De cidades para pessoas a cidades educadoras | TFG | FAUUSP | 2014

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De cidades para pessoas a cidades educadoras por uma estratĂŠgia de desenvolvimento de projeto polĂ­tico-pedagĂłgico de bairro





Universidade de Sâo Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

De cidades para pessoas a cidades educadoras por uma estratégia de desenvolvimento de projeto político-pedagógico de bairro

Trabalho Final de Graduação

Luis Fernando Villaça Meyer Orientação: Fábio Mariz Gonçalves

São Paulo | 2014



A Luis, Nanci e Felipe. FamĂ­lia querida, sem a qual nĂŁo me encontro no mundo. A todos aqueles que buscam a profundidade da vida, o significado do viver, a intensidade de ser.



Agradeço a vida. A simplicidade de tal colocação talvez esconda a profundidade de seu sentido. Mesmo arriscando me afastar de sua beleza sintética, sinto-me no dever de me aproximar da pureza de descrever seu significado. “Eu sou o resultado consciente da minha própria experiência: a experiência daquele que tem vivido toda a intensidade de todos os instantes da sua própria vida. A experiência daquele que assistindo ao desenrolar sensacional da própria personalidade deduz a apoteose do homem completo”. Minha vida me transborda, me transpassa. Não existo sem aquilo e sem aqueles que me rodeiam e sem as experiências que proporcionam. Agradecer a vida não é simplesmente agradecer a todos ou a tudo, é agradecer a cada um. Obrigado por existirem, por serem precisamente o que são e por tornarem possíveis as palavras impressas nestas páginas. A meus pais por me trazerem à vida, por me ensinarem a andar, a falar, a conhecer um mundo tão surpreendente. A meus amigos, por compartilharem um viver de experiências simples e complexas, banais e significativas, superficiais e profundas. A grandes paixões, por me levarem onde nunca imaginei existir dentro de mim. A meus professores, por cada nova pergunta e pelo apoio na busca pelas respostas. A cada desconhecido, em seus olhares, seus movimentos, suas ideias, suas ações. Agradeço a vida por poder falar sobre ela. Por saber que sua beleza é presente e profunda, disponível a quem se dispuser a olhá-la.



É vivendo que se aprende a viver a vida


Sumário

Apresentação 15

Parte I Carta ao Mediador Capítulo 1

23

Crítica à sociedade distendida

Capítulo 2

25

35

Considerações sobre hegemonia e distensão

37

Cidade 41 Política 49 Educação 57 Vertentes contra hegemônicas

Capítulo 3

65

71

Consciência e mediação

Capítulo 4

73

83

Experiência 85

Capítulo 5

105

Estratégia 107

Parte II Estratégia I Movimento: Orquestração

123

1.

Prelúdio: percepção do desconforto e vontade de ação

126

2.

Articulação: alinhamento de conceitos, estratégia e formação da equipe

126

3.

Plano de ação de aproximação

126

II Movimento: Aproximação

133

4. Sensibilização

136

5.

136

Leitura do bairro


6.

Refinamento e interação

136

7.

Plano de ação de contato

136

III Movimento: Contato

149

8. Apresentação

152

9. Alinhamento

152

10. Avaliação da situação do bairro

152

11. Plano de ação de difusão

152

IV Movimento: Difusão

167

12. Estabelecimento de bases

170

13. Experiências pontuais

171

14. Grupos temáticos

171

15. Plano de ação de integração

171

V Movimento: Integração

185

16. Experiências integradas

188

17. Fóruns deliberativos

189

18. Articulação com vizinhos

189

19. Plano de ação de desenvolvimento

189

VI Movimento: Desenvolvimento

205

20. Acompanhamento

208

21. Fóruns e assembleias

209

22. Projeto político-pedagógico

209

23. Ensaio

209

Referências 222



Apresentação Caro leitor, É com carinho que lhe escrevo esta carta, que mais parece um livro, e conto a história de uma vontade. Não sei quais são suas intenções ou expectativas ao começar a ler estas primeiras palavras, nem se todas que ainda estão por vir lhe serão interessantes e significativas. Mas escrevo procurando organizar uma resposta a um desconforto profundo que cresce dentro de mim; um grito incontido frente ao que vemos na vida e que engolimos a seco, cada vez mais calejados pelas mazelas que acabam nos parecendo inevitáveis e se tornam invisíveis. Eu não aceito. Não posso aceitar. E tudo que estiver ao meu alcance para reagir ao fatalismo do desnecessário sofrimento é bem vindo. Espero que nos identifiquemos e que ao longo das conversas nos sucessivos capítulos encontremos alinhamento entre nossas energias e convicções. Antes de tudo, espero que esse texto seja útil, tanto do ponto de vista reflexivo quanto prático, e que possa ajudar a gerar transformações que nossas sociedades precisam. Neste sentido, não é minha intenção redigir um texto demasiadamente acadêmico ou com15


VII De cidades para pessoas a cidades educadoras

plexo. A profundidade do tema faz com que seja preciso algum rigor na definição de conceitos, mas isso não significa sermos incompreensíveis a quem quer que seja. É preciso que sejam discussões acessíveis. Espero que a leveza o acompanhe nas páginas que se sucedem, assim como me acompanhou durante sua redação. Contudo, preciso dizer que no desenvolvimento deste trabalho nem sempre a leveza esteve presente. Os primeiros questionamentos foram marcados pela angústia e pelo desconforto de quem percebe que algo está errado, mas ainda não consegue verbalizar uma crítica ou sintetizar uma maneira de agir. Esta situação evidentemente não é exclusiva a mim. Muitas são as questões e instabilidades de nossas sociedades e seus consequentes desconfortos gerados a cada pessoa. Invariavelmente nos vemos criticando o Estado; a má gestão dos recursos públicos; o mercado; a má qualidade de serviços; a má qualidade de nossas cidades; a insegurança; o consumismo; a falta de respeito e de empatia social; a falta de significado e valor em nossos trabalhos; as desigualdades; injustiças; desrespeito a direitos; e tantas outras questões que nos tocam no dia-a-dia. Muito nos incomoda e muito permanece nos incomodando, como se fossem condições imutáveis de realidade. Talvez parte de nós não se sinta em posição de responder a estas críticas e angústias, como se uma reação frente à distância entre o mundo em que vivemos e o mundo no qual gostaríamos de viver não nos competisse. Mas se isso fosse verdade e não coubesse a nós definir e lutar viver a vida que queremos viver, a quem poderia caber? Os estudos, discussões e propostas que dão corpo a este trabalho foram desenvolvidos com base na convicção de que não podemos outorgar esta definição a ninguém além de nós mesmos. Nossas vontades dizem respeito ao conjunto complexo que define quem somos, sendo inapreensíveis plenamente por terceiros. Mas como reagir a este afastamento entre o que vivemos no cotidiano e a vida que queremos viver? E mais, de fato sabemos profundamente qual é esta vida? Não são respostas simples no caminho da consciência e da autonomia para reagir a este afastamento, mas a complexidade da pergunta não justifica deixarmos a busca pela resposta de lado, ou permaneceremos consentindo viver o que nos fazem viver. Mas se não cabe a terceiros definirem a maneira como vivemos, como encontrar tais respostas e como traçar nosso próprio caminho?

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Apresentação

Propomos aqui uma estratégia para incentivar e potencializar o desenvolvimento de consciência e autonomia em comunidades, a partir da ação inicial de agentes externos. Para alcançar tal objetivo sem sermos contraditórios, foram abordadas diversas perspectivas e metodologias de vertentes variadas de intervenção – notavelmente urbanísticas, políticas e educativas – trabalhando com conceitos de participação, deliberação, consciência, mediação, etc. A articulação de tal variedade de ideias talvez só tenha sido possível dado o contexto onde estive inserido nos últimos anos. A proposta que aqui apresentaremos foi desenvolvida como Trabalho Final de Graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, apresentada no inverno de 2014. Meu percurso na FAU foi marcado pela abordagem da arquitetura em suas facetas transversais. Minha crise com a ação centrada no arquiteto e o projeto distante do canteiro e das pessoas me fizeram questionar a função do próprio arquiteto, crise que pôde ser tanto acolhida nos estúdios e salões da faculdade quanto em minhas atividades fora dela. A FAU é uma instituição muito propícia à experimentação e à autorreflexão, mesmo sendo difícil explicar os motivos destas características. Talvez sejam seus amplos espaços, suas promenades, suas empenas, o piso caramelo profundo, as pessoas que ali convivem ou, muito provavelmente, a soma das experiências que passamos nestes espaços. Refletir (aproveitando a ambiguidade do termo) na FAU sobre o papel do arquiteto nos leva a perceber que a arquitetura não se restringe à construção de edifícios ou a definição de diretrizes ou políticas urbanísticas. Ela pode ser tão ampla quanto um projeto pode gerar experiências a quem vive no espaço. O arquiteto talvez seja um mediador. Aquele na posição de conhecer e colocar em contato grande variedade de elementos do universo, projetando em um futuro tangível os espaços, tempos e materialidades do mundo com o qual e no qual pessoas (con)vivem. O arquiteto sugere um viver que está por vir, uma vida diferente daquela que vivemos e precisa realizar uma escolha sobre como realizará tais projetos. A arquitetura permite que a tenhamos como universo aberto. Seus limites são desconhecidos, suas possibilidades são infinitas, seus potenciais são variados. É assim que a estratégia e a abor-

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VII De cidades para pessoas a cidades educadoras

dagem que aqui desenvolvemos se fazem profundamente frutos de um trabalho arquitetônico. Mesmo agregando muitos outros elementos para além das disciplinas clássicas da arquitetura, a estratégia busca a harmonização, o alinhamento, o equilíbrio, uma arquitetura de experiências de vida. A utopia carregada por estes termos não significa sua negação, pelo contrário, norteia nossos movimentos. O texto percorre o caminho destas utopias. Dividido em duas grandes partes: a carta ao mediador e a estratégia. Na primeira, definiremos os grandes conceitos e a linha de raciocínio que irá fundar nossa proposta prática de ação, presente na segunda parte. A carta ao mediador é iniciada com uma crítica à sociedade que reproduz um mundo e condições do viver cotidiano distintos de suas vontades reais. Discutimos no segundo capítulo sobre como modelos institucionais se mantêm hegemônicos através desta situação, abordamos suas correspondentes vertentes contra-hegemônicas e como estas propõem experiências que buscam envolver o sujeito integralmente, tomando-o em sua complexidade. Em seguida, debatemos como se pode desenvolver consciência sobre o afastamento entre as experiências que vivemos e aquelas que gostaríamos de viver, definindo uma figura central no processo: o mediador. O elemento que mediará, a experiência, será definido no quarto capítulo, discutindo que pode ser simultaneamente uma intervenção e um recurso de desenvolvimento de consciência e autonomia. Finalmente, articulamos mediadores e experiências em uma proposta de estratégia, primeiramente delineada em linhas gerais, mas em seguida abrindo a segunda parte deste texto. Nela, abordaremos cada um dos seis movimentos da meta-estratégia que propomos ao mediador. Após estes seis movimentos, temos o conjunto da presente obra, o VII Movimento, que agrega as duas partes presentes neste livro, assim como a constelação de experiências e ensaios de intervenção, em seus livretos. Esperamos que o VII colabore para intervenções significativas nas comunidades onde for utilizado e que não seja apenas mais um volume inerte em prateleiras empoeiradas. Sua vida, como toda vida, é dinâmica e seus conceitos, mutáveis. Cada nova intervenção e cada novo questionamento o modifica e deve atualizá-lo. Se suas intenções caminharem, mesmo que de forma sutil e gradual, em direção a uma sociedade que vive a vida profundamente, teremos certeza de que fomos bem sucedidos. 18




Parte I Carta ao Mediador

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Capítulo 1 Crítica à sociedade distendida



Crítica à sociedade distendida Palavras podem confundir. Somos bombardeados dia após dia com palavras que nos oferecem saúde melhor através de planos de saúde mais abrangentes; melhor educação em escolas mais inovadoras; mais segurança com policiamento mais bem equipado; dentre tantas outras respostas de instituições que dizem suprir nossas necessidades e vontades. O que na maior parte das vezes não questionamos é que estas palavras não são sinônimas. Tratamento médico não é equivalente a saúde; escola não é equivalente a educação; policiamento não é equivalente a segurança. As primeiras são apenas respostas institucionais a questões muito mais amplas que dizem respeito a todos nós como sociedade. O problema é confundirmos as duas coisas, processo com substância, e acabamos questionando apenas as instituições ao invés de nos questionarmos sobre nossas necessidades mais profundas. Nas palavras de Ivan Illich, “saúde, aprendizagem, dignidade, independência e faculdade criativa são definidas como sendo um pouquinho mais do que o produto das instituições que dizem servir 25


VII Carta ao mediador

a estes fins; e sua promoção está em conceder maiores recursos para a administração 1. Ilich, Ivan. Sociedade sem escolas (p21)

de hospitais, escolas e outras instituições semelhantes” 1 . Talvez tenha sido um movimento natural da sociedade moderna essa cultura de “institucionalização” ou talvez tenha sido uma série de conjunturas históricas muito específicas. O que importa é que nossas necessidades, por mais simples que possam ser, passam a ter uma resposta institucional que as transformam em serviços e “bens” que possam ser consumidos. Deixamos a cargo das próprias instituições e sistemas a responsabilidade e direito de dizer o que é melhor para nós e de dar contorno a estas necessidades na forma de produtos. Mas elas não são produtos. São vontades profundas de experiências humanas: a experiência da saúde, a experiência da aprendizagem, a experiência da segurança. Questões mais complexas do que uma instituição poderia compreender e dar uma resposta completa em qualquer forma de estímulo, bem como tantas outras experiências que dizem respeito à vida de cada indivíduo como um todo; a vida em sua integralidade. Um hospital, por melhor e mais avançado que seja, não é equivalente à minha experiência de saúde; uma escola não é equivalente à minha experiência de aprender; um aparato policial de última geração não é equivalente à minha experiência de segurança. Mesmo assim, sua relação é inegável. Não poderíamos fechar os olhos para a experiência de um ente querido que seja curado de uma grave doença com um tratamento médico; um filho que chega da escola contando com brilho nos olhos o que aprendeu; ou à sensação de segurança que uma base policial pode nos dar em alguma situação de perigo. Contudo, as experiências de vida em si são essencialmente complexas, na medida em que “é complexo o que não se pode resumir numa palavra-chave, o que não pode ser re-

2. Edgar Morin. Introdução ao pensamento complexo (p5)

duzido a uma lei nem a uma ideia simples” 2. Por outro lado, para conseguirem atuar, as instituições precisam simplificar essa complexidade de forma que se nomeie o problema a ser resolvido. Portanto, complexidade e simplificação convivem de alguma maneira.

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Crítica à sociedade distendida

Para discutirmos este convívio, precisamos começar sintetizando que são duas dimensões distintas e complementares: as experiências que as instituições oferecem em forma de serviço, simplificando a complexidade; e a experiência da vida propriamente dita, complexa; onde a primeira é uma resposta parcial à segunda, que é mais ampla e a engloba. Só com esta consciência podemos transformar os estímulos práticos da sociedade para estarem mais alinhados com estas experiências profundas que buscamos. Neste sentido, precisamos discutir o que na sociedade interfere neste alinhamento, facilitando-o ou dificultando-o. Incorporando termos de Habermas, o domínio social onde passamos por experiências do primeiro caso, ou seja, estímulos que simplificam a complexidade, é o que poderíamos chamar de sistema, enquanto do segundo, nossa busca pelas experiências de vida complexas, mundo da vida. Para o sistema, a lógica é a da reprodução material da sociedade, onde “o mundo e os atores sociais são tomados não como sujeitos dotados de opiniões, visões de mundo e crenças, mas como meros objetos” 3, de forma a neutralizar os conflitos entre esses atores. Em outros termos, não são tomados

3. Nobre, Marcos. Direito e Democracia (p20)

como sujeitos que discutem e buscam compreender as experiências da vida, mas como consumidores e usuários de produtos e serviços que dizem satisfazer essa busca de maneira simples e eficiente. Habermas chama este tipo de ação de instrumental. Seria a lógica do Mercado e do Estado, por exemplo. Do outro lado, no mundo da vida, estaríamos lidando com as experiências em sua complexidade, provavelmente maior do que nossa própria razão poderia compreender completamente. “O pensamento complexo aspira ao conhecimento multidimensional. Mas ele [o pensamento complexo] sabe desde o começo que o conhecimento completo é impossível: um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma onisciência” 4. Se tivéssemos pleno conhecimento da complexidade da vida através da razão, não precisaría-

4. Edgar Morin. Introdução ao pensamento complexo (p6)

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VII Carta ao mediador

mos buscar respostas e experiências profundas, talvez elas já estivessem dadas. É através do pensamento complexo que procuramos o entendimento mais profundo, mesmo que ainda parcial, de angústias e questões das mais diversas ordens da vida em um tipo de ação que Habermas chama de comunicativa, uma vez que ela se daria no confronto de ideias. Essa ação seria regida por regras estabelecidas pelos próprios participantes de uma discussão racional onde buscariam lidar com o conflito e o dissenso entre seus pontos de vista. A ação comunicativa deveria reformar constantemente as instituições de acordo com as conclusões. O sistema e o mundo da vida são indissociáveis, partes de um mesmo todo, de forma que não há domínio social onde poderíamos encontrá-los em “estado puro”. Assim, ambos convivem em relação não necessariamente equilibrada, principalmente pelo fato da ação instrumental, em sua busca de reprodução material da sociedade, entrar em conflito com o potencial transformador da ação comunicativa. Este conflito pode ser visto, por exemplo, no embate entre a democracia representativa e os ambientes políticos essencialmente participativos, onde o primeiro tende a ser mais eficiente na tomada de decisões, mas menos profundo no entendimento da complexidade dos temas que discute. Em outras palavras, a ação instrumental busca reproduzir condições que já estão dadas na sociedade, o que a possibilita fazê-lo de forma eficiente, enquanto a ação comunicativa questiona e critica estas condições e suas premissas, o que tende a ser mais trabalhoso e reformador. Neste embate, pela força dos sistemas consolidados na sociedade e em um esforço de auto5. Marcos Nobre. Direito e democracia (p22)

preservação, pode ocorre o que se chama de “colonização do mundo da vida pelo sistema” 5 , ou seja, o espaço de discussão em nossas vidas sociais onde buscaríamos o entendimento sobre questões e experiências complexas da vida – como a da saúde, educação e segurança – seria menos valorizado e até deixado de lado, “colonizado”, quando há instituições que dizem estar lidando com elas. Sem valorizar este movimento de conscientização do sujeito através da ação comunicativa, geram-se menos respostas sobre como de fato deveriam ser as experiências do viver cotidiano e, consequentemente, menos pressão nas instituições. Assim, nossa busca por experiências de vida, complexas, e sua resposta prática, institucional, distendem-se: quanto menos buscamos

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Crítica à sociedade distendida

o entendimento das experiências, individualmente e em sociedade, menor nosso impulso e influência na transformação das instituições para darem respostas à altura de sua complexidade e maior o afastamento entre ambas. Por exemplo, se formos questionar e discutir a experiência de segurança que queremos em nossas cidades, podemos questionar se muros mais altos em nossas casas e policiamento mais armado nas ruas realmente nos aproximam de nosso objetivo. Talvez muros baixos possibilitem que todos os vizinhos olhem e vigiem o que acontece nas ruas; e talvez quanto mais armados estiverem nossos policiais, mais armados estarão aqueles que devem combater. Então o que será que interfere no aprofundamento da consciência e na força de intervenção da sociedade? Provavelmente a distensão seria constantemente reduzida se houvesse equilíbrio entre o sistema e o mundo da vida, mas há como que uma cultura de afastamento entre a experiência complexa e a resposta institucional na sociedade moderna, não apenas nas instituições, movidas pelo paradigma de simplificação para viabilizarem sua própria sobrevivência e a reprodução material da sociedade, mas também na própria sociedade. “A patologia moderna da mente está na hipersimplificação que não deixa ver a complexidade do real” 6.

6. Morin. Idem (p14)

Passa pelo movimento de colonização do mundo da vida pelo sistema a instauração e manutenção dessa patologia da mente: o esvaziamento dos discursos críticos, próprios da ação comunicativa, e a reclusão silenciosa da sociedade, sua aceitação. Talvez a instituição escolar tradicional seja a que mais coloque este movimento em relevo: o educando é ensinado a absorver informações que não deve criticar, mas apenas reproduzir. É o que Paulo Freire chama de uma educação “bancária”, onde, quanto aos educandos, “quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada dos depósitos recebidos [de conhecimento]” 7. Assim, em experiências como a da educação bancária, onde o sujeito é reduzido a uma forma

7. Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido (p34)

menos crítica e complexa, o sistema consolida a hegemonia de certos modelos institucionais que proporcionam boa parte das experiências cotidianas na sociedade, como hospital, escola ou policiamento. Usamos, portanto, o termo “hegemonia” no sentido definido por Gramsci, 29


VII Carta ao mediador

onde está implicado o consenso e consentimento do conjunto social a instituições que o diri8. Coutinho, Carlos Nelson. De Rousseau a Gramsci (p145)

gem, mais do que a forças que o dominam 8. Quanto maior o afastamento entre o entendimento e busca pelas experiências complexas da vida e as experiências oferecidas pelas instituições, menor a sua crítica, maior a sua hegemonia e mais modelos promoverão este estiramento, mesmo considerando-se que há modelos cuja hegemonia não dependa da redução do sujeito, como veremos no capítulo seguinte. Em outras palavras, há modelos modernos que mantem sua hegemonia gerando experiências que reforçam a distensão entre as experiências do viver cotidiano e a integralidade da vida complexa. Mas como estes modelos conseguiriam fazer isso sem que as pessoas os rejeitassem? Para realizar este estiramento e fazer a sociedade aceitá-lo sem maiores problemas, os produtos e serviços produzidos pelas instituições que reforçam o que chamo de sociedade distendida geram experiências para apenas um recorte do sujeito. São experiências cuja intenção, afastando-se da compreensão da complexidade da vida, gera o envolvimento da pessoa apenas até o ponto em que sua hegemonia se mantenha e o sistema se reproduza. Estímulos que por

9. Vamos explorar a ideia de experiência significativa mais profundamente nos capítulos subsequentes, discutindo os conceitos de interação e continuidade de Dewey.

suprirem o sujeito de experiências que lhe sejam mínima e suficientemente significativas 9, ofuscam a consciência da conexão indissociável entre as experiências do viver cotidiano e as experiências da vida, consciência que pode colocar em risco a manutenção das instituições como estão constituídas. Então, se a sociedade já for profundamente consciente de suas vontades complexas de experiências humanas e da necessidade de vínculo delas com as oferecidas no cotidiano, os modelos hegemônicos terão que responder à altura ou serão superados. Ou seja, inversamente, se a consciência social é superficial e não se busca ampliá-la, a visão crítica quanto à distensão se esfacela e as instituições responderão a essa altura, produzindo experiências que a mantenham neste estado superficial de consciência. É como se para nossa busca pela experiência de aprendizado, nos contentássemos com escolas que não consideram e não exploram nossos gostos, críticas e opiniões; ou em nossa busca de segurança nos satisfizéssemos com câmeras espalhadas pelas ruas.

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Crítica à sociedade distendida

Mas a experiência ofertada e o que a pessoa vivencia também não são sinônimos. Há um processo fenomênico de experimentação do estímulo cuja interpretação e resposta só podem vir da própria pessoa. Ninguém pode viver por ela e avaliar o quanto as experiências lhe são significativas. Então, uma vez que quem vive a experiência é o sujeito complexo, independentemente de o estímulo ter sido criado considerando-o em sua totalidade ou parcialidade, temos um elemento a mais na discussão da distensão: como posso dizer quão profundamente uma pessoa vive e interpreta uma experiência, mesmo que ela seja fruto de um estímulo produzido considerando apenas um recorte do sujeito? Além da busca pelo entendimento sobre as experiências da vida, de um lado, e dos estímulos práticos trazidos pelas instituições no cotidiano, do outro, há também a experiência em si, a percepção da experiência pela pessoa. A distensão entre os dois primeiros só poderia ser verificada considerando-se o terceiro, ou seja, só poderíamos confirmar sua validade e escala se tivéssemos acesso à reflexão e consciência de cada indivíduo sobre as questões profundas da experiência humana, seu questionamento sobre as experiências cotidianas do viver e seu julgamento se ambas estão alinhadas, acesso que não podemos ter. Vemo-nos então frente a uma questão: se queremos nos colocar no movimento de aproximar as experiências do viver à consciência e busca das experiências da vida, precisamos conseguir avaliar o grau de distensão entre elas? Se a resposta fosse positiva, estaríamos de mãos atadas. Contudo, nosso papel não é tentar realizar este julgamento pela sociedade e chegar a um veredito verdadeiro, ele não seria possível e nem é necessário. Cabe a cada individuo e a cada discussão na sociedade este papel – no domínio social da ação comunicativa – de buscar as melhores respostas possíveis e desenvolver consciência sobre a distensão para exercer influência na transformação das instituições. Então, em um primeiro momento, a nós cabe especular, a partir de critérios basicamente subjetivos, que em algum grau a distensão existe e nos colocarmos no movimento de reação a ela. Neste movimento, os limites de verdadeiro e falso da especulação nos são importantes: na melhor das situações estamos errados, a sociedade é profundamente consciente e as experiências produzidas pelas instituições estão alinhadas com as demandas por experiências de vida, em um vetor de aproximação entre ambas; enquanto na pior das situações não há consciência do 31


VII Carta ao mediador

conjunto social e nem influência frente às instituições, deixando que respondam à altura desta superficialidade, acabando por reforçá-la. No segundo caso o afastamento é total e potencializado por uma situação de complacência e alienação, onde vivemos experiências que dizem respeito apenas a uma pequena parte de nós, deixando inexploradas questões, angústias e vontades humanas profundas. Tentando então articular as ideias colocadas até aqui: o aprofundamento da busca pela vivência e compreensão das experiências da vida, como a experiência humana da aprendizagem; a percepção da experiência pelo sujeito que a vivencia, cuja interpretação lhe é exclusiva; e as intenções de experiências contidas nos estímulos de produtos e serviços formatados por instituições, não são sinônimos entre si. Estas últimas, ações instrumentais do sistema, tendem a responder à altura da consciência da sociedade quanto a suas vontades de experiências humanas. Quanto mais profunda a consciência e mais articulada a sociedade, mais as instituições precisam se adaptar para se reproduzirem; do contrário, se reproduzem mantendo a sociedade em seu estado de entendimento superficial. Contudo, estes dois tipos de ação não coexistem necessariamente em equilíbrio, podendo o primeiro se sobrepor ao segundo caso não haja reação por parte da sociedade, de forma que as experiências do viver cotidiano e a busca por experiências complexas de vida não se mostram alinhadas, pelo contrário, afastam-se, distendem-se. Essa distensão é realizada e reforçada pelas próprias ações instrumentais através de experiências que satisfazem o sujeito de sua busca, sendo-lhe minimamente significativas. Contudo, uma vez que a percepção e interpretação da experiência são exclusivas do sujeito, o julgamento do grau de distensão da sociedade é inapreensível em sua totalidade. No que cabe a cada sujeito o papel de realizar este julgamento, voltamos a questionar nosso papel debatido neste trabalho. Nossas comunidades e sociedades se encontram em algum estado intermediário entre os limites discutidos acima, do mais consciente e politicamente ativo ao mais alienado e complacente. Mas uma vez que modelos respondem à altura da consciência da sociedade para manterem sua hegemonia sobre outros e se reproduzirem, quanto mais superficial esta consciência,

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Crítica à sociedade distendida

maior a dificuldade de reação. Não se pode esperar que modelos institucionais se transformem sozinhos, indo contra sua própria lógica sem a ação humana, de forma que é preciso inserir algum elemento novo no processo para inverter o vetor que reforça a distensão e valorizar seu inverso: a integração. Desta maneira, nosso movimento de reação ao afastamento entre as experiências da vida e do viver independe do grau de distensão. Então, para reagir à lógica de reprodução do sistema através de experiências de distensão, é preciso trazer seu oposto, experiências de integração, proporcionando em nossas comunidades: espaços de interação livre e multidimensional; experiências que sejam significativas e considerem a complexidade do sujeito para levá-lo à reflexão, questionamento e debate; e desenvolvimento e difusão de autonomia das estruturas de ação que conduzam as comunidades a intervirem e promoverem experiências que integrem a vida e o viver. Podemos ler estes três campos de proposta da seguinte forma: o espaço da cidade, as práticas educativas e as ações políticas. Cidade, educação e política aparecem então como campos de experiências fundamentais para a reação à distensão, mas em vertentes de formatos muito distintos daqueles que chamamos de hegemônicos. São movimentos que seguem exatamente a lógica inversa, buscando desenvolver experiências integrais ao invés de distensão, em modelos que por sua reação à hegemonia daqueles instituídos, chamo de contra hegemônicos. Curiosamente, existem muitas vertentes contra hegemônicas destas três áreas com mais ou menos ênfase no movimento de reação. Talvez ainda mais curioso seja observar a sinergia e convergência que há entre elas, inclusive utilizando termos muito semelhantes para descrever suas propostas de ação. Para que investiguemos uma estratégia de reação através de experiências integrais, precisamos discutir alguns destes modelos.

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Capítulo 2 Considerações sobre hegemonia e distensão

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Considerações sobre hegemonia e distensão As experiências do viver cotidiano e as experiências profundas de vida, diferentemente do que se poderia assumir, não são sinônimas entre si, podendo estar próximas ou distantes e reforçando sua integração ou distensão. As primeiras são baseadas em modelos, como a instituição escolar, que dizem suprir nossa busca pelas segundas, como a experiência de aprender, mas muitos destes modelos se reproduzem e mantem sua hegemonia sobre outras vertentes através da própria distensão, ofuscando a conexão entre o viver e a vida e se preservando de questionamentos que os ameacem. Para uma discussão sobre vertentes que mantem sua hegemonia por estes meios, e suas equivalentes contra hegemônicas, que fazem o inverso, precisamos começar fazendo algumas considerações. É fácil nos perdermos na discussão se partirmos de discursos e argumentos ideológicos. Conservadorismo, liberalismo, socialismo, são algumas de tantas correntes que carregam visões particulares de mundo e que forjam representações, construções epistemológicas e crenças distintas entre si. Essas distinções claramente geram oposições que poderiam nos levar a crer que de um lado teríamos experiências de distensão e experiências de integração do outro. 37


VII Carta ao mediador

Infelizmente, nem tudo é simples assim. É fundamental considerarmos as ideologias e os paradigmas onde estão ancorados os modelos, tanto hegemônicos como contra hegemônicos, mas talvez tão importante quanto seja observarmos que não é exclusividade de nenhum deles a promoção de experiências de distensão ou integração. Em todas as correntes podemos encontrar a defesa de experiências de ambos os tipos, dependendo do contexto histórico e político em que estavam inseridas. A não ser que seus paradigmas sejam fundados exatamente em uma destas formas de experiência, como muitas vezes ocorre em relações de dominação, toda vertente responde fundamentalmente à suas lógicas internas, podendo permutar entre integração e distensão de acordo com as circunstâncias. Então, mesmo que seja inevitável observar a prevalência de um lado ou outro em determinadas ideologias, nossa discussão se permeia e emaranha entre elas ao invés de se partidarizar. Uma vez não sendo possível medir o grau de distensão de uma sociedade, também não é possível medir objetivamente o grau de integração ou distensão das experiências propostas por uma vertente institucionalizada, cujo formato esteja enraizado no inconsciente coletivo. Por exemplo, não consigo dizer com clareza o quanto a experiência da escolarização está ou não gerando a experiência profunda da aprendizagem, por mais que em muitos casos possamos ter indícios positivos ou negativos. É a dificuldade que temos quando contamos com métodos e critérios objetivos de avaliação para medir algo tão complexo que não poderia ser contemplado em todas suas nuances, uma vez que englobaria a dimensão integral da pessoa, suas características racionais, emocionais, físicas, sociais, culturais, etc. Essa dificuldade nos coloca na posição de avaliarmos as vertentes como proponentes de experiências de distensão ou integração não pela sua consequência, mas por sua intenção, entendendo intencionalidade como o propósito de uma ação, a que finalidade ela foi trazida. Como já discutimos no capítulo anterior, a intenção de vertentes que reforçam a distensão gera experiências para apenas um recorte do sujeito, de forma que lhe sejam mínima e suficientemente significativas. Em contraposição, experiências de integração seriam significativas buscando envolver o sujeito em sua integralidade, dando-lhe espaço à ação, à crítica, à exploração de suas angústias, pontos de vista e especificidades, à percepção do vínculo com experiências 38


Considerações sobre hegemonia e distensão

anteriores de sua vida e à ampliação de seu “mundo” de experiências futuras. Então, esta dualidade faz parte de nossa forma de avaliação: vertentes cuja intenção não consiste em envolver profundamente o sujeito e geram experiências minimamente significativas, tendem a reforçar a distensão; enquanto vertentes cuja intenção parte deste envolvimento e da busca por experiências cada vez mais significativas, tendem a reforçar a integração. Uma vez que o entendimento da complexidade do sujeito é sempre parcial, estas últimas sempre precisam se reinventar para aprofundarem seu entendimento da pessoa, ou acabam também estagnadas na distensão. Em outros termos, em um extremo temos experiências de distensão, cujo mínimo envolvimento é suficiente; enquanto no outro temos experiências de integração, cujo máximo envolvimento não é suficiente. Mas então o discurso de uma instituição que explicite suas intenções nos seria suficiente para avaliá-la? Não é como se as instituições que reproduzem experiências de distensão deliberassem envolver minimamente o sujeito para que não veja a separação entre a forma como elas atuam e o que ele realmente busca. A intenção não reside em envolver profundamente as pessoas porque o foco e energia destas vertentes estão canalizados para outros fins, sejam quais forem, passando pela busca de sua manutenção e da reprodução material da sociedade. Sendo assim, nossa avaliação da intenção não parte de discursos ou propostas, mas do formato da ação posta em prática. O que observamos é a intencionalidade impressa em seus atos, não em sua “boa intenção” descrita em discursos oficiais

.

10

Finalmente, é preciso falar sobre a ideia de hegemonia. Em primeiro lugar, lembrando-se da definição de Gramsci, vale ressaltar que dela faz parte o consentimento social quanto à instituição de determinada maneira de se responder a uma questão. Por exemplo, a escolarização é uma vertente hegemônica de educação na medida em que praticamente todas as outras for-

10. Mesmo considerando-se que há um processo de tradução da vontade à ação prática, ou seja, qual formato de experiência se propõe a partir de uma intenção.

mas de lidar com o processo educativo são vistas como inadequadas ou com relutância pela sociedade, como se fossem “menores”

. A escola é vista de tal forma como o domínio por

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excelência da educação, que outros ambientes e momentos acabam sendo negligenciados.

11. Ver Ivan Illich, Sociedade sem Escolas

Em segundo lugar, nem toda vertente socialmente hegemônica produz experiências de distensão e nem toda vertente contra hegemônica gera experiências de integração. Não há equi-

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VII Carta ao mediador

valência simples entre estes termos e nem são excludentes, muito pelo contrário, convivem mutua e sincronicamente. Assim, a “hegemonia” presente no título deste capítulo é específica: estamos lidando com a oposição entre vertentes hegemônicas que reproduzem experiências de distensão e suas vertentes opostas, que buscam a integração. Ao fazermos este recorte, procuramos deixar clara nossa premeditada procura por uma estratégia de reação às vertentes que se reproduzem através da distensão. Dito isso, retomemos a apresentação dos campos de experiência que encerraram o capítulo anterior. A reação à distensão parte de experiências que explicitem que é possível – e muito desejável – a integração entre as experiências do viver cotidiano e da profundidade da vida, de forma que aprofundem a consciência da relação entre ambas, desenvolvam a autonomia crítica e articulação política da sociedade para promover sua aproximação. Nestes termos, temos o espaço de uso público, notadamente da cidade, como propício – e em grande medida, inevitável – para interações livres e justaposição de experiências diversas, uma vez que toda experiência se apresenta de alguma forma no espaço; o papel fundamental da educação no desenvolvimento da compreensão do mundo, aprofundamento da consciência e da autonomia; e a potência da política para formação de espaços comunicativos, de debate, posicionamento e articulação da sociedade. Estes três domínios, a cidade, a educação e a política, por suas características fundantes, começam a dar contornos a nosso campo de ação. Contudo, são áreas que, como tantas outras, apresentam-se em vertentes de diversos formatos e intenções que se reproduzem como hegemônicas ou contra hegemônicas na acepção que apresentamos previamente. Não por acaso, talvez pela posição “estratégica” destes três campos em potenciais reações à distensão, a oposição entre vertentes que se reproduzem pela distensão e vertentes que buscam a integração muitas vezes é intensa e conflituosa. Para uma aproximação mais cuidadosa, precisamos definir o objeto destes domínios; explorar as origens e características das vertentes hegemônicas; e contrapô-las a algumas vertentes contra hegemônicas, lembrando que todas respondem às suas lógicas e intenções particulares, de forma que nos cabe realizar a crítica e não juízo de valor sobre sua prática.

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Cidade Ambientes urbanos nascem e se organizam respondendo a necessidades específicas antes de produzirem instituições que buscam controlar seu padrão de desenvolvimento e as experiências que seus habitantes terão no espaço. As origens históricas das cidades, alguns milênios antes de nossa Era, remontam à transformação de aldeias em espaços de especialização do trabalho; local de distribuição de excedente de produção e desenvolvimento de tecnologias; oposição ao am12. Benevolo, Leonardo. História da Cidade (p26)

biente agrário; e espaço de concentração do poder 12. Estas são algumas características das novas sociedades que passam a gerar normativas que podemos chamar de “urbanísticas”, por mais que esta área como ciência venha a se desenvolver apenas poucos séculos atrás. Os modelos que passam a dominar o desenvolvimento de nossas cidades contemporâneas surgem com a gradual transformação das cidades na era industrial, a partir do século XVIII. A velocidade das transformações sociais, que vão da explosão demográfica às novas formas de organização do trabalho refletem-se nas experiências de viver na cidade de formas cada vez mais críticas:

13. Ver Engels, Friedrich. A situação da classe operaria na Inglaterra

a precarização da moradia, exemplificada na clássica publicação de Engels 13; o agravamento das condições sanitárias, que geram epidemias de doenças como a cólera; o aprofundamento das desigualdades nas relações sociais e no acesso a bens e serviços básicos; entre tantas outras. 41


VII Carta ao mediador

O descontentamento com as condições do viver passa a motivar revoltas e críticas cada vez mais contundentes aos sistemas instituídos, cuja proporção começa a ameaçá-los. Para que se mantenham no poder, ao longo do século XIX uma série de leis sanitaristas e modelos urbanísticos teóricos “nascem do protesto pelas condições inaceitáveis da cidade existente e procuram pela primeira vez romper seus vínculos recorrendo à análise e à programação racional. [...] Antecipam, portanto – como tentativas isoladas – a pesquisa coletiva da ar14. Benevolo, Leonardo. História da Cidade (p568)

quitetura moderna que terá início no século seguinte” 14. Neste processo, passa-se do que Benevolo chama de cidade liberal, na qual sob os preceitos do liberalismo não há controle da administração pública sobre a transformação e uso da cidade, à cidade pós-liberal, onde a liberdade da iniciativa privada e a regulação e execução de obras públicas pelo Estado começam a ganhar contornos e limites bem definidos. À administração pública cabe gerir o espaço mínimo para fazer funcionar o conjunto da cidade, enquanto à iniciativa privada cabe administrar o restante, servida por estes equipamentos e serviços públicos. Este contexto coloca em relevo a figura do técnico como responsável em estudar a cidade através do método científico, operando sobre regulamentos estabelecidos. O arquiteto urbanista chega ao centro da discussão em uma nova forma de encarar a questão urbana: a união entre o técnico, que opera com regulamentos e funções, e o artista, que lida com as relações entre espaços e volumes em busca da qualidade estética, inaugura a cidade moderna. O modernismo concebeu métodos para o desenho da cidade moderna em um momento histórico de vanguardas artísticas, grandes guerras e enormes avanços tecnológicos. Seu modelo institucionalizado funda-se na negação da cidade tradicional e baseia-se em uma sociedade ideal através da racionalização das dinâmicas e funções urbanas, para Le Corbusier, expoente do movimento: habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito, circular. A responsabilidade da formação da cidade é colocada nas mãos de especialistas e sob os interesses políticos e autonomia administrativa do Estado. Institui-se o zoneamento, que segrega as diferentes funções urbanas; a dimensão do planejamento urbano destaca-se na forma de políticas públicas; instauram-se normas e parâmetros de uso e ocupação do solo; estruturam-

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Cidade

-se sistemas viários de acordo com o paradigma industrial da eficiência, com grandes projetos para a escala da cidade, etc. Conceitos que são apropriados profundamente em alguns casos, criando cidades inteiramente novas como Brasília, e parcialmente em outros, intervindo com maior ou menor intensidade nas cidades existentes. Esta breve aproximação histórica contextualiza o modelo institucional que funda a maneira de conceber e lidar com a cidade contemporânea. O modernismo vai trazer no começo do século XX uma série de conceitos e instituir diversos paradigmas que, associados às vicissitudes político-econômicas, formatam ainda hoje a maneira de ordenar as cidades. Mesmo que superficial, este preâmbulo nos é suficiente para levantarmos algumas questões sobre as quais gostaríamos de discutir. Na cidade moderna, a prerrogativa do planejamento urbano é de autoridade do Estado, enquanto ao Mercado cabe investir em empreendimentos que respondam às demandas econômicas. Para além de extensas discussões, trazidas a partir da situação hegemônica do Estado e do Mercado na formação da cidade, sobre a relação entre ambos e sobre a lógica do capital versus o direito à cidade, uma questão resta latente: quem é o sujeito para esta vertente hegemônica de desenvolvimento urbano? Tanto a administração pública, quanto a administração privada, nos termos de Habermas, são ações instrumentais que buscam a reprodução material da sociedade. Do ponto de vista urbano, no modelo hegemônico apresentado, as intenções fundamentais destas ações instrumentais estão em manter a condição urbana mínima suficiente para a execução das funções sociais; e dar resposta às demandas econômicas, gerando maiores lucros, respectivamente. A iniciativa em ambos os casos vem de instituições que mantém sua hegemonia na formação urbana através do poder político e econômico, de maneira que movimentos que buscam formas alternativas de transformação da cidade – como aqueles por moradia, por transporte público e trabalho – encontram enormes barreiras para suas ações. Neste modelo, o sujeito é tomado pelo Estado como ator de determinadas funções urbanas – aquele que habita, aquele que trabalha, aquele que se diverte, aquele que circula – e pelo Mercado como consumidor de bens e serviços. Para ambos, há a consideração da pessoa em

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VII Carta ao mediador

suas supostas necessidades e vontades. É assim que o “bairro” moderno se forma, agrupando hospitais, escolas, centros comerciais, etc. a conjuntos habitacionais e articulando bairros de zonas diferentes, com funções diferentes, através de grandes avenidas. Teoricamente, espera-se uma determinada forma de apropriação destes bairros pela sociedade, de maneira que seu resultado final seria ideal. As intenções das ações do Estado e do Mercado residem antes em conformar a cidade mínima para o cumprimento das funções urbanas, de um lado, e de oferecer produtos e serviços que gerem maiores lucros, de outro, de forma que a consciência e busca real dos sujeitos por experiências profundas de vida são padronizadas em forma de necessidades básicas e demandas de consumo. A hegemonia se mantém, então, sem que o sujeito em sua integralidade e complexidade precise ser envolvido. Portanto, chegamos à avaliação de que esta vertente se reproduz como hegemônica através de experiências de distensão, conclusão que muitas vezes é reforçada pelo fracasso retumbante de conjuntos urbanos que teoricamente seriam perfeitos, 15. Para mais informações, recomenda-se o documentário “The Pruitt Igoe Mith”, de Chad Freidrichs (2011), ressaltando que não estamos aqui discutindo o declínio do modernismo, mas seu desalinhamento com questões mais complexas da sociedade.

16. Jacobs, Jane. Morte e vida de grandes cidades, 1961 (p.4)

como o emblemático caso de Pruitt Igoe, em St. Louis, nos Estados Unidos 15. A primeira crítica contundente a este modelo é de Jane Jacobs, na década de 60. Nas palavras da autora canadense, “num número cada vez maior de cidades, tornam-se decadentes justamente as regiões onde menos se espera que isso aconteça, à luz da teoria do planejamento urbano”. E completa: “fenômeno menos percebido, mas igualmente significativo, num numero cada vez maior de cidades, as regiões mais suscetíveis à decadência, segundo a mesma teoria, recusam-se a decair” 16. Jacobs diz que arquitetos do desenho urbano e planejadores não desprezam conscientemente a importância de conhecer a realidade das coisas. Suas intenções são muitas vezes exemplares, contudo, entregam-se com tal devoção aos postulados modernistas sobre como a sociedade e a cidade deveriam funcionar que,

17. Idem (p.6)

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“quando uma realidade contraditória se interpõe, ameaçando destruir o aprendizado adquirido a duras penas, eles colocam a realidade de lado”

17

.


Cidade

A autora da força ao movimento que opõe o idealismo moderno à realidade complexa e inaugura a vertente que lidará com experiências baseadas na diversidade, na nutrição de relações sociais densas e de estímulo à vitalidade urbana. O conhecimento da realidade, das especificidades e vontades da comunidade onde se realizará uma intervenção passa a ser central nessa nova forma de lidar com o desenvolvimento da cidade. Não se pode partir de uma conformação a priori das necessidades sociais, uma vez que sua realidade é muito mais complexa e coloca em xeque qualquer proposta de experiência que a ignore. O pós-modernismo nasce não como “um estilo singular, mas, antes, a percepção de integrar um período marcado pelo pluralismo” 18. A multiplicidade de visões caminha em diversas direções nas décadas subsequentes, das mais

18. Nesbitt, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura (p16)

próximas ao modernismo às mais radicais, chegando ao desconstrucionismo pós-estruturalista de Eisenman e Tschumi, por exemplo, que dissolve fronteiras disciplinares e defende que o significado preciso de qualquer signo é impossível de ser determinado, ou seja, a análise da própria realidade não seria precisa. Mesmo que concepções menos radicais dentro do pós-modernismo sejam parcialmente apropriadas por administrações públicas, que gradualmente se abrem à consulta e participação popular na redação dos planos de suas cidades, paradigmas modernos permanecem hegemônicos. “Essa prática corrente, que acentua a síntese, a harmonia, a composição de elementos e a aparente coincidência de partes potencialmente distintas, se torna alienada da sua cultura externa, das condições culturais contemporâneas”

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e permanece reproduzindo o afastamento entre experiências do viver cotidiano e da profun-

19. Tschumi, Bernard. Architecture and disjunction (p.206)

didade da vida enquanto suas instituições promotoras, Estado e Mercado, não tiverem de se adaptar frente à consciência e mobilização social. É nesta linha que Richard Sennet analisa a história da cidade sob a perspectiva da experiência

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corporal do povo, dizendo logo na introdução de seu livro que urbanistas e arquitetos moder20. Sennet, Richard. Carne e pedra

nos tinham de alguma maneira perdido a conexão com o corpo humano 20. As novas vertentes, fundadas na consciência desta perda de conexão não apenas com o corpo, mas com muitas dimensões da complexidade do sujeito, buscam a reconexão em sua prática. A partir dessa linha de raciocínio, é fácil fazer o paralelo com nossa análise de que são vertentes que tendem a realizar experiências de integração em resposta àquelas de distensão realizadas pelos modelos que permanecem hegemônicos. Apoiando a colocação de Sennet, Jan Gehl, arquiteto dinamarquês algumas vezes chamado de “Jane Jacobs nórdico”, diz que, por décadas, a dimensão humana fora negligenciada no plane-

21. Gehl, Jan. Cities for people

jamento urbano. Seu conceito de cidades para pessoas

21

se opõe à ideologia dominante que

coloca pouca prioridade ao encontro social, ao espaço público e à experiência do pedestre, bem como gradualmente desloca a atenção do conjunto urbano e de espaços comuns a edifícios individuais e introvertidos. Cidades para pessoas ressalta a vida entre edifícios e as experiências urbanas que se pode criar por intervenções na escala da pessoa e pela pessoa. Gehl cria em Copenhagen uma série de critérios para avaliar as experiências geradas por suas intervenções, realizando contagens de fluxo, medições de tempo de permanência, avaliação de tipos de interação, etc. Mesmo sendo uma vertente ainda bastante focada na figura do técnico, este é colocado em posição equilibrada ao usuário, que participa do processo de concepção, cada qual em seu papel. Desta forma, Gehl também propõe metodologias de leitura urbana e participação da comunidade da definição das possíveis experiências que poderiam ocorrer no local. A intenção colocada nas intervenções propostas por estas vertentes está, como se vê, na busca pelo máximo envolvimento do sujeito, que até certo ponto poderia ser mensurado por critérios como os apresentados. A pergunta “cidades para quem?” é respondida nas práticas trazidas pela resposta “para pessoas e pelas pessoas”. Assim, pressuposições dão espaço ao entendimento e determinações técnicas dão espaço à concepção colaborativa, de forma que alguns fenômenos inesperados passam a ocorrer, como o aumento significativo no uso da bicicleta como meio de transporte em Copenhagen, mesmo nos meses de extremo frio.

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Cidade

Desta forma, são vertentes que reagem à hegemonia das vertentes que se reproduzem pela distensão, propondo metodologias e intervenções urbanas que sejam significativas ao sujeito, de forma que este se apropria da cidade com maior profundidade e cuidado. Parte-se da escala da pessoa e de suas vontades de experiências de vida à escala global da cidade, modificando-se o paradigma modernista de justaposição de funções urbanas 22 . De forma semelhante, intervenções pontuais com este mesmo intuito começam a ser realizadas por movimentos da própria sociedade, ocupando espaços públicos de formas alternativas às tradicionais e colocando em pauta a maneira como construímos nossas experiências urbanas. Não a toa o processo urbanístico contra hegemônico pode ser visto como democrático e afinado com a vertente contra hegemônica discutida a seguir.

22. Importante ressaltar que há avanços na aproximação entre algumas administrações públicas e vertentes que buscam experiências de integração, como vem ocorrendo na parceria entre a prefeitura de São Paulo e o escritório de Jan Gehl para o desenvolvimento do novo Plano Diretor do município.

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Política É nas palavras de Aristóteles que o ser humano passa a ser compreendido como ser político, dotado de desejos e afecções colocados em contato direto no espaço múltiplo da cidade, onde pode desenvolver suas potencialidades. O filósofo considerava a complexidade do sujeito em suas discussões sobre a ética e o Estado, procurando respostas para a natureza da moral que explicariam os rumos de uma sociedade e a busca pelo melhor governo. O objetivo da política seria, então, descobrir em primeiro lugar a maneira de viver que levaria à felicidade e em seguida o formato das instituições capazes de assegurar aquelas formas de viver. Não à toa o raciocínio aristotélico se encaixa em nossa discussão sobre a relação entre experiências de vida e viver, bem como a oposição de Habermas entre sistema e mundo da vida. Enquanto por um lado a vida diz respeito à integralidade do sujeito em sua dimensão metafísica; por outro, seu entendimento, desenvolvido através da oposição racional de ideias, busca modelos para experiências cotidianas que o levariam a viver essa integralidade, ou felicidade, para Aristóteles. Fundamental então perceber a conexão indissociável entre política e cidade, ideia básica tanto para a filosofia grega quanto para nossas especulações acerca de uma reação às experiências de distensão. 49


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A cidade viria antes do indivíduo, uma vez que o todo identificaria as partes pelas suas diferenças: só me reconheço como “eu” a partir de minha diferenciação para com o “outro”. “A cidade não é constituída somente de numerosos seres humanos, mas é também 23. Aristóteles. Política (Livro II, Capítulo I)

composta de seres humanos especificamente diferentes” 23. Assim, é na cidade que as diferentes posições sobre os caminhos à experiência da integralidade da vida, a saber, as melhores instituições, inevitavelmente se encontram e entram em oposição, colocando-se politicamente em busca de um governo único que responda a essa multiplicidade de visões. Muitos foram os formatos e estruturas políticas desenvolvidas ao longo da história das sociedades. Modelos mantidos por instituições dotadas de recursos e grande poder para se reproduzirem. Relembrando termos já apresentados, as ações instrumentais dos Estados buscam a reprodução material da sociedade e precisam ser balizados pela ação comunicativa para que gerem experiências de vida. Estas duas formas de ação, instrumental e comunicativa, possuindo lógicas diferentes, são distintas e muitas vezes opostas, cuja relação precisa ser mediada. Em outros termos, de um lado temos a política presente na discussão racional entre sujeitos complexos e do outro temos a política presente na ação administrativa dos governos e legisladores. Buscando discutir as vertentes hegemônicas de nossos tempos, façamos um salto que atravessa historicamente a formação de reinos, feudos, estados nacionais, colônias, passando da sociedade tradicional à nossa sociedade moderna. De acordo com Nobre, a sociologia entende a sociedade tradicional como aquela em que todos os domínios da vida social estão baseados em valores e dogmas incontestáveis, que dão referência às ações sociais em uma moral única. Desta forma, a ordem social existente é inquestionável e a unidade política estabelecida é tida como a única possível, de forma que o dissenso e a discordância resultam na exclusão daquele que questiona a comunidade. A passagem da sociedade tradicional para a moderna se dá quando parcelas significativas da sociedade começam a discordar e questionar essa moral única, expressando-se das mais diversas formas e nos mais variados domínios sociais, o que força sua reorganização. Desta maneira,

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Política

na sociedade moderna – capitalista – há a convivência de uma pluralidade de pontos de vista e morais muitas vezes incompatíveis, o que vai causar conflitos entre visões diferentes sobre quais seriam as instituições adequadas para gerar as experiências cotidianas mais afinadas às vontades de experiências de vida. Para responder a estes problemas, a sociedade moderna instaura mecanismos de legitimação baseados no contrato (ou pacto) social, instalando-se desta forma a sociedade civil e a figura do cidadão, “membro de um corpo político fundado no consentimento de todos” 24 . Vivemos nessa situação política instável de consensos e dissensos sobre o formato das institui-

24. Nobre, Marcos. Direito e democracia (p18)

ções que geram experiências cotidianas a cada sujeito, levando à criação de diversos formatos de governo e regras que “não podem ter outra base de legitimidade do que a vontade destes indivíduos iguais. Este poder e estas regras são suportados por todos os membros da sociedade e restringem a todos. Podem, portanto, ser legítimas apenas enquanto nascem da vontade de todos e representam a vontade de todos” 25. Esta seria a essência do modelo democrático, realizado pelo e para o povo.

25. Manin, Bernard. On legitimacy and political deliberation (p340) - Tradução livre

Chegamos à vertente que gostaríamos de discutir, por mais que ela se mostre em uma grande variedade de modelos e instituída em uma parte específica do mundo, que muitas vezes busca difundi-la como se fosse um ideal a ser alcançado por todas as sociedades, instaurando modelos muitas vezes inadequados a comunidades totalmente distintas e criando mais problemas do que de fato experiências de integração entre o viver e a vida. Analisando a natureza das regras e práticas das instituições que dão forma às democracias modernas – legislaturas, tribunais, partidos, etc. – Arend Lijphart separa estas democracias em dois modelos: o majoritário e o consensual. Enquanto no primeiro a maioria simples é suficiente para que o governo se forme e possa governar, o segundo busca o consenso entre a maior parte da população, tendendo a sua totalidade. Dois extremos que balizariam a posição de todos os modelos democráticos. O autor defende explicitamente o modelo consensual, dizendo que este tende a ser mais de-

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mocrático – ou seja, legítimo – e mais “generoso e benevolente”, tendo maior probabilidade de constituir um estado de bem-estar; melhor proteção ao meio ambiente; menores índices pri26. Lijphart, Arend. Modelos de democracia (p.309)

sionais; e menor chance de adotar a pena de morte 26. Contudo, assume que “existe na ciência política uma tendência surpreendentemente forte e persistente de se associar democracia somente ao modelo majoritário, e de não reconhecer a democracia de consenso como uma alter-

27. Idem (p.21)

nativa igualmente legítima” 27. Dadas as variáveis consideradas pelo autor para defender sua tese, o modelo consensual “puro” de democracia contaria com: distribuição do Poder Executivo em amplas coalizões; relações equilibradas entre poder Executivo e Legislativo; sistemas multipartidários; sistemas eleitorais com representação proporcional; sistemas coordenados e “corporativistas” visando formar pactos de coalizão; governo federal e descentralizado; Poder Legislativo dividido em duas casas igualmente fortes; Constituições rígidas; existência de uma Suprema Corte judiciária responsável pela salvaguarda da Constituição; Bancos Centrais independentes. Curioso e quase inevitável pensar no caso brasileiro a partir destas características e questionarmos os resultados políticos que vemos no Brasil, chegando por fim a uma pergunta: a política brasileira é consensual entre quem? Nesta discussão, precisamos começar nos perguntando quem está envolvido na busca pelo consenso e, quanto a isso, temos uma diferença fundamental entre democracia representativa e democracia participativa. A noção de sujeito e de cidadão para uma e para a outra são muito diferentes e fazem as instituições democráticas caminharem em direção a experiências práticas – políticas públicas, obras estatais, leis, etc. – profundamente distintas, de forma mais ou menos legítima. Como discutimos, a sociedade moderna lida com sua instabilidade – causada pelo contato entre diversos pontos de vista contrastantes – através do pacto social que instaura a sociedade civil, um corpo político onde todos consentem e legitimam o governo como conjunto de instituições que devem gerar experiências cotidianas afinadas à vontade de experiências profun-

28. Manin, Bernard. On legitimacy and political deliberation (p341) - Tradução livre

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das de vida. Sendo assim, e lembrando-se das palavras de Manin de que “a unanimidade é base da legitimidade” 28, a democracia deveria considerar a busca de cada cidadão por experiências profundas de vida, a soma e o consenso entre todas as vontades individuais.


Política

Para viabilizar esta difícil tarefa, “a maior parte das teorias democráticas, contudo, são preocupadas não apenas com legitimidade, mas também com eficiência” 29.

29. Idem

A extrema dificuldade de conciliar legitimidade pela unanimidade com as necessidades práticas da vida política faz com que as democracias variem entre níveis de participação direta da sociedade e de estruturas de representação. Assim, a rigor, podem existir modelos majoritários representativos e participativos; bem como modelos consensuais representativos e participativos. Os participativos, envolvendo diretamente o sujeito, fazem com que ele se posicione politicamente com toda sua complexidade, explorando e expondo suas nuances e vontades. Por outro lado, os representativos incluem um interlocutor entre o sujeito e o processo político, preocupados não apenas com a questão da legitimidade, mas também com questões práticas da decisão e eficiência política. As dificuldades de conciliação nos levam a uma abordagem mais crua e prática sobre o processo de tomada de decisões, retórica típica da ação instrumental de um sistema político que busca sua própria manutenção e a reprodução da sociedade. Não à toa essa abordagem tende a defender modelos majoritários e representativos: sua ação é mais “simples” e eficiente uma vez que as decisões não precisam partir da complexidade e vontade de experiências de vida de cada cidadão. O sujeito, uma vez tomado pelo sistema em sua faceta de “eleitor”, desmascara que a intenção do modelo democrático representativo não está em envolvê-lo profundamente no processo, mas tê-lo como recurso de legitimação. Desta maneira, o modelo consensual representativo envolve e responde ao eleitor apenas até o nível em que este procura autonomamente se envolver, questionar e demandar. Sendo que quando busca um envolvimento mais profundo, a intervenção política da sociedade organizada encontra uma série de barreiras à sua participação direta na democracia representativa institucionalizada, onde o consenso é procurado fundamentalmente entre os grupos de representantes. Portanto, este modelo democrático se resguarda em sua hegemonia, por um lado através de mecanismos de defesa legitimados pelo pacto social, sob a prerrogativa da eficiência e da viabilidade prática; e por outro através da produção de experiências de participação

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mínima do sujeito, a saber, o voto e no máximo a consulta popular, acabando por reforçar a 30. Talvez por isso tenhamos tanto no Brasil leis que “não pegam”.

distensão 30. Contudo, como toda vertente hegemônica tende a ter seu avesso, surgem na sociedade moderna ideologias e vertentes de democracia que podemos chamar de contra hegemônicas, baseadas fundamentalmente no princípio da participação. Talvez uma destas primeiras vozes seja a de Rousseau, em seu texto sobre o contrato social, onde rejeita qualquer representação, formação de partidos ou mesmo de grupos de interesse. Sua defesa intransigente é da legitimação pela unanimidade, afastando-se até certo ponto da realidade que limita a ação dos sujeitos, principalmente no que diz respeito ao acesso a informação. Manin, questionando a ideia do filósofo iluminista, diz que quando o indivíduo toma uma decisão sobre a sociedade, nunca pode recorrer a toda informação necessária. Seu acesso é sempre fragmentado e incompleto e, mesmo assim, deve levar a uma decisão dentro de um espaço limitado de tempo. Desta forma, a ação política permanece baseada na incerteza e o momento deliberativo pela coletividade envolve a troca de evidências relativas às soluções

31. Manin, Bernard. On legitimacy and political deliberation (p.349) - Tradução livre

propostas, de forma que a “deliberação é em si um procedimento para tornar-se informado” 31. Se os indivíduos não teriam uma vontade definida antes do debate e da deliberação, e seu acesso à informação será sempre parcial para escolher qual instituição vão defender – acreditando que esta ou aquela gerará experiências cotidianas alinhadas às suas vontades de experiências de vida – então como pode a legitimidade ser baseada na vontade, tão instável quanto a própria variedade de vontades na sociedade? Manin responde, dizendo que “a fonte de legitimidade não é a vontade pré-determinada dos indivíduos, mas sim o processo de sua formação, isto é, a deliberação em si. [...] Uma decisão legítima não representa a vontade de

32. Idem (p.352)

todos, mas é um dos resultados da deliberação de todos” 32. Portanto, a intenção destas vertentes contra hegemônicas de democracia baseia-se no maior envolvimento possível do sujeito, chegando ao ponto do objetivo do processo deliberativo estar mais na argumentação e na ação comunicativa do que exclusivamente na decisão final. Desta forma, não excluem a representação ou o voto, tendo neles recursos para lidar com as limitações práticas do processo político, contudo, estes se fazem subordinados e conectados

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Política

diretamente à participação direta de cada cidadão no processo deliberativo. Sendo assim, os representantes e instituições democráticas não são de forma alguma dissolvidos, permanecem como ações instrumentais e administrativas fundamentais ao desenvolvimento de experiências cotidianas na sociedade, mas são destituídas de sua hegemonia sobre a deliberação e o consenso. A consequente necessidade de mediação entre a ação instrumental do Estado e a ação comunicativa da sociedade, de forma que não haja a “colonização” da segunda pela primeira, como apresentado no capítulo anterior, faz com que Habermas defenda procedimentos mediadores, dando destaque ao direito como seu promotor. No que cabe o desafio de encontrar as estruturas tanto de mediação entre a sociedade e o Estado quanto entre os próprios sujeitos em fóruns deliberativos, fica clara a oposição entre os modelos hegemônicos e contra hegemônicos apresentados, com um agravante: uma vez que a legitimidade política é baseada na unanimidade, dois sistemas distintos não podem conviver. Assim, a reação aos modelos que reforçam experiências de distensão através do fraco envolvimento do sujeito nos processos políticos envolve a necessidade de ruptura. O desafio então se potencializa em democracias representativas muito fechadas. Contudo, pela inevitável crise de legitimidade destes modelos, muitos incorporam gradualmente aberturas à participação direta da sociedade como forma de se manterem hegemônicos. Lembrando que vertentes que reforçam a distensão geram experiências minimamente significativas ao sujeito, só até o ponto de viabilizarem seu consentimento. Este, por exemplo, é o caso do Brasil depois da Constituição de 1988. Mesmo sendo um modelo democrático representativo com poucas aberturas cotidianas de participação direta da sociedade, a democracia brasileira tem muitos mecanismos que permitem esta participação, mas muitas vezes são pouco utilizados ou mesmo desconhecidos. Portanto, vertentes e procedimentos contra hegemônicos podem utilizar estes mecanismos para iniciarem movimentos de reação à hegemonia do modelo mais puramente representativo. Certamente, os fóruns necessários neste caso pressupõem um conjunto social que consiga dialogar. Como atesta Manin, estes fóruns “também requerem certo grau de instrução e cultura por parte do público”, e continua: “mas eles constituem processos de educação e treinamen-

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VII Carta ao mediador

to em si mesmos. Ampliam os pontos de vista dos cidadãos para além da perspectiva limitada 33. Manin, Bernard. On legitimacy and political deliberation (p.354) - Tradução livre

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de seus negócios privados. [...] As pessoas educam a si próprias” 33. Esta perspectiva de educação para cidadania e através da cidadania, para a formação da consciência da vontade complexa do indivíduo por meio da própria deliberação, será, como se verá, constituinte da vertente contra hegemônica de educação discutida a seguir.


Educação Enquanto o aprendizado talvez seja uma característica humana baseada na transformação do indivíduo ao passar por experiências ao longo de sua vida – e neste sentido pode ser também observado em outras espécies – sua relação com o ensino é essencialmente social. Jaeger diz que a educação é uma consequência natural de comunidades humanas que sentem necessidade de se conservarem, buscando formas de transmitirem e perenizarem sua peculiaridade física e espiritual. “A estrutura de toda a sociedade assenta nas leis e normas escritas e não escritas que a une e une seus membros. Toda educação é assim o resultado da consciência viva de 34. Jaeger, Werner. Paidéia: o lugar dos gregos na história da educação (p4)

uma norma que rege uma comunidade humana” 34. A transformação dos valores de uma dada comunidade condiciona as formas de se reproduzir, transformando sua educação e a inserindo em um contexto histórico, podendo ser periodizada. Momentos históricos de transformações radicais da ordem e dos valores sociais, cuja ruptura com as tradições instaura todo um novo conjunto de paradigmas, inviabilizam qualquer

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ação educativa até que a nova ordem se solidifique e busque se perenizar. De maneira contrária, a rigidez excessiva de uma cultura pode atestar uma falsa estabilidade que acaba gerando contradições internas até o seu colapso. Discutindo o caso grego clássico, Jaeger diz que ao longo de seu desenvolvimento, que dará origem à história ocidental, a sociedade grega aprofunda cada vez mais a consciência de que 35. Idem (p.7)

sua finalidade última e particular seria a “formação de um elevado tipo de Homem” 35. Desta forma, na medida em que suas especificidades e valores estão no aprofundamento do autoconhecimento, perenizar a sociedade significa permitir este desenvolvimento cada vez mais profundo, de maneira que a educação representa o sentido de todo seu esforço como comunidade, sendo a cultura a totalidade desta obra. Mas, mesmo para os gregos, a noção de sociedade como corpo político baseado em um conjunto de normas e valores que cria e legitima suas instituições – e sua educação – para fazer valer sua finalidade e se perenizar, não é imune a relações de desigualdade e dominação entre grupos sociais. Mesmo em seu auge, a democracia ateniense não deixou de ser aristocrática e baseada em uma profunda segregação entre cidadãos e não-cidadãos. A educação, portanto, faz-se essencialmente política na medida em que é de interesse das classes dominantes reproduzir uma estrutura social e um conjunto de valores que as conservem em sua posição. A cultura que se cria e a ação pedagógica que se institui são então dependentes destas relações de dominação. A força daqueles que dominam permite o que Bourdieu chama de “violência simbólica” na reprodução de valores, normas e especificidades convenientes às camadas dirigentes. “A ação pedagógica é, objetivamente, violência simbólica na medida em que é a

36. Bourdieu, Pièrre. Reproduction (p5) - Tradução livre

imposição de uma cultura arbitrária por um poder arbitrário” 36. Esta arbitrariedade decorre da seleção dos significados ser imposta ao invés de residir em uma “natureza das coisas” ou em uma “natureza do homem”, de forma que o reconhecimento de sua legitimidade como autoridade pedagógica – fundamental para reproduzir o conjunto social sob determinado prisma – está baseado no consentimento da sociedade a autoridade de instituições especializadas até certo ponto autônomas, legitimadas por prerrogativas específicas. Ao longo da história da pedagogia, estas instituições educacionais e seus respectivos corpos

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Educação

de especialistas ganharam posição privilegiada e central no processo educativo por uma série de fatores. Sua periodização nos conta dos vários momentos da cultura ocidental, passando da superação do modelo clássico antigo ao medieval, baseado na fé cristã; a criação da escolástica; as primeiras universidades e os primeiros sistemas de ensino formais; o “renascimento” da centralidade no Homem e das ciências; as primeiras ideias de universalização da educação no iluminismo, até a consolidação dos modelos que chegaram a nós, pós Revolução Francesa e formação do Estado burguês. Cada um destes momentos da pedagogia traduz situações distintas de relações de poder e de intenções de reprodução de valores sociais. Neste processo, a escola e o professor vão garantindo sua hegemonia como autoridades pedagógicas inquestionáveis, ou pela incorporação – inculcação, para Bourdieu – de sua legitimidade através da submissão do sujeito a mecanismos como o diploma; ou de exclusão de outras formas educativas como igualmente legítimas. Intenções como a “formação do melhor tipo de Homem”, educação para a vida ou para a sabedoria, em acepções mais humanistas, emancipatórias e igualitárias são deixadas em segundo plano, enquanto “tudo tende a mostrar que [o sistema escolar] é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural” 37. Neste sentido, a prerrogativa liberal do Estado burguês e a defesa das liberdades individuais

37. Bourdieu, Pièrre. Escritos da educação (p41)

vêm reforçar a legitimidade da ação do mestre na escola como viabilizador de uma pretensa igualdade aspirada por todos. Se por um lado o corpo de profissionais garante autonomia para a escola realizar suas ações, dando uma falsa impressão de independência, por outro ela permanece dependente dos valores e do conjunto de normas nos quais está inserida. Assim, a sociedade capitalista vai valorizar a instituição escolar em sua face instrutiva e técnica, gerando leis de obrigatoriedade escolar já no século XVIII, universalizando seu acesso pela sociedade nos séculos subsequentes e difundindo mundialmente estruturas nacionais de planejamento educacional, buscando ampliar o desenvolvimento de tecnologias, favorecendo sua posição estratégica; ampliar a quali59


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ficação da mão-de-obra, aprimorando sua competitividade; e, especialmente em um contexto 38. Ver Almeida, Ana Maria. O assalto à educação pelos economistas

de economias avançadas já no século XX, maximizar o produto interno bruto da nação 38. Nas palavras de Bourdieu: “um dos efeitos menos notados da escolarização obrigatória é que ela consegue obter das classes dominadas um reconhecimento de legitimidade de conhecimento e know-how, implicando a desvalorização do conhecimento e do know-how que elas efetivamente dominam, proporcionando assim mercado para materiais e produtos especialmente simbólicos dos quais os meios de produção são virtualmente mono-

39. Bourdieu, Pièrre. Reproduction (p42) - Tradução livre

polizados pelas camadas dominantes” 39. As camadas dominadas (ou dirigidas) acabam por desvalorizar seu próprio conhecimento, consentindo à manutenção de sua dominação. Neste sentido, um dos autores mais críticos da escolarização no século XX, já citado no capítulo anterior, é Ivan Illich. O autor discute que a maioria das pessoas na sociedade tem seu direito de aprender cortado pela obrigação de frequentar a escola, de forma que o aluno é “‘escolarizado’ a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com edu-

40. Illich, Ivan. Sociedade sem escolas (p21)

cação, diploma com competência” 40. Illich defende que o ethos social – conjunto de valores implícitos e profundamente internalizados pela sociedade – precisaria ser ‘desescolarizado’. Corroborando com a crítica de Bourdieu, diz que “qualquer simples necessidade, para a qual foi encontrada resposta institucional,

41. Idem (p.24)

permite a invenção de nova classe de pobres e nova definição de pobreza” 41. Vemos que as vertentes educacionais que historicamente se consolidam como hegemônicas, quando vinculadas a relações sociais de desigualdade, reproduzem internamente os mesmos padrões de desigualdade, tese apoiada por Bourdieu. Estes padrões ficam explícitos, por exemplo, na tradicional distância entre o professor e o aluno; a autoridade do mestre e a subordinação do aprendiz; o controle do ambiente escolar e a liberdade quase anárquica do espaço

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público; o procedimento da técnica didática e a fluidez da investigação; a heteronomia da explicação e a autonomia da pesquisa, etc. Em outras palavras, a intenção das ações realizadas por estas vertentes reside antes em reproduzir valores que, não por acaso, são convenientes às classes dominantes do que em envolver profundamente o sujeito em seu próprio processo de aprendizado. A “ordem explicadora” presente nestas vertentes, como colocado por Rancière, retira do aluno a autonomia de aprender por sua própria inteligência e institui a necessidade da explicação do professor, como se o sujeito fosse incapaz de aprender sem ela. A desigualdade se instaura como se houvesse uma inteligência maior, a do mestre, e uma menor, a do aluno, sendo uma subordinada a outra. Este seria o princípio do “embrutecimento” apresentado por Rancière, causado pela internalização por parte do aluno da ideia de que “nada compreenderá, a menos que lhe expliquem” 42, legitimando a ação do mestre como explicador imprescindível. Há, então, proximidade entre as

42. Rancière, Jacques. O mestre ignorante (p21)

ideias de embrutecimento para Rancière e escolarização para Illich. A autoridade pedagógica, a relação de dependência e a legitimação da desigualdade geram experiências educativas que embrutecem e ofuscam a inata autonomia do sujeito em aprender. Mesmo que o mestre culto não gere o embrutecimento intencionalmente, e sim apenas pela reprodução de sua tradicional “ordem explicadora”, a ação pedagógica fundada nestas relações de desigualdade toma o aluno como recipiente de conhecimento, onde seriam depositados os saberes do mestre. Quem desenvolve esta metáfora é Paulo Freire, denominando essa vertente educativa de “bancária”, como apresentado no capítulo anterior 43. Inevitável concluirmos avaliando, segundo critérios previamente expostos, que estas verten-

43. Ver Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido.

tes reforçam a distensão entre as experiências educativas que promovem e o potencial de experiências profundas de aprendizado, com um agravante: no cerne de sua ação reside o enfraquecimento do sujeito como agente ativo de transformação, potencializando ainda mais a distensão. A sociedade escolarizada reforça a hegemonia de suas instituições não apenas pelo consenso passivo do conjunto social, que aceita inconscientemente a reprodução das distensões, mas principalmente através da internalização de sua aceitação acrítica e de seu embrutecimento,

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conformando-se em sua posição passiva, sujeitada mais facilmente às reproduções inerentes ao sistema. Desta maneira, a educação se transforma num poderoso mecanismo de reprodução da hegemonia de vertentes que reforçam a distensão. São muitas as vertentes que apresentam, há séculos, formas de reação a estas vertentes hegemônicas fundadas na desigualdade e na heteronomia. De maneira geral, as ideias pedagógicas sempre foram permeadas de um lado pela instrução ou formação técnica, mas por outro o desenvolvimento humano mais profundo do sujeito. Mesmo pensadores da educação que muitas vezes são vistos como tradicionais – e que de fato acabam ajudando a reforçar práticas educativas embrutecedoras, como é o caso de Herbart ou Skinner – discutiam em seus escritos que o sujeito é maior do que um receptáculo inerte de conhecimento. Ao menos nas pedagogias fundadas na centralidade do Homem, essa constatação nunca deixou de ser considerada com maior ou menor carga de importância. Contudo, vertentes cuja proposta de experiência educativa envolve o sujeito integral em seu próprio processo de aprendizado, não como uma consideração periférica, mas como essência de sua intenção pedagógica, resultam em todo um processo inverso àquele gerado pelas vertentes que reforçam a distensão. Enquanto estas levam o sujeito ao embrutecimento e facilitam o consentimento passivo à hegemonia das instituições consolidadas, aquelas levam o sujeito a sua emancipação intelectual, aprofundamento de sua autonomia crítica e desenvolvimento de suas características e qualidades específicas. Coelho, comentando Jaeger, diz que se pode encontrar já entre os gregos uma concepção ampliada de educação, onde “há um sentido de completude que forma, de modo integral, o Ser do que é humano 44. Coelho, Lígia Martha. História da educação integral. In INEP, Em aberto 80 (p85) Brasília, 2009.

e que não se descola de uma visão social de mundo” 44. Outras concepções de educação do Ser integral podem ser encontradas em escritos de Rousseau, chegando até anarquistas como Bakunin. Ao longo do século XX, uma série de correntes pedagógicas, passando pela educação democrática de John Dewey, pela Escola Nova e por educadores como Anísio Teixeira, caminha a uma consolidação do conceito de educação integral.

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Educação

Este conceito será desenvolvido em algumas linhas, desde as mais incorporadas pelo sistema e levadas a cabo em políticas públicas que promovem atividades complementares no contra turno escolar – como é o caso do Programa Mais Educação, no Brasil – até noções mais ampliadas, que entendem a “integralidade” como transcendente ao espaço e à instituição escolar, bem como a qualquer relação de subordinação a currículos ou professores. Neste sentido, mesmo sem ser identificado como parte de qualquer corrente de educação integral, Paulo Freire, ao defender a educação para a libertação e para a autonomia, reforça a relação democrática e essencialmente participativa que deve permear o processo educativo. A ideia de educação democrática, começando no caso emblemático de Summerhill (mesmo que esta nunca tenha se identificado como uma “escola democrática”), passa a reformatar o próprio sentido de escola, que em muitos casos deixa de ser sinônimo de dominação, como é o caso da Hadera Democratic School, em Israel, onde salas de aula dão lugar a centros de aprendizagem 45. Esta, por sua vez, também é representativa de outro movimento que rompe com a lógica tra-

45. Hecht, Yaacov. Democratic Education (p61)

dicional da escola. O Movimento das Cidades Educadoras traz à pauta a ideia de Dewey de que a educação ocorre ao longo de todas as experiências que passamos em vida, logo, educação e vida se confundem em suas relações temporais e espaciais de experiências. Sendo assim, as cidades educadoras colocam como perspectiva de que todo espaço e todo momento pode ser educativo e devem ser considerados como tal. A Rede das Cidades Educadoras foi criada em Barcelona, na década de 1990, “concebido como instrumento gerador de um processo de participação cidadã que possibilite a criação de um consenso sobre prioridades educativas e a assunção de responsabilidades coletivas em matéria de educação, já que entende a participação como base da convivência democrática” 46. Sua pedagogia urbana envolveria todo um conjunto de atores para além daqueles tradicionalmente constituídos e hegemônicos, inclusive reconhecendo a legitimidade de momentos educativos informais e não-formais, como expõe Jaume Trilla 47.

46. Gadotti, Moacir. Cidade Educadora (p28)

47. Ver Trilla, Jaume. Educação não-formal.

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Observa-se que o conceito de cidade educadora é complementar ao de educação democrática, e considera o ser integral como sujeito ativo e participativo. Enquanto, apoiado por Dewey, toda cidade seria educativa enquanto toda experiência geraria algum aprendizado, nem toda cidade seria educadora na medida em que a intenção educadora implica decisão política quanto àquilo que se educa, conforme já discutimos. O envolvimento do sujeito na deliberação da educação que se quer, logo de qual sociedade se reproduz, insere todo um novo conjunto de paradigmas no processo educativo. Não à toa Bourdieu diz que a legitimação da autoridade pedagógica envolve a exclusão de 48. Interessante notar que, dada a autonomia escolar, de maneira geral apenas escolas privadas, destinadas às camadas dominantes, é que conseguem legitimidade para desenvolver práticas educativas emancipatórias. Raros são os casos de escolas públicas que o fazem.

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outras formas educativas como igualmente legítimas 48. Estas vertentes contra hegemônicas, ao levar o educando ao esclarecimento e ao desenvolvimento de sua autonomia, tende a gerar um sujeito crítico, ativo e consciente, que passa a poder reconhecer o afastamento entre as experiências do viver cotidiano geradas pelas instituições hegemônicas e suas vontades profundas de vida, tornando-se um potencial questionador e inimigo do sistema, colocando-o em risco.


Vertentes contra hegemônicas Após abordarmos estes três campos de experiência e discutirmos sobre suas respectivas vertentes hegemônicas e contra hegemônicas, fundamental percebermos a proximidade e alinhamento entre eles. A definição dos objetos dos três campos, a cidade, a política e a educação, já nos mostra profunda proximidade: a cidade seria o espaço onde ocorre o contato e a convivência entre muitas pessoas diferentes, cada qual em sua complexidade, de forma que esta diversidade implica a necessidade política de encontrarem um governo único que responda à vontade de experiências de vida de todos, criando sistemas que buscam reproduzir e aprofundar, através da educação, os valores e a cultura cujos consensos – sejam ativos ou passivos – foram alcançados pelo conjunto social. A cidade seria essencialmente política, a política seria profundamente educativa e dependente da educação, a educação ocorreria em todas as experiências na cidade, de maneira inevitavelmente política e as três seriam componentes inseparáveis no desenvolvimento de experiências de vida. Se continuássemos discutindo campos de experiência, como saúde, economia ou técnica, poderíamos observar que elas também fazem parte desta unidade, o que corrobora 65


VII Carta ao mediador

com nossa tese inicial da necessidade de integração entre as experiências do viver cotidiano, geradas por cada campo de experiência, e as vontades de experiências de vida. Esta natural proximidade é ofuscada pela especialização das instituições hegemônicas que dizem lidar com estes campos, de maneira que seu potencial como unidade é esfacelado. Isso ocorre em função de cada vertente hegemônica, quando reproduz experiências de distensão, estar tomando o sujeito em uma face distinta. Como discutimos, a cidade acaba tomando o sujeito como executor de funções; a política o toma como recurso de legitimação em sua face de eleitor; e a educação o toma como receptáculo de conteúdos já existentes. A pessoa é recortada, de forma que cada instituição lida com uma parte distinta dela. Contudo, ao nos debruçarmos sobre vertentes contra hegemônicas, cujas intenções partem do maior e mais profundo envolvimento possível do sujeito, observa-se que este passa a ser um só, independentemente do campo de experiência em questão. As vertentes contra hegemônicas, ao proporem experiências de integração, lidam com o mesmo sujeito complexo, de maneira que seus contornos como “especialidades” se ampliam e acabam por englobar umas às outras. Mesmo que suas propostas práticas de experiências sejam distintas, dependendo das especificidades de cada campo, sua igual busca por gerar experiências integrais de vida faz com que realizem propostas de ação muito próximas e com grande sinergia, muitas vezes as apresentando inclusive em termos semelhantes, como “participação”, “autonomia”, “liberdade”, etc. Então, nos resta uma dura questão: se muitas destas vertentes contra hegemônicas existem há muito tempo e entre elas há grande sinergia, o que falta para que ganhem vulto e, no mínimo, concorram em igualdade com aquelas que aqui consideramos hegemônicas e promotoras da distensão? Levantamos duas hipóteses para a resposta desta questão. Em primeiro lugar, uma vez que a principal intenção das vertentes hegemônicas seria conservar a sociedade como ela está constituída, mantendo sua posição dominante (lógica coerente à ação instrumental apresentada por Habermas), as experiências que geram já barram politicamente a concorrência de outras vertentes que as ameaçariam. Uma forma simples e clara de verificar esta estratégia de defesa é o discurso, tanto do urbanismo moderno, quanto da demo-

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Vertentes contra hegemônicas

cracia representativa e da escolarização, de que vertentes que buscam o envolvimento mais profundo do sujeito não seriam viáveis ou eficientes. O fatalismo desta “inviabilidade” e a concordância por parte da sociedade corroboram para a perpetuação das práticas hegemônicas. Em segundo lugar estão os processos que garantem e aprofundam o consentimento da sociedade em se manter vivendo experiências cotidianas que não respondem às suas vontades profundas, que também não necessariamente sabe quais são. Estes mecanismos são mais enfáticos do que a dominação através da força, pois envolvem o desenvolvimento da aceitação interna e inconsciente do sujeito. Vamos aprofundar a discussão destes mecanismos. Há diferença entre o mundo de experiências cotidianas que o sujeito já conhece, sobre o qual sabe operar, e o mundo de experiências que não lhe são conhecidas e não lhe parecem dizer respeito. Entre o mundo conhecido e o mundo desconhecido está a zona onde o sujeito pode se desenvolver com auxílio de algum tipo de apoio ou sugestão. É através desta zona que o mundo conhecido pela pessoa se expande, podendo ampliar sua consciência crítica, sua autonomia e reflexão e encontrar quais são suas vontades profundas de experiências de vida. Se entendermos o mundo conhecido como o mundo das experiências das vertentes hegemônicas e o desconhecido como o das contra hegemônicas, podemos concluir que o sujeito não terá motivos para lutar pelas segundas enquanto estas lhe forem muito distantes e incompreensíveis. Enquanto não houver instrumentos ou recursos que permitam apresentar estas experiências ao sujeito, poder se envolver com elas, estas não estarão em sua zona de desenvolvimento e não lhe farão sentido. Também podemos entender este distanciamento, que faz com que o sujeito não veja significado nas experiências de integração até que efetivamente se arrisque a passar por elas, na ideia de continuidade para Dewey 49. O autor diz que uma experiência de aprendizado, para ser efetiva e cative o aluno, precisa ter sequência com relação às experiências vividas anteriormen-

49. Ver Dewey, John. Experience and education

te pelo sujeito, só assim ela lhe fará sentido. Sendo assim, as vertentes contra hegemônicas precisam desenvolver estratégias para se aproximarem gradualmente do sujeito que não reconhece ainda sua legitimidade. Apenas quando o sujeito desenvolver sua própria autonomia e reflexão crítica quanto à dis67


VII Carta ao mediador

tância, antes consentida inconscientemente, entre o que vive no cotidiano e o que gostaria de viver, é que passará efetivamente a criticar vertentes que promovem a distensão e defender aquelas que buscam a integração entre o viver e a vida. Como exemplo, só quando o sujeito perceber que a escola não lhe gera o aprendizado que outras experiências podem gerar e perceber o que ela de fato faz, é que poderá passar a questionar a essência do próprio sistema escolar. Dada a complexidade da pessoa, o desenvolvimento da consciência da distensão é exclusivamente interno a ela e não é algo que lhe possa ser depositado como um conteúdo pré-existente, como tentavam fazer as pedagogias tradicionais. Não é possível a um agente externo intervir objetivamente nessa complexidade, “enformando” a pessoa a ser o que deveria ser. O sujeito precisa aprender a reconhecer a distensão e a mediar a relação entre as experiências que se propõe a viver no dia-a-dia e suas vontades por experiências de vida, de forma a integrá-las: é preciso aprender a viver a vida. Quando consciente desta inalienável liberdade, o sujeito pode individualmente buscar as respostas institucionais mais adequadas às suas vontades, realizando a mediação interna e buscando sua integração: ao invés de aceitar viver a cidade hora como cada função que lhe “convém” (morador, trabalhador, familiar, etc.), pode passar a viver outros momentos e espaços que lhe sejam significativos, inclusive passando a intervir sobre eles; da mesma forma, ao invés de aceitar viver o período eleitoral como momento onde pode exercer seu direito político, pode passar a se organizar politicamente em sua comunidade; e ao invés de aceitar colocar seus filhos em escolas que repetem o mantra de que a formação é importante para entrarem em uma boa faculdade e serem bem sucedido, pode colocá-los em instituições que ampliem sua ação, participação e reflexão crítica quanto à vida, bem como introduzi-los a experiências culturais e educativas externas às escolas. Mas e quando essa mediação interna e a integração entre o viver e a vida não lhe fazem parte da consciência, quando a pessoa ainda não desenvolveu autonomia para integrá-los e ainda não se libertou do fatalismo da distensão? Mesmo que não haja agente externo, distinto da própria pessoa, que possa objetivamente emancipá-la deste falso fatalismo, a reação à distensão precisa esperar que a vida a leve ao esclarecimento ou partir de uma intenção externa ao 68


Vertentes contra hegemônicas

sujeito até que passe a realizá-la autonomamente. Enquanto essa reação é realizada através das próprias experiências das vertentes contra hegemônicas, na medida em que geram experiências de integração envolvendo ao máximo o sujeito, é preciso que haja a ação de um mediador externo que busque colocar a pessoa e as vertentes integradoras em contato através da sugestão. Nas palavras de Carlos Nelson, em sua abordagem de urbanismo presente no livro “A cidade como jogo de cartas”: “O especialista tem de assumir um novo papel dentro de tal perspectiva. Ele é aquele segue a partida com interesse, procura esclarecer dúvidas e pontos obscuros e funciona como mediador, aconselhando a atualização de estatutos e modos de agir, à medida que verifique sua superação” 50. Nesta, como em outras vertentes contra hegemônicas, os papeis dos profissionais passam a

50. Nelson, Carlos. A cidade como jogo de cartas (p55)

mudar de figura, tornando-se cada vez mais próximos da figura de mediador. Este vai unir os campos de experiência e promover sugestões ativas de envolvimento da sociedade em experiências que integram o viver e a vida, em uma escala crescente de participação do sujeito, buscando chegar à autonomia plena deste. Para realizar essa sugestão ativa, aquele que se identifica como mediador precisa desenvolver estratégias coerentes com seu local de atuação e especificidades da comunidade, de forma a sugerir experiências que instiguem e façam sentido a ela. Sendo assim, definiremos nos capítulos seguintes as figuras centrais desta forma de atuação: o próprio mediador; a experiência que irá sugerir; e a estratégia que pode desenvolver.

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Capítulo 3 Consciência e mediação



Consciência e mediação As três figuras que vamos definir a seguir, o mediador, a experiência e a estratégia, são provenientes das reflexões realizadas até aqui e dão forma à nossa proposta de (re)ação à distensão: o VII Movimento. A consciência da aproximação e do afastamento entre as experiências que vivemos no cotidiano, bem como a consciência de nossas vontades profundas de experiências de vida, nossa busca pela felicidade, não são inatas. Aprendemos ao longo da vida que precisamos encontrar quais são estas vontades profundas, aquilo que nos mobiliza plena e completamente, e a buscar experiências práticas que estejam alinhadas a estas vontades. Desenvolvemos a capacidade de realizar esta mediação entre o viver e a vida, podendo realizar escolhas, intervenções e a nos colocar no mundo de forma a alcançá-las. Uma vez que a consciência destas vontades – que transcendem o desejo efêmero ou simples hedonismo – e de sua proximidade ou afastamento às experiências práticas do viver só pode ser criada pelo próprio sujeito, precisamos discutir as maneiras pelas quais ela se desenvolve e

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VII Carta ao mediador

o que entendemos por “mediação”. A partir da teoria sociointeracionista de Vygotsky, ressaltamos dois conceitos centrais: de um lado, que o desenvolvimento e a formação da consciência se dão na interação social; de outro, que este desenvolvimento é mediado por instrumentos e signos. Sobre esta teoria, “o ser humano, por sua origem e natureza, não pode nem existir nem conhecer o desenvolvimento próprio de sua espécie como uma mônada isolada: ele tem, necessariamente, seu prolongamento nos outros; tomado em si, ele não é um ser completo” 51. Ivic, Ivan. Lev Semionovich Vygotsky (p16)

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Seu desenvolvimento como ser social parte da interação com outros integrantes de sua sociedade, que lhe transmitem a cultura existente através de instrumentos como a linguagem. Uma vez apropriados os instrumentos pelo sujeito, transformam-se em mecanismos de sua própria organização psicológica interna – tomados os termos próprios de Vygotsky em seu livro Pensamento e Linguagem – passando a interagir com outras funções mentais, como o pensamento. Como resultado desta interação, as funções se reestruturam e outras se desenvolvem, dando contornos à individualidade complexa do sujeito e o fazendo lidar com o mundo de maneiras diferentes e particulares. Sem o aporte da cultura, esta transformação ocorreria de forma natural e distinta, mas o sujeito propenso a ela aprende a carregar seus traços, perpetuando-a e tornando-se um sujeito sócio-histórico. Sendo assim, principalmente para o desenvolvimento nos primeiros estágios da vida, o adulto, notadamente o professor, seria o sujeito social que se utilizaria de instrumentos, principalmente a linguagem, que mediariam a relação do sujeito com a realidade e lhe transmitiriam as mensagens da cultura. A intenção pedagógica do professor reside na seleção e organização destes instrumentos de forma a possibilitar o desenvolvimento do aluno. No que cabe a impossibilidade de “enformar” o sujeito, a intenção pedagógica constitui ação fortemente política uma vez que inclui certos signos e instrumentos e exclui outros, selecionando quais faces da cultura serão reproduzidas. Podemos aqui pensar na autonomia, na reflexão, articulação verbal e na criticidade que podem (ou não) ser desenvolvidas pela pessoa.

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Consciência e mediação

Na perspectiva sócio-histórica, “a relação do homem com o real não é direta e mecânica, mas mediatizada pela atividade que, por sua vez, tem a mediação da linguagem e das relações sociais, em um movimento dinâmico e dialético” 52. Aquele que propõe e seleciona intencionalmente este recorte da cultura e o formata em uma

52. Altenfelder, Anna Helena. O papel da olimpíada da língua portuguesa (p20)

atividade, toma então a figura de mediador. Altenfelder, falando do papel de professores como mediadores, em seu estudo sobre o desenvolvimento da linguagem, diz ser “um sujeito que, em sua atividade profissional, faz uso de signos e instrumentos produzidos socialmente, na interação e comunicação com os alunos, refletindo sobre si mesmo e a sua prática” 53.

53. Idem (p21)

Portanto, a mediação é um processo que envolve um agente que carrega determinada intenção. Contudo, se falamos em desenvolvimento de forma genérica, independente da idade ou aprofundamento cultural do sujeito, podemos pensar que a partir do momento em que incorpore a autonomia de investigar e selecionar signos e instrumentos presentes na cultura, o sujeito se torna seu próprio mediador, podendo propor suas próprias atividades. Esta mediação interna e autônoma pode levá-lo a novos estados de desenvolvimento dependendo de sua intenção, que deixa de ter a característica pedagógica do professor em transmitir a cultura e lhe confere nova disposição política. Sendo assim, o sujeito que desenvolveu por um lado consciência sobre suas vontades profundas e específicas e, por outro, consciência da distensão entre elas e suas experiências práticas, pode atuar como mediador entre seu cotidiano e sua vontade por experiências significativas. Esta intenção mediadora será efetivada na escolha, intervenção ou desenvolvimento de atividades que lhe integrem o viver e a vida: experiências cotidianas significativas, simultaneamente práticas e profundas, envolvendo plenamente sua complexidade como ser humano único. Nossa proposta de reação à distensão – aquela causada pelas experiências produzidas por vertentes hegemônicas cuja intenção não envolve o sujeito em sua integralidade – parte desta definição de mediação. Sendo assim, considerando que não existe sujeito com características

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VII Carta ao mediador

“puras”, temos dois extremos teóricos a definir: aquele que não desenvolveu consciência de suas vontades e da possível (ou provável) distensão; e aquele que desenvolveu esta consciência e sua autonomia como mediador. O primeiro, enquanto no obscurantismo da inconsciência, consente viver experiências que não lhe são significativas, reproduzindo uma cultura que pode subjugá-lo e explorá-lo. O segundo, uma vez autônomo para mediar sua própria reação à distensão, pode atuar no desenvolvimento da autonomia daquele que ainda não a realiza. Nas palavras de Rancière, “é preciso e suficiente que sejamos, nós mesmos, emancipados. Isto é, conscientes do 54. Rancière, Jacques. O mestre ignorante (p27)

verdadeiro poder do espírito humano” 54. Entretanto, importante ressaltar que este sujeito não está – e nem poderia estar – entre a pessoa e o desenvolvimento de sua consciência uma vez que não constitui barreira e nem é imprescindível a este desenvolvimento. Da mesma forma que, como discutimos sobre a sociedade distendida, não se pode avaliar o grau de distensão de experiências, também não se pode avaliar o grau de inconsciência da distensão por parte de qualquer pessoa. Sendo assim, a ação do mediador, quando externa ao sujeito, não deve partir do pressuposto ou necessidade de avaliar o nível de inconsciência ou “subdesenvolvimento” deste, mas deve ser baseada em sua intenção – agora fundamental e não periférica como nas vertentes hegemônicas baseadas na distensão – de envolver integralmente a pessoa em atividades que a coloquem em contato com signos e instrumentos que possam leva-la a se desenvolver.

55. Por isso os três primeiros Movimentos: ver I Ato

Estas atividades, cuja proposta deve partir da aproximação profunda 55 do mediador na realidade e cultura da comunidade na qual está atuando, tomam essencialmente a forma de “sugestões”, prescindem de qualquer tipo de obrigatoriedade e são válidas tanto àqueles em vias de desenvolver a consciência da distensão quanto àqueles que já a desenvolveram, uma vez

56. Ver perímetro de aproximação na estratégia.

sendo projetadas com base na cultura identitária daquele conjunto social 56. O mediador rompe o silêncio da distensão ao fazer a “pergunta” da integração entre o viver e vida em forma de experiência que demonstre esta integração. Sua atuação é, assim, semelhante à do mestre ignorante de Rancière, na medida em que

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Consciência e mediação

“são esses os dois atos fundamentais do mestre: ele interroga, provoca uma palavra, isto é, a manifestação de uma inteligência que se ignorava a si própria, ou se descuidava; [e] ele verifica que o trabalho dessa inteligência se faz com atenção, que essa palavra não diz qualquer coisa para se subtrair à coerção” 57. Desta forma, em primeiro lugar, a expressão manifesta uma consciência desenvolvida, pois,

57. Rancière, Jacques. O mestre ignorante (p40)

voltando a Vygotsky, a palavra da forma ao pensamento. Em segundo, a verificação não é realizada pelo resultado, mas pelo processo de envolvimento, de forma que o mestre “não verificará o que o aluno descobriu, verificará se ele buscou [...]. O que o mestre ignorante deve exigir de seu aluno é que ele prove que estudou com atenção”. No caso do mediador, ele verifica através da resposta do sujeito à experiência proposta – resposta esta que não necessariamente precisa ser verbal, mas também por comportamentos ou ações – se este de fato se envolveu integralmente e se a experiência lhe foi significativa 58. Para viabilizar que suas propostas causem tal envolvimento, o mediador externo (ao qual nos

58. Ver o momento de avaliação no III Movimento.

referiremos apenas por “mediador”) precisa considerar que dentro do núcleo social cada pessoa permanece diferenciada das outras, mesmo que compartilhem a mesma identidade cultural. Sendo assim, como veremos, o trabalho do mediador precisa ser ao mesmo tempo difuso e abrangente por um lado e, por outro, gradual e progressivo. Estes princípios serão explorados em mais detalhes no capítulo sobre a estratégia, mas antes precisamos discutir mais a fundo o pressuposto de ambos de que o desenvolvimento da consciência se dá em um processo. Entre os dois limites teóricos apresentados anteriormente – da inconsciência total à consciência plena – há um andamento que não necessariamente é linear, no qual cada pessoa se encontra em movimento contínuo de transformação. Seu estado neste movimento diz respeito a sua individualidade e faz parte de suas características específicas, que vão definir seu maior ou menor envolvimento com determinada atividade. Podemos entender este estado da seguinte forma: configura-se para cada pessoa uma esfera que comporta sua consciência já desenvolvida, com a qual opera no mundo, e que por sua vez está inserida em um universo que ainda desconhece. Para que uma atividade faça sentido à pessoa, permitindo-lhe se envolver profundamente a

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VII Carta ao mediador

ela, é preciso que a experiência gerada esteja na superfície da “esfera” de consciência, de forma que o sujeito a identifique como contínua ao que ele já conhece. Esta continuidade permite que a consciência englobe (ou envolva) a nova experiência vivida, ampliando os limites da esfera. Se a experiência estiver muito inserida no interior da consciência já desenvolvida, esta não engloba novos aprendizados, se muito para longe de sua superfície, o sujeito não identifica sentido e não se envolve. Sendo assim, o desenvolvimento da consciência da distensão precisa partir desta interface entre o conhecido e o desconhecido. A metáfora da superfície da esfera é semelhante ao que Vygotsky chama de zona de desenvolvimento proximal, que seria a “distância entre o nível de desenvolvimento atual – determinado pela capacidade de 59. Davis, Cristina. A psicologia na educação (p37)

solução, sem ajuda, de problemas – e o nível potencial de desenvolvimento” 59, onde o sujeito pode se desenvolver com auxílio de agentes externos. Finalmente, retornamos ao mediador: para que exerça sua função, é preciso que as experiências que propõe considerem simultaneamente que as características específicas e o estado de desenvolvimento da consciência de cada pessoa são particulares, ou seja, que cada um possui algum grau de consciência da distensão. Só assim o mediador poderá propor experiências que envolvam ao máximo o sujeito e, ao fazê-lo, tender ao desenvolvimento da autonomia deste como mediador interno. Neste processo, uma vez que não parte da avaliação do estado de consciência profundo de todo conjunto social no qual irá intervir, inicia sua “sugestão” de experiências em atividades que dependem mais de sua própria ação e menos da ação da comunidade. Assim, permite-lhe partir de situações extremas, onde a inconsciência da distensão é profunda no conjunto social. Gradualmente, verificando a intensidade e a forma de envolvimento da comunidade em determinadas experiências, o mediador passa progressivamente a incluí-la cada vez mais direta e dialeticamente no processo de sugestão, objetivando sua plena autonomia, momento em que o mediador externo cumpre sua função e deixa de ser necessário. Neste ponto, o grupo de indivíduos do conjunto social pode ter desenvolvido tal autonomia em suas mediações internas – leia-se reflexão crítica quanto à proximidade ou afastamento

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Consciência e mediação

entre as experiências do viver cotidiano e as vontades por experiências de vida – que passa a buscar politicamente a integração entre o viver e a vida em vertentes de experiências que lhe proporcionem máximo envolvimento. Aqui, a ação comunicativa entre estes sujeitos configura reação à colonização do mundo da vida pelo sistema, retomando termos de Habermas, uma vez que a hegemonia da distensão pelo consentimento passivo perde força. Ao primeiro olhar, talvez isso tudo pareça complexo, mas na prática pode ser de grande simplicidade, por exemplo 60: Todos os anos, a diretoria de uma escola realiza em seu pequeno pátio interno uma já tradicio-

60. Como se verá nos próximos capítulos, esta é uma narrativa de experiência.

nal festa junina, para a qual apenas a comunidade escolar é convidada. Um ano, uma pessoa sugere e articula-se com outras pessoas para atuarem na viabilização da ideia de realizarem a festa na praça em frente à escola, abrindo-a para a comunidade e aproveitando as oportunidades do espaço maior. A diretoria, tradicionalmente sobrecarregada com as tarefas para realizar a festa, agradece por dividir a responsabilidade com outros atores. Desenvolvem com os professores um projeto pedagógico para realizarem com os alunos, tendo a festa como tema: cada conjunto de estudantes pode escolher o assunto que quer estudar e propor sua atuação no dia do evento. Podem pesquisar a decoração; as formas de montar e acender uma fogueira; comidas regionais típicas; raízes históricas da tradição; ensaiar danças e músicas; redigir cordéis, etc. Ao mesmo tempo, o grupo que se organiza para realizar a festa entra em contato com a associação de moradores do bairro e com os moradores vizinhos da praça para que realizem juntos a programação e execução do evento. Criam uma série de atividades que cobrem o dia inteiro e que sejam interessantes para a comunidade, incluindo diversas faixas etárias e especificidades, mas ao mesmo tempo respeitando seus limites. Para o período noturno, evitando sons muito altos, um morador propõe que deixem a festa mais intimista, com pessoas tocando violão ao redor da fogueira. São exemplos do que poderia ocorrer, lembrando-se de que para cada comunidade podem parecer mais ou menos factíveis em uma primeira abordagem, dependendo de seu potencial de envolvimento. O que importa é que se abriu a oportunidade de transformar um evento 79


VII Carta ao mediador

tradicional, com o qual a comunidade escolar já tem algum vínculo, em uma experiência significativa e de maior envolvimento. A festa deixou de ser um acontecimento simplesmente programático para se tornar uma atividade que pode ser desenvolvida por todos. Além disso, sua abertura para a cidade proporciona novos tipos de relacionamento entre a comunidade vizinha e escolar, de forma que ambas passam pela experiência do contato direto no espaço público. Neste caso, portanto, aquela primeira pessoa propôs uma atividade que, conjugando diversos elementos, deu acesso e liberdade para cada sujeito se envolver da forma como lhe fizer sentido, sem coerção. A mesma atividade que por um lado os envolve da forma como se sentem confortáveis, por outro os colocam em contato com experiências novas, como um aluno que vê seu aprendizado concretizado em um evento; um familiar que descobre que sua mobilização com outras pessoas da comunidade escolar, inclusive a diretoria, pode realizar grandes transformações na escola e no bairro; um vizinho que vê que a escola não é uma instituição isolada e tem muito a agregar para atividades interessantes nos espaços públicos, etc. É impossível imaginar a variedade de experiências que podem ser geradas, cada pessoa terá as suas próprias. Sendo assim, aquela pessoa atuou como mediadora, mas fez isso intencionalmente? Todos podem mediar experiências de integração propondo atividades que partam da busca pelo máximo envolvimento do sujeito, na medida em que a “sugestão” prescinde de qualquer tipo de preparo. Neste caso, ela se configura como uma ideia pontual e pode ser desenvolvida. Contudo, quando a pessoa, consciente da distensão, deixa de ter a intenção focada na atividade específica e isolada, mas em trabalhar para que cada membro da comunidade seja seu próprio mediador interno, sujeito crítico e reflexivo, então a mediação depende de um procedimento que encadeie diversas ações. Ambos atuam como mediadores, mas aqueles focados na ação prática, conscientes ou não do estiramento entre o viver e a vida, carregam o perfil pessoal de sustentação sobre o qual as atividades são geradas. São pilares das sugestões de experiência, muitas vezes líderes comunitários, pessoas comunicativas, críticas e ideativas. Por outro lado, mediadores focados na estratégia, articulando experiências em busca de um objetivo que as transpassa, precisam tra80


Consciência e mediação

balhar com pilares, uma vez que estes possuem conhecimento de causa e maior aproximação às questões da comunidade. Tanto pilares quanto mediadores são fundamentais neste processo, mas apenas se configuram como atuantes na intervenção se optarem por isso. São figuras que possibilitam que o trabalho seja realizado em qualquer circunstância, independentemente das características iniciais da comunidade. Mesmo quando se tem uma situação polarizada, na qual não há abertura ao diálogo ou há relações assimétricas de poder, o ponto de partida da intervenção depende destas características, que não necessariamente a inviabilizam. Essa invariabilidade decorre da inserção profunda dos pilares, de um lado, e da visão articulada dos mediadores, do outro, fazendo com que o encadeamento entre as experiências propostas abarque simultaneamente as especificidades da cultura e o estado de consciência da comunidade. Uma atividade isolada pode representar uma boa experiência, mas não configura processo de conscientização e autonomização do conjunto social frente à distensão. Como discutirmos, é preciso que se tenha a consideração de que a transformação se dá em um processo, logo, que há movimentos e momentos subsequentes – por mais que não necessariamente lineares – de desenvolvimento da consciência. Sendo assim, mediadores e pilares precisam desenvolver uma estratégia de atuação para associarem forças e lidarem com a soma de todas as variáveis de sua empreitada. Uma vez esta estratégia sendo baseada em ações cuja intenção está em gerar experiências através do envolvimento profundo do sujeito, precisamos definir e dar contornos claros ao que entendemos e propomos ser “experiência”.

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Capítulo 4 Experiência



Experiência Percebe-se que na procura por uma estratégia de mediação, uma vez buscando reagir à distensão entre as experiências do viver cotidiano e as vontades profundas por experiências de vida, precisa-se partir exatamente do oposto às experiências que reproduzem esta distensão. A estratégia começa a se configurar como uma proposta de encadeamento de experiências que integrem o viver e a vida, articulada e sugerida pelo mediador. Para que isso seja possível, precisamos não apenas entender a ideia de experiência, mas principalmente aprofundar a discussão de suas características práticas e dar seu necessário contorno. Relembrando o que já discutimos, experiências do cotidiano e experiências profundas de vida não são sinônimos entre si. As primeiras, presentes no viver do dia a dia, são em grande parte geradas por modelos institucionais, como a escola ou o hospital, que dizem lidar com as segundas, como o aprendizado e a saúde. Experiências de vida dizem respeito ao sujeito em sua integralidade complexa, a todas suas dimensões e especificidades, sejam emocionais, físicas, racionais, culturais, sociais, etc., inapreensível em sua totalidade. Por outro lado, experiências do viver cotidiano simplificam essa complexidade do sujeito de maneira a dar uma resposta a 85


VII Carta ao mediador

suas vontades profundas em forma de produtos e serviços. Sendo assim, em primeiro lugar precisamos considerar que a experiência diz respeito exclusivamente ao sujeito. Se pelo lado da vida apenas ele pode ter contato com a complexidade de suas vontades e particularidades, uma vez sendo isso exatamente aquilo que o individualiza, pelo lado do viver apenas ele passará pelas experiências práticas de sua maneira própria, de acordo com suas características. Cada indivíduo tem, assim, uma experiência distinta e particular gerada por uma mesma atividade. Podemos perceber que corroboramos com uma definição de experiência que diz que “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que 61. Larrosa. Notas sobre a experiência (p21)

acontece, ou o que toca” 61. Portanto, enquanto a atividade pode ser proposta por um agente externo, como uma instituição, a experiência só pode ser vivida pelo próprio sujeito, o que nos leva a uma segunda constatação: experiência e atividade também não são sinônimos. A segunda carrega signos, instrumentos, mensagens e todo tipo de estímulo que, ao entrarem em contato com o sujeito, o levarão a ter determinada experiência, mesmo que esta não possa ser antevista com clareza pelo agente externo. Desta forma, aquele que propõe a atividade o faz baseado em alguma intenção, gerando experiências em certo espectro de possibilidades. Uma vez que experiências do viver e experiências de vida são distintas entre si, há então uma distância entre elas, de maneira que as intenções impressas nas atividades propostas podem fazer com que se aproximem ou distanciem. Esta intencionalidade é carregada nas ações daquele que propõe a atividade, por sua vez assentado em modelos que dizem respeito aos campos de experiência – por exemplo, o modelo escola para o campo educação, ou o modelo hospital para o campo saúde – podendo gerar experiências práticas que se integrem ou se distendam das vontades profundas do sujeito que passa por elas. Enquanto a intenção das experiências de integração está em envolver ao máximo o sujeito, dando-lhe abertura para viver suas vontades e enxergar significado profundo no que está vivendo, a intenção de experiências de distensão está em outras motivações, notavelmente na manutenção e reprodução de seu promotor, de forma que a busca pelo envolvimento do sujei-

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Experiência

to é mínima e suficiente para gerar sua aceitação. Assim, experiências de distensão lidam com um recorte do sujeito, tomando-o em uma faceta específica, como consumidor, por exemplo. Os modelos fundam vertentes institucionais que carregam experiências de integração ou distensão, abrindo a possibilidade de serem hegemônicos em seus campos de experiência, por um lado através da força, mas principalmente através do consentimento da sociedade. Procurando uma forma de reação a estas vertentes que se mantêm hegemônicas através do estiramento entre o viver e a vida, definimos a figura do mediador, que é o sujeito que desenvolve consciência da distensão e autonomia para reagir a ela, unindo campos de experiência através de suas respectivas vertentes contra hegemônicas e promovendo sugestões ativas de envolvimento da sociedade em experiências de integração. Através delas, a sociedade pode desenvolver ou aprofundar sua consciência, independentemente de seu estado atual, aprendendo a reconhecer a distensão e a se mobilizar individual e socialmente de forma a intervir e gerar experiências do viver cotidiano afinadas às suas vontades profundas por experiências de vida. Sendo através da vivência das próprias experiências de integração que se pode desenvolver tal consciência, ampliamos nosso postulado anterior: é vivendo que se aprende a viver a vida. Uma vez que o desenvolvimento da consciência através de experiências é distinto da simples aquisição de informações, é necessários separar o saber de experiência do saber coisas. Mesmo quando passamos a conhecer o que antes não conhecíamos, “podemos dizer também que nada nos aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que aprendemos nada nos sucedeu” ,

62. Idem (p.22)

ou seja, que aquilo pelo que passamos não nos foi significativo. Larrosa defende que o sujeito moderno busca ser profundamente informado para opinar, está permanentemente agitado e em movimento e trabalha incessantemente, procurando conformar o mundo a seu gosto. Contudo, este sujeito estaria pouco propenso a experiências significativas exatamente por estar inserido nessa sociedade de excessos, cultura perenizada pelas vertentes hegemônicas que se reproduzem pela distensão.

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VII Carta ao mediador

Então qual seria o sujeito da experiência? Uma vez que ela é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca, diz respeito à integralidade da pessoa em sua dimensão complexa. O indivíduo, por sua vez, precisa estar receptivo e disponível para se deixar passar pela por ela. Nas palavras de Larrosa, o sujeito da experiência é um sujeito exposto, no sentido de contar com uma “passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma 63. Idem. (p.24)

receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental” 63. É aquele que desenvolve consciência e autonomia para realizar a mediação interna entre suas atividades práticas e suas vontades profundas, possibilitando-o integrar o viver e a vida. A definição de experiência para o autor corrobora com o que chamamos de experiências significativas, aquelas que envolvem o sujeito em sua complexidade. Mas então aquelas de distensão, que envolvem apenas um recorte do sujeito, não seriam nem ao menos experiências? Entendemos que toda pessoa está exposta, sujeita a vulnerabilidade e risco do imprevisível uma vez que seu contato com o mundo nunca deixa de ser complexo e integral, ou seja, a receptividade do sujeito é inerente a sua complexidade. Contudo, expor-se a interações e intervenções que lhe proporcionem experiências significativas, reagindo àquelas de distensão, é uma ação posterior à simples exposição e variável conforme a consciência e autonomia do sujeito. Sendo assim, nossa abordagem difere um pouco daquela de Larrosa. Em contraposição à ideia de que, uma vez a experiência sendo o que nos passa e não passar por experiências seria não passar por nada, entendemos que elas nos são inevitáveis. Diferentemente, a distinção que fazemos está em serem experiências significativas ou não significativas, de integração ou distensão. Portanto, não desenvolver consciência e autonomia como mediador interno, ou seja, não ser sujeito de experiências, não significa não estar exposto ou disponível a elas, pois não se pode evitar tal disponibilidade, mas não ter consciência e ação frente a esta exposição. A inconsciência e inatividade fazem parte do embrutecimento que possibilita a reprodução consentida e a manutenção da hegemonia de vertentes de experiências de distensão. Então, entendemos o sujeito da experiência não apenas como receptivo, mas fundamentalmente ativo, revelando que

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Experiência

“experiência não é, portanto, alguma coisa que se oponha à natureza, pela qual se experimente, ou se prove a natureza. Experiência é uma fase da natureza, é uma forma de interação, pela qual os dois elementos que nela entram – situação e agente – são modificados” 64. Nesta perspectiva, a experiência envolve uma transformação mutua por uma interação em

64. Teixeira, Anísio. A pedagogia de Dewey (p34)

um dado momento presente, tendo em ambos os envolvidos a exposição e a ação. Em outras palavras, a situação precisa se expor ao agente enquanto o agente deve se expor à situação; da mesma forma, a situação precisa agir frente ao agente, enquanto o agente deve agir frente à situação. Na interação, ambos se transformam. Para o sujeito, quando a situação é uma atividade cuja intenção está em envolvê-lo integralmente, gerando experiências significativas, a transformação leva ao gradual desenvolvimento de consciência da distensão entre o que vive e a vida que gostaria de viver. Como diz Anísio Teixeira, “quanto mais é o homem experimentado, mais aguda se lhe torna a consciência das falhas, das contradições e das dificuldades de uma completa inteligência do universo. É isso que dá ao homem a divina inquietação, que o faz permanentemente insatisfeito e permanentemente empenhado na constante revisão de sua obra” 65,

65. Idem (p36)

lembrando que em nossa discussão sobre educação e política, discutimos que para uma sociedade esta obra seria sua cultura. O mediador – consciente da distensão e agregador de diversos campos de experiência – tem em sua intenção de envolver integralmente o sujeito este princípio da interação mutua. Uma vez que não pode antever com precisão para onde e como o sujeito irá se transformar, e sim apenas observar seu envolvimento, a exposição à experiência envolve um risco. Como bem nos lembra Larrosa 66, a própria etimologia da palavra nos remete a este perigo, a travessia de um espaço indeterminado e desconhecido. Em nossa metáfora da esfera como consciência do sujeito, esta travessia perigosa e desconhecida seria a transposição de sua superfície, indo daquilo que se conhece àquilo que se desconhece.

66. Experiri, do latim, provar; ex, latino, o mesmo de exterior e de exílio; periri, radical latino, o mesmo de perigo; per, grego de atravessar, ir além. Larrosa (p25)

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VII Carta ao mediador

Anísio, comentando o termo experiência para a pedagogia de Dewey, vai dizer que nesta travessia, ou seja, na transformação gerada pela interação, “a experiência alarga os conhecimentos, enriquece o nosso espírito e dá, dia a dia, 67. Teixeira (p37)

significação mais profunda à vida” 67. Esta profundidade amplia as possibilidades do sujeito se dirigir a novas experiências, em uma noção de educação onde ela seria “o processo de reconstrução e reorganização da experiência, pelo qual lhe percebemos mais agudamente o sentido, e com isso nos habilitamos a melhor dirigir o curso

68. Idem

de nossas experiências futuras” 68, em uma sequência de experiências que se confunde com a própria vida. Para Dewey, ao passar pela experiência, transformando-se e ampliando sua consciência e conhecimento, o sujeito modifica seus hábitos, partindo de uma concepção de hábito que diz respeito à formação de “atitudes que são emocionais e intelectuais; que cobre nossa sensibilidade básica e as formas de responder a todas as condições com as quais entramos em contato no vi-

69. Dewey, John. Experience and education (p13)

ver” 69. Portanto, estando inevitavelmente expostos a interações com o mundo que nos cerca, cada experiência está ancorada nas experiências anteriores que transformaram o sujeito e ancora suas experiências seguintes. Na conclusão de Dewey: “por este ponto de vista, o princípio de continuidade da experiência significa que toda experiência tanto toma algo daquelas que ocorreram antes quanto modifica de al-

70. Idem

guma forma a qualidade daquelas que vierem depois” 70. Desta forma, cada experiência influencia as seguintes. O princípio da continuidade pode ser exemplificado no caso do desenvolvimento da fala: uma criança, ao aprender a língua, tanto adquire novas facilidades e novos desejos, quanto amplia suas condições para passar por no-

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Experiência

vas experiências, como aprender a ler, que por sua vez também ampliará seu campo de aprendizado através de livros, e assim por diante. Quanto mais familiarizado com a língua e com a leitura, mais a experiência do livro lhe será agradável e motivadora. Neste raciocínio, Illich ressalta que “a maior parte da aprendizagem ocorre casualmente e, mesmo, a maior parte da aprendizagem intencional não é resultado de uma instrução programada” 71. Ou seja, desenvolvemos consciência e conhecimento através de experiências que não neces-

71. Illich, Ivan. Sociedade sem escolas (p38)

sariamente possuem um caráter “instrutivo”, mas que ao serem contínuas às experiências que já possuíamos nos motivam e envolvem de forma a vermos significado nelas. Ou seja, a criança que não desenvolveu a língua não verá significado em ler, assim como o sujeito que não desenvolveu consciência da distensão não será autônomo para reagir a ela. Em nosso caso, o princípio de continuidade testemunha que, ao passar por experiências de integração propostas pelo mediador externo, o sujeito pode desenvolver sua consciência da distensão e autonomia para mediar sua própria maneira de aproximar o viver e a vida, passando a se expor a experiências que lhe sejam significativas. O mediador, para realizar suas sugestões de atividades com as quais o sujeito irá interagir, “deve saber como utilizar as condições físicas e sociais que existem para extrair delas tudo o que tiverem a contribuir para criar experiências que sejam significativas” 72. Esta maneira do mediador atuar, sugerindo experiências envolventes por interação e continui-

72. Dewey, John. Experience and education (p15) - Tradução livre

dade buscando que a comunidade desenvolva (caso já não tenha) ou aprofunde sua autonomia para mediar a integração entre o viver e a vida, não se funda “em um novo propósito que ‘faça’ as pessoas aprenderem; é antes a criação de um novo estilo de relacionamento educacional entre o homem e o seu meio-ambiente. Concomitantemente com a promoção deste estilo devem mudar as atitudes para com o crescimento, os instrumentos da aprendizagem, a qualidade e estrutura da vida cotidiana” 73.

73. Illich, Ivan. Sociedade sem escolas (p124)

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VII Carta ao mediador

Illich chama este estilo de teias de aprendizagem. Os princípios definidos por Dewey, com os quais vemos relação com a perspectiva de Illich, vão nos definir as características basilares das experiências que vamos propor. “Os dois princípios de continuidade e interação não são separados um do outro. Eles se interceptam e se unem. São, por assim dizer, os aspectos longitudinais e laterais da 74. Dewey, John. Experience and education (p17) - Tradução livre

experiência” 74. Uma vez a interação sendo um princípio que pressupõe ação bilateral, decompomo-nos em dois: a interação da atividade com o sujeito, ou “Meio”, e a interação do sujeito com a atividade, ou “Ação”. Da mesma forma, o princípio de continuidade pressupõe experiências anteriores e posteriores ao momento presente, de forma que também o dividimos em dois: o conhecimento e consciência anterior, ou “Cultura”, e aqueles que estão por vir, ou “Visão”. Os dois eixos que se interceptam, longitudinal e transversal; a dualidade presente em cada um deles, gerando as quatro características; as diferentes abordagens que cada uma pode tomar, uma vez sua interpretação podendo ser realizada exclusivamente pelo sujeito que a vive; e a sobreposição das quatro, que não deixam de ser partes sempre presentes de um mesmo todo indivisível são os aspectos que geram o signo síntese do VII Movimento, onde o marrom representa o Meio, o laranja a Ação, o lilás a Cultura e o anil a Visão. Este signo nos ajuda a sempre recordarmos dos aspectos fundamentais das experiências com as quais vamos atuar. Estas quatro características descrevem a natureza da experiência que se propõe, dizendo respeito a como a intenção de envolver integralmente o sujeito pode ser realizada em atividades práticas. Toda experiência presente em toda atividade possui as quatro características, por mais que imprimindo em cada uma delas pesos diferentes de acordo com a intenção daquele que a propõe. Obviamente estas quatro componentes não esgotam uma definição da natureza de experiência, mas elas nos serão fundamentais e suficientes para viabilizar a intenção do mediador, possibilitando utilizá-las em sua estratégia.

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ExperiĂŞncia

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Quanto mais o mediador for capaz de sugerir atividades que contenham dentro de si intenções de envolvimento profundo das quatro componentes, equilibrando-as, mais a experiência poderá ser significativa. A necessidade de conjugar diversas atividades decorre tanto da verificação da forma deste envolvimento, de maneira que se ajuste as propostas seguintes com intenções nas quatro componentes de maneiras mais alinhadas às características da comunidade, quanto da possibilidade de uma experiência apoiar outra buscando equilibrarem as quatro características entre si. Para que se compreenda as componentes da experiência, faz-se fundamental, portanto, que as definamos com mais clareza. Para tanto, vamos expor atividades que carregam intenções fundamentais em cada componente e em seguida discutir como poderíamos buscar seu equilíbrio para serem potencialmente mais significativas.

MEIO O Meio diz respeito às características físicas e ambientais da atividade que propomos. São componentes e signos dispostos no espaço que interagem com o sujeito através dos sentidos, fazendo-lhe passar pela experiência de reconhecer elementos que já conhecia, como uma vaga de automóvel, e elementos ou possibilidades que desconhece, como fazer desta vaga um 75. Ver a experiência dos Parklets.

pequeno parque 75. Atividades e intervenções cuja intenção de envolvimento da experiência que carregam tem a característica Meio como preponderante não levam em conta as especificidades da comunidade, nem qual será sua reação ou qual novidade está colocando em pauta, o que não significa que não poderão gerar envolvimentos por estas características também. Podem ser, por exemplo, intervenções artísticas baseadas na personalidade do artista ou obras públicas muito impessoais e instrumentais, baseadas nas intenções políticas do governo. Uma vez que a característica Meio diz respeito à experiência gerada pelo meio físico da atividade, então toda atividade possui esta característica. Contudo, nem toda proposta tem sua intenção de envolvimento centrada nesta face da experiência, residindo ai a diferença para com outras sugestões que tenham outras características preponderantes. Sem ter intenção no

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Experiência

Meio, a atividade pode ocorrer em qualquer lugar ou em um perímetro genérico, podendo ser, por exemplo, um processo ou uma organização como uma associação comercial, onde o Meio é todo o perímetro de atuação.

AÇÃO A Ação diz respeito às sugestões de interação da pessoa com a atividade, principalmente no que tange sua participação ativa, física e exposição de suas vontades e opiniões. A intenção de envolver o sujeito pela experiência da Ação abre possibilidades para que ele seja parte de sua própria construção, ou seja, que a atividade se faça completa apenas no momento em que houver participação. O envolvimento se dá no grau em que a pessoa estiver disposta a participar, de maneira que a Ação não pressupõe ou depende da máxima participação, mas sim uma escala de atividade crescente que tende a autogestão. Contudo, dependendo da personalidade da comunidade, nos primeiros momentos da proposta de atividades com intenção na Ação, esta será muito mais passiva e independente, mas não menos participativa. Por exemplo, para a proposta de criação de uma associação comunitária, espera-se participação de grande parte da comunidade, por mais que não necessariamente com a manifestação de cada sujeito individualmente. De forma semelhante, a construção de um parquinho para crianças em uma praça sugere que estas brinquem nele, por mais que não precisem participar de sua construção. Na medida em que a experiência é gerada pela integração da pessoa através de sua própria atividade, propostas cuja intenção de envolvimento está preponderantemente na Ação não partem da especificação do Meio onde ocorrerão, nem da Cultura da comunidade ou da novidade frente às condições existentes. Uma conversa despretensiosa entre dois desconhecidos pode ser entendida como uma atividade deste tipo, lembrando que as outras componentes da experiência não deixaram de existir, apenas não imprimem intenção. Uma vez que toda atividade pressupõe que o sujeito entre em contato com ela, toda atividade possui, assim, a característica Ação, mesmo que de forma distinta daquelas onde a proposta depende da intervenção direta do sujeito. Uma peça de teatro, por exemplo, depende da pre-

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sença do público, por mais que este, de forma geral, deva permanecer em silêncio e sentado. Sua Ação, neste caso, está tanto em se deslocar até o teatro, quanto em se manter concentrado durante o espetáculo.

CULTURA A Cultura diz respeito ao interior da “esfera” de nossa metáfora da consciência, ou melhor, todo o conjunto de experiências, aprendizados e características que o sujeito já carrega em sua individualidade. Este conjunto conforma o mundo no qual ele sabe operar autonomamente, o mundo que conhece e no qual tem confiança. A Cultura olha para dentro deste mundo, procurando compreender na personalidade da comunidade os primeiros traços de sua cultura, aquela que dá forma a seus hábitos, valores e posturas. Esta característica, para ser colocada como intenção de envolvimento na atividade, deve estar de tal forma afinada com a Cultura do conjunto social, que este veja continuidade e se sinta confortável a passar por ela. A experiência que envolve pela Cultura convida o sujeito a vivê-la ao fazê-lo perceber que ela lhe diz respeito, que lhe é familiar. Quando não lhe diz respeito, a comunidade não se identifica e não vê motivos para se envolver, podendo até responder com desconfiança. Daqui decorre outra motivação para a variedade na proposição de experiências, pois podemos nos aproximar de parte da cultura do bairro, mas só vamos ter algum acesso à cultura de cada sujeito que dele faz parte ao longo da estratégia. Sendo assim, a variedade de campos de experiência nos possibilita atingir mais tipos de personalidade, mesmo que não as tenhamos conhecido previamente. Aos poucos vamos propondo atividades que carregam intenções de envolver as pessoas pela sua percepção da conexão com o que já conhecem, como uma festa tradicional do bairro, por exemplo: uma comunidade pode realizar todos os anos uma festa de fim de ano em um parque do bairro. Se propusermos outra festa, em moldes semelhantes, mas com organização, proposta e momento diferentes, ela poderá gerar o envolvimento da sociedade por ver semelhança com o evento tradicional.

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Experiência

Atividades com intenção de envolvimento apenas nesta característica da experiência talvez tendam a apenas reproduzir o que a comunidade já conhece, mas sem ela não temos bases para propor qualquer experiência diferente. Sem olhar para dentro da Cultura estabelecida e das especificidades da comunidade, não podemos propor experiências que lhe ampliem a consciência da distensão. Esta deve partir do mundo já conhecido. Para tanto, o mediador depende de se aproximar cada vez mais profundamente, se envolver cada vez mais e gradualmente trazer os próprios sujeitos da comunidade para proporem experiências de integração.

VISÃO A Visão talvez seja a característica mais complexa da experiência e ao mesmo tempo mais fundamental para a estratégia. Dizendo respeito à continuidade com relação a experiências futuras, logo, a consciência que o sujeito pode desenvolver, não é fácil o mediador gerar envolvimento uma vez que estas experiências não estão presentes na esfera consolidada de consciência da pessoa. Sendo assim, a visão é essencialmente a proposta da transposição entre o mundo conhecido e o mundo desconhecido e envolve um risco, um “perigo”. Sendo assim, para que o sujeito possa se envolver a ela, é preciso que esteja em sua zona de desenvolvimento proximal, como discutimos anteriormente. Isso significa que a Visão diz respeito a todas as outras três características, na medida em que ela é a intenção de envolver o sujeito em experiências que estão na superfície da esfera que lhe comporta o mundo conhecido e o universo desconhecido. Enquanto a Cultura olha para dentro desta esfera, a Visão olha para fora, buscando posicionar a atividade nesta tênue linha que separa as experiências já conhecidas e aquelas que podemos conhecer. Uma vez as experiências geradas por vertentes hegemônicas que se reproduzem pela distensão serem boa parte de consciência estabelecida da sociedade, aquelas de integração, propostas pelas vertentes contra hegemônicas e pelo mediador, podem não lhe ter continuidade. Sem caminhar de proposta em proposta no sentido de ampliar a consciência e o envolvimento do conjunto social com experiências que se fundam na intenção de envolvê-lo, o mediador não cumpre sua função. A Visão então é o que faz a estratégia se desenrolar, sendo que seu objetivo final é o mesmo objetivo final da estratégia, desenvolver a consciência e autonomia 97


VII Carta ao mediador

de reação da comunidade à distensão entre o viver e a vida. Quanto mais distante da superfície, menos a pessoa verá qualquer tipo de significado na experiência e não modificará sua consciência. Uma palestra, mesmo que ministrada por um profissional muito didático e atencioso com a compreensão da plateia, se realizada a um público que não entende o que está sendo falado, não lhe gerará envolvimento. Vemos este tipo de dinâmica em escolas tradicionais, onde os alunos perguntam qual a função de aprender aquele ou aquele assunto e não recebem uma resposta que lhes satisfaça. Não à toa não veem significa76. Isso vai gerar uma escala crescente em diagnósticos de distúrbios de déficit de atenção e prescrição de medicamentos como a ritalina, como nos comenta Ken Robinson em seu TED Talk “How schools kill creativity”

do neste ensino e se dispersam 76. A intenção do professor pode nem ter sido ruim, ele realmente pode saber que aquele assunto é importante, mas desconsiderou as vontades e especificidades dos alunos, não sabendo nem olhar para sua Cultura, nem posicionar a atividade educativa em sua zona de desenvolvimento proximal. Por outro lado, uma atividade cuja intenção de envolvimento reside na Visão precisa, assim como a Cultura, conhecer profundamente o sujeito e pode ser, por exemplo, uma aula baseada em projeto ou em temas e pesquisas propostos pelos próprios alunos.

Pois bem. Quanto mais a atividade sugerida tiver dentro de si a intenção de envolver o sujeito através das quatro características da experiência, maior a chance dela lhe ser significativa e envolvê-lo profundamente em sua integralidade. Mesmo com a limitação do mediador em conhecer a complexidade do sujeito, sua intenção de envolvê-lo, impressa na proposta equilibrada das quatro características, faz com que o conhecimento não precise ser integral, mas possibilita que a experiência o seja, lembrando que o mediador não está “entre” a experiência e a pessoa. Desta forma, uma atividade com as quatro componentes da experiência equilibradas, deve ser planejada pensando em como o Meio, a Ação, a Cultura e a Visão envolverão o sujeito: uma festa tradicional do bairro (Cultura) pode ser realizada na praça em frente à escola (Meio), propondo que sua execução seja realizada pela comunidade escolar em parceria com a associação de moradores (Ação), possibilitando que a escola abra seus portões para o bairro (Visão). Este é um exemplo teórico de busca pelo equilíbrio das quatro componentes da experiência, mas 98


Experiência

cada caso depende das características e personalidade da comunidade onde se está atuando. Cada proposta contém, além da natureza da experiência em suas quatro componentes, a sua identidade em diversos campos de experiências possíveis. Aqui, podemos identificar as atividades não pela sua forma de apresentação, mas pelo assunto que carrega. Ou seja, podemos categorizar as experiências de acordo com sua identidade: intervenções urbanas, planejamento, educação, política, economia, saúde, transporte, meio ambiente, patrimônio histórico, etc. Esta categorização nos ajuda quando conhecemos uma comunidade e identificamos nela alinhamento com determinados campos de experiência. Por exemplo, um bairro com muitas áreas verdes e pouco tráfego de veículos provavelmente se preocupa em manter sua qualidade ambiental. Como já discutimos nos capítulos anteriores, cidade, educação e política são três campos de experiência que nos acompanharão em todos os nossos movimentos. Vão aos poucos dando forma às ações estratégicas que vamos propor, uma vez estando muito próximos entre si em suas abordagens contra hegemônicas e próximos, também, das quatro características da experiência. Por exemplo, podemos observar a cidade no Meio, a política na Ação e a educação na Cultura e Visão, por mais que todas se apoiem mutuamente. A categorização não depende de qualquer tipo de rigor e pode inclusive avaliar uma mesma atividade em vários campos de experiência, por exemplo, uma proposta de projeto educativo para escolas que envolva as crianças plantarem árvores pontos do bairro pode estar tanto categorizada como educação, quanto como meio ambiente e intervenção urbana. Mesmo que haja preponderância de algum campo, os outros não deixam de estarem presentes. É muito interessante observar que existem diversos repertórios de atividades e intervenções, de uma grande variedade de organizações. Estes repertórios variam de personalidade de caso para caso, mas de forma geral todos categorizam as “boas práticas” que elencam. Encontramos exemplos destas bases no site da Rede de Cidades Educadoras, por exemplo, ou no Centro de Referência em Educação Integral, ou no Cidades Sustentáveis. Todos eles nos são úteis e são bases fundamentais de consulta, uma vez que o universo de experiências é infinito. Contudo, enquanto este universo é um só, não diferenciando a priori atividades e estímulos 99


VII Carta ao mediador

por características ou campos de experiências, a seleção de atividades que serão realizadas pelo mediador e pela comunidade configura uma constelação neste universo. O ato de “constelar”, portanto, é a ação de partir da aproximação à complexidade do conjunto social para selecionar e projetar experiências com componentes equilibradas em das atividades que serão propostas. Para que esta ação seja simplificada, pode-se realizar uma avaliação prévia das atividades discutindo as quatro componentes da experiência que carrega. Para nossa proposta de estratégia, realizaremos esta avaliação e criaremos nosso próprio repertório, a partir do qual se facilita a criação da constelação. Espera-se que este repertório se expanda naturalmente através do próprio uso dos mediadores. Nele, cada atividade é apresentada em suas diversas faces, mesmo que brevemente. O intuito não é que cada elemento da constelação seja um tratado sobre o tema, mas sim um conjunto de reflexões úteis para que o mediador utilize e transforme a atividade descrita, de forma a utilizar uma versão mais adequada em sua estratégia. Sendo assim, é interessante que o livreto de cada experiência contenha: 1. Introdução. Apresentação e contextualização da atividade em seu modelo padrão, bem como alguns possíveis exemplos de usos realizados. 2. A experiência. Discutindo a quem a atividade se destina, ou seja, seu principal público alvo; breve discussão sobre as quatro características e onde reside a intenção principal, ou seja, é uma atividade de experiência predominantemente Meio, Ação, Cultura ou Visão; avaliação do equilíbrio entre as características e possibilidades de aprimorar este equilíbrio. 3. Narrativa de uso. Apresentado quais são as condições consolidadas que a comunidade precisa ter para que se possa propor a experiência, por exemplo, não faz sentido propor intervenção em praças se a comunidade não tem praças; sugestão de em que momento da estratégia utilizar a experiência e por que; como relacioná-la entre as quatro redes sociais; considerações sobre operacionalização e legislação; possíveis formas de verificar o envolvimento da comunidade com a atividade. 4. Referências e fontes de estudo. Todas as referências que possam ajudar aquele que 100


Experiência

pegar o livreto a aprofundar seu estudo e pesquisa. As discussões realizadas no livreto são livres e podem ser agregadas organicamente pelos mediadores que forem utilizando as respectivas atividades. Deixamos aqui apenas algumas considerações sobre estas discussões. Como nos comenta Gadotti, citando Vasconcellos77, as atividades, além de sua natureza e identidade, podem ter diversos perfis: podem ser ações concretas, ou projetos; linhas de ação, ou

77. Gadotti, Moacir. Cidades educadoras (p88)

orientações gerais; atividades permanentes, ou rotinas; e normas ou determinações. Eles vão dizer respeito as característica da experiência que promovem, por exemplo, um projeto pode ser uma intervenção no Meio; da mesma forma, uma linha de ação pode ser uma forma de atuação de associação de moradores, etc. Na introdução do livreto, quando vamos apresentar a atividade, é interessante discutir sobre estes perfis. Também na introdução é importante que se defina um modelo padrão da atividade. Considerando que ela não possui uma forma fechada de ser, determinamos aquele que vamos discutir. Neste sentido, é interessante procurar relatar a variedade potencialmente mais significativa e com características mais equilibradas. Sempre que formos fazer esta avaliação, precisaremos delimitar quem é o “público” daquela atividade. Por exemplo, o público de uma manifestação política é quem se manifesta, quem a assiste ou a quem ela procura pressionar? Esta definição será fundamental, pois o mediador só pode realizar sua intenção d envolver ao máximo o sujeito se ele é capaz de identificá-lo. Sem identificar o interlocutor, não há como se aproximar a ele e lhe sugerir experiências potencialmente significativas. Identificando-o, posso discutir como cada uma das quatro componentes da experiência envolve o sujeito e responder a pergunta: a intenção está em envolvê-lo predominantemente através de qual característica? Encontrar qual é a central nos pode ser importante para utilizar a atividade em determinado movimento. Por exemplo, aquelas mais centradas no Meio e não na Ação, podem ser melhores para serem utilizadas pelo mediador em momentos onde não possa depender da participação e execução da comunidade. Quanto mais a atividade tiver abertura à intenção de envolvimento nas quatro componentes, maior sua chance de ser significativa. Devo então me questionar de como posso verificar este 101


VII Carta ao mediador

envolvimento, buscando avaliar não se a pessoa que passou pela experiência se transformou ou desenvolveu a consciência que buscamos desenvolver, mas se ela de fato se envolveu nas quatro dimensões como esperávamos, lembrando nossa discussão anterior sobre o mediador: uma vez não sendo possível medir o grau de distensão ou de inconsciência, podemos avaliar o processo nos atos, não o resultado de um desenvolvimento. Estas definições de experiência nos colocam, finalmente, no ponto de desenhar as linhas mestras de nossa estratégia de reação à distensão entre o viver e a vida.

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Capítulo 5 Estratégia

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Estratégia “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só fal78. Negreiros, Almada. A invenção do dia claro (p8)

tava uma coisa – salvar a humanidade” 78. Almada Negreiros, já no começo do século XX, afirma algo que perdura até nossos tempos: sem ação, boas ideias não bastam. Muita coisa mudou desde que o poeta e artista escreveu que “tudo está em tudo”, e nunca poderemos saber ao certo como era a vida naqueles duros tempos entre duas grandes guerras mundiais. De lá para cá, inegáveis os avanços e as grandes transformações que ocorreram nas sociedades, mas, assim como a frase do português permanece atual, algumas questões restam intocadas: como sociedade, estamos reagindo melhor à distensão entre o viver e a vida? Estamos mais conscientes e autônomos para viver a vida que queremos viver? Ao menos sabemos, mais profunda e plenamente do que no tempo de Almada, afinal qual é a vida que queremos viver e porquê? A conclusão deste trabalho, tão pautado na discussão e exposição de ideias e na definição de conceitos, não poderia tomar outra forma do que efetivamente uma proposta prática de ação.

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VII Carta ao mediador

Não podemos aceitar a possibilidade de não sabermos quais são nossas vontades profundas, nem de viver uma vida que não queremos viver. O fatalismo nos discursos que justificam a hegemonia de vertentes baseadas na distensão, gerando situações de desigualdade e dominação, consentida ou não, através de quaisquer que sejam os meios, faz parte de uma sociedade com grandes dificuldades de reagir. A vontade de reagir existe e cada vez mais as sociedades parecem buscar intervir naquilo que as interessam. “É como se a civilização moderna, com seus enormes complexos industriais e empresariais e com seus meios eletrônicos de comunicação massiva, tivesse levado os homens primeiro a um individualismo massificador e atomizador e, mais tarde, como reação defensiva frente à alienação crescente, os levasse cada vez mais à participa79. Bordenave. O que é participação (p7)

ção coletiva” 79. Mas esta vontade não se transforma em ação se estiver apenas no campo da percepção. Sem se tornar consciência e sem haver instrumentos que a possibilitem intervir, permanece silenciada. Pois bem, sintetizemos o discutido e façamos a conclusão deste trabalho em uma estratégia – evidentemente não exclusiva ou fechada – de reação à lógica de distensão que apresentamos, criticando a hegemonia de vertentes consolidadas de experiências. Se, como dissemos, é vivendo que se aprende a viver a vida, a estratégia deve ser um encadeamento de experiências de integração. Tendo sempre em mente que devemos buscar o máximo envolvimento do sujeito, sem esperar que possamos “enformá-lo”, as ações da estratégia são essencialmente sugestões e não compreendem qualquer tipo de coerção. Seus objetivos devem, portanto, em primeiro lugar favorecer que o sujeito desenvolva ou aprofunde a consciência de suas próprias vontades profundas de vida; em seguida, desenvolver reflexão crítica quanto às experiências existentes do viver cotidiano; assim, pode-se desenvolver consciência da distensão entre o viver e a vida; com esta consciência, desenvolver autonomia da comunidade reagir à distensão.

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Estratégia

Mas se temos objetivos assim claros, a proposta de reação seria um método? Talvez este termo pressuponha uma relação de causa e efeito de tal forma precisa que seria possível reproduzi-lo, alcançando sempre os mesmos resultados. Em realidade, nossa proposta não pode assumir tais expectativas. Não temos como prever o que será gerado ao longo e ao final de nossa trajetória, ainda mais por não termos formas de avaliar com clareza e precisão as transformações que estão ocorrendo e muito menos antevermos as instabilidades no decorrer do processo. Diferentemente da rigorosidade do método, nossa proposta é uma estrutura aberta, uma vez que “o ambiente pode se tornar tão turbulento que mesmo as melhores técnicas de planejamento perdem seu uso pela impossibilidade de prever o tipo de estabilidade que eventualmente emerge.” E Mintzberg continua: “em resposta a este tipo de inconsistência no ambiente, padrões de mudança estratégica nunca são estáveis, mas sim irregulares e ad hoc, com uma complexa combinação de períodos de continuidade, transformação, fluxo, limbo e assim por diante” 80. Sendo assim, o que propomos é uma estrutura dinâmica de encadeamento, como se fosse

80. Mintzberg, Henry. Patterns of strategy formulation (p943) Tradução livre

uma meta-estratégia. A estratégia em si deve ser formulada e reformulada constantemente pelo próprio grupo de mediadores em conjunto com a comunidade, de acordo com as especificidades e transformações que forem encontrando e ocorrendo ao longo da intervenção. Desta forma, seguindo a definição de Mintzberg, temos que a meta-estratégia é um “padrão em uma sequência de decisões” 81, nas quais a formulação completa depende das circunstâncias e condições do ambiente.

81. Idem (p935)

Desta definição já concluímos que a estratégia não pode estar engessada em alguma instituição, dependente de qualquer tipo de estrutura. Pelo contrário, é interessante que o mediador possa pressupor de total liberdade e independência institucional. Esta liberdade não precisa significar aversão ao apoio, pelo contrário, significa que o mediador pode tanto atuar individualmente como amparado por qualquer organização. Este amparo pode inclusive ser fundamental para viabilizar sua atuação e disponibilidade. Desta forma, a estratégia se solta de amarras e permite que seja desenvolvida de forma profundamente flexível e multidisciplinar, ou “adhocrática”, seguindo a linha de raciocínio de Mintz109


VII Carta ao mediador

berg. Segundo Gutierrez, “estamos aterrissando com tudo na era do poder (cracia) ad hoc (aqui e agora). [...] Esse roteiro do novo milênio privilegia as conexões em detrimento dos objetos, pessoas ou produtos. Os fios de ligação são mais importantes que a existência física de 82. Ver Gutiérrez, Bernardo. A era adhocrata. In select.art

elementos isolados” 82. Esta liberdade vai fazer com que a estratégia tenha apenas uma dependência para que seja desenvolvida e executada: a escolha consciente daqueles que serão responsáveis por ela. Pois então, quem são eles? A estratégia depende de mediadores – pessoas que desenvolveram consciência e autonomia frente à distensão, sendo suas próprias mediadoras internas entre o viver e a vida – optarem por desenvolvê-la. Muitas vezes vemos indivíduos realizarem esta escolha, mas não saberem por onde iniciar ou como desenvolver o trabalho. A meta-estratégia e a abordagem aqui propostas terão esta função de suporte, descortinando outra figura importante no processo, os monitores. Estes são mediadores que já estão familiarizados com a estrutura geral da estratégia, já desenvolveram suas próprias formas de intervenção em outras comunidades e podem auxiliar novos mediadores em suas empreitadas. Sendo assim, é interessante que novos mediadores conheçam as ações realizadas por (possíveis) monitores, que vejam como desenvolveram suas estratégias e que possam compartilhar experiências semelhantes entre si. Por exemplo, uma pessoa que atuou em um bairro com determinadas características, pode ajudar muito outra pessoa que vá iniciar sua atuação em um bairro semelhante, mesmo que evidentemente sempre sejam muito distintos. Mediadores e monitores, a partir de sua mútua decisão de atuarem juntos, passam a interagir com pilares, que serão fundamentais para as intervenções práticas tomarem vulto. Mas as ações de mediadores, monitores e pilares não serão significativas se permanecerem distanciadas da comunidade onde estão intervindo. Esta é a mais importante das considerações, pois sem envolver cada vez mais profundamente os sujeitos que formam o conjunto social, toda a busca por desenvolver experiências significativas cai por terra. Sendo assim, as ações da estratégia, realizadas por todas as figuras que nela se envolvem, de-

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Estratégia

vem estar permanentemente pautadas na busca pela consciência e autonomia do conjunto social onde atuam. Ao final do processo, a integração entre as experiências do viver cotidiano e as vontades profundas por experiências de vida deixa de depender daqueles que arquitetaram a estratégia inicial de mediação. Contudo, não devem esperar que no curto tempo de intervenção, a totalidade da comunidade se torne consciente e autônoma frente à distensão, mesmo porque seria impossível verificar tal transformação. Devem buscar que o corpo social, como unidade, aumente seu envolvimento em experiências de integração e tenha autonomia para permanecer reagindo à distensão: o mediador busca que a comunidade passe a ser sua própria mediadora. Sendo assim, este é seu objetivo final, que será concretizado na sugestão de desenvolvimento de um projeto político-pedagógico. Esta permanente busca pelo envolvimento do sujeito, de forma que sua complexidade esteja contemplada e o possibilite ver significado nas experiências propostas, não permite que alienemos desta integralidade sua dimensão física. Ou seja, o sujeito está sempre presente no espaço. Desta forma, paralela e simultânea a todas suas outras características, não se pode desconsiderar uma pergunta fundamental: qual é o espaço do sujeito e qual é o espaço de sua comunidade? Mesmo se discutirmos o espaço virtual na perspectiva de Pierre Levy, veremos que a desterritorialização não implica a redução do sujeito, em realidade pode até potencializar a expressão de algumas de suas características ao se virtualizar e se tornar “não-presente”. Não podemos deixar de lado as possibilidades que os recursos do ciberespaço oferecem, e, como local também passível de gerar experiências, deve ser considerado na estratégia, seja compartilhando informações ou de fato interagindo. Como diz Levy, “a virtualização do corpo não é, portanto, uma desencarnação, mas uma reinvenção”

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onde há uma mudança de identidade e não per-

da dela. Contudo, o “limite jamais está definitivamente traçado entre a virtualização e a amputação” 84. Sem a existência física do sujeito que se faz virtual ou do substrato que permite a virtualização,

83. Levy, Pierre. O que é virtual (p17) 84. Idem

não há este novo espaço. Mesmo sendo real e até multiplicando a presença da pessoa, o espa-

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VII Carta ao mediador

ço virtual é uma extensão, ou parte dependente, do atual. O corpo, assim como o lugar, é inevitável à própria existência. Sendo assim, a estratégia não pode ser fundada na experiência da virtualização, por mais que deva englobá-la, mas precisa nascer da possibilidade de envolvimento completo e complexo do sujeito, cuja dimensão física é inexorável. Uma vez que é através deste envolvimento do sujeito em experiências no espaço da comunidade – leia-se, de forma geral, o bairro – que o mediador busca o desenvolvimento da consciência da distensão, a estratégia toma a forma de intervenção. Simultaneamente a “aprender a viver a vida”, busca-se o próprio “viver”, da mesma forma que Paulo Freire dizia que é “decidindo 85. Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia (p41)

que se aprende a decidir” 85. Sendo assim, ao transformar o espaço, modificamos a consciência, e ao modificar a consciência, transformamos o espaço. Portanto, se falamos do lugar do sujeito na comunidade, estamos falando de um perímetro de intervenção, logo, quais parâmetros o delineiam? Em primeiro lugar, para viabilizar que o mediador encontre elementos que dizem respeito a todo conjunto social – sua identidade, mesmo que múltipla – este perímetro não deve ser muito extenso. Quanto maior o espaço abarcado pela estratégia, maior a complexidade com a qual estaremos lidando, pois maior será a diversidade entre grupos e pessoas e maior a dificuldade em propor experiências que envolvam e sejam significativas a todos. Esta multiplicidade é muito bem vinda e inevitável, mas cada intervenção, para ser viável, deve lidar com uma identidade apreensível, relacionando-se com áreas vizinhas de forma própria e adequada. Ou seja, se mediadores estiverem atuando em diversos perímetros justapostos, teremos uma intervenção completa em perímetros muito mais amplos. De forma oposta, o perímetro não deve ser muito restrito, pois ao mesmo tempo em que precisamos encontrar características gerais da comunidade abrangida, não podemos conhecê-la em toda sua complexidade, pois todas as pessoas que a compõem permanecem distintas entre si. Ou seja, para que também seja viável propormos experiências que possam ser significativas e envolver o máximo possível do conjunto social, precisamos que as propostas sejam variadas. Esta variedade só pode ser alcançada se as experiências forem sugeridas em espaços e circunstâncias diversas e se neles estiverem presentes pessoas distintas, do que decorre a necessidade de um perímetro não muito pequeno. A estratégia, se desenvolvida em apenas um

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Estratégia

trecho de rua, por exemplo, terá menos oportunidades de intervenção e de gerar experiências que sejam significativas de diversas formas. A este princípio de abrangência, que nos diz que o perímetro deve ter uma escala que viabilize a estratégia, soma-se outro princípio que diz respeito à forma de atuação do mediador. Uma vez que o desenvolvimento da consciência é progressivo, como discutimos anteriormente, e que não podemos avaliar com clareza o estado de consciência de uma pessoa, muito menos de uma comunidade, a estratégia deve partir da possibilidade de pior situação, mesmo que toda comunidade possua algum grau de consciência da distensão. Considerando que o objetivo do mediador está no desenvolvimento ou aprofundamento desta consciência e da autonomia, então temos um princípio de gradação: iniciamos a estratégia considerando a possibilidade mais crítica, onde a comunidade não tem qualquer consciência e consente passivamente à manutenção da hegemonia de vertentes de experiências que se reproduzem pela distensão. Da possível inconsciência total à consciência do conjunto, teremos então uma série de momentos aonde gradativamente vamos buscando cada vez mais direta e profundamente a participação do sujeito. Passamos, assim, de momentos onde a sugestão da experiência é centrada na figura do mediador a momentos onde essa sugestão deixa de ser realizada por um agente externo e passa a ser feita pelo conjunto social, de forma autônoma. “A participação fixa-se o ambicioso objetivo final da ‘autogestão’, isto é, uma relativa autonomia dos grupos populares organizados em relação aos poderes do Estado e das classes dominantes. Autonomia que não implica uma caminhada a anarquia, mas, muito pelo contrário, implica o aumento do grau de consciência política dos cidadãos, o reforço do controle popular sobre a autoridade e o fortalecimento do grau de legitimidade do poder público quando este responder às necessidades reais da população” 86. O princípio de gradação, coerente com o conceito de zona de desenvolvimento proximal que

86. Bordenave. O que é participação (p20-21)

exploramos na metáfora da superfície da esfera, nos mostra que os diferentes momentos da estratégia, logo seus diferentes graus de participação, não deixam de buscar o máximo envol113


VII Carta ao mediador

vimento do sujeito, “pois a participação, mesmo quando concedida, encerra em si mesma um potencial de crescimento da consciência crítica, da capacidade de tomar decisões e de adquirir poder” 87.

87. Idem (p.29)

Ou seja, se o mediador iniciasse sua intervenção dependendo de que a comunidade já tivesse capacidade de se autogerir, e de propor suas próprias experiências de integração, caso esta suposição esteja incorreta, a estratégia corre sério risco de falhar. Bordenave define uma escala de graus de participação. Mesmo considerando que sua escala é baseada em relações de subordinação, diferentemente da presente proposta, podemos tomar emprestados alguns conceitos.

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88. Idem (p31)

O mediador inicia sua trajetória independente do grau de consciência participativa da comunidade. Ou seja, seus primeiros passos são de se aproximar da realidade dela, buscando compreender a situação na qual irá intervir. Em seguida, para começar a compreender a especificidade e identidade do conjunto social, depende do contato e consulta aos primeiros interlocutores. Aprofundando seu envolvimento e estabelecendo vínculos com membros ativos da comunidade, a equipe se expande, de forma que mediadores e pilares passam a atuar em parceria horizontal. Até este ponto, lembrando-se do princípio de abrangência, ainda não entramos na difusão das experiências a todo o perímetro de intervenção. A partir da formação da equipe, passa-se a sugerir as primeiras atividades à comunidade como um todo, mas ainda sem depender de sua participação. Gradualmente a comunidade passa a assumir a autonomia na proposta de experiências e a se mobilizar como conjunto. 114


Estratégia

Identificamos, assim, dois grandes atos da estratégia. No primeiro, mediadores e pilares aprofundam seu envolvimento e sensibilização com a comunidade, buscando os primeiros direcionamentos de como propor experiências que possam ser significativas; enquanto no segundo, estas experiências são realizadas e caminha-se para que sejam propostas e realizadas cada vez mais autonomamente pela própria comunidade. Podemos dividir cada ato em ao menos três movimentos.

I: Orquestração O primeiro movimento da estratégia precisa partir da decisão do mediador em desenvolvê-la. Esse momento muitas vezes é negligenciado e desvalorizado, mas sem nos preocuparmos com ele, facilmente o mediador pode se desmotivar ou estar inseguro a ponto de interromper a estratégia no meio. A Orquestração é o momento em que se passa a conhecer a meta-estratégia, buscando-se estar amparado e seguro para desenvolver o processo com uma intenção focada e bem embasada. Aqui, mediadores formarão sua equipe inicial com outros mediadores e com monitores.

II: Aproximação O segundo movimento é o início do envolvimento de fato dos mediadores com a comunidade. Para começar a se aproximar da situação específica com a qual irá lidar, procurando observar o perímetro com olhos mais críticos e sensíveis, o mediador realiza uma série de leituras e mapeamentos do perímetro de intervenção. O objetivo final desta aproximação deve ser, ao entrar interagir com os primeiros interlocutores, abrir caminho ao contato com pilares.

III: Contato O último movimento do primeiro ato é este contato com as pessoas ativas do bairro. Pilares serão fundamentais em todo o processo, pois são as pessoas que já estão envolvidas com o desenvolvimento de atividades e as mais diversas experiências. O que propomos a eles é o aprofundamento desta intervenção. Terminamos o Contato tempo ampliado nossa equipe para, juntos, propormos as primeiras experiências à comunidade. 115


VII Carta ao mediador

IV: Difusão O primeiro movimento do segundo ato inicia a intervenção propriamente dita, sugerindo experiências em todo o perímetro abrangido. Inicialmente, as atividades propostas ainda são muito centradas nas figuras de mediadores e pilares, devendo ser compreendidas como um momento de avaliar o grau de envolvimento e potencial participação da comunidade. As propostas que são realizadas são pontuais e devem ser viáveis do ponto de vista de recursos e execução, de forma que possam atingir os objetivos do movimento.

V: Integração Da mesma maneira que a Difusão, a Integração permanece sendo um movimento propositivo de experiências, mas já buscando e dependendo de maior participação da comunidade. Formam-se grupos que viabilizam projetos maiores, bem como realizam discussões sobre questões do bairro. Os grupos sociais que formam a comunidade começam a ser mais articulados entre si nas propostas de experiência, e os bairros vizinhos começam a ser envolvidos.

VI: Desenvolvimento A busca pela participação cada vez mais difundida e pela mediação cada vez mais autônoma da comunidade culmina, para a estratégia, no Desenvolvimento. Este é o último movimento de intervenção, o que não significa o final da busca pela mediação entre experiências de viver e de vida. Neste ponto, espera-se que a comunidade, como conjunto, esteja atuando autonomamente frente à distensão e desenvolvendo projetos e atividades cada vez de maior vulto, dadas as vontades por experiências de vida dos sujeitos que a compõe. Aqui, o mediador sairá de cena, sintetizando com o conjunto social um projeto que dê sequência à mediação e sumarize as estratégias de integração entre as experiências práticas e as vontades profundas por experiências de vida da comunidade.

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Estratégia

Os seis movimentos da estratégia são subdivididos em uma série de momentos, os quais serão detalhados na segunda parte deste trabalho. Como meta-estratégia, nossa proposta não pressupõe que o mediador se utilize necessariamente de todos os momentos, nem que deixe de incluir outros que considerar importantes. Nossa intenção é de ajudá-lo a encontrar seu caminho, ou seja, a meta-estratégia é uma sugestão reflexiva. Após os seis movimentos, chegamos a esta sugestão como um VII Movimento, cuja intenção fundamental é possibilitar que mediadores desenvolvam suas próprias formas de atuação. Para tanto, o VII é composto dos textos de fundamentação, aqueles que findam neste capítulo; a meta-estratégia, em seus seis movimentos e diversos momentos; a constelação de experiências, onde refletimos sobre o repertório que o mediador pode vir a utilizar; e nos ensaios realizados ao final da intervenção dos mediadores, onde se narra o percurso da estratégia. A sugestão de percurso da meta-estratégia, em seus diversos momentos, seis movimentos e dois atos, é composta de dois tipos de ação: estratégicas e integradas. As estratégicas são aquelas que formam o encadeamento da meta-estratégia, ou seja, cuja articulação depende uma da outra. De forma distinta, as ações integradas são as experiências que o mediador “constela”, como discutimos. Sua seleção depende diretamente das especificidades da comunidade. Busca-se que o final do percurso do mediador seja simultâneo à consolidação da autonomia plena da comunidade em buscar suas experiências de integração. Por este motivo, o movimento final é denominado Desenvolvimento e não “conclusão”, ou algo assim. O Desenvolvimento diz respeito à última ação do mediador, que é sugerir a experiência de síntese das discussões dos grupos formados e das propostas de experiências em um projeto. Esta síntese toma tanto a face política, nos termos da democracia deliberativa que discutimos, quanto pedagógica, no sentido da proposta de experiências de integração e do desenvolvimento contínuo e permanente da consciência da distensão e respectiva autonomia de reação a ela. Assim como indicado na Lei de Diretrizes e Bases para a educação do Brasil, onde se diz que os projetos pedagógicos das escolas devem ser realizados por toda a comunidade escolar, em um processo participativo e político, provocamos que o bairro, na perspectiva apresentada, também realize seu projeto político-pedagógico como síntese do trabalho do mediador. Nas

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VII Carta ao mediador

palavras de Vasconcelos, ele “pode ser entendido como a sistematização, nunca definitiva, de um processo de Planejamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. É um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e 89. Vasconcelos, Celso. Coordenação do trabalho pedagógico (p169)

integração da atividade prática da instituição neste processo de transformação” 89. Contudo, diferentemente de um projeto político-pedagógico de uma escola, o que aqui propomos integra diversos campos da experiência, principalmente os três expostos anteriormente: a cidade, a política e a educação. Sendo assim, sua síntese será uma união, provocada pelo mediador, entre ideias de plano de bairro, micro-pools deliberativos, e projetos pedagógicos democráticos fundados no conceito de cidade educadora. Esperamos que as a meta-estratégia e todo o conjunto do VII Movimento sejam bases suficientemente sólidas, mas permanentemente flexíveis sobre as quais possamos construir formas de reagir à distensão entre as experiências do viver cotidiano e nossas vontades profundas por experiências de vida. Todos merecemos viver plenamente. Viver a profundidade que a vida nos traz. Ver a beleza que o mundo nos oferece. “Eu sou o resultado consciente da minha própria experiência: a experiência do que nasceu completo e aproveitou todas as vantagens dos atavismos. A experiência e a precocidade do meu organismo transbordante. A experiência daquele que tem vivido toda a intensidade de todos os instantes da sua própria viva. A experiência daquele que assistindo ao desenrolar sensacional da própria personalidade deduz a apoteose do ho-

90. Negreiros, Almada. Ultimatum futurista.

118

mem completo” 90.




Parte II EstratĂŠgia



I Movimento: Orquestração



Orquestração Olá! Seja muito bem vindo. A Orquestração é o movimento inicial da estratégia. Ela parte do desconforto da pessoa com as experiências que a circundam e de sua vontade de reagir a esta situação. Seu objetivo é que o mediador se sinta devidamente seguro e amparado para iniciar sua reação com consistência e tranquilidade. Sem dúvidas, é um movimento que pode acontecer de maneira natural, sem precisar ser instigado pelo VII. É normal que pessoas que sentem o desconforto e conseguem enxergá-lo como “causa”, comecem a atuar de alguma forma frente a ele, organizando-se de maneira semelhante como aqui se sugere. Este movimento é equivalente ao momento em que nos reunimos com amigos para encontrar uma forma de resolver problemas cotidianos de nossa sociedade, do mais tangível ao mais utópico. De qualquer forma, a Orquestração pode ser útil tanto àqueles que já iniciaram alguma atividade e começaram a encontrar seu caminho de atuação, quanto àqueles que se sentem sem saber por onde começar. De uma forma ou outra, é interessante observar a estratégia

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proposta, criticá-la e complementá-la, e fundamental o momento de Articulação para que se entenda a estrutura geral da estratégia e seus conceitos. Os momentos da Orquestração: 1. Prelúdio: percepção do desconforto e vontade de ação 2. Articulação: alinhamento de conceitos, estratégia e formação da equipe 3. Plano de ação de aproximação

1. PRELÚDIO Qualquer um, jovem ou idoso, pobre ou rico, com muitos anos de estudo ou sem nenhum, pode passar pelo momento de criticar algo de seu cotidiano, a condição de seu bairro, a situação da rua onde viveu quando era mais jovem, etc. encontrando incoerências entre o que se vive e o que se gostaria de viver. Passamos por este tipo de desconforto praticamente todos os dias de nossas vidas, mas nem sempre percebemos os absurdos que nos envolvem, como se estivéssemos viciados ou cegos para aceitar coisas com as quais definitivamente não concordamos. Como discutimos no capítulo sobre a sociedade distendida, este é o momento em que percebemos a separação entre as experiências do viver cotidiano (como a que temos na cidade, nos hospitais, nas escolas...) e a vontade que temos de experiências profundas da vida (como a de que a cidade nos acolha, a saúde, o aprendizado...) e nos questionamos se na realidade estas experiências de vida e viver não deveriam estar muito próximas, quase como uma coisa só, de forma que cada dia vivêssemos profundamente o que a vida tem de melhor. Perceber que ambos, o viver e a vida, estão de alguma forma afastados e não parecem tender a se aproximar é um ótimo ponto de largada para alguma reação, onde você pode atuar como mediador. Relembrando alguns exemplos práticos, podemos sentir este desconforto: quando nossos filhos não gostam da escola e sentimos que ela é mais uma prisão do que de fato um espaço educativo; quando passamos horas no trânsito em nossas cidades para chegar ao trabalho e horas para voltar, em transportes públicos precários e lotados; quando planos de saúde são

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muito caros, a saúde pública é péssima e tudo que fazemos e comemos parece prejudicar nossa saúde; quando tropeçamos nas calçadas mal cuidadas, não podemos olhar para os pássaros ou para o céu e não há áreas agradáveis que nos acolham para encontrarmos nossos amigos; quando trabalhamos horas a fio, todos os dias e não ganhamos o suficiente para adquirir o que a sociedade diz que devemos ter e que na realidade nem achamos de fato que precisamos, ou mesmo para comprar o mínimo que nossa família precisa... Cada um de nós tem seus próprios desconfortos, que muitas vezes compartilhamos. O Prelúdio é o momento em que ganhamos esta consciência e, ao invés de nos resignarmos a aceitar fatos que não gostaríamos de aceitar e que nos fazem sofrer, nos propomos a agir para mudar a situação. É claro que entre se propor a agir e de fato agir há uma série de dificuldades que vão da disponibilidade de tempo – rara em tempos tão frenéticos como o nosso – para além de nossas responsabilidades já assumidas, até saber por onde começar. Quantas vezes não temos uma ideia excelente, uma vontade profunda de realizar algo, e acabamos deixando de lado por um motivo qualquer? Mas estamos aqui para não deixar isso acontecer. Fique tranquilo meu amigo, fique tranquila minha amiga, anime-se, um mundo de grandes experiências está a sua frente e esperamos ajuda-lo a encontrar o caminho de sua estratégia de ação. Se você está aqui conosco, você já está realizando seu Prelúdio. Para percorrer o caminho até o fim, talvez você tenha que fazer algumas mudanças no seu cotidiano, incorporando diversos momentos e dinâmicas que hoje não realiza. Mas aconselhamos a tentar, mesmo que pareça difícil de início, a embarcar em tal experiência, as transformações que pode fazer no mundo tendem a ser incríveis.

2. ARTICULAÇÃO O passo inicial já foi dado, comecemos então a nos preparar. A Articulação busca ampará-lo de todas as formas possíveis para que se sinta seguro de desenvolver sua própria estratégia. • Forme a equipe É muito importante que você não trabalhe sozinho como mediador, de forma que tenha sem-

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pre com quem confrontar suas ideias e que esteja no mesmo barco que você. Idealmente, sugerimos uma equipe de três mediadores , que você pode encontrar principalmente entre seus amigos e vizinhos, que compartilham com você os mesmos desconfortos e vontade de ação. É muito possível que este time já tenha sido formado no Prelúdio, o que é muito saudável. A construção coletiva desde o início do percurso é sempre mais rica, lembrando que cada momento da estratégia incorpora mais pessoas e mais interesses, de forma que é fundamental permanecer aberto a novidades e modificações de percurso. Cuidado para não personificarem o trabalho. • Leiam a ‘Carta ao Mediador’ até o final É importante que vocês entendam os conceitos, a intenção e a estrutura de cada passo estratégico sugerido no VII. Não temos a menor pretensão de negar qualquer ação que esteja fora do método apresentado, muito pelo contrário, encorajamo-los ao máximo inclusive para ampliar e aperfeiçoar o próprio método, contudo cada momento de cada movimento tem uma razão de ser sobre a qual, no mínimo, gostaríamos que refletisse e conscientemente incorporasse ou não, afinal, a estratégia é sua, o VII é apenas um guia. • Integrem-se à rede de mediadores Outras pessoas já passaram por experiências semelhantes à que você está prestes a passar, de diversas formas diferentes, desenvolvendo de projetos pontuais a estratégias completas de intervenções em comunidades, nos mais diversos formatos. Procure estas pessoas e integre-se à rede de mediadores na plataforma online do VII. Esta plataforma compila todas as informações, conexões e contatos necessários para seu trabalho, incluindo este texto. Ao integrar-se à rede, poderá observar o que é possível realizar e conhecer pessoas que podem auxiliá-lo em sua estratégia. Neste sentido, recomendamos que se busquem na rede as pessoas que serão os Monitores de seu trabalho de mediação. São pessoas que já tem experiência com a estratégia e atuaram como mediadores, conhecendo-a não só em alguma profundidade teórico-conceitual, mas principalmente prática, e podem ajudar você em orientação, suporte, crítica e acompanhamento. É interessante que se crie um vínculo com o Monitor para que ele

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conheça razoavelmente bem a situação e andamento dos trabalhos, por mais que possa atuar de forma remota.

3. PLANO DE AÇÃO DE APROXIMAÇÃO Concluímos a Orquestração com um Plano de Ação para o II Movimento, a Aproximação. • Narrativa de Orquestração As narrativas são importantes para contar a história do que aconteceu e está acontecendo no bairro onde se resolveu atuar, mas são narrativas dos mediadores sobre a sua estratégia, posteriormente é muito importante que a comunidade escreva sua própria história. As narrativas serão importantes tanto para que se possa realizar uma avaliação posterior do percurso traçado, quanto para futuramente apoiar novos mediadores em suas estratégias, em momentos onde você poderá atuar como Monitor. A narrativa de orquestração conta, brevemente, cada momento deste primeiro movimento: o que os motivou a agir, quais desconfortos, como a equipe de mediadores se formou, como foi o contato com o monitor, como foi o primeiro contato com a VII, criticas e comentários. Tudo o que quiserem contar é bem vindo. • Perímetro de aproximação O VII propõe o desenvolvimento de estratégias na escala de bairros, entendendo que a comunidade se desenvolve de diversas formas neste nível de proximidade, a escala das experiências humanas, da pessoa. Pode-se variar bastante a dimensão do bairro, englobando de poucas ruas a muitas quadras, de forma que cada estratégia se desenvolve de uma forma específica, contudo, o importante é que se considere uma área coerente com a escala do sujeito, do percurso a pé, da justaposição próxima de experiências que irão ser propostas. O perímetro de aproximação é a primeira delimitação espacial realizada na estratégia. É um perímetro arbitrado pela equipe de mediadores, com base em seu conhecimento prévio do bairro. É importante que os limites sejam prioritariamente barreiras urbanas físicas, como gran-

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des avenidas, rios, linhas férreas, ou qualquer outra que separe áreas distintas. Muitas vezes se percebe limites delimitados por diferenças de personalidade entre bairros. Nestes casos é preciso tomar cuidado em definir um perímetro de aproximação que não acabe segregando uma mesma comunidade, assumindo-se ser diferentes por sua variedade de personalidades e usos. Não se preocupe com o rigor deste perímetro, ele será superado por outros no decorrer da estratégia. No momento, preocupe-se em definir a área que vão se aproximar, conhecer com mais profundidade e analisar para dar início ao contato direto propriamente dito, não deixando de observar com cuidado os bairros vizinhos também, eles terão papel importante nos movimentos subsequentes. É fundamental que se tenha este perímetro desenhado em um mapa básico com ruas e praças que englobe parte do entorno do bairro de intervenção, de forma que possam marcar pontos, eixos, percursos e todas as informações pertinentes ao movimento de aproximação. Esta leitura espacial do bairro será fundamental para toda a estratégia. • Metas e objetivos Leia o próximo movimento, entenda do que ele se trata e de acordo com as características do bairro de intervenção, defina suas metas e objetivos para a Aproximação. Planeje seus passos, o que considerar na deriva, o que registrar na visão seriada, quais leituras e mapeamentos realizará e onde conseguirá as informações. As metas serão, a princípio, cumprir este plano e levantar o que se planejou levantar, mas parte fundamental da aproximação é baseada em aprofundar leituras e, a partir do conhecimento do bairro, encontrar informantes e mapear os pilares, atividades cuja dinâmica e tempo não se pode prever com precisão. • Cronograma Assim, com base nos objetivos e metas de deriva, visão seriada e levantamentos; e na estimativa de tempo para aprofundar a leitura, encontrar os informantes e mapear os pilares, pode-se estipular um cronograma de ação. Todos os cronogramas são importantes para que se coloque

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a ação em uma linha do tempo, de forma que não se perca a noção de estar caminhando a um objetivo. O cronograma de aproximação depende muito das características do bairro de intervenção, suas dimensões e complexidades, e da disponibilidade da equipe de mediadores, podendo tomar de uma semana a mais de oito. Feche o Plano de Ação de Aproximação em um documento único composto das partes descritas e de quais mais considerar adequadas. Feito isso, partimos para o movimento de Aproximação ao bairro de intervenção, o II Movimento.

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II Movimento: Aproximação



Aproximação Na Aproximação, começamos a nos aproximar de fato do bairro, buscando compreendê-lo com um olhar mais cuidadoso e analítico. Muitas vezes moramos ou trabalhamos por muito tempo em uma área e nunca olhamos com calma para ela ou acabamos parando de olhar, quando se torna muito “familiar”. Quando fazemos a Aproximação, passamos a prestar atenção em elementos que não percebíamos antes, que aos poucos nos ajudam a compreender nosso desconforto, e em seguida a encontrar as pessoas com quem vamos trabalhar na intervenção. Este movimento parte do I Movimento, o Prelúdio, aquele onde nos preparamos para começar a atuar e formamos a equipe de mediadores e monitores. Conclui-se a aproximação quando temos levantadas as informações sócio-econômicas e urbanas do bairro; levantamos e mapeamos as experiências que já foram e são desenvolvidas pela comunidade; e, principalmente, mapeamos os “pilares” do bairro, que são as pessoas que se destacam pela vontade de intervenção, pela facilidade de comunicação e articulação. A Aproximação propõe o envolvimento profundo dos mediadores na percepção da área, as-

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sim, em alguns momentos sugere-se aproximação mais sensível, mais racional e analítica em outros, em outros, silenciosa, comunicativa em outros, etc. A soma dos momentos propostos busca um envolvimento integral dos mediadores ao espaço que estão se propondo a intervir, favorecendo o conhecimento empírico de situações sobre as quais vão discutir com a comunidade posteriormente. Os momentos da Aproximação: 4. Sensibilização 5. Leitura do bairro 6. Refinamento e interação 7. Plano de ação de contato

4. SENSIBILIZAÇÃO A sensibilização é baseada nos conceitos de deriva; visão seriada; e etnografia. Percorre-se o bairro observando alguns elementos, dando tempo ao tempo, buscando ambientar-se naquele desconforto que deu início a estratégia. Como você provavelmente já deve ter algum vínculo com a área – seja por ser morador, trabalhar ou por qualquer outro motivo – é fundamental observá-lo com um olhar diferente do que está habituado antes de passar ao momento de Leituras. Sugere-se que este momento seja realizado em duas partes na sensibilização do espaço de uso público: a Deriva, profundamente sensível e descritiva, e a Visão Seriada, mais analítica e com muitos registros. Uma terceira parte poderia envolver a sensibilização do espaço privado, lembrando ideias mais complexas de etnografia e do “urbenauta”. Contudo, não nos parece fundamental para a estratégia este tipo de abordagem, principalmente considerando as potenciais dificuldades em se executar tal forma de aproximação. 91. Debord, Gui. Teoria da deriva

• Deriva Debord chamou a deriva de uma “técnica de passagem rápida por ambiências variadas”. Diz

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que é oposto à noção de viagem ou passeio por seu reconhecimento de efeitos da natureza do espaço na pessoa. Esta se entrega livremente ao terreno, sem qualquer tipo de roteiro, deixando-se levar pelas experiências que encontra nele: seus micro-climas, seu movimento e turbilhões, seus centros de atração ou afastamento, etc. Estas experiências é que formam a imagem simbólica da área, de forma que “um bairro urbano não é determinado somente pelos fatores geográficos e econômicos, mas pela representação que seus moradores e os de outros bairros têm dele”. Quem faz? A deriva pode ser realizada por um mediador individualmente, mas é muito mais interessante realizá-la no grupo de mediadores. Quando realizada em duas ou três pessoas, as discussões posteriores sobre sua experiência tendem a ser mais proveitosas e chegar a conclusões mais profundas. Quanto tempo? Sugere-se que ela seja realizada em várias horas em um ou alguns dias, de preferência sem preocupação com horário de término. A conclusão da deriva está em quando os mediadores sentem que já sentiram o suficiente, e não quando um relógio toca seu alarme ou quando chegamos a algum lugar específico do espaço. Qual perímetro? Definimos o perímetro de aproximação, mas é importante não olhar com muita profundidade para o mapa antes de realizarmos a deriva. O perímetro nos ajuda a reconhecer os limites do terreno onde vamos derivar, de maneira que precisamos apenas de referências para saber quando chegamos a seu limite. Este é um dos motivos pelos quais sugerimos definir estes limites em importantes barreiras urbanas, pois elas são mais fáceis de reconhecer quando chegamos a elas derivando. Assim, se nos depararmos com estes limites, devemos tomar uma decisão para onde continuar: se derivamos brevemente fora do perímetro, o que pode ser interessante para vermos os problemas causados pela barreira e as diferenças com os vizinhos, ou voltamos para o interior do bairro através de quais espaços.

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Onde começo? Pode-se partir de qualquer ponto no interior do bairro. Uma boa sugestão é tomar o transporte público e descer em algum ponto desconhecido. Mesmo quando o bairro é muito familiar aos mediadores, escolham um ponto de partida relativamente arbitrário, não pensem muito em motivos para partir deste ou daquele lugar. O que faço? Primeiro, fique em silêncio, observe com carinho, ouça os sons, sinta os cheiros, as temperaturas, não registre ou tire fotos, procure expandir seus sentidos. A sensibilização exige tempo e cuidado com seus próprios sentidos. Faça a pé, dê tempo a seu percorrer. A tendência de nossa sociedade é de executar todas as tarefas de forma acelerada, não se deixe levar por isso. Ande devagar, deixando-se passar pelas experiências que o bairro lhe traz. Perceba o que está acontecendo com você, o que aquele lugar lhe diz e lhe faz. Pense se fosse um idoso, um cadeirante ou uma criança, como aquele espaço poderia lhe afetar. Para onde o espaço te convida ou não a ir? Desbrave, deixe as sensações de vontade, curiosidade ou rejeição por outros espaços lhe guiarem os passos. As encruzilhadas são suas amigas, seus sentidos dirão qual caminho tomar. Sente em bancos, observe o movimento, veja as pessoas que vem e vão e que ficam. Pare em pontos curiosos, observe com mais calma. 92. Cullen, Gordon. Paisagem Urbana

• Visão Seriada Após a sensibilização pela deriva, passamos a uma sensibilização mais criteriosa e baseada em registros. Buscamos em Cullen a ideia de Visão Seriada, quando diz que “embora o transeunte possa atravessar a cidade a passo uniforme, a paisagem urbana surge na maioria das vezes como uma sucessão de surpresas e revelações súbitas”, entendendo a cidade como “uma ocorrência emocionante no meio-ambiente”. Sendo assim, no mesmo passo lento e sensível da deriva, a visão seriada vai percorrer as ruas e espaços do bairro com um olhar cuidadoso. Contudo, agora utilizaremos o perímetro de aproximação não apenas em seus limites, mas como traçado e desenho urbano. Levem o mapa

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com vocês quando forem fazer a visão e marquem tudo quanto possível nele: fotos, anotações, contagens, vídeos, etc. e o percurso que fizeram. A visão seriada busca registrar a sensibilização do bairro pelos mediadores, para que depois sirva de subsídio para discutirem entre si e com os pilares sobre a situação das experiências cotidianas de onde estão partindo. O que olho? Preste atenção em pontos, eixos e ruas típicas que simbolizam a personalidade de uma determinada área do bairro. Olhe os espaços públicos, ruas, calçadas, praças, parques, como são, como estão cuidadas, como são usadas, qual a sensação que dão? Encontre rótulas sociais no bairro: bares, padarias, esquinas, praças, lugares onde as pessoas se concentram e onde há bastante movimento. Pare nelas e observe o movimento. Como registro? Anotações nunca são demais, mas precisam ter um motivo de ser. Podem dividir o trabalho e enquanto um marca os pontos e percurso no mapa, outro vai anotando informações sobre estes pontos e o que encontraram no percurso. Fotografias ajudam a captar momentos e situações específicas. Olhe para as calçadas e imagine como se fosse um quarto formado por piso, teto, a parede dos edifícios e a parede da rua. Esta metodologia foi desenvolvida na intervenção das calçadas de Nova York, com projetos coordenados pela arquiteta Sky Duncan. Tire fotos destes “quartos” que simbolizem como é a personalidade das calçadas das áreas do bairro, prestando atenção em cada um dos quatro planos. Fotografe o movimento, quem está no espaço e o que estão fazendo, o que está acontecendo. Detalhes de espaços específicos e visões amplas. Preste atenção em cheios e vazios, locais mais apertados e mais abertos. Que visuais a sequencia destes espaços e das construções que existem nele geram? Registre essas visuais. O que chama atenção? Outra forma de registro interessante são os vídeos. Uma câmera posicionada estática durante

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algum tempo em um ponto pode registrar informações interessantes quanto a seu uso, sensação e seu fluxo. Pode-se acelerar posteriormente esse vídeo e observar o aumento e redução do movimento. Contagens também podem ser interessantes. Chegando a um ponto que se reconhece como importante do bairro, podem-se medir fluxos e permanências de qualquer elemento significativo para se observar aquele local. As contagens não precisam, neste ponto, ser feitas com uma amostragem significativa. Como estamos apenas buscando a sensibilização do local, contagens simples, com períodos de um a cinco minutos em alguns momentos diferentes, nos são suficientes. 93. Gehl, Jan. Cities for people; Life between buildings

Jan Gehl trabalha muito com contagens. Em suas intervenções urbanas, invariavelmente realiza medições na situação original, registrando o fluxo e a permanência de pessoas, crianças, idosos, carros, etc. bem como a quantidade de pessoas conversando, sentadas ou realizando alguma atividade específica, e compara com as mesmas contagens feitas depois de realizada a intervenção. Suas conclusões são muito interessantes, verificando aumentos ou reduções de determinados tipos de comportamento. Para nós, buscamos ter acesso a esse tipo de análise em nossos bairros.

5. LEITURA DO BAIRRO Tendo realizado as primeiras sensibilizações do espaço real, passamos a uma leitura mais técnica do bairro, baseada em informações urbanísticas e socioeconômicas do espaço. O intuito deste momento não é esgotar o levantamento das informações do bairro, mas situar de forma concisa os mediadores em dados que muitas vezes nos passam despercebidos mesmo se vivemos o bairro todos os dias. Estes dados serão fundamentais para darem referências aos indicadores desenvolvidos com os pilares no movimento seguinte. É importante ressaltar que se sugere que o aprofundamento dessa leitura seja realizado posteriormente pela e com a própria comunidade, podendo ser desenvolvido dentro de grupos de trabalho e até em projetos pedagógicos de escolas da região. No momento, estamos apenas nos aproximando, não precisamos de leituras excessivamente profundas.

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• Informações gerais e dados sociais Qual a história do bairro? O que havia antes no local? Quem o fundou? Como foi o loteamento e qual a história dos primeiros habitantes? Quais os principais usos e qual a personalidade do bairro? Quais suas condições sociais? As pessoas que ali moram, trabalham onde? E as pessoas que trabalham ali, moram onde? Existem pesquisas de Origem e Destino para informar sobre os deslocamentos? Quais as principais instituições que existem no bairro? Há associação de moradores, Igreja, centro comunitário, ONGs, ou algo assim? O que podemos levantar de dados estatísticos sobre a população do bairro? Existem Censos (IBGE) que nos digam sobre sua demografia? É um bairro mais jovem ou mais idoso? Podemos ter informações sobre as transformações do bairro ao longo das décadas? Um dado fundamental é quantas pessoas moram e quantos domicílios existem no bairro. Se possível, é interessante sabermos também quantas pessoas trabalham ali. Qual a distribuição de renda e diversidade socioeconômica do bairro? É uma área socialmente vulnerável ou apresenta ilhas de vulnerabilidade? Existem levantamentos como o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS, do SEADE), que busque nos mostrar isso no território? Quais outros dados são importantes sobre o bairro? Pesquisando sobre ele, o que podemos levantar de peculiaridades? Como o bairro está se transformando? Como ele era há alguns anos e décadas? • Mapeamento sensível Após a sensibilização, temos informações para montar nossos mapas sensíveis, que podem ser sobrepostos como camadas e começar a contar a história sensível do bairro. É sempre interessante pensar, antes de começar a montar as camadas, no que cada cor de post-it, formato e cor tachinha representam. Isso vai nos ajudar muito em uma leitura mais direta e simples dos mapas quando estiverem com muitas informações.

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Identificamos ruas e praças importantes que conhecemos. Podemos marcar com tachinhas coloridas ou como acharem mais conveniente os espaços e locais que merecem destaque, eventualmente fazendo anotações em post-its colados ao mapa. Localizamos o que levantamos na visão seriada. Separando em post-its de cores diferentes as informações mais objetivas, por exemplo, “bueiro aberto”, “posto policial”, “lixo espalhado”, etc.; nossas sensações positivas, como “praça acolhedora”; e sensações negativas, como “rua muito escura à noite”. Um elemento fundamental de ser ressaltado são as rótulas sociais e pontos notáveis. Isso nos será básico para as posteriores sugestões de experiências. De forma semelhante, mas talvez em cores diferentes, sejam mapeados aqueles pontos que poderiam ser rótulas e locais interessantes de encontro da comunidade do bairro, mas que por algum motivo não o são. Talvez seja o caso da maior parte das construções públicas ou de alguma relevância pública. Podemos fazer fotomontagens, colar fotos sobre os mapas, desenhar círculos de diâmetros variados para representar diferenças de fluxos e permanências de pessoas e desenhos para representar a morfologia ou outras informações que acharmos significativas. Neste sentido, é interessante ter uma imagem de satélite do bairro também. O céu é o limite para o mapeamento sensível. Mesmo se você não for urbanista, geógrafo ou algo assim, divirta-se. • Mapeamento técnico Os mapeamentos técnicos são principalmente levantados junto a órgãos públicos. A princípio, os mediadores não precisam gerar estes mapas, o que facilita bastante o trabalho. Mas pesquisar por eles já pode ser um desafio. Assim, procure bastante na internet, mas entre em contato também com secretarias de urbanismo da prefeitura ou outras que possam ter estes mapeamentos. O Monitor pode auxiliá-lo a encontrar as fontes destas informações. Inserção política. Ele faz parte a qual distrito, subprefeitura de qual cidade? Esta informação é importante para sabermos quais interlocutores públicos e quais legislações dizem respeito

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ao bairro. Zoneamento. Quais é a legislação que incide sobre o território em questão? Algumas cidades possuem leis de zoneamento que regulam os parâmetros de uso e ocupação do solo, interferindo em maior ou menor grau nas formas de construção da cidade. Estes mapas possuem várias cores para as diferentes zonas e representações para eixos, informando o que se pode e o que não se pode fazer. Este mapa é importante, pois nos diz quais as diretrizes públicas para o desenvolvimento de experiências cotidianas em nossos bairros. Rede de equipamentos. Temos mapeados os pontos de estabelecimentos de saúde, educação, cultura, assistência social e outros que possam ser importantes. É interessante dividir a representação entre públicos e privados e em outros critérios que possam ser convenientes – por exemplo, no caso de escolas públicas: círculos para estaduais e quadrados para municipais. Este mapa é fundamental e, mesmo que seja difícil de encontrá-lo ou montá-lo, é importante que procure ser o mais completo possível. Ele vai ser básico para observarmos carências de equipamentos da comunidade e encontrarmos quais são as instituições que supostamente são responsáveis por gerar determinadas experiências, bem como desenvolvermos projetos que integrem suas potencialidades através do território. Eixos de circulação e transporte. Quais os equipamentos de transporte que suprem as demandas do bairro? Possui linhas de trem, metro, ônibus? Por onde passam essas redes? Este mapa nos ajuda a entender os fluxos de entrada e saída e internos do bairro, compreendendo suas conexões com outras áreas e as condições de deslocamento na cidade. Recursos hídricos. Onde passam rios e córregos no bairro? Mesmo que estejam canalizados e tamponados, as informações deste mapa são importantes para sabermos como as águas escorrem e qual a bacia hidrográfica estamos inseridos. Isso será interessante não apenas do ponto de vista de responsabilidade ambiental, como também para possíveis desenvolvimentos de experiências com a água ou nas margens dos rios, práticas pedagógicas sobre recursos hídricos e responsabilidade, opções alternativas de transporte, etc.

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6. REFINAMENTO E INTERAÇÃO Articulando os momentos anteriores de sensibilização e leitura, temos bases para voltar a interagir com o bairro e podemos discutir um pouco melhor sobre ele. Neste momento, buscamos completar as informações que percebemos deixar passar despercebidas ao longo da leitura e da sensibilização, bem como mapear os pilares do bairro. • Refinamento Antes de voltar a percorrer o bairro, planeje suas ações. Quais informações faltaram serem levantadas; quais pontos deixamos de visitar; e quais pontos pode ser interessantes de serem conhecidos? O que vamos revistar? Percursos agora são rotas. Por onde vamos passar? Importante fazer percursos, mesmo que curtos, pelos bairros vizinhos. Lembre-se sempre de que o bairro de intervenção não é uma ilha isolada. Os momentos anteriores eram de muita observação, agora entraremos em interação direta com as pessoas do bairro. Nosso foco começa a ser este contato. Para começar, sugere-se que 94. Ver Jabobs, Jane. Morte e vida de grandes cidades

sejam procurados os “olhos” do bairro, que serão nossos primeiros informantes. São pessoas que permanecem presentes e olhando o espaço público, como guardas, comerciantes, pessoas sentadas em praças, taxistas, etc. Para isso, precisamos nos planejar: pensem nas rótulas sociais que mapearam e onde mais podemos encontrar estes “olhos”. Como vamos abordá-los? O que vamos dizer? Quais as nossas perguntas? Neste ponto da estratégia em que passaram pela sensibilização e leitura, só vocês, mediadores, que conseguem encontrar as respostas para estas perguntas, dependendo do que já sabem do bairro. Nossos objetivos são: 1. Levantar informações e sensações do bairro que não tínhamos detectado antes; 2. Encontrar quais experiências já acontecem no bairro; 3. Encontrar quem são os “pilares”, potenciais líderes comunitários e articuladores da comunidade.

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Voltamos a percorrer o bairro com as metodologias de visão seriada e completamos as informações que faltaram em nossos levantamentos e mapeamentos, completando em nossas bases. • Interação O contato com as pessoas que são os “olhos” do bairro, aquelas que acompanham seu dia-a-dia. Agora, com muita conversa. Pensem em como registrar, sem que pareça que estão aplicando um questionário. É melhor que sejam abordagens leves e despretensiosas. Estas pessoas, que atuarão como nossas informantes, geralmente acompanham o que acontece na região, seja pelo contato com muitas pessoas, seja por serem vetores importantes de difusão de informação. Em primeiro lugar, procuramos com elas informações que ainda não levantamos sobre o bairro, inclusive sua opinião particular; em segundo buscamos mapear as experiências que já são desenvolvidas, como festas tradicionais em praças, eventos de escolas, organização de moradores, etc. Sobre estas experiências, precisamos saber onde ocorrem, quando ocorrem e quem as promove. Finalmente, em terceiro lugar podem nos contar sobre pilares, caso ainda não os tenhamos encontrado no levantamento de informações sobre o bairro. Pilares são pessoas que muitas vezes já são líderes comunitários ou desempenham este papel informalmente. Não são necessariamente extrovertidas, mas tendem a ser críticas, muito comunicativas e ativas. De maneira geral estão envolvidas com as experiências que já existem no bairro, podendo fazer parte de qualquer uma das redes que forma a comunidade através de vínculos: 1. Pela moradia. 2. Pelo trabalho. Seja em entidades públicas, privadas ou membros do governo. 3. Pela educação, através de entidades educativas. 4. Pelo uso diversificado. Como lazer ou outros.

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É interessante que foquemos em encontrar pilares em cada uma destas redes, de forma que tenhamos interlocutores vinculados às diferentes características de experiências existentes no bairro.

7. PLANO DE AÇÃO DE CONTATO Concluímos a Aproximação com um Plano de Ação para o III Movimento, o Contato. • Narrativa de Aproximação A narrativa de Aproximação é mais completa e densa do que a de Orquestração, mas lembre-se de redigi-la de forma sucinta. Ela apresenta não apenas a visão dos mediadores sobre como foi desenvolvido o Movimento, quais dinâmicas e escolhas fizeram, como também compila as informações sobre o bairro, levantadas ao longo dos momentos. Contudo, é interessante que a narrativa de aproximação não seja apenas um levantamento distanciado. Utilize as informações que levantaram para discutir sobre o bairro, mostrando se estas informações reforçam ou contradizem o que sentiram sobre ele e levantando hipóteses sobre os motivos. • Mapeamentos sensíveis e técnicos A narrativa de Aproximação é reforçada pelos mapeamentos técnicos e sensíveis desenvolvidos. É interessante que se complete os mapas com explicações e legendas, referenciando as discussões nos textos da narrativa. • Registro de pilares O II Movimento se encerra antes de realizarmos um contato formal e extenso com os pilares que levantamos, este será o principal intuito do movimento seguinte. Aqui, chegamos ao registro de quem são os pilares que nos foram citados na aproximação, ressaltando que este levantamento com certeza será ampliado ao longo dos movimentos seguintes, a começar pelas sugestões dos próprios pilares.

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Se possível, é interessante que saibamos em qual ou quais das quatro redes eles estão vinculados e possamos mapeá-los pelas ruas ou instituições nas quais estão relacionados, de forma que possamos observar se estamos lidando com pilares espalhados no bairro ou concentrados em uma área ou outra. Mas estes registros precisam também de telefones ou e-mails, para que se possa entrar em contato com estas pessoas no movimento seguinte. • Metas e objetivos Leia o III Movimento, entenda do que ele se trata e, de acordo com o que aprenderam na Aproximação, defina suas metas e objetivos para o movimento de Contato. Vocês já devem ter uma ideia bastante clara dos próximos passos, de onde encontrar os primeiros pilares, como caminhar com eles para as discussões e sensibilizações conjuntas do bairro, quais questões já querem encaminhar, etc. • Cronograma Assim, com base nos momentos de vinculação e avaliação, definam um cronograma básico. Como as apresentações e visitas vão depender muito mais das agendas dos pilares e de quantos são, então não conseguimos estipular exatamente o tempo que tomaremos. Mas podemos contar com pelo menos um mês para o Contato. Lembrando que todos os cronogramas são importantes para que se coloque as ações em uma linha do tempo real, não deixando a estratégia se perder e dando possibilidade do Monitor verificar como estão os andamentos dos trabalhos.

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III Movimento: Contato



Contato O Contato é um movimento crucial para a estratégia. Assim como ampliamos a equipe no primeiro movimento, que passou a contar com alguns mediadores e pelo menos um monitor, aqui vamos ampliá-la buscando agrupar ou nos incorporando a grupos de pilares em uma equipe única de trabalho. Pilares são pessoas que, assim como os mediadores, têm alguma consciência ou sentem o afastamento entre as experiências que passamos no dia-a-dia, geradas por instituições como a escola, a polícia ou os sistemas de saúde, e aquilo que realmente gostaríamos de ter como experiência de vida, como aprendizado, segurança e saúde. Contudo, Pilares não são apenas pessoas que percebem este afastamento, mas de forma geral são também pessoas que buscam atuar em seus núcleos sociais de alguma maneira para reverter esta situação. Sendo assim, são identificadas como líderes comunitárias ou representantes naturais das vontades da comunidade. Sem eles, nosso trabalho não tem base, nem legitimidade para seguir em frente. Eles são fundamentais para que transformações ocorram no bairro, uma vez que conhecem a situação da área mais profundamente; muitas vezes já tiverem experiências práticas de intervenção, conhecendo problemas e facilidades; de forma geral 151


VII Estratégia

são bem articulados e relacionados, o que potencializa encontrarmos outros interlocutores fundamentais na comunidade; e são vistos como vozes legítimas de ação. Não podemos nunca achar que nosso trabalho é maior do que o deles. Enquanto estamos buscando incorporar um raciocínio estratégico de transformação integral da situação do bairro, eles possuem o conhecimento de causa da situação e seus laços são mais profundos que os nossos. Nossos esforços devem se somar, logo, precisamos explicar com clareza aos pilares o que estamos fazendo, quais nossos objetivos e nossa forma de ação. Precisamos ouvir deles todas as críticas e sugestões com abertura para modificarmos nossa proposta, inclusive ao próprio VII, se necessário. Nenhuma rigidez nos ajuda. É interessante observar que temos uma divisão clara de posições. O pilar é essencialmente ativo, sua gana é por ver as coisas acontecerem, enquanto o mediador é essencialmente estratégico e planejador. Estes perfis dependem das características da personalidade e variam de pessoa para pessoa, de situação para situação, de forma que é preciso agrupar diferentes perfis que se complementem para dar prosseguimento ao trabalho completo. Importante observar, também, que por vezes os pilares podem parecer não dar atenção à estratégia, mesmo que não a estejam desvalorizando. Sua vontade de ação pode fazer com que seu foco esteja mais no momento presente do que no objetivo global. Isso não é um problema, a função do mediador é ir sugerindo de momento em momento os próximos passos. Sendo assim, o III Movimento termina quando consolidamos a equipe de mediadores, monitores e pilares em um plano de ação único de ação, quando passaremos ao 2º Ato da estratégia, momento em que iniciamos profundamente a intervenção na comunidade no Movimento de Difusão, o IV Movimento. Os momentos do Contato: 8. Apresentação 9. Alinhamento 10. Avaliação da situação do bairro 11. Plano de ação de difusão 152


III Movimento

8. APRESENTAÇÃO Você acabou de completar a Aproximação, já conhece um pouco melhor o bairro e tem subsídios mais completos para discutir sobre ele. Da mesma forma, mapeou alguns pilares conhecidos no perímetro de aproximação, agora é hora de entrar em contato com eles, conhecê-los, se apresentar e introduzi-los à estratégia que está começando a desenvolver. Mesmo que já tivesse informações sobre alguns pilares antes de realizar a Aproximação, é importante que a realize para mapear aqueles que desconhecia. Muitas vezes o impulso para começar a desenvolver a estratégia pode partir da iniciativa de um pilar, seja querendo realizar a intervenção ele mesmo, seja incentivando outros mediadores, como você, a fazê-lo. Nestes casos, aproveite o contato do primeiro pilar para que através dele possa encontrar outros. Pilares geralmente se conhecem. É fundamental notar que pilares podem ter interesses e posições políticas distintas, muitas vezes até conflituosas. É preciso tomar cuidado para não potencializar algum tipo de atrito que desvirtue o desenvolvimento da estratégia. Procure ter uma boa interlocução com todos os lados. Caso não consiga trazê-los para o diálogo em uma equipe única, pense em criar alguns grupos de trabalho distintos, com focos mais específicos. • Visita Entramos em contato com os pilares e marcamos uma conversa, primeiro com cada um individualmente. Apresentamo-nos, contamos sobre nossa angústia inicial para introduzir o que nos motivou a fazer o que estamos fazendo. Explicamos como funciona a estratégia que estamos desenvolvendo, a aproximação que já realizamos e perguntamos sobre a experiência e percepção dele do bairro. Nossa maior função neste momento é ouvir tudo quanto possível, procurando entender as motivações de suas ações, as facilidades e dificuldades de execução do que realizou na comunidade, e encontrar outros pilares e forças sociais importantes de ação na região, bem como o relacionamento com bairros vizinhos. Impossível prever como transcorre a conversa. Não se prenda a roteiros. 153


VII Estratégia

Fundamental concluir a conversa procurando encaminhar a proposta de trabalharem juntos e formarem um grupo de intervenção com outros pilares, caso já não exista, ou dos mediadores se incorporarem a grupos já existentes. Explicamos nosso objetivo, a busca pelo desenvolvimento de autonomia da comunidade e o projeto político-pedagógico do bairro, explicamos a metodologia na qual estamos baseados e como funcionam os seis movimentos. Não é caso de aprofundarmos muito em detalhes na conversa individual com os pilares sobre nossa proposta de encaminhamento nos três movimentos seguintes da estratégia. Antes, é interessante realizar um encontro conjunto entre vários pilares, lembrando-se de tomar cuidado com suas potenciais desavenças, e neste grupo expor a proposta de trabalho. • Ampliação do grupo Pilares muitas vezes conhecem outros pilares que não conhecemos. Quanto maior o grupo, mais força e energia temos disponível para que o grupo de trabalho seja efetivo. É interessante buscarmos completar esta equipe, prestando atenção por um lado se estão presentes pilares de todas as áreas do bairro e do outro se estão presentes pilares cujo vínculo é formado por uma das quatro redes que aqui consideramos. Caso não haja algum representante público responsável pelo bairro, como um subprefeito, pode ser interessante que o grupo formado por mediadores e pilares entre em contato com este. Interlocução com o poder público será fundamental em uma série de momentos, é indispensável, então, saberem quais são os canais abertos para participação da população e relacionamento com o governo, seja do ponto de vista político, administrativo ou financeiro para execução de projetos.

9. ALINHAMENTO Sugere-se que se alinhe, da melhor maneira possível, a forma como os participantes do grupo formado por pilares e mediadores percebem o bairro. É importante que todos saibam da posição de cada um, mesmo que sejam diferentes, de forma a encontrarem um discurso único que possibilite consolidar um plano de ação. Os momentos que se sugere são semelhantes àqueles

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III Movimento

realizados exclusivamente pelos mediadores no II Movimento. • Percepção Percorram o bairro, de maneira semelhante à sugerida na deriva, mas desta vez com os pilares e ouvindo suas opiniões sobre cada elemento e espaço no bairro. Os diálogos que podem surgir entre eles e as pessoas nas ruas podem ser muito enriquecedores e interessantes, principalmente com aqueles que em outro momento chamamos de “olhos” da rua. Converse bastante, observe muito, ouça muito, anotem e registrem. Se possível, utilizem os recursos apresentados pela visão seriada para registrar em mapas e fotos as discussões que podem surgir. Este material será muito importante para posteriormente sintetizarem em grupo quais são as primeiras prioridades, os planos que desenvolverão e a experiência piloto de difusão. • Concepções O alinhamento da percepção do bairro não é para ser uma discussão sobre “o bairro que queremos”. Cuidado para não caminharem neste sentido. Esta resposta só poderá ser alcançada posteriormente pela comunidade como um todo, do contrário, não será legítima. Todo o intuito do trabalho caminha para esta autonomia e deliberação coletiva da comunidade, buscando pelo projeto político-pedagógico no final do processo. Sendo assim, atente-se que o momento atual é de afinar os discursos entre a equipe sobre o desconforto e a sensação que cada um tem do bairro. Neste sentido, é importante desenvolver gradualmente com os pilares os consensos sobre a importância da unanimidade na deliberação da comunidade, a avaliação e a escala de participação, alinhando intenções que caminhem no sentido de aprofundar o significado e legitimidade das experiências que serão desenvolvidas. Nem todo pilar, assim como nem todo mediador, tem necessariamente a concepção de que é preciso buscar a coesão da comunidade, a participação do máximo possível de seus membros, que estes podem ser desde moradores até trabalhadores, pois todos compartilham o mesmo tempo e espaço. Se esta ideia não estiver clara e afinada, é preciso discuti-la e encontrar o consenso.

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VII Estratégia

Qualquer estratégia baseada na utilização da comunidade como mero recurso de legitimação para alguma ação, acaba por reproduzir as mesmas experiências de distensão contra as quais deveria lutar, perdendo seu propósito fundante. Da mesma forma, busque, com cuidado e paciência, discutir outras questões e conceitos que lhe pareçam fundamentais, buscando afinar visões sobre as quais não pode haver muita discrepância para que o grupo tenha coesão . • O bairro O que é o bairro? Após alinharmos a percepção e alguns conceitos fundamentais, é preciso entrar em acordo sobre o que é acreditamos dar corpo ao bairro. Neste sentido, precisamos definir com os pilares, no mínimo: 1. O perímetro que usaremos para a difusão, que provavelmente será diferente daquele que usamos para a aproximação. Este perímetro, definido com os pilares, deve dizer respeito à identidade e unidade do bairro como espaço de uma comunidade. Será dentro deste perímetro que vamos propor as experiências no movimento seguinte e as formas de avaliação do impacto que estão gerando. 2. Qual acreditamos ser a identidade do bairro, baseados em sua história e características específicas. Esta resposta será muito importante para quando formos definir a proposta das primeiras experiências no movimento de difusão. Uma vez que a experiência, para ser significativa, precisa ter continuidade e ser apropriada pelo sujeito que a vivencia, é fundamental buscarmos aprofundar e aprimorar cada vez mais a busca por envolver este sujeito através de suas próprias especificidades. 3. Para além dos contornos definidos no perímetro, quais são os vizinhos do bairro e onde ele está inserido? Muitas vezes, uma comunidade que começa a ser muito coesa, mas desconsidera o que há fora dela, como se o resto da cidade lhe fosse estranho, acaba por gerar uma vontade de isolamento que desconsidera a própria essência da cidade como espaço de contato da diversidade, criando até movimentos como os NIMBs (“not in my backyard”). Procurando entender os vizinhos, buscamos não incorrer neste tipo de isolamento. 4. Procuramos identificar quais são as características e de quem são compostas as redes 156


III Movimento

sociais formadas por vínculos específicos, que somadas e justapostas constituem a comunidade. A princípio, buscamos entender estas redes como aquela formada por vínculos de moradia, os moradores; por vínculos de trabalho, os trabalhadores, sejam empregados ou empregadores; por vínculos de educação, sejam aqueles que estudam quanto aqueles que trabalham com educação (esta rede terá uma importância específica, por isso é diferente da formada pelo trabalho); e aquela formada por vínculos mais fluidos de usos diversos, seja lazer, comércio, serviços, ou outros.

10. AVALIAÇÃO DA SITUAÇÃO DO BAIRRO Após alinharmos nossas percepções, intenções e concepções sobre qual bairro estamos falando, realiza-se pela equipe de mediadores e pilares a avaliação da situação do bairro. Este momento busca primeiramente mapear a situação atual das experiências que já são ou foram realizadas e desenvolver critérios e indicadores de verificação. Esta buscará manter acompanhamento contínuo por um lado do envolvimento da comunidade (lembrando-se que a intenção reside na busca pelo máximo envolvimento) e por outro das transformações geradas em decorrência direta ou indireta das experiências propostas. Alguns indicadores são fundamentais para avaliarmos a legitimidade e dimensão da transformação que está sendo gerada. Por exemplo, um dos grandes problemas na interlocução entre o poder público e a sociedade civil é que muitas vezes os representantes desta sociedade, organizados em associações ou em outra forma institucional, não contam com a legitimidade da comunidade que dizem representar. É preciso passar a incorporar mecanismos de participação e aferição desta participação, bem como de sua apropriação por parte da comunidade. • Experiências existentes Toda comunidade, de forma geral articulada pela ação de seus pilares, desenvolve experiências significativas com características das vertentes que chamamos de contra hegemônicas. Podem tomar forma de festas tradicionais, atividades em praças, eventos, intervenções, mobilizações em conselhos, organizações ou qualquer tipo de experiência cuja intenção esteja baseada na busca por envolver ao máximo as pessoas da comunidade, de alguma maneira.

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VII Estratégia

O trabalho do mediador não pode partir da comunidade como se fosse um bairro destituído destas experiências pré-existentes, como se já não houvessem boas práticas em andamento e muita energia despendida para sua viabilização. A estratégia busca fundamentalmente articular estas experiências com outras que serão desenvolvidas, de forma a caminharem em unidade ao objetivo da autonomia, consciência e coesão articulada da comunidade. Realizamos no movimento anterior um primeiro levantamento destas experiências. Aprofundem este levantamento com os pilares, buscando informações sobre quais são e onde ocorrem estas experiências que já foram desenvolvidas. O mapa gerado será parte do plano de ação de difusão. Escrevam um breve relato, se possível com as mesmas reflexões das experiências presentes na constelação, de forma que se possa agregar novas experiências a ela. É muito importante que se saiba sobre estas experiências: onde ocorrem, quando ocorrem, como são viabilizadas, quem as promove, qual sua intenção e qual sua proposta prática. • Situação A definição de quais questões vamos avaliar depende especificamente das características da comunidade e vai decorrer das discussões entre mediadores e pilares. Sugerimos aqui alguns tópicos que consideramos fundamentais em todos os casos, tomando-se em conta que temos os dados da leitura do movimento de aproximação como bases comparativas, mas que devemos buscar sempre dados mais confiáveis. 1. Envolvimento. O mapeamento das experiências existentes já nos dá os primeiros indicativos para este ponto. São elementos fundamentais a serem verificados, pois, como discutimos, não se pode avaliar a experiência ou a transformação que ocorrem dentro do sujeito, mas sim seu envolvimento. Tomamos então as quatro características da experiência, o Meio, a Ação, a Cultura e a Visão. Cada uma nos diz como a comunidade se envolve de uma forma específica. 2. Canais de comunicação. Quais canais já existem, qual a abrangência e rotatividade deles? Atingem quantas pessoas, transmitem quais informações, quem os opera, etc. Para que cheguemos a toda comunidade e para que saibamos quem está informado das experiências que estão sendo desenvolvidas, precisamos destas informações. Sem 158


III Movimento

tomarem conhecimento mínimo da existência das experiências, não há como as pessoas entrem em contato com elas, a não ser por acaso. 3. Representatividade e participação. Há instituições ou vozes que se colocam como representativas dos interesses da comunidade, como líderes comunitários, conselhos, associações de moradores, fundações ou entidades sem fins lucrativos? Quantas pessoas conhecem, apoiam e legitimam estas iniciativas? Muitas vezes estas não possuem a legitimidade que acreditam ter, seja por falta de canais de comunicação, por interesses políticos ou qualquer outro motivo. 4. Coesão da comunidade. Os vizinhos se conhecem? As pessoas que trabalham no bairro conhecem o que há nele? Há algum tipo de atividade que já ocorra que coloque a comunidade em contato? Quantas pessoas vão a eventos ou atividades organizadas pela comunidade no bairro? As diversas redes e os diversos grupos que formam a comunidade interagem entre si, ou há isolamento entre eles? Podemos encontrar situações de grande segregação em comunidades divididas por uma série de fatores, sejam diferenças socioeconômicas, diferenças de interesses entre formas de uso do bairro, diferenças políticas, etc. 5. Vínculo e transformação. A comunidade é antiga ou há grande rotatividade, com moradores se mudando frequentemente e trabalhadores permanecendo pouco tempo em seus empregos? As pessoas que moram, trabalham e usam o bairro ou realizam suas atividades em outros bairros? Quais são estes outros bairros? São próximos ou distantes? Os padrões de uso do bairro são antigos ou estão em transformação? 6. Apropriação dos espaços públicos. A comunidade utiliza e se encontra nos espaços do bairro? Como utiliza? Como é a manutenção deles? Informações como estas nos serão importantes para avaliarmos em um segundo momento se o envolvimento da comunidade com seus espaços foi alterado, bem como observarmos o impacto realizado no momento da execução das experiências que vamos propor. 7. Qualidade dos espaços públicos. Gehl nos ajuda a pensar em três grupos de critérios de avaliação do espaço na escala da pessoa. Proteção: contra tráfego e acidentes; con-

95. Gehl, Jan. Cities for people (p.238)

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VII Estratégia

tra crimes e violência; contra sensações sensoriais desagradáveis. Conforto: oportunidades para andar; oportunidades para permanecer; oportunidades para sentar; oportunidades para ver; oportunidades para falar e ouvir; oportunidades para se exercitar. Prazer: se construções e espaços estão de acordo com a escala humana; oportunidades de apreciar as características do clima; experiências sensoriais positivas. • Indicadores e metodologias Todos os pontos que definirmos como importantes de serem acompanhados sobre a situação do bairro devem ter indicadores para que sejam avaliados. Não precisamos realizar nada excessivamente complexo, mesmo por que nenhuma avaliação incorpora toda complexidade das situações, mas sem estas informações não saberemos a transformação que estamos gerando, o que é um dado fundamental para os próximos movimentos. Os indicadores podem ter muitos formatos, sejam quantitativos ou qualitativos, objetivos ou subjetivos. Neste momento, não precisamos ainda operacionalizar boa parte deles, mas projetá-los para que sejam utilizados em seguida. Podemos, por exemplo, realizar contagens de quantas pessoas estão em certo espaço público em determinados momentos; quantas estão sentadas, quantas estão andando, quantas estão conversando; podemos realizar entrevistas para saber por amostragem de onde elas vêm; podemos realizar eventos de diagnóstico para avaliarmos a abrangência de meios de comunicação, bem como a pró-atividade da comunidade para participar da execução, etc. Além dos indicadores que projetamos e operacionalizamos com os pilares, sempre compreendendo suas finalidades, precisamos incluir aqueles dados que levantamos na leitura da aproximação, que dizem respeito à demografia, condições de vulnerabilidade, entre outros. Todos os indicadores nos serão importantes, mas é fundamental que todos tenham razão de ser bem fundamentada. Do contrário, estaremos gastando tempo e energia para gerar informações que não nos ajudam. Desenvolvidos os indicadores, podemos realizar as primeiras avaliações para tirar uma “foto” da situação do bairro antes de iniciarmos o movimento de difusão.

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III Movimento

11. PLANO DE AÇÃO DE DIFUSÃO Concluímos o Contato com um Plano de Ação para o IV Movimento, a Difusão. Este plano, diferentemente dos anteriores, deve ser realizado com os pilares, então todos precisam estar de acordo sobre seus objetivos, o que implica que discutamos com clareza e alguma profundidade como funcionam os próximos movimentos e toda a metodologia. O movimento seguinte inaugura a proposta e execução de experiências no bairro, ainda sem precisar contar com participação profunda da comunidade. Seu objetivo fundamental é atingir toda a comunidade, o que poderemos avaliar com os indicadores desenvolvidos, e iniciar a “sugerir” a vivência de certas experiências integrais que identificamos com os pilares como potencialmente significativas para a comunidade. • Narrativa de contato A narrativa de contato, como todas as narrativas, conta a história do movimento. No caso, é interessante relatarmos como foi nosso primeiro contato com os pilares, como foi a formação do grupo de trabalho com os mediadores, se houveram barreiras ou problemas para unir pilares em uma equipe única e como lidaram com isso. É muito interessante relatar como foi o momento de alinhamento, se houveram ideias e concepções muito distintas das que esperavam, se modificaram as suas próprias e como foram as discussões. Muito provavelmente, não houve consenso imediato, é interessante relatar como encontraram o consenso ou como posições distintas se relacionaram. É possível que o alinhamento não possa ter sido encontrado, seja em função de diferenças políticas, pelos pilares não verem valor no trabalho que vocês, mediadores, estão desenvolvendo ou simplesmente por diferenças de personalidade. É interessante relatar estes conflitos, inclusive se tiverem sido significativos a ponto de interromper a estratégia antes de chegar ao Movimento de Difusão. • Avaliação da situação do bairro Mostramos as informações que determinamos como importantes de serem avaliadas e seus respectivos indicadores desenvolvidos, explicando como funcionam, como são gerados, e

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VII Estratégia

qual sua finalidade. Com estes indicadores, a partir das avaliações já realizadas no movimento de contato, mostramos as primeiras conclusões que tiramos. • Perímetro de difusão Refazemos o mapa base desenvolvido no primeiro movimento, agora com o perímetro definido em conjunto com os pilares. Esta será a área onde vamos concentrar nossos esforços, lembrando-se sempre de não excluir os bairros vizinhos, com os quais o trabalho irá procurar o vínculo no V Movimento. Nossa preocupação no Contato, de encontrar pilares que estejam vinculados ao mesmo espaço, por mais que por motivos diferentes, reside em definirmos este perímetro de difusão com contornos que não recortem a comunidade. Se a equipe tiver sido formada por pilares de áreas específicas, a tendência pode ser de excluirmos do perímetro de difusão áreas que compartilham as mesmas identidades e tem muita proximidade. • Mapeamento das experiências existentes No Movimento de Aproximação começamos a mapear as experiências existentes e aprofundamos este levantamento no Movimento de Contato. Desenhamos estas experiências no novo mapa base desenvolvido com o perímetro de difusão, para que sirva de ponto de partida para nossas novas experiências. Pense em como representar estas experiências, pode-se pensar em cores ou ícones diferentes para experiências de tipos diferentes, lembrando-se de nossa discussão sobre a intenção centrada em uma das quatro características da experiência: meio, ação, visão ou afinidade. • Experiência piloto de difusão Qual será nosso primeiro passo dentro da difusão? Sugerimos que este seja dado na forma de uma experiência piloto, que coloque em prática os indicadores, as concepções e as estruturas que criamos até aqui. Se chegamos ao IV movimento, esta primeira experiência é inevitável,

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III Movimento

dado que nosso trabalho seguirá desenvolvendo uma série de experiências. O que propomos é que esta “quebra de gelo” seja realizada como teste da metodologia proposta pelo VII. Que se teste os indicadores e as metodologias de avaliação, as concepções de identidade, os canais de comunicação, as equipes operacionais, a discussão sobre o envolvimento que a experiência promove com a comunidade e sua intenção fundamental em uma das quatro características, etc. Use esta experiência para testar o que será desenvolvido ao longo do movimento de difusão. Toda experiência terá esta função de readequar toda a estratégia, a piloto, por ser a primeira, com certeza pode mudar 180 graus o que vocês, mediadores e pilares estão pensando. Não se assustem e não desmotivem. Entendam esta e as primeiras experiências como experimentais. Se não funcionarem de certas formas, experimentem de outros, que gradualmente vão encontrando as melhores formas de sensibilizar a comunidade e fazê-la se envolver no processo. Para realizar o projeto desta experiência piloto, veja o momento 14, “Experiências pontuais”, no movimento seguinte e lembre-se do que foi discutido no capítulo 5, “Experiência”. • Metas e objetivos Como em todo final de plano de ação, lembramos: leia e estude o próximo movimento, entenda suas finalidades e propostas estratégicas, só assim poderá definir suas metas e objetivos para ele. Os próximos movimentos não comportam cronogramas, dado que as experiências que serão desenvolvidas são profundamente dependentes dos momentos da comunidade, de suas maturações, envolvimento e dedicação. Da mesma forma, não podemos antever as transformações da comunidade e quando atingiremos nossos objetivos. Contudo, conseguimos definir algumas metas específicas para períodos temporais, no sentido de trabalhos a serem cumpridos. Por exemplo, podemos definir a meta de executar n experiências de intenção predominantemente meio em n meses; envolver x% da população infantil do bairro em uma série articulada de eventos voltados a elas, com duração n semanas; incentivar

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VII Estratégia

a criação de n grupos temáticos com envolvimento de x% da população; etc. Paralelamente, definimos nossos objetivos gerais que, quando cumpridos a contento, nos indicam que é momento de passar de movimento. Estes objetivos precisam de indicadores que possam ser aferidos pelas estruturas que desenvolvemos no Movimento de Contato e que reformatamos ao longo do Movimento de Difusão. Os objetivos que definirmos para o IV Movimento devem estar alinhados com as finalidades da Difusão, de forma que, quando alcançados, reforcem a passagem ao V Movimento. Nossa estratégia deve sofrer algumas alterações ao longo do tempo, caso avaliemos que mesmo realizando experiências interessantes, não estamos caminhando em direção a nossos objetivos. Nestes casos, talvez precisemos mudar de abordagem, seja incentivando e sugerindo experiências de outros tipos, seja focando em outras redes da comunidade. Esta possível situação será melhor discutida no movimento seguinte.

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IV Movimento: Difus達o



Difusão Enquanto o primeiro ato da estratégia, em seus três movimentos, é baseado no estabelecimento do grupo de mediadores e pilares, ou seja, sujeitos com alguma consciência da distensão e que se mobilizam para reagir a ela, o segundo ato, que se inicia neste IV Movimento, busca difundir a sugestão de experiências de integração ao conjunto social. O Movimento de Difusão parte da aproximação e do contato que tivemos e busca chegar à comunidade como um todo, de forma livre e articulada. Sendo o primeiro movimento no qual vamos propor experiências, nosso objetivo ainda não é que a comunidade tome para si a prerrogativa de planejá-las e viabilizá-las, não dependemos obrigatoriamente de sua participação para isso. Seu projeto e execução ainda estão pautados mais na ação de mediadores e pilares. Isso não significa, de forma alguma, que deixamos de lado nossa fundamental intenção de envolver ao máximo os sujeitos a quem sugerimos as atividades. Sem esta intenção, nosso trabalho perde seu sentido. Esta característica de as experiências no IV Movimento ainda serem muito baseadas em agen-

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VII Estratégia

tes “externos” decorre de não podermos partir da avaliação do estado de consciência da comunidade frente à distensão. Sendo assim, partimos da possibilidade mais negativa, onde não há qualquer consciência e autonomia do conjunto social. Desta maneira, a Difusão tem uma segunda função essencial: verificar o nível e forma de envolvimento da comunidade com as experiências sugeridas, avaliação realizada através dos indicadores de situação desenvolvidos no movimento anterior e baseada nas quatro características da experiência – meio, ação, cultura e visão. A avaliação do envolvimento nos será fundamental para verificarmos se estamos caminhando no sentido certo e se estamos propondo atividades que de fato geram experiências significativas. Esperamos criar uma escala crescente de envolvimento, chegando ao ponto de mediadores e pilares concordarem em passar para o próximo movimento, a Integração, onde iremos sugerir experiências mais baseadas e dependentes da autonomia da comunidade, articulando-se as diversas redes que a compõe. Sendo assim, descortina-se a terceira função básica do Movimento de Difusão, que é estabelecer os canais de comunicação e as bases de relacionamento em cada uma das redes sociais que, em um primeiro momento, consideramos formar a comunidade, a saber: aquela gerada por vínculos de habitação; por vínculos de trabalho; por vínculos de educação; e por vínculos de uso livre, como lazer. Com estas bases estabelecidas, esperamos chegar a toda comunidade, em todo o perímetro de difusão. A grande diferença entre o Movimento de Difusão e o de Integração, portanto, reside na forma de atuação da comunidade. O IV Movimento ainda está nas primeiras fases da escala de parti96. Ver Bordenave. O que é participação

cipação definida por Bordenave . Estamos avaliando a “personalidade” e a forma de envolvimento das pessoas através de atividades propostas em redes específicas. De forma distinta, no V Movimento a sugestão das experiências dependerá muito mais da ação da comunidade; estaremos avaliando conjuntamente suas vontades e propondo estruturas deliberativas; e as atividades propostas serão muito mais focadas na articulação de redes sociais. Os momentos da Difusão: 12. Estabelecimento de bases

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IV Movimento

13. Experiências pontuais 14. Grupos temáticos 15. Plano de ação de integração

12. ESTABELECIMENTO DE BASES Antes de iniciarmos as propostas das experiências, inclusive aquela definida como piloto de difusão, precisa-se estabelecer as bases sobre as quais elas serão desenvolvidas. Sem isto, perde-se força na articulação e encadeamento entre as atividades que serão executadas e que precisam buscar o máximo envolvimento da comunidade. No plano de ação desenvolvido com os pilares no III Movimento, é preciso ter considerado o estabelecimento destas bases como inicio da difusão propriamente dita. Assim, as bases compreendem ao menos duas dimensões: a comunicação e o relacionamento. • Comunicação Depois de levantados os canais existentes e verificada sua abrangência e efetividade, precisamos avaliar se conseguimos alcançar toda a comunidade e estabelecer satisfatoriamente interlocução com ela. Se os canais estabelecidos não forem suficientes, é preciso planejar quais seriam suas modificações ou se precisamos desenvolver novos canais. A comunicação não diz respeito simplesmente a seu caráter informativo, mas sim à instalação de estruturas de diálogo com a comunidade, onde o contato com o interlocutor é bilateral. Sendo assim, é preciso informar como ser informado; levar informação e receber sua resposta; bem como receber uma informação e responder com outra mensagem. No momento, ainda não estamos preocupados com o estabelecimento de fóruns, esta será uma busca do movimento seguinte. Agora, nossa procura é, em primeiro lugar, ter canais para conhecermos cada vez mais profundamente a comunidade; em seguida fazer visíveis as experiências que iremos sugerir; receber as primeiras respostas às intenções, antes, durante e após a comunidade entrar em contato com as atividades; e finalmente verificar a abrangência desta

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VII Estratégia

comunicação, se atinge todo o bairro, de forma que as respostas que chegam dizem de fato respeito à voz da comunidade como um todo. É fundamental saber que comunicação é um campo de experiência e, como tal, está presente no universo de experiências, podendo fazer parte da constelação da estratégia. Ou seja, podemos nos utilizar de uma vasta variedade de opções de canais de comunicação, optando de acordo com as especificidades da comunidade onde estamos realizando a intervenção. Alguns exemplos clássicos envolvem jornais locais, publicações e sites, mas também podemos pensar em totens dispostos nas calçadas, parcerias com canais abrangentes de comunicação, pesquisas, plataformas sociais online, etc. Há uma série de plataformas já existentes na internet que colhem os mais diversos tipos de informações, como vontades da população de intervenções na cidade; opiniões sobre gestão pública; mapeamento de violência e assaltos; colaboração na proposta de melhores serviços públicos; entre outras. É preciso pesquisar quais já operam no perímetro de intervenção. Todas estas informações, tanto as que vamos comunicar quanto as que vamos receber, precisam de algum tipo de manutenção de banco de dados. Mesmo que estabelecendo canais de comunicação ainda simples no inicio da difusão, é preciso que esta responsabilidade seja atribuída a alguém ou a algum grupo de trabalho entre mediadores e pilares. Não é preciso formar logo de inicio canais muito complexos ou complicados de serem mantidos, apenas precisamos daqueles fundamentais para atingir os objetivos que traçamos. Exercitem seu poder de síntese e criatividade. • Relacionamento Paralelamente e reforçado pelo estabelecimento de meios de comunicação, precisamos começar a formar nossas bases de relacionamento na comunidade. Isto será de extrema importância para todas as experiências que vamos sugerir, pois sem conhecermos e nos aproximarmos mais diretamente das especificidades dos grupos que compõem o conjunto social e buscarmos envolver agentes presentes nele, estaremos mantendo uma distância que dificulta nossa intenção básica.

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IV Movimento

Ou seja, sem conhecermos e sem sermos conhecidos pela comunidade, não poderemos atuar juntos na sugestão de experiências cada vez mais significativas, tendendo a sua completa autonomia. Mediadores, pilares e comunidade devem buscar ser uma só unidade. Para tanto, precisamos encontrar interlocutores nas quatro redes, formadas pelos vínculos de habitação, trabalho, educação e uso diversificado. Nos movimentos anteriores, procuramos pilares já nestas quatro redes. Então, se tivermos sido bem sucedidos, já temos na equipe pessoas que fazem parte de cada um destes grupos e podem nos abrir contatos em cada uma das redes. Importante ressaltar a importância de universidades públicas, por exemplo. Nelas podemos encontrar parceiros muito importantes para grupos temáticos e para momentos específicos da estratégia. Por exemplo, se um dos indicadores visto como interessante de ser acompanhado estiver ligado a questões econômicas, podemos entrar em contato com pesquisadores da faculdade de economia; se quisermos indicadores georreferenciados, podemos falar com a faculdade de geografia, etc. É muito interessante estabelecer o entrelaçamento entre os canais de comunicação e as bases de relacionamento que estabelecemos. Por exemplo, podemos ter na equipe um pilar que é professor do ensino médio. Ele pode abrir o contato com o diretor e com a equipe de coordenação da escola, com a qual podemos fazer uma parceria para desenvolver propostas de experiências e divulgar outras experiências que vamos sugerir no bairro. Da mesma forma, podemos entrar em contato com ONGs que atua na região; com unidades de saúde pública; empresas; associações de moradores; juntas comerciais, etc. Estamos aprofundando nosso envolvimento, aquele que começamos no movimento de aproximação e estreitamos no de contato. Quanto mais conhecermos a realidade e a personalidade da comunidade, mais poderemos propor experiências com características que possam envolvê-la profundamente e serem significativas. Lembrando que no movimento atual a sugestão de atividades ainda é muito centrada na figura dos mediadores, este relacionamento com as redes sociais é fundamental para que se possa caminhar ao movimento seguinte, onde os mediadores começam a deixar de ser centrais. É interessante que este relacionamento seja estabelecido despretensiosamente, sem prome-

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VII Estratégia

ter grandes transformações. Podemos oferecer uma parceria e explicitar nossas intenções, inclusive mostrando como funciona a estratégia, o que temos planejado e o que já realizamos. Gradualmente podemos aprofundar este relacionamento, de acordo com as necessidades, e realizar pesquisas, aplicar questionários, realizar experiências de avaliação, desenvolver novos indicadores de situação, etc.

13. EXPERIÊNCIAS PONTUAIS Cada ação estratégica descrita até aqui é fundamental para que nos aproximemos e envolvamos com a comunidade na qual estamos atuando. Sem elas, não poderíamos ter chegado aonde chegamos, podendo propor experiências com intenção que devemos ter. A estratégia gira em torno das atividades que vamos sugerir à comunidade e da constelação que formaremos pela conexão das mais diversas experiências. Serão estas que possibilitarão caminharmos no sentido do desenvolvimento da consciência e da autonomia da comunidade frente à distensão. • Constelando experiências Sendo assim, chegamos ao primeiro momento de constelar, ou seja, de encontrar quais serão nossas sugestões de experiências para a comunidade, baseado no que já sabemos dela. Para iniciar este momento e “quebrar o gelo”, temos a proposta da experiência piloto, descrita no plano de ação de difusão por mediadores e pilares. É importante que esta primeira proposta seja simples e muito factível. Se começarmos com uma atividade muito complexa e passível de não ser executada, podemos tanto nos desmotivar, quanto desmotivar os pilares e fazer o trabalho como um todo perder força. As atividades propostas neste momento diferem em uma série de aspectos daquelas que vamos propor no V Movimento. Como estamos começando a de fato intervir na comunidade e ainda não sabemos qual será sua reação, por mais que já tenhamos nos envolvido em algum grau com ela, as primeiras experiências propostas serão muito prospectivas. Fundamental ter os indicadores e as metas em pauta, sabendo que devemos verificar o envolvimento da comunidade nas quatro características das experiências que vamos sugerir.

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IV Movimento

Pois então, para selecionar, remodelar e planejar as primeiras atividades, precisamos nos perguntar: quais temas mobilizam a comunidade? Esta questão diz respeito tanto ao que une este conjunto social, ou parte dele, quanto ao que ele já considera “normal”. A resposta a esta pergunta nos ajudará a buscar atividades em determinados campos de experiência, com identidades do tipo meio ambiente, saúde, educação, etc. Em comunidades com redes sociais muito segregadas, como naquelas em que moradores não gostam do tráfego gerado pelo comércio, temos de levar em consideração que há diferenças e similaridades entre grupos, sabendo que nossas propostas podem ser mais ou menos significativas para uma ou outra rede. Selecionamos, assim, já algumas possíveis atividades e intervenções dentro do universo de possibilidades que nos cerca. Dentre elas – e sempre tendo em mente que devemos modificar os modelos padrões, de acordo com as especificidades do bairro de atuação – devemos pensar em como a intenção de envolvimento através de cada uma das quatro características da experiência poderá ser significativa para a comunidade. Por exemplo, se pensamos em propor a construção de uma horta comunitária: devemos nos questionar em como ela pode envolver o sujeito através da interação com o Meio, ou seja, como o ambiente da horta, o estar no espaço público, a terra remexida, a água, as mudas a serem plantadas podem envolver e instigar a pessoa. Da mesma forma, como a Ação sugerida ao sujeito pode lhe envolver, ou seja, seu trato com a terra, o cuidado com a manutenção dos vegetais, o rodizio de trabalho com outros moradores, o planejamento das colheitas, etc. Quanto à continuidade, do ponto de vista da Cultura podemos ter identificado que alguns grupos de moradores já se dividem para fazer a manutenção de praças do bairro, então lidar com o plantio e cuidado dos espaços públicos verdes pode fazer sentido para uma parte da comunidade. Finalmente, por já realizarem esta manutenção, propor hortas pode ser um passo além da ação que já realizam, mas sem ser uma quebra de paradigma muito profunda, mostrando envolvimento com Visão. Esta avaliação nos mostrará algumas coisas: em primeiro lugar, devemos saber onde reside a intenção preponderante de envolvimento da atividade, aquela que pode ter mais força. No caso descrito, talvez possamos dizer que está na Ação, pois sem ela não há horta comunitária,

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VII Estratégia

pode até fazer sentido para a comunidade e ser instaurada, mas sem manter sua interação ativa, ela deixa de existir. Em segundo lugar, precisamos avaliar como cada característica da experiência pode envolver a comunidade como um todo. Por exemplo, percebemos que a Cultura, ou seja, a afinidade com experiências anteriores, talvez seja de poucos grupos que já lidam com a manutenção das praças, mas e todo o conjunto que não realiza tal atividade? Este questionamento, buscando equilibrar a componente Cultura, nos levará a remodelar a atividade procurando envolver aqueles que não atuam na manutenção dos espaços públicos. Por exemplo, podemos passar de casa em casa do entorno das hortas apresentando o que estamos fazendo e suas possibilidades, como o consumo de vegetais frescos produzidos no próprio local, sem agrotóxicos; podemos realizar oficinas para começar a mostrar aos vizinhos que nunca trabalharam com a terra como esta atividade pode lhes ser interessante e significativa; ou podemos articular a experiência das hortas com aquela de organização de representantes de rua, sugerindo a eles que realizem em suas respectivas vizinhanças conversas sobre agricultura urbana. Desta forma, discutindo sobre cada característica da experiência, buscamos compreender como e quem elas envolvem e como podemos aprofundar este envolvimento. Nossa intenção fundamental é fazer com que as quatro componentes envolvam a comunidade a ponto de a experiência ser significativa. Todas as experiências que sugerimos devem ser desenhadas no mapa base com o perímetro de difusão definido no movimento anterior. Este mapa será a síntese do IV Movimento e um dos principais elementos do plano de ação de integração. • Viabilidade No Movimento de Difusão, a proposta ainda centrada na ação de mediadores e pilares faz com que as atividades devam ser completas em si do ponto de vista de recursos e execução. Antes de tudo, elas devem ser viáveis e simples de serem executadas na comunidade. Nos movimentos seguintes, cada vez mais o próprio ato de propor, sendo tomado cada vez mais autonomamente pela comunidade, possibilita que a viabilização das atividades também seja uma atividade significativa. Contudo, no momento atual, se as experiências não chegarem a 176


IV Movimento

ser executadas, perdem seu sentido e função. Outro aspecto desta viabilização centrada na ação de mediadores e pilares diz respeito à integração entre redes e grupos sociais que formam a comunidade. Uma vez que ainda estamos formando nossas bases de relacionamento e que não sabemos ao certo como as diversas redes se relacionam entre si, não podemos depender de sua (possível) articulação. Proporemos atividades com públicos mais pontuais. Por exemplo, a Ação na horta será num primeiro momento sugerida mais especificamente à rede de moradores. Num futuro momento podemos articular moradores com a escola, sugerindo que os primeiros organizem oficinas aos pais e alunos da comunidade escolar, bem como que os professores preparem com os moradores projetos pedagógicos sobre meio ambiente, agricultura ou biologia. É preciso ter cautela na articulação entre redes para que não sejam gerados conflitos previsíveis e desnecessários. Por estes dois aspectos das atividades no IV Movimento, da viabilidade de recursos e execução, por um lado, e por outro a preocupação de avaliar as potencialidades de articulação entre redes, denominamos suas experiências de pontuais. Isto não significa, de forma alguma, que devamos nos limitar em qualquer aspecto, apenas estarmos atentos a não darmos passos maiores do que devemos dar, não conhecendo a comunidade na profundidade que devemos conhecer. • Funções e objetivos Desta forma, as experiências deste movimento possuem algumas funções iniciais e específicas. Em primeiro lugar, presente em todas as ações, tanto estratégicas quanto integrais: desenvolver consciência e autonomia através do máximo envolvimento. Em segundo lugar, descortinar possibilidades de experiências que antes a comunidade desconhecia, ou seja, mostrar que elementos de vertentes contra hegemônicas podem ser realizados, como se alimentar de vegetais plantados na praça ao invés de comprá-los no supermercado. Quanto a este ponto, pode-se pensar no caso dos centros de aprendizado democrático da cidade de Hadera, em Israel. Os alunos, uma vez não conhecendo as possibilidades de experiên-

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VII Estratégia

cias que estão fora de suas esferas de consciência, são conduzidos por educadores a vivenciarem brevemente atividades em diversos centros espalhados pela cidade, locais com atividades práticas e específicas, como uma usina de energia elétrica. Nestes locais, realizam oficinas para entrarem em contato com as possibilidades educativas daquele centro, passando em seguida aos próximos. Se gostarem daquela atividade, podem voltar e se aprofundar mais no que ela tem a oferecer, realizando atividades com educadores locais. Em seguida, experiências pontuais buscam modificar ativamente a realidade: as intervenções propostas neste momento precisam mostrar transformações práticas, mesmo que simples, de forma a motivar e instigar a comunidade a ver que mudar a realidade estabelecida é possível e pode ser muito interessante. Outra função fundamental é possibilitar conexões e formação de laços sociais, caso já não existam, de maneira a consolidar tanto nossas bases de relacionamento quanto potencializar a sobreposição de redes, que permitirão executarmos experiências integradas entre elas posteriormente. Sabendo que a transformação do sujeito toma tempo e que não chegaremos ao final da estratégia com a totalidade da comunidade consciente e autônoma frente à distensão, precisamos lembrar também que nosso objetivo não é este. Nossa meta fundamental é que a comunidade como um todo desenvolva tal consciência e autonomia, de forma que permaneça realizando a mediação externa àqueles que em vias de desenvolver suas respectivas consciências e autonomias. Ou seja, o mediador que atua pela VII sai de cena antes de ver a totalidade dos sujeitos realizando suas mediações internas entre o viver e a vida, mas observando a comunidade caminhar sozinha neste sentido. • Verificações de envolvimento Em nossa atuação, formaremos ao longo do tempo a constelação da comunidade. Este momento de constelar pode tomar o tempo que for, mas é importante que atentemos a nossos objetivos e indicadores. Se verificarmos que a comunidade não está se envolvendo com as atividades executadas, precisamos mudar nossas abordagens, seja alterando a identidade das atividades propostas; modificando as formas de envolvimento pelas quatro componentes; aprofundando nosso conhecimento das especificidades da comunidade através de nossas ba-

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IV Movimento

ses de comunicação e relacionamento, etc. As verificações que vamos realizar por experiência são fundamentais e darão base à avaliação geral da situação do bairro, que por sua vez nos dirá quando atingimos nossas metas de Difusão para passarmos ao movimento seguinte. Precisamos pensar de antemão em como realizar estas verificações de envolvimento por componente da experiência. Ou seja, se propomos uma atividade com intenção de envolvimento muito baseada na experiência pela Ação, vamos procurar verificar se de fato as pessoas foram ativas; se a intenção estava no Meio, procuraremos verificar se as intervenções instigaram e atraíram a comunidade; se estava na Cultura, verificamos se as pessoas se identificaram com a atividade; se na Visão, se a experiência lhes agregou algo novo.

14. GRUPOS TEMÁTICOS Paralelamente às experiências propostas pelos mediadores, o estabelecimento das bases de relacionamento e nosso contato cada vez mais difuso com a comunidade podem começar a gerar inquietações e vontades de mobilização de algumas pessoas. Devemos incentivar que através destas inquietações se criem grupos temáticos, organizando pessoas que começam a ver motivação em se unirem para realizar algum tipo de atividade, seja estudo e pesquisa; planejamento; ou intervenção. Do ponto de vista de estudo e pesquisa, lembramo-nos da ideia de encontros educativos de Illich, onde as pessoas “poderão reunir-se em torno a um problema escolhido e definido por elas mesmas. A aprendizagem criativa e pesquisadora requer que os participantes todos estejam igualmente perplexos perante os mesmos termos ou problemas” . Questões como quais as melhores formas de lidar com o lixo; como lidar com os recursos hídricos do bairro; o que sig-

97. Illich, Ivan. Sociedade sem escolas (p.47)

nifica o plano diretor da cidade; assim como qual o perfil das empresas do bairro; quantas famílias compõe a comunidade; onde trabalham as pessoas que ali moram, entre tantas outras motivações, podem formas grupos como este. De maneira semelhante e complementar, grupos de planejamento tomam vontades demasiadamente complexas da comunidade como metas a serem planejadas. Por exemplo, se pelas

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VII Estratégia

bases de comunicação se descobrir que uma das questões do bairro for o transporte público, pode ser uma vontade que se instale uma estação de metrô ou algumas linhas a mais de ônibus no perímetro. Contando que tais intervenções dependem do poder público, cabe ao grupo articular tudo possível em torno de um plano e proposta ao governo. Esta forma de atuação será a base do VI Movimento e a consolidação do projeto político-pedagógico do bairro. De forma também complementar às duas apresentadas, grupos formados em torno da proposta de intervenções são os que gradualmente vão fazendo o papel inicialmente praticado pelo mediador e pelos pilares. São grupos que identificam determinadas vontades de experiências de vida por parte da comunidade e procuram propor atividades práticas que deem respostas adequadas e afinadas a elas. Grupos como estes podem ser facilitados pelos mediadores ao apresentarem a VII e trabalhar com o conceito de envolvimento pelas quatro características da experiência. A atuação do mediador nestes grupos está em facilitá-los, viabilizar sua gestação e propor formas de organização. É interessante que todo grupo tenha um objetivo prático, do contrário, facilmente os envolvidos podem perder motivação. Gradualmente, assim como para as propostas de experiências, o mediador vai deixando de ser central conforme outros sujeitos tomem para si a responsabilidade de facilitar e viabilizar a atividade do grupo. Neste ponto, o mediador passa a ter cada vez mais a função de integrá-los e articulá-los entre si. Alguns grupos temáticos fundamentais já podem ser incentivados desde o início pelos mediadores, mesmo que de fato eles devam ser organizados pela mobilização daqueles que os formarão. Estas propostas básicas vão depender de comunidade a comunidade, mas podemos citar alguns como: grupo para manutenção de banco de dados e ampliação dos canais de comunicação da comunidade; grupo de avaliação e indicadores da situação do bairro; e grupo de difusão de experiências. Quanto mais os grupos consigam executar trabalhos práticos e o mediador possa articulá-los com experiências e atividades que irá propor, mais estaremos gerando envolvimento. Cada mobilização destas abrirá diversas possibilidades e canais para os movimentos seguintes.

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IV Movimento

15. PLANO DE AÇÃO DE INTEGRAÇÃO Como primeiro movimento do segundo ato, não temos como estimar quanto tempo pode durar a Difusão, uma vez que, a princípio, a passagem ao V Movimento dependeria de atingirmos estágios suficientes de autonomia de reação da comunidade frente à distensão. Sendo assim, lembramos que os indicadores e as verificações são fundamentais à Difusão. Sem eles, passaremos ao próximo movimento sem saber de fato se o IV Movimento foi bem sucedido. Quando verificarmos que parte satisfatória do conjunto social está se envolvendo nas atividades, que outros tantos grupos temáticos se formaram, e que as bases de relacionamento estão se aprofundando, podemos avaliar que está no momento de passarmos ao Movimento de Integração. Para tanto, como em todo Movimento, vamos realizar seu plano de ação. O desenvolvimento deste plano deve agregar, além dos mediadores e dos pilares, também aqueles que passam a se envolver no processo da estratégia e se mostram ativos nas propostas de atividades, principalmente aqueles que formam grupos temáticos. Para tanto, devemos ampliar a discussão sobre a metodologia geral do VII, podendo modificar nossa estratégia e encontrar formas distintas de atuação no movimento seguinte. A Integração, diferentemente da Difusão, não terá a função de propor experiências pontuais a redes específicas e muito centradas na ação dos mediadores, mas sim de trabalhar em conjunto com atores que começam a despontar ativamente no conjunto social como propositores de experiências de integração. Sendo assim, o V Movimento será baseado nestas parcerias, na articulação de redes sociais, na consolidação e ampliação de grupos temáticos e no estabelecimento de fóruns deliberativos, caminhando para o VI Movimento. • Narrativa de difusão A narrativa de difusão conta a história do IV Movimento. Depois de realizadas as diversas experiências, estabelecido relacionamento com as redes e criados os vários grupos temáticos, poderíamos ter uma narrativa muito extensa. Contudo, não é o caso de narrarmos cada pormenor de todas as atividades que foram executadas. O interessante é discorrer em linhas gerais, ressaltando pontos importantes de experiências específicas que digam respeito ao anda181


VII Estratégia

mento do movimento. Pense em como a narrativa pode ajudar futuros mediadores que estiverem atuando no IV Movimento. É fundamental explicar como as verificações realizadas através dos indicadores se relacionam com as escolhas que fizemos por determinadas atividades. Quanto mais explicitarmos as conexões entre o estabelecimento de bases, as experiências e os grupos, mais a ligação com o V Movimento ficará explícita, pois nele passaremos a integrar estes elementos e outros novos. • Avaliação da situação de difusão Com os indicadores e as verificações que vamos realizando ao longo do movimento, é importante sintetizar uma avaliação do processo entre a situação inicial e final da Difusão. Esta será a avaliação que explicará o motivo pelo qual acreditamos que chegamos a um ponto satisfatório para passar ao movimento seguinte. Por exemplo, no plano de ação de difusão e ao longo do trabalho podemos ter definido como metas: que os meios de comunicação atingissem adequadamente x% da comunidade; que as informações veiculadas por estes meios tivessem retorno de y% do conjunto social; que estabelecêssemos contato com determinados atores sociais, representativos de suas respectivas redes; realizar n atividades e que nelas o envolvimento e presença da comunidade sejam de determinadas formas, etc. Para dar base a estas avaliações gerais da situação do bairro, precisamos ter em mente as verificações específicas por experiência, que também podem ser interessantes de serem explicitados nesta parte do plano de ação. Neste caso, o fundamental são as maneiras que criamos para verificar como os sujeitos que entraram em contato com as atividades e grupos se envolveram através de cada uma das características da experiência, como discutimos na seção sobre viabilidade. Outros indicadores fundamentais de serem avaliados e explicitados dizem respeito a aspectos indiretos de transformação, como socioeconômicos ou ambientais. Nem sempre poderemos avaliar a associação entre as experiências que propomos e as transformações ocorridas em

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IV Movimento

uma relação de causalidade. Mesmo assim, sem fazer conjecturas baseadas em fatos que não podemos comprovar, mostrar como o bairro está se transformando por pontos de vista mais amplos tanto descortina sua situação quanto reforça nossa base de envolvimento com ele. • Mapeamento de experiências de difusão Após termos, nos movimentos anteriores, mapeado as experiências existentes antes de começarmos nossa intervenção, agora vamos agregar as que propomos na Difusão e as que ocorreram autônoma e organicamente durante este período. Este mapa sintetiza o IV Movimento, mostrando como e onde as experiências ocorreram. • Experiência piloto de integração Assim como fizemos com a experiência piloto de difusão, qual será nossa primeira proposta de atividade na Integração? Desenvolve-se a ideia já com maior participação da comunidade, o que pode ser potencializado pela mobilização dos grupos temáticos, e buscando articular grupos e redes sociais. Reiterando a importância de desenvolver de antemão para a experiência que vão propor as maneiras de verificar o envolvimento das pessoas através das quatro componentes. • Metas e objetivos Como dissemos, os movimentos do segundo ato não comportam cronogramas, pois dependem muito mais dos tempos e dinâmicas da comunidade. Mas isso não significa que não possamos estipular metas de sugestão, como quantas atividades esperamos realizar em tanto tempo. De forma semelhante, podemos ter metas para nossos indicadores, por mais que eles sofram alterações ao longo do trabalho integrado à comunidade. Leiam e discutam o V Movimento com pilares e os grupos que começaram a se envolver. Sugiram encaminhamentos e formas de organização. Definam juntos as metas para os indicadores e os objetivos dos próximos períodos. Cada vez mais mediadores serão facilitadores e deixarão de ser centrais no processo de sugestão de experiências, encontrem quais são as melhores formas de dividirem o trabalho e permanecerem desenvolvendo a estratégia.

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V Movimento: Integração



Integração Pode ser simples vislumbrarmos nossas ações até a Difusão, pois a execução das atividades e as propostas das experiências ainda são muito baseadas em nossa própria ação. Em outras palavras, podemos considerar que todo esforço que dedicarmos se reverterá, de alguma maneira, em intervenção. O lado positivo da Difusão está nesta potencial segurança de depender da vontade de mediadores. Contudo, a estratégia não pode parar por ai. A passagem à Integração é dura, pois mediadores começam a deixar de ter centralidade no processo para dar espaço à autonomia da própria comunidade. Porem, esta tomada de força não depende do agente externo, depende essencialmente das pessoas que formam o conjunto social escolherem passar a realizar cada vez mais a sugestão e encadeamento de experiências integradoras. Sendo assim, não podemos negar o risco de não atingirmos o ponto de esta escolha ser realizada. A Integração envolve considerarmos esta possibilidade. Os movimentos anteriores buscam com muito cuidado que não se haja uma interrupção precoce dos objetivos básicos da es-

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VII Estratégia

tratégia, abortando-a na passagem da Difusão à Integração. Desta forma, o V Movimento ainda não pressupõe plena autonomia da comunidade, sabendo que o processo de tomada de consciência passa por diversos momentos de maturação. Aqui, mediadores devem buscar não apenas envolver os sujeitos na atividade já proposta, mas também sugerir envolvimentos e articulações entre pessoas e redes para que, juntos, realizem as propostas. Tendo estabelecido as bases de comunicação e relacionamento no movimento anterior, espera-se que tenhamos suficiente para que parte significativa da comunidade esteja informada e já demonstrando interesse em participar – ou já efetivamente participando – das propostas. Podemos, então, instigar grupos mais ativos e mais engajados a constelarem as experiências conosco ou observar grupos que atuam autonomamente. Nosso papel, assim, será cada vez mais de facilitar a organização de encaminhamento de grupos do que de assumir papel central no processo. Desta maneira, vemos que a Integração tem uma função fundamental que é de articular – ou integrar – a comunidade como um todo. No movimento anterior, atuamos ainda de forma pontual em determinados grupos que compõem o conjunto social, buscando viabilizar as atividades. Aqui, uma vez que buscamos que a comunidade seja mais ativa em suas próprias sugestões, precisamos instigar o relacionamento entre redes distintas. Esta articulação, potencializada quanto melhor estabelecidas nossas bases de relacionamento, abre dois outros momentos: em primeiro lugar, deve-se facilitar a organização de fóruns comunitários. Estes, que possivelmente já começaram a se formar informalmente ao longo das experiências sugeridas no movimento anterior e das discussões dos grupos temáticos, serão os espaços de discussão e deliberação em um primeiro momento para buscar intervenções mais amplas e em um segundo para viabilizar a passagem ao último movimento. Em segundo lugar, a articulação começa a dizer respeito aos espaços e comunidades vizinhas a nosso perímetro de intervenção. Os momentos da Integração: 16. Experiências integradas

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V Movimento

17. Fóruns deliberativos 18. Articulação com vizinhos 19. Plano de ação de desenvolvimento

16. EXPERIÊNCIAS INTEGRADAS Na Difusão, de acordo com os objetivos daquele movimento, desenvolvemos principalmente experiências pontuais, focadas em sua viabilidade e realizadas em determinadas redes. Na Integração, passamos a sugerir e realizar experiências integrando grupos e redes sociais, tornadas possíveis do ponto de vista de recursos e execução através desta articulação de atores. Não teremos uma ruptura com as atividades que constelávamos anteriormente, pelo contrário, aprofundamos e agregamos novos elementos na maneira de constelar. Queremos criar uma cultura de reprodução de experiências integradoras, de maneira que a comunidade se sinta no direito e poder de realizar as mais diversas atividades nos espaços de uso coletivo, buscando reagir ao afastamento entre a vida que querem viver e a vida que vivem. É preciso sempre ter em mente que a ação de constelar experiências e conduzir discussões deve ser pautada na multiplicidade de visões e pontos de vista, de forma que se possa caminhar a respostas e consensos abrangentes. A consciência a ser desenvolvida sobre a vida que se quer viver não deve ser superficial. Se incorrermos nesta superficialidade, corre-se o risco da comunidade desconsiderar e ignorar questões que lhe dizem respeito profundamente. Por exemplo, se um bairro chega à conclusão de que a vida que quer viver é segregada do resto da cidade, talvez esteja assumindo que não possui conexão ou identificação com esta cidade, que em realidade o engloba. Mesmo que neste exemplo estejamos pré-julgando que a conclusão por parte da comunidade seja superficial – julgamento que não podemos de fato realizar, apenas a título de especulação – muitos poderiam ser os argumentos que a levariam tanto à busca pelo isolamento, quanto a sua crítica contundente. Acreditamos que na oposição racional de ideias diversas, possibilitada pela integração entre sujeitos distintos e de grupos variados, pode-se caminhar a respostas

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VII Estratégia

mais profundas e significativas. Esta é a convicção das estruturas políticas deliberativas e estará sempre presente no V Movimento. Por este motivo, à estratégia não é suficiente buscar exclusivamente autonomia ou consciência. Se a comunidade gradativamente aprofunda, através do debate e do contato com atividades significativas, sua consciência de quais são as experiências de vida que quer viver, mais pode se mobilizar para tornar estas vontades realidade. Assim, as experiências desenvolvidas na Integração tendem a ser mais significativas do que aquelas da Difusão, uma vez que são propostas mais diretamente pelo próprio conjunto social ao qual são destinadas. • Constelando experiências Pois então, como constelar com maior participação da comunidade? Qual passa a ser o papel do mediador neste processo? Entrando na Integração, assim como fizemos no movimento anterior, realizamos uma experiência piloto para testar a nova forma de atuação. Antes, mediadores e pilares buscavam compreender ainda com alguma distância as especificidades da comunidade para poderem selecionar atividades, buscando sintetizar propostas que pudessem ser envolventes através de cada uma das quatro características da experiência. Já na experiência piloto de integração, devemos ampliar esta forma de atuar e realizar tal seleção e síntese diretamente com a comunidade. Ao final da Difusão, espera-se que grupos estejam se organizando para realizar atividades diversas ou discutir sobre assuntos específicos. Por termos instigado grupos temáticos e buscado colocar pessoas em contato em situações diversas, naturalmente sujeitos com questões próximas podem começar a se conhecer e se mobilizar. É nosso papel facilitar que os desconfortos de cada um se transformem em grupos de discussão, estudo e ação. Por exemplo, sobre a situação das calçadas; a má gestão das praças; a péssima qualidade e baixo atendimento dos estabelecimentos públicos de saúde; o isolamento das escolas e a falta de professores, etc. Sendo assim, a ação de constelar experiências de integração é baseada nesta energia que se concentra. Muitos são os grupos que normalmente se formam para discutir questões dos bair-

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V Movimento

ros, mas muitas vezes – muito mais vezes do que gostaríamos – acabam se desmantelando por não saberem como operar e encaminhar suas ações ou manter seus membros motivados. Mediadores e pilares entram neste ponto, facilitando e instigando os encaminhamentos que começam a se delinear, mostrando opções de intervenção. Mas não é apenas através destes grupos que iremos constelar as experiências no V Movimento. Sugerimos outras duas formas: podemos ampliar a equipe de mediadores e pilares, englobando outros pilares que não conhecíamos ou pessoas que passam a se mostrar ativas e interessadas; e podemos trabalhar com nossas bases de relacionamento, propondo a elas novas possibilidades de ação. Seja qual for a maneira de estarmos mais próximos da comunidade, a constelação será formada com ela. Isso significa que mediadores, pilares, grupos e indivíduos passam a selecionar, pesquisar, projetar o envolvimento nas quatro características e planejar as atividades colaborativamente. Mediadores, então, passam a ser fundamentais não para selecionar sozinhos as experiências e formar a constelação, mas sim para: 1. Compartilhar seu repertório e mostrar possibilidades de experiências 2. Discutir e abordar o conceito de experiências de integração 3. Sugerir a abordagem baseada na intenção de máximo envolvimento 4. Viabilizar a articulação entre grupos distintos com motivações semelhantes Não se espera que na Integração todos os sujeitos atuem permanentemente juntos na proposta de cada atividade. Esta união geral será centralizada nos fóruns. Diferentemente, para constelar com a comunidade formamos e reformamos associações de grupos, instituições e pessoas de acordo com as circunstâncias e vontades, de forma “adhocrática”, como discutido anteriormente. Por exemplo, se um grupo de moradores se une na crítica a um equipamento de saúde do bairro, que não atende de forma satisfatória, cabe ao mediador discutir as possibilidades que podem ter de intervenção e viabilizar o contato deste grupo com outros, como a subprefeitura e outros equipamentos públicos, para formarem uma unidade que buscará modificar a situa191


VII Estratégia

ção que consideram inadequada. Evidentemente que esta integração e ação podem ocorrer independentemente do mediador. Inclusive, é muito mais favorável que assim o seja, mas se não for o caso, cabe a ele favorecer para que ocorram. Assim, mediadores e pilares passam a atuar em diversas frentes, com maior variedade de interlocutores, para discutirem e viabilizarem atividades significativas. Permanecendo, assim como no Movimento de Difusão, a mapear estas experiências e verificar o envolvimento do conjunto social através dos indicadores de situação. • Viabilidade Na Integração, podemos buscar intervenções de maior complexidade do que na Difusão. Antes, ainda muito centradas em mediadores e pilares, propostas de vulto corriam maior risco de não conseguirem se sustentar. A tendência, então, era de realizarmos experiências mais simples e completas em si mesmas. Aqui, a maior tomada de ação diretamente da comunidade potencializa a viabilização de intervenções mais abrangentes, complexas e, inclusive, legítimas. A conexão que mediadores possibilitam envolve o caminho que recursos podem fazer até a execução de determinadas atividades. Por exemplo, uma empresa que quer realizar algum projeto no bairro, procurando se inserir com maior visibilidade, pode ser um potencial parceiro para uma associação de moradores que queira construir seu centro comunitário. Neste caso, como em muitos outros, precisamos sempre nos manter atentos se não estamos nos deixando levar pelos interesses e intenções das vertentes hegemônicas contra as quais procuramos lutar. Ou seja, podemos atuar em parceria, mas não nos submetermos a elas. Contudo, a viabilidade não depende de empresas privadas procurando melhorar seus planos de marketing, ou algo que o valha. Podemos pensar na viabilidade pela perspectiva das conexões sociais também pelo lado do microfinanciamento, ou “crowdfunding”. Se tivermos uma boa base de relacionamento, canais de comunicação bem estabelecidos e uma comunidade gradualmente mais coesa, viabilizar através da doação de indivíduos e instituições uma experiência que lhes soe significativa, pode ser muito mais sólido do que encontrar um parceiro exclusivo. 192


V Movimento

Da mesma forma, no time adhocrático formado para uma atividade, podemos ter grupos e entidades que se dispõe a colaborar, seja com recursos, material ou mão de obra. Importante ressaltar que a viabilidade das atividades não depende a prior de recursos financeiros. Cada ator pode participar com os recursos que tiver disponível. • Funções e objetivos Experiências integrais, assim como aquelas pontuais desenvolvidas no movimento anterior, têm os objetivos de desenvolver consciência e autonomia da comunidade reagir frente à distensão e desenvolver experiências integrais que sejam intervenções significativas ao bairro. Contudo, aqui focamos muito mais na articulação das quatro redes sociais. Importante relembrar que estas redes – formadas por vínculos de moradia, educação, trabalho e uso diverso – não esgotam uma definição de comunidade, apenas nos dão suficiente abrangência para que a estratégia considere a maior parte dela. Sempre que nos depararmos com redes que não podem ser configuradas como nenhuma destas quatro primeiras, assim como se não conseguirmos identificar uma delas, podemos remodelar esta definição. O importante é saber que grupos que formam o conjunto social são formados por vínculos de alguma natureza, o que lhes modifica a vivência das atividades do bairro e lhes altera a forma de ver significado em uma experiência ou outra. • Verificações de envolvimento A constelação que vamos formando com a comunidade também deve ser constantemente avaliada segundo os critérios e indicadores desenvolvidos. É importante que discutamos com os grupos de intervenção estes indicadores e os alteremos se identificarmos necessidade, considerando-se que sempre devemos prever de antemão as formas como vamos verificar o envolvimento dos sujeitos com a atividade que foi executada. Passamos ao próximo movimento se verificarmos que atingimos estados satisfatórios de envolvimento nas quatro características da experiência. Redundando o exposto no movimento anterior: se propomos uma atividade com intenção de envolvimento muito baseada na ex-

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periência pela Ação, vamos procurar verificar se as pessoas agiram; se a intenção estava no Meio, verificamos se as intervenções instigaram a comunidade; se na Cultura, verificamos se as pessoas se identificaram com a atividade; se na Visão, se a experiência lhes agregou algo novo.

17. FÓRUNS DELIBERATIVOS Um dos objetivos do movimento anterior é motivar através da intervenção prática a comunidade a intervir, vendo que pode tomar a ação para si. As questões que vão surgindo com o gradual alinhamento de interesses podem formar grupos temáticos, como discutimos, que podem tanto ser de pesquisa, planejamento ou ação. Estes grupos, quanto mais envolvidos e abrangentes no bairro, podem se tornar fóruns deliberativos. Esta transformação não exclui os grupos temáticos, que podem tanto permanecer ativos quanto serem ampliados e novos serem criados. Contudo, dependendo das questões que tratam, é interessante que se tornem representativos e legítimos a comunidade como um todo. Grandes mobilizações muitas vezes já são motivadas por grandes questões: a falta de habitação adequada; a escassez de equipamentos públicos; a falta de infraestrutura urbana; a exploração do trabalho assalariado; etc. Sejam quais forem as questões, por vezes pode-se organizar grupos para intervir, ou seja, para constelar experiências integradas. Contudo, outras vezes podemos verificar que faltam consensos sobre qual intervenção realizar, ou mesmo a falta de unidade ao conjunto social para que propostas sejam definidas e viabilizadas. Sendo assim, os fóruns deliberativos nascem, de forma geral, dos grupos temáticos e buscam integrar a comunidade em discussões que lhe digam respeito. Mediadores podem atuar na facilitação dos encontros e no apoio para a definição das pautas que alinhem os interesses das pessoas. É importante considerar que grupos temáticos muito focados em reivindicações de grupos sociais específicos, mas que à primeira vista não dizem respeito à unidade da comunidade, devem ser trabalhados com muita cautela e cuidado. Precisamos evitar ao máximo gerar conflitos destrutivos no conjunto social, com grupos rompendo relações. Temos, então, uma questão: os fóruns precisam da intermediação de mediadores para que integrem e não segreguem interesses de grupos distintos. Sendo assim, no V Movimento os

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fóruns que procuraremos formar ainda dizem respeito explicitamente ao conjunto do bairro, com oposições que se agreguem. Evidentemente, sempre haverá oposição nas exposições de ideias sobre como se intervir. O que precisamos evitar são interesses diametralmente contraditórios e opostos entre grupos. Por exemplo, a situação de um bairro onde convive população de classe média alta e de classe baixa, em uma ocupação irregular, com altos índices de vulnerabilidade. Se ainda não houver aproximação e empatia entre estes dois grupos, corre-se o risco de haver um conjunto de pessoas que lute pela reintegração de posse da ocupação e expulsão dos moradores. O fórum que pode ser formado para lidar com a questão deve ser mediado com muita cautela para que não se torne um espaço de simples agressão e não debate. Para que seja um espaço de acolhimento, é preciso que haja consciência social e já algum sentimento de unidade, o que podemos e devemos procurar desenvolver através da constelação de experiências que criamos. Contudo, fóruns mais gerais tendem a unir mais a comunidade, como aqueles que dizem respeito a questões do espaço público e dos equipamentos urbanos existentes. É interessante que mediadores se foquem e facilitar e viabilizar estas pautas, pois são válidas inclusive para integrarem grupos sociais distintos. • Organização dos fóruns Não vamos, aqui, sugerir organizações muito rígidas. Procuraremos sugerir apenas algumas diretrizes e reflexões para que mediadores realizem o que parecer mais adequado de acordo com suas circunstâncias. Fóruns, assim como o espaço para os romanos antigos e de forma semelhante à Ágora grega, são as praças centrais da cidade, onde estão presentes os edifícios principais da vida pública. Em nosso caso, sugerimos que se organizem em espaços extensos, visíveis e importantes do bairro. Seja uma praça central, um auditório, um teatro, ou qualquer local que tenha fácil acesso e que chame a atenção daqueles que por ali passam. É de se refletir sobre a validade do local do fórum não ser fixo, rodando entre espaços distintos de um encontro ao outro. Pelo lado positivo, temos a comunidade entrando em contato com

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vários locais que estão presentes em seu perímetro; pelo lado negativo, não criamos a centralidade e a cultura do local do fórum, o que pode ser muito importante. Neste sentido, é muito interessante que a comunidade caminhe na direção de construir um local para suas assembleias, seja um anfiteatro ao ar livre em uma praça, com o básico de equipamento de som, se necessário, seja dentro de uma sede comunitária. Fóruns precisam ter pauta definida, sugerimos que organizada pelo grupo temático que vem estudando sobre seu tema, horários claros de início e término, e serem muito bem comunicados. Contamos com as boas bases de comunicação que estabelecemos. Sugerimos que a parte inicial conte com informes e discussões em pauta, mas que se chegue de fato ao momento deliberativo, buscando decisões e encaminhamentos. Estes podem ser inclusive as pautas das próximas reuniões, mas devemos sempre evitar terminar uma reunião sem saber quais serão nossos próximos passos. Sugerimos também que se definam relatores, que ficam encarregados de redigir a ata dos encontros, revisores, que revisam a ata e, dependendo das dinâmicas que são propostas, moderadores para organizarem grupos menores dentro do fórum. Uma questão fundamental é verificarmos, de forma semelhante ao que fazemos com os indicadores para as experiências, o envolvimento da comunidade nos momentos de encontro deliberativo. Precisamos desenvolver critérios que nos ajudem a verificar se o que ali se discute e define é representativo e legítimo frente à comunidade. Quantas pessoas podem falar por todas? Podemos pensar em maneiras de transmitir online a discussão; de verificar quantas pessoas foram informadas do encontro; observar a porcentagem de participação da comunidade, etc. • Alinhamento Dois são os elementos que sugerimos de alinhamento entre fóruns: em primeiro lugar, a organização de uma assembleia geral da comunidade, unindo todos os fóruns; em segundo, uma aproximação da comunidade a si própria. Quanto ao primeiro elemento, mesmo sendo valorizado que todos os fóruns tenham toda a

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comunidade presente, muito provavelmente unirão pessoas com interesses e intenções próximas aos temas que discutem. Contudo, a comunidade não deixa de ser uma só. Sendo assim, mediadores devem levar aos fóruns que se formarem a ideia de se unirem entre si em assembleias gerais. Estas, que muitas vezes já são realizadas por associações de moradores, por exemplo, assim como os fóruns, precisam ter pauta, relatores, revisores e encaminhamentos. Uma excelente opção para os primeiros encontros é a exposição dos trabalhos dos grupos temáticos e dos fóruns, de forma que a comunidade toda possa se informar com mais profundidade sobre o que vem ocorrendo no bairro. Mediadores e pilares também podem expor suas atividades, as experiências que vem desenvolvendo e as verificações que realizaram. A assembleia do bairro será fundamental para o VI Movimento, pois sem ela não temos como chegar a uma síntese das vontades e propostas do bairro como um todo. Fóruns precisam se unir, e para tanto, a assembleia é o local fundamental aonde podemos alinhar nossas expectativas e planos de ação. Nela, outros grupos podem se formar para embasar este alinhamento, dentre os quais acreditamos ser o mais fundamental o de aproximação da comunidade a si mesma. Neste segundo elemento de alinhamento, sugerimos que se faça algo semelhante ao que mediadores e pilares realizaram nos Movimentos de Aproximação e Contato, com momentos de sensibilização, leitura, mapeamentos e avaliações de situação. Contudo, devemos integrar diversos atores para que se possa ampliar a profundidade destas aproximações. Assim, podemos realizar pesquisas e questionários mais extensos e abrangentes, pesquisar dados sobre o bairro em mais fontes, avaliar sua situação com mais olhos, etc. Com estes dados, podemos realizar um primeiro diagnóstico efetivamente colaborativo, avaliando qual é a situação do bairro, quais suas carências, quais seus desconfortos, qual seu estado de consciência, autonomia e coesão. Em outras palavras, o diagnóstico envolve a ampliação das verificações que mediadores e pilares já realizam e dos indicadores e dados que já levantavam. Este diagnóstico será fundamental para sintetizar um documento que mostre o “bairro que temos”, ainda neste V Movimento, desenvolvido e sintetizado em assembleia, cuja

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VII Estratégia

legitimidade e representatividade devem ser verificadas. São diversas as metodologias que nos apoiam para realizar este diagnóstico. Jan Gehl e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, por exemplo, iniciam a definição de suas diretrizes para um plano de intervenção no centro da cidade através de workshops com a população. Os três momentos destes workshops: a identificação de problemas e poten98. PMSP - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. Centro diálogo aberto (p.17)

cialidades; avaliação em campo da situação; levantamento de hipóteses de transformação . De forma semelhante ao mapeamento de experiências que mediadores realizam, o diagnóstico pode ser realizado a partir do levantamento de informações por grupos organizados entre fóruns, embasando discussões temáticas em grupos separados em assembleia. Mapeamos pontos positivos, negativos, potencialidades e carências não apenas no espaço público, mas com relação a todas as experiências do viver que nos dizem respeito. Todas elas estão presentes no espaço, logo, podemos mapeá-las. Mesmo quando um desconforto é com a subprefeitura, por exemplo, podemos pontuá-lo no mapa, assim como se tivermos problema com equipamentos esportivos, policiamento, saúde, etc. Sendo assim, fóruns específicos compartilham suas discussões; aproximamo-nos com olhar mais cuidadoso ao bairro; avaliamos nossa situação; e levantamos hipóteses de transformação. São partes que constituem o diagnóstico que dará base ao plano a ser desenvolvido na sequencia, no VI Movimento.

18. ARTICULAÇÃO COM VIZINHOS O bairro com o qual estamos atuando não é, de forma alguma, uma ilha. A não ser que estejamos lidando com uma comunidade de fato isolada, sempre teremos de lidar com os vizinhos ao perímetro de intervenção. Estes não são menos importantes do que o próprio bairro onde estamos, muito pelo contrário. Em primeiro lugar, são nossos vizinhos que fazem com que possamos ter um “perímetro”. Em segundo, boa parte das atividades que realizamos envolvem bairros vizinhos, seja pela sobreposição de redes sociais – por exemplo, moro em um bairro e trabalho ou estudo no vizinho

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– seja pela simples circulação urbana, quando temos de atravessar outros bairros para chegar a um destino. Em terceiro, o conjunto de bairros é que forma uma cidade. Na medida em que a cidade é a maior unidade comunitária agregada no espaço, então todos dizem respeito a todos. A segregação pela identidade bairrista é uma farsa, pois desconsidera sua inevitável inserção. Em quarto, bairros vizinhos possuem outros tantos potenciais distintos de experiências que também podem ser significativas para nós, e vice versa. Estes, entre outros tantos motivos, já nos ajudam a perceber que precisamos de uma maneira específica para lidar com os bairros justapostos a nosso perímetro. Em momento algum devemos considerar nossa delimitação como uma barreira rígida. Contudo, nosso foco de atuação nunca esteve de fato para fora da área de intervenção. Um dos desdobramentos dos grupos temáticos pode ser lidar com esta limitação, questionando qual é a história e situação dos bairros próximos. Por um lado, pessoas podem optar atuarem como mediadoras, iniciarem todo o processo do VII e desenvolverem suas estratégias para atuarem nestes bairros. Esta é a melhor opção, espraiando e difundindo a mediação na cidade. Mas podemos também trabalhar de forma ainda distanciada. Neste caso, é interessante que se realize boa parte do primeiro ato do VII, que se conheça os pilares daquelas comunidades; que se realize a aproximação dos bairros, mesmo que superficial; e que se proponham experiências em seus espaços. Quanto mais estabelecermos contato com os bairros vizinhos, maior a possibilidade de desenvolverem suas próprias estratégias e gradualmente passarmos a atuar juntos. Podemos ampliar muito as possibilidades de experiências se agregarmos nossos potenciais e nossas reações à distensão entre o viver e a vida. Muitas vezes vemos este tipo de contato entre associações de moradores de bairros vizinhos. O relacionamento e as informações que levantaremos serão fundamentais para o VI Movimento, pois se tivermos propostas de impacto muito amplo, devemos procurar agregar as assembleias de vários bairros.

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19. PLANO DE AÇÃO DE DESENVOLVIMENTO Chegamos ao último plano de ação da estratégia. Uma vez que as ações estão muito menos centradas em mediadores e pilares, este plano não terá como foco o desenvolvimento de experiências, como fizemos nos últimos movimentos. Diferentemente, estamos planejando nossa saída de cena, o momento final em que vamos atuar no bairro dentro da estratégia que delineamos. Evidentemente que o final da estratégia não significará qualquer impedimento à ação de mediadores no bairro, nem que este terá alcançado sua plena autonomia e consciência. Sendo assim, o plano de ação de desenvolvimento caminha à conclusão de uma etapa, mas inaugura outra. • Narrativa de integração Temos muito para contar sobre a Integração. A história do relacionamento entre redes, do desenvolvimento cada vez mais integrado e autônomo de experiências pela comunidade, a organização dos primeiros fóruns, o estabelecimento da assembleia e o relacionamento com bairros vizinhos são momentos de tal magnitude que sua narrativa deve ser valorizada. Conte esta história com calma, valorize as especificidades da comunidade. Antes de tudo, valorize muito os momentos mais críticos da estratégia no V Movimento. Um dos que mais pode ser complicado é o da experiência piloto de integração e das primeiras propostas realizadas em conjunto com grupos da comunidade. Nunca podemos antever como o conjunto social se portará nesta ação, logo sempre corremos o risco de que ele não se envolva ou de que seu envolvimento não perdure. Mesmo que façamos de tudo para mitigar tais riscos, buscando ampliar a cultura de envolvimento e ação, sempre há a possibilidade de termos de interromper a estratégia no V Movimento. Se este for o caso, não desanime, acredite que muito foi feito e muitas transformações ocorreram. A narrativa de integração vale para contar esta história também e para refletir se vale a pena voltar alguns passos atrás, eventualmente voltando ao IV Movimento. Entretanto, se o V Movimento tiver corrido adequadamente, mesmo que sem passar por todos os momentos propostos no VII, conte como ocorreram as transformações e os envolvimentos da comunida-

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de e como chegaram à conclusão de passar ao Desenvolvimento. • Avaliação da situação de integração Com os indicadores que já tínhamos definido, permanecendo verificando a situação do bairro. Contudo, aqui também precisamos agregar o documento do “bairro que temos”, desenvolvido em assembleia. São duas avaliações distintas e complementares, uma vez que mediadores sempre permanecem com olhar analítico distinto. Através desta avaliação que justificamos nossa passagem ao VI Movimento. Mesmo que a assembleia não esteja profundamente estabelecida ou que o diagnóstico da situação do bairro não tenha sido concluído, podemos chegar a conclusão de que é hora de passar ao Desenvolvimento, caso tenhamos atingido os objetivos de envolvimento e integração que traçamos previamente. • Mapeamento de experiências de integração Assim como no movimento anterior, mapeie as experiências que foram realizadas no V Movimento no mapa base, mostrando em cores ou formas distintas as diferenças entre elas. Este mapa sintetiza a Integração. É interessante mostrar onde ocorrem os fóruns e assembleias. • Planejamento de assembleia Planeja-se os próximos passos da facilitação e mediação nas assembleias que estão por vir. O mediador terá ainda menos centralidade no movimento seguinte, quando buscará que a comunidade sintetize em assembleia uma resposta ao “bairro que temos”, em uma proposta integrada de o “bairro que queremos”. Estes dois documentos, que serão as partes iniciais do projeto político-pedagógico que vamos buscar desenvolver, são análogos à consciência desenvolvida sobre as experiências que temos no viver cotidiano (bairro existente) e as vontades profundas de experiências de vida (bairro que queremos). As outras partes do projeto que será realizado propõem formas práticas e ampliadas de reação à distensão entre estas situações, o viver e a vida.

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Contudo, nosso planejamento sobre as assembleias fala exclusivamente de nossa forma de ação, não a qualquer outro elemento que seja determinante a elas. A assembleia não nos pertence, ela é a voz própria da comunidade e apenas à comunidade diz respeito. O que nos cabe é sugerir a ela que caminhe em determinados caminhos, mostrando as opções que se abrem neste percurso. • Metas e objetivos Nossas propostas de projeto político-pedagógico será uma união final de tudo o que realizamos e de conceitos de várias vertentes contra hegemônicas que estão presentes, mescladas na estratégia. Para tanto, revise todos os seis movimentos que realizou, lembre-se de suas intenções fundamentais, dos diversos momentos e transformações realizadas até aqui, das narrativas e pessoas que conheceu. Leia o próximo e último movimento e defina suas metas. Elas não serão mais tão relacionadas ao que espera de transformação da comunidade, baseadas nos indicadores que desenvolveram com os pilares. Diferentemente, elas dirão respeito a sua própria atuação novamente, como eram no primeiro ato. O único objetivo que pode esperar da comunidade é a síntese em um plano articulado de desenvolvimento. Todos os seus esforços estarão canalizados para este fim, que terá sua expressão máxima e ponto conclusivo quando o plano começar a ser de fato executado. Não sairemos de cena quando o projeto político-pedagógico for apenas um projeto. Em realidade, ele estará sendo escrito como uma síntese de algo que já está em andamento: a comunidade já estará realizando experiências de integração, desenvolvendo consciência e aprofundando sua autonomia, mobilizando-se em grupos temáticos, fóruns e assembleias. O projeto é um patamar galgado. Um ponto de chegada para um salto maior. Planejamos, neste último plano de ação, sair de cena e concluir a estratégia na narrativa final, o ensaio, quando o projeto político-pedagógico estiver completo e começar a se tornar realidade. Quando as frentes de ação começarem a atuar, quando as atividades centrais começarem a ser executadas, quando a pressão no governo por intervenções de maior porte passarem a ser realizadas, quando redes sociais distintas estiverem se mobilizando juntas em torno de fins comuns, etc. 202




VI Movimento: Desenvolvimento



Desenvolvimento Chegamos ao último movimento da estratégia. Nossa caminhada até aqui foi longa e com certeza muitas transformações ocorreram. Não podemos prever quais foram e quais serão os percursos traçados por cada comunidade. Estes cabem exclusivamente a elas e aos acontecimentos que vierem a ocorrer. Não à toa a estratégia é distinta de caso a caso e deve ser formulada para acompanhar a fluidez das transformações que encontramos pela frente. Neste trajeto, o VI Movimento não é o final da intervenção ou o encerramento do encadeamento de experiências. É um marco conclusivo apenas para o mediador, aquele que iniciou sua atuação no já distante prelúdio, o primeiro momento da Orquestração, e que vem encerrar sua atuação no ensaio, o último do Desenvolvimento. Isso não significa que precise se distanciar ou romper laços com o bairro com o qual tanto se envolveu. Pelo contrário, pode muito bem aprofundar este envolvimento e permanecer parte da comunidade. Mas para o conjunto de pessoas que formam o bairro, o último movimento da estratégia é uma síntese, uma passagem de um patamar a um patamar seguinte. Quanto mais os objetivos da

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mediação forem alcançados, ou seja, quanto mais a comunidade desenvolver e aprofundar sua consciência e autonomia de reação frente à distensão entre as experiências do viver cotidiano e suas vontades profundas por experiências de vida, mais as ações e intenções do mediador e as da comunidade se mesclam e se confundem. Quanto melhor a mediação, mais se terá a impressão de que o mediador foi secundário no processo, pois o conjunto social estará em posição de destaque, ativo e coeso. Mesmo que pilares e boa parte da comunidade – principalmente sujeitos mais envolvidos nas atividades realizadas – saibam desde sempre da função e importância dos mediadores, não podemos nos deixar levar nunca pela vaidade. Se chegarmos ao Desenvolvimento com as ações ainda muito centradas em nós ou em pessoas específicas, é muito possível que a autonomia não tenha de fato sido desenvolvida e que o projeto político-pedagógico não se desdobre em novas experiências de integração. Precisamos lutar profundamente durante a Difusão e a Integração para que esta autonomia seja desenvolvida, facilitando e viabilizando tudo que estiver ao nosso alcance. Entretanto, chegado ao Desenvolvimento, não podemos ter a expectativa de que a totalidade das pessoas que formam a comunidade tenha desenvolvido consciência da distensão. Mas podendo verificar que o conjunto, como unidade, permanece desenvolvendo experiências de integração e mantendo o acompanhamento da verificação de envolvimento, podemos vislumbrar a mediação sendo perenizada. Em outras palavras, lembrando que experiências de integração entre o viver e a vida são simultaneamente educativas (do ponto de vista de desenvolvimento de consciência da distensão) e propósito da reação a esta distensão, pois é vivendo que se aprende a viver a vida, o objetivo do Desenvolvimento como conclusão da intervenção do mediador é que a comunidade crie sua própria estratégia de reação, de maneira semelhante ao que realizamos com o VII. Esta estratégia da comunidade pode tomar muitas formas, mas iremos sugerir o formato de projeto político-pedagógico. Os momentos do Desenvolvimento: 20. Acompanhamento 208


VI Movimento

21. Fóruns e assembleias 22. Projeto político-pedagógico 23. Ensaio

20. ACOMPANHAMENTO No IV Movimento as experiências eram consteladas e executadas por mediadores e pilares; no V, já eram consteladas com a comunidade, integrando-se atores e grupos e sugerindo formas de constelar e de se organizarem; no VI, por sua vez, nossa ação toma outra dimensão e perspectiva. Grupos e equipes já devem se formar adhocratica e autonomamente para realizarem intervenções e definir projetos. Se tivermos sido realmente bem sucedidos, a comunidade terá internalizado de tal maneira a cultura de mediação, que cada vez mais veremos experiências sendo realizadas sem estejam vinculadas a nossa ação. Contudo, como o processo maturação é contínuo, podemos escolher entre três frentes de ação ligadas a experiências: em primeiro lugar, podemos constelar experiências com pequenos grupos, como fazíamos na Difusão, acreditando que são atividades importantes para o repertório de possibilidades da comunidade; em segundo, podemos permanecer realizando experiências integradas, como fazíamos no V Movimento, atuando como facilitadores de grupos adhocráticos; e podemos atuar em experiências que já são realizadas autonomamente. Esta última, mais vinculada ao VI Movimento, diz respeito a nosso acompanhamento externo. Aqui, ficamos na posição de expectadores, discutindo com os grupos executores suas formas de atuação, verificação de envolvimento, maneiras de constelar e envolver a comunidade de forma participativa para realizar tal constelação, e todas outras informações que podem aprimorar nossa metodologia e futuras estratégias. O aprendizado que podemos ter com este acompanhamento é ímpar. Como diz o dito popular, “muitas cabeças pensam melhor do que uma”. Pois bem, podemos nos surpreender muito com o que pessoas diferentes podem criar. Este repertório de novas possibilidades deve ser compartilhado com futuros mediadores, sendo parte fundamental do ensaio final. Ao mesmo

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tempo, podemos também partilhar estes aprendizados que temos na comunidade, com a própria comunidade, mostrando para uns o que outros estão fazendo. Permanecemos, então, acompanhando a atuação dos grupos que se organizam e as experiências que são propostas, mapeando-as como sempre fizemos. Contudo, a verificação de envolvimento toma outra forma. Não podemos assegurar ou esperar que toda a comunidade realize as avaliações da maneira como realizávamos. Por mais que seja de interesse do próprio conjunto social permanecer fazendo tais verificações, nosso acompanhamento pode ser interessante para ressaltar tal importância. Assim, os contatos que temos nas bases de relacionamento e com pilares são fundamentais. Através deles, podemos instigar a comunidade a se monitorar e ter atenção se não está deixando de lado alguma questão importante da mediação. É interessante que permaneçam verificando o envolvimento com os indicadores que utilizamos desde o III Movimento, de forma que se possam gerar séries históricas e observar a evolução e transformação do bairro.

21. FÓRUNS E ASSEMBLEIAS No V Movimento, valorizamos a criação de fóruns que tivessem pautas que não colocassem grupos em conflitos destrutivos, com ideais ou valores profundamente contraditórios, mesmo que não os evitássemos. No Desenvolvimento, não podemos garantir que a comunidade tenha desenvolvido consciência social suficiente para que todos considerem as reivindicações de todos e que o consenso seja alcançado de forma pacífica. Mesmo assim, espera-se que se tenha caminhado significativamente neste sentido. Desta forma, podemos instigar grupos mais polêmicos e dar atenção a pautas difíceis de serem discutidas. Uma vez que as experiências já estiverem sendo desenvolvidas com mais autonomia pelo conjunto social, podemos despender mais energia para atuar em fóruns. Passamos a agir potencialmente como mediadores de conflitos, o que pode exigir algum preparo, que podemos buscar com monitores, em ensaios de outras estratégias, e em bibliografia de apoio. A variedade de possibilidades de tipos de conflito que podem surgir é de tal forma extensa que

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não nos cabe buscar uma metodologia pasteurizada para lidar com eles. É preciso pesquisar de acordo com as circunstâncias. Por exemplo, se estivermos lidando com oposições entre grupos de classes sociais distintas, talvez devamos ter uma abordagem diferente da que teríamos se a oposição fosse entre grupos religiosos. De qualquer forma, permanecemos sugerindo que sejam realizadas as verificações de legitimidade e participação nos fóruns, bem como sua organização com relatores, revisores e moderadores. Indicadores e atas sempre serão fundamentais, inclusive frente à opinião pública e ao governo, caso a comunidade tenha de tomar uma posição sobre alguma questão pública. Muitas vezes governos tomam a voz de uma associação que leva o nome do bairro como se por definição ela detivesse legitimidade, contudo, o que vemos é que na maior parte das vezes isto não é verdade, com associações sendo muito pouco conhecidas por suas respectivas comunidades . A unidade de voz entre fóruns e entre todos os grupos e indivíduos do bairro deve ser cada vez mais reforçada na figura da assembleia. Se no movimento anterior ela ainda estava em suas primeiras fazes de instauração, aqui precisamos buscar sua autonomia e atividade. Não é uma tarefa simples termos conseguido redigir no V Movimento o diagnóstico participativo do “bairro que temos”. Podemos, eventualmente, ter passado ao VI sem ter este documento completo. Isto não é um problema. Nossa maior preocupação é que a assembleia seja forte. Uma vez sendo, torna-se mais fácil a realização do diagnóstico, bem como seu desdobramento na definição das diretrizes do “bairro que queremos”. Sendo assim, nosso primeiro maior desafio no Desenvolvimento é que a assembleia seja organizada, visível à comunidade e bem comunicada, e que passe a gerar internamente novos fóruns e grupos temáticos. Assim, pode-se associar frentes como aquela de comunicação, que precisa permanecer ativa e operante; bem como criar uma que realize verificações de envolvimento. A união de diversas frentes de trabalho e intervenção talvez dê a melhor forma ao que poderíamos chamar de uma associação comunitária, onde a busca pela integração entre atores de diversas redes distintas é permanente. Esta associação pode tanto ser oficializada como uma pessoa jurídica, quanto permanecer informal, o que não significa estar menos organizada.

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Contudo, é de se pensar na possibilidade de se formar uma associação formal, pois para diversos contratos com o poder público, por exemplo, exige-se vínculo institucional. Uma opção a esta necessidade é realizar tal vínculo com o governo através de parceiros institucionais. Mas esta associação – fundada no seio da assembleia, e não o inverso – depende de intenções e motivação para atuar. Muitas vezes vemos associações de moradores definharem ao verem seus objetivos serem atingidos ou a comunidade perder sua motivação para se mobilizar. Precisamos evitar isto, de forma que experiências de integração permaneçam sendo realizadas, potencializadas e viabilizadas pela assembleia e pela associação, escalando cada vez mais em profundidade e força na integração entre o viver e a vida. Fóruns podem chegar a conclusões de que as experiências que a comunidade quer não estão em sua alçada, como intervenções urbanas muito amplas; instalação de infraestrutura de transporte público; melhoria de equipamentos de saúde; instalação de novos equipamentos sociais; etc. Pautas desta magnitude precisam se tornar planos e projetos a serem articulados com os interlocutores adequados, seja o Estado, empresas ou qualquer outro. Temos, então, por um lado o diagnóstico realizado pela comunidade, o “bairro que temos”, e demandas e projetos do outro, que vão dar forma ao “bairro que queremos”. Assim como realizamos com a assembleia anteriormente, devemos buscar o alinhamento destas duas abordagens, formando as bases do projeto político-pedagógico.

22. PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO Finalmente, chegamos ao objetivo sintético da estratégia. Podemos dizer que o projeto político-pedagógico seria um “objetivo pelo processo”, ou seja, é mais uma síntese de toda a transformação ocorrida ao longo dos seis movimentos do que de fato um objetivo. Muitas vezes vemos metodologias que tem como meta a definição de projetos como este, tendo-o como justificativa para mobilizações. Não é o nosso caso. Nossas intervenções e atividades são realizadas com intenções e motivações específicas e independentes. O projeto político-pedagógico (ou PPP), para que possa ser concebido, depende de termos

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caminhando com alguma consistência na estratégia. As bases de relacionamento e a integração que é realizada; as bases de comunicação; os grupos temáticos; os fóruns; a assembleia e a potencial associação são suas fundações. Sem elas, a redação do PPP corre o risco de ser vazia tanto do ponto de vista de consciência das vontades profundas da comunidade; quanto de potencial autonomia para ação e legitimidade. O documento que vamos formar é uma combinação de elementos de diversos tipos de planos encontrados em vertentes contra-hegemônicas de educação, política e urbanismo. A dimensão educacional reside na constelação que estará contida no projeto; a política, a forma como vamos defini-lo e suas seções operacionais; e a urbanística, nas dimensões de espaço e tempo que dão forma às propostas de transformação. Como síntese do que realizamos até aqui e como proposta de estrutura, estaremos mesclando conceitos de plano de bairro, de projeto político-pedagógico de escolas democráticas e de micro pools deliberativos. Como discutimos no capítulo sobre vertentes contra-hegemônicas, conceitos como estes, ao partirem da busca pelo máximo envolvimento do sujeito, lidam com ele em sua dimensão complexa e integral. Ao falarem com o mesmo interlocutor, acabam com estar muito próximos. Adotamos uma definição próxima a de Padilha, citando Gadotti, para projeto político-pedagógico, onde ele seria “um situar-se num horizonte de possibilidades na caminhada, no cotidiano, imprimindo uma direção que se deriva de respostas a um feixe de indagações” . O projeto se situa no futuro, ancorado no presente, fundado em consensos. Sendo assim, contem muitos elementos semelhantes a nossa estratégia e ao VII. Para que seja possível redigir o PPP, precisamos definir algumas linhas gerais para seu desenvolvimento e como mediadores podem atuar nesta que pode ser sua última ação estratégica. • Desenvolvimento O processo que sugerimos para o desenvolvimento do PPP é muito semelhante aos movimentos do VII.

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Como ressalta Padilha, seu processo de desenvolvimento depende de estabelecermos regras claras de participação e de operarmos um bom sistema de comunicação. É interessante que todas as ações do grupo de trabalho que tomar a frente na elaboração do projeto sejam muito bem veiculadas e estejam públicas para a comunidade, inclusive verificando o melhor possível se a informação está efetivamente chegando às pessoas. Realizar eventos de divulgação e workshops de envolvimento é sempre boa ideia. Cada ator e cada grupo presente na assembleia pode tomar frente em uma dimensão do trabalho, de acordo com sua posição e facilidades. A divisão do trabalho pode ser muito proveitosa, uma vez que o processo pode ser um pouco extenso. Sugerimos que este processo de elaboração contemple cinco partes: 1. Elaboração do marco referencial 2. Diagnóstico da situação: o bairro que temos 3. Constelação de experiências: o bairro que queremos 4. Potenciais de articulação e viabilização: autogestão 5. Indicadores e verificações O marco referencial explicita “qual é a visão de mundo, os valores e compromissos” que a comunidade esta assumindo e “expressa a sua própria ‘cara’, sua identidade e a direção, o rumo que deseja tomar daqui para frente” . É no marco que estarão sumarizadas as intenções e objetivos que a comunidade assumir como condizentes com suas características e convicções, ou seja, é o documento correspondente à síntese da consciência da comunidade. Sugerimos que coloquemos em pauta alguns pressupostos e objetivos que utilizamos em nossa estratégia, para que sejam discutidos e eventualmente englobados no marco referencial. Alguns que consideramos fundamentais: • Intenção de máximo envolvimento • Valorização da identidade do conjunto social e de cada indivíduo

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• A busca pela consciência profunda das próprias vontades • A busca pela consciência da distensão • Autonomia da comunidade e de cada indivíduo • Busca da autogestão Padilha sugere que a definição do marco seja realizada a partir de perguntas que instiguem o debate, como “como compreendemos o mundo atual” ou “quais são os seus principais problemas e suas maiores necessidades”. Acreditamos ser uma boa abordagem, por mais que seja muito difícil definir tais perguntas. É preciso cuidado para não incorrer tanto em superficialidades quanto em questões demasiado profundas, que acabem por desmotivar as pessoas. Organizar a assembleia em grupos de discussão, cada um tendo um moderador e um relator, pode ser uma boa sugestão de organização, para em seguida abrir o debate ao plenário. O diagnóstico do bairro, sintetizado no documento “o bairro que temos”, realizado no movimento anterior através de metodologias do II e III Movimentos, pode ser aprofundado se a assembleia acreditar ser necessário fazê-lo. É importante que estejam sempre contempladas as dimensões de personalidade e identidade do bairro, de forma que de fato se identifique com os problemas e as qualidades expostas no documento. Quanto mais envolvermos atores para realizar o diagnóstico, melhor. Crianças, idosos, estudantes, comerciantes, todos podem desempenhar papel fundamental nas leituras, pesquisas, levantamentos, etc. O diagnóstico sumariza a consciência da comunidade frente às experiências do viver cotidiano. Em seguida a esta consciência, sugerimos sintetizar, também, a consciência do conjunto sobre suas vontades profundas por experiências de vida, ou seja, “o bairro que queremos”. Aqui, o debate procura o consenso em torno de artigos que englobem as vontades, em um ambiente democrático deliberativo. Como nos dizia Manin, todos podem se envolver na deliberação, colocar seus pontos de vista e, juntos, buscarem as melhores respostas. Esta dinâmica pode tomar um tempo. Para que seja mais organizado e eficiente, sugerimos que o mediador, ou outra pessoa que atue como moderadora, exponha as regras do “jogo” e

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recolha as vontades por experiências de vida das pessoas individualmente em cartões, o que já nos possibilita verificar sinergias, oposições e criar um quadro geral. A partir deste quadro, pode-se formar grupos com relatores, que debaterão sobre os temas levantados e outros que considerarem adequados. Os temas que são levantados são abertos à assembleia ou aprofundados em grupos temáticos. Caminhamos para que as discussões sejam sumarizadas por relatores, que junto com um grupo de trabalho designado em assembleia tratarão de sumarizar as vontades por experiências de vida em artigos. Estes são colocados novamente em pauta na assembleia e discutidos um a um, modificando-os de acordo com os debates. Todo este processo deve ser muito bem comunicado para fora da assembleia e procurar permanentemente envolver novos atores e grupos, inclusive em workshops espalhados pelo perímetro do bairro. Chegaremos a um documento que nada mais é do que um plano de constelação de experiências. Podemos inclusive sugerir que seja realizado um mapeamento das propostas contidas nos artigos, mesmo ressaltando que eles não dizem respeito apenas a intervenções, mas podem ser também linhas de ação, propostas de novas instituições e empreendimentos sociais, ações práticas, etc. Temos, assim, por um lado as experiências do viver – o bairro que temos – e as vontades de experiências de vida – o bairro que queremos. A consciência da distensão é inerente à oposição entre estas duas situações. O que precisamos agora é delinear quais são as potencialidades do bairro para reagir a esta distensão. Aqui, procuraremos encontrar os canais e agentes que articulados viabilizam a execução das experiências de integração. Finalmente, debatemos e refletimos sobre quais são os elementos da situação do bairro que manteremos acompanhamento e avaliação, como definimos no III Movimento com os pilares. É fundamental que tenhamos bem definidas as formas de verificação. Sugerimos que sejam colocadas em pauta aquelas que discutimos no Movimento de Contato e que seja abordada a dimensão da verificação do envolvimento através das quatro características da experiência: meio, ação, cultura e visão. A verificação e as avaliações de transformação do bairro permitirão que o PPP seja um docu216


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mento em constante revisão, o que também deve ser colocado em pauta. Não podemos achar que sua redação é definitiva e estática. Precisamos saber que as avaliações constantes devem ter impacto sobre suas diretrizes. • Estrutura Não há qualquer estrutura que seja maior do que aquela que a comunidade definir com a adequada. Aqui, vamos sugerir algumas seções de síntese, baseadas no desenvolvimento realizado anteriormente: 1. Identificação e justificativa. Explica brevemente as motivações e os antecedentes que levaram a comunidade a realizar o projeto. 2. Marco referencial. Explica os fundamentos teóricos e os valores que norteadores. 3. Objetivos gerais. Explicita os objetivos do PPP e sua finalidade. 4. Diagnóstico participativo: o bairro que temos. Introduz a aproximação profunda das características, identidade e situação do bairro, inclusive delimitando os contornos de sua comunidade, seu perímetro e seus vizinhos. 5. Constelação de experiências: o bairro que queremos. Sumarizado na série de artigos que dizem respeito às ações, atividades e intervenções que se quer desenvolver. 6. Articulação e viabilização: autogestão. Quais os recursos necessários; quais os atores que podem ser envolvidos; quais as necessidades de contatos externos, como com o Estado e como serão viabilizadas. Como viabilizar a constelação articulando atores. 7. Estratégia. Qual metodologia integrará todas as etapas de planejamento à execução das experiências? Quais são prioritárias, de acordo com os objetivos? Sugerimos que se siga uma estrutura semelhante à do VII. 8. Avaliação e verificação. Quais elementos de situação serão avaliados; quais os indicadores; quais as verificações e suas formas de serem realizadas; quem são os responsáveis por realizar relatórios. 9. Comunicação. Quais as formas de manter todo o processo transparente e comunicado,

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VII Estratégia

buscando permanentemente agregar mais grupos e pessoas da comunidade. 10. Metas e cronograma. Quais as metas dentro da estratégia; quantas e quais experiências pretendemos desenvolver em quais períodos de tempo; quem são os responsáveis por cada etapa e cada parte do trabalho; qual a meta para cada um deles; qual o relacionamento com avaliação e verificação. 11. Anexos. Mapas; livretos de experiências planejadas; imagens e relatórios de dinâmicas de desenvolvimento do PPP; verificações de envolvimento no desenvolvimento; e todo tipo de dado de apoio para a execução do projeto. • Acompanhamento Quanto o projeto político-pedagógico estiver concluído, o mediador estará a um passo de poder considerar sua estratégia finalizada. A última ação que pode ser importante é começar a transformar o PPP em realidade. O mediador deve ajudar a comunidade a “quebrar o gelo” e colocar o projeto em prática. Este acompanhamento, mesmo que simples, pode ser de toda diferença. Se o processo de definição do PPP tomar muito tempo e energia, corre-se o risco de se esvaziar sua execução posterior. É muito importante que a deliberação em torno no projeto não signifique interromper a execução de outras experiências e da ação de grupos temáticos e fóruns. Tudo deve ocorrer simultaneamente e ser revigorado com o suporte do projeto. Cabe ao mediador ajudar a comunidade nesta derradeira articulação.

23. ENSAIO Finalmente, a estratégia pode ser considerada finalizada. Como última ação, propomos que mediadores sumarizem seu percurso, desde o início do I Movimento até aqui em uma grande narrativa que agregue as cinco narrativas realizadas ao longo da estratégia. A função deste ensaio é tanto ser uma autorreflexão sobre a estratégia que foi desenvolvida, quanto de apoio para futuros mediadores e reformulação do VII. Sua síntese é de grande valia para todos que partilham da vontade de reagir a distensão entre o viver e a vida. Sua estrutura é aberta, pode-

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VI Movimento

-se relatar as experiências da forma como se achar mais adequado. Finalizamos com uma sugestão geral de estrutura: 1. Introdução: I Movimento. • Quais foram minhas motivações • Grupo formado de mediadores 2. Aproximação e contato: II e III Movimentos • Leitura sensível do mediador. As primeiras impressões; a deriva; visão seriada; comentários localizados; objetivo é apresentar como se sente o bairro numa primeira abordagem. Interessante apresentar um mapa grande com esta sensibilização. • Leitura técnica do mediador. As informações que podemos ler friamente, de fora, aquelas que numa abordagem distanciada dizem o que é o bairro. • Mapas. Zoneamento e uso do solo; equipamentos e espaços públicos; sistema viário e recursos hídricos; outros que considerar importantes para o caso. • Contato com pilares. Como os encontramos. Como foi o contato. Como foi a discussão. • Avaliação do bairro: sintético e descritivo. Experiências pré-existentes. Situações a avaliar. Indicadores desenvolvidos 3. Narrativa de difusão: IV Movimento. • Canais de comunicação: quais eram, quais foram as discussões, como foram ampliados ou desenvolvidos. • Estabelecimento de bases por rede • Grupos temáticos desenvolvidos • Narrativa de experiências pontuais mais interessantes e descrição de suas quatro características 4. Narrativa de integração: V Movimento. • Narrativa das experiências integradas mais interessantes e descrição de suas quatro características

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VII Estratégia

• Estruturação dos fóruns e da assembéia • Articulação com outros bairros 5. Mapa síntese de experiências • Pré-existentes: III Movimento. • Pontuais: IV Movimento • Integradas: V Movimento 6. Projeto Político-Pedagógico • Processos de debate e discussão • PPP desenvolvido • Mapa síntese do plano de constelação de experiências 7. Resenha crítica • Discutindo sua avaliação pessoal da estratégia que foi traçada e do percurso que foi percorrido. 8. Contato dos mediadores (podem ser monitores para novos trabalhos)

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VII De cidades para pessoas a cidades educadoras

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Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho final de graduação São Paulo | 2014

Luis Fernando Villaça Meyer Orientação: Prof. Dr. Fábio Mariz Gonçalves


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