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E
m 2015, o Rio de janeiro fez 450 anos e passa por um momento de grandes transformações, sobretudo, pelos grandes eventos aqui sediados. Na medida em que a cidade se torna pauta dos principais jornais do mundo, fica evidente o reducionismo presente nas coberturas quando a mesma é tema. O Rio surge sempre como a cidade maravilhosa reduzida à orla da Zona Sul ou aos problemas de segurança pública, transporte e educação. É preciso um CONTRAPONTO. O Rio de Janeiro é mais. O carioca tem algo de singular, uma alegria que encanta os que por aqui passam. Entenda por carioca, não somente quem nasceu aqui, mas todos aqueles que escolheram esta cidade para chamarem de terra natal. As pessoas são a maior riqueza do Rio. Suas histórias nos levam a conhecer uma cidade bem diferente da que estamos habituados. Mergulhamos e nos surpreendemos em cada matéria realizada. Encontramos diversas verdades em um único assunto. Descobrimos que as pessoas comuns que transitam pelas ruas guardam as melhores histórias. Conhecemos um Rio de Janeiro que, verdadeiramente, merece ser denominado maravilhoso. No Terminal do BRT na Alvorada ou na Rodoviária Novo Rio. Pelos trilhos de Santa Teresa ou pela orla de Copacabana. Vivendo na rua ou morando na favela de Acari. Dá tragédia de Realengo ao cotidiano das prostitutas. Aprendendo a lutar ou tocando na Feira de São Cristovão. Convidamos você a caminhar por estes bairros e conhecer um pouco mais o Rio de Janeiro. E esperamos que as histórias que contamos aqui possam modificar de algum modo a sua relação com a cidade. A CONTRAPONTO é produzida por quatro estudantes de Jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. É uma publicação guiada pelo olhar de quem nasceu na cidade e pelo encanto de quem se tornou carioca por opção. Convidamos você a vir junto com a gente. Equipe CONTRAPONTO
CARTA AO LEITOR
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Expediente Planejamento editorial e gráfico: Ágatha Santos, Jaqueline Suarez, Larissa Bozi e Luis Henrick Teixeira Reportagem: Ágatha Santos, Jaqueline Suarez, Larissa Bozi e Luis Henrick Teixeira Projeto gráfico: Jaqueline Suarez e Luis henrick Teixeira
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Memória: cinco anos da chacina na Escola Tasso da Silveira, em Realengo.
Diagramação: Jaqueline Suarez e Luis Henrick Teixeira Edição e arte: Larissa Bozi Revisão: Ágatha Santos Foto de Capa: Jaqueline Suarez Colaboradores nesta edição: Ana Lúcia Vaz, Bárbara de Carvalho, Luana Serpa, Natália Loyola e Tarcila Vianna Agradecimentos: Professora Ivana Barreto (UFRRJ), Instituto Mães SemNome, Ong Anjos de Realengo, Pastoral de Rua da Igreja Nossa Senhora da Conceição e Equipe Tubarão Jiu Jitso e Judô.
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Retratos de rua: Fica na rua quem não tem opção, só sai dela quem encontra uma. Em Santa Cruz.
Contato: contrapontoufrrj@gmail.com facebook.com/revistacontrapontoufrrj
Também nesta edição 18 Sem Filtro 50 Ritmos 58 Vencedores 62 Crónica 4 | CONTRAPONTO
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Capa: tráfico x polícia, uma guerra sob o olhar das famías vítmas da violência, em Acari.
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Entrevista: Tháis Cavalcante, repórter do Jornal comunitário da Maré.
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Cariocas: Idas e vindas na Rodoviária Novo Rio
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Galeria: Os trabalhadores da orla de Copacabana
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Legaliza: A profissão de ambulante no terminal do BRT, na Alvorada.
Sumário CONTRAPONTO | 5
CUIDAR DO QUE
É DE TODOS
VALE MAIS POR JAQUELINE SUAREZ
FOTOS: DIVULGAÇÃO
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Entrevista
Sensibilizar o carioca para que ele se aproprie da cidade através de pequenas atitudes que estão ao seu alcance
“
A
s cidades não são apenas prédios e carros, são, sobretudo, pessoas. E, se a parte mais importante das cidades são as pessoas, é preciso transformar esse amontoado de concreto em um lugar mais humano. O objetivo não é só colorir os espaços, mas, sim, resgatar estes lugares e ocupá-los, conscientizar as pessoas que a cidade é aquilo que se faz dela. Há cinco anos sonhou-se uma cidade mais maravilhosa, um Rio mais limpo, acessível e educado. Nascia o movimento Rio Eu Amo Eu Cuido. O desafio é transmitir uma ideia de cuidado e amor individual com um bem coletivo: a nossa cidade. O movimento acredita na força do coletivo para a construção de um Rio mais criativo, colaborativo e gentil. O carioca Guilherme Wenzel, designer do projeto, conversou com a CONTRAPONTO sobre as histórias que marcaram os cinco anos de Rio Eu Amo Eu Cuido, além das expectativas e dos sonhos da equipe para o futuro. Contraponto: Como surgiu a ideia do Rio Eu Amo Eu Cuido e qual o seu objetivo? Guilherme: Em 2010, em vista dos grandes eventos que estavam para acontecer na cidade, como Copa do Mundo, Jornada Mundial da Juventude e Olimpíadas, um grupo de amigos resolveu se juntar e criar um movimento que pudesse deixar um legado para a cidade além do estrutural, mas um legado comportamental, visto que muitos dos problemas do Rio vinham do jeito como o carioca percebe e trata a cidade. Dessa maneira, eles criaram o Rio Eu Amo Eu Cuido, um movimento voluntários, apartidário, da sociedade civil, buscando falar dos pequenos gestos e atitudes corretas que todos deveriam fazer, mas acabam escolhendo ignorálos no dia-a-dia. São eles: jogar o lixo no lixo (até mesmo a guimba de cigarro e papel de bala que são pequenos, mas também sujam a cidade); não fechar cruzamentos; atravessar na faixa de pedestres; preservar espaços públicos (praças e canteiros públicos, muros, monumentos etc); dentre outros. O movimento elegeu três áreas de atuação para serem abordadas: preservação do espaço público, comportamento no trânsito e limpeza urbana, realizando ações e campanhas nessas três frentes.
“Jogo dos pequenos gestos” realizado na Prala manet, em Del Castillo
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Contraponto: Como as ações são planejadas e quais os critérios para definir as áreas que irão receber as campanhas? Guilherme: As ações são planejadas aqui mesmo, no escritório. Ao termos uma ideia, vamos em busca de parceiros e formas de viabilizar financeiramente as ações e depois dar continuidade e correr atrás de todas as etapas do processo. Os lugares não moradores da comunidade. Fizemos uma grande seguem um critério rígido de seleção. Podem imersão na comunidade, conhecendo os moradores, depender do parceiro da ação, que exige que seja ouvindo suas histórias e o que eles acreditavam que feita em algum lugar específico, ou por sugestão de poderia ser feito e como. Um trabalho “a 4 mãos” pessoas que conhecem o movimento e nos enviam que durou mais ou menos 6 meses até a entrega ideias; ou de algum lugar que julgamos que possa final que foi a inauguração da Galeria. Mesmo ser interessante. De todas as formas, sempre vamos depois da inauguração, continuamos indo visitar a visitar o espaço antes para ver se ele se encaixa nos comunidade para ver como as coisas estavam e critérios para receber a ação. se tinham realmente impactado o comportamento Contraponto: Houve alguma ação que tenha emocionado você e/ou que seja marcante para a história do projeto? Guilherme: Para mim, e o que o resto da equipe também relata, o projeto mais marcante e impactante foi o Galeria Urbana. Esse projeto começou em 2014 e teve a sua entrega em janeiro de 2015. Consistiu em criar uma galeria de arte urbana a céu aberto no muro das casas de uma comunidade, o Cerro Corá. A partir da premissa de que a ambiência impacta positivamente o comportamento do cidadão, fizemos esse projeto, pois nessa comunidade as pessoas tinham o costume de jogar muito lixo na rua e na encosta, tudo estava quebrado e mal cuidado, e muito disso vinha do próprio comportamento dos
Ocupação lúdica na Praça Lopes trovão, em Benfica
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dos moradores, que era o principal objetivo. Ficamos muito felizes de ver, mesmo 9 meses depois, que as coisas melhoraram muito: tem muito menos lixo na rua, nenhum muro foi pichado ou danificado, como costumava acontecer, e até a autoestima dos moradores melhorou, segundo eles mesmos, ao relatarem que “tem muito mais orgulho de morar ali”. Contraponto: Após cinco anos do projeto, quais são as mudanças efetivas que vocês percebem na cidade e, principalmente, no carioca? Guilherme: Percebemos que as pessoas têm uma consciência um pouco maior em alguns comportamentos, mas ainda não conseguimos impactar todos os cariocas.
Inauguração da Galeria Urbana no Cerro Corá, em Cosme Velho
Contraponto: Quais são os desafios de mobilizar e conscientizar uma cidade com mais de seis milhões de pessoas? Guilherme: O Rio possui GRANDES desafios, mas acredito que os principais sejam: o comportamento errado do carioca, mais do que um vício, ele já faz parte da cultura (jeito malandro) dele, o que torna ainda mais difícil que as pessoas realmente ajam corretamente. Na maioria das vezes, as pessoas impactadas pela mensagem do Rio Eu Amo Eu Cuido concordam e simpatizam com o que dizemos, mas na hora de ter a atitude correta, deixam a mensagem de lado. Outro problema grande é que o Rio é uma metrópole muito grande, dispersa e extremamente heterogênea, então complica passar a mensagem, pois é difícil ter uma linguagem que atinja todas as pessoas (homens e mulheres de todas as faixas etárias, de diferentes meios e classes sociais de diferentes regiões). A pessoa que mora em Bangú é impactada de forma diferente que a pessoa de Botafogo, assim como as realidades e necessidades de cada bairro também são diferentes. Contraponto: Como os voluntários atuam no projeto? Como as pessoas podem participar? Guilherme: Qualquer pessoa pode participar das ações. Sempre que vamos realizar ações que têm a participação de voluntários, fazemos convocações e divulgações nas nossas redes sociais e, quando dá, em espaços da mídia tradicional que eventualmente
são cedidos para nós de forma pró bono. Contraponto: Em setembro foi lançado um livro reunindo as histórias ao longo dos cinco anos do Rio Eu Amo Eu Cuido. Quais são as expectativas com a produção desse livro? Guilherme: Buscamos uma forma de documentar a trajetória do movimento em um livro que esperamos que as pessoas possam ler e entender mais a fundo o que é o Rio Eu Amo Eu Cuido, como ele atua e quem faz e já fez parte do movimento, na esperança de sensibilizar e engajar ainda mais pessoas nessa causa. Contraponto: Há expectativa e planejamento para ações específicas visando os Jogos Olímpicos do próximo ano? Guilherme: Certamente, haverá alguma campanha voltada para as Olimpíadas, mas ainda não a desenvolvemos. Contraponto: Qual é a missão, o sonho do Rio Eu Amo Eu Cuido para a cidade? Guilherme: Sensibilizar o carioca para que ele se aproprie da cidade através de pequenas atitudes que estão ao seu alcance.
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Crônica
RIO: UM AMOR À PRIMEIRA VISTA TEXTO DE BÁRBARA DE CARVALHO, Estudante de Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz - BA
N
ão sou do Rio. Meu olhar é de turista. Olho como quem vê pela primeira vez, ou pela última, nunca se sabe. Olho como quem vai sentir saudade. Olho como quem conta os dias para voltar a essa maravilhosa cidade. Caminho como quem se veste da paisagem, sinto o vento, vejo os prédios, admiro a praia. O céu tão limpo e azul, os coqueiros tão altos denunciam a sorte de uma vida calma. Numa das caminhadas em Copacabana, eu vi uma garota, os cabelos como raio de sol. Carioca, com certeza, carioca! Fui tomado por aquele momento. Os sentimentos se estrangulavam à medida que eu a analisava de longe. Meus passos lentos e incertos me levavam para mais perto dela. A vida não passa de uma oportunidade de encontro. Passamos a metade da vida à espera daqueles que amamos e a outra metade a deixar os que amamos, o meu avô costumava dizer. Mas foi Victor Hugo quem escreveu isso, eu acho. Sim, foi o Victor Hugo! Logo quando a vi, acreditei que estava me preparando para a minha mais longa despedida. Dela e do Rio, claro. Mas enxergava os dois como um só. Todas as luzes da cidade, todo o encanto e a praia, era como se habitassem nela também. Com um jeito carioca de ser, uma completude dentro de si, um aceno, um jeito de andar... E quando me aproximei, sentei por perto e começamos a conversar sobre constelações e planetas, e eu encontrei uma outra constelação no seu olhar. E ao vê-la sorrir, quase me desfaço em pedaços. Quando ela ri, tenho vontade de chorar, pela indecência da tamanha beleza que compõe o seu sorriso junto com a constelação do seu olhar. Nunca imaginei que num lugar só encontraria uma vida inteira de ritmos, de trejeitos, de mares bons, de pessoas completas e de cardápio deliciosamente cheio de variedades. Um ritmo que não deixa ninguém, turista ou não, parado. Contudo, quando olho para o outro lado, enxergo a solidão acompanhada por aquele que tem como o telhado o céu e como a lâmpada, estrelas. Os esquecidos que não encontram uma mão para
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segurar, e como poderia, em uma cidade tão linda, alguém padecer pela falta? É difícil acreditar que a falta de amor ainda se perpetue nos dias de hoje, quando temos tanto para oferecer. Nem toda oferta é material. Mas no rio, ainda falta um sorriso para dar a um estranho, uma mão para ajudar a levantar e uma casa para muita gente morar. O que eles hoje têm, que alguns nunca tiveram, é um lar, porque lar nunca foi um lugar. Muita gente tem casa de praia, carro e conta para pagar, mas nunca teve um lar. E os esquecidos nem sempre são desgarrados, eles têm a imensidão como pai. Sempre falei de imensidão com tanta naturalidade. Posso até negar, mas a idéia de imensidão me assusta. Tenho medo da imensidão. Vejo pássaros tão pequenos mergulhando na imensidão do céu, vejo tanta gente se afogando nesse imenso mar, todos azuis, como a cor dos olhos da carioca mais bela. O Rio me fez lembrar de uma queda d’água que não para de jorrar. Tão profundo, tão infinito e tão bonito. Um lugar do qual tudo o que se pretende é ficar. Amar é como receber um choque térmico ao dar tchau. É voltar ao mesmo lugar, mesmo estando longe, ao perceber algo que te faça lembrar o que não se faz esforço para esquecer. Olhei para o outro lado da rua. Um muro. Nele tinha o mapa-mundi e logo abaixo estava escrito: “Onde você está?”. Enquanto o vento frio passava por entre meus cabelos os fazendo tocar delicadamente o meu rosto, eu pensei se existe um lugar que estamos destinados a estar. E só consegue a dádiva de viver quem está disposto a mergulhar. Acho que amor se resume a isso. Se permitir. Mergulhar. Quem navega com medo de afundar não pode conhecer o rio, que deságua no mar. Todas as vezes que eu fecho os olhos, lembro das luzes da cidade, lembro das calçadas compridas, dos prédios de dezesseis andares e dos donos passeando com os seus cachorros na orla. Pretendo voltar ao Rio, e encontrá-la da mesma forma, vestida de sol, e se não der certo, a gente marca e finge que foi culpa do destino. E se entardecer, me espera. Nunca te vi raiar.
DIVULGAÇÃO
Cariocas
A cara do Rio Entre partidas e chegadas, mais de 30 mil cariocas passam diariamente pela Rodoviária Novo Rio POR LUIS HENRICK TEIXEIRA
S
er Carioca não é apenas nascer no Rio de Janeiro. Muitos adotam a cidade maravilhosa como sua terra natal, após viverem experiências únicas na capital. Um dos lugares de grande circulação de pessoas é o Terminal Rodoviário Novo Rio. Todas as partes do Brasil e do mundo se encontram no espaço por onde circulam mais de 30 mil pessoas diariamente, segundo a concessionária administradora. Entre as malas e pacotes, muitas histórias. O espaço é democrático: homens e mulheres, ricos e pobres, famosos e anônimos. As bagagens de recordações de vida dos cariocas se misturam com a história da cidade e constroem, simultaneamente, a cara do Rio de Janeiro e de seus habitantes.
História A rodoviária foi criada em 1965 junto a reformas no transporte pelo governador Carlos Lacerda. Sua intenção era traçar uma cidade do futuro, um “Novo Rio”, e assim surgiu o nome. Na década de 70, houve a fusão dos estados da Guanabara e Rio. Nesse crescimento urbano surge a Companhia de Desenvolvimento Rodoviário e Terminais do Estado do Rio de Janeiro - CODESTE, que passou a administrar o terminal. A partir de 1990, o governo do Estado concedeu à administração do que é hoje o segundo maior terminal da América do Sul, em movimentação de passageiros, à iniciativa privada. Desde então, o ambiente passou por duas grandes reformas que o tornaram moderno e acessível: portas automáticas, escadas rolantes, elevadores, salões de espera, praça de alimentação, comunicação trilingue, entre outras melhorias. Hoje, embarcam e desembarcam em média cerca de 40 mil passageiros em dias de feriado,chegando a circular 80 mil pessoas por dia. Possui capacidade para 234 embarques/desembarques por hora, em 78 plataformas. Além de, 229 linhas com destinos intermunicipais, interestaduais e internacionais. Atualmente, o terminal possui 1.500 profissionais envolvidos em diferentes setores.
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FOTOS: LARISSA BOZI
m Rio de Janeiro de muitas oportunidades veio à tona na vida da mineira Onézia Migliori. Há 47 anos na cidade maravilhosa, veio aos 18 tentar uma vida melhor com a irmã na cidade. Foram anos de trabalho em casa de famílias e depois como merendeira, mas isso não deixou de atrapalhar seus estudos. Hoje é aposentada no serviço público e geógrafa, profissão que nunca exerceu. O tempo passou e Dona Onésia construiu sua vida na cidade, uma vida de condições melhores depois do estudo. Casou-se, teve filhos e se divorciou. Moradora de Jacarepaguá, avalia que gosta mais é de pensar na relação do Rio e sua família. — O que me marca nessa cidade é que eu não sou carioca, mas meus dois filhos são e os meus dois netos também. Sou uma carioca de coração. Hoje, ela não acredita mais ser uma boa opção sair do interior para tentar uma vida na capital. Mesmo gostando muito da cidade maravilhosa, destaca que os principais problemas de morar aqui são a falta de saúde, educação, a violência e o trânsito. Antes de viajar para seu destino rumo a São Paulo e posteriormente Poços de Caldas-MG com a irmã, agradece tudo o que conquistou durante esses anos. — Hoje, graças a Deus, tenho uma vida legal, posso até pagar um plano de saúde, o que você acha? Não está bom demais? – brinca ela.
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Sou uma
carioca de coração
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U
Dona Onézia, 65
mas até hoje nada aconteceu comigo. Acredito que apenas precisamos aprender a prestar atenção. Gosto muito dos Cariocas, acho todos bem festeiros, por aqui sempre tem festa.
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Acho os cariocas
festeiros,
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M
udanças não são novidade para Andressa, futura oficial de náutica na Marinha do Brasil. Morando há 10 meses no Rio de Janeiro em virtude dos estudos na Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante – EFOMM, a estudante conta que, pela carreira do pai, policial, morou muito tempo em outros estados. Entre os destinos, o mais longe foi Marabá, no estado do Pará. — Sou daqui do Rio Janeiro, mas como meu pai é militar nós ficamos mudando. Agora, eles moram em Juiz de Fora, Minas Gerais, há quatro anos. Mas também tenho família em Rezende e hoje estou indo visitá-los. Porém, Andressa não pode ver a família sempre. O curso exige dedicação exclusiva em um internato, o horário livre começa no fim da tarde de sexta-feira e, na segunda, precisa retornar às aulas. Mesmo distante, a saudade é amenizada com os seus 119 colegas de turma, dos quais boa parte passam pela mesma dificuldade de morar longe de casa. Toda essa experiência irá ajudar no final da formação da estudante que precisará ficar embarcada, em alto mar, a cada três meses, sem poder ver a família. Sobre a cidade que abriu a oportunidade para seus estudos, acredita ter um povo festeiro e que andar pelas ruas exige precaução: — A cidade é muito boa, todos falam da violência,
receptivos e
amigos
Andressa Brito da Luz, 21
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melhorar, o humorista observa uma senhora que pede dinheiro na Rodoviária: — Falta emprego, o pessoal não tem 20 reais para ir embora da cidade. Falta segurança também. Passei a maior parte da minha vida e sei que aqui tem muito assalto, acho que talvez a segurança seja o principal. Muitos têm medo de vir aqui, eu sei que o Rio não é tão violento como os outros falam. A questão é saber aonde ir e como ir.
“
Sei que o Rio não é tão
violento como falam
“
S
e o legítimo carioca tem algo de sobra, com certeza é a alegria. Essa característica não falta para o comediante Leonardo Lins. Nascido no bairro da Tijuca, morou a maior parte da vida no Grajaú e Vargem Grande. Hoje morando em São Paulo, fica sempre na ponte aérea entre as duas mais populosas capitais do país. Sua carreira começou em Curitiba, no Paraná. Lá, cursou Educação Física, começou a contar piadas e escrever seu show de comédia. Léo (como hoje é mais conhecido) começou a investir na carreira e resolveu voltar para Rio, onde seu trabalho seria mais visível. Iniciou fazendo shows para o grupo Comédia em Pé e desde então sua carreira deslanchou. Após alguns testes para participar de um elenco de um programa de televisão foi aprovado. Há quatro anos, mora em São Paulo e trabalha no programa The Noite, no SBT. Sempre que tem uma folga na agenda de shows, vem para o Rio visitar a família. Com a aproximação do feriado prolongado, aproveitou para ir a um casamento de amigos na cidade de Búzios, litoral fluminense: — Sempre que posso venho para o Rio. Ultimamente está bem corrido, tenho vindo menos do que eu gostaria. Gosto muito do Rio. A cidade tem um astral diferente. Acho São Paulo um imenso escritório, prédios cinza de trabalho. O Rio não, o clima aqui é legal, é para se divertir. Ao ser perguntado sobre o que o Rio precisa
Leonardo Lins, 33
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Quero um
futuro
com mais
segurança
“
O
que mais preocupa o futuro de Sabrina Moraes é como será o futuro do pequeno João Pedro Moraes de Avelar. O carioquinha de 2,5 anos estava viajando com a mãe para a casa da avó em São Paulo. Sabrina conta que sempre fica nessa ponte Rio-São Paulo para visitar a família. Quando tem oportunidade, pega um ônibus ou avião para vê-los. Toda sua família vive em São Paulo, mas a estilista mora com o marido e o filho na Cidade Maravilhosa. Nascida no Rio, sua família mudou-se para São Paulo e há 10 anos ela mora na capital fluminense, devido à profissão, e a outra parte da família que vive aqui. Moradora de Ipanema, um dos locais que mais gosta na cidade é o Jardim Botânico. João Pedro concorda sorridente, balançando a cabeça, à pergunta da mãe. Para o futuro do filho, ela espera uma cidade mais segura e a positividade é o que vê de mais especial no carioca. — Acho que o carioca tem muita energia. Eles são pra cima. As pessoas são bem positivas. Acho bem diferente o carioca do paulista, acho o paulista mais pacato. O carioca é agitado, mais energético. Talvez, pela natureza, pelo dia-a-dia.
para o meu filho
Sabrina Moraes, 30 e João Pedro CONTRAPONTO | 15
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— O Rio tem muita coisa para se conhecer: música, arte, literatura. Conhecemos o Funk em um baile na Rocinha, curti muito. Muitos estrangeiros frequentam aquele lugar. Me surpreendeu o tamanho do Maracanã. Pessoalmente, achei muito pequeno. O Cristo Redentor também, por foto parece ser muito maior. Acho que as imagens que vemos na internet são muito editadas, cheias de “PhotoShop”. Não deixa de ser bonito, mas do Maracanã criei uma falsa expectativa.
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Me surpreendeu o tamanho do Maracanã. Pessoalmente eu achei muito pequeno
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argentino Matin Ladu adora se aventurar em lugares novos. Há três meses com os amigos Candela Elordi e Fabricio Vitllo, também hermanos, em Búzios - litoral fluminense - esperava com eles um ônibus com destino a Belém, no Pará, de onde depois partiriam para o Amazonas. Martin conta que na Cidade Maravilhosa existe tudo o que se precisa para viver. Um lugar com muita cultura, movimento a noite, com “a cara do Brasil”. Morar em cidades turísticas considera um privilégio. Durante a própria viagem arruma sua forma de sustento. Procura um lugar, aluga uma casa e busca um trabalho. Depois de três, dois meses, viaja para outro lugar. Com uma grande bagagem de aventuras, carrega experiências de países da América. Agora, quer continuar mais um tempo no Brasil, buscando encontrar uma fruta tipicamente brasileira. — Viajamos por muitos países, conhecemos mais a América. Mas o Brasil foi o país onde eu mais fiquei. Agora, vou com meus amigos para o Amazonas, experimentar o Açaí. Depois, vamos viajar para o Peru e Equador. Dos lugares que mais gostou de conhecer, Martin diz não ter dúvidas: foi a Floresta da Tijuca, pela aproximação e contato com a natureza. A parte turística, como Copacabana e Ipanema, também chamou sua atenção, porém, pela poluição que percebeu nas praias. Para ele, os cariocas são pessoas felizes e que ajudam muito uns aos outros. Os pontos turísticos da cidade chamaram sua atenção, contudo de uma forma bem diferente.
Martín Ladu, 33
N
ão são apenas despedidas que acontecem na Novo Rio. O Terminal também é local de reencontros. Há 51 anos no Rio de Janeiro, Luiz Carlos Costa tem muito para contar sobre o desenvolvimento da Cidade Maravilhosa. Com uma ótima memória, lembra até hoje a data em que decolou de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, sua terra natal, em direção ao aeroporto do Galeão, em 15 de julho de 1960. A mudança da família ocorreu em decorrência das dificuldades após a morte do pai. O irmão mais velho de Seu Luiz, que era Cabo da Marinha, resolveu que o melhor seria trazer os irmãos mais novos e a mãe para morar com ele no Rio de Janeiro, onde poderiam ter uma vida com mais estabilidade. Desde a morte do pai, o então menino Luiz precisava ajudar na renda de casa. Trabalhou em uma fábrica de sapatos aos 8 anos e depois como carroceiro. Lembra com detalhes toda a viagem rumo a terras cariocas. O mais difícil de se adaptar foi ao clima. Sair de Porto Alegre, a uma temperatura de zero graus, para o calor do Rio de Janeiro, com mais de 30, foi uma experiência difícil, mas hoje já está adaptado. Com o passar dos anos, viu o desenvolvimento da cidade, sobretudo dos bairros de Vila da Penha e Largo do Bicão, onde teve a oportunidade de morar: — Hoje, é tudo asfaltado, prédios de dois, três andares. Sou um camarada privilegiado porque vi a conclusão do Aterro do Flamengo e a construção
da ponte Rio-Niterói. O alargamento da Presidente Dutra, da Washington Luiz, o duplicamento da Avenida Brasil, que era asfaltada até Deodoro, e a construção do metrô. Com 53 anos, Seu Luiz voltou à escola para cursar o Ensino Médio. Hoje aposentado, cursa pré-vestibular para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e deseja cursar Fisioterapia. Lembra que sempre foi estudioso e dedicado e passou esse exemplo aos 4 filhos e 4 netos, todos cariocas. A cidade que é desde pequeno seu lar, considera um lugar especial: — O Rio de Janeiro para mim é a minha casa. Um quintal vasto que precisa de muitos cuidados. Mas eu me sinto bem aqui. É um lugar único. Divorciado, aproveita a vida para reencontrar amigos. Depois de 37 anos, pôde reencontrar uma amiga na Rodoviária. Com certeza, depois de todo esse tempo, eles têm muitas histórias para colocar em dia.
Luiz Carlos Costa, 61
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POR ÁGATHA SANTOS
ELAS TRABALHAM
FOTOS: ÀGATHA SANTOS
Estigmas, preconceitos e leis sobre a prostituição
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Sem filtro Abandonou sua vida de classe média e a faculdade de sociologia para seguir a vida da prostituição. Lugar no qual encontrou liberdade para ser uma mulher independente, longe do machismo e moralismo que a impedia de viver a vida que desejava. São Paulo, Belo Horizonte e por fim Rio de Janeiro foram lugares onde exerceu sua profissão de prostituta e praticou sua militância. Liderou a primeira manifestação da categoria, em 1979, contra a repressão policial ao comércio do sexo; organizou o primeiro encontro nacional de Prostitutas dentre diversas ações como a prevenção da AIDS, ações culturais, teatrais fazendo a integração no campo social combatendo a discriminação e fortificando a autoestima das prostitutas.
A
prostituição é uma atividade condenada por décadas, pelo fato de ter sido marginalizada, definida como doença pela medicina e excluindo do corpo social todos os envolvidos na prática. Ela é proibida em alguns países, em outros, tolerada ou regulamentada. Reivindicá-la como uma profissão é eliminar a alternativa de vitimização pelos praticantes, assumindo a responsabilidade da escolha. Fazendo com que se sintam e mostrem confiança, respeito e estima por um sociedade coberta de preconceitos. Assumi-la implica em possuir condutas, posturas, procedimentos, direitos e deveres e, com isso, diversas associações de prostitutas veem lutando pela regularização da profissão. No Brasil, a formação de associações e principalmente campanhas de combate às doenças venéreas e AIDS tornaram o Ministério da Saúde grande aliado à causa, além do apoio Ministério do Trabalho e Emprego. Mas as reivindicações das prostitutas brasileiras não se limitaram apenas às políticas e ao Ministério da Saúde. Surgiram novas iniciativas culturais, e também no campo da moda, que puderam afirmar e reconhecer seus papéis não mais de vítimas, mas sim de escolha, afirmando suas identidades sociais, contribuindo para uma nova visão da prostituição e, assim, surgindo um empoderamento da classe em busca de reconhecimento social e político. Gabriela Leite, nascida em 1951, em São Paulo, prostituta até o final de sua vida, tornou-se a principal ativista dos direitos das prostitutas no Brasil.
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Davida Na década de 1990, fundou o coletivo Davida, que tinha como objetivo defender os direitos das prostituta, reconhecer como profissão, diminuir os riscos a que estão expostas e possibilitar o desenvolvimento de cidadania dessas mulheres. A grife Daspu, projeto realizado pela Ong Davida, em 2005, tinha o objetivo de gerar recursos para serem revertidos em projetos sócio-culturais da instituição, além de dar visibilidade à questão. Inicialmente, foram realizados desfiles de moda com prostitutas e manequins de renome na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro. Passando a apresentações por todo o Brasil e Exterior, ganhando a visibilidade das mídias e, assim, gerando o lucro necessário para a Ong. As leis brasileiras e luta das associações De acordo com a lei penal vigente, é considerado crime no art. 2299 do Código Penal: ”por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa” Isso significa que o ato de se prostituir não é crime, mas os envolvidos com a prostituição,
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como um administrador de casas de prostituições, cafetões e até seguranças do local, estão condenados ao crime. Em contrapartida, tornar ilegal essas casas de prostituição faz com que os profissionais do sexo fiquem expostos e vulneráveis à exploração e tráfico humano, além dos exploradores da atividade. O projeto de lei 4.211/2012, do deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), coloca em vigor os direitos trabalhistas e assegura a exercício da a profissão em um local seguro e legal, onde os donos dos estabelecimentos paguem impostos e sejam submetidos à fiscalização do Estado. A localização da prostituição no Rio Na região central do Rio de Janeiro, conhecida como, “Cidade Nova”, durante quase todo o século XX foi área da pratica do meretrício. Outra área foi a zona do Mangue, localizada entre a Central do Brasil e Leopoldina. Porém, devido aos processos de expansão urbana, como a construção da Av. Presidente Vargas e do metrô, além do Centro Administrativo São Sebastião (CASS), sede da Prefeitura do Rio de Janeiro, vários bordéis foram fechados, reduzindo os domínios do território, limitando ao pequeno trecho entre a Cidade Nova e o bairro do Estácio, mais conhecido como Vila Mimosa, a prática da prostituição.
A cidade era dividida em zonas, a central, de transição e as zonas residenciais. Na área central, onde eram localizados os comércios, situada na praça Tiradentes, Campo de Santana e Praça Mauá, encontravam-se prostitutas de rua, em que faziam programas, frequentavam bares, clubes e cine com programação de filmes eróticos. Na zona de transição, onde se localizava a Vila Mimosa, encontravam-se os bordéis. E, nas zonas residenciais, se encontrava uma prostituição mais discreta, limitada a apartamentos, cultivada por um público de maior poder aquisitivo, Nessa área se destaca o bairro de Copacabana. Prostituição, exploração e turismo sexual Assuntos diferentes, mas que são confundidos frequentemente e passam a ser generalizados como crime. O ato de se prostituir-se, sendo exercido por uma pessoa maior de idade e com consenso, não é crime perante a lei; tão pouco o turismo sexual que, segundo a ONU e a Organização Internacional do Turismo, ocorre quando “Em viagem a terras estrangeiras, utiliza-se a infraestrutura turística para o sexo comercial com moradores locais.” Ou seja, não é considerado crime, pois ele é um cliente da prostituição. Já a exploração sexual ocorre quando um individuo obtém lucros por práticas sexuais de terceiros e, este sim é considerado crime e deve ser combatido.
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OLHE
NOS MEUS
OLHOS SOU SER
HUMANO POR ÁGATHA SANTOS E JAQUELINE SUAREZ
J
á imaginou sentir fome e não ter o que comer, sentir sono e não poder dormir, querer uma cama e só ter um papelão, sentir medo e não ter para onde ir? Parece tão distante, mas está perto, na sua frente, mas no decorrer do dia, você passa e não vê, desvia o caminho com medo daquela pessoa que está dormindo no chão, morando na rua. — Morador de rua é pior que presidiário. Preso tem um teto, não pega chuva, não passa frio, a família vai visitar — compara Silvio Antônio do Santos, ex morador de rua. Ninguém está na rua porque quer, não é uma opção, algo aconteceu, mas quem vai perguntar, ajudar, dar atenção? Todos sabem que existe, porém poucos dão voto de confiança, poucos são os que dão mais do que comida e roupa, mas compartilham amor pelo outro. — A gente fica na rua esperando que alguém apareça para ajudar, mas ninguém aparece — diz Silvio. Silvio Antônio dos Santos tem 63 anos e é ex morador de rua, sem nenhum vício, se viu na rua, sem ninguém. Ele tinha um emprego, filhos criados, apartamento e depositou confiança em uma pessoa que tirou tudo de material que ele tinha.Com isso, lhe restou a rua como única opção. Nas esquinas e praças de Santa Cruz, Silvio viveu por meses, desafiando a cada dia o que é viver com insegurança. Não dormia, cochilava diante do medo. Estava exposto a tudo, à maldade humana, como foi o dia em que atearam fogo em seu edredom enquanto fechava os olhos.
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Retratos de rua FOTO: ÀGATHA SANTOS
Certa vez, pediu para usar o banheiro de uma oficina, o dono permitiu, após usá-lo agradeceu. Postura que era comum. Isso chamou a atenção do responsável do estabelecimento que ofereceu a oficina para ele se abrigar e, desde então, essa é a nova moradia de Silvio, que se orgulha em mostrar a chave da oficina, que agora é com ele que fica. Sempre muito bem educado, conquistou a confiança de pessoas que o ajudaram, deram carinho, amor, e assim o morador que se sentia um nada diante da sociedade, se viu importante para alguém. Quando se está na rua, o ser humano passa a fazer coisas que nunca faria, pela necessidade, não é fácil, perde-se a noção do certo e do errado, parte por revolta, parte por desespero. Silvio, apesar da dificuldade, manteve sua cabeça. Não se envolveu com drogas, não roubou, não fez nada que pudesse se arrepender e ainda conclui “precisa-se de amor, carinho na vida.” A experiência pessoal
FOTO: JAQUELINE SUAREZ
Aprendi que não devia me colocar no texto, que cabia a mim apenas o papel de observador, mas não consigo ignorar a experiência que vivenciei no dia que conheci a história do Seu Silvio. Não, não conheci só ele. Passei algumas horas andando por Santa Cruz, junto a um grupo de jovens na missão de levar alimento e, principalmente, atenção e esperança àqueles que vivem nas ruas. Quando a noite cai e as lojas fecham, os invisíveis tornam-se os únicos na rua. Fazem das marquises seu teto e do papelão seu colchão. Pela primeira vez, pude me sentar no chão e conversar com vários moradores de rua. Sentados no mesmo chão fomos iguais. Ora, isso não deveria ser raro, afinal, são como eu e você.
Sentem fome, frio, medo e, principalmente, precisam do outro, precisam de amor. Tive medo. Não de me acontecer algo, mas medo do que iria ver e ouvir. Medo de conhecer uma realidade que costumamos evitar todos os dias. Evitamos porque nos entristece olhar, ou porque acreditamos que fizeram algo para estar ali, ou por medo de estimular alguma ação violenta. Ou, talvez, evitemos para não perceber o quanto a nossa vida é facil e o quanto não damos valor a isso. Alguma vez, já agradeceu por ter uma cama? Já percebeu o quão valioso é um “bom dia”? Ser visto é valioso. Começamos a nossa andança pelo Centro de Santa Cruz, por volta das 22h. E as ruas estão vazias. A primeira parada é em uma pracinha, onde converso com o primeiro morador. Homem, por volta dos 35 anos. Ele me conta que compõe louvores. Logo me interesso em perguntar o principal: o motivo que o levou a morar nas ruas. Ele me surpreende! Tem casa, família e uma barraquinha na qual vende doces. Está na rua pois lá estão também seus amigos. Sua vida é dividida entre dias em casa e outros na rua. Quando volta para casa, deixa seu cobertor e papelão com os amigos. Não demora muito em casa e ele volta, para mais uma temporada nas ruas. Continuamos a caminhada até pararmos na porta de uma agência bancária. Encostados no vidro, estão sentados Dona Cris e o Seu Hernani. Um casal que aparenta ter em torno de 60 anos e estão juntos há três. Eles pagavam o aluguel da casa com o auxílio que recebiam do governo e, quando este foi suspenso, só tiveram a rua como opção. Aparentemente, Dona Cris tem problemas psicológicos, se recusa a receber tratamento ou sair das ruas. A irmã de Seu Hernani insiste para que ele fique em sua casa. Ele passa alguns dias, mas sempre retorna para não deixar sua
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FOTO: ÀGATHA SANTOS
mulher sozinha. No lugar onde a solidão é a maior companheira, o amor se mostra possível e resiste. Me levanto para continuar. Ao lado do casal que conversou comigo estava um rapaz jovem que também vive nas ruas. Ele conversa com o grupo que eu acompanho nessa caminhada. Escuto o final da conversa. Uma das meninas acaba de falar com a mãe do jovem pelo telefone e ela aceita que ele retorne para casa. Me emociono quando percebo que um dos meninos do grupo
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Para aqueles que têm a segurança de um teto, a certeza da próxima refeição ou o amor de uma família, não é possivel se colocar no lugar dos que vivem nas ruas
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retira seu tênis para que o rapaz não volte para casa descalço. O amor ao próximo existe! Depois de algumas ruas, chegamos à Praça do BRT. Ali, um grande número de moradores de rua se concentra. Paramos para conversar com uma família. Mãe, pai e mais sete crianças. É uma parada rápida e não temos tempo suficiente para conhecer a história. Durante os dois ou três minutos que permanecemos alí, são as crianças que nos surpreendem. Elas não falam nada, apenas se aproximam e nos abraçam. É uma cena simples, mas que diz muito. Como Seu Silvio nos ensinou, na rua é preciso amor. A última parada nos mostra a outra face da rua, o vício. Um homem deitado no papelão, nu e descoberto. Suas roupas estão jogadas ao seu redor e ele está com restos de cocaína no rosto. Respira, mas não reage aos chamados. A situação não permite muitas atitudes. Um dos meninos do grupo o cobre e não é possível fazer mais nada. Seguimos. Mais alguns passos e concluimos a caminhada. Mesmo tendo conhecido de perto, eu não consigo imaginar o que sentem todas essas pessoas. Apesar de me sentar no chão e conversar com todos eles, no final eu voltei para casa. Para aqueles que têm a segurança de um teto, a certeza da próxima refeição ou o amor de uma família não é possivel se colocar no lugar dos que vivem nas ruas. Eu não mudei a realidade de nenhum deles naquela quarta feira, mas certamente todos eles impactaram a minha.
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FOTO: ÀGATHA SANTOS
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Memória
PARA SEMPRE MÃES DE ANJOS POR LUIS HENRICK TEIXEIRA
Quase cinco anos depois da tragédia que abalou o país, as mães de Realengo lutam para que não se esqueçam do legado deixado por seus filhos. Doze vidas foram arrancadas na manhã do dia 7 de abril de 2011. Vítimas que não foram perdidas ao acaso e que não devem ser esquecidas. Noticiários do Brasil e do mundo contaram a história do Colégio Tasso da Silveira. Em todos eles uma mesma pessoa recebia todo o foco da história: o atirador. Entretanto, as reais protagonistas dessa história são elas: mães que transformaram a dor em luta, que tiveram seus bens mais preciosos arrancados dos braços, sem tempo para despedidas. O local que deveria ser o mais seguro para a vida de tantos jovens na busca de um futuro melhor, tornou-se palco de violência, medo e dor. Os sentimentos ainda permanecem anos depois. Mas com estes, vem a garra, o amor ao próximo e a esperança de que nada foi em vão. Os anjos iluminaram suas vidas. Ana Carolina, Bianca, Géssica, Igor, Karine, Larissa dos Santos, Laryssa Martins, Luiza, Mariana, Milena, Rafael e Samira. Crianças que buscavam na educação uma vida melhor. Todos estudantes da Escola Municipal localizada no Bairro de Realengo, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Cada FOTOS: TARCILA VIANA
um com seu jeito único de viver. Com suas alegrias, sonhos e dificuldades. Tiveram o interromper de suas trajetórias não por uma fatalidade, mas por um problema de todo o estado: a falta de segurança dentro das escolas. Suas histórias e sonhos ainda vivem no peito das mães, familiares e tantos outros que tiveram a oportunidade de conhecê-los.
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Lembranças e sonhos
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oseane dos Santos é mãe de Milena. Hoje, sente falta de como sua vida era feliz e completa na simplicidade do dia-a-dia. O natal nunca mais foi o mesmo em sua casa. A filha comemorava mais um ano de vida no dia 24 de dezembro. Antes de tudo acontecer, a mãe queria trocar o turno de aula de Milena no Colégio. Ela gostava de estudar de manhã e quando soube que a mãe queria mudá-la de horário, foi logo procurar um curso de inglês. Quando a lista com o horário oficial de aulas saiu, tratou de ligar para contar a novidade para a mãe: — Ela foi até a Escola conferir o horário e brincou comigo, disse que iria ficar à tarde, mas era mentira. Comemorou porque ia continuar podendo fazer o curso. Acredito que a minha filha, como as outras crianças, já sabia. Ela tinha a mania de dizer que era um anjo que veio me trazer alegria e bênçãos. Uma das cenas que emociona Joseane foi a última passagem de ano com a filha. Muito religiosa, a família passava orando e Milena havia chamado a atenção dos pais por ter visto um grande anjo observando-os durante a oração. — Ela foi apresentada na igreja bem pequena e gostava de frequentar. O entendimento dela para uma menina de 13 anos era muito bonito, gostava de ler a Bíblia. Quando disse que viu um anjo eu não acreditei. Me contou que ele olhava para o pai, ela e eu. Quando a tragédia aconteceu, percebi que o anjo veio preparar. Avisar a nossa casa — relembra Joseane. Sônia Moreira criou a neta como uma filha. Os pais de Larissa dos Santos trabalhavam e a deixavam sobre seus cuidados. Após o término do casamento, a menina passou a ser criada pela avó. Era responsável por levá-la de bicicleta para as aulas de jazz e o curso de modelo, que era seu grande sonho profissional. Entre as lembranças da pequena vascaína apaixonada, a avó recorda da ajuda que recebia para preparar pastéis para as festas de fim de ano. — Nós brincávamos, conversávamos, levava ela a pé ou de bicicleta para fazer natação. Fazia curso de modelo, desfilou duas vezes para um salão de cabelo. O desfile foi a alegria dela, todos aplaudiram quando entrou, gritavam, batiam palmas. Ela estava muito contente, com um grande sorriso. Independente, Larissa levantava sozinha para ir ao Colégio e avisava a avó antes de sair de casa para que ela a acompanhasse ou pedisse à vizinha que também levava sua filha.
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Sônia Moreira, avó de Larissa dos Santos criou a neta após o divórcio dos pais
O último dia
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ona Sônia se lembra com detalhes do último dia com Larissa. A garota não tinha o hábito, mas levantou mais cedo para tomar banho. Atrasada, esqueceu a mochila e a avó voltou para pegar. Ela tinha curso no período da tarde e queria ir arrumada para a Escola. Aproximadamente 8h15, Sônia dormia sozinha com o neto pequeno. Em meio a pesadelos, foi acordada pelos gritos da vizinha que avisou do ataque ao Colégio. Desesperada, correu com o neto nos braços em frente a Tasso da Silveira e viu uma grande aglomeração de pessoas em torno da Escola. Procurando pela neta, Sônia recebeu a notícia de que uma Larissa havia falecido. Porém, não era sua neta. Tempos depois, descobriu que duas Larissas haviam sido vítimas da violência. A partir da aí, lembra-se apenas de já ter acordado no hospital. Joseane também conta ter tido pesadelos dias antes da tragédia. Estava orando todos os dias pela proteção de sua família. Milena conseguiu aproveitar seu último final de semana em um aniversário com as amigas. A mãe se sentia feliz em levar e buscar, mas durante a semana a alegria foi se perdendo sem explicação. Em um dos dias, Milena percebeu o cansaço da mãe. — Vou te dar uma vida melhor – dizia. Naquele dia, a mãe não teve ânimo para cozinhar e a filha estranhou a simplicidade do seu jantar, que era caprichosa.
Sobrevivência
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duardo Moraes foi um dos que conseguiram escapar no dia 7 de abril de 2011. Mas seu irmão mais velho, Igor, não deu a mesma sorte. No dia da tragédia, lembra que estava na aula de ciências, quando ouviu o barulho dos tiros. — Na hora em que ouvimos o barulho, imaginamos que algum aluno estivesse armado. A professora começou então a colocar cadeiras nas portas enquanto todos estavam muito assustados — conta Eduardo. A sala de aula em que estava, era localizada no se-
gundo andar do prédio. Eduardo logo pensou no irmão que estudava no andar de baixo. Pela janela, os alunos da sala observavam a saída dos colegas. Ao ouvir batidas na porta, entrou em desespero: — Um policial bateu na porta e todos começaram a gritar. Ele pediu para que nós mantivéssemos a calma e aguardássemos dentro da sala por um tempo. Quando saímos é que vimos a dimensão do que tinha acontecido. Sem saber notícias do irmão, o garoto voltou para casa e descobriu pela família que ele estava no hospital. À noite, quando saía de casa para dormir na casa de um amigo, por pedido da família, viu na televisão o anuncio Do nome de Igor. Hoje; sente falta da companhia do irmão nas brincadeiras do dia-a-dia e no futebol de que ele tanto gostava. Quando passa em frente à Escola, relembra de tudo. Por três anos, frequentou o psicólogo.
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A professora começou a colocar cadeiras nas portas enquanto todos estavam muito assustados
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Na quinta-feira, Milena não quis tomar o café da manhã como de costume. Já no trabalho, a mãe recebeu uma ligação de sua patroa contando sobre a invasão ao Colégio. Desesperada, pediu socorro às vizinhas do prédio que a levaram ao portão da Escola. Em uma ligação, um amigo da família disse que estava com duas das três filhas que estavam no Colégio, mas uma delas havia desaparecido. Joseane sentiu que era Milena, o desespero cresceu ao saber que aumentava o número de crianças que haviam falecido. Arrastada para o hospital, a médica se preparava para dar a notícia, quando Valmir, marido de Joseane, gritou desesperado pelo telefone: perdemos nossa filha.
Inês Moraes, mãe de Igor, e seu filho Eduardo , que também estava na Escola
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ada dia tem sido um novo aprendizado na vida das mães. As três filhas de Joseane estudavam no Colégio. Só Milena perdeu a vida. Tempos depois, Joseane engravidou novamente na tentativa de ter a filha de volta. Ao contrário do que esperava, ganhou um menino, sonho antigo da família. Hoje, o pequeno Davi tem três anos e devolveu à mãe a vontade de viver. Hoje, a tristeza maior é não poder reunir toda a família em uma única fotografia. Milena não pode estar nas fotos, mas está sempre em todos os pensamentos. — Para perder filhos temos que ser mulheres guerreiras, escolhidas por Deus, não é para qualquer uma. Eu convivo com a minha dor. Diferente do que as pessoas pensam, nunca iremos conseguir superá-la. Joseane agora é dona de um negócio próprio e vendeu a antiga casa. No início da perda, ia sempre escondida do marido visitar o túmulo da filha. As irmãs de Milena, Tainá e Helena, precisaram ficar alguns meses na Bahia, de onde a família veio tentar uma vida melhor. Os holofotes da mídia na época prejudicavam ainda mais o trauma das meninas. Muitos carros de reportagem e jornalistas rodearam a casa da família por meses.
Depois de totalmente reformada a Tasso da Silveira atende cerca de 1200 alunos
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Dona Sônia só consegue dormir às quatro horas da manhã a base de calmantes. Saudades e solidão são sentimentos constantes. Larissa não saia do pensamento, em nenhum instante da família. Na tentativa de amenizar a dor, os filhos retiraram as fotos da casa em busca de dar mais tranquilidade, porém Sônia não deixa de lembrar: — As pessoas dizem que precisamos esquecer, mas não são elas que sentem a dor que fica dentro de nós. Quando a tragédia aconteceu, meu marido queria se mudar. Pedi a Deus que tirasse ela do meu pensamento para poder descansar, eu chorava e sofria muito. Meu quarto era cheio de fotos, viajei e meus filhos as tiraram. Mas ainda guardo escondidas as minhas recordações.
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Para perder filhos temos que ser mulheres guerreiras. Hoje convivo com minha dor
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Cinco anos
Adriana encontrou na Ong uma forma de lutar pelos direitos das famílias e sobreviventes
emocional. Além disso, faz sessões de fisioterapia para tratar os nervos da perna, que não mexem mais e frequenta o psiquiatra de três em três meses, quando tem o profissional. Na família de Dona Sônia, ainda muitos convivem com as sequelas: — Meu filho toma cinco remédios, entre calmantes e antidepressivos, ele vive muito nervoso. Meu neto de dez anos desenvolveu problemas no coração. Meu filho pede para que eu observe o menino na escola para ver se não aparecem estranhos. Minha sobrinha, que era próxima à Larissa, tentou se matar. Todos desenvolveram problemas sérios e nem todos ao redor dela receberam acompanhamento. Adriana ainda completa que a luta com a depressão das famílias é constante. Altos e baixos da doença abalam a vida e o dia-a-dia. Famílias sofrem com dificuldades de sanidade mental. O atendimento público é oferecido não só para os parentes dos que partiram, mas também aos sobreviventes. Crianças que convivem com as consequências da violência: — Eles sobrevivem com altos e baixos, dias sorrindo, outros tristes. Um dia estão passeando e no outro estão chorando e sofrendo. Outras possuem depressão. Não podemos desistir em memória dos nossos filhos. Estamos lá em todos os eventos, com a frase: escutar é reagir, esquecer é permitir. Precisamos lembrar, engolir o choro, trazer na memória, porque a cada vez que fazemos um movimento, é uma cutucada nas autoridades e na sociedade.
Assistência e Saúde
Maquiagem Falha
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epois do abalo emocional, os familiares e pessoas próximas às crianças desenvolveram diversos problemas de saúde. Todos receberam acompanhamento médico e psicológico, porém, nada diferente do que é direito de todo cidadão brasileiro. As consultas continuam até os dias de hoje. Algumas das famílias desistiram devido ao tratamento precário oferecido pelo Sistema Único de Saúde. Muitas vezes, as procuras por médico eram em vão. Joseane procurou atendimento até o quarto ano com psicólogo. A mudança dos profissionais e a estrutura oferecida pelas Clínicas da Família, Unidades de Pronto Atendimento e Hospitais comprometiam o atendimento. Hoje, elas procuram ajuda como podem. Adriana Silveira, mãe de Luiza, e Inês Moraes, mãe de Igor, ainda continuam com os tratamentos. Já as outras mães procuram apenas quando acham necessário. Depois de perder Milena, Joseane se tornou hipertensa e toma remédios controlados, além de antidepressivos. No dia-a-dia, sentimentos como nervosismo, revolta e tristeza se misturam. A falta dos remédios prejudica o controle emocional. Sônia sente um olhar diferente quando chega à Clínica da Família. Às vezes, é tratada como chata por ser frequentadora do local. Após perder a neta, sofre hoje com labirintite e o diabetes, desenvolvidos pelo abalo
oseane sempre acompanhava os filhos até o Colégio. Nos primeiros anos, por conta do trabalho, as crianças iam e voltavam sozinhas. Sempre que podia, a mãe vinha até a praça observá-las brincando. Após a tragédia, as irmãs de Milena quiseram continuar estudando no Colégio, mas depois de dois dias não conseguiram suportar a saudades. Joseane agora se preocupa com o futuro do filho caçula: — O Davi pode ir para qualquer colégio, menos esse, porque não irá me trazer mais segurança. Hoje o Colégio Municipal Tasso da Silveira foi totalmente reformado e não lembra em quase nada o de cinco anos atrás. Porém, a melhoria não ajudou os sobreviventes. Mesmo com a escola diferente, nenhum deles quis estudar mais onde ficaram as lembranças da tragédia. A melhoria do Colégio ficou para a comunidade, não para quem precisou conviver com a dor. Precisaram que vidas fossem perdidas para que se ganhasse educação de qualidade. — Me mudei para uma casa que fica em frente a um colégio. Mas um colégio bem diferente do que a minha filha morreu. Todo abandonado, cheio de mato. Se todos reclamassem pelos direitos dos seus filhos, não estaria assim. Talvez, deveríamos ter lutado para que o Colégio não existisse mais, mas não fomos
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Adriana Silveira esteve no Congresso Nacional levando reinvidicações da Ong
egoístas porque sabemos que quem ficou não tem nada a ver. Que eles precisam de uma educação melhor. A reforma apenas da Tasso da Silveira é motivo de revolta para as mães de Realengo. Apenas enfeitar a escola, na tentativa de mascarar o passado, não o apaga. Depois do acontecimento, esperavam que maiores medidas de segurança acontecessem em todas as escolas pela gravidade e repercussão do problema. Para que a grande estrutura fosse oferecida hoje, perda de vidas e sequelas graves foram necessárias. Mas não é apenas um colégio que precisa de qualidade. As autoridades enxergaram o acontecimento como uma fatalidade. Mas as mães acreditam em uma falha grave. Entrar em uma escola para fazer uma palestra que não existia, sem que os pais ou a direção soubessem, foi um erro gravíssimo. A revolta maior é perder o filho no local que acreditavam ser o que mais os protegiam: — Minha filha veio ao mundo com muito amor, com muita luta para viver até os 14 anos. Foi muito carinho, dediquei a minha vida para que ela não perdesse a vida dentro de uma escola. Esperava que ela pudesse perder a vida em qualquer outro lugar, por isso cuidava com muito zelo, era rígida na educação e na segurança. Por isso, não posso aceitar que perdêla dentro da escola foi uma fatalidade — diz Adriana. Hoje, a Escola é reconhecida pelas premiações que recebe. Sentimento de vergonha que toma conta das mães. Uma tentativa de omissão a todo o passado de dor. — Acho que assim como reformaram esse Colégio aqui, deveriam reformar todos os colégios. Penso que ao menos ele deveria ter se tornado uma maternidade para que alí chegassem novas vidas. Mas quiseram
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enfeitar o pavão e tapar o sol com a peneira — diz Sônia. O Colégio acabou não se tornando maternidade como gostaria Dona Sônia, mas cada uma das crianças recebeu, como homenagem da prefeitura o nome de uma creche, em diferentes locais da cidade.
Da dor à luta
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epois de perderem as crianças, as mães ficaram desorientadas com o choque e a dor de perderem um pedaço da família. Dias depois, a tia de Larissa Martins foi até o Colégio pegar os contatos dos pais, que marcaram um primeiro encontro na casa da mãe de Adriana. A necessidade de se verem era diária, tentar sobreviver à tragédia juntos, para cuidar e dar apoio umas às outras. Foi aí que perceberam a necessidade de criarem uma associação. A proposta era levar justiça as famílias e sobreviventes da tragédia que recebiam atendimentos precários. — Uma das mães fez queixa de uma das crianças que levaram oito tiros. Ela já estava em casa de alta, mas precisava fazer alguns tratamentos e necessitava pegar ônibus, mesmo sem poder mover as mãos, que era carregada pelo os pais até o hospital. Aí me nasceu uma força de que isso não poderia ficar assim. Precisávamos correr atrás dos direitos dessas crianças e das que se foram — relembra Adriana.
Em meio à dor e à revolta, surgiu a Ong Anjos de Realengo. Primeiramente, como forma de apoio e, posteriormente, de conseguir melhores tratamentos para os que ficaram. As reuniões eram praticamente diárias, necessárias para que uma mãe pudesse apoiar a outra. Compartilhar seus sofrimentos, angustias e não deixar que a dor consumisse suas vidas. Depois de um período de tempo, as reuniões começaram a acontecer com menor frequência, porém a necessidade continuava a mesma. Com muita luta, a Ong conseguiu tratamento para as mães e apoio de outras associações. – Os problemas continuam, muitos pensam que já superamos, mas não existe superação para a história de uma mãe que perde o filho. Nós iremos levar essa dor até o último dia de vida. Queremos aprender com essa dor. Passamos em nossas reuniões que teremos que aprender a conviver com ela entre altos e baixos. Mas seguimos, com a consciência de que haverá mudanças – desabafa Adriana. O nome surgiu de uma grande faixa estendida em frente ao Colégio dias após o acontecimento: “Os doze anjos de Deus”. A partir disso, os moradores da região passaram a citái-los como os doze anjos de Realengo e, então, adotaram: Anjos de Realengo. Entre as principais pautas da luta estão a segurança nas escolas, professores mais qualificados, para que possam identificar crianças com problemas psiquiátricos e psicológicos desde os primeiros sinais para o encaminhamento ao tratamento
Discursos de amor e ódio
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solidariedade recebida pelas famílias não foi apenas do bairro, foi internacional. Cartas do mundo inteiro davam a sensação de que cada uma das mães não passava pela dor sozinha. Mesmo quase cinco anos após a tragédia, Adriana recebe e-mails perguntando sobre como está cada uma das mães. Porém, não são apenas sentimentos bons que as mães recebem. Uma homenagem das mães com o apoio da prefeitura da cidade, recentemente, dividiu opiniões. A ideia de grandes esculturas de bronze foi uma proposta da prefeitura como forma a eternizar cada uma das crianças. Pessoas importantes para a história do país ganham esculturas para que seu passado não seja esquecido. A intenção é a mesma: não deixar que apaguem o ocorrido. Mesmo sendo uma história triste, a Praça que recebeu o nome de Anjos da Paz, ainda possui um legado de luta para cumprir: – Precisamos olhar para essas esculturas não com dor, com sofrimento. Precisamos ver como símbolo de mudança, paz, de luta pela educação. Ver que eles partiram, mas deixaram um legado. E que esse legado seja cumprido, que cada um que
Combate ao bullying e segurança nas escolas são algumas das pautas da Anjos de Realengo
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FOTO: ÀGATHA SANTOS
A avó de Larissa, Sônia, conta que ao passar na rua já recebeu gritos de ter recebido dinheiro para que as estátuas fossem colocadas na Praça. O sentimento que fica no ar é de que a única coisa que gostariam de ter são os filhos de volta. Para ela e as outras mães, o incômodo alheio mexe, traz efeito e causa reações de reflexão e consciência sobre o acontecido. — Queria ser a pessoa que está criticando, queria ser quem nos elogia. Queria estar em qualquer lugar, menos no lugar que eu estou. Perder minha filha — diz Adriana. Entre a dor, um sentimento bom. Crianças brincam na Praça e tiram foto com as estátuas. Nenhum sentimento de tristeza se vê no rosto dos pequenos. O local tornou-se um espaço de recreação, descanso e lazer da comunidade.
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Queria estar em qualquer posição menos a de perder minha filha
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botar o seu filho dentro da escola pública lute pelos direitos das crianças. Porém, não são todos que veem com bons olhos. Durante a entrevista, um carro que passa, pára na rua em frente à Praça. Nele, uma pessoa grita palavras de ódio: — Que coisa horrível passar e ver uma coisa dessas aqui. Isso é uma idiotice! Palavras que trazem tristeza, revolta, mas também um sentimento de pena, como desabafa Joseane: — É muito difícil escutarmos isso. O julgamento das pessoas. Eu não sinto raiva, sinto pena. Não quero que elas passem o que eu passei. Nossos filhos não estão mais aqui. Ela se preocupa com a minha dor? Ela sabe do meu dia-a-dia? Não me preocupo se as pessoas lembram ou não da minha filha, quem precisa lembrar sou eu. Milena faz parte da minha vida, da minha família e ninguém vai tirar isso de mim. Com a vinda das esculturas desenvolvidas por Cristina Motta, a Praça, que antes era local de encontro para consumo de drogas, virou hoje cenário de lazer e segurança para a região. Tudo foi reformado, ganhou câmeras de proteção para os arredores e policiamento 24 horas, todos os dias da semana. Com a vinda das esculturas desenvolvidas pela escultora Cristina Motta, a praça que antes era local de encontro para consumo de drogas, virou hoje cenário de lazer e segurança para a região. Tudo foi reformado, ganharam câmeras de proteção para os arredores e policiamento 24 horas, todos os dias por semana.
A praça torrnou-se espaço de recreação para as famílias da região
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Galeria
OS TRABALHADORES
DA PRINCESINHA DO MAR POR LARISSA BOZI
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cordar, tomar café da manhã, arrumarse, pegar o material de trabalho, sair de casa, esperar o ônibus, entrar no transporte lotado, chegar à Copacabana em dia de chuva ou sol e, ainda, trabalhar sorrindo. Essa é a rotina de muitos trabalhadores de rua em Copacabana. Eles saem de casa, não importa em que condições, para venderem seus produtos em um dos bairros mais conhecidos do mundo. A praia de Copacabana, também apelidada de
Princesinha do Mar e Coração da Zona Sul, atrai um grande número de turistas anualmente, em qualquer época do ano, por ser um dos cartõespostais mais divulgados e conhecidos do Brasil. São encontradas dezenas de trabalhadores de rua, vindos de diversos lugares, para atender à demanda de turistas e cariocas. Eles são notados principalmente pela simpatia e prontidão em servir seus clientes. Usam a critividade para alegrar e conquistar a venda.
O artesão, Calor Novais, tem 33 anos e vive da venda de artesanatos. A renda dos objetos lhe permite viajar o Brasil trabalhando por onde passa.
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Robenilson Alves dos Santos tem 43 anos e trabalha vendendo biquĂnis na praia de Copacabana hĂĄ quatro anos
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O vendedor de cangas, Mauro de Paula Soares, de 51 anos, trabalha no mesmo local, o posto quatro, hรก oito anos
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LuĂs Henrique Alves tem 41 anos e trabalha hĂĄ 30 anos como feirante. Atualmente, vende frutas na esquina da Barata Ribeiro com Ronald de Carvalho, poucos metros da praia de Copacabana
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O chileno, Ruben Ant贸nio tem 47 anos. Mora e trabalha fazendo miniaturas h谩 15 anos no Brasil
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Capa
UMA GUERRA SEM VENCEDOR
POR JAQUELINE SUAREZ
FOTOS: JAQUELINE SUAREZ
As manchetes dos jornais já se tornaram tão repetitivas que banalizou-se o fato. A morte nos confrontos entre a polícia e o tráfico de drogas é vista com tamanha naturalidade que não é capaz de chocar mais ninguém. Eventualmente, uma criança é atingida por “bala perdida”, um policial celebridade é assassinado ou é divulgado algum vídeo comprometedor das Unidades de Policia Pacificadora (UPP), incriminando um suspeito. Nesses casos, a notícia rende mais algumas capas de jornal, três ou quatro dias como assunto e depois some. Sempre some.
*Por motivo de segurança, os nomes e imagens utilizados nessa reportagem são ficcionais.
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uantas pessoas morrem por ano devido ao erro da polícia? O homem estava com uma furadeira e o oficial pensou ter visto uma AK-47. Atirou na cabeça. Matou. Quantos outros morrem nos chamados “auto de resistência”, entendido como casos em que o policial matou por legítima defesa? Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), foram 517 mortos, de janeiro a setembro deste ano, decorrentes de intervenções policiais (cívil e militar). Uma média de quase duas vítimas por dia. Do lado oposto, ou melhor, do mesmo lado, quantos oficiais morreram em serviço, em incurções ou nas UPP’s? O PM estava alocado na Unidade de Pacificação no Morro da Coroa, saiu em uma ronda na comunidade e foi surpreendido em um beco. Foram dois tiros no peito. Morreu a caminho do hospital. Quantos outros morreram apenas por estarem com o uniforme na mochila ou a identificação na carteira? Segundo dados do ISP o número de policias mortos durante a folga é três vezes maior do que em combate. No período de janeiro a setembro deste ano, foram 18 militares mortos apenas em serviço. Todos eles tornaram-se estatística. Uma vida é igual a um número e nessa matemática cruel o resultado nunca é justo. Sempre terá um caminho interrompido e uma família de luto. Quantos filhos, pais, maridos e irmãos morreram em uma guerra normatizada e até mesmo estimulada, pelo estado, pela sociedade, por mim e por você? A Polícia Militar do Rio de Janeiro é a que mais mata e a que mais morre no país. Algo parece estar errado. Não é inédito dizer que o problema está no sistema político. Não só a justiça nesse país é falha, como é também a educação, a segurança e a saúde. É complexo e profundo compreender os fatores que impulsionam cada um desses atores a ocupar um papel nessa guerra. Certo é que a política e os políticos desse País em muito tem a ver com o menino que se torna “aviãozinho” na favela ou o policial que aceita ser corrompido. A ação e, principalmente, a omissão do Estado estão na base desse processo. Além disso, tem ocorrido a polarização da discusão, a escolha entre mocinhos e vilões e, consequentemente, entre quem “merece” viver e morrer. Os jornais e, não menos importante, as redes sociais tornaram-se um tribunal. Elegem qual lado irão defender: polícia versus suspeitos. Incitam a rivalidade e a eliminação do outro. Multiplicam um discurso de ódio. Quantas manchetes de jornal já estamparam a morte de “traficantes” como vitórias para a sociedade? Quantas postagens e comentários no Facebook defendem a execução de policiais? A solução para muitas pessoas é combater a violência com mais violência. Metade da população brasileira acredita nisso, concorda que “bandido bom é bandido morto”. A constatação aparece na pesquisa realizada pelo Datafolha, divulgada em outubro deste ano. O que não aparece nos jornais, nas pequisas ou nas estatísticas é quem são as pessoas por trás dos números. Cada número guarda uma história e deixa
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pessoas. Christian Soares, de 13 anos, brincava em um campo de futebol, próximo a sua casa, na Favela de Manguinhos, quando uma “bala perdida” atingiu o garoto. A polícia realizava uma operação na comunidade no momento em que o menino foi baleado. Christian morreu na hora e o caso ainda está sob investigação. O policial militar Caio César estava em serviço na UPP da Fazendinha, no Complexo do Alemão, quando foi baleado em uma troca de tiros. Foi socorrido, mas morreu dois dias depois, na data de seu aniversário de 27 anos. A
morte do PM ganhou destaque por ser dele a voz do bruxinho Harry Potter no Brasil. Eduardo Felipe Santos, jovem de 17 anos, foi morto por cinco militares da UPP da Providência, Centro do Rio. O caso ganhou repercussão depois que foi divulgado um vídeo no qual os agentes aparecem forjando a cena do crime. Eles aparecem colocando uma arma na mão do rapaz e encenam uma suposta reação. A morte dos três – como de tantos outros – permaneceu na mídia durante alguns dias, até que outros confrontos e outras mortes ocuparam esse
espaço. Depois três ou quatro dias como assunto, sumiram. Sempre somem. O que não desaparece é a dor daqueles que perdem alguém. A dor de uma mãe que perde um filho, ou de uma filha que enterra seu pai. E apesar da fartura de dados e estatísticas, não existem números que quantifiquem as famílias que são destruídas por ano com as baixas provocadas por essa guerra. Não existem números, pesquisas ou jornais que contem a história de Dona Maria que perdeu dois filhos envolvidos com o tráfico de drogas ou de Joana, viúva de um policial militar.
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A história contada pela primeira
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ona Maria é uma das muitas mães que moram na favela de Acari e já passaram pela dor de enterrar um filho. No caso dela, foram dois. As incursões policiais são frequentes e o uso da força letal desmedida. Como os moradores afirmam “a policia entra atirando”. Além disso, há casos em que a policia executa mesmo com a rendição do suspeito. Assim aconteceu com os dois filhos de Dona Maria: Samuel e Luiz se renderam e estavam desarmados quando foram assassinados. Dona Maria mora na Comunidade desde os doze anos. Lá criou três filhos, enquanto trabalhava em casa de família como doméstica. Marcos, o filho mais novo, foi o primeiro a se envolver com o tráfico. Dona Maria descobriu no dia em que bateram no seu portão avisando que o garoto havia sido preso. — Todo mundo sabe, mas a mãe é a última a saber. Eu estava em casa quando bateram no meu portão, falaram que o Marcos tinha sido preso com uma granada na mão. Foi aí que eu descobri. Eu pensei: meu filho era do tráfico e eu não sabia — Lembrou ela. Na época, Marcos era menor de idade e ficou detido em instituições para menores infratores. Depois de um ano e meio foi solto e voltou para o tráfico de drogas da comunidade.
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O filho do meio, Luiz, e depois o mais velho, Samuel. Todos os filhos de Dona Maria se envolveram com o tráfico. Os dois também chegaram a ser detidos, mas depois de soltos continuaram no comércio de drogas. — Chegou uma época da minha vida que o Samuel estava no Padre Severino e o Luiz em Bangu. Outro momento que eram os três presos. Eu visitava os três. Mas apesar disso eu era mais feliz, porque pelo menos eu estava vendo eles com vida. Lá dentro, eles estavam guardados e eu sabia que podia ver, abraçar, levar minha comidinha pra eles. Agora, é só saudade. A primeira perda de Dona Maria foi Luiz, morto aos 18 anos. O rapaz, que sonhava em entrar para o quartel, morreu dois meses antes de poder se alistar. Foi encurralado em um beco e cercado por policiais. Desarmado, ele se rendeu, colocou o radinho no chão e levantou as mãos. Ainda assim, levou dois tiros, um acertou a perna e o outro próximo à barriga. Socorrido pelos próprios policiais, foi colocado no porta malas da viatura junto com outro rapaz que não estava ferido. Luiz chegou morto ao hospital e o rapaz que estava com ele voltou para a Comunidade no final do dia, sujo e machucado.
No momento em que Luiz era assassinado pela Polícia Militar, sua mãe preparava o almoço em casa, seu prato preferido: frango com macarrão. — Quando cheguei na rua. vi alguns conhecidos correndo e chorando. Perguntei o que tinha acontecido. Falaram pra mim que tinham acabado de matar meu filho. Ali eu não vi mais nada, eu cai. Quando eu voltei a mim já estava dentro de casa, deitada na minha cama e cheio de gente ao meu redor. O dia mais triste da vida de Dona Maria foi também um dos mais felizes. No enterro de Luiz, ela recebeu a notícia que ele havia deixado uma filha, sua primeira neta. A menina, que hoje tem doze anos e mora com a avó, nasceu quatro dias antes do pai morrer. Luiz não chegou a conhecer a filha, e para a menina o que restou foram os retratos do pai que a avó mantém pela casa. Samuel estava preso na época em que seu irmão morreu. Dona Maria relembra que não esperava ver seu filho mais velho envolvido com o tráfico. Ele era o filho mais calmo e caseiro, era também o xodó da mãe. Depois da morte do irmão , o rapaz falou várias vezes em largar o crime. Em uma conversa, afirmou que aguardaria terminar de construir sua casa e depois se afastaria. — Ele chegava na minha casa com muito dinheiro, jogava tudo no chão e dizia pra mim: “mãe, que nojo desse dinheiro, isso cheira a morte, isso não vale nada. Eu não sou feliz, eu não posso sair com os meus filhos e talvez eu nem possa vêlos crescer”. Ele falava pra mim que queria sair daquela vida, mas não saía. Falava naquela hora, mas depois colocava tudo na mochila e no dia seguinte estava lá de novo. Samuel morreu com 26 anos, durante uma operação da Polícia Militar. Assim como seu irmão, ele não estava armado e se rendeu. Muitas pessoas viram e contam que o rapaz colocou o radinho no chão e gritou: “perdi!, perdi!, perdi!”. Ainda assim, ele foi executado com um tiro que acertou as costas e saiu no peito. — Estava em casa a noite e meu telefone tocou, minha netinha, filha do Luiz, atendeu. Quando eu peguei o telefone, minha sobrinha falou: “tia, o Samuel está aqui na mão da polícia”. Eu desci correndo e quando cheguei no portão estava cheio de gente, todo mundo com semblante
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triste. As pessoas me falavam que a policia estava com ele na praça, mas eu pensei que ele estava vivo. Quando eu vi meu filho, é uma imagem que eu nunca vou me esquecer. Ele estava com um buraco no peito, puxaram pelas mãos e pelos pés e jogaram o corpo dentro do caverão, na minha frente. Dona Maria enterrou o segundo filho há sete anos. Samuel deixou um casal de filhos, que moram até hoje em Acari. Na semana seguinte da morte do filho, Dona Maria ficou frente a frente com o policial que o matou. Sentiu medo. Ela conta que na época tinha nojo de policial, mas hoje não sente mais raiva. Sabe que quando um policial morre, do outro lado tem uma mãe passando pela mesma dor que ela passou. Seu único filho vivo é Marcos, caçula de 29 anos, que Dona Maria ainda tem esperanças de ver fora do tráfico de drogas. — Quando eu perdi o Luiz, eu pensei que os outros dois iam sair. Perdi um e o outro que estava saindo se envolveu ainda mais. Depois que eu perdi meu segundo filho, eu pensei que o último ia sair e ele está até hoje. Dona Maria tem 54 anos anos, hoje é casada e cria uma neta. Perdeu dois filhos, alguns familiares e viu outras dezenas de jovens perdendo a vida em Acari, uns envolvidos com o tráfico e outros não. Os policiais responsáveis pela execução dos seus filhos nunca foram punidos. Ainda vivencia cotidianamente a violência, a presença do tráfico de drogas e os abusos de uma polícia despreparada e crimosa. Os moradores da favela de Acari relatam: “quem entra no caverão não volta mais”. O local registrou, em 2014, o maior número de homicídios decorrentes de intervenção policial em todo o estado (área de atuação do 41o Batalhão da Polícia Militar). De acordo com dados oficiais, foram 68 casos, dez deles ocorreram especificamente em Acari. No mesmo ano, nenhum policial foi morto na região. A história de Dona Maria espelha a de muitas mães no Acari e em tantas outras comunidades. Nenhuma mãe merece perder um filho, seja ele quem for. — A mãe que perde um filho, lembra dele todos os dias!
Quando cheguei na rua vi alguns conhecidos correndo e chorando. Perguntei o que tinha acontecido.
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Falaram pra mim
que tinham acabado de
matar meu filho
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O “inimigo” também é vitima
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rimes cometidos pela polícia não são raros. Execuções, abuso de autoridade e despreparo. Aqueles que deveriam garantir a segurança tornam - se os maiores violadores dela. A percepção da sociedade sobre a forma de atuação das policias cívil e militar no Rio é extremamente negativa. Além disso, a política de segurança pública que se pratica atualmente no munícipio (pacificação) ampliou o abismo já existente entre a polícia e a população, sobretudo a população favelada. Entretanto, é preciso entender que o policial não puxa o gatilho sozinho. A policia é a parte mais vísivel do sistema de justiça criminal, logo se a segurança vai mal, é sobre ela que recaem as críticas. As políticas de segurança são pensadas pelos governos estaduais e o controle sobre a atividade policial realizado principalmente por orgãos internos da coorporação. Além disso, faltam legislação e regras para uso de armamentos pesados em áreas urbanas. No Rio, por exemplo, tanques do exercito são usados frequentemente em operações dentro das comunidades. O problema é muito maior e profundo: a justiça no Brasil está às avessas. Falta punição na mesma proporção em que as leis são brandas ou inexistentes. O sistema carcerário no país é um
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dos mais caros e precários do mundo. O Governo Federal sucateia as polícias estaduais e faz “vista grossa” frente ao extermínio praticado nos estados. O Ministério Público deveria investigar as denúncias de homicidios cometidos por militares, mas se omite. Não existe um mecanismo eficaz de proteção a testemunhas, vítimas, familiares e defensores de direitos humanos que denunciam. O policial é apenas a ponta de um sistema inteiro corrompido. — A gente ouve o tempo inteiro que a polícia é corrupta. Não que não seja, eu sei exatamente que a corporação é suja mesmo e, se você não for, vai virar. Dificilmente, você vai encontrar um policial que não vai entrar na corrupção. É um trabalho em equipe, se eu roubo você também vai roubar. Lógico que existem pessoas de boa índole lá dentro, mas o sistema é muito sujo e a pessoa vai se corromper. Se você não fizer parte do jogo, isso pode representar um risco à sua vida. Essa é a imagem da Polícia Militar do Rio de Janeiro para quem conheceu a cooporação de perto. Joana perdeu o marido André, em 2011, oficial no 27º Batalhão da Polícia Militar, em Santa Cruz. Joana e André começaram a namorar ainda na escola, em 1999. Foram oito anos de namoro e outros quatro casados. No ano em que se casou, André entrou para a Polícia Militar. Ser militar não
era um sonho, mas se tornou um desejo e uma opção de emprego estável. Na segunda tentativa, aos 30 anos, ele foi aprovado. — O André não tinha perfil algum. Era uma pessoa que esquecia a arma em casa. Eu falava: “você não vai levar?” e ele me respondia: “eu não, não vou matar ninguém”. Extremamente sossegado, andava muito tranquilo na rua, imaginava que nada aconteceria, porque nunca havia feito mal a alguém. Apesar de trabalhar quatro anos como policial, poucas pessoas sabiam. Ele não andava com a identidade militar e procurava não expor a farda. Evitar ser identificado como PM é uma questão de segurança e algo rotineiro na vida dos militares. Um policial militar no Rio de Janeiro recebe cerca de dois mil reais e não tem plano de saúde. O equipamento, muitas vezes, não é o adequado: materiais velhos e coletes insuficientes para todos. André priorizava o uso do colete e estava com ele quando foi atingido. A viatura em que ele estava passava por dentro do Complexo Siderurgico do Atlântico (CSA), em Santa Cruz, cerca de 20 minutos do Batalhão. O comandante que o acompanhava saiu do carro para retirar um cone do caminho. Foi nesse momento que um carro cruzou e metralhou a viatura. Não houve chance de reação. O tiro entrou na lateral do
colete e atingiu o peito de André, que morreu na hora. O oficial que estava com ele teve um ferimento na mão e foi socorrido. Os responsáveis pela morte de André fugiam de um assalto feito em Itaguaí, município vizinho. A notícia chegou na manhã seguinte. O irmão de Joana também é PM e servia no mesmo Batalhão, em Santa Cruz. — Meu irmão foi no meu serviço me avisar. Quando ele desceu do carro fardado eu pensei na hora: o André morreu. Eu perguntei o que aconteceu e ele me disse: “o André foi baleado e morreu”. Naquele momento, o mundo acaba e você não sabe o que fazer. Joana enterrou o marido e, mais uma vez, uma mãe enterrou seu filho. — A morte do André acabou com a mãe dele, ele era filho único. Ela faleceu de tristeza, foi morrendo aos pouquinhos. Morreu três anos depois do filho, já tinha perdido o marido e depois perdeu o único filho. Ela ficou muito sozinha. Joana não sabe se os responsaveis pela morte de André foram presos, a Polícia Militar do Rio nunca procurou a família. Ela voltou para o traballho um mês depois, é fisioterapeuta em um Centro Médico. Dois anos depois de perder o marido, conheceu um rapaz em Minas gerais e hoje divide sua rotina entre os estados. — Eu conseguiu seguir minha vida.
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Ritmos
UM PEDACINHO DO NORDESTE Mais do que Samba, Funk e Bossa Nova, a Cidade Maravilhosa mostra que há espaço para outros ritmos
POR LUIS HENRICK TEIXEIRA
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FOTOS: ÀGATHA SANTOS
uem pensa que a cidade do Rio de Janeiro é apenas Samba, Funk e Bossa Nova está muito enganado. A cidade tem espaço para todos os ritmos que se misturam e agitam quem quer dançar ou apenas ouvir uma boa música. Com a vinda de retirantes nordestinos para a cidade, um espaço de cultura, culinária e outras tradições se desenvolveu para o encontro de parentes e conterrâneos regado de alegria. A Feira de São Cristóvão ou Feira dos Nordestinos, como é conhecida no estado do Rio de Janeiro, surgiu em 1945. Retirantes nordestinos chegaram ao bairro de São Cristóvão em caminhões para trabalhar nas construções civis da região. A festa era regada a muita música e comida típica, embalando o encontro dos recémchegados com seus parentes e conterrâneos. No ano de 2003, o velho pavilhão recebeu uma grande reforma e foi nomeado de Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. 70 anos após a criação, a Feira é um pedacinho do Nordeste no Rio de Janeiro. Setecentos barracas fixas oferecem opções típicas de culinária e artesanato, música, dança, poetas populares, repentistas, literatura de cordel e muito mais. Hoje, não são apenas nordestinos que frequentam a Feira, mas também cariocas e turistas que querem conhecer um pouco mais outras culturas. De terça à quinta-feira, os restaurantes abrem para almoço. Já nas sextas-feiras e finais de semana, as barracas funcionam até as 22h. Na Praça Catolé do Rocha, localizada no centro do Pavilhão, o público é animado com apresentações e shows. O trio Levanta Poeira existe há doze anos e desde sua criação se apresenta na Feira. Seu Sussuanil Oliveira é o membro mais antigo do conjunto. Junto com José Antônio dos Santos, o Calixtinho, nome artístico como é mais conhecido, são os componentes que se encarregam de animar o almoço dos visitantes da Feira com a zabumba e a sanfona. A música fica completa com o triângulo da carioca Janaína Miranda e é essa mistura que acreditam ser o diferencial que atrai o público para dançar.
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— Fazemos um Forró Pé-de-Serra, com instrumentos tradicionais e acústicos, típicos do Nordeste. Mantemos a tradição, não fazemos um forró moderno, universitário. Preservamos as raízes com instrumentos que não são eletrônicos como outros grupos que fazem adaptações com guitarras e teclado. Acho que este é o nosso diferencial — conta seu Sussú (que o apelido já ganhou charme artístico do nome indígena). Entre os músicos que fazem parte do repertório do Trio, Calixtinho diz que não podem faltar Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Dominguinhos e muitos outros clássicos do Forró. Além deles, Marinês, ícone da música nordestina, é irmã de Seu Sussuanil e as homenagens não podem faltar na lista das melodias. Porém, viver de música não é tarefa fácil. Seu Sussú já é aposentado e dedica toda sua agenda a apresentações. Janaína ainda divide a rotina de shows com outra profissão. Professora do ensino público, começou a frequentar a Feira para dançar e se divertir. Logo, quis aprender a tocar triângulo e, tempos depois, recebeu o convite para entrar no conjunto:
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Em todos os lugares têm Forró, é uma tradição muito importante para se relembrar e transmitir
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Lampião e Maria Bonita, personalidades tradicionais da cultura nordestina
— Eu sempre gostei de frequentar a Feira, fazer novas amizades. Quando aprendi a tocar triângulo, o Sussú me contou que procurava uma mulher para completar o trio. Logo aceitei. Tento separar a música da minha profissão, a música é uma maneira de me divertir, sou realizada. Sobre o estereótipo que é vendido pela mídia em relação à música, todos concordam que o Rio de Janeiro é muito mais do que Samba, Funk e Bossa Nova. Em todos os lugares, acreditam que há espaço para outros ritmos, e com a Cidade Maravilhosa, que acolhe tantas pessoas e culturas, não poderia ser diferente: — Em todos os lugares têm Forró, é uma tradição muito importante para se relembrar e transmitir. É uma imagem errônea que as pessoas fazem, mas é muito bom ver que turistas frequentam este e muitos outros espaços nordestinos — comenta seu Sussuanil. Para quem quiser conhecer mais o trabalho dos músicos, Janaína deixa o convite: — É só chegar e dançar. Pode até pedir para cantar com a gente também, é um espaço de todos. Venham conhecer a Feira de São Cristóvão. Na ilha do Forró-Pé-Serra, é só chegar e participar!
Muito objetos nordestinos podem ser encontrados Ă venda.
Trio Levanta Poeira: Sussuanil Oliveira, JanaĂna Miranda e Calixtinho
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DESCULPE I N CO M O DA R SUA VIAGEM POR ÁGATHA SANTOS E LUIS HENRICK TEIXEIRA
FOTO: ÀGATHA SANTOS
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Legaliza
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iferentes rotinas e pessoas se encontram nos postos de BRT (Bus Rapid Transit é um sistema de transporte público baseado no uso de ônibus de tráfego rápido), trabalhadores, estudantes, crianças, idosos, adultos. Desafios são enfrentados diariamente por quem opta tornar-se vendedor ambulante. São alegrias, tristezas, histórias combinadas com originalidade que se escondem na seguinte frase: “Desculpe incomodar a sua viagem”. Por traz do carisma de Wolverine, como é chamado, D. B, que vende suas mercadorias com educação e bom humor, esconde uma história difícil de vida, trabalha desde seus nove anos de idade. Orfão de mãe e desprezado por seu pai, morava com seus tios maternos. — Eu tinha que defender meu pão de cada dia e ajudar onde morava. Vivia com meus tios maternos, mas não é a mesma coisa que ter o próprio lar. Ter uma família — diz D.B. Começou vendendo abóbora de porta em porta, depois tornou-se empacotador de bolsa em mercado, até ser vendedor ambulante, trabalho através do qual sustenta sua família: — Tenho filhos, três enteados na minha casa, pago aluguel com sala, cozinha, quarto e banheiro com o dinheiro daqui. A minha capacidade de correr atrás do meu pão de cada dia é tão abençoada que o meu marketing já fala por mim. Kit kat e M&M é R$ 2,00, o saquinho da bala é R$ 1,00 Se antes a profissão era vista de ex-presidiários, hoje qualquer pessoa que precisa se adaptar às condições e vende sua mercadoria. Simoni Montes é um exemplo. Após perder seu emprego e ganhar uma bolsa para cursar enfermagem, achou como saída a vida de camelô para poder cuidar do filho. Roberto da Silva é auxiliar administrativo financeiro e para complementar sua renda trabalha como vendedor ambulante. — Meu salário é pouco, esse trabalho informal dá muito mais dinheiro do que muitas funções aí fora. Nós movimentamos mais dinheiro que um microempreendedor e um empreendedor que tem uma loja. A relação com os clientes A falta de grandes opções de compra durante a viagem faz com que os clientes aceitem bem os ambulantes. Muitos criam vínculos e se acostumam em tê-los sempre por perto. — Os passageiros gostam da gente, perguntam quando não estamos, já ganhei até presente deles — diz Simoni. Roberto já encara a relação como tendo dois lados: aqueles que acreditam que o ambulante é ladrão e não possui um emprego digno, daqueles que apoiam e respeitam o trabalho: — Fica um nível no meio a meio. Da opinião de cada um do que é certo e errado. Wolverine enxerga de forma positiva sua relação com os passageiros: — Eu sou educado com os clientes. Como eu sou uma pessoa bemhumorada acabo quebrando o
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Os ambulantes vendem a maior parte dos produtos nos 么nibus, durante as viagens
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A questão da legalidade
FOTO: LARISSA BOZI
Atualmente, definir políticas de erradicação da informalidade tem sido um grande problema em metrópoles como o Rio de Janeiro. O Estado acredita no trabalho dos ambulantes como um “subtrabalho”, uma forma de sustento provisória que, com o crescimento da economia, se tornaria erradicado. Mera ilusão. Os produtos vendidos por estes trabalhadores também movimentam a economia das indústrias alimentícias e pequenos produtos em geral. No decreto municipal: 1876/92, o comércio ambulante é enxergado como uma política de compensação para grupos que possuem dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Deficientes físicos, idosos e ex-presidiários teriam prioridade no cadastro legalizado pela prefeitura. Porém, tal comércio só é permitido em pontos fixos e delimitados. O caráter “ambulante” caracteriza apenas a mobilidade de desmontar, montar e deslocar no final do expediente, o meio de sustento do trabalhador. Porém, o trabalho que é realizado no Rio de Janeiro não se encaixa nos moldes citados acima. Segundo a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, em 2009 foi realizado o maior cadastramento já visto na cidade. Um total de 18 mil e 400 profissionais cadastrados, entre 35 mil que compareceram às Inspetorias Regionais de Licenciamento e Fiscalização espalhadas pela cidade. Entretanto, esse cadastro se limita a ambientes de trabalho como bancas de jornais, chaveiros, ambulantes de asfalto e de praias. Os verdadeiros “nômades” que circulam de um local para o outro com suas mercadorias ainda vivem na ilegalidade, como os 16 mil e 600 que ficaram fora desta lista. Número apenas dos que procuraram o cadastramento. Muitos ainda preferem viver na ilegalidade ou não possuem condições para pagar os impostos especulados pelo Município. Há um grande abismo entre o crescimento econômico que caracteriza a provisioridade que prega o governo no trabalho ambulante e as exigências para a entrada no mercado formal de trabalho. A erradicação da prática se torna inviável enquanto grandes empresas lucrarem com a informalidade dos ambulantes. Ainda, os programas sociais e de capacitação profissional não têm sido suficientes para tirar os profissionais das ruas, ajudando, a superar a vulnerabilidade social. O cadastro realizado pela prefeitura limita o número de pessoas que podem trabalhar de forma legalizada, o que contribui para a vulnerabilidade dos ambulantes à violência, corrupção e o medo de perder as mercadorias, como é o caso de Simoni, Wolverine e Roberto. — Se a policia vir, eu tenho que circular. Por lei, eles não têm direito de meter a mão, eu tenho o certificado da compra da mercadoria (cupom fiscal) — desabafa o ambulante Roberto Silva. Delimitar espaços para esses trabalhos confronta a lógica do capital em que os vendedores precisam se manter longe de locais que realizam megaeventos. Uma demarcação urbana de terras. Dai, surge a imagem criminalizada dos trabalhadores como
ilegais, piratas, sujos, regressistas, entre outros termos preconceituosos. Como vivencia Wolverine: — Acho uma falta de respeito com o trabalhador. A gente não sai para roubar. Não estamos prejudicando ninguém, não obrigamos ninguém a comprar, muito menos os coagimos para isso. Simplesmente fazemos um comercial. As pessoas compram porque observam o nosso esforço. Leis que deveriam incluir trabalhadores restringem e os excluem das ruas.
FOTO: ÀGATHA SANTOS
Roberto da Silva trabalha no Terminal do BRT para complementar a renda.
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Vencedores
LUTAR PARA VENCER No Andaraí, projeto social de luta é criado para atender os moradores do Morro dos Macacos
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POR LARISSA BOZI
FOTOS: LARISSA BOZI
Quando eu era mais novo, antes de começar a treinar, já queria aprender artes marciais, só que não tinha onde fazer.” Essa é a fala do professor de jiu-jitsu, Lucas Dario, do projeto social de luta no Andaraí, Zona Norte do Rio de Janeiro. Cresceu no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, bairro vizinho, sempre com vontade de praticar algum tipo de arte marcial, mas não existia nenhum projeto que pudesse atender sua falta de condições financeiras. Hoje, ele é professor do projeto que ajudou a fundar. A iniciativa é financiada pela Prefeitura do Rio de Janeiro e patrocinada pelo Comitê Olímpico dos jogos 2016. O Projeto começou há dois anos, com a intenção de atender a população do Morro dos Macacos. O professor Marcio da Silva foi quem deu o pontapé inicial. Ele viu a necessidade de fornecer a esses jovens condições de praticar o esporte. — O Marcio, meu professor de jiu-jitsu, correu atrás desse Projeto, até mesmo para me ajudar a ter uma renda. Faz três anos que dou aula. Antes do Projeto começar, já atuava como professor com ele — afirma Lucas. Atualmente, a iniciativa conta com mais de 70 alunos, funcionando três vezes por semana. Às terças e quintas, as atividades começam com três turmas. Inicia-se com o infantil, às 10h, adultos, às 14h, e infantil novamente, às 16h30. Nas sextas-feiras, funciona só na parte da tarde, com uma turma do infantil e outra dos adultos. Os alunos têm chance de participar do Campeonato da Federação de Jiu-Jitsu Desportivo do Estado do Rio de Janeiro (FJJD-Rio). São cinco etapas: II Grande Mestre Hélio Gracie, Campeonato Estadual, II Copa Carlson Gracie, II Conde Koma e XI Rolls Gracie. — Por serem várias etapas, você paga por uma carteirinha uma vez. É o que os campeonatos pedem, normalmente. Então, acaba saindo mais lucrativo, pois você vai poder usar a carteirinha em outras competições — explica Lucas. O quimono é uma peça cara, que custa em média R$ 300. O Projeto não fornece para os participantes, mas o professor Lucas sempre consegue com alunos de turmas pagantes algumas peças. Assim, praticamente todos os atletas têm um.
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O Projeto é caracterizado por ensinar jiu-jitsu. No entanto, Lucas ensina também algumas técnicas de judô e um pouco da sua filosofia. Isso ajuda o aluno a lutar melhor e ter uma boa postura como pessoa na sociedade. O judô Criado por Jigoro Kano, o judô é uma arte marcial desenvolvida a partir do jiu-jitsu. Ele é baseado em três princípios: condicionamento físico, espiritual e moral. Durante as lutas, os judocas pregam o espírito de respeito ao oponente, reconhecendo a dignidade de cada pessoa. E são instruídos a agir de forma correta na sociedade para serem bons cidadãos. — Há pouco tempo, eu tive um aluno de judô chamado Guilherme — ressaltou Lucas — Ele entrou muito nervoso, agindo de maneira agressiva. Mas com o tempo, fui apresentando limites para ele. Como se comportar para melhorar seu desempenho no esporte e como pessoa. Expliquei a importância de respeitar os mais velhos, isto é, os mais graduados, da faixa branca à preta. E assim também no colégio, dentro de casa e, em outros lugares. Existe uma hierarquia a ser respeitada, que são as graduações, os pais, os tios e os avós. Assim, vai construindo o ser humano. A vida do lutador
A maior parte dos quimonos utiizados pelos alunos doprojeto são doados
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O Projeto ajuda muitas crianças e adultos a se inserirem no esporte, além de contribuir no crescimento pessoal. Pode-se perceber isso pela vida do professor Lucas. Quando era mais novo, tentou encontrar algum projeto para aprender a lutar, mas todos eram longe, até que achou um na Mangueira. No entanto, por ser muito distante e à noite, desistiu. — Continuei procurando um lugar por perto, até que soube, pelo pai de um amigo, que treinava na Equipe Tubarão. Assisti a um treino e decidi participar. Mesmo com dificuldades, insisti para os meus pais pagarem. Fomos pagando até não conseguir mais. Se houvesse um projeto social aqui antes, teria sido muito bom, pois começaria a treinar mais novo — conta Lucas. Por não ter condições de pagar, Lucas ganhou uma bolsa de 50%. Pagou durante uns meses, mas mesmo assim não conseguiu continuar, até que ganhou 100%. O seu professor Marcio procurou o Projeto justamente para ajudá-lo a ter uma renda e treinar na equipe. Hoje, ele vive da luta, trabalhando no Projeto Social. — Com dez anos de idade, meus pais se separaram e tive vários problemas na minha família. Nesse tempo, eu senti a falta de um pai. Mas hoje, na luta, eu encontrei no meu professor Marcio esse pai. O esporte me proporcionou isso, essa parte que eu tanto necessitava — afirma Lucas. O Projeto tem a perspectiva de continuar. E, assim, formar mais lutadores como Lucas, que teve a chance de contribuir para sua criação.
Crianças a partir de cinco anos podem participar do projeto
Professor Lucas Dario à frente de sua turma infantil
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Pelos trilhos de Santa Teresa POR JAQUELINE SUAREZ
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aminhar pelo bairro no qual nasceu era exercício diário que Seu Arménio iniciou após algumas consultas médicas. Por indicação de um
caediologista começou as atividades físicas e melhorou sua alimentação depois que descobriu ser hipertenso. Ele completara 74 anos, todos eles vividos na tranquilidade de Santa Teresa, Centro do Rio de Janeiro. Conhecia e contava para qualquer um, que conversasse por cinco minutos, histórias do bairro. Falava do antigo convento de Santa Teresa, que deu nome ao lugar e também do aqueduto, construído sobre os arcos da Lapa para levar água ao bairro, construção fundamental para popularizar o local. Mas seu assunto preferido eram os bondinhos, o grande encanto do aposentado. Depois de trabalhar durante anos como marceneiro, ele continuou retalhando madeira para dar forma a sua grande paixão. Produzia bondinhos em diferentes tamanhos, além de outros objetos, mas os bondinhos, na certa, eram os mais perfeitos e os prediletos para ele. O artesanato o tornou famoso no bairro, não só entre os moradores, mas principalmente entre os turistas; sua barraquinha se tornou ponto oficial dos estrangeiros.
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Cr么nica
FOTOS: JAQUELINE SUAREZ
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Esqueci-me de mencionar: a própria barraquinha na qual ele vendia os artesanatos era um bondinho, também feito por ele, mas em uma escala maior, é claro. Caminhava pelas ladeiras de paralelepípedo todos os dias, e quando o caminho se tornava cansativo esperava pelo bondinho. Quando o Bonde apontava no início da rua, as crianças começavam a correr para garantir seu espaço no estribo (piso de madeira na lateral do bonde). Era também no estribo que Seu Arménio viajava, e de onde ia conversando com um velho conhecido, Seu Nelson. Motorneiro há mais de 30 anos do bondinho, era uma figura muito conhecida e querida pelos moradores. A rotina de Seu Arménio era quase a mesma todos os dias, sempre esperando o bondinho passar na volta para a casa, no final das tardes. Ele fechava a barraquinha e sentava-se nos degraus próximos para aguardar. Porém, naquela quarta-feira, o bondinho não passou. Depois de aguardar por algumas horas, desistiu e foi caminhando em direção à sua casa. Pensara naquele instante que a circulação fora suspensa por conta de algum problema técnico. Isso não acontecia frequentemente, mas a visível falta de manutenção o levou a tal conclusão. Foi só quando estava próximo da sua rua que ouviu alguns comentários no ponto de ônibus pelo qual passou. Os burburinhos confusos falavam sobre um acidente no qual o bondinho estaria envolvido. Ninguém sabia ao certo o que acontecera, mas contavam que o trem havia perdido os freios em uma das ladeiras e se chocado contra um muro. Não se sabia quantos, mas haviam pessoas mortas e muita gente ferida. Seu Arménio mudou seu caminho e continuou descendo as ladeiras até chegar ao ponto no qual o tal acidente teria ocorrido. Não precisou chegar muito perto para confirmar a má notícia. Bombeiros e policiais que trabalhavam no socorro das vítimas isolaram o local e por isso não era possível se aproximar, mas não era necessário. Aquele bondinho com certeza era conduzido por seu amigo, Seu Nelson. A notícia foi relatada mais tarde na TV, junto à confirmação de sua morte. Naquela quarta-feira, a rotina do artesão foi mudada de forma definitiva. Ele chorou pela morte de seu amigo e de outras quatro pessoas. As ladeiras se esvaziaram, os turistas não subiram mais e as crianças não tinham mais motivo correr. O bondinho não passaria. Os trilhos foram deixados como uma triste lembrança do que faltava. O acidente sumiu dos noticiários depois de alguns dias e, mais rápido, sumiram os responsáveis. Seu Arménio nunca viu o início das obras, sequer acreditou que um dia elas começariam. Sua barraquinha foi, durante muito tempo, o único bondinho que restou em Santa Teresa. Até que as janelas fecharam e nunca mais reabriram. Seu Arménio faleceu com os trilhos em silêncio.
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A VOZ DO COMPLEXO DA MARÉ POR JAQUELINE SUAREZ
FOTO: JAQUELINE SUAREZ
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Entrevista
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om quase dois séculos de existência, as favelas cariocas ainda lutam por direitos básicos como: saneamento, saúde, educação e segurança. Ainda mais grave é a luta diária para desconstruir uma imagem destorcida que muitas pessoas possuem com relação a esses espaços e seus moradores. Naturalizouse pensar que essas áreas se reduzem apenas à violência e ao tráfico de drogas. O pior é que grande parte dessa percepção é construída ou reforçada pela grande mídia. Os veículos de comunicação dizem a todo momento que é da favela que vem o risco. Todos os dias, a TV “fala” sobre os confrontos entre a polícia e o tráfico; os Jornais estampam o número de mortos; o rádio informa sobre os tiros e pede para que as pessoas desviem o caminho. Agrava-se ainda mais quando somente isso se torna notícia. No que se refere à favela representada na mídia, é somente como protagonista da violência que ela aparece. Para ter a sua realidade representada e seu direito de voz assegurado, muitas comunidades Contraponto: Como surgiu a ideia de produzir O desenvolveram jornais, rádios ou sites comunitários. Cidadão e como foi a recepção da comunidade em Projeto importante que caracteriza não só uma luta relação ao veículo? pelo espaço de fala como também por direitos. Os veículos comunitários são produzidos em suma pelos Tati Alvarenga: A nossa equipe não participou moradores e trazem notícias da própria comunidade, deste processo, mas de acordo com informação dos temas que variam desde política ao esporte. A missão diretores do Centro de Estudos e Ações Solidárias da desses veículos é oferecer ao morador a possibilidade Maré (Ceasm), Ong que criou o Jornal, a ideia foi de narrar a sua própria história, além de garantir os de manter um elo de identidade com os moradores direitos do cidadão que mora na favela. e passar informações de dentro para dentro. O Atualmente, o Jornal O Cidadão do Conjunto resultado da recepção é a existência do Jornal até de Favelas da Maré é uma grande referência de hoje. De acordo com uma pesquisa feita dentro da mídia comunitária no Rio. O jornal é um projeto favela, a mídia mais conhecida e admirada entre os desenvolvido pelo Centro de Estudos e Ações moradores é O Cidadão, segundo Censo Maré 2010. Solidárias da Maré (CEASM), fundado em 1999 e construído por moradores a fim de ampliar e Contraponto: A proposta inicial do Jornal era criar consolidar o direito básico à comunicação. O uma identidade para o morador da Maré. Quais Cidadão circula dentro da Favela da Maré e mudanças você percebe na sua comunidade ao também pode ser encontrado online. longo desses 15 anos de história do O Cidadão? Thaís Cavalcante é moradora da Nova Holanda, A sua própria visão em relação à comunidade uma das favelas do conjunto da Maré, e também também mudou? repórter do Jornal desde os 16 anos. Estava no Ensino Médio quando conheceu o projeto e de lá para cá Thaís Cavalcante: O Jornal reforça essa não parou mais: tornou-se comunicadora comunitária. representação, afirmando nossa realidade. O termo Este ano iniciou a graduação em Jornalismo, mesmo “mareense” foi criado para dar mais pertencimento já sendo reconhecida pelo Ministério do Trabalho a quem mora aqui. A identidade o morador já tem, como jornalista profissional. Atualmente, concilia O Cidadão só continua mostrando que favelado não outros projetos além do Jornal: estagiária no deve ter medo de ser quem é. Mudanças acontecem projeto “Favela tem Memória” da Ong Viva Rio e o tempo todo e a união de moradores para lutar por correspondente comunitária do RioOnWath e do ideais está crescendo também. Viva Favela. Tati Alvarenga é jornalista formada Depois que entrei na equipe do jornal, minha visão e atual coordenadora do O Cidadão. Participa e perspectiva de vida mudaram completamente. do projeto há dois anos. Ela respondeu a algumas Percebi o quanto minha opinião reproduzia a fala questões colocadas pela CONTRAPONTO. de mídias comerciais que atacam minha favela. Entendi que tenho o poder e o dever de expor minha realidade, desejando que ela cresça, avance e não tenha seus direitos violados pelo Estado. Aprendi através de muitos projetos e pessoas como fazer um jornalismo comunitário, para resistir e mostrar que nós moradores temos força e voz. Contraponto: A violação dos direitos humanos dentro das comunidades cariocas, infelizmente, é algo comum. O Cidadão se coloca como um canal de denúncia em um ambiente de forte opressão. Houve na história do veículo algum episódio de violência ou intimidação contra a equipe e/ou jornal?
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Tati Alvarenga: Não expressamente a esta equipe, mas houve casos de jornalista comunitário especificamente. Nós somos cautelosos com as denúncias para não gerar represálias para a equipe do jornal e para os demais moradores. Contraponto: O Cidadão é produzido para o formato online e impresso. Ambos implicam em necessidade de equipe, investimento financeiro, equipamentos, dentre muitas outras coisas. Você poderia comentar um pouco sobre o processo de produção do jornal e como ele sobrevive financeiramente? Tati Alvarenga: Temos a parceria da Editora Edigráfica, que faz a impressão gratuita dos exemplares ao longo dos 15 anos de existência do veículo. Ela está localizada na entrada, na Maré. O CEASM, que disponibiliza a sala do Jornal e oferece luz, ar condicionado e água gratuitamente. Para outras necessidades, a equipe busca uma contribuição alternativa de movimentos sociais e organizações para cobrir custos, ao preparar debates, oficinas e nosso curso anual de comunicação comunitária. Conseguimos, através de editais, em 2015, os prêmios: Comunica Diversidade e Rio Ações Locais. Com isso, temos novos equipamentos e um bom planejamento para preparar o curso do ano que vem e, logo após, um congresso de comunicação comunitária. Os comunicadores do O Cidadão precisam trabalhar em outros locais para se manter, isso reflete automaticamente na produção do conteúdo do Jornal, que fica quase sempre com edições
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Thaís Cavalcante: Essa comunicação mostra como a realidade favelada é. O morador pode colocar sua voz, pode reivindicar e ter até sua história de vida publicada. A documentação da história da Maré está em boa parte dos jornais feitos por aqui. Nossa memória, nossa identidade, nossa cultura, nossa resistência. A ideia do Jornal também é a de lutar contra tais diferenças sociais e discutir ainda que temos e merecemos direitos como qualquer outro cidadão. Contraponto: Como você se envolveu com o projeto do jornal comunitário e qual foi a matéria ou cobertura mais marcante? Thaís Cavalcante: Depois que li dois livros sobre Jornalismo e história de jornalistas, meu interesse cresceu. Mesmo assim eu não sabia que caminho seguir. Minha irmã (formada em Contabilidade) sugeriu que eu fizesse parte do Jornal O Cidadão, mas eu considerava uma ideia muito distante, não achei que fossem me aceitar, por não ter experiência. Poucas semanas depois, divulgaram o I Curso de Comunicação Comunitária e foi quando tudo começou. A cobertura mais marcante foi nos dias em
FOTOS: DIVULGAÇÃO
Equipe do O Cidadão entrevista o representante da Comlurb
atrasadas. São altos e baixos, mas sabemos que dinheiro não é o foco da nossa comunicação. Contraponto: Thaís, você participa do Jornal e de outros projetos que envolvem comunicação e comunidade. A partir dessas experiências, qual a importância, em sua opinião, da comunicação comunitária para a favela e seus moradores?
Thaís Cavalcante, primeira da esquerda para a direita e Tati Alvarenga, quarta
que presenciei a chacina da Maré (23 e 24 de Junho de 2013), que resultou na morte de mais de dez moradores. Fotos, depoimentos, barulho, preocupação, mortes... Tudo foi muito intenso. Colocava informações e toda a angústia online... Contraponto: Você é correspondente comunitária em outros veículos. Poderia contar um pouco sobre a sua experiência com esses projetos? Thaís Cavalcante: A cada oportunidade de participar de cursos gratuitos sobre jornalismo e mídia colaborativa eu aprendia um pouco mais. Quando percebi o interesse de outros portais de comunicação em publicar conteúdo de moradores de favelas, vi o quanto meu trabalho poderia se expandir e alcançar outras pessoas. Alguns textos meus foram até traduzidos em inglês, alemão... Ao falar da minha realidade para um público mais amplo, recebo um retorno diferente dos leitores. E continuo com a vontade de quebrar estereótipos e mostrar o que realmente acontece na Maré, com o quê estamos realmente preocupados. E esses projetos que ensinam a cada dia a trabalhar e acreditar no que faço. Contraponto: Você fez o caminho inverso. Tornouse comunicadora, foi reconhecida pelo Ministério do Trabalho como jornalista e este ano começou a cursar jornalismo. O que isso significa para você? Thaís Cavalcante: Fiquei muito feliz, me senti
valorizada por tudo o que já conheci, trabalhei e vivenciei nesse pouco tempo de mudança. Mesmo sem esse título, eu já me considerava jornalista, pois fazia trabalhos que pessoas formadas fazem: escrever matéria, entrevistar, revisar texto, fotografar, editar, entre outras. Não acho que o jornalismo tenha se desmerecido por causa disso. Já ouvi opiniões que não concordam com esse Projeto de lei, mas quando você faz o seu trabalho, deve ser legitimado por isso. E mesmo assim, os jornalistas formados continuam tendo mais prioridade e privilégios. Preconceitos existem, mas o importante é que sei o que faço e amo, apesar de todas as dificuldades. E percebi que, mesmo cursando a faculdade, a bagagem que tenho às vezes vale mais. Contraponto: Você é envolvida com muitos movimentos que debatem e lutam pela democratização da comunicação. Essa também é uma reivindicação e bandeira de sua luta? Thaís Cavalcante: Meu desejo é que todos os veículos, portais, rádios e jornais tenham autonomia, mais força, equipe suficiente para lutar pela liberdade de comunicar e contar o outro lado dos acontecimentos. Nossa mídia é comunitária porque fala do nosso território, do nosso dia-adia, da cultura, educação, dos problemas, de modo real e não manipulado. Parece um trabalho pequeno, mas a formação é trazida com a informação. E temos colhido frutos. Eu acredito na democratização, por isso resisto!
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Artigo
DE BOA, O QUE VOCÊ PRETENDE CONSTRUIR COM SUAS PALAVRAS? TEXTO DE ANA LÚCIA VAZ, Professora de Jornalismo na UFRRJ e mestre em Jornalismo Comparado Pela USP
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e pediram um artigo sobre os recentes arrastões na Zona Sul do Rio de Janeiro. A orientação foi tentar oferecer um “retrato das ruas”. Pensei em pegar a máquina fotográfica e dar uma volta pelas ruas. Mas não saberia por onde começar. Do que se trata? Que tipo de fenômeno estamos presenciando? Não sei. Mas podemos começar exatamente por essa ideia de presente, ou presença. Há algo nas ruas que eu não enxergo. Arrisco sugerir que ninguém enxerga. Tente circular pela cidade – ou por qualquer lugar – olhando ao redor, sem conceitos prévios que definam as imagens que te surgem aos olhos. Impossível! Se alguém fosse capaz de tal proeza, talvez enxergasse o caos, talvez se sentisse cego. O que vemos são representações do que acreditamos ser real. Por isso, todo o conhecimento que temos a chance de aferir de uma experiência de presença depende de nossa capacidade de duvidar de nossas verdades. Me explico. O que realmente acontece nas ruas do Rio de Janeiro? Depende de a quem você dirija a pergunta. Meu primeiro contato com os acontecimentos do dia 20 de setembro foi através de matéria do jornal Extra. O jornal relacionava os arrastões à decisão da Justiça de proibir as apreensões preventivas que a PM vinha fazendo, impedindo centenas de jovens de chegar à praia. Pensei: sob outro ponto de vista, poderíamos relacionar os arrastões a uma resposta à ação policial em si. Li que jovens da Zona Sul resolveram “fazer justiça com as próprias mãos”, reagindo contra a violência dos arrastões. Posso pensar em jovens protegendo sua comunidade ou em “pitboys” reforçando a segregação social. Depois li sobre as injustiças sociais que geram indignação na juventude da periferia, a violência a que esses jovens estão submetidos cotidianamente, que inclui a restrição ao direito de ir e vir, não só pela ação da polícia, mas pelo próprio funcionamento e preço do sistema de transporte que se diz público.
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Também li sobre a revolta dos moradores da Zona Sul que se sentem injustiçados, impotentes frente à violência truculenta dos arrastões. Li pouco. Ando me preservando da violência simbólica que tem dominado as mídias, do jornal impresso às redes sociais. Do pouco que li, me vi às voltas com a palavra justiça. Comecei a duvidar do que entendo por justiça. Então, creio que comecei a apreender algo da experiência dos arrastões nas mídias (nas praias eu não presenciei). Descobri o problema que é a própria ideia de justiça, que autoriza odiar quem fez por onde ser odiado. E como o ódio é nosso companheiro fiel – sejamos de esquerda, direita ou centro; sejamos católicos, espíritas, camdomblesistas, evangélicos ou ateus; ricos ou pobres; homens, mulheres, trans ou intergêneros – sempre poderemos encontrar jeito de localizar o foco de “injustiça” onde depositar nosso ódio. Porque o ódio, como o amor, é uma das maneiras de definir o humano. Os arrastões não são fenômeno recente. Para datar seu surgimento, precisaríamos definir o que queremos dizer com esta palavra, o que exigiria muitas páginas. Mas pelo menos desde o início da década de 1980 os jornais noticiam “arrastões”. Mais recente que os arrastões são as redes sociais. A tagarelice das redes sociais, um espaço que tem se mostrado fértil para a proliferação do ódio. Parece que diante de um teclado nós, humanos, nos sentimos mais “livres” para expressar tudo o que há de pior em nós. Ou será que as redes estão nos aprisionando numa teia de agressividade, onde a fala mais dura, mais contundente, mais espetaculosa tem melhores chances de virilizar? Nem os arrastões, nem os “justiceiros”, nem as intolerâncias raciais e sociais são novidade em nossa sociedade. A violência também tem outros combustíveis possivelmente mais efetivos que as redes. Mas não há como pensar, entender, sequer enxergar o que se passa nas ruas, hoje, sem refletirmos sobre o espelho horrendo de nós mesmos que as redes nos oferecem.
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