrTrans. São os nomes, rostos e corpos que passam pelas ruas do Brasil diariamente, em todos os lados do país. Gisele é a personagem escolhida para narrar algumas dessas histórias, em forma de teatro. Uma mulher, transexual, que trabalho no exército e não vê a hora de se aposentar para viver em paz com seu marido. A menina que saí de casa para seguir seus sonhos de ser artista, mas acaba na prostituição. Os conflitos que a travesti enfrenta ao lidar com o choque de realidades, entre seu namorado e a forma que ela encontra para ganhar dinheiro, na prostituição. Essas são algumas das histórias apresentadas em BrTrans. Algumas cansadas, algumas esperançosas, mas em sua maioria, marcadas. Marcadas pelos olhares tortos da sociedade, por palavras de desafeto gritadas a elas, mas principalmente pela violência física que sofrem. Muitas dessas garotas acabam caindo na prostituição, vivendo no ambiente vulnerável das ruas e tendo que sobreviver em constante estado de alerta.
Silvero Pereira apresenta, em seu trabalho com o coletivo artístico As Travestidas, as histórias dessas travestis, transexuais e transformistas que estão espalhadas pelo Brasil. Elas vivem nas margens das cidades, sendo insultadas ou sequer sendo notadas. Elas representam a força das diversas pessoas do mundo todo que lutam pelo reconhecimento de sua identidade. São pessoas que,
Tem uma série de outras atividades, por isso que a gente chama de coletivo artístico. Ele surge em 2008, enquanto eu realizava solo o Flor de dama, que é de 2002. Em 2008, o espetáculo acabou se tornando O cabaré da dama, ainda solo, mas eu agregava novas pessoas. Eu convidei alguns atores que tinham interesse de se travestir e fazer show de transformismo antes do espetáculo. Essas pessoas eram alguns colegas da faculdade, eu sou graduado em Artes Cênicas pelo Instituto Federal do Ceará. Esses colegas toparam fazer isso e acabaram, a partir deste espetáculo, criando um elo muito forte. Assim, a gente acabou fazendo o coletivo As Travestidas. O nosso objetivo é trabalhar só com as questões do universo trans, no sentido de tentar modificar a cabeça das pessoas usando a arte como instrumento de transformação social. Tentar mudar um pouco a cabeça da sociedade, esclarecer um pouco sobre o universo das travestis, transexuais e transformistas. Mudar essa ótica de sempre pensar pela condição de vida, mas analisar um pouco a história de vida. Reconhecer a história de vida dessas meninas para depois entender a condição de estar na rua, na boate, na universidade. Não é só um ponto que deve ser levado em consideração,
O nosso objetivo é trabalhar só com as questões do universo trans, no sentido de tentar modificar a cabeça das pessoas usando a arte como instrumento de transformação social apesar de tudo, só querem viver como se sentem melhor. Essas vozes começam, aos poucos, a ecoar nas cidades por onde Silvero passa, seja sozinho ou com As Travestidas. O trabalho de pesquisa e as apresentações dos diversos trabalhos do grupo dão uma nova luz ao tema. Sextante: Como é que surge o coletivo As Travestidas e quais seus principais objetivos? Silvero Pereira: O Coletivo Artístico As Travestidas tem esse nome porque ele não é só um grupo de teatro. A gente tem uma série de outros integrantes que são de outras áreas das artes. São fotógrafos, vídeo makers, designers, dançarinos, bailarinos, músicos...
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deve se pensar em toda a história. S: Tu viajas o Brasil com tuas peças. Como é a recepção nos diferentes estados brasileiros? SP: Pra gente tem sido muito positivo. Recentemente a gente está circulando mais ainda. Nos últimos quatro anos o movimento queer ficou meio na moda, principalmente no universo da arte. Este ano, inclusive, acontece em Niterói o Primeiro Encontro Nacional de Cultura LGBT, onde vai ser discutido tudo que está sendo produzido no teatro, na dança e na música. O Itaú Cultural nos convidou no ano passado para a um evento deles, a Primeira Mostra de Cultura LGBT, que abrangia todas essas áreas. Falar nesse tipo de assunto está na moda, e isso possibilita a gente circular
bastante. Em termos de receptividade, a gente tem um trabalho muito bacana. Quando se pensa em um trabalho de teatro sobre travestis, geralmente o público e a classe artística tem um preconceito. Eles acham que vai ser um ator que vai subir no palco tentando se realizar na vida real e está usando o teatro para isso. Quando as pessoas assistem nosso
Alegrete, bem distante. Por essas cidades que a gente passou, a gente ouvia falar muito que eram municípios mais tradicionais, mais evangélicos. Nós ficamos muito surpresos com o público, com os debates que aconteciam e a posição das pessoas em relação ao tema. S: Essa questão de estar na moda hoje em dia, tu acha que é positivo pra ajudar o público a reconhecer esse trabalho e essas histórias? SP: Claro, eu acho que sim, principalmente no sentido da arte. A arte tem uma vantagem, e aí o próprio Nietsche vai dizer isso, que a arte consegue atingir as pessoas de uma forma que nenhuma outra área consegue. A academia vem tentando há anos sensibilizar e trazer o conhecimento, só que o conhecimento que a academia e a educação podem dar é muito a longo prazo. O que a arte consegue é imediatamente tocar as pessoas, e isso faz com que mude realmente, com menos tempo, a cabeça da sociedade sobre o assunto, e elas fiquem mais esclarecidas. Essa cultura que ficou meio na moda tem muito a ver com isso.
espetáculo, não é isso que elas veem. Elas encontram um trabalho de arte, muito sério, de estética, conceito, estudo de cena, interpretação. Nós sofremos um pouco de discriminação da própria classe artística, que achava que a gente não fazia teatro, que a gente se assumia em cena. Nos últimos anos, a gente acabou ganhando espaço. A receptividade nas cidades tem sido bem bacana. A gente fez sete cidades do interior do Rio Grande do Sul, terminando em Porto Alegre. Chegamos até
Luciane Pires Ferreira
Nós sofremos um pouco de discriminação da própria classe artística, que achava que a gente não fazia teatro, que a gente se assumia em cena.
Essa cultura existe, essa rede existe mais em um sentido educacional e de transformação social do que exatamente no sentido artístico. S: Como foi o processo de criação do Flor de dama? SP: Foram dois anos de processo, entre 2000 e 2002. É inspirado em um conto do Caio Fernando Abreu, A dama da noite. Eu estava terminando a faculdade de artes cênicas e me deparei com uma situação na comunidade em que eu morava. Existiam umas meninas que durante a noite se relacionavam com os caras e durante o dia sofriam muita discriminação dos próprios caras. Isso mexia muito comigo, eu
queria entender porque a sociedade age desse jeito. Como eu fazia teatro e trabalhava com uma ONG na época, eu imaginei que pudesse usar minha arte para discutir isso. Foi quando eu me deparei com o conto do Caio. Fiquei dois anos em laboratório com as meninas, saindo com elas na noite, indo nas boates ver os shows das transformistas, anotando coisas. O conto acabou se tornando uma esponja e eu fui injetando esse material que eu recolhi, fatos reais que eu vivenciava com elas. Foram dois anos de contato com as meninas que acabaram se transformando no texto do Flor de Dama.
S: O BrTrans é mais novo e conta inclusive com pesquisa aqui no Rio Grande do Sul, no presídio. Como foi o processo de criação dele? SP: O BrTrans é um retorno ao que eu tenho feito no Ceará nesses últimos 12 anos. Eu ganhei uma bolsa do Ministério da Cultura para trabalhar em outra região e eu já tinha uma relação com o SOMOS, uma organização de cultura LGBT muito forte daqui. A gente queria trabalhar juntos há muito tempo, mas não tinha condições. A bolsa veio para contribuir nesse sentido. Eu decidi vir para o Rio Grande do Sul para reproduzir esse olhar que foi feito no Ceará. Eu tinha
Juliano Ambrosini
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seis meses para reproduzir toda essa prática que eu exercitei ao longo dos 12 anos lá. Então eu fui para as ruas conhecer. O mesmo processo que eu fiz com o Flor de Dama, eu fiz aqui. Esse material foi colhido e virou dramaturgia. Eu convidei alguns artistas aqui de Porto Alegre para construirmos o espetáculo juntos, que estreou em junho de 2013. S: Tanto o BrTrans quanto o Flor de cama entram na programação de vários festivais de teatro do Brasil. Quais são os outros espetáculos do coletivo? SP: A gente tem cinco espetáculos. Flor de cama, O cabaré da dama, Engenharia erótica, Yes, nós temos bananas! e agora o BrTrans. Eles trazem temáticas diferentes. Algumas coisas não entram em alguma montagem e acabam em outra. Nós tratamos sobre sociedade, preconceito, transformismo. A gente faz um mosaico, uma espécie
de teatro-documentário, contando as categorias de drag, travesti, transformista... Os quatro primeiros espetáculos são mais voltados para a questão do Ceará, do Nordeste. O BrTrans é muito mais Brasil. Ele se chama assim justamente por isso, pela linha imaginária que sai dos dois polos, de Fortaleza até Porto Alegre. É como se eu traçasse uma BR e apresentasse as histórias que eu venho olhando lá de cima até aqui. Tem uma diferença muito grande. O BrTrans me identifica mais hoje em dia, é mais forte, mais substancial. Ele tem muito a ver com o que eu penso hoje em dia. O Flor de dama é o resultado de um projeto acadêmico, encerrado em 2006, sou eu com 19, 20 anos, começando a pensar em fazer algo para o teatro. Tantos anos depois, o BrTrans é construído comigo aqui em Porto Alegre, com outra cabeça, mais experiências, viagens, contato com diferentes diretores, espetáculos e estéticas. O
BrTrans me representa mais não só pelo assunto, mas pela forma que ele foi construído esteticamente, é o teatro que eu acredito hoje e quero produzir. S: Viajando tanto pelo Brasil, teus trabalhos acabam se modificando com o tempo? Novos casos e histórias são adicionados aos espetáculos na medida em que eles te são apresentados? SP: Alguns espetáculos eu ainda consigo fazer isso, mas o BrTrans e o Flor de dama já são trabalhos mais fechados. Mesmo o primeiro sendo uma série de histórias sendo contadas, ele tem uma dramaturgia bem fechada. O que acontece é que ao entrar em contato com uma nova história eu reservo ela para posteriormente talvez eu usar em outro trabalho. O BrTrans, inclusive, tem um convite para virar um filme. A gente vai começar a filmar a partir de setembro. Aí além da dramaturgia
joga pedra na Geni! joga bosta na Geni! ela é feita pra apanhar! ela é boa de cuspir! ela dá pra qualquer um! maldita Geni!”
Geni e o Zepelim, de Chico Buarque, é cantada por Silvero durante sua apresentação com o espetáculo BrTrans. A música conta a história de Geni, julgada, abusada pela sociedade quando precisam dela e, depois, jogada novamente ao lixo. A música é relacionada à história de Babi, uma das meninas retratadas na peça. Com uma forte interpretação, Silvero utiliza a canção para denunciar a atual posição das travestis, trans e transformistas do Brasil. Milhares de Genis sofrem diariamente, e o trabalho de Silvero e d’As Travestidas vai, aos poucos, modificando esse quadro. Ter essa espaço para discutir e conhecer esses casos é de extrema importância. O trabalho de Silvero Pereira e seu coletivo faz com que cada vez mais pessoas entrem em contato com a vida dessas meninas. Esse esforço de retratar pessoas que desafiam a sociedade, marcada por preconceitos, e se libertam para viver a vida como ela deve ser é visível. E precisa ser cada vez mais reconhecido.
do espetáculo, foi solicitado pelos diretores mais material que eu não consegui colocar na dramaturgia. Como muda de linguagem, eles vão fazer um novo roteiro a partir da peça para a linguagem do cinema. Eles querem mais material para ver se eles vão injetar ou não, como eles vão construir essa história. Todo o material que eu tenho contado eu deixo guardado e isso depois pode virar um novo processo. S: Trabalhando tanto com travestis e transexuais, o que tu pensas sobre a carteira social? SP: Eu acho extremamente positivo, e eu fico impressionado com o Rio Grande do Sul por dar essa oportunidade. Eu não sabia que existia essa facilidade no estado para que isso aconteça. Ontem, por exemplo, eu fui ao Beco, e na hora de dar a identidade foi completamente constrangedor. Tu está toda montada, toda produzida, se sentindo linda, e na hora de dar a identidade vai com o teu nome de homem, com a tua foto de homem. Inclusive comentei com um amigo que acho que vou tirar minha outra identidade, para quando sair de Gisele apresentar uma e quando sair de Silvero apresentar outra, que assim eu consigo me sentir melhor. É um documento que ao chegar a qualquer lugar e apresentar esse documento é como se você dissesse para as pessoas “olha, me respeite” porque eu já tenho essa identidade, eu já fui aceita assim pela justiça, então você precisa me aceitar dessa forma. Acho que a carteira é extremamente positiva sim, porque dá às meninas a possibilidade de brigar pelo direito de ser respeitada. S: E como é no Ceará? Tu havias comentado sobre as diferenças aqui no Rio Grande do Sul, como funciona lá?
SP: No Ceará sempre me perguntam sobre no Rio Grande do Sul existir o gaúcho, machão, que aqui no estado somos muito preconceituosos, etc. Eu acho o contrário. Eu acho que o sertão é mais preconceituoso, o Ceará e o Nordeste como um todo é bem mais preconceituoso. Pela experiência que eu tenho tido e pelo sucesso das coisas que acontecem aqui, como a carteira social, por exemplo, a operação de adequação sexual que aqui o SUS da de graça e no Nordeste isso não tem, o presídio com ala específica para travestis e seus companheiros. Agora no Ceará depois de uma briga, depois da experiência que eu tive aqui eu comecei a cutucar o sistema carcerário de lá e esse ano eles decidiram que sim, vão implantar no sistema carcerário de lá. Mas a quantidade de meninas que tem dentro da academia aqui, fazendo mestrado, ou só a graduação é um número bem maior. No Ceará temos a primeira doutora, a primeira trans que conseguiu concluir o doutorado, e em educação. Mas não temos tantas meninas dentro da universidade como tem aqui. Acho que as portas e a cabeça estão muito mais abertas que as lá de cima. S: E tu achas que a carteira social é plenamente aceita e respeitada? SP: Acho que não, é muito banalizada até dentro do movimento por conta dessa discussão mesmo que se faz, se é realmente necessária. Acho que no dia que o movimento parar de discutir isso e decidir que sim, que é importante porque mesmo que pra uma minoria ela pode ser a diferença. Acho que quando o movimento decidir que isso é assim e precisa ser importante, as coisas vão começar a mudar.
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Durante o processo de laboratório do BrTrans, Silvero Pereira criou uma conta no Tumblr, intitulado O Blog da Gisele. Lá, as histórias vão aparecendo, com detalhes, fotos e as impressões do ator em sua vivência com as meninas.
blogdagisele.tumblr.com
SANGRAMOS Yamini Benites (yabenites@gmail.com)
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o longo da história a menstruação tem induzido a múltiplas interpretações em diferentes povos e civilizações. O ciclo e o sangue menstrual foram inseridos em crenças, metáforas e simbolismos que transitam entre o sagrado e o tabu. De um lado temos o sangue como expressão de vida, de fertilidade e ligação com a natureza. De outro, como referência à dor, ao sujo e imoral. Desde cedo somos ensinadas que menstruar é feio e que nisso não se fala. O que deveria ser apenas um ciclo natural do corpo passa a ser um evento doloroso, vergonhoso e muitas vezes traumatizante. Mulheres aprendem a rejeitar a menstruação de tal forma que ela passa a ser encarada como uma patologia. Meninas pedem e trocam absorventes em sala de aula como se fosse um produto ilícito e proibido – enquanto consideramos normais os remédios contra cólica terem se tornado item quase obrigatório nas bolsas. Como cada uma de nós se relaciona com seu sangue? Fazendo esse questionamento tive respostas destoantes. A maior parte delas começou com uma reação de aversão. De nojo. Não conseguimos falar sobre um fluido com o qual interagimos a cada mês. Mulheres adultas ainda tratam o assunto como algo sujo. Procuro através da fotografia mostrar a relação de cada pessoa com o seu sangue, mas também provocar uma forma de empoderamento. A aceitação do corpo é também a aceitação dos processos pelos quais ele passa. Cada uma das mulheres retratadas no ainda engatinhante projeto mostra a sua forma de enxergar a menstruação e de interagir com o seu sangue. Seja ele uma expressão do sagrado feminino, a libertação do corpo ou apenas o sangue pelo que é. Só nós podemos definir o significado do nosso sangue e do nosso ciclo. Nunca estivemos “naqueles dias”: estamos menstruadas! Podemos e devemos sangrar da forma que quisermos. Quem tem medo de menstruação?
ROMPENDO O SILÊNCIO Jônatha Bittencourt (jonathabitt@gmail.com)
“(...) os moços que lá estavam acharam que ora, se essa menina está bêbada e praticamente desacordada depois de vomitar muito, é claro que vamos passar a mão. Vamos levar pro banheiro. Vamos abusar e enfiar garrafas nela, porque ela não devia ter dado esse mole de beber tanto perto dos meninos mais velhos. Quem mandou dar mole?” Depois de 22 anos, ela resolveu romper o silêncio. A “primeira vez” da escritora e blogueira porto-alegrense Clara Averbuck Gomes foi, infelizmente, inesquecível e da pior maneira: à força. “Eu tinha 13 e era fã de Skid Row, Faith No More e Ramones. Pintava os cabelos de preto azulado, usava um piercing no nariz e era gamada num menino cujo apelido era Samurai. Ele era mais velho, tinha uns 16, e não era da minha escola.”
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ais um nome para a lista de vítimas de estupro. Só em 2013, a Secretaria da Saúde registrou 1.364 casos de violência sexual contra mulheres no Rio Grande do Sul. A faixa etária que sofreu mais na mão de abusadores foi de meninas entre 10 e 14 anos, com 496 incidências. No entanto, esses números não chegam a dar conta da complexidade. Os dados disponibilizados foram captados pela Rede Lilás, iniciativa do Governo do Estado que tem como objetivo atender mulheres que sofreram algum tipo de violência. O programa atua com o apoio de órgãos e instituições de saúde, segurança, assistência social etc. O número de vítimas citadas anteriormente faz referência APENAS aos relatos obtidos pela Secretaria da Saúde. Outros são encaminhados por meios alternativos. Muitos terminam no silêncio.
Fotos: reprodução Instagram
“Tinha uma festa e seria na casa do tio de um colega. (...) A casa tinha uma piscina e um bar lá atrás. (...) E foi lá que eu tomei minha primeira dose de uísque. E a segunda, e a terceira e outras. E foi lá que eu finalmente consegui beijar o objeto do meu desejo, depois de tanto tempo. E foi lá, no banheirinho da casa dos fundos ao lado da piscina, que eu fui estuprada. Não foi o Samurai.” “No momento em que as autoridades e o poder público não tomam o conhecimento de casos de abuso, perpetua-se uma ideia de que isso não ocorre com tanta frequência. E nós sabemos que não é verdade”, afirma a secretária estadual de Políticas para as Mulheres, Ariane Leitão. “As pessoas falam com naturalidade de um estupro porque, na cabeça delas, as mulheres podem sofrer violência, uma vez que nós vivemos em uma sociedade falocêntrica, onde o sexo masculino
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tem a prioridade em detrimento do feminino”. “Eu só falei pros meus pais anos depois porque achei que eles também me culpariam. Achei que eles ficariam putos comigo e que eu não poderia mais sair. Achei um monte de coisas erradas. A coisa mais errada disso tudo foi achar que a culpa tinha sido minha. Que eu não deveria ter bebido. Que eu não deveria ter ficado no meio desses caras. Que eu “ter peitos” e querer ser notada e parecer mais velha era parte do problema.” Assim como foi com Clara, muitas vítimas da violência sexual se questionam quanto ao que motivou o abusador. O conservadorismo ao estilo “Tiranossauro Rex” argumenta que houve estupro porque alguém provocou, instigou, seduziu. Nessas ocasiões, o injustificável ganha força e chega a apresentar tons de viabilidade.
Segundo a secretária Ariane Leitão, “a banalização da violência contra a mulher é fruto de um modelo social, um processo cultural, que autoriza esse tipo de comportamento. Embora a Lei Maria da Penha seja a lei mais conhecida no Brasil, ainda assim continuamos convivendo com um cenário extremamente machista, violento e conservador”. Dados de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, realizada em março deste ano, apontaram que 26% dos brasileiros acreditam que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Antes de sofrer revisão, o percentual divulgado estava fixado erroneamente em 65%. Foram alternadas as proporções, obviamente, por justificativas técnicas plausíveis, mas será que o cenário mudou tanto assim?
A cada 10 brasileiros, entre dois e três tentam justificar a violação da intimidade de uma mulher. Além disso, não foram contabilizados os que omitiram seu verdadeiro posicionamento. Convenhamos, trata-se de uma pesquisa em que 63,8% defendem que “os homens devem ser a cabeça do lar”; 58,5% argumentam que “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”; e 54,9% apoiam a declaração: “tem mulher que é para casar, tem mulher que é para cama”. Em inúmeros casos, o estupro começa através de outras violações, não a sexual. Um desrespeito progressivo que culmina no abuso em questão. A Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres acredita que essa situação precisa ser tratada de uma forma “desmistificada”, quebrando o tabu da sexualidade, como algo saudável a ser discutido,
principalmente, nos espaços de educação. Dos 1.364 estupros notificados em 2013 no Estado gaúcho, 67% englobaram crianças de até 14 anos de idade. “Precisamos romper esse silêncio, levando as meninas a sentirem-se encorajadas a denunciar. Assim, poderemos acabar provocando transformações nas famílias como um todo. O estupro acontece depois que vários abusos aconteceram, inclusive, dentro de suas próprias casas. Os principais agentes da violência contra as mulheres são os parceiros. Contra as garotas padrastos, avôs, pais, primos. Isso piora ainda mais a situação para fazer uma denúncia”, ressalta Ariane. “Eu só soube que a culpa não era minha muitos, muitos anos depois. Depois dos 15, depois dos 20, depois até dos 30.”
Fotos: reprodução Instagram
Outro ponto colocado em questionamento é a garantia de que a denúncia vai realmente dar certo. Por mais que existam iniciativas de incentivo, a secretária relata que o próprio relatório utilizado pela Rede Lilás serve de instrumento para demonstrar que as mulheres violentadas não têm procurado à polícia. “É um tema difícil de ser tratado, ele é invisibilizado, pois as denúncias estão nas unidades de saúde, não na Delegacia da Mulher. Existe uma cultura de não denunciar a violência contra a mulher porque, afinal de contas, ‘pode’!” Superada a barreira da insegurança – pelo menos quanto à denúncia –, a próxima a ser vencida é a da desconfiança. Um estudo científico realizado no Ceará, por volta do ano 2000, deu conta de acompanhar cinco mulheres, entre 22 e 34 anos de idade, que sofreram abuso sexual. Todas elas
registraram uma tentativa da polícia em reconhecer o estuprador, o que deu um pouco de esperança a elas – porque um dos maiores medos das vítimas é o possível reencontro com o criminoso. Apesar dos esforços, apenas um dos casos foi resolvido. “Não vou entrar nos detalhes das sequelas emocionais que esse evento me deixou. Não vou contar de alguns traumas que tenho até hoje por causa de uns caras que muito provavelmente não têm sequer noção do que fizeram. Pode até ser que eles tenham família e filhos hoje, pode ser que lembrem disso como “uma menina bêbada que zoaram numa festa”, coisa de adolescente.” Estudos apontam que mulheres que sofreram violência sexual podem apresentar índices mais elevados de transtornos psicológicos, como ansiedade, depressão, distúrbios e de humor, e transtornos alimentares. Além disso, outros fatores podem ser acrescentados, como maior
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consumo ou abuso de álcool e drogas, problemas de saúde, redução da qualidade de vida e do sentimento de satisfação com a vida, o corpo, a vida sexual e relacionamentos pessoais. Sintomas de hipervigilância podem permanecer por muito tempo. Outro ponto que gera temor entre as vítimas é a impunidade. Festa de recepção da Universidade Federal de Rio Grande. Ano: 2008. Durante o encontro, incentivada por veteranos, uma jovem caloura ingeriu álcool e começou a passar mal, chegando a pedir auxílio a uma colega sua, que deu um pouco de leite condensado, na tentativa de fazê-la sentir-se melhor. No entanto, depois de ingerir o doce, a universitária desmaiou. Quando acordou, estava na Delegacia, acompanhada de colegas e vestindo roupas que não eram suas. Segundo testemunhas, nesse meio tempo ela havia sido acomodada em uma cama de um quarto e ficou sob
observação. Em um determinado momento da festa, notou-se que as persianas do ambiente estavam sendo fechadas. Ao tentarem acessar o local, amigas da jovem foram barradas por um veterano. Outro estava de calças baixas e a vítima, sem as roupas íntimas, desacordada e posicionada à beira da cama com as pernas abertas. A polícia fez todos os exames necessários e foi constatado que o estupro não chegou a acontecer. O jovem que impediu o socorro à estudante foi condenado, em junho deste ano, a três anos e quatro meses de prisão. Já o que estava prestes a realizar o estupro a cinco anos, dois meses e 14 dias. Os dois em regime fechado. “Mas não houve estupro”. Sim, não houve, o que não quer dizer que a tentativa não seja idiota, mesquinha e reprovável. “Então o que há de surpreendente?” No acontecimento, além da tentativa, apenas “Ano:
2008”. Foram seis anos para o caso ser considerado pela Justiça. Apesar do abuso não ter sido registrado, as penas ficaram entre três e cinco anos de reclusão. “E se tivesse acontecido?” Não passariam de 10 anos. Com lesão corporal grave o máximo chegaria a 12 e só com a morte confirmada subiria para 30 anos de prisão. “Os poderes instituídos no nosso país também não veem a mulher como uma prioridade. A impunidade é comum. Nós só vamos conseguir mudar essa condição de falta de interesse do poder público em situações de violência e apoderamento das mulheres quando tivermos mais espaços que as priorizem. Do ponto de vista do Judiciário, mais varas para atender os casos de violência doméstica. Estupro é tortura. Nós também precisamos avançar no Legislativo, encarando o crime como hediondo. A revolução cultural em relação à garantia dos
direitos das mulheres começa pela revolução institucional, dos próprios poderes públicos entenderem seu compromisso social”, finaliza a secretária Ariane Leitão. Para denunciar violência contra a mulher ou até mesmo buscar auxílio e acolhimento, basta ligar para o Disque Denúncia 180, da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Outra opção é o Telefone Lilás 0800-541-0803 (os últimos quatro dígitos fazem referência ao Dia Internacional da Mulher – 08 de Março). No Rio Grande do Sul, no último ano foi registrado um crescimento superior a 300% do número de denúncias feitas pelo 0800. “Contar a minha história depois de tanto tempo é romper com um silêncio que deveria ter sido rompido na época e que não deve persistir.” (@claraaverbuck – no Twitter)
FIDELIDADE EM ALTA analógico x digital
Rafael Lindemann (rklindemann@hotmail.com)
“A música é a nossa mais antiga forma de expressão, mais antiga do que a linguagem ou a arte; começa com a voz e com a nossa necessidade preponderante de nos dar aos outros (...) O homem é uma criatura da terra; e o ar com que enche seus pulmões é portador de sons animais. Os animais fazem ruídos que dizem ‘Estou aqui’, e ‘Eu sou eu’.” Yehudi Menuhin, em A música do homem
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“
É aquela conta que eu faço: arredondando, de 1900 a 1980 tu teve o disco analógico; o CD surgiu em 1980 e em 2000 já veio o DVD pra liquidar com ele; o DVD em 2005, 2010 já entrou em decadência; depois esses pods e players que duraram 2, 3, 4, 5 anos; e agora é o stream, ou seja, ninguém tem mais nada, se perdeu a propriedade material da coisa”. Assim Marcos Abreu, integrante do seletíssimo grupo dos legítimos engenheiros de áudio no Brasil (“tem muito engenheiro, mas é uma meia dúzia que cursou engenharia mesmo.” conta, rindo), sintetiza a história dos invólucros que utilizamos desde que resolvemos encapsular conteúdos musicais. Nas palavras do violonista e maestro Yehudi Menuhin, autor de “A música do homem”, (com tradução de Auriphebo Simões e revisão de Isaac Karabtschevsky no Brasil) “Enquanto a raça humana sobreviver, a música nos será essencial. Necessitamos da música - creio eu – tanto quanto necessitamos um do outro.”. E como acontece com todos nossos instintos, ao longo das gerações, temos criado e desenvolvido maneiras de transformá-los em prazer, e apreciá-los da forma mais aprofundada que conseguirmos. A evolução da civilização sempre foi assim. Buscamos meios para facilitar a conquista de nossos desejos, e os meios acabam influenciando diretamente os resultados alcançados. Existem inúmeros casos análogos ao que vem ocorrendo no universo musical. Capítulos fundamentais na história da arte contam descobertas de novas formas de expressar
emoções e idéias. E profetizou: “Eu quero um fonógrafo em cada casa”. Mas como armazenar todos aqueles os sons que começaram a ser registrados? Na virada do século XIX para o século XX surgiu então o “disco”. Feito em variados materiais e tamanhos, seu funcionamento era completamente mecânico - depois mecânico e elétrico - através do contato físico entre a agulha do aparelho reprodutor e as ranhuras em sua superfície achatada. Inicialmente sua versão mais famosa foi a de goma-laca, medindo 12 polegadas, os famosos 78 rotações, com duração de aproximadamente cinco minutos em cada lado. Em 1948, o conglomerado norte-americano RCA Victor introduziu os discos de Wikipedia/Creative Commons vinil no mercado, nos formatos Long Play ou LP (12 polegadas, 33 1/3 rotações por minuto e cerca de 20 minutos de em cada lado), Extended Play ou EP (10 polegadas, 45 rotações e cerca de oito minutos por lado) e single (7 polegadas, Fonógrafo de Cilindro 33 1/3 ou 45 rotações e aproximadamente quatro minutos por lado). Ao longo do século XX, outras Do início... inovações também tiveram grande Ao declamar a letra da canção interferência na forma como se de ninar Mary had a little lamb produziu e se ouviu conteúdos e verificar o resultado positivo da sonoros, como o desenvolvimento do experiência de gravação de sua voz sistema estereofônico (que definiu as no fonógrafo de cilindro (gravação noções de profundidade e panorama de fácil acesso na internet), Thomas na música), as incríveis possibilidades Edison criava em 1877 muito mais artísticas da gravação por canais e a do que uma máquina de armazenar praticidade das fitas magnéticas. sons, inventava uma nova forma A música mudou, os artistas do ser humano conviver com a mudaram e a indústria mudou. A música, que deixava de se tornar uma música gravada em determinados experiência de troca de sensações períodos do século passado tornou-se instantâneas para se transformar a principal forma de entretenimento também no registro “vivo” de do cidadão comum. O mercado da
pensamentos, devaneios e emoções. Imaginemos rapidamente a revolução que a fotografia causou nos artistas do século XIX e tudo que decorreu dessa invenção. E na maioria desses episódios, também representando uma tradicional característica humana, surgindo uma ferramenta transformadora, surge imediatamente o questionamento se o método anterior não era o mais adequado. Na produção de música não foi diferente. A controvérsia sobre a forma como registramos e ouvimos música no século XXI, e também a música como ofício e seu papel na sociedade, tem gerado muitas controvérsias, divergências de opiniões e alimentando a criação de vários mitos.
música também viveu seu apogeu. Depois surgiu a televisão, que afetou diretamente a audição de música como um todo. Mas em termos de velocidade de transformação, seja quanto a formatos ou à própria forma de se pensar a produção e distribuição de conteúdo musical, nem mesmo os maiores especialistas da área poderiam prever uma mudança de rumos tão abrupta como a que se aproximaria com a chegada do novo milênio.
A ruptura digital O início da grande revolução na forma de se ouvir e compartilhar música que testemunhamos nas últimas duas décadas na realidade surgiu no início da década de 1970. A partir das experiências com as primeiras máquinas de gravação com sistema PCM (PulseCode Modulation), confirmou-se a possibilidade de representação digital de sinais de áudio analógicos através de codificação binária, como vinha acontecendo em diversas áreas do conhecimento em função da ebulição do processo da computação. No ambiente musical, a inovação que se propunha era o armazenamento do conteúdo diretamente nos “discos rígidos” dos gravadores digitais e posteriormente dos computadores, através das interfaces de conversão analógico/ digital, e não mais fisicamente no corpo dos acetatos, discos de vinil ou fitas magnéticas. “O grande chamariz do digital na época do lançamento era a ‘limpeza’. Ele não teria o chiado da fita, seria um método de gravação completamente limpo. E com uma superbanda dinâmica. Lá no início,
com 14 bits, tu tinha 84 decibéis de dinâmica, um vinil muito bom tem 40, 50 dB de dinâmica – a maioria tem 30 – e a fita tem 60 dB de dinâmica antes de entrar no chiado, e esse tinha 84 dB de saída. Tu podia gravar pianíssimos de orquestra e fortíssimos sem compressão nenhuma. Esse foi o grande apelo, a fidelidade.” aponta Marcos Abreu. Logo a indústria fonográfica foi percebendo que com o desenvolvimento em escala geométrica dessa nova tecnologia, o digital tornou-se também uma opção cada vez mais eficaz e barata no percurso entre a mente dos artistas e o consumidor final. O custo de
Para consolidar a tendência digital, no início da década de 80 chegam ao público todas as vantagens práticas dos Compact Discs (desenvolvidos por uma união entre as gigantescas Sony e Philips) e a possibilidade de se ter uma “superior qualidade de áudio” com seus 16 bits e 44,1kHZ de amostragem. As gravadoras divulgavam que seus inovadores produtos não tinham agulha, não arranhavam, além dos irresistíveis benefícios da portabilidade. Nessa época, inúmeras preciosas coleções de LPs foram descartadas por entusiasmados seguidores das novidades do mercado (hoje leiloadas em disputas ferozes entre colecionadores do mundo todo em reais dólares, libras e euros). O que as gravadoras não previram é que os cientistas e as empresas do setor acabariam levando essa tecnologia a um barateamento tal, que, a partir dos anos 90, começaria a extrapolar os limites dos grandes conglomerados. Como se observou em várias áreas, a evolução da informática foi tão rápida que em poucos anos foi aproximandose das possibilidades de iniciativas independentes dos grupos que até então detinham os meios de produção. Inicialmente multiplicaram-se os chamados “estúdios independentes” (em contraste aos estúdios que trabalhavam exclusivamente para as gravadoras). Depois, com as inúmeras ofertas de produtos de informática acessíveis, surgiu a “febre” dos home studios, exclusividade nas décadas anteriores das estrelas da música mundial, apenas idealizados por uma incontável quantidade de artistas ávidos pela possibilidade de também registrar seus trabalhos quando surgisse qualquer inspiração.
“O gravador de CD foi uma das grandes mudanças do negócio. O gravador de CD no computador fez toda a mudança, porque ali todo mundo podia fazer master, podia ler o CD, copiar o CD, e aí liquidou o mercado energia elétrica, transformadores, as valiosas fitas magnéticas que muitas vezes tinham de ser reaproveitadas (apagando registros históricos e memórias inestimáveis de muitos artistas) e os equipamentos de estúdio foram tornando-se impraticáveis diante da oferta dos novos mecanismos. Em comparação com equipamentos analógicos e toda a estrutura ao seu redor (manutenção, reposição de peças, transporte,...), os mais baratos e eficazes apetrechos digitais naturalmente foram tomando conta da produção musical. “Era muito caro. O equipamento de estúdio era caro, as fitas eram caras. O cara ia gravar no estúdio ele às vezes não comprava a fita, ele alugava as fitas. A gravadora bancava tudo isso. O artista ia lá, gravava e cedia os direitos em troca dessa gravação ou de uma grana”, lembra Abreu.
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Crédito: Fabricio Gambogi
Gilberto Ribeiro Jr. no seu estúdio de gravação Mubemol em Porto Alegre Com o surgimento e popularização da internet no início da década de 90 e a criação em 1993 pelo Moving Picture Experts Group (MPEG) - grupo de organizações de pesquisa e padronização de diversos países - do arquivo digital Audio Layer III, ou mp3, nem mesmo a distribuição seria monopolizada pela indústria. Chegamos então ao atual estágio: claro que em graus muito variados, mas hoje em dia qualquer artista com alguma determinação e conhecimento adquirido na internet tem condição de manusear os meios de produção de música, e mais, disponibilizar por conta própria o conteúdo a grandes quantidades de potenciais ouvintes. Se com o barateamento das ferramentas digitais o mercado fonográfico já havia sofrido duras mudanças, com a facilidade de se compartilhar arquivos de tamanho reduzido através da internet o negócio de vender música jamais
seria o mesmo. Abreu, que atuou no mercado fonográfico com clientes como EMI, Warner e Sony Music relembra: “A gravadora também acabou virando vítima nesse negócio. Ela pegava um artista do interior, trazia para a capital, bancava tudo pra ele. Ele ia pro estúdio, gravava, produzia o disco e não tinha despesa nenhuma. Depois a gravadora lançava o disco e ele seguia faturando com shows. Com a história da pirataria, a gravadora deixou de faturar, mas deixou de produzir também, e o artista tem que distribuir ou vender os discos por conta própria. Tem casos aqui (no Rio Grande do Sul), da própria ACIT (gravadora gaúcha), que produzia dois mil, três mil ISRC por ano – cada fonograma tem um ISRC. Hoje os caras colocam, assim, duzentos, trezentos ISRC por ano. Com a pirataria e as vendas de discos caindo, as lojas também pararam de vender discos. Aí nós chegamos na frase do Edson Dutra dos Serranos.
O Edson, que é um visionário e acompanhou tudo isso - está desde 1967 com os Serranos –, diz: ‘Disco só serve pra vender baile.’ Porque ganhar dinheiro mesmo de disco a maioria dos artistas nunca ganhou ”. Mas não foi só sob o ponto de vista mercadológico que a música passou por grande transformação. As novas ferramentas acabaram trazendo mudanças não apenas no formato, mas também em relação à própria maneira dos criadores relacionarem-se com suas obras. Com a democratização dos meios de produção, os artistas podem finalmente concretizar suas ideias musicais sem intermediários, uma imensurável evolução na liberdade de expressão e na comunicação. Por outro lado, o conhecido mito de que, em uma análise geral, a evolução do conteúdo do conjunto das obras que vem sendo produzidas nesse universo não acompanhou a velocidade da evolução das ferramentas é um
fenômeno constantemente observado e comentado em muitas áreas da produção musical. Gilberto Ribeiro Jr., bacharel em Composição na Faculdade de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, proprietário do estúdio de gravação Mubemol em Porto Alegre destaca uma das várias facetas desses novos fenômenos: “Como tu tem as facilidades do digital e os HDs estão cada vez mais baratos, tu pode gravar ‘trezentas’ pistas, qualquer um pode gravar sem precisar tocar tão bem. No analógico, todo o processo é mais orgânico. Antigamente tinha que chegar no estúdio e gravar, no máximo alguma coisinha de edição, então tinha que ensaiar bastante. Hoje se deixa muito espaço para o desenvolvimento do processo dentro do estúdio. Não é todo artista que chega no estúdio pronto para gravar. Agora, a gente cresceu com isso e pra nós é mais difícil. Essa geração que está nascendo agora se tu colocar um disco todo analógico também vai estranhar, não tem a mesma resolução, tem chiado...” E sobre as polêmicas em relação à qualidade do áudio analógico e digital, constata: “Não interessa se foi gravado em analógico ou digital, a performance é que vai fazer toda a diferença no final das contas. A gente está em um momento de transição bem interessante de qualidade sonora. Não dá pra dizer ‘o analógico é melhor que o digital’, ‘o digital é melhor que o analógico’, são dois meios diferentes. Se tu conseguir casar os dois lados, conviver com os dois lados, eu acho que é o mais legal. É o lance do pós-moderno, das coisas conviverem e tu poder aproveitar questões estéticas e vantagens de todos os lados. As pessoas foram se acostumando a uma coisa meio pasteurizada, mas é uma coisa que vai e volta.”
A convergência Apesar da aparente consolidação do monopólio da música digital e virtual no século XXI, para surpresa de alguns - e confirmação de outros - a procura por instrumentos e equipamentos analógicos vem demonstrando constante crescimento no mundo todo, inclusive inflacionando muito esse mercado (para desespero de inúmeros colecionadores e apreciadores de longa data...). “No estúdio, durante dez anos, eu sempre trabalhei no digital. Fui comprando equipamentos analógicos e vendo a diferença que isso faz. Agora que eu estou em processo meio 50/50 o resultado é bem satisfatório. Ter aquela personalidade do analógico que o digital às vezes não tem, a profundidade, o panorama e até as próprias defasagens do som” ressalta Gilberto. A evidência que melhor ilustra esse momento de busca pela sonoridade analógica é o recente fenômeno do chamado “retorno” do maior símbolo de sua era: o disco de vinil. Em meio a discussões sobre qualidade e resolução do áudio, pesquisas de DJs e audiófilos, relançamentos e vontade de inúmeros artistas de lançar seus trabalhos em LP, o fato é que os números desse formato vêm demonstrando grande crescimento nos últimos anos. Segundo dados da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), em 2012 a venda de discos de vinil atingiu seu ápice desde 1997 e segue crescendo, chegando a movimentar mais de duzentos milhões de dólares por ano no mercado formal, considerandose ainda que a maior parte das transações desses discos ocorre com artigos usados e negociados de maneira informal. E esse panorama tem atingido diretamente a realidade brasileira, prova disso foi a reativação
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da Polysom, única fábrica de discos de vinil brasileira, que voltou a atuar desde 2008 a partir de uma grande demanda, principalmente, do mercado internacional. “Em termos técnicos o disco de vinil é válido quando ele é totalmente analógico. É válido quando ele é gravado em analógico, masterizado em analógico, cortado em analógico, sai um vinil analógico. Aí tem a informação completa, tem a resposta em frequências, nunca foi quantizado e amostrado. Porque se tu pega como os caras estão fazendo hoje, grava no Pro Tools, edita todo em digital, passa uma matriz hipercomprimida, cheia de saturações e mete no vinil, não tem como tu ter a característica do vinil. Aí o que que vale? Vale o folclore de estar comprando um vinil.” garante Abreu, que além de atuar diretamente na produção musical, realiza um renomado trabalho de restauração histórica de fitas magnéticas e acetatos 78 rotações da obra de artistas como Carmem Miranda, Orlando Silva, Luis Gonzaga, entre muitos outros. Em meio a essas polêmicas entre analógico e digital e com o fácil acesso a conteúdos sem a necessidade do meio físico diante de todas as facilidades do mundo virtual, outro debate que vem despertando a atenção de profissionais e leigos ligados à música e à cultura de maneira geral é justamente a forma como o público tem se relacionado, ouvido e apreciado música gravada no século XXI. Milhões de arquivos digitais circulam em milhões de computadores e reprodutores portáteis para serem executados poucas vezes, ou até nenhuma. Arquivos com péssima resolução tocados em “caixas de som de computador” com minúsculos alto-falantes de baixa qualidade. Informações equivocadas sobre as
obras e os artistas. Além do inegável fato de que a maior parte da história da música do século XX foi criada para ser reproduzida em formatos analógicos. Muitos são os fatores que vêm provocando a busca do público por um conteúdo mais completo e de melhor qualidade. Os fiéis defensores dos LPs, ao discutirem sua validade no atual contexto, muitas vezes apresentam pontos de vista que não se relacionam simplesmente com a questão da resolução do áudio. No curtametragem “Loucos por Vinil” produzido pela TV Cultura de São Paulo em 2010, o radialista e conhecido colecionador Kid Vinil, destaca que o ato de ouvir música envolve muitos outros aspectos. “Tudo bem, eu uso e abuso da internet, mas eu acho que o formato físico me atrai mais, sabe, eu quero sentir tocar, ver a arte, ter aquele ritual todo de botar o disco na vitrola, ou de tirar o CD da capa, botar no aparelho, ler o encarte, tem todos esses detalhes.” Na realidade desde a década de
90 as próprias gravadoras vinham discutindo se os consumidores queriam ou não o meio físico. Marcos Abreu ressalta que a questão já era controversa desde o início. “Eu participei em 2000 nos EUA de discussões das gravadoras se as pessoas queriam ou não o meio físico. As gravadoras americanas, Sony e outras, queriam largar logo um sistema em stream e a EMI tinha aquela ideia inglesa de que as pessoas querem ter o meio físico, querem ter o disco, querem mostrar para os amigos, eu tenho o tal do disco. Porque se tu tem o Spotify (serviço de disponibilização de música para reprodução na internet) tu tem vinte milhões de músicas, mas nenhuma é tua.” A boa notícia para ambos os lados, digital ou analógico, é que, ao contrário do que se anunciou durante muito tempo, em todas as pesquisas de entidades especializadas como a IFPI e a revista Billboard, os números do mercado de música têm apontado avanço no sentido de as pessoas buscarem uma melhor qualidade
de som, e, consequentemente, mostrarem-se dispostas a pagar pelo trabalho de quem dedica sua vida a esse ofício. Os atuais serviços de streaming e de venda de arquivos digitais de música, por exemplo, cada vez demonstram maior preocupação em oferecer arquivos com a melhor resolução possível, além de apresentar outros benefícios a seus consumidores, como informações sobre as obras e histórico dos artistas, com resposta extremamente positiva dos usuários. E o futuro? “Eu sabia que tu ia me perguntar isso, e eu perguntei pro Andre Midani – um dos maiores nomes da indústria fonográfica do Brasil e do mundo - A resposta dele foi bem clara, com aquele francês enrolado dele: ‘Ninguém sabe’. Ninguém se arrisca.” Marcos Abreu finaliza rindo.
Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças. (Charles Darwin)
Crédito: Bebeto Alves
Engenheiro de áudio Marcos Abreu
o experimental brasileiro na internet Leonardo Baldessarelli (leo.baldessarelli@gmail.com)
A
Associação Brasileira de Produtores de Discos divulga anualmente um relatório demonstrando a situação momentânea do mercado musical no Brasil. O último deles, apresentado no mês de março de 2014, trouxe dados que deixam clara uma mudança perceptível desde o surgimento do MP3. A análise das vendas em 2013 mostrou uma queda de 15,5% na comercialização de CDs, enquanto a compra de músicas em formato digital no país subiu 22,39% em comparação com 2012. O novo cenário já levou à falência algumas gravadoras tradicionais, como a EMI e a Parlophone, e também fez a lendária rede de lojas inglesa HMV pedir concordata no início de 2013. Ao mesmo tempo em que grandes corporações sofrem com a diminuição do seu mercado, é possível ver a realidade atual como mais democrática, permitindo a difusão da música sem a dependência de grandes selos fonográficos. No meio
de tudo isso, já surgiram inúmeras plataformas livres de divulgação independente, como o MySpace, o SoundCloud, o MixCloud e até a rede de vídeos do YouTube, com um bom número de artistas emergindo delas e se estabelecendo no mundo da música. Se as grandes gravadoras e os artistas populares enfrentaram dificuldades para se adaptar à world wide web, é de se imaginar que os mais experimentais e alternativos sofram ainda mais. No entanto, com o passar dos anos e o desenvolvimento de melhores tecnologias de transmissão, a internet transformou-se em um cenário mais interessante para os artistas independentes. A natureza de nicho, da possibilidade da comunicação direta ao seu público na web, e o enfraquecimento da mídia de massa tornaram as novas mídias um cenário quase perfeito para os gêneros mais extremos da música. No meio desse turbilhão, surgiu um dos primeiros
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selos totalmente online do Brasil e do mundo: o Sinewave. Fundado pelos músicos Elson Barbosa e Luiz Freitas em 2008, o selo seguia uma proposta: unir a cena experimental brasileira na internet através de um site. Barbosa e Freitas se conheceram tocando em festivais de pós-rock, gênero de nicho que é um dos grandes focos do Sinewave. Elson era baixista da banda Herod Layne (hoje apenas Herod), e Luiz tocava na Gray Strawberries, mas também possuía outros projetos. Os dois pensavam de forma semelhante quanto ao cenário da música underground no país. Havia um grande número de bandas experimentais, mas era muito difícil chegar nelas. “As bandas de São Paulo, do sudeste, tocavam juntas, se conheciam pessoalmente, mas não tinham um sentimento de união. E as dos outros estados não tinham condições de viajar, e acabávamos as acompanhando só pelo MySpace ou por outras redes”, comenta
Elson, complementando: “Existia claramente uma cena experimental, mas não existia um foco em uma fonte só, que é o que a gente se propôs a fazer desde o começo. Se você procurasse bandas, você chegaria a elas, mas de uma forma desorganizada.” Partindo do ideal de organizar a cena até chegar ao selo, Elson e Luiz passaram por outras ideias, como criar um simples blog, um site para download de MP3, ou até uma comunidade no Orkut, rede social mais popular no Brasil naquela época. Quando os músicos chegaram à ideia de um selo virtual, mal conseguiam conter a excitação, pois a criação era inédita. Segundo Barbosa, eles não conheciam nada parecido com aquilo na internet brasileira, e o termo Netlabel, hoje usado em referência aos selos virtuais, ainda nem era conhecido. Com a estrutura montada em um pequeno site, o Sinewave lançou seus cinco primeiros discos em julho de 2008, e até o final daquele ano já estava com 23 álbuns em seu catálogo. Hoje, são mais de 100 discos, de mais de 50 bandas diferentes. Como um netlabel, o Sinewave não tem estúdio próprio, só um quartel general onde os integrantes do selo se encontram. A proposta não é fazer um serviço clássico de gravadora, dando um contrato e estrutura para os grupos gravarem seus discos, mas reunir bandas do mesmo estilo, que se encaixem no perfil do Sinewave, que tenham qualidade necessária para o lançamento e que, principalmente, queiram ter seu trabalhado lançado sob o nome do selo. A produção musical é totalmente independente, separada do Sinewave, e os
interessados em ter seu trabalho lançado enviam as produções finalizadas. Elson não consegue fazer uma média, mas diz que o número de material enviado por bandas é grande, chegando a cinco discos ou eps por semana, e vem crescendo nos últimos tempos, mas o envio pelas bandas não é a única via de trabalho do Sinewave. Os atuais integrantes do selo, o mesmo Elson Barbosa e Lucas Lippaus, guitarrista da Herod, companheiro de Luiz Freitas na Gray Strawberrues e membro da banda s.o.m.a., estão sempre pesquisando artistas novos dos gêneros relacionados ao selo na internet e
comercial bem maior. É tudo feito na ‘brothagem’.” Um dos maiores orgulhos de Elson Barbosa foi ter feito o Sinewave chegar tão longe quanto está chegando. Um dos grandes ideais do selo é unir os artistas experimentais de norte a sul do país, criando algo como uma grande comunidade musical e centralizando a produção de gêneros como pósrock, ambient, IDM e shoegaze no Brasil. “Os cinco primeiros discos que lançamos, diretamente ligados com o nosso surgimento, foram de são Paulo, mas o sexto disco lançado já foi de uma banda do Rio de Janeiro. O que uniu foram os laços artísticos, e não geográficos”, comenta o idealizador. Só do Rio Grande do Sul, o selo já lançou trabalhos de cinco bandas diferentes, Loomer, Blanched, Farveste, Trilema! e The Tape Disaster. O caso da Loomer é um exemplo emblemático dentro do processo de lançamento de uma banda pelo Sinewave. O grupo foi indicado pelo guitarrista e vocalista Filipe Albuquerque, companheiro de Luiz Freitas em um dos seus projetos, o Duelectrum. Elson e Luiz chamaram a Loomer como banda convidada do segundo Sinewave Festival, em 2009, evento que reúne bandas do selo e artistas experimentais independentes. Não foi difícil perceber a sintonia entre banda e netlabel, o som se encaixava perfeitamente no perfil do Sinewave. Foi o começo da história da Loomer no Sinewave, que lançou o seu segundo ep “Coward Soul” em 2010 e o disco “You Wouldn’t Anyway” em 2013, ambos pelo selo. Em 2012, Elson percebeu o crescimento dos grupos de discussão no Facebook e criou um para o
Se a gente montasse algo assim pensando em ganhar dinheiro, certamente não trabalharíamos com algo como experimentalismo. Trabalharíamos com bandas que têm um apelo comercial bem maior. É tudo feito na ‘brothagem’ também recebem muitas indicações de amigos. Elson conta que, no primeiro dia do selo, enquanto discutia com Luiz Freitas (que saiu do Sinewave porque foi morar na Europa com sua namorada, a sueca Cindie Andersen) sobre a possibilidade de relançarem discos nacionais clássicos de bandas alternativas, tomaram uma decisão: eles nunca ganhariam dinheiro com isso, de nenhuma forma. O dinheiro para manter o site no ar atualmente vem do bolso de Elson e Lucas, justificando isso na sua paixão pela arte. “Nós sempre gostamos de música experimental, música que não tem o apelo comercial. Se a gente montasse algo assim pensando em ganhar dinheiro, certamente não trabalharíamos com algo como experimentalismo. Trabalharíamos com bandas que têm um apelo
Sinewave. O selo já tinha uma página oficial, mas a interação com o público, mesmo nas épocas de lançamento, era pequena. Com o grupo, as coisas mudaram, como destaca Elson Barbosa. “Vimos que as pessoas interagiam muito mais, e em questão de dias acabou virando um ponto de encontro de pessoas que ouvem música barulhenta e discutem lançamentos de discos, shows, artigos, links etc. Mas não só isso, vimos que a marca Sinewave acabou crescendo bastante.” Em junho de 2014, mais de 3 mil pessoas já fazem parte do grupo, e todas elas, mesmo tendo entrado “sem querer” no grupo, devem ter alguma curiosidade sobre o nome, inspirado em uma música do Mogwai.
Afinal, qual é o som do Sinewave? O que define esse perfil experimental? Em 2012, o selo propôs aos membros do grupo no Facebook a eleição dos 100 maiores discos de todos os tempos, e os 10 primeiros do ranking fazem um resumo do que é a sonoridade do netlabel. Os décimo e nono colocados, “Revolver”, do The Beatles”, e “The Queen Is Dead”, do The Smiths, respectivamente, representam o pop e rock inglês e suas revoluções. “Spiderland”, do Slint, e “Daydream Nation”, do Sonic Youth, são os oitavo e sétimo colocados. O primeiro deles é considerado o inventor do pós-rock ao lado de “Laughing Stock”, do Talk Talk, mas a pegada dark e ambient tornou ele o mais influente. Já “Daydream Nation” representa o primeiro ápice do noise rock, reinventando o trabalho de Lou Reed em “Metal Machine Music”. A lista segue com mais dois discos ingleses, o self-titled do The Stone Roses, auge da cena madchester e maior influência do britpop, e “Ok Computer”, do Radiohead, que inovou na sua adaptação de estruturas complexas para a música pop. Em quarto e terceiro, dois discos que dispensam apresentações, tendo influenciado praticamente tudo que é feito na música alternativa de hoje; “The Velvet Underground & Nico”, do The Velvet Underground; e “Unknown Pleasures”, do Joy Division. Por fim, o topo da lista é do inventor, em segundo, e do maior disco, em primeiro, do shoegaze. “Psychocandy”, do The Jesus & Mary Chain criou o estilo como uma variável do dream pop cheia de guitarras, e “Loveless”, do My Bloody Valentine, pegou tudo aquilo e fez melhor, em um dos discos mais lindos já feitos. Crédito: Divulgação
A banda Herod Layne, da esquerda para a direita: Lucas Lippaus, Raphael Castro, Sacha LF e Elson Barbosa
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ALGUMAS HISTÓRIAS
um bate papo com Juarez Fonseca sobre alguns momentos do cenário musical no RS. Hudson Nogueira (nogueira.hudson@gmail.com)
Sextante: Embora pouco conhecido, um personagem marcante da música de Porto Alegre foi o Octávio Dutra. Qual é o papel Juarez Fonseca: Ele era um cara líder de grupo, tocou em vários conjuntos um maestro. Era respeitado no Rio de Janeiro, contemporâneo do Pixinguinha e foi um dos maiores músicos do Brasil! Era um músico muito virtuoso, tocou nos grupos Espia Só, Terror dos Facões. Ele ajudou a fundar o Instituto de Belas Artes no RS. E da pra considerar ele sim um dos primeiros músicos de sucesso aqui no estado, embora antes dele tivesse outro músico que tocava desde a época da Guerra dos Farrapos. Veja, ninguém sabe quem é Octávio Dutra, Alcides Gonçalves, Paulo Coelho, mas as pessoas sabem que é
o Lupicínio, porque ele teve sucessos nacionais gravados por artistas de lá do centro do país. Houve um hiato no tempo de quase quarenta anos, pelo fato de não ter uma gravadora de discos desde que a Electra (pioneira no RS) fechou, o pessoal tinha que ir para o Rio de Janeiro para gravar. Quem não tocava em casa noturna, ia para as emissoras de rádio para apresentar seus trabalhos. E a partir da década de 1970 a volta das gravações fica mais intensa. Muito desse cenário foi influenciado pela Bossa Nova, pelos festivais, a incursão do Rock no país, com os Beatles. Mas nos anos 50 e 60, foram décadas de ouro para os conjuntos melódicos de Porto Alegre, esses conjuntos eram o que chamavam de jazz.
S: E o Radamés Gnattali? JF: O Radamés, só para ter uma ideia, era um cara que foi a maior influência para o Tom Jobim, tá na gênese da bossa nova. Era o cara que fazia uma simbiose entre o erudito e o popular, foi contemporâneo do Villa Lobos, que tocava música mais erudita. Mas o Radamés trafegava nos dois ambientes. Foi um músico fundamental para época de ouro da história do rádio brasileiro, foi um dos três mais importantes
Octávio Dutra
Créditos: Domínio Público
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onge de qualquer pretensão em contar a história da música no Rio Grande do Sul aqui nesse espaço, os parágrafos a seguir são pequenos fragmentos (não lineares) de alguns momentos cruciais do cenário musical aqui do pago. Rupturas, por assim dizer? Talvez. Um rápido bate papo com um dos maiores conhecedores do assunto aqui da aldeia, o jornalista, crítico musical e pesquisador, Juarez Fonseca.
instrumentistas do país, e não só o Tom Jobim, mas um monte de outros músicos foram influenciados pela obra dele. S: Falando em época de ouro do rádio, como os músicos tradicionalistas foram recebidos por parte do público na época? JF: O Gildo de Freitas começou como trovador no rádio, aliás, foi o maior de todos. Já o Teixeirinha foi discípulo dele. Eles tinham um estilo de trova cantada, que eles chamavam de milonga de cantar. O Gildo não conseguiu fazer o sucesso que o Teixeirinha fez. Era um sujeito muito irregular, desregrado, um fora da lei. Ele foi preso várias vezes, vivia se escondendo da polícia. Depois que o Getúlio (Vargas) voltou à presidência da república, a Brigada Militar começou a pegar mais leve com ele, justamente pelo fato de ser getulista. O Teixeirinha não. Era um cara muito esperto, sabia negociar, ele fez filmes, sucesso em todo o Brasil. Mas antes da era de ouro do rádio, tivemos imigrantes alemães e italianos que acrescentaram muito na música local. O xote, por exemplo, é uma coisa daqui, o acordeão veio da Alemanha. Foram os italianos, por exemplo, que inventaram os conjuntos de baile, tocando um pouco meio imigrante meio regional, isso na metade do século XX. Os irmãos Bertuccis, de São Francisco de Paula, foram os precursores do Vanerão, eles que introduziram a bateria nos conjuntos. S: Em relação a cena do rock aqui no estado, teve o surgimento do Garagem Hermética, qual é a importância dele para o cenário musical aqui de Porto Alegre? JF: O fundador do Garagem Hermética, o Léo Felipe, lançou um livro recentemente sobre a história do lugar, então ninguém melhor
que ele para falar sobre isso. Foi o principal templo do underground roqueiro de Porto Alegre. O lugar foi o representante, o resumo da cena do rock independente da cidade, assim como nos anos 80 foi o Porto de Elis, lá em cima na Protásio. S: E o Ocidente? JF: O Ocidente era mais cult, na verdade, continua sendo. Já o Garagem foi underground mesmo, na acepção da palavra. S: A Elis Regina foi muito cobrada aqui no estado quando se mudou para o Rio de Janeiro, alguns dizem que ela não tinha orgulho em representar o RS, procede essa história de detratarem ela aqui na aldeia? JF: Ela foi adolescente para o Rio, se mudou junto com o pai dela. Começou a falar chiado, igual aos cariocas, mas para se enturmar, o que é um processo natural, até porque ela era muito jovem. Três, ou quatro anos depois de ela ter ido para lá, ela se tornou rapidamente uma estrela nacional dos festivais da época, uma estrela de primeira grandeza. Da mesma importância do Chico Buarque, Milton Nascimento, do Gilberto Gil. E mesmo sendo da mesma geração da Gal, Maria Betânia, ela era a principal cantora da época, e é até hoje a maior cantora que o Brasil já teve. E o gaúcho é um bicho esquizofrênico, sabe? Ele não perdoa gaúcho que faz sucesso, sabe? Ele tem ciúme. Então ele tem a tendência de menosprezar o gaúcho que faz sucesso. Então isso ai faz parte de um separatismo atávico que o estado tem, e que o tradicionalismo alimenta – o tradicionalismo para mim é uma praga – uma praga que prejudicou e prejudica o estado, para sair dessa inhaca que ele vive. E os caras que queriam como disse a Elis, que ela fundasse um
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CTG lá no Rio. Não! Ela foi lá para ser artista, para cantar. Mas isso (de ela não gostar do Rio Grande do Sul) não procede. Eu era muito amigo dela, ela adorava o Rio Grande do Sul! S: Esse ranço com a Elis foi pelo fato dela ter saído do estado e não ter ficado aqui como o Teixeirinha, por exemplo? JF: Sim, de fato. Uma vez briguei com o Nico Fagundes (pelo jornal), quando ele disse que ela esnobou o RS. O que é uma grande bobagem. Ela nunca foi homenageada por aqui. Só recentemente de uns cinco anos pra cá não tinha uma homenagem pra ela, uma rua uma praça. Ela sim é uma ruptura quanto a essa babaquice de inveja pelo sucesso que ela atingiu. Conforme salientado antes, não é aqui nessa edição da Sextante que seria contada parte da história da música e seus movimentos culturais aqui no Rio Grande do Sul, e sim, alguns fragmentos marcantes dessa cronologia. Muita coisa poderia ser contada ou relatada, ou ao menos citada. O Festival da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul, surgido em 1971, sequer foi citado. Mas não de propósito. Só sobre esse importante evento levaria no mínimo um dia inteiro de conversa com o Juarez Fonseca, assim como se fossemos falar só do Lupicínio Rodrigues, da Elis Regina (essa renderia dias incontáveis e milhares de páginas), do TNT, Cascavelletes ou dos Replicantes. As formações e rupturas no cenário musical gaúcho, então bem além das linhas escritas por aqui. As rupturas estão em tudo. Nos movimentos culturais em sintonia com o cenário nacional, nos festivais, nas composições, nos acordes, nos arranjos, nas brigas, nas canções e nos artistas.
UMA CARREIRA INTERROMPIDA Jefferson Bredow (jeffersonbredow23@gmail.com)
Rompimento. Interrupção. Quebra. Fratura. A vida de Raul Ellwanger tem incontáveis momentos de ruptura. Como músico e advogado, Raul nunca se acovardou. Durante a ditadura militar, não hesitou em desafiar, provocar e contestar o regime. Por isso, teve sua carreira na música e no direito frustradas, além das seqüelas deixadas em sua família. Hoje, através de sua memória, contribui para que possamos reescrever a história deste período vergonhoso de forma coerente e verdadeira.
“
É tanto detalhe que eu precisaria escrever um livro de memórias”, repete o músico algumas vezes durante a conversa de quase duas horas que tivemos na Palavraria, livraria tradicional localizada no bairro Bom Fim, em Porto Alegre. E deveria mesmo, meu caro Raul, pois estas poucas páginas das quais disponho nesta revista certamente não contarão a sua história com a riqueza de detalhes devida. Mas vamos ao relato que me cabe. Raul Moura Ellwanger é portoalegrense, nascido em novembro de 1947. Com raízes musicais na família, sua mãe tocava acordeon e a avó tocava piano, o jovem Raul tinha a música como algo intrínseco a sua personalidade. “Música para mim era algo tão normal como respirar”, afirma o cantor, que logo teve o talento reconhecido entre os colegas e amigos. Em 1966, o jovem já estudava Direito na Pontíficia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul e iniciou a carreira musical no circuito universitário da capital. Fez seu primeiro show na própria PUC, interpretando canções de Vinícius de Moraes e Dorival Caymmi. Não demorou muito para que Raul Ellwanger começasse a compor e escrever músicas próprias. As ideias da juventude da época, que iam contra a caretice das gerações anteriores, se refletiam naturalmente em suas composições. Em 1968, um pouco antes do Ato Institucional de número 5, Raul foi finalista do Festival da TV Gaúcha com “O Gaúcho”, que fazia uma discreta provocação ao regime ditatorial. “Pros milicos trago o estrago, o inimigo outro balaço” era um dos versos da canção que deixou os militares em alerta. Com a mesma canção, o adolescente provinciano chegou à final do Festival da TV
Excelsior, no Rio de Janeiro, um dos mais respeitados da época e responsável por dar visibilidade a músicos de todo o país. “Tocar para o Maracanãzinho lotado era um sonho sendo realizado”, conta Raul com entusiasmo. Daí em diante começava efetivamente uma carreira profissional do músico Raul Ellwanger, que começou a fazer muitos shows, tanto na capital quanto no interior. “A palavra mostrar música era mágica, a gente se esforçava para trazer sempre coisa nova.” A geração de músicos talentosos que junto com Ellwanger se reunia para mostrar sua música no “Clube de Cultura”, localizado na Rua Ramiro Barcelos nessa época, resultou naquilo que se buscou chamar de Frente Gaúcha de Música Popular Brasileira. Entre alguns músicos envolvidos estavam Paulinho do Pinho, Homerinho Lopes, Lais
Aquino e Wanderley Falkenberg. A principal proposta do novo movimento era criar uma estética e uma linguagem musical própria do Rio Grande do Sul que não fosse a mesma de Lupicínio Rodrigues e Túlio Piva, ícones daquela geração, e diferente também da música tradicionalista. “A gente respeitava o Teixeirinha, mas a gente não queria ser como ele”, afirma. No entanto, buscava-se incorporar elementos da cultura do estado e da capital gaúcha na música, aliado também a bossa nova. O disco “Água de meninos”, de Gilberto Gil, junto com o movimento tropicalista serviram de grande influência para os compositores da Frente Gaúcha. “Há toda uma literatura musical desse momento, 99% que não foi gravada, que fala do Menino Deus, da Praça XV, do Grenal, da Praia de Belas”. Em manifesto escrito por Raul Ellwanger e publicado na Folha da Tarde de 27 de abril de 1968, era apresentada a Frente Gaúcha da MPB: “[...] universitários, profissionais da música, profissionais liberais, trabalhadores e poetas se unem para em definitivo lançar as bases de um novo centro da música brasileira, em condições de equiparação com os demais polos musicais do país”. A Frente Gaúcha era uma grande proposta de rompimento com a música que era tradicionalmente feita no estado, e com a geração de músicos talentosos que estavam surgindo por aqui era de se esperar um grande futuro para a música gaúcha. Mas aí veio o AI-5, que cortou pela raiz aquele movimento inovador e amordaçou toda uma geração. Paralelo à carreira musical, na metade de 1968, então no terceiro ano do curso de Direito da PUC,
Raul Ellwanger começou a trabalhar no escritório de advocacia do Dr. Afrânio Araújo, pai de Carlos Araújo. O escritório era fortemente engajado na defesa de causas trabalhistas, e em 1969, após fazer o exame de estagiário da OAB, Raul pode passar a fazer audiências trabalhistas. Todo final de tarde, Raul visitava fábricas em Porto Alegre e se reunia com as lideranças da época. Com os sindicatos em situação de fragilidade, formavam-se pequenos grupos dentro das indústrias e começava assim a se articular uma frente organizada contra o regime militar. De um grupo de
“O que eu senti naquela época é indescritível”, desabafa Raul. Ainda em 1969, Raul Ellwanger tinha alcançado um feito extraordinário para um jovem compositor: havia se classificado para as finais do Festival da TV Record com a música “Ontem, hoje, sempre”. Com uma canção tropicalista que representava os ideais da novíssima Frente Gaúcha de MPB, Raul chegou ao patamar dos seus ídolos. Por ali haviam passado nos anos anteriores ninguém menos que artistas do porte de Elis Regina, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, entre outros. Era a grande chance do garoto porto-alegrense alcançar audiências maiores. Mas a partitura e a gravação da composição jamais chegaram ao postal da TV Record. Muito menos o compositor pode apresentá-la em rede nacional. “A essa altura a música não importava mais”, conta desiludido. A maior preocupação de Raul naquele momento era a luta pela sobrevivência. Em 1970, passou alguns meses em São Paulo e o cerco começou a se fechar. Ante os telões colocados nas praças da capital paulista, a Copa do Mundo não pode assistir. “Não podia fixar os olhos no telão, olhava para todos os lados com medo”. Com nome falso, sem ter o que comer e onde morar, o compositor não aguentou. O Chile foi o destino. Nas terras de Salvador Allende, Raul conheceu pela primeira vez um país democrático que gozava de plena liberdade política. Não havia mais perseguição, militares o caçando, ameaças, tortura psicológica, nem nada. Apesar da saudade, o músico aos poucos foi se adaptando ao novo país. Estudava Sociologia na Universidad
Quando tu está no exílio, tu tem que procurar viver, te adaptar. Não pode ficar só pensando na tua terra ou tu vai adoecer mentalmente militantes do escritório dos Araújo, aliado a sindicalistas, formou-se a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, organização clandestina que propunha um forte combate ao governo ditatorial. Raul chegou a integrar a direção regional da VAR Palmares. Com o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick no Rio de Janeiro, em 1969, membros de organizações de esquerda e pessoas ligadas a elas passaram a sofrer violenta repressão dos militares. Raul era um deles e em meados de 69 já vivia na clandestinidade em seu próprio país. Militares rondavam a casa dos seus pais e faziam visitas recorrentes. A tortura psicológica a qual passaram os familiares do compositor é uma das maiores marcas deixadas pelo período. Certa feita, os pais do músico não estavam em casa e quem foi obrigado a receber os truculentos militares foi seu irmão mais novo.
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de Concepción, jogava futebol na mesma universidade, reencontrou sua namorada com quem posteriormente viria a se casar. Levava uma vida tranquila depois de dois anos fugindo amedrontado. Até que veio o golpe de estado que colocaria tudo por água abaixo e traria Raul novamente para a clandestinidade. Para o Brasil não podia voltar. O compositor havia sido condenado pela Lei de Segurança Nacional por participar de organização proibida. “Artigo que enquadrava até o cachorro do condenado. Uma grande palhaçada”, conta indignado Raul. Apesar de ter enfrentado a má vontade e as negativas das embaixadas brasileiras, o músico
conseguiu se exilar na Argentina como turista. No país vizinho, entrou no Conservatório Musical de Buenos Aires, ensinava bossa nova e chegou a jogar em um time da quinta divisão do futebol argentino. “Quando tu está no exílio, tu tem que procurar viver, te adaptar. Não pode ficar só pensando na tua terra ou tu vai adoecer mentalmente”. Mas o efeito dominó das ditaduras latino-americanas chegou também à Argentina e agora não havia mais opção, teria de voltar a sua terra natal. Com a prescrição da pena no Brasil através de lutas judiciais, Raul voltou do país vizinho com o seu primeiro disco composto na bagagem. “Teimoso e vivo”, lançado
em 1979, foi fruto de seu período na Argentina, grande responsável pela evolução de Raul como músico e compositor. Na política brasileira, nada havia evoluído. O músico continuou sofrendo represálias do regime que naquela época já se encaminhava para o fim. Raul foi ameaçado, perseguido, caluniado, sabotado, condenado, espionado. Sua família foi vítima de tortura psicológica. Seus amigos, tortura física. Hoje, através de sua memória, mantém viva nossa indignação e revalida nossa luta diária pela liberdade e igualdade irrestrita para todos.
Eu só peço a deus, que a injustiça não me seja indiferente Pois não posso dar a outra face, se já fui machucado brutalmente Solo le pido a Dios, de Léon Gieco, adaptada por Raul Ellwanger Crédito: Divulgação
ENTREVISTA
HELENA IGNEZ Luciano Viegas (luciano.viegas.s@gmail.com)
H
elena Ignez começou no cinema em 1959 com o curta-metragem Pátio, primeiro filme também de Glauber Rocha, com quem foi casada. Seis anos mais tarde desponta com uma atuação irretocável em O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade. Isto não é nada, sua obra toma outro rumo a partir do encontro com Rogério Sganzerla, com quem dividiu um projeto artístico e trinta e cinco anos de vida. Uma vez lá em Cuba, dançando uma rumba, disseram que ela era escandalosa. Estar diante da maior atriz do cinema do brasileiro é uma experiência inefável. Sua melhor apresentação são os seus filmes, que implodem tudo o que veio antes. Destes, Porto Alegre teve a oportunidade de assistir, em maio, a cópia restaurada de Copacabana Mon Amour, em que Helena encarna Sônia Silk, a fera oxigenada. Quarenta e quatro anos depois o filme se reafirma enquanto profecia.
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Sextamte: Você esteve em Porto Alegre apresentando um longametragem em 2011 e agora está trabalhando em um novo projeto, o Ralé. Do que se trata? Helena Ignez: O Luz Nas Trevas passou aqui no Cinema Esquema Novo, ganhou melhor direção. Depois do Luz eu fiz mais dois filmes, o Feio Eu, um longametragem que se passa no Rio de Janeiro, Paris e em Kerala, na Índia, e o Poder dos Afetos, com Ney Matogrosso, Simone Spoladores Djin Sganzerla e Dan Nakagawa, que é um média-metragem de onde foi extraído o roteiro do longa, Ralé, meu projeto atual. Devo estar começando a filmar no segundo semestre. S: Pelo que eu li o filme tem uma abordagem a partir do xamanismo? HI: É um filme sobre brasilidade. Sobre esse prometido ex-éden tropical e algumas reminiscências desse estado que é abordada através do xamanismo, uma das abordagens do filme. Culto a ervas medicinais, de aprimoramento da personalidade, de descoberta de novas possibilidades do sentir, então esse aspecto está de fato bem forte no Ralé e também no Poder dos Afetos. No Ralé fica mais claro, pois o filme parte daí. É como se fosse um grande caldo, onde vão ser colocados todos esses ingredientes pra fazer uma sopa mágica, vamos dizer, que seria o filme. É um filme político, como todos os meus filmes, já que antes de tudo sou discípula de Rogéria Sganzerla. Esse lado forte, psicodélico, que ele coloca nos filmes, essa metafísica, além do materialismo histórico, além da política, que se encontra em todos os filmes, também acaba aparecendo nos meus.
S: Esse trecho que você filmou na Índia do Feio Eu, que ainda não vimos por aqui, também segue nesse sentido de exploração das experiências místicas ou religiosas? HI: O Feio Eu, originalmente, partiu de um workshop para atores chamado Personagens em busca de um filme, eu também estou dentro como atriz. Basicamente eu sou atriz, é daí que parte meu impulso pra arte. Acho a mesma coisa dirigir e ser ator, têm importância iguais. O meu personagem eu levei até Kerala, onde tive a exibição de seis filmes meus, alguns enquanto atriz e outros como diretora. Aproveitei essa ocasião que passei lá, doze dias, e filmei com uma produção organizada anteriormente. O meu assistente, Eduardo Raccah, morava em Berlim e fez esses contatos, então quando eu cheguei em Kerala, eu já tinha uma equipe que ia filmar o Feio Eu e ao mesmo tempo documentar essa homenagem que eu recebi. O filme segue através da personagem, chamada Jarda, ela tem um cocar (está agora no meu facebook, porque é ela quem responde por mim), mas não, não tem uma conotação religiosa. Política sim, inclusive porque Kerala é um estado comunista, um estado que não tem analfabetos, ao mesmo tempo tem um dos melhores IDHs do mundo, isto numa India que ainda se desenvolve e tem bolsões de pobreza tão grandes. S: Você disse que não vê distinção entre a atuação e direção. O que mudou de fato para você nessa transição de funções, a partir do Luz nas trevas? HI: Eu vejo o filme muito do ponto de vista do personagem, isto também quando eu escrevo roteiros. O Yin e o Yang, o dentro e fora. Como atriz também tenho esse
mesmo método, não só de ver o meu personagem, mas também o que ele significa de um ponto de vista geral. A essência é muito próxima, para mim, entre atuar e dirigir. S: Trazendo para a ocasião, que é a apresentação do Copacabana Mon Amour em cópia restaurada. O Brasil não é um país que tem uma cultura de preservação dos seus filmes. A tendência é que continuemos dependendo dessas restaurações pontuais, isoladas? HI: Acho que sim, não sou nem um pouco otimista, ainda mais agora com a quebra da Cinemateca Brasileira. Cada vez mais diminui a verba pra cultura, pra cinema e teatro. Esta foi uma restauração da Petrobrás, há dois anos, e desde então não tem o edital de restauração. Desejamos e nos empenharemos totalmente para restaurar também Sem Essa Aranha, que é uma preciosidade em diversas sentidos, inclusive como musica também, com a presença de Luiz Gonzaga e Moreira da Silva. O Copacabana com trilha de Gilberto Gil, quer dizer, esses filmes têm que ser restaurados, mas não vejo esperanç. S: E o filme se insere dentro da Belair, provavelmente a fase mais intensa e criativa entre você, Sganzerla e Bressane. Foi uma das fases intensas, né. Intensidade existiu todo o tempo, todos os filmes foram feitos com a mesma paixão. Mas, sem dúvida, foram seis filmes em cinco meses na Belair, uma coisa inédita. S: Lembro da cena de Copacabana Mon Amour em que o Guará (ator e assistente de direção na Belair) se aproxima de turistas americanos e pede “Money, please”. Essa cena vai se repetir
agora com o Brasil sede de eventos internacionais? HI: Impressionante isso, né? O Rogério dizia “não me interessa o cinema, mas a profecia”. E os filmes são totalmente proféticos, totalmente hoje em dia, modernos, é impressionante. S: A P.F Gastal exibe nessa mesma semana o Educação Sentimental, de Julio Bressane. O que você pensa sobre essa produção mais recente dele? HI: Eu adoro o filme. Já não acompanho tão assim de perto, mas vi os dois últimos filmes do Júlio e gosto muito. Ele é um grande pensador de cinema, um grande artista.
S: Em março desse ano o cinema brasileiro perdeu o Elyseu Visconti, com quem você fez Os Monstros de Babaloo. Vocês tinham alguma proximidade ultimamente? HI: Perda lastimável. Tínhamos sim, acompanhei a mostra que foi feita em homenagem a ele em Minas Gerais, com palestras, com A Miss e o Dinossauro, filme meu em que ele aparece. Uma pessoa muito querida, muito próxima, um artista de uma grande sensibilidade, cenógrafo, diretor de arte fantástico, curtas-metragens extraordinários. Elyseu é um artista raro. S: Mais uma aproximação com o que a sala vai exibir essa semana:
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Uma Mulher Sob Influência do John Cassavetes. Outro cineasta que tem uma musa inspiradora percorrendo toda sua obra... HI: Costumavam falar isso pra gente. Houve inclusive citações bem explícitas dela (Gena Rowlands) e minhas com relação a isso, como também houve com Anna Karina e Godard, chegamos a fazer uma reportagem juntas, quando Anna Karina veio ao Brasil. Cassavetes é um diretor extraordinário, de quem o Rogério gostava muito. Na verdade ele veio um pouco antes. De fora tem a ver mesmo, é um casal que faz cinema, ele dirige, ela é atriz, é um cinema de ruptura também, estão ali os dois sem medo de errar, ousando.
fui em busca de desafios ainda orangotangos o monstro o rio nao e para amadores acho que nao tive a coragem de ser o advogado que queria historias curtas para domesticar as paixoes a timidez gagueira elrodris gostar de arte era uma coisa meio estranha habitante rreal Paulo maina Donato tenho que mudar minha dinamica poesia senhor escuridao escritor tem que escrever eu tocava o terror a timidez do monstro ithaca road mesmo sem dinheiro comprei um esqueite foi uma questao de buscar o desconforto marrom e amarelo eu nao sei se sou branco ou pardo sinceramente bicho o ano em que vivi so de literatura todos somos meio selvagens
Renato Parada
a a m s a e e r o a a m r o o o s
Luis Felipe Abreu (luisf_abreu@hotmail.com)
Estacionada ao lado do Instituto Goethe, uma van recebe a trupe de organizadores da 7ª Festa Literária de Porto. Logo em seguida quem sobe ao veículo é Paulo Scott, um dos participantes da palestra daquela noite, uma edição especial dos Encontros Poético promovidos pelo Itaú Cultural. O escritor se acomoda no banco, apertando como pode sua corpulenta figura. “Tava falando com minha mulher no celular agora”, comenta, fazendo referência à atriz Morgana Kretzmann. “Ela tava acompanhando a transmissão da mesa pelo Youtube e veio reclamar que eu tô muito sério”. Todos os presentes concordam, brincam que, sim, Scott não é mais o de antes. “Tá ficando velho, cara”, um deles brinca. Scott ri junto. Depois cala.
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orta para 2001. Aos 35 anos, um engravatado Paulo Henrique Rocha Scott é professor de direito tributário e direito financeiro na PUC-RS, sócio do conceituado escritório de advocacia Volkweiss, Scott & Campos e autor do livro Direito constitucional econômico. “No início, eu tinha essa visão meio romântica do Direito, fazia aquilo por achar que seria possível ajudar as pessoas, ser útil, mudar o mundo”, confessa Scott, que chegou a ser presidente do Diretório Central de Estudantes da PUC em meados dos anos 1980. “Só que chegou o momento, isso no final de 2007, em que advogar não fazia mais sentido para mim. Talvez eu não tenha tido nem a coragem nem o talento pra ser o advogado revolucionário que eu idealizei ser. Aí achei mais importante, para mim e para os outros, ir no caminho dessa coisa incontornável que é escrever”, lembra. Entre a rotina de processos e despachos, naquele ano lança a coletânea de poesia Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar os sofrimentos dos monstros. Temendo a possível repercussão dos versos esquisitos em sua respeitabilidade jurídica, assinou o volume sob a alcunha de Elrodris. Se o volume passou por debaixo dos radares literários, o mesmo não pode ser dito de seu sucessor, Ainda orangotangos, lançado em 2003. Na época Scott já havia consolidado sua figura de agitador cultural, aglutinando ao redor de si e de suas iniciativas de encontros, projetos e festivais toda a efervescente cena cultural daquela Porto Alegre de princípios do século XXI. “Gostava de tocar o terror”, lembra, com o bordão que costuma usar para lembrar de suas noites selvagens. Editado pelo selo independente Livros do Mal, Orangotangos foi bem recebido por público e crítica,
chamando atenção por sua prosa de sintaxe curiosa e por seu retrato cru da violência e marginalidade urbana. “O título já revela um pouco isso, da tentativa de mostrar que todos somos meio selvagens, meio macacos ainda”, explica o escritor. A coletânea de contos chegou a ser finalista do Prêmio Açorianos daquele ano, e seria levada ao cinema por Gustavo Spolidoro em 2007. Ainda um tanto inseguro de ter abandonado a carreira prévia para se jogar na literatura, Scott tomou o sucesso do
livro como uma dica de que seguia no caminho certo. “Sempre acho que se o Orangotangos não tivesse a repercussão que teve eu teria voltado para o Direito. Ia ficar escrevendo para mim mesmo, como sempre fiz”, reflete. Não voltou. Em 2005 lançaria seu primeiro romance, a trama noir Volatéis, pela editora Objetiva. A mesma casa o contratou para lançar um volume de poesias, e em 2006 Scott lançou A timidez do monstro, trabalho que considera até hoje o mais sem concessões de sua carreira. “Tem coisas que testei ali de uma maneira que não fiz mais depois, em qualquer outro livro. Acho que é o meu trabalho limite, em que mais
me permiti, mas testei formas de expressão”, chegou a comentar. No mesmo ano, finalizou outro livro poético, Senhor escuridão, lançado pela Bertrand Brasil, espécie de ponto de virada na sua bibliografia, sendo o momento em que a temática racial começa a sair dos subtextos para se tornar a principal temática. De todos os epítetos possíveis e já utilizados por si (e são vários, tendo em vista o caráter performático de sua figura), Elrodris é aquele pelo qual Scott nutre mais afeição. Foi o pseudônimo utilizado para lançar seu primeiro livro, é seu username no twitter e uma referência constante em suas histórias. Apesar da grafia curiosa, a alcunha não carrega nada de obscuro: “É o nome do meu pai”, revela Scott. “É uma contração para Elói Rodrigues Scott”. O Scott patriarca, um delegado aposentado, é uma força sobre o trabalho do filho, influenciando seu trabalho de diversas maneiras. Outra figura essencial na escrita scottiana é o monstro. O ser presente no título de três de suas obras: além de Histórias… e A timidez… há O monstro e o minotauro, livro artesanal que combina poemas do escritor com desenhos do cartunista Laerte, produzido pelo coletivo cartonero Dulcinéia Catadora para a FestiPoa de 2011. Além de símbolo e síntese para a dicção dissonante de seus livros, o monstro funciona como uma representação de si. Perguntado se é o monstro, Scott responde: “Eu cresci no Partenon, né”, se referindo ao bairro de classe média baixa na Zona Leste de Porto Alegre, localidade com a qual nutre uma relação agridoce. “Crescer em um bairro mais afastado e mais pobre e ter um interesse por arte te torna uma pessoa estranha. Foi ali pelos 12 anos que percebi essa sensação de esquisitice, que notei o quão
deslocado soava dizer aos outros que ia ao teatro”, lembra. “Imagina, um guri chegar em casa com um livro do Sartre em um bairro onde todo mundo trabalha duro e não tem esse tempo para viajar na maionese, gostar de arte”, reforça o autor. E ainda tinha a gagueira. O problema de fala era tão severo que afetava a comunicação com a própria família. “O negócio era tão grave que ali pelos 11 anos minha mãe disse ‘Desse jeito não dá mais’ e me encaminhou pra uma fonoaudiologia e uma psicóloga”, explica, frisando que, embora controlada, a desordem de fluência não foi totalmente superada: “Ainda hoje se eu me exalto muito, me emociono, começo a gaguejar”. Além das consequências mais imediatas - certo isolamento social na infância -, a tartamudez foi decisiva na escolha pelo ofício da escrita: “Preciso articular muito bem cada frase antes de falar, para evitar os deslizes. É parecido com escrever, esse trabalho de escolher as frases com cuidado”. Ao pensar o trabalho de Scott é impossível não realizar - ainda que inutilmente, ainda que apenas a título de curiosidade - cruzamentos entre a vida e a obra. Um dos romances que tem engatilhado (afirma ter mais de vinte deles planejados) se vale desta relação: “Meu próximo livro seria, a princípio, sobre o meu pai, mas pensando e rascunhando acabei mudando o foco para a relação minha com o meu irmão”, conta, adiantando que o título Marrom e amarelo é uma referência ao irmão, mulato escuro, e a si, mulato claro, “meio pardo, branco sujo”. Dois dias depois, tuítaria a seguinte mensagem: “aproveitando a passagem pela cidade de porto alegre para começar
a escrever oficialmente o romance ‘marrom e amarelo’”. A relação com a cidade também é central à poética scottiana - não por acaso seu êxodo da Porto Alegre coincide com o maior giro de sua carreira. Em 2008 Scott fechou as malas e rumou para o Rio de Janeiro. “Eu fui em busca de desafios”, explica Scott diante do bar em que os organizadores da FestiPoa comemoram o sucesso do dia. O escritor encolhe os ombros, mãos no bolso, balançando seu corpo de 1,82
como um indicador de caminho possíveis, se não necessários, à prosa brasileira contemporânea. Giovanna Dealtry teceu loas no caderno Prosa & Verso, do Globo, afirmando a força da narrativa e sua capacidade de representação de um período da história brasileira. Em dezembro de 2012, recebeu da Biblioteca Nacional o prêmio Machado de Assis, de melhor romance. Surfando na crista da onda - ou fazendo um flip de 360º, para ficar em seu léxico de ex-skatista -, consolidou o Scott maduro.
Ao pensar o trabalho de Scott é impossível não realizar - ainda que inutilmente, ainda que apenas a título de curiosidade - cruzamentos entre a vida e a obra. m. “Foi uma questão de procurar o desconforto”, elabora, oferecendo uma chave precisa para pensar sua carreira. “O Tom Jobim dizia que o Rio não é para amador. E não é mesmo. É complicado, tem que saber lidar. E ainda tem o fato de que meus grandes amigos não estavam estão no Rio. Não conhecia tanta gente lá, como conhecia em São Paulo, por exemplo, esse é outro desafio”, reflete. O primeiro trabalho concluído nesse exílio carioca foi Habitante irreal, romance lançado em 2011 pela Alfaguara e um divisor de águas e interesses em sua bibliografia. Se Senhor Escuridão era a fumaça, Habitante é o fogo: além de arriscar um painel geracional de quem viveu a desilusão com a esquerda nacional, o livro aborda o apartheid indígena e a miséria dele decorrente, flertando tanto com artifícios pós-modernos quanto com a tradição romanesca nacional. Escrito ao longo de oito anos, o romance serviu de catapulta. À época do lançamento, o crítico Sérgio Rodrigues apontou o livro
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Aos 48 anos, Scott sustenta uma figura bastante diversa daquela apresentada no começo de sua carreira. Os cabelos agrisalhados nas têmporas e barba densa, também dona de seus fios brancos, não parecem pertencer ao jovem de cabeça raspada, óculos de armação extravagante e olhar irônico presente em fotos antigas do autor. Em A timidez do monstro, abaixo de uma foto lo-fi de Scott, a tradicional biografia do escritor que adorna a orelha do livro é atravessada por uma frase incomum para esses textos tão pasteurizados: “Durante dois anos, ao cursar o mestrado, Paulo Scott não escreveu sequer uma linha poética e adoeceu”. O conjunto serve para definir com precisão a figura apresentada pelo escritor na primeira metade da sua carreira, uma mescla de excentricidade e lirismo. Já a postura austera do retrato presente em Habitante irreal é um signo de outra ordem, do Scott em preto-ebranco, experiente. Não só o aspecto físico se alterou ao longo de seus 13 anos de carreira: sua própria trajetória é repleta de fraturas. Ao travar diálogos autobiográficos, é frequente
que cite sua aversão a zonas de conforto. Sempre que se sente estabelecido, busca novos modos de se pôr em desalento. Lançado com um livro de contos, nunca mais voltou à narrativa curta. Ao publicar dois livros de poesia por grandes editores, ganhando certa repercussão com um gênero tradicionalmente marginalizado pelo mercado nacional, partiu de vez para a prosa. Ao se consagrar com um romance extenso, permeado de vozes e pretensões, lança uma novela curta, singela: Ithaca Road, uma história de amor publicada pela Companhia das Letras em 2013. Ao tornar-se figura incontornável em Porto Alegre (é difícil citar o nome de Scott diante de alguma figura da cena cultural local e não ouvir um causo), mandou-se para outra cidade, uma que teria de desbravar do zero, sem ajuda de amigos. Notório por sua capacidade de agitar círculos literários, criou iniciativas como o show Póquet: ruído e literatura - Escritores que tocam, Músicos que escrevem, o projeto de arte visual Na TáBUa e a “revista ao vivo” De modo geral. Há cerca de dois anos não produz mais nada. Apesar disso, a fama o persegue. Quando a conversa da FestiPoa foi aberta a perguntas do público, a primeira pessoa a se levantar foi Cristiane Cubas, organizadora da mostraprojeto-coletivo Cabaré do Verbo.
“Não tenho bem uma pergunta”, avisa. “É mais uma provocação: porra, Paulo Scott, por que tu não organiza mais nada?” Ela lembra de Scott como um dos primeiros incentivadores do Cabaré e uma pessoa que, a sua maneira, mudou a cara da cultura na cidade. Scott pede desculpa, meio de brincadeira, meio sério, e explica: “Eu acabei cansando, entrando em outras atividades. Organizar um evento é uma parada muito desgastante e que acaba te impedindo de produzir. E escritor tem que escrever, mais que qualquer outra coisa.” Scott escreve: costuma se jogar de cabeça em seus projetos, levando cerca de três anos para completar um livro. “Eu sou escritor em tempo integral”, comentou em entrevista ao programa Metrópolis, da TV Cultura, em 2011. “Ao contrário de outros colegas que traduzem, fazem textos para imprensa, para editoras, eu tenho tentando me manter só com meus livros”, explica. Essa experiência de ter a ficção como renda exclusiva durou três anos e rendeu material para O ano em que vivi só de literatura, seu próximo romance, a ser lançado ainda este ano pela editora Foz. “É uma sátira sobre o comportamento de certos autores e de mim mesmo, e do cenário literário como um todo”, adianta Scott, revelando sua relação nunca tranquila com o meio. Crítico, agitado ainda
que um tanto cabisbaixo, articula sua próxima ruptura. Encolhendo-se sob o vento frio que sopra pelo Bom Fim, ainda mais gelado para quem acostumou a pele ao tropicalismo carioca, Scott diz que não aguenta mais. “Tô ficando cansado, sabe?”, diz em um de seus característicos rompantes de franqueza. “Sinceramente, bicho…”, repete enquanto vai desabafando suas dúvidas com frases em fadeout, a voz morrendo em meio às afirmações. “Tenho que mudar meu modo, minha dinâmica… ter menos ansiedade… porque a verdade é que não tenho mais condições de viver como eu vivo… só da ficção que eu escrevo e das palestras que dou... tive meu momento, um tempo em que o sonho funcionou, foi bacana, mas é hora de articular um plano B”, murmura enquanto vagueia o olhar, como se perdesse de vista a outra ponta do diálogo, engolido pela bruma de suas dúvidas. “Esse plano seria algo fora da literatura?”, pergunta o interlocutor, na tentativa de não se ver desvanecido. “É, talvez sim, talvez fora”, responde o escritor. “Voltar a dar aula, talvez. Mas não sei. Sinceramente não sei, bicho”, completa, antes de se dirigir para dentro do bar, para acompanhar os amigos. Ainda que melancólico, segue para tocar o terror Scott, poeta do desconforto.
Paulo poderia ter se habilitado a votar, como estão fazendo aquelas pessoas, contudo os prazos passaram, ele deixou passar. Não consegue se envolver, isso não é novidade, e não consegue ir embora da frente do consulado… Paulo fica até o horário da votação encerrar (braços cruzados, inadvertido, penitente), fica até as pessoas dispersarem, fica até ficarem alguns poucos, dialogando entre si como se o que dizem pudesse mesmo influenciar o que acontecerá daqui pra diante. trecho de Habitante irreal
S O R V LA A I L E R P EI D A L
T
arde de uma quarta-feira de outono. A chuva dava poucas tréguas em um dia úmido e cinzento – perfeito para estar em casa, debaixo das cobertas, comendo e jogando conversa fora. Apesar disso, Mauro sabe que tem que trabalhar. Em um lugar singelo da Rua da Ladeira (atual R. General Câmara), no Centro Histórico de Porto Alegre, está abrigado o tesouro de toda uma vida. Ou, pelo menos, grande parte dele. Para ser mais preciso, quarenta mil. Sim. Quarenta mil livros que guardam grande parte de uma história de rupturas. Ao chegarmos ao seu local de trabalho, Mauro está no balcão. Conversava com um cliente, seu amigo muito provavelmente. Nos identificamos e Mauro prontamente interrompe o trabalho para nos atender. Explicamos que não temos pressa – que momento raro! – e que não queremos atrapalhar suas funções, mas ele não hesita.
Gabriele Müller (gabriellefm@live.com) Lucas Ebbesen (ebbesen_lucas@hotmail.com)
Com um andar meio sossegado, meio truncado, Mauro sai de trás de uma bancada e nos acompanha até os fundos do seu ambiente de trabalho. O caminho até lá exige muita concentração aos amantes de livros. Os movimentos do pescoço permitem com que se perca o destino seguindo com o olhar as várias prateleiras que se estendem até o teto. Literatura estrangeira, comunicação, idiomas, ciências sociais,... Enquanto nos acomodamos, Mauro nos desacomoda: “Vida de livraria é rotina”, afirma com veemência. Intrigados, perguntamos o porquê de tamanho regramento. Mauro, então, responde que chega todos os dias por volta das 10h30min e sai no finalzinho da tarde. Todos os dias. Para não ter tédio, ele conversa com as pessoas e folheia os livros, tudo com muita curiosidade, conhecendo a superfície de quase tudo. “O livreiro é um diletante. Eu não vou ler o A Sangue Frio porque vem jornalista. Eu vou ler o A Sangue Frio porque é do caralho”, enfatiza.
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Acompanhado de uma cuia na mão e uma pequena térmica debaixo do braço, Mauro demonstra em palavras a simplicidade com que leva a vida. Entre pequenos goles e grandes falas, revela que sempre lidou com livros. No início do curso de Administração, ao final dos anos 1980, participava de movimentos estudantis, militava na universidade e vendia livros em banquinhas na Usina do Gasômetro quando ainda era membro do Partido dos Trabalhadores (PT). Até que em 1991, sua vida oficial com o livro começa. Mauro é convidado pelo escritor e livreiro Arnaldo Campos para trabalhar na Porto do Livro, a primeira livraria da UFRGS, localizada no Campus do Centro. Foi o bibliófilo Campos que rompeu a simples relação de Mauro com os livros: “Minha vida, que não era viver com livros, ali começou a mudar. E eu pensei: ‘vou ser livreiro’”, recorda-se. Campos foi fundamental para a decisão da carreira de Mauro. Além de guiá-lo rumo a uma relação profissional com os livros, foi trabalhando ao lado do ex-
diretor do Instituto Estadual do Livro que Mauro também deixou a Administração e passou a cursar Ciências Sociais no campus do Vale. “Ele é o cara que me mostrou a forma de agir e a forma de trabalhar, como tu vê o livro. Um cara ético, um cara que tem amor ao livro. Não só o livro como objeto, mas à leitura, ao conhecimento”, relembra. Mauro rememora as atitudes rebeldes de Campos. Intelectual, citado em trabalhos acadêmicos, ex-presidente da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, Campos botou a livraria no Campus Centro e decidiu que não iria mais participar da Feira do Livro. Ele alegava que, se as pessoas quisessem conhecer a livraria, que fossem até ela. E foi esse jeito eloquente de Arnaldo, morto em 2012, que fez a fama do escritor e livreiro. “Ele é o último grande livreiro de Porto Alegre”, completa Mauro. Enquanto cursava Ciências Sociais e trabalhava na livraria de Arnaldo, começou a levar alguns livros ao Campus do Vale para vender. Conforme os pedidos começaram a aumentar, surgiu a ideia de montar uma banca de livros naquele propício ambiente. Foi numa estante no meio do corredor do prédio da Faculdade de Letras que Mauro passou a comercializar os livros que adquiria. Com a ajuda de amigos do centro acadêmico, largou a Porto dos Livros e se dedicou ao trabalho no Vale. Para esconder a sua primeira livraria, Mauro utilizava uma grande lona que cobria toda a estante. Quando seu negócio era ameaçado de ser tirado dali, promovia abaixo-assinados para não perder a livraria. E assim se seguiram 16 anos. Paralelamente ao trabalho no Vale, aos finais de semana, vendia livros na banca da chaminé da Usina do Gasômetro, durante eventos com participação da Associação
dos Amigos da Usina. Foi parar lá por intermédio de Fernando Schiller. Mauro levava alguns livros de sua banca para vender na Usina, substituindo Walmir Cassol, braçodireito de Schiller, na condução da banca aos finais de semana. “Às vezes, o presidente da associação aparecia lá e perguntava do Walmir. Eu dizia que ele tinha saído, ou que estava no banheiro. Na verdade, ele estava de ressaca, só aparecia no final da tarde... para continuar tomando trago”, se diverte da recordação. Quando foi convidado a retirar-se do corredor da Faculdade de Letras, Mauro levou sua livraria para o Centro de Vivências do Campus do Vale, onde permaneceu por mais três ou quatro anos. No período de férias da faculdade, ajudava seus amigos da Livraria Nova Roma, também localizada na Rua da Ladeira. Com o fim dos eventos na Usina, o trabalho com os livros começou a enfraquecer e os caminhos de seu percurso com as palavras editadas mudaram novamente. Na tentativa de contornar a situação, Mauro procurou um curso que desse retorno financeiro imediato a sua vida. Optou por fazer Geografia na UFRGS. “Eu ia largar o livro. A Usina já tinha acabado há anos, os bicos que eu fazia estavam difíceis. Eu só tinha o Centro de Vivência, e não estava dando. Comecei a fazer Geografia porque, teoricamente, era uma forma mais fácil de arrumar emprego. Ou eu voltava para Ciências Sociais que não tem emprego mesmo, ou ia fazer um curso que desse trabalho meio rapidamente. Não tinha o que fazer”, conta, lembrando que os benefícios estudantis como o restaurante universitário, a passagem escolar e a biblioteca também foram importantes para a volta aos estudos. Entre as palavras e os goles de chimarrão, Mauro escaneava a capa
de alguns livros para postar na página da livraria no Facebook – uma das tarefas da vida rotineira de livreiro. Sempre após o fechamento do expediente, ele divulga capas de livros com seus respectivos preços como uma forma de atrair mais vendas. Sem elas, durante o curso de Geografia, foi acumulando livros. Comprava, mas não tinha onde colocar. O destino natural era sua casa: “Os lugares da casa eram cheios de caixas. Minha esposa me disse que não dava mais para aguentar. Hoje quando eu chego com livro em casa, ela já me avisa: ‘não quero livros aqui’ (risos). Acho que ficou traumatizada”, diverte-se Mauro. Mas a distância do comércio próprio de livros não durou muito tempo. Sua amizade com os colegas da Nova Roma, donos de duas lojas na Rua da Ladeira, rendeu um novo espaço a Mauro. Com o anúncio do fechamento de uma das filiais, eles ofereceram o local ao futuro geógrafo. Com pouco dinheiro e uma coleção Acervo pessoal
Banca que Mauro manteve por 16 anos no Vale
de livros pequena – já que muitos haviam sido vendidos na Feira do Livro –, Mauro titubeou. Os donos da livraria (André, Marquinho e Carlinho), então, fizeram uma nova proposta: deixar as estantes e manter o nome deles no aluguel. Mauro só tinha que colocar os seus livros e vendê-los. Com a ajuda de sua atual sócia, Ana, Mauro Messina abriu a Ladeira Livros, local onde trabalha hoje. Em meio a tantas rupturas, Mauro considera esse período de estudos como uma fase importante para a sua carreira. Foram momentos em que esteve em contato com diversos pensadores, professores, filósofos. “Para a formação de livreiro, para mim, foi tri bom. Todos esses anos que eu fiquei lá, eu aprendi muito para a minha profissão. Eu tive sorte de, durante anos, estar em lugares que, profissionalmente, para mim, foram me formando enquanto livreiro, enquanto conhecedor do ofício”, ressalta. Apesar do orgulho de trabalhar em uma profissão que conhece de tudo um pouco, Mauro é categórico ao afirmar que locais como a Ladeira Livros vão sumir em 20 anos. E pior do que isso: a profissão de livreiro vai acabar. Sem lamúrias, Mauro vê o fim
da existência de pessoas que queiram trabalhar exclusivamente com livros. Ele relembra que, quando iniciou na livraria de Arnaldo Campos, pensava em ser livreiro, ter a sua própria livraria. Entretanto, hoje já não vê nos jovens com esse comportamento. A relação das pessoas com o livro mudou: “A maioria dos que trabalham com livros são estudantes universitários que, depois de se formar, vão para as suas áreas. Na geração de vocês, a relação com o livro já mudou. Eu não sei qual a perspectiva das pessoas em não ser livreiro. Tem os caras que trabalham na Cultura. Esses caras, eu não sei como funciona, mas as pessoas que pensam em viver, trabalhar e montar uma livraria, eu, pelo menos, não tive a sorte de conhecer. As pessoas que trabalham com livro têm em média 45, 50 anos. Dificilmente tu vê uma pessoa mais nova que é livreira”, comenta. Lembranças como a Rua Riachuelo vieram a sua memória. Conhecida como a “rua dos livros”, seu cenário mudou a partir dos anos 2000. Mauro atribui essa alteração a fatores como a presença de megastores, a internet e as novas formas de compra que se têm à
disposição atualmente. Em Porto Alegre, existem sete grandes livrarias, sendo cinco apenas filiais da Livraria Saraiva, localizadas na Rua dos Andradas e em shoppings centers da capital. Além da disputa com as grandes lojas, desde 2005, os sebos do Brasil vêm se unindo a uma rede virtual que disponibiliza os acervos para venda aos internautas: a Estante Virtual. Segundo Mauro, se não fosse o portal, a livraria não iria ter prosperado, já que as pessoas teriam que conhecê-la apenas pessoalmente ou via redes sociais. A Estante Virtual acabou mudando o comércio de livros. Não fosse a falta de celular, poderíamos dizer que Mauro, vendedor de livros novos e usados, é um dos amigos da tecnologia. Há três ou quatro anos, o livreiro abandonou o uso do telefone móvel por simples vontade. Logicamente, esse rompimento gerou problemas com a mulher (Marcia), a mãe e os funcionários da Ladeira que nem sempre o encontram quando precisam. Mas, afinal, que importa! Em meio a tantas rupturas, o mais importante é encontrar Mauro próximo daquilo que ele nunca se separou: os livros.
Acervo pessoal
Mauro na chaminé do Gasômetro, local de uma de suas primeiras bancas
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evantar de manhã, tomar café, arrumar-se e ir para o trabalho. Depois de um dia exaustivo, voltar para casa de ônibus. Rotina comum, certo? Talvez não. O diferencial neste cotidiano está no fato de que provavelmente muitas pessoas que fazem isso diariamente só vão conseguir retornar aos seus lares por conhecer pessoalmente e fisicamente o motorista do transporte coletivo. O motivo? Estas pessoas não sabem ler o letreiro com o nome da linha do ônibus. De acordo com dados do Censo de 2010, na cidade de Porto Alegre, a taxa de pessoas que não sabem ler o próprio nome chega a 21%. Não estamos falando de uma zona rural, sem acesso à escola regular, mas sim de uma das principais capitais do Brasil. A alfabetização de pessoas que não estão em idade escolar não é uma questão prioritária do campo da Educação. A mazela do analfabetismo
é algo tão grave no país que se tornou um renomado programa do Governo Federal: Brasil Alfabetizado. Desde 2003, este programa permite que um voluntário lecione aulas para jovens e adultos que tenham interesse em aprender a ler e a escrever. Para tanto, é necessário que o voluntário encontre uma turma e um local para ministrar suas aulas. Ele ganha, além dos materiais pedagógicos, uma bolsa auxílio de R$ 400 pelas dez horas semanais trabalhadas. Além disso, o voluntário recebe visitas de coordenadores do projeto periodicamente. Para ser um alfabetizador popular, é preciso ter apenas Ensino Médio. A cada 15 dias, eles passam por oficinas de formação e capacitação. A grande maioria dos voluntários são professores aposentados. A iniciativa tem dado certo. No Sul, o programa já está plenamente inserido nas vilas e comunidades mais carentes de Porto Alegre e da Região Metropolitana.
Valeska Goularte, coordenadora do programa Brasil Alfabetizado na Capital, explica que a política existe na tentativa de incluir adultos analfabetos em turmas de EJA no futuro. Em Porto Alegre, existem atualmente 35 turmas de Brasil Alfabetizado. A realidade de quem participa do programa infelizmente não é de uma formação continuada. Valeska afirma que apenas 40% dos egressos do Brasil Alfabetizado passam para a EJA. As motivações são quase todas sociais: falta de segurança para o deslocamento à noite, falta de dinheiro para ter uma boa alimentação, falta de incentivo dentro de casa. Ela explica que a alfabetização de uma pessoa em idade adulta depende muito de um esforço integrado: “Enquanto não houver um trabalho em conjunto com diversos outros setores de políticas públicas, não haverá avanços reais na Educação”.
E(F)JA – Educação (fracassada) de Jovens e Adultos Fracasso. É desta forma que Valeska define a EJA do Governo Federal. O fracasso não está no fato de não atingir demandas que precisam ser alcançadas no campo da Educação. Segundo ela, o fracasso é ter que existir uma EJA no Brasil, uma vez que isso simboliza o quanto o país foi falho na hora de educar suas crianças e adolescentes. O programa existe oficialmente desde 1996 e inclui jovens a partir de 15 anos, adultos e pessoas com deficiência mental que não foram incluídas na escola regular. Em Porto Alegre, existem atualmente 35 escolas municipais que trabalham com a EJA. Através de convênios com as prefeituras, o Ministério da Educação cria turmas principalmente no período da noite. Nos últimos anos, a EJA sofreu um processo de juvenilização, ou seja, cada vez mais jovens que recém completaram 15 anos optam por concluir os estudos nesta modalidade. As motivações são diversas, mas a principal delas, segundo dados da Secretaria de Educação de Porto Alegre, é a necessidade de se inserir cedo no mercado de trabalho. Poucos são os adultos trabalhadores que querem estudar na EJA, e a desistência entre os jovens na faixa dos 20 anos ainda é grande. A coordenadora Valeska explica que a EJA, apesar do abandono frequente de alunos, está cumprindo o seu papel. “O programa não existe para durar para sempre. Ele foi feito
para acabar e isso já está acontecendo. Há uma diminuição anual no número de matrículas; isso significa, de certo modo, que estamos atendendo às demandas e que não há tanta gente fora da escola como foi verificado em anos anteriores”.
A paixão pela alfabetização: existe idade para aprender? Uma das instituições que participa do Programa Brasil Alfabetizado é a ANAPPS Associação Nacional de Aposentados e Pensionistas da Previdência Social. Com sede no Centro de Porto Alegre, a ANAPPS existe desde
A turma, com maior presença feminina, é recebida pela professora Nancy Steffens, de 60 anos. As aulas sempre iniciam com uma conversa informal sobre a vida dos estudantes: “Por que tu não vieste na aula segunda-feira, Guilherme?”, pergunta extrovertida e atenciosa a professora Nancy. Mais no canto da sala, um grupo de senhoras observa pelo vidro da sala de aula uma reunião de mulheres ensinando alguns pontos de crochê; elas comentam que querem aprender este tipo de ponto. Uma outra aluna, uma senhora muito alegre, chega na aula e é questionada pela professora sobre sua saúde. Um senhor, mais tímido, entra e entrega à professora um pacote: é um bolo que ele havia ganho da filha e que ele trouxe para a hora do lanche.Depois de passar a receita de balas de gengibre – para ajudar na dor de garganta da senhora que estava se recuperando – e de sugerir a criação de um livro de receitas da turma, Nancy inicia a aula. A atividade é com as vogais, e ela pede que cada um deles diga uma palavra que comece com a letra “a”. Trabalhando com a sonoridade das palavras – “Como se lê essa, Dona Maria? Lê para mim, por favor.” -, a professora introduz as cinco vogais do alfabeto. O gosto pelo magistério, em especial pela alfabetização, surgiu cedo na vida de Nancy . Aos 15 anos, ela e a irmã mais velha foram dar aulas voluntariamente em um programa do Governo Federal, à época do Regime Militar, chamado MOBRAL, que tinha o objetivo de erradicar o analfabetismo no país. Nancy acabou optando mais tarde em cursar Letras – Português
O professor de informática à época percebeu que alguns alunos com mais de 50 anos não conseguiam aprender a utilizar as ferramentas. Foi então que ele viu que as dificuldades tinham uma razão única: estes alunos não sabiam ler. 2008 e conta com vários projetos. E foi a partir de um dos projetos, que oferece noções de informática, que a associação resolveu incluir aulas de alfabetização entre seus benefícios. A diretora de eventos, Marta Tolentino, conta que o professor de informática à época percebeu que alguns alunos com mais de 50 anos não conseguiam aprender a utilizar as ferramentas. Foi então que ele viu que as dificuldades tinham uma razão única: estes alunos não sabiam ler. A ideia seguinte foi de unir aos projetos um de alfabetização, chamado de “Renascer”, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação (SMED). Em 2013, primeiro ano de realização do Brasil Alfabetizado na ANAPPS, 15 alunos se formaram. Agora em 2014, uma nova turma de cerca de 25 alunos, na maioria com mais de 60 anos, tem aulas nas segundas, terças e quintasfeiras no turno da tarde.
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e Literatura, além de Música, e lecionou durante 33 anos em escolas particulares. Em 2003, ela se aposentou. Buscando uma ocupação, logo após sua aposentadoria, Nancy iniciou um projeto de revisão de regras da língua portuguesa em uma empresa de automóveis da Capital. As atividades, que eram ministradas em três níveis – para analfabetos, nível intermediário e ainda superior -, acabaram tendo maior aceitação pelos alunos de nível de escolaridade intermediário. Mas ela ainda queria algo mais. E foi no jornal que Nancy viu uma oportunidade de continuar ensinando. Lá estava um anúncio para professores que quisessem se candidatar para integrar o Brasil Alfabetizado. Nancy pensou em implantar o projeto na Vila Kéddi,
que fica em uma rua próxima à avenida Nilo Peçanha, e que ela já conhecia por ser um local com altos níveis de analfabetismo e influência do tráfico de drogas. Após encontrar o local – o salão da Paróquia Mont’Serrat, na entrada da vila -, Nancy foi de casa em casa buscar alunos. A iniciativa chamou a atenção da SMED, e ela foi convidada para dar aulas também na ANAPPS. Ela agora se divide entre os dois locais em diferentes dias da semana. Os alunos da associação, sempre muito receptivos, gostam de compartilhar suas histórias de vida incentivados pela professora. Dona Maria Gladis Lopes Martins, de 74 anos, conta que só agora está tendo a oportunidade de se dedicar aos estudos. Ela, que é natural de Santa Cruz do Sul, começou a trabalhar
muito cedo, aos 6 anos, em casas de família. Na época, preferiu não frequentar a escola para poder ajudar a mãe doente. Além dela, o irmão mais velho também ajudava nas contas da família. Quando Maria podia, acompanhava o irmão: “Ele engraxava os sapatos e eu gritava”; ou então os dois iam juntos vender laranjas. Aos 13 anos, Maria veio para Porto Alegre e foi viver em uma casa de família. Ela e o irmão acabaram se separando, e ele foi morar em outro local. Com 16 anos, Maria conheceu seu marido; com 17, casou, e logo depois teve sua única filha Rosana. Os planos de estudar foram novamente adiados: “Eu tinha que ajudar meu marido, o dinheiro não dava”. Maria começou a trabalhar com limpeza; era faxineira, empregada doméstica e ainda limpava
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prédios. A situação ficou mais complicada quando perdeu o marido aos 32 anos. Maria teve que se virar para ajudar a filha a se formar em Técnico de Enfermagem. Ainda trabalhando com limpeza, o dinheiro era pouco e as dificuldades grandes. Em 2001, frequentou um curso e aprendeu a escrever o próprio nome, mas como trabalhava muito, não conseguia acompanhar todas as aulas. Com 64 anos se aposentou, e só agora, dez anos depois, pode se dedicar à própria alfabetização: “Quero estudar até quando der!”, fala ela sorrindo.
Oportunidade em meio às dificuldades: a história de Ângela e Marli Quem chega à porta da casa paroquial da Paróquia Mont’Serrat, localizada na rua Frei Caneca, às margens da Avenida Nilo Peçanha, não pode imaginar o que lhe espera ali dentro. Em uma mesa de madeira, cercada por livros, cadernos e xícaras de café fumegantes, está uma pequena turma que está sendo alfabetizada pela professora Nancy. A mesma professora que leciona na ANAPPS, também desenvolve um
trabalho social através do programa Brasil Alfabetizado na Vila Kéddi, na Zona Norte de Porto Alegre. A vila onde moram cerca de 100 pessoas recebeu este nome por causa de um campo de golfe que existe nas proximidades do local. Com a rua principal de chão batido, e sem as mínimas condições de infraestrutura, a Vila Kéddi conta hoje com uma escola improvisada na qual jovens, adultos e pessoas com deficiência mental aprendem a ler e a escrever. Dentre os alunos de Nancy estão Dona Ângela Maria e Dona Marli. Ângela Maria, 58 anos, tem o mesmo
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nome da grande cantora brasileira dos anos 1960, mas assim como tantas outras que moram no lugar e também carregam o nome famoso, sua vida não foi nada glamourosa. Mulher negra e pobre, deu à luz a quatro filhos. Dois deles morreram ainda jovens vítimas da violência que assola as comunidades carentes do país. A filha de 17 anos foi assassinada pelo marido, e um ano depois, seu filho mais velho, na época com 20 anos, também foi morto. A vida de Ângela foi sacrificada e praticamente não mudou ao longo dos anos. Ela não teve a oportunidade de estudar quando criança, pois teve que trabalhar desde cedo. Hoje, além do apoio dos filhos, ela guarda uma grande força de vontade para aprender. Sua rotina é puxada: entre uma passada de roupas e outra, Ângela frequenta as aulas da professora Nancy. Ângela “Gorda”, como é conhecida na Vila Kéddi, conhecia bem os lugares que frequentava, o que fez com que ela não dependesse da leitura e da escrita para suas atividades diárias. Trabalhou durante cinco anos no Country Club Porto Alegre, que fica atrás da vila, sabendo apenas assinar o próprio nome. Hoje ela vê a diferença que isso teve em sua vida. Além do empenho com a alfabetização, ela também é uma aluna aplicada quando o assunto é matemática. Ângela aprendeu a controlar seu dinheiro, e hoje já consegue analisar os números da fatura do cartão de crédito e economizar. Mas de onde vem esta vontade de aprender? Como surge o desejo de saber mais, mesmo depois de uma vida de tantos sacrifícios e privações? Olhando para Ângela nota-se que sua grande força de vontade é fonte de apoio para Dona Marli, outra personagem especial deste livro de histórias.
Olhos calmos, fala pausada e jeito tímido. Marli, de 69 anos, é frequentadora assídua da turma do Brasil Alfabetizado na Vila Kéddi. Sua história não difere da de tantas outras crianças que largam a escola e fogem de casa. Marli veio escondida de Cachoeira do Sul, região central do estado, aos 15 anos, escapando da madrasta que a maltratava. Já casada, sofreu novamente com a violência doméstica: o marido a agredia. Após a morte dele, restou a Marli a criação dos filhos e uma vida sacrificada. Para os estudos, faltou tempo. Entre uma dificuldade e outra, o vício no álcool e posteriormente um infarto, que a limitou física e mentalmente, Marli buscou forças e voltou a estudar. De acordo com a professora Nancy, ela apresentou certa resistência no início. Marli tinha vergonha de não saber ler e escrever, e Nancy tinha que lhe buscar em casa. Agora, é a primeira a chegar na classe. Marli tem a memória falha, como diz: “tem filhos a perder a conta”. Ela já sabe escrever o nome, e sobre seu futuro tem uma única certeza, quer seguir firme nos estudos. “Agora meu negócio é estudar”, diz com um sorriso tímido.
A ocupação da igualdade: a educação como moradia No dia 28 de agosto de 2013, começava em Porto Alegre uma ocupação popular – conhecida pelo nome de Saraí - que virou sinônimo de luta pela moradia. 28 famílias passaram a habitar um prédio que estava abandonado no Centro há dez anos. Paula Beatriz Calero, 48 anos, chegou lá com seus livros e um caderno uma semana depois. E é aí que a história dela como alfabetizadora se torna conhecida. Há oito anos, Paula ensina pessoas a ler e a escrever. O trabalho de
alfabetização voluntária foi por conta própria, pelo simples prazer em ajudar. Mais tarde, ela se tornou educadora do Brasil Alfabetizado. Neta de uma quituteira de Pelotas, a menina Paulinha cresceu ouvindo a avó dizer que havia esquecido como ler receitas e jornais. Na verdade, a senhora não sabia juntar as letras diante dos olhos e com elas formar um sentido. Com oito anos, a menina já se interessou em ajudar quem precisava aprender. Paula foi parar na ocupação Saraí por vontade própria. Casada, com marido e filha universitária, ela sentiu necessidade de saber o que estava acontecendo no condomínio. Como ela mesma define, “foi lá para ajudar a construir”. Sobre a filha, um fato curioso: Paula colocou o nome dela de Tusile, que em um dialeto africano significa “liberdade”. E quem disse que o estudo não liberta? Paula ficou nove meses na Saraí, e agora busca novos rumos. Atualmente ela planeja um projeto de alfabetização no Quilombo do Areal, no bairro Menino Deus. Feliz e com muita vontade de continuar, Paula acredita também na importância de políticas que agreguem qualidade de vida e educação: “Ninguém aprende com fome”. De acordo com ela, na Saraí era necessário passar nos grupos e levar os alunos pela mão. Os problemas sociais eram tão complexos que faltava tempo para se preocupar com a educação. Mas Paula diz que não vai parar: “Formar turmas é difícil. Tu tens que ir atrás, tens que insistir. Mas acho que se eu parar, eu adoeço”. Ir atrás e insistir. Talvez sejam essas as armas que o destino ofereceu pra quem não teve a oportunidade de lutar quando era necessário. A batalha não tem hora pra começar. Cada uma de seu jeito, elas estão marcando com lápis e papel a sua história.
EXPEDIENTE A Sextante é uma publicação experimental realizada na disciplina de Jornalismo Impresso IV da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. A edição Rupturas é uma realização da turma de 2014/1.
COMISSÃO EDITORIAL
REPORTAGEM
Ana Carolina Giollo Gabrielle de Paula Leonardo Baldessaelli Luis Felipe Abreu
REVISÃO
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Ana Carolina Giollo Diego Felipe Weiler Gabrielle Müller Gabrielle de Paula Glauber Winck Machado Hudson Nogueira Jefferson Bredow Jônatha Bittencourt Laura Xavier Leonardo Baldessarelli Lucas Ebbesen Luciano Viegas Lucilene Athaide Luis Felipe Abreu Luíza Mattia Manuela Ramos Marina Pagno Matheus Bertoldo da Rocha Rafael Lindemann Yamini Benites
Matheus Bertoldo da Rocha Nathália Bittencurt
Leonardo Baldessarelli Luis Felipe Abreu
CAPA E FOTOGRAFIA
ORIENTAÇÃO
Yamini Benites
Wladymir Ungaretti
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