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GILMAR DE CARVALHO

CEM PATATIVA



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Copyright 2010 © Gilmar de Carvalho Luís-Sérgio Santos coordenação Arnaldo Santos Editoração José Raimundo Capa Foto de Thiago Santana Fotos Jarbas Oliveira, Thiago Santana Revisão Priscila Peres Diretor Editorial

Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido por nenhum meio mecânico ou eletrônico, incluindo fotocópia, scanner, duplicação ou distribuição via internet, sem autorização escrita do editor.

FICHA CATALOGRÁFICA ORGANIZADA PELA BIBLIOTECÁRIA MADALENA FIGUEIREDO

C 331g

Carvalho, Gilmar de

Cem Patativa/ Gilmar de

Carvalho — Fortaleza: OMNI Ed., 2009 214p.

ISBN 978-85-88661-32-5

1. .Patativa de Assaré, entrevista

2. .Cultura Popular

O m n i

E d i t o r a

CDD:

A s s o c i a d o s

Rua Joaquim Sá, 746 n CEP 60.130-050 Fortaleza, Ceará, Brasil n Fones: (85) 3247.6101 e (85) 3091.3966 n e-mail df@fortalnet.com.br www.omnieditora.com.br

Lt d a .


Sobre o Autor

G

ilmar de Carvalho

foto lizaldo

nasceu em Sobral - Ce, em 1949. É Bacharel em Direito (1971) e em Comunicação Social pela UFC (1972). Professor do Curso de Comunicação Social da UFC desde 1984. Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (São Bernardo do Campo, 1991) e Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo (1998). Autor de Publicidade em Cordel (São Paulo, Maltese, 1994), sua dissertação de Mestrado, e de Madeira Matriz (São Paulo, Annablume, 1999), sua tese de Doutorado, Prêmio Sílvio

Romero, neste mesmo ano. Foi Prêmio Érico Vanucci Mendes (CNPq), também em 1999. Publicou Patativa do Assaré (Fortaleza, Fundação Demócrito Rocha, 2000), Manoel Caboclo (São Paulo, Editora Hedra, 2000) e Desenho Gráfico Popular (São Paulo, IEB/USP, 2000). Organizou e prefaciou a Antologia Poética de Patativa do Assaré (Fundação Demócrito Rocha, 2001). Pela coleção Outras Histórias, do Museu do Ceará, publicou Xilogravura – Doze Escritos na Madeira, em 2001. Tem artigos publicados em revistas acadêmicas no Brasil (Comunicação e Sociedade, Comunicarte, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Ângulo, Leitura: Teoria e Prática, Moara) e no exterior (L’Aleph, de Lyon – França).


Ao Dr. Gilmar de Carvalho Doutor Gilmar de Carvalho, Eu gostei do seu trabalho, Estou bastante feliz, Com a pena milagrosa Você retratou em prosa Tudo o que em versos eu fiz

Um poeta agricultor Que só teve um professor, O Santo e Divino Mestre, Com a lição soberana Nesta Serra de Santana, Meu paraíso terrestre

Sua honrosa reportagem Merece a minha homenagem, Porque vejo o bom amigo Com seu trabalho distinto, Sentir aquilo que eu sinto, E acreditar no que eu digo

Quando ouvi a sua escrita Bem verdadeira e bonita, Fiquei de tudo bem certo, Por onde Deus me guiava Você também caminhava Me observando de perto

Vejo que o grande escritor É grande pesquisador Que acerta e nunca se engana, Naquelas eras passadas Andou nas minhas pegadas Lá na Serra de Santana

O que o amigo escreveu Bastante me comoveu, Me fez até recordar A sensação que eu sentia De alegria quando ouvia A passarada cantar

Por Jesus predestinado, Depois de ter estudado, Cursos e mais cursos fez E foi da Universidade Falar da simplicidade De um poeta camponês

Você me fez renascer E eu preciso agradecer Com a simples poesia De um poeta de mão grossa Que sempre tirou da roça O seu pão de cada dia


Vejo que por sua vez Retratou um camponês, Um caboclo do roçado Que com sentimento nobre Cantou defendendo o pobre Que vive subordinado

Porém não vou tratar mais De currais eleitorais, De palanque e de eleição, Não vou entrar nesse assunto Não quero arrancar defunto Pra fazer assombração

Tudo o que disse o amigo No seu precioso artigo É uma pura verdade, Me veio até a lembrança Do meu tempo de criança Aos setenta anos de idade

Disse a verdade real, Vou fazer ponto final E quero neste momento Para cumprir meu dever Com amor oferecer O meu agradecimento

De tudo o amigo falou, Vejo que nada faltou, Além do tema rural, Falou até sobre a crítica Que eu fazia da política Na campanha eleitoral

Tenho oitenta e nove anos Mas não mudei os meus planos, A lucidez e a noção, Tudo quanto é bom me inspira Receba da minha lira O papel de gratidão

Patativa do Assaré


Sumário Patativa – Uma história de vida – 21 Destino Atalho Iniciação Voz Enlace Vida Cordel, cordéis Poeta do povo Poder Mídia e academia Cotidiano O mito Posfácio

entrevista Patativa no original – 45 Prefácio à 2ª edição Viva Voz Entrevista — Lado A Entrevista — Lado B

Patativa do Assaré — Pássaro Liberto – 115 Tirando o chapéu Oralidade e Indústria Cultural Patativa do Assaré: memória e poética O oral e o escrito em Patativa do Assaré Patativa e Juvenal Galeno: o encontro da vida inteira Patativa e a reinvenção de utopias O poder de Patativa Patativa do Assaré: natureza e cultura Poesia e liberdade: canto de trabalho Patativa e a comunidade poética da Serra de Santana Lira Patativana O rondó romântico e a tradição popular O cânon de Patativa O sertão: Guimarães Rosa e Patativa do Assaré Brincando de poesia Memórias da Cantoria Folhetos de Patativa do Assaré Obra sempre cantou o mundo acima dos rótulos O crime de Cariús


Bibliografia e Referências Bibliográficas – 197 Discografia – 201 Cronologia – 203 Anexos – 209 Carta de Patativa a José Alcides Pinto Cordel – A morte de Artur Pereira



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Patativa Uma história de vida

Destino

“A Serra de Santana para mim... Eu posso dizer que é o meu paraíso, viu?”

E

ra

início

de

noite de uma segunda-feira quando uma multidão se ocupou em frente ao número 27 da rua Coronel Pedro Onofre, em Assaré. A angústia que tomava conta da cidade durante os últimos dias tinha chegado a seu desfecho. Acabara de ser anunciada, por volta das 19 horas, no telejornal da TV Verdes Mares, afiliada da TV Globo, a confirmação da morte do poeta Patativa do Assaré. Os órgãos de imprensa, por sinal, acompanhavam atentos desde os últimos dias, inclusive com o envio de correspondentes, o estado de saúde de Patativa. Havia piorado no sábado anterior e já sofria há dias com uma pneumonia dupla, uma infecção na vesícula e problemas renais. A causa oficial da morte foi

falência múltipla de órgãos. Era 8 de julho de 2002. Dia em que Patativa, aos 93 anos, partiu. Começaria uma noite de choros, orações e homenagens ao filho mais ilustre daquela terra. Revisitando aqueles dias de angústia através das edições dos jornais da época, pode-se ter dimensão da importância do poeta. Na mesma noite, a Folha de S. Paulo, jornal mais importante do país, dedicava, em sua edição online, uma matéria sobre Patativa, identificando-o como “um dos maiores nomes da poesia popular do país”. O Diário do Nordeste trouxe na capa a manchete em destaque: “Triste partida. Morre Patativa”, seguida dos versos “Quando eu cheguei neste mundo / Você já matava gente / Eu guardei na minha mente / Sua força e seu rigor / Porém me faça um favor / Para ir ao campo santo / Não me deixe sofrer tanto / Morte, me mate sem dor”. Já o jornal O Povo também deu destaque na manchete “O voo do Patativa”, além de trazer

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uma xilogravura, assinada por Rafael Limaverde, e os versos “Hoje estou bem diferente / Minhas dores são fatais / Chegando os dias finais / Irei pra eternidade / Não sei se deixo saudade / Mas falta deixo demais”. O jornal dedicou ainda um editorial intitulado “Canto Telúrico”, onde, entre os votos de pesar, afirmou: “Se o homem por si só é um mistério, o que dizer de um representante da raça que assume a condição de fio intercomunicante a ligar o inefável ao húmus fertilizante da palavra? Difícil dizê-lo”. O jornal trouxe ainda um caderno especial. Nele, vinham em destaque alguns depoimentos, como o do cantor e compositor Fagner: “Agora vão descobrir que ele não era só um grande poeta popular nordestino, mas um dos mais importantes poetas brasileiros contemporâneos”. O então secretário de Cultura do Estado do Ceará, Nilton Almeida, também lamentava: “É duro falar de morte. É muito triste porque ele deixa de estar entre nós, mas o cearense tem que analisar esse momento pela produção que ele deixou, de reflexão, de denúncia. Ajudou a melhorar nossa auto-estima”.

O Brasil acabara de ganhar, no dia 30 de junho, o quinto título mundial de futebol após uma vitória de 2 a 0 sobre a Alemanha. Preparava-se para a eleição presidencial mais empolgante da história do país, que elegeria Lula, a quem Patativa apoiara em campanhas desde 1989. Já o Ceará, viveria a eleição mais acirrada de sua história para o Governo do Estado, onde Lúcio Alcântara derrotaria, em segundo turno, José Airton Cirilo, por uma diferença de 0,01% dos votos. O Povo e Diário do Nordeste mostraram, na edição do dia 10 de julho, o desembarque de uma série de políticos e autoridades que se esforçavam por serem fotografados ao lado do poeta. Alguns, velhos coronéis da política local, a quem Patativa sempre tinha sido crítico. Da esquerda à direita, era impossível definir se o que se via era oportunismo ou honestas homenagens. Às 17 horas, no cemitério São João Batista, na cidade de Assaré, o poeta foi sepultado ao som da cantoria de João e Pedro Bandeira e João Granjeiro. Mas longe estava de chegar ao fim a história que começara a 93 anos.

atalho “Quem quiser seu amigo, não fale mal do Assaré!”

E

ra uma sexta-feira. Lua crescente. Seria cheia no domingo, 7, dedicado aos santos Virgílio, João José da Cruz e Teófilo, no calendário da igreja. Dia 5 de março de 1909. O observatório Meteorológico de Quixeramobim, “montado e conservado pela Repartição Geral dos Telegraphos”, em 1896, não registrou chuvas nesse dia, e a perspectiva de um ano de seca deveria trazer muitas preocupações para todos,

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inclusive para os agricultores da Serra de Santana, a 18 km de Assaré. Depois de um carnaval que não aconteceu, em sua folia dionisíaca, e de receber cinzas na cerimônia do dia 3 de março, o que se poderia fazer era cobrir os santos de roxo durante a quaresma e esperar pela festa de São José, passagem do equinócio, quando a situação se definiria de vez. Foi nesse contexto que nasceu o menino Antônio, segundo filho (dos que se criaram) de


Pedro Gonçalves da Silva e de Maria Pereira da Silva, em hora que ele não sabe precisar, com o Sol em Peixes, a Lua em Leão, Mercúrio e Vênus em Aquário, Marte e Urano em Capricórnio e Júpiter em Virgem. Para os que acreditam que os astros podem ter um papel determinante na vida das pessoas, seria alguém marcado pela espiritualidade, idealista, com sensibilidade, dedicação a uma causa, amor pela humanidade e uma fantasia privilegiada. Não foi possível localizar um exemplar de jornal cearense que tenha circulado naquele dia. Os jornais não circulavam todos os dias e algumas coleções presentes em arquivos públicos estão incompletas. Eram dias em que o noticiário estampava a morte, vítima de tuberculose, do piedoso Frei Abraão, capuchinho do Coração de Jesus, anúncios das pílulas purgativas do Dr. Mattos e do vinho de missa vendido na Casa Albano. Governado por Afonso Pena, cujo destaque era o trabalho do marechal Rondon, o Brasil viveria naquele ano a campanha civilista de Rui Barbosa, após a morte de Pena e a posse de seu vice, Nilo Peçanha. As notícias sobre o Nordeste, em jornais do eixo Rio - S. Paulo, pareciam sempre as mesmas, como o destaque do Jornal do Commercio, de São Paulo: “Situação desalentadora do Estado do Rio Grande do Norte, vitimado pela seca”. Enquanto isso, em Assaré, nascia um menino chamado Antônio. No Ceará, existiam, nessa época, 82 municípios (atualmente são 184), sendo 28 cidades e 54 vilas. Assaré era uma dessas vilas desde 1865, quando havia se desmembrado de Saboeiro. Administrada desde 1904 pelo Intendente Pedro Pereira Tamiarana, não elegera deputados à Assembleia. Não existia médico na vila. O mais próximo à assistência médica era o farmacêutico Ildefonso Camapum, ainda assim prático, algo proibido por lei hoje. No campo da fé, o papa era Pio X, e o pároco de Assaré, Francisco Silvano de Souza, foi quem batizou o menino Antônio, no dia 25 de abril daquele ano. Mesmo assim, seriam precisos mais de oito anos para

que ele fosse registrado em cartório, o que só aconteceu no dia 26 de junho de 1917. Para que se tenha noção do isolamento de Assaré, as malas dos Correios eram expedidas da capital, Fortaleza, para a cidade somente às segundas-feiras, às 3 da tarde, sendo recebidas pela agente postal Maria Theobaldina Freire. O trem, que partia da capital, só chegava até Senador Pompeu. Falar de eletricidade é viajar no tempo para um futuro ainda distante. No Assaré, que, etimologicamente, significava atalho, antigo desvio do caminho das boiadas dos Inhamuns para o Piauí, tudo devia correr sem maiores novidades, com a mesma morrinha de sempre, de acordo com os almanaques da época. Antônio Gonçalves da Silva teria a mesma sina de tantos outros que trabalharam a terra, casaram, tiveram filhos e deixaram poucas marcas, não fosse a excelência de uma produção poética que surpreende pela possibilidade de novas descobertas e angulações. O menino teve um diferencial que ajuda a compreender sua altivez, sua dignidade e sua preocupação social: era filho de pequenos proprietários rurais. Seus pais, na Serra de Santana, não estavam submetidos a regimes feudais, tipo meia ou quarta, onde o dono da terra fica com a parte do leão. Essa terra, dividida entre os cinco filhos ( José, Antônio, Joaquim, Pedro e Mercês), após a morte do pai, quando Antônio tinha apenas oito anos, dá a exata dimensão de um compromisso com o trabalho do campo, que o futuro Patativa praticaria até os setenta anos, um dado que vai ser fundamental para a compreensão do homem e do poeta. Antes disso, já havia passado pelo drama da perda de um olho. Na autobiografia, ele fala em dor nos olhos, em outros, faz referência ao sarampo. “Que diferença faz? O importante é que perdi um olho”. Na busca de um nexo, que pode até ser forçada, esse fato poderia ser a premonição de um destino, como se ao pequeno Antônio coubesse manter a tradição de um Homero sertanejo, ser uma projeção de Camões ou ter a grandeza do violeiro Aderaldo, o contemporâ-

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neo que ele não chegou a conhecer, na antecipação de uma cegueira definitiva que viria muitos anos depois. O mundo da infância se resumia à Serra, que ele relembrava sempre como densa de verde, aos poucos devastada para a agricultura e para a construção de casas. A Serra era seu ideal de paraíso, para onde fugia quando cansava de Assaré. É lá que está guardada a maior parte da casa de parede de taipa onde nasceu. Hoje, mora o irmão mais novo, Pedro Gonçalves da Silva (Pedro Mariô) e ainda mantêm os silos que armazenavam a colheita e o fogão de lenha. O tempo de escola foi escasso, tendo frequentado apenas alguns meses de educação formal. Segundo as lembranças de Patativa, o professor “era muito fraco”. Os livros eram os de leitura de Felisberto Rodrigues Pereira de Carvalho, editados, a partir de 1892 (até 1959), pela Livraria Francisco Alves, e que disseminaram as letras pelo interior do Brasil. Dessa época, ficaram retidas na memória do poeta as leituras coletivas de folhetos de cordel e o ponteio das violas que se perfilavam para a peleja. O menino Antônio, deslumbrado com a

possibilidade da inventiva que se lhe abria, tomava consciência de que também seria capaz de improvisar uns versos ou extrair das cordas a musicalidade e a agilidade que engendram as modalidades do repente. Nascia a vocação poética, amadurecida ao longo de uma vida inteira. Nos guardados do pai, ele descobriu um gracejo feito para insultar um parente sovina: “José Pereira da Silva / Vive aqui com ar de morto / Vendendo cachaça ruim / Dizendo que é vinho do porto / E quando a casa desaba / Vai catar preguinho torto”. Da mãe, as lembranças são maiores (ela viveu 83 anos, tendo morrido em 16 de outubro de 1968) e incluem uma voz nostálgica que entoava uma canção da tradição popular, uma versão de “Asa Branca”, que, algum tempo depois, retrabalhada por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, ganharia a condição de manifesto social e estético do Nordeste. A Serra de Santana foi muito mais um espaço afetivo, do domínio da memória. Ela cristalizou não apenas o paraíso, mas uma concepção de terra partilhada, um ideal solidário de uma comunidade cristã, que se aliava a um socialismo utópico na explicação do mundo.

Iniciação “Quando eu tava dentro dos oito anos, eu vi uma mulher lendo um folheto de cordel. Eu fiquei maravilhado. Fiquei encantado mesmo. Ali, naquele momento, me despertou o dom da poesia.”

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jovem Antônio Gonçalves da Silva ganhou a primeira viola aos dezesseis anos, presente de sua mãe, que, convencida por ele, decidiu vender uma cabra para

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comprar o presente do filho. “Pedi a minha mãe para vender a minha cabra e comprar essa viola. E ela, muito amorosa, muito carinhosa, fez o meu pedido”. De viola em punho, Antônio buscaria os parceiros para suas apresentações. Fazia “versinhos que serviam de graça para os


serranos”, como ele avaliaria anos depois. Começa, nessa fase, uma série de pedidos para apresentações nos sítios das redondezas, nas festas de casamento e aniversários, nas reuniões à noite, não em volta das fogueiras, como nas vigílias medievais, mas nos alpendres das casas, nos terreiros, nas noites de luar. Ainda aprendiz de repentista, dava sinais de que usaria a viola não apenas como passatempo. É dessa fase que o jovem Antônio iria fazer sua primeira grande viagem, conhecendo o mundo além da Serra de Santana. Numa visita à família, José Alexandre Montoril, o Cazuzinha, parente próximo, se encantou pelo improviso do jovem e quis levá-lo para uma temporada na Amazônia. Vencida a resistência da mãe, ele partiu com o compromisso da volta. Em tempo em que as distâncias parecem cada vez mais curtas e as fronteiras se pulverizam como hoje, deve ser difícil imaginar as dificuldades de chegar a Fortaleza, depois de pegar o trem no Crato e embarcar num velho Ita (o Itapajé), como na canção popular. Da mesma forma, é impossível imaginar o impacto do mar e de tantas águas para quem saía de um sertão castigado pelas secas. Antônio chegou a Belém fazendo versos bem-humorados e, provocado pelo jornalista cratense José Carvalho de Brito, aí radicado e tabelião de um cartório, foi capaz de lhe dar uma resposta afiada. Perguntou-lhe Carvalho: “Você que agora chegou / Do sertão do Ceará / Me diga que tal achou / A cidade do Pará?” O jovem poeta não se fez de rogado: “Quando eu entrei no Pará / Achei a terra maió / Vivo debaixo de chuva / Mas pingando de suó!” A partir daí, foi visitar Macapá e cumpriu o roteiro das “colônias” de nordestinos, que se estabeleciam às margens da ferrovia, hoje desativada, entre Belém e Bragança, e lá, cantando com muitos conterrâneos que, fugindo das secas, tentavam uma vida melhor. O parceiro mais constante ou o das lembranças mais fortes foi Rufino Galvão.

Sensível e antenado, José Carvalho de Brito, ao ouvir o canto mavioso do jovem Antônio, assim escreveu no livro “O matuto cearense e o caboclo do Pará”, lançado em 1930 e reeditado pela UFC em 1973, referindo-se a Montoril: “lá encontrou um cantador e tocador de viola, autêntico e dos bons, apesar de ter apenas 20 anos de idade. É o Antônio Gonçalves, já crismado por Patativa”. Pode-se dizer que era o primeiro registro do talento do poeta, já chamado de Patativa. Depois de uma temporada de cinco meses na Amazônia, na volta ao Ceará e de passagem por Fortaleza, portando uma carta de apresentação para a doutora Henriqueta Galeno, se encontra com o velho Juvenal no casarão da rua General Sampaio. “Já bem velhinho, com a barba grande, bem alvinha a barba dele. Também com as vestes brancas e a rede branca. Tudo era alvo, parecia uma visão. Eu passei foi tempo olhando pra ele”. Sobre esse encontro, Patativa improvisou: “Sei que há muitos poetas / Uns grande e outros pequeno / Brancos, mulatos, moreno / Porém não há um na terra / Como o Juvenal Galeno”. Era o encontro de duas atitudes diante de uma poesia de dicção popular: o velho Juvenal, que se baseara nos cantos de vaqueiros e jangadeiros, por sugestão de Gonçalves Dias, a quem conhecera quando da Comissão Científica de Exploração, em 1859, e o jovem poeta Patativa, que não utilizava essa linguagem como uma opção estética, mas como fruto de uma vivência. Finda a viagem, Patativa voltou à Serra, ao trabalho no campo e ao roteiro das improvisadas apresentações, até incorporar a seu epíteto de pássaro sua procedência geográfica, dada a profusão de patativas, incluindo o cantor Augusto Calheiros, seresteiro de grande sucesso neste período, conhecido como a “a patativa do norte”. A partir de então, o jovem Antônio Gonçalves da Silva passou a ser chamado de Patativa do Assaré.

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Voz “Porque na novela Renascer tem eu cantando um poema cujo título é ‘Lamento de um Nordestino’. Aí eles filmaram. Ficou uma coisa bonita.”

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evisitando a vida de Patativa do Assaré, entre os anos de 1930 e 1955, há uma espécie de vácuo de registros, em que a obra, sem holofotes, reconhecimentos ou aplausos, parece ter ficado restrita aos seus conterrâneos. Nesse período, pode-se afirmar que a poesia de Patativa foi difundida pela transmissão oral. Não se pode perder de vista a importância das cantorias que fazia, dos parceiros que subiam a Serra apenas para encontrá-lo e da semente

da comunidade poética que ele plantou e que floresceria tempos depois. São dessa época, a parceria com João Alexandre, seu rival em várias apresentações, cumprindo o roteiro que abrangia um raio mais amplo, incluindo cidades da região centro-sul e outras da fronteira com a Paraíba e Pernambuco. Outros parceiros menos frequentes foram Anacleto Dias e Miceno Pereira, ambos de Assaré; Vicente Granjeiro, de Várzea Alegre; o lendário Andorinha, da Serra de Quincuncá (etimolo

Enlace “Meu casamento com Belinha, foram 58 anos de união.”

E

m 1936, Patativa se casou com Belarmina Paes Cidrão, a dona Belinha, companheira amorosa (“Eu, rude bardo, uma paixão cantava / E lhe julgava nos meus doces cantos / A camponesa, minha preferida / Para a vida consolar meus prantos”). Morta em 1994, aos 80 anos, tema que sempre emocionou o poeta. Desse casamento, nasceram nove filhos, dos quais sete ainda são vivos: as três mulheres, que inspiraram o poema “Minhas filhas”, onde coruja declarava que: “fico confuso sem saber das três / Qual a mais linda e qual a mais eu quero

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/ Se é Miriam, se é Lúcia ou se é Inês” concluindo sabiamente que: “as três filhas que eu tenho é uma só”. Dos filhos, três (Afonso, Pedro e Geraldo) se tornaram agricultores como o pai, enquanto João foi morar em São Paulo. Um deles, Raimundo, morreu fazendo com que o pai produzisse um soneto cuja publicação ele nunca permitiu. Patativa também perdeu uma filha, Maria Maroni. Segundo o depoimento emocionado da filha Miriam, o pai era rigoroso: “Ele não era muito carrasco não, mas também era seguro, não sabe? Ele não deixava a gente sair. A gente sempre era na roça com ele, trabalhando, às ve-


zes havia brincadeira, mas ele sempre não deixava a gente sair pra se divertir, não”. Da casa na Serra de Santana, o casal partiu para morar em Assaré no final da década de 1970 (“Minha Serra de Santana / Meu pedacinho de chão / Lá ficou minha choupana / E o meu pé de framboão”). Lá, se instalou à rua Coronel Pedro Onofre, 27, ao lado da Matriz de Nossa Senhora das Dores, já que dona Be-

linha, muito religiosa, queria a proximidade de uma igreja para fazer suas orações. Matriz cuja torre se divisa da estrada à medida que Patativa cantou em alguns poemas, de maneira afetiva mas sem deixar de reconhecer suas mazelas: “Tu não pissui calçamento / Nem coléjo, nem vinida / Tu também não tem cinema / Também não tem hospitá / Veve preso nas argema / Sem ninguém te liberta”.

Vida “Porque o camarada viver sem audição e sem visão, só com a memória, a lucidez e o pensamento é muito desagradável, mas é o jeito.”

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uem anda pela feira do Crato vê uma babel de pregões, com suas rapaduras escuras, seus apetrechos de couro, seus móveis com desenho popular, suas ervas, farinhas d´água, plásticos, bugingangas made in China. Ainda hoje tem um caráter de festa. Na década de 1950, às segundas-feiras, era então o grande centro comercial do Cariri, atraindo pessoas de Pernambuco ao Piauí. Para Patativa, a feira era a possibilidade de vender sua produção. Esses passeios sempre rendiam uma visita à rádio Araripe, onde declamava seus poemas. A rádio, ligada aos Diários Associados, havia ali se instalado em 1946, trazendo as ondas do maior conglomerado de comunicação do país. Foi em uma dessas manhãs de feira que o “cratense”, mas, na verdade, natural do município de Araripe, José Arraes de Alencar, filólogo e funcionário do Banco do Brasil, radicado no Rio de Janeiro, ouviu um poema no programa apre-

sentado por Teresinha Siebra. Gostou muito e quis saber de quem se tratava: “de um poeta de Assaré, chamado Patativa” foi a resposta. José Arraes fez questão de conhecê-lo e fez chegar à rádio o recado para que ele passasse por sua casa. A proposta veio incontinenti: a publicação de um livro. Patativa, desconfiado, agradeceu e disse que não tinha meios para bancar os custos. Arraes se comprometeu a negociar com a casa editora e tratou de montar o esquema para ter logo os originais preparados, convencendo Moacir, também funcionário do Banco do Brasil, filho do lendário Leonardo Mota, a datilografar os poemas. Negócio firmado, todos os dias de feira, Patativa se encontrava com Moacir e o livro começava a ganhar forma, aos jorros, como uma fonte que nunca se esgota. Com prefácio e glossário de Arraes e o selo de Borsoi Editores (Rio de Janeiro), Inspiração Nordestina foi lançado, em 1956. Outro momento em que o rádio acabou sendo fundamental para a trajetória de Patativa

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foi que, graças a ele, uma de suas composições, “Triste Partida” (Patativa reconhecia de forma relutante a parceira com João Alexandre, a quem atribuía a melodia), chegou a Luiz Gonzaga, já uma “estrela” consagrada na Indústria Cultural brasileira. Um dia, enquanto uma dupla cantava a música, quem captava essa emissão e se emocionava com essa toada era Luiz Gonzaga. Ele logo quis saber quem era o autor daquele canto dolente e, mais que isso, quis conhecê-lo. Soube que se tratava de Patativa do Assaré e marcaram um encontro no Crato, proximidade de sua terra natal, a então violenta cidade de Exu, onde as famílias Alencar e Sampaio travava uma espécie de “vendetta” versão nordeste. No dia marcado, Luiz quis comprar a gravação, algo comum na época. Patativa se recusou, peremptoriamente, até a dividir a parceria, mas concordou com a gravação, que veio em 1964. A “Triste Partida” se incorporou ao repertório do “filho de Januário”, e o canto de Patativa passou a ser amplificado nacionalmente. Aliás, o velho “Lua” era referência de uma expressão nordestina para Patativa: “Ninguém se lembra de praga / Nem de fome, nem de peste / Quando escuta no nordeste / A voz de Luiz Gonzaga”. Em 1970, a trajetória de Patativa ganhou um grande impulso com a publicação de Novos Poemas Comentados: “Esse livro eu não posso dizer que ele é meu, porque o comentarista do livro é o J. de Figueiredo Filho. A poesia é toda minha, mas o livro foi apresentado por ele”. O folclorista Filgueiras Sampaio foi seu primeiro anfitrião em Fortaleza, circulando com ele por cantorias, promovendo suas apresentações e incluindo-o em seu ABC do Folclore, publicado no início dos anos 70. Dois fatos, acontecidos em 1973, deixaram sequelas: um atropelamento, em Fortaleza, na avenida Duque de Caxias, praça coração de Je-

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sus, que comprometeu uma perna e lhe faz usar uma muleta até hoje. Sua recuperação implicou uma viagem ao Rio de Janeiro e uma internação no Hospital São Francisco onde, mesmo doente, tinha tempo para poetar e instigar as freiras reclamando da comida sem sabor: “E achando que ainda não chega / A nossa grande aflição / Tirou também a mantêga / De botar no nosso pão”. Chamando a atenção por reclamar da dieta hospitalar, disse que estava reclamando do santo patrono da casa de saúde, na melhor tradição do pícaro. Outro fato importante foi a apropriação de um de seus poemas, que lhe rendeu uma notoriedade que ele preferiria ter evitado. Seu Vaqueiro (Eu venho derne menino / Derne muito pequenino / Cumprindo o belo destino / Que me deu Nosso Senhor / Eu nasci pra sê vaqueiro / Sou o mais feliz brasileiro / Eu não invejo dinheiro / Nem diploma de dotô”), musicado por Raimundo Fagner, foi incluído como “Sina”, no disco Manera Fru-Fru, cuja autoria não lhe fora atribuída, mesmo com o lançamento em CD, quase 25 anos depois. O affaire lhe rendeu, posteriormente, a amizade com o compositor de Orós, o que redundou na gravação, em 1980, de “Vaca Estrela e Boi Fabá” (“Eu tinha um cavalo bom / Gostava de campeá / E todo dia aboiava / Na portêra do currá / Ê, ê, ê, ê, Vaca Estrela / Ô, ô, ô, ô, Boi Fubá”). Esse registro sonoro lhe causou mais aborrecimentos porque havia autorizado sua gravação por Luiz Gonzaga que, não tendo sido feita no tempo aprazado, provocou uma carta de Patativa ao “rei do baião” desfazendo o acordo. Com Fagner, Patativa fez apresentações em conjunto (Festival de Verão do Guarujá, Memorial da América Latina) e foi homenageado, em forma de música, por “Passarim de Assaré”, parceria de Fagner com Fausto Nilo.


Cordel, cordéis “Meu cordel, já tava com ele todo retido na memória e passava para o papel somente para poder mandar para a gráfica, viu?”

P

atativa tinha uma certa rejeição ao folheto de cordel. Parecia a ele muito frágil, perecível e, principalmente, suporte de narrativas pouco consistentes ou engajadas. Vale ressaltar a importância recorrente do livro, no campo da criação tradicional popular. Todos sonham em chegar ao livro, como objeto revestido de aura, prestigiado, que daria ao poeta um outro estatuto e o colocaria em outro patamar. São frequentes os exemplos de cordelistas que reuniram em livro sua produção de folhetos. Pode-se dizer, sem medo de cair em generalizações apressadas, que todos os que puderam recorreram a esse expediente, do piauiense Hermínio Castello Branco, autor da Lyra Sertaneja, nas últimas décadas do século 19, ao Cego Aderaldo, que ditou seus poemas ao folclorista Eduardo Campos, nos anos de 1960, passando por expoentes de todos os Estados brasileiros, em contextos diferentes. Patativa fazia questão de distinguir o poeta do que ele chamava de “versejador”, categoria na qual ele incluía os poetas de bancada, com poucas exceções, como Expedito Sebastião da Silva (1928-1997). Essa ideia pejorativa do folheto de cordel não o impediu, no entanto, de ter feito alguns folhetos e de ter autorizado a republicá-los pelo projeto editorial da Secretaria da Cultura, em 1993, que reuniu, em uma caixa, parte de sua produção em formato de cordel, composta por 13 folhetos. A caixa, editada com o apoio da Prefeitura de Juazeiro do Norte e da Universidade Regional do Cariri (Urca), foi produzida na Lira

Nordestina, com capas em xilogravuras cortadas especialmente para essa edição e o cuidado em mater a feição original, com o recurso à composição manual, uso do papel jornal e manutenção do formato padrão. Foi relançada com o título Cordéis, pelas Edições UFC, em 1999, quando da entrega do título de Doutor Honoris Causa ao poeta, em outubro daquele ano, e relançada em 2006 com o título de Cordéis e outros poemas, e incluído na lista dos livros para o vestibular da UFC (2007/2008). Alguns folhetos ficaram de fora, por terem sido perdidos, como “O diabo tolo” ou “A morte de Artur Pereira”, em função da precariedade do suporte e da falta de zelo de Patativa com sua própria produção. Existe a probabilidade de alguns desses e de outros folhetos (como “O Vício da Embriaguez”) constarem da coleção do pesquisador professor Átila de Almeida, adquirida pela Prefeitura de Campina Grande e em fase de catalogação para ser aberta à consulta pública. Patativa fez folhetos de encomenda, como as Glosas sobre o comunismo, publicado em 1946, quando o Partido Comunista esteve na ilegalidade e participava do processo eleitoral, para desespero da Igreja Católica, que, por intermédio do padre David Moreira, capelão da localidade de Santa Tereza (hoje, Altaneira, vizinha a Assaré), fez a encomenda ao poeta dos versos desenvolvidos a partir de motes como “Quem apóia o comunismo gosta do diabo também”, “O comunismo fatal não queremos no Brasil” e “O regime comunista é contra a religião / Na doutrina de Lênin, só reina a imoralidade”, dentre outras.

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Avaliando, anos depois, aquela produção, Patativa sugeria não ter tido alternativa senão escrever o folheto, em período que a Igreja tinha enorme poder de pressão sobre a sociedade, mas nunca esboçou qualquer ideia de exclusão desse folheto do corpo de sua produção. Em Inspiração Nordestina, ele tentou inverter o mote e improvisou: “A nossa crise fatal / Cada dia mais aumenta / O pobre já não aguenta / Esta opressão atual / O peso deste costal / É carga pra mais de um trem / Isso assim não nos convém / O povo está revoltado / Coronel, tenha cuidado / Que o comunismo vem aí”. O “Padre Henrique contra o Dragão da Maldade”, sugestão de dom Helder Câmara, que enviou emissário ao Assaré para fazer a encomenda, tratava do assassinato de um jovem padre da Igreja progressista, que trabalhava com o arcebispo de Recife e Olinda, com requintes de crueldade, pelas forças da repressão: “Estava o corpo do padre / De faca e bala furados / Também mostrava ter sido / Pelo pescoço amarrado / Provando que antes da morte / Foi bastante judiado”. Patativa assinou o folheto, o que poderia ter-lhe trazido consequências, como aconteceu quando ele foi ameaçado de prisão, com mandato que foi relaxado, por conta do poema “Caboclo Roceiro”. A “Triste Partida” trazia a letra da música que falava do êxodo do nordestino por conta da seca: “Passou-se setembro / Outubro e novembro / Estamos em dezembro / Meu Deus que é de nós / Assim diz o pobre / Do seco Nordeste / Com medo da peste / E da fome feroz”. No “ABC do Nordeste Flagelado”, modalidade da cantoria e do cordel, que versava da letra A à letra Z, o poema é marcado pela denúncia contundente da situação do agricultor, em que o aspecto político se sobrepõe à pieguice ou à falta de contextualização histórica, econômica e social com que a questão da seca tem sido tratada muitas vezes: “Tudo é tristeza e amargura / Indigência e desventura / Veja leitor, quanto é dura / A seca no meu sertão”. Já no folheto “Emigração e suas consequências”, que fez parte da exposição de Stênio Di-

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niz em uma Bienal Internacional de São Paulo, o poeta cantava: “Eu sou poeta da roça / Tenho mão calosa e grossa / Do cabo das ferramentas”, fazendo da temática social, uma das marcas de sua criação e revisitando, de certo modo, a “Triste Partida”, provavelmente composta durante a seca de 1958. “Vicença e Sofia” foi um libelo anti-racista, a partir do preconceito de uma mãe contra a namorada negra e fiel de seu filho que se contrapunha no enredo à outra noiva, loira e traiçoeira, do irmão: “Vou dar uma prova franca / Falando pra seu dotô / Gente preta e gente branca / Tudo é de Nosso Senhô”. “Brosogó, Militão e o Diabo” subvertia o estereótipo do demônio: “Eu sou o diabo a quem todos / Chamam de monstro ruim / E só você neste mundo / Teve a bondade sem fim / De um dia queimar três velas / Oferecidas a mim” e concluía ironicamente que “toda história de diabo tem um pipoco no fim”. “As façanhas de João Mole”: “Sadio, robusto e moço / Mas de apanhar da mulher / Já estava de couro grosso”, se inscreveu na linha do humor, apesar do ranço machista. O “Doutor Raiz” contestava os curandeiros das ervas medicinais: “Vai pela estrada passando / Safado preguiçoso / Dizendo: – Eu trago meizinha / Pra enxaqueca e nervoso / Remédios especiais / De um efeito poderoso”. “O Meu Livro” exaltou a natureza: “Meu nome é Chico Braúna / Eu sou pobre de nascença / Diserdado de fortuna / Mas rico de consciença / Nas letra num tive estudo / de pai, de mãe, de parente / Mas tenho grande prazê / Pruquê aprendi a ler / Duma forma diferente”. Espécie de manifesto estético de sua poética, esse poema/folheto trabalha com a metáfora de a natureza ser o grande livro de onde o poeta aprendeu a ler o mundo, o que antecipou o ponto de vista ecológico visto, durante algum tempo, como desvio ou máscara de lutas políticas mais consequentes. A inclusão de “Saudação ao Juazeiro do Norte” (“Mas teu nome verdadeiro / Será sempre Juazeiro / Do Padre Cícero Romão”) se


justificou pela importância que a cidade do Padre Cícero ganhou como referência da tradição popular. Pouco depois de sua morte, em julho de 2002, consegui localizar na coleção do bibliófilo Thomas Pomeu Gomes de Matos, em Fortaleza, um exemplar do folheto “O Crime de Cariús”, do qual Patativa não tinha um exemplar sequer e que havia escrito, em 1942, assinando, por questões de segurança à sua integridade física, com o pseudônimo Alberto Sipaúba, que se dizia um trovador pernambucano, para reforçar a estratégia de mascaramento de sua identidade. O folheto narrava a morte do farmacêutico Carlos Gomes de Matos, a mando de um colega e concorrente, no rarefeito mercado dessa cidade do centro-sul cearense: “Ali, meia noite em ponto / Quem pela rua se lança / Vê um grupo de assassinos / Que pelas trevas avança / E a alma de um farmacêutico / Clamando, a pedir vingança”. Mesmo não tendo sido um poeta de bancada, na acepção do termo, pela agilidade da produção para dar respostas às exigências do mercado, o que ele fez ecoa o cancioneiro e as narrativas tradicionais apropriadas pela edição popular.

Nesse sentido, suas raízes são ancestrais, e sua poesia avança em um projeto de futuro, na construção de uma sociedade justa, igualitária, com iguais possibilidades para todos, sem que isso tenha sido mera construção retórica, mas como uma poesia que não perdeu sua qualidade estética por conta desse viés político. Retomou a narrativa tradicional com a “História de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, a partir da coletânea árabe As Mil e uma noites, cuja leitura e influência ele admitiu: “Na cidade de Bagdá / Quando ela antigamente / Era a cidade mais rica / Das terras do oriente / Deu-se um caso fabuloso / Que apavorou muita gente”, que ele deu de presente a José Bernardo da Silva (1901-1972), alagoano radicado em Juazeiro do Norte, que, com sua Tipografia São Francisco, depois Lira Nordestina, foi um dos maiores editores de folhetos de cordel de todos os tempos. Na “História de Abílio e o seu cachorro Jupi”, o ponto de partida foi o cancioneiro ibérico: “Onde quer que Abílio fosse / Sempre ele o acompanhava / Passava o dia a seu lado / Dele não se separava / E a noite rondando o prédio / Raivosamente ladrava”.

Poeta do povo “Você sabe que eu sou um poeta social, um poeta que fala pelo povo, e Castro Alves teve o mesmo tema.”

O

golpe de Estado encontrou um Patativa afiado em sua consciência social e crítico da ruptura institucional promovida pela aliança dos militares com as forças conservadoras. Oposicionista por coerência, ele não poupou o cearense Humberto de Alencar Cas-

tello Branco, primeiro presidente do período autoritário: “Com atenção eu apelo / Para o supremo juiz / Por causa de um só Castelo / Nunca mais castelos fiz” e concluía: “Me prometeu um tesouro / Todo lindo, todo franco / E em vez de um castelo de ouro / Me deu um castelo branco”. Foi nessa época que Patativa passou a colaborar com o pseudônimo de Alberto Mororó

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em jornais da UNE, onde travou contato com o então líder estudantil José Serra, de quem mais tarde ele lamentaria ter-se afastado tanto dos princípios que então defendia. Patativa foi ameaçado de prisão, com expedição de mandato relaxada por interferência pessoal de um parente que tinha laços de amizade com os prepostos da repressão e que teria rasgado a intimação deixada no cartório para o peta depor. O pretexto era um poema sobre a questão da terra, publicado no jornal Folha de Juazeiro, por um grupo de estudantes progressitas do Cariri (Caboclo Roceiro) que ele, prudentemente, excluiu da segunda edição ampliada do Inspiração Nordestina, lançada em 1967. Aliás, a relação de Patativa com jovens intelectuais se reforçaria no início dos anos 80, com o lançamento do jornal Nação Cariri e, no final desta década, com o movimento em torno do Centro de Cultura Patativa do Assaré, em sua cidade natal, desarticulado por pressões políticas. Com o AI-5, em dezembro de 1968, Patativa teve que recuar em relação ao poema que fazia menção ao líder comunista Luís Carlos Prestes, modificando a estrofe, para não sofrer novas retaliações. O original dizia: “Se um dia o Prestes alcançá vitora / A minha histora lhe contá eu vou / E peço a ele pra me dá meu sítio / Que o Benedito do pai tomou”. A explicação de Patativa foi convincente: “Mas para publicar eu vi que não deu certo, aí eu mudei para: ‘Minha vingança é que depois da morte / Tem ele a sorte de viver aflito / Lá nas cadeias do porão do inferno / Tem fogo eterno para o Benedito”. O poeta nunca foi de se dobrar e, quando a ditadura era corroída pela organização da sociedade civil, foi entrevistado pelo semanário Movimento (1977), um dos veículos mais significativos da chamada imprensa alternativa, onde também publicou (15 de dezembro de 1980) um poema, em que se posicionava contra a expulsão do País do padre italiano Vito Miracapillo (“Mesmo vivendo do Brasil distante / Deus estará contigo a todo instante / Miracapillo, protetor dos pobres”), antes recusados pelos jornais cearenses.

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Patativa participou ainda da luta pela anistia aos presos e exilados políticos, com a “Lição do Pinto”, ao mesmo tempo metafórica e didática: “O pinto dentro do ovo / Aspirando um mundo novo / Não deixa de beliscar / Bate o bico tico tico / Bate o bico, Bate o bico / Pra poder se libertar”. Subiu aos palanques com as principais lideranças oposicionistas brasileiras e emocionou multidões, ao mesmo tempo de ter seu clássico Cante lá que eu canto cá publicado pela Vozes, em 1978. Aliás, foi o Cante lá, que lhe deu o reconhecimento dos meios intelectuais e possibilitou sua leitura, por maiores contingentes de público, graças a uma distribuição nacional e às sucessivas reedições que ganhou. Em 1979, foi homenageado pela programação cultural do encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Fortaleza, então um dos principais fóruns contra o arbítrio e espaços da luta pela redemocratização do País. O tema do encontro foi tomado de empréstimo ao poeta: “Cante lá que eu canto cá”. Ainda em 1979, participou do movimento “Massafeira”, no Theatro José de Alencar, onde declamou o poema “Senhor Doutor”, incluído em álbum duplo lançado um ano depois. Nesse contexto, lançou seu primeiro disco, Poemas e Canções. Em 1981, lançou seu disco A Terra é Naturá, que ganhou resenha assinada por José Ramos Tinhorão, no Jornal do Brasil (2/9/1981), cujo título fazia menção à “poesia em estado puro”. O texto dizia: “Emoção é o melhor aplauso que se pode oferecer a esse grande poeta do povo que é o cearense Patativa do Assaré”. Com uma sabedoria de vida e uma visão crítica do mundo, que o transformaram em um símbolo apropriado pelas esquerdas, que viam nele o poeta da resistência e, pela direita, que exaltava sua autenticidade, na valoração do tradicional, do genuíno e da raiz, Patativa pairava acima dessas querelas, não por arrogância, mas pela importância de seu cantar ser maior que os rótulos a ele atribuídos. Modesto, ele continuou o mesmo poeta roceiro, o que não o impediu de estar sintonizado


com as transformações sociais e de reclamar por uma reforma agrária, por um ideal de justiça e denunciar as mazelas, sem que sua poesia se transformasse em um manifesto ou perdesse sua qualidade estética. E não deixa de provocar os artistas cuja fama sobe à cabeça, como o fez por meio do poema “O sabiá vaidoso”.

Foi esse Patativa que também se envolveu na luta pelas Diretas-Já, fazendo a avaliação dos 20 anos de arbírtrio: “Neste espaço dos vinte anos / Que a gente entrou pelo cano / A confusão é compreta / Mode a coisa miorá / Nós vamos bradá e gritá / Pelas inleição direta”.

Poder “O Lula eu acho ele um homem de bem. Eu gosto das qualidades do Lula.”

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m 1986, se aproximou do então candidato a Governador do Ceará pelo PMDB, Tasso Jereissati, que disputava eleição contra um dos mais tradicionais coronéis do período da ditadura militar, Adauto Bezerra, candidato pelo PFL (hoje Democratas), que já havia sido governador na década de 70. A história da aproximação com Tasso é curiosa e surgiu de forma espontânea. Pedro Bandeira, violeiro, então vereador, pelo PFL, em Juazeiro do Norte, difundiu em um programa de rádio, que Tasso era comunista, porque apoiado pelo partidão (PCB) e pelo PC do B, e quem estava dizendo isso era Patativa, como uma forma de se respaldar na imagem do poeta. Ele que, por volta de 1946, escrevera umas glosas por encomenda de um padre preocupado com a legalidade dos comunistas, folheto reeditado nessa mesma eleição, não quis cair na armadilha preparada pelos velhos “coronéis”, mandou um recado para o “galeguinho” e, espontaneamente, subiu aos palanques, pedindo votos para o candidato das “mudanças”. Patativa relembra parte de um improviso que fazia: “Camponeses meus irmãos / E ope-

rários da cidade / É preciso dar as mãos / E gritar por liberdade / Em favor de cada um / Formar um corpo comum / Operário e camponês / E todos no mesmo abraço / Votar no doutor Tasso / Candidato de vocês”. Complicada a relação desse símbolo, com toda sua trajetória de coerência, com o político-empresário, neoliberal avant la lettre, hoje exercendo mandato de senador e sendo um dos mais ferrenhos anti-petistas no Congresso Nacional. Mas as razões que, inicialmente, eram políticas, como de boa parte das esquerdas, assumiram um tom decididamente afetivo. Tasso Jereissati se tornou uma referência para Patativa. E o maior favor que ele se sente devedor ao líder político é o de não ter deixado sua Serra de Santana se desmembrar de Assaré, quando da elevação a município do distrito de Tarrafas (21 de outubro de 1988). Patativa não foi ingênuo ao apoiar Tasso, tampouco ganhou nada no plano pessoal, além de vínculos que usou em favor da comunidade. Esse apoio passou a ser incômodo pelos rumos que a trajetória de Tasso Jereissati tomou depois, de ruptura com os movimentos sociais, ensimesmado e distanciado, inclusive do ponto de vista geográfico, do povo que o elegeu.

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Essa ligação afetiva, de que se beneficiou Ciro Gomes, não o impediu de ter votado em Lula, o candidato do PT, em suas três pretensões de chegar à Presidência da República – Patativa não viveu o suficiente para ver a chegada de um operário, de origem nordestina ao principal cargo de poder do país –, tendo dado inclusive declarações públicas de voto: “Sou caboclo do sertão / Na minha vida precária / Eu nunca tive paixão / Por política partidária / Sou apenas eleitor / E dentro desse setor / Não digo palavra nula / Quem me ouvir que fique ciente / Não voto em Fernando Henrique / E o meu candidato é Lula”. Em relação a Fernando Henrique Cardoso,

ele era de uma ironia fina, aproximando em um repente, o sociólogo tucano de seu homônimo “collorido”: “Digo e não peço segredo / Eu não sei de onde ele vem / Mas estou com muito medo / Ele é Fernando também”. Vale ressaltar ainda uma série de poemas com reflexões políticas num sentido mais amplo. Assim, falou das mídias (xingou a televisão no poema “Presente disagradave”), dos meninos em situação de rua, do progresso como elemento de dissolução de formas de sociabilidade (da lida nas casas de farinha, dos engenhos de ferro, da desativação da linha férrea) e do MST como o grande movimento social organizado do país.

Mídia e academia “Estudei nas lindas folhas/ Do meu livro natural.”

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atativa era um homem tímido. Fugia dos refletores, como se tivesse dificuldade em lidar com a parafernália de instrumentos e com códigos próprios do audiovisual. Foi personagem de um super-8 de Rosemberg Cariry, em 1979, que fez com que sua exibição fosse inacessível, durante muito tempo, tendo sido recuperado e com trechos editados no longa “Ave Poesia”, que estreou no Cine Ceará, em Fortaleza, no ano de 2007. Ele foi protagonista do filme “Um poeta do povo”, de Jefferson de Albuquerque Jr. e Rosemberg Cariry, rodado em 1984, em cores, na bitola 16 mm, depois ampliada para 36 mm. Vencedor de alguns festivais (Brasília, Bahia), esse curta se inscreveu como um momento significativo do registro de sua figura pelas imagens em movimento. Nesse mesmo ano (1984), um grupo de concludentes do curso de Comunicação Social 36

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da UFC fez um vídeo documentário em que sua produção poética e sua figura foram exaltadas. O vídeo consta hoje do acervo da TVC. Exercitando, mais uma vez, sua cidadania e participando de um instante difícil da vida do Nordeste, assolado por enchentes, em 1985, Patativa fez a letra de “Seca D`água”: “É triste para o Nordeste / O que a Natureza fez / Mandou cinco anos de seca / Uma chuva em cada mês / E agora em 85 / Mandou tudo de uma vez”, cuja encomenda ele recebeu pelo telefone, tendo a melodia sido criação de um grupo de artistas, com Fagner, Chico Buarque e Milton Nascimento à frente. Ganhando expressão nacional, Patativa passou a receber convites e não deu conta de atender a todos. Disse poemas no Som Brasil, da Rede Globo, em 1981, programa conduzido por Rolando Boldrim, um dos que gravaram “Vaca Estrela”. Ainda na Rede Globo, em 1993, contracenando com Jackson Antunes e decla-


mando o poema “Lamento de um Nordestino”. Em 1994, deu entrevista no programa Jô Soares Onze e Meia, no SBT. Patativa ainda foi matéria do programa Globo Ecologia, da mídia impressa (revista JÁ, do então Diário Popular, e capa da “Ilustrada”, da Folha de S. Paulo). Nesse mesmo ano, por meio de um projeto cultural, o Banco do Estado do Ceará lançou um disco com seus poemas, que ele rejeitou, pelo fato de algumas canções terem sido mutiladas, em função do tempo de duração, o que ele não admitiria nunca. Em 1988, sua bibliografia foi acrescida de mais um título: Ispinho e Fulô, editado pela Imprensa Oficial do Ceará (IOCE) que, depois de ser reeditado pela UECE, hoje integra o catálogo da Hedra. Ainda nesse ano, se submeteu a uma cirurgia de transplante de córnea em um centro oftlalmológico de Campinas (SP) e recuperou a visão, o que seria antecipado por um improviso otimista: “Estou a córnea aguardando / Esperançoso e contente / Pensando de quando em quando / Que voltarei novamente / Vendo a imensa beleza / Das obras da natureza / Preciosas e perfeitas / Depois da operação / Do famoso doutor João / Alberto Holanda de Freiras”. Depois de uma volta emocionada e de cinco anos de saúde, ele começou a cegar, paulatina e definitivamente, por conta de uma atrofia irreversível do nervo ótico. Nesse meio tempo, colecionou honrarias: Cidadão de Fortaleza; Amigo da Cultura; “batizou” o Centro Acadêmico do curso de Letras da UFC e ganhou a Medalha da Abolição. A série de homenagens culminou, em 1989, com o título de Doutor Honoris Causa, da Universidade Regional do Cariri (Urca). Nesse mesmo ano, foi lançado o disco “Canto Nordestino”, produzido por Rosemberg Cariry, além do compacto em vinil “80 anos de Luz”, com poemas dele e composições de autores do Cariri que tentaram dizer de sua grandeza. Patativa ainda chegou a ser enredo da Escola “Prova de Fogo”, do Crato, cujo samba de Chicão da Portela cantava: “Que beleza, que genial / Patativa brilhando / Neste carnaval”,

tendo o poeta participado do desfile. Em 1991, seria enredo de “A Corte no Samba”, de Fortaleza e, em 2001, homenageado pelo carnaval de Barbalha, com o samba “Estrela do Ceará”, de autoria de Toinho, George e Friaça. Também deu seu nome à rodovia, com 18 km de extensão, que liga sua Assaré a Antonina do Norte, passou a ser nome de escola, de rádio comunitária e da adutora de abastecimento de água de sua cidade, que sempre foi uma reivindicação sua: “Lhe digo, juro e dou fé / A minha grande tristeza e mágoa / É não haver boa água / No meu querido Assaré”. Em 1995, recebeu o prêmio do Ministério da Cultura, na categoria Cultura Popular, das mãos de Fernando Henrique Cardoso, no Theatro José de Alencar, em Fortaleza, quando foi agraciado com mais uma láurea, dessa vez a Medalha José de Alencar, outorgada pelo Governo do Estado. Foi homenageado pela III Feira do Livro de Fortaleza, em 1998, tendo sido homenageado pela exposição “De um pingo de água um oceano de rimas”, com curadoria de Dodora Guimarães. Por ocasião das festas de seu nonagésimo aniversário, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual do Ceará (UECE), ganhou de presente a terceira edição de sua Inspiração Nordestina, recebeu homenagens como a gravação de dois discos só com poemas seus, um musicado por Gildário, “Contos de Patativa”, e “José Fábio canta Patativa do Assaré”, do garoto de Nova Olinda que foi tentar carreira em São Paulo. O grande fato do nonagésimo aniversário foi a inauguração do Memorial, em sua cidade, reunindo documentos, fotografias, gravação em CD dos discos, imagens em movimento na tecnologia do vídeo, folhetos de cordel, medalhas, esculturas e até a viola que se apresentou em Recife, com projeto de André Scarlazzari. As homenagens não pararam por aí: Patativa também ganhou o título de Doutor Honoris Causa da UFC. Seus folhetos de cordel foram republicados em livro pelas Edições UFC.

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Pode-se dizer que o reconhecimento chegou ao auge com sua inclusão em antologias (Nordestinos, da Fundação Joaquim Nabuco e Letras ao Sol, da Fundação Demócrito Rocha), na coletânea Brasil Bom de Bola, em que seu poema foi ilustrado por fotografias de Tiago Santana e em livros didáticos (Um certo planeta azul, de Luiza de Teodoro). A obra de Patativa mereceu uma série de estudos acadêmicos, os quais podemos destacar o de Plácido Cidade Nuvens, dissertação de mestrado em linguística – UFC (Silvana Militão), tese de Doutorado em Sociologia

— UFC (Tadeu Feitosa, autor de “Digo e não peço segredo”, publicado em 2001 pela Editora Escrituras), Mestrado em Literatura – USP (Cláudio Andrade) e antologias (Gilmar de Carvalho e Cláudio Portella). Paradoxalmente, continuou a ser rejeitado pela história oficial da literatura cearense, que ainda faz questão de excluí-lo de seu cânon, e pelas instituições literárias que não o acolheram em seus quadros (ainda que ele não fizesse questão de participar de grêmios ou academias). Até sua condição de poeta chegou a ser questionada, muitas vezes, como forma de desqualificá-lo.

Cotidiano “Linda avezinha pequena/ Temos o mesmo desgosto/ Sofremos da mesma pena/ Embora em sentido oposto/ Meu sofrer e seu penar/ Clamam à divina lei/ Tu presa para cantar/ Eu preso porque cantei.”

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uando se fala tanto do poeta seria o caso de se perguntar quem foi Patativa do Assaré? Até que ponto o mito soterrou o homem e Antônio Gonçalves da Silva passou a ser uma personagem? Descontraído, quando estava entre amigos, deixava aflorar o espírito brincalhão, capaz do improviso mais ágil e da recitação do poema que surpreendia e emocionava as pessoas. Outras vezes, quando recebia visitas, o mito se presentificava. Patativa não frustrava as expectativas do grupo de visitantes e dizia o discurso pronto, preparado para os pouco exigentes, que se satisfaziam com o óbvio. Era a hora das fotografias, dos vídeos caseiros, dos autógrafos e 38

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todos saíam felizes de terem sido recebidos na casa do poeta. Depois se fechava, como se só os iniciados tivessem o direito de vê-lo sem a persona severa com que se defendia do assédio. Assim ele se protegia, na solidão do bodejado dos versos que poucos ou ninguém compreendia, sozinho, na cadeira de balanço, recortado na contraluz do fim do corredor longo, com a silhueta se projetando em nossas retinas para sempre. O homem mantinha sua rotina: dormia cedo, acordava ainda de madrugada, tomava um parco café da manhã e, sempre limpo e bem vestido, se sentava na cadeira de balanço e palinha, presente do governador Tasso Jereissati. Preferia ficar na sala, no fundo do corredor, para aproveitar o vento. Quando se entrava na casa, o


que se via, quase sempre, era sua silhueta, sempre de chapéu, recortada contra a luz. Quem olhava para o quintal ainda veria a cadeira de rodas que foi usada por Dona Belinha, depois do AVC que a acometeu, uma marca de dor. Se estava fumando, pedia café, no que era prontamente atendido por dona Lúcia (uma de suas filhas), e acendia um cigarro forte, desses mais baratos, que ele dizia que ativava sua inspiração. Podia ser um mero álibi, mas com certeza melhorava, consideravelmente, seu humor. Patativa almoçava por volta do meio-dia. Comia com extrema moderação. Não gostava de carnes vermelhas, preferindo peixes e frangos. Nada de saladas. Pouco arroz e feijão e nada de farinha. No jantar, preferia uma papa de leite e amido de milho, antes de se recolher. Costumava descansar um pouco depois do almoço e voltava à cadeira. Estava sempre bem arrumado, mas não deixava de cuspir, o que muitas vezes atingia sua roupa limpa ou mesmo os visitantes. Tossia com frequência. Pensando bem, de nada adiantaria lhe tirar o prazer de um cigarro. Ele ficava exasperado quando insistiam nessa privação. Perdia o bom humor, ficava irritadiço e até mesmo grosseiro, como se perdesse as rédeas de sua vida e deixasse de ser o Sinhozinho da dona Belinha, delicado e autoritário, ao mesmo tempo. Fazia planos de parar de fumar e compôs um poema nesse sentido, muito mais um elogio ao tabaco: “Certa vez um cigarro astucioso / Me falou com disfarce de ladrão / Para seres poeta primoroso / Eu te ajudo na tua inspiração”. Rezava sempre antes de dormir, mas não dizia que orações balbuciava e nem em que direção, se dos santos, se de Maria. Questionado, uma vez, foi brusco e disse que era uma questão muito pessoal para ser objeto de uma entrevista, que a matéria competia apenas a ele, no que estava coberto de razão. Na cadeira de balanço, ele esperava as visitas, que eram muitas. Elas chegavam, invadiam a casa, e ele gostava, sentia-se vivo, reconhecido, mimado. As filhas se revezavam em seus cuidados, principalmente dona Lúcia, que morava

com ele, mas o comando que prevalece é o de “sinhozinho”, como lhe chamava dona Belinha, um tratamento ambíguo, porque carinhoso e autoritário, ao mesmo tempo. O roteiro previsível era quebrado quando de suas viagens à Serra. Às segundas-feiras, a Serra descia até ele. A família vinha fazer compras e lhe tomar a benção. Era quando Assaré regurgitava, movimentando o mercado onde pontificava dona Zenilda, com sua tapioca servida com linguiça caseira e café forte. Era quando todas as conversas eram postas em dia, quando circulavam os violeiros e se ouviam as histórias do ferreiro mestre Aldísio, se compravam as cadeiras de madeira e couro curtido de mestre Sinval, podia-se esticar até a casa de Juvêncio, autor de uma escultura de Patativa em gesso e cimento, e Assaré vivia seu grande dia. Quando a saudade apertava, ele fazia o percurso às avessas, fretava uma caminhonete, levava alguns mantimentos para os filhos e ia brincar de poesia com o Geraldo Gonçalves. Em volta de uma mesa de cedro, eles se revezavam nos motes e desenvolviam as estrofes. O sobrinho por escrito. Já Patativa armazenava as suas na memória e as recitava com renovado vigor. Estávamos diante de um torneio, com suas regras rígidas, ainda que marcado pelo prazer. Vencia a poesia, no ritmo ágil com que os versos se justapunham e formavam a estrofe. “Mote vai e mote vem”, propunha Patativa: “Digo a verdade completa / Pois tenho rima de saldo / Com meu amigo Geraldo / Dou volta de bicicleta / Porque nasci poeta / Ele é poeta também / Por isto eu me sinto bem / Vamos à tarde brincar / Eu com Geraldo Alencar / Mote vai e mote vem”. Retrucava Geraldo: “Nesta tarde de verão / Estou muito satisfeito / Sentindo dentro do peito / Badalar o coração / Não me falta inspiração / Nem a você falta também / O que eu tenho você tem / Você diz e eu também digo / Hoje aqui no seu abrigo / Mote vai e mote vem”. O mote da vez era “A Chuva não quer chegar”. Os rivais se concentravam para a peleja, e Geraldo começava: “O nordestino padece / Com este

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sol causticante/ Mesmo que o seco plante / A chuva não aparece / O povo reza uma prece / Mas o sol é de amargar / para a pessoa plantar / No sertão esturricado / Pois aqui no nosso Estado / A chuva não quer chegar”. A resposta do poeta vinha súbita: “Vejo gente padecer / Da serra até o sertão / É verão, verão, verão / Sem a chuva aparecer / Que é para a rama crescer / E a criação escapar / É o grande nosso penar / Aqui no nosso terreno / Quando vem é um sereno / A chuva não quer chegar”. Na Serra, ele se soltava, ficava brincalhão, passeava, fazia visitas, relembrava o passado, mas sem cair numa nostalgia mórbida. O poeta voltava ao lugar de onde, se dependesse dele, nunca teria saído. De chapéu de massa, calça de tecido sintético, camisa de mangas longas, Patativa, na Serra ou em Assaré, se locomovia como se estivesse em casa, dispensava guias e chegava a se irritar se alguém fazia menção de lhe dar a mão para lhe ajudar a atravessar uma rua ou descer uma calçada. Ele conhecia seus territórios como ninguém: “Assaré dos meus amores / Onde andei de beco em beco / Caíram folhas e flores / Só ficou o tronco seco”. Racional, ele fugia das superstições, ainda que relembrasse, com saudades, da caipora e de outros bichos mitológicos do mato. Antes de dormir, “eu rezo um misteriozinho sem ninguém ver. Cada qual professa a sua devoção do jeito que quer, entende e pensa”. E não gostava de falar sobre isso. Era um espaço muito pessoal para ser invadido. Algumas fotografias e recortes de jornais ainda estão nas paredes de sua casa, em Assaré, que agora divide as “romarias” com o Memorial. É para o velho sobrado dos Cartaxo Rolim, co-

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merciantes ricos, vindos da Paraíba, que depois foi escola, bordel e cadeia, restaurado pela Secretaria de Cultura, que chegam os ônibus de turismo, fluxo que não se reduziu depois de sua morte. Aliás, uma das ideias do Memorial, era a de contribuir para que o poeta pudesse ter um pouco de paz, mas ele gostava das visitas e se ele estava ali, tão perto, por que não visitá-lo? Muita gente queria vê-lo pessoalmente, fazer uma fotografia ao seu lado, gravar cenas de vídeo doméstico. Receptivo, ele tinha para os visitantes um discurso pronto, que satisfazia aos menos exigentes, pontuado com a declamação de poemas, onde no final, antes do aplauso fazia questão de dizer Patativa do Assaré, como reafirmação da autoria. Quem queria saber mais, precisava ter paciência, voltar outras vezes e tê-lo como uma pessoa e não como uma personagem. Patativa era uma esfinge a ser decifrada. Uma figura complexa, aparentemente de convivência fácil, mas essa facilidade mascarava o desafio de compreendê-lo e amá-lo por inteiro. Fazendo política, gracejo, bandalheira ou cantando a terra, não traía sua condição de camponês, suas unhas maltratadas deixavam entrever a luta com o chão esturricado do Nordeste, e a voz calejada mostrava as marcas da enunciação dos poemas, feitas tantas vezes quanto necessárias para reconstruir o mundo do seu ponto de vista da justiça social. Ele passava a certeza de que estávamos diante de um homem comum, porque fazia questão de ser igual a todos, mas diferente pela genialidade de um enunciação poética marcada pela excelência, oportunidade e interferência no contexto social, donde sua grandeza era cantada por muitos.


O Mito “O segredo não viu senhor doutor/ Seu estudo, a ciência e seu diploma/ Nunca podem saber nem o sintoma/ Dum poeta que sofre o mal de amor.”

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atativa representou uma síntese de todos os poetas da tradição popular nordestina. A obra de Patativa é símbolo da convergência de uma poética baseada em canto imemorial, atualizando e dialogando sobre o contemporâneo. Era onde entrava a reforma agrária, os meninos de rua e onde se reforçava a consciência política. O impresso permitiu à poesia de Patativa a permanência que ela poderia ter perdido pela transmissão oral. É inegável que Patativa se inscrevia na categoria do criador, o que o afastava de uma diluição ou uma mera apropriação do que outros fizeram, com novas roupagens. E ao criador ele contrapunha o escrevinhador. Influência, para ele, era uma atitude consciente. Quem compôs um poema, nos moldes camonianos, como “O Inferno, o Purgatório e o Paraíso” (“Pela estrada da vida nós seguimos / Cada qual procurando melhorar / Tudo aquilo que vemos e que ouvimos / Desejamos na mente, interpretar / Pois nós todos na terra possuímos / O sagrado direito de pensar / Neste mundo de Deus, olho e diviso / O Purgatório, o Inferno e o Paraíso”) tinha domínio de seu ofício. Quem compunha sonetos na medida exata: “Dentro desses quatorze versos, o poeta tem que dizer aquilo que ele quer, aquilo que ele pensa, aquilo que ele viu”. Ou dialogava com a lírica social (“Por isso a Reforma Agrara / Nós mesmo vamo fazê / Nós todos juntos, os sem-terra / Por vale, sertão e serra / Promovendo uma campanha / Abalando Toda gente / Ficando assim igualmente / Furmiga quando se acanha”) estava longe de ser um ingênuo iletrado. Patativa foi um leitor voraz dos poetas românticos brasileiros, o que levou a eleger Cas-

tro Alves como o seu favorito, em função do compromisso social e do condoreirismo. No Ceará, não poupava elogios a Rogaciano Leite e dizia não gostar de poesia sem rima. Em relação à forma, ela foi burilada pelo contato com o Manual de Versificação, de Olavo Bilac e Guimarães Passos, da mesma maneira que a poesia cabocla foi tributária de Catulo da Paixão Cearense e de Zé da Luz. Permanência era o que se antecipava para uma poesia que ganhou o estatuto do livro, que foi musicada e gravada por um elenco eclético, do forró eletrificado (Mastruz com Leite, Baby Som) aos intérpretes nordestinos (Alcymar Monteiro, Joãozinho do Exu, Abidoral Jamacuru), passando pelos “afilhados” Cícero do Assaré, Gildásio e Zé Flávio, promessa não cumprida, que, depois de um disco gravado em São Paulo, voltou ao Ceará para padecer seu ostracismo de ex-menino em situação de rua que criou muitos problemas para seus mecenas e empresários. No campo da experimentação, a releitura, em forma de rap, feita por Daúde para o poema Vida Sertaneja (“Por força da natureza / Sou poeta nordestino / Porém só canto a pobreza / Do meu mundo pequenino / Eu não sei cantá gulora / Também não canto as vitora / Dos herói com seus brasão / Nem o má com suas água / Só sei canta minhas mágua / E as mágua do meu irmão”), pode ser considerada como exemplar das relações da tradição com a contemporaneidade. Para não deixar de falar dos clássicos “Triste Partida” e “Vaca Estrela e Boi fubá”, objeto das mais variadas interpretações, das duplas sertanejas (Pena Branca e Xavantinho) aos referenciais da cultura caipira (Sérgio Reis e Rolando Boldrim) e à regravação feita por Simone Gui-

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marães de “Sina”, onde a autoria de Patativa foi creditada. Trabalho manual e produção intelectual não eram conflitantes para Patativa. A sua compreensão de cultura se confundia com o seu cotidiano e dos companheiros agricultores: arar, lavrar, semear e colher, rimavam com fazer poemas, outra forma de semeadura, com resultados imprevisíveis, em terrenos nem sempre propícios. Ele, outra vez, amalgamava essa distinção, que é puramente ideológica, e fazia a solda em que a poesia podia ser canto de trabalho, como o aboio, o baião da farinhada ou a comovente cantiga de ninar da mãe Preta: “Dorme, dorme meu menino / Já chegou a escuridão / A treva da noite escura / Está cheia de pão”. Para concluir que: “Dorme o teu sono inocente / Com Jesus e com Maria / Até chegar novamente / O clarão do novo dia”. Pode-se falar em uma atitude refratária do poeta aos avanços técnicos, como neste poema: “Ingém de ferro, você / Com seu amigo moto / Sabe bem desenvorvê / É munto trabaiadô / Argúem já me disse até / E afirmo que você é / Progressista em alto grau / Tem força e tem energia / Mas não tem a poesia / Que tem um ingém de pau”. Outra leitura possível é a do lamento pela superação das formas de sociabilidade tradicionais do sertão. O “Dotô do avião” (“Nunca vi chuva na terra / Mandada por avião”) faz sentido na medida em que essas chuvas pressupunham a acumulação de nuvens que o equipamento sofisticado não era e nem será capaz de conseguir, além de desarticular formas de sociabilidade, no contexto social, como a presença dos profetas das chuvas, com seus saberes tradicionais, decorrentes de uma sintonia maior com a natureza, cujos sinais decifram na antevisão de temporadas chuvosas ou de estiagens. O falso conservadorismo aflorou, por exemplo, em “O puxado de roda”, em que as alegrias da farinha, com suas rapadeiras e seus quicés afiados, eram superadas pelos avanços técnicos: “Seu moço, eu peço perdão / Não tenha raiva de mim / Mas a civilização / Faz coisa que eu

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acho ruim / Os engenheiros mecano / Francês, inglês, mericano / Se larga de seus coidado / E faz certos objetos / Pra buli com quem ta quieto / No seu canto sossegado”. Patativa sabia da importância das pesquisas científicas e das novas tecnologias. No poema “A cobra falou”, ele faz com que a serpente peça ao caçador para não ser sacrificada e ser levada para o Instituto Butantã, onde seu veneno seria matéria-prima para a fabricação do soro antiofídico. Esse poema foi composto, segundo ele, numa gravação feita no Museu da Imagem e do Som, na capital paulista. Patativa tinha consciência da importância de ver seu canto amplificado através das várias mídias. Da mesma forma, sabia que gravações, fotografias, filmes e vídeos registravam sua obra para a posteridade e de que o velho rádio ABC, de um de seus poemas, passou a ser referência nostálgica, em um contexto em que ele só conseguiu se manter atualizado porque deu a devida importância aos meios de comunicação (“Televisão com certeza / É a peça importante e bela / A causa da safadeza / É dos que manobra ela”). Longe de querer congelar o tempo, ele pretendia reafirmar que a afetividade do contrato pessoal não se podia desfazer pelas geringonças, como o engenho de ferro, aviões que bombardeavam nuvens e outras invenções do mesmo tipo. Ele se sentia parte da natureza, como se brotasse do chão, como a árvore de raízes sólidas, mostrada pelo desenho de Luís Karamai; como as “estações de sua vida”, impressas pela xilogravura de José Lourenço, ou pela poética visual do documentário “O voo da Patativa”, de Oswald Barroso e Ronaldo Nunes. Patativa foi homem de luta, que nunca se dobrou a censuras, que sempre venceu o medo, o que ficou evidenciado pelo episódio pitoresco, em que, depois de descer a Serra várias vezes e de nunca encontrar o prefeito de Assaré, fez um poema que falava de uma “prefeitura sem prefeito”. Levado à prisão, por desacato à autoridade, lá encontrou uma patativa de estimação do delegado e disse dirigindo-se ao pássaro: “Patativa descontente / Nessa gaiola cativa / Em-


bora bem diferente / Eu também sou Patativa / Linda avezinha pequena / Temos o mesmo desgosto / Sofremos da mesma pena / Embora em sentido oposto / Meu sofrer e meu penar / Clamam à divina lei / Tu presas para cantar / E eu preso porque cantei”. Após a morte desse ex-prefeito, uma das ruas de Assaré recebeu seu nome como homenagem. Mas como a história muitas vezes é irônica, o morador mais famoso dessa rua foi justamente Patativa. O nome do coronel Pedro Onofre ficou famoso por ser o nome da rua onde o poeta habitava. Patativa, que dividiu o Brasil em “de cima e de baixo”, não se inscreveu em uma linguagem de secessão e chegou à conclusão de que: “A misera aqui no su / É esta mesma do Norte” e a partilha proposta em seu poema era simbólica e fortemente ideologizada. Quando ele se propunha a cantar aqui, enquanto outros cantariam lá, na verdade tinha consciência de cantar em todos os lugares. Essa delimitação dos espaços não fazia sentido na medida em que sua voz era cada vez mais amplificada e universal, apesar de sua enunciação estar localizada no Nordeste. O que ele propunha, na verdade, era que cada um deveria cantar o que conhecia e o que teria vivenciado, e que nenhum canto pode ter fronteiras, e ele sabia disso. As utopias, para ele, baseadas em um cristianismo solidário, passavam pela questão da terra, que ele conhecia como ninguém, e avançavam na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Chegou a cantar o “Menino de Rua”, problema bem mais urbano, sem maior incidência em Assaré, o que não o tornava insensível à situação de risco e abandono de grande parte de meninos, meninas e adolescentes que expõem nas ruas as chagas de nossa insensibilidade: “Garoto eu desejo que em vez desse inferno / Tu tenhas caderno / Também professor / Menino de Rua de ti não me esqueço / E aqui te ofereço / Meu canto de dor”. Sua visão da Serra de Santana cristalizava um paraíso particular concreto e histórico, que

deveria ser um direito dos que regavam a terra com o suor do rosto. Seu ideal de justiça social estava longe de qualquer populismo ou de qualquer pieguice e se inseria no topos do “mundo às avessas”, não pelo exagero, mas pela medida exata do atendimento às necessidades de todos. Ele desdenhava da escatologia que previa o fim do mundo com data marcada e não acreditava nessas profecias midiáticas. Seu milênio não era o fim da História, mas um tempo de solidariedade e de paz. Provocado a falar do Padre Cícero, dizia que foi um grande líder religioso e político e o colocava ao lado de Conselheiro e do beato José Lourenço (“Sempre digo, julgo e penso / Que o beato Zé Lourenço / Foi um líder brasileiro / Que fez os mesmos estudos / Do grande herói de Canudos / Nosso Antônio Conselheiro”). A estatueta de gesso, pintada de preto, sobre a geladeira da cozinha teria sido colocada pelas mulheres da casa, ele asseverava. O poeta tinha consciência da força das palavras como instrumento de denúncia e combate sem perder o que poderíamos chamar de “cortesia sertaneja”, conjunto de regras que traduzia uma visão de mundo e uma atitude de quem era capaz de se emocionar diante de sua própria produção, como se essa fosse uma condição para o poema ganhar vida própria e partir para uma interferência no mundo. Ele comovia com a voz roufenha, cujo corpo franzino crescia no instante da performance, quando ele todo comunicava e quando seu poema adquiria, por inteiro, toda sua grandeza e complexidade. Patativa, cuja poesia se fez cidadã, atuando na correção do social e que não se deslocava daquela ancestralidade, do vigor de quem, como Adão, relato criacionista, nominava as coisas que estavam no mundo. Patativa, poeta e profeta, como diria Paul Zumthor, poeta e pássaro, que alçava voo e emitia sua voz, para nosso prazer de leitores e para a continuidade de uma tradição, que se ancorava na solidez de seu canto presente, apontando para um projeto de futuro.

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Posfácio “Porém completando cem/ Aí é dura a parada/ Não dou bola pra ninguém/ Nem quero saber de nada/ Vou todo cheio de ruga/ Igualmente a tartaruga/ Com o pensamento fraco / Caducando ali num canto/ Rimando diabo com santo/ E... com macaco.”

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que escrever seis anos depois da morte de Patativa? Que um poeta não morre, seria o mais óbvio e verdadeiro. Pode-se pensar, também, que Patativa permaneceu. Dizer isso em julho de 2002 poderia soar apenas nostálgico, com a forte ideia de perda e com a certeza da lacuna, da falta que ele faria. O poeta saia da cena com dignidade, carregando um histórico de coerência, de luta e de qualidade poética que não resvalou para o fácil, não caiu na diluição, nem nos procedimentos contemporâneos da auto-referência, citação ou paródia. Patativa morreu como viveu, cercado pela família e pelos amigos, sem pedantes boletins médicos e com muita reza, barulho de gente e o choro de quem sabia que ele tinha feito o possível, tinha cumprido seu script e fechado seu ciclo. Patativa permaneceu. Hoje, pode-se dizer isso com convicção e sem o sentimento mais acentuado da perda. A lacuna será para sempre. Não dá para “inventar” um outro (novo) Patativa. O contexto é outro. As condições históricas, políticas, econômicas, sociais mudaram. Talvez não com a velocidade com que gostaríamos que tivessem mudado. Entre 1909 e 2009, se encaixa bem mais que um século. Urge ler e reler Patativa com outras informações e constatar ou reforçar sua genialidade, sua voz poética a profética que enunciou verdades que o tempo não desgastará.

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A poesia tem essa característica: trata dos grandes temas da Humanidade. Mesmo quando se ancora na voz, mesmo quando proferida com uma dicção coloquial, a poesia tem essa dimensão de abarcar o eterno e falar da vida (e morte), do amor, da finalidade do mundo e do homem, da luta contra o esquecimento e da passagem inevitável do tempo. Patativa ficou e ficará. Isso não é dito apenas movido pela saudade que o tempo trata de mitigar. Patativa ficou pela excelência de seu verso e pela oportunidade de seu canto. Sua genialidade fez com que fosse o intérprete de nossas dores e porta-voz de nossos anseios. E a poesia cidadã de Patativa cumpriu esse pacto de modo fiel. Sua obra aponta para a ideia das raízes, de uma ancestralidade fundadora. Fala de natureza não como o oposto de cultura, mas aposta que elas formam um todo. Canta sua terra sem a ideia xenófoba de que só existe aquele lugar. Sua opção vem da certeza de que sua aldeia é o mundo. O social tão acentuado de sua poética nunca caiu numa ideia de panfleto. Sua poesia manteve sempre uma qualidade que surpreende na medida em que é enunciada pela voz e criada, na maioria das vezes, no trabalho da roça ou no improviso, como violeiro que foi ou o rapper que poderia ter sido. O improviso em Patativa não dá a ideia de incompletude, nem a urgência torna seu verso episódico ou anedótico. Patativa modelou com cuidado extremo o que enunciava com


uma naturalidade e uma simplicidade que nos atordoava. O repertório de Patativa contribui para assegurar sua permanência. A Reforma Agrária será um problema por muito tempo, apesar do MST e da boa vontade governamental. O embate da tradição com o progresso não é discurso conservador, mas está na base de uma reflexão mais densa sobre o que somos e o que queremos ser. Aí entram engenhos de ferro, casas de farinha arcaicas, chistes contra a televisão e a superação de formas de convivência menos agônicas. Patativa não luta contra o progresso, mas contra a dissolução de vínculos e a superação de afetos. A natureza deixou de ser um estado idílico e se tornou uma possibilidade da manutenção da vida no planeta. Nunca a ecologia foi tão necessária, mesmo dando os descontos de possíveis exageros apocalípticos da cobertura da mídia, na linha do fala-se muito e não se faz quase nada contra o que está aí e não parece amistoso.

Patativa passou ao largo de slogans, palavras de ordem ou bordões. Seu canto sempre foi imemorial, e ele tinha consciência do lugar do qual seu verso era enunciado e tinha consciência de sua importância como poeta. Nunca a voz foi tão valorizada como hoje. Mesmo a explosão das mídias e as tecnologias de ponta trazem a prevalência da voz, mesmo com todo um aparato de pesquisas, com a possibilidade do armazenamento e da fruição programada. Diante de tudo isso, Patativa está vivo. Vale à pena lê-lo. A possibilidade de descobertas é imensa, e a fruição estética é compensadora. Temos razão e emoção na medida certa, sem cerebralismos excessivos e sem derramamentos emocionais. Patativa teve a ideia de equilíbrio e nos deixou uma poesia que é grande arte. Esse legado merece ser cultivado e consumido. A voz ecoa, mítica, encontra um leitor perplexo na contemporaneidade e segue seu curso. Assim, Patativa enfrentará o tempo, o esquecimento e os contextos para afirmar sua poesia que será para sempre.

Versão revista e atualizada do texto publicado pela revista Inside Brasil, em março de 1999.

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entrevista Patativa no original

Prefácio à 2ª edição Gravador? Que estás gravando?

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ssaré do Ceará,

a praça, a casa do poeta. Um longo corredor escuro e, bem no final, uma luz suave que entra por uma porta com a metade de cima aberta. Aí, na cadeira de balanço, Patativa do Assaré passa grande parte do seu dia. Aí, o visitante senta-se para conversar. Apalpadelas iniciais, uma prosa hesitante, frases entrecortadas, até o momento em que o anfitrião Patativa decide se tornar poeta, declamar um dos seus poemas para dar a resposta certa à pergunta do visitante; para revelar-lhe um saber, uma verdade que só a fala rítmica, o verso, sabe exprimir, transmitir e guardar para a posteridade. Uma voz de ancião, vinda do fundo do corpo, da alma e dos tempos, ergue-se, cresce, preenche o espaço da casa, junta-se àquelas outras

Vozes que guiaram a humanidade no seu percurso sempre precário: a de Homero grego, a dos bardos celtas, a dos griots africanos, a dos profetas da Bíblia. E dissolvem-se o Tempo e o Espaço perante aquela imensa Voz poética, a de sempre e para sempre... O presente livro nasceu nesse ambiente mágico da casa do poeta; nele se consignou um encontro de dois homens que representam, cada um, um mundo: o da oralidade de Patativa, o da escrita de Gilmar de Carvalho. Mundo estranho, o da escrita que, tradicionalmente, só consegue conviver com a oralidade sob a condição de ela estar e ficar longe, tanto no tempo quanto no espaço da contemporaneidade: Homero, cego, metamorfoseado em primeiro “escritor” do mundo ocidental, os bardos, sonhados na ilha mágica, longínqua de Avalon, ou o griot africano transformado em objeto de pesquisa dos antropólogos! A partir dessas vozes perturbadoras, uma vez confortavelmente classificadas nos seus es-

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paços bem delimitados, os peritos dos séculos XIX e XX elaboraram um conjunto de preconceitos scriptocêntricos que lhes permitiram marginalizar a expressão literária, artística da oralidade contemporânea. Confinaram o seu estudo numa disciplina chamada folclore , desprezada, por sua vez, e geralmente excluída do discurso vigente das ciências humanas. Ninguém melhor do que Gilmar de Carvalho, cearense, escritor, jornalista, dramaturgo, pesquisador radicalmente interdisciplinar dotado de uma sensibilidade excepcional, podia tornar-se o parceiro de Patativa neste confronto de dois mundos. Confronto que se transforma, no decorrer daquele memorável dia 15 de fevereiro de 1996, numa aventura humana, intelectual e poética, num lindíssimo diálogo de dois amigos — cúmplices. Juntos, eles abrem caminhos para formas inéditas de abordagem e de estudo da oralidade, da sua arte poética, da sua relação com a escrita e, ao abri-los, o poeta e o pesquisador tecem novos pressupostos críticos para uma revisão radical do discurso convencional sobre as tradições orais e populares. São estas as paradas fundamentais que estão por trás do jogo que os dois parceiros se ofereceram e construíram juntos, um dia, há cinco anos atrás, naquela casa de Assaré. Um jogo que trouxe os seus riscos: para o visitante, primeiro, que teve a coragem de questionar radicalmente os códigos da pesquisa acadêmi-

ca convencional. Essa que leva o pesquisador a instaurar com o seu “objeto” de pesquisa aquele tipo de relação cuja palavra-chave é distanciamento e que é, essencialmente, uma estratégia – desrespeitosa e muitas vezes violenta – para invadir o Outro, para tirar dele o máximo de informação, sem necessidade de retribuir o que é generosamente oferecido. Riscos para o anfitrião, já desconfiado dessas práticas, consciente do perigo, preparado graças à sua inteligência e sabedoria, para não permitir que alguém abuse de novo da sua generosidade, da sua intimidade. E o diálogo fez-se. Ao misturar poesia e prosa, aproximou um do outro, os dois mundos, e gerou o livro – diálogo que hoje sai já na segunda edição: Patativa Poeta Pássaro do Assaré, em que, bem além das palavras que constróem o diálogo, além dos versos que revelam o talento do poeta, o leitor adivinha e às vezes entrevê o mundo fascinante que é o de Patativa do Assaré e que a escrita é incapaz de transcrever, de registrar na sua riqueza e complexidade, como o próprio poeta o sugere sutilmente: Gravador, que estás gravando aqui no nosso ambiente? Tu gravas a minha voz, o meu verso e o meu repente, mas gravador, tu não gravas a dor que o meu peito sente.

Ria Lemaire Centre de Recherches Latino-Américaines de l’Université de Poitiers Fonds Raymond Cantel Novembro de 2001

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Viva Voz

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parentemente, é fácil a aproximação com Patativa. A porta sempre está aberta. Sua cadeira fica no fundo do corredor, e o recorte da janela ilumina sua silhueta, como um teatro de sombras. Para os incautos ou para os apressados, ele tem um discurso pronto e acabado. Como se precisasse dar conta das entrevistas e o interlocutor fosse um fardo. A estratégia de dizer o máximo possível de poemas — que procurei transcrever com as marcas da fala e sem cotejá-los com os volumes impressos — me parecia uma forma de escapar às perguntas embaraçosas e ganhar tempo. Cheguei, grosseiramente, a desligar o gravador, por alguns instantes. Depois compreendi que Patativa se concretiza na performance e que o que ele tem a dizer, e que lhe parece relevante, está nos poemas. A partir daí, deixei que ele falasse mais e me preocupei menos em tentar cumprir a pauta. Complicada essa relação invasiva. Os limites éticos entre o que se quer saber e o que pode ser dito são tênues. A privacidade pode ser delimitada por um silêncio. No emaranhado das respostas prontas, é preciso saber o que a conversa tem de original. Todas essas questões se resolvem na dinâmica do processo. Essa conversa, iniciada às nove da manhã, interrompida para o almoço e retomada à tarde, procura ser uma espécie de tradução de um fluxo de consciência, com o mínimo de edição (aqui entendida como interferência). Trata-se de um dia na vida de Patativa, 15 de fevereiro de 1996, uma quinta-feira. Querer reduzir a vida de Patativa a um dia de entrevista é uma tarefa vã. Aí estão seus grandes temas: ligação com a terra, poesia social, seus afetos, sua ideia de cidadania, sua fé.

Na medida do possível, essa entrevista dá voz ao poeta, o que não escamoteia a visão de mundo e as armadilhas do pesquisador. Ainda há muito o que se discutir numa teoria desse diálogo possível. A meio termo entre a história de vida (e da obra) e a curiosidade do estudioso, esse livro se inscreve como um longo e perfeccionista trabalho de produção e de uma pós-produção em que detalhes foram checados, informações foram acrescidas, como um olhar reflexivo e compassivo sobre um grande poeta e sua obra. Como complicadores, a posição assumida de respeito e admiração pela personagem, um distanciamento que nunca seria atingido e a falta de uma tensão, de um acirramento de ânimos para obter a resposta que se queria para determinada pergunta. O resultado final é uma conversa com Patativa que se pretende redonda, como a metáfora da serpente (uróboro) que morde a própria cauda. Patativa está aí, íntegro. A maior parte se perdeu, se esfumaçou porque a performance não pode ser registrada, mesmo com os aparatos que asseguram a reprodutibilidade técnica da voz e a fixação das imagens. O instante único da entrevista foi fruido por nós dois. Procurei preservar para os leitores o máximo possível do clima de cumplicidade que se formou, passado o mal-estar inicial de um pesquisador apressado, com outra noção de tempo e ávido por revelações bombásticas que não serão encontradas aqui. Perdi a conta das vezes que voltei a Assaré, ao longo do tempo, e fui recebido na casa escura e comprida da rua Coronel Pedro Onofre, número 27. Tantas vezes voltei que passei a ser um amigo. Tenho mais de 400 páginas de entrevista transcritas, mais de vinte fitas cassete, mas o que fiz depois foi complementar essa en-

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trevista — chave essencial e fundante da amizade que se estabeleceu entre nós. Daí a decisão de publicá-la. Porque ela é a síntese de tudo o que eu soube e registrei depois. Como se voltar outras vezes a Assaré, para entrevistá-lo ou para complementar esse material, fosse apenas um álibi para estar perto dele. Posso dizer que tentei e consegui ultrapassar as barreiras do mito e enxergar o homem, em meio a tantas máscaras, empostações de voz e verdades não tão absolutas que vão revelando, de corpo inteiro, um Patativa que se deixa mostrar para poucos e que eu coloco agora à disposição de muitos: dos que quiserem enfrentar essa aventura que tem bases na oralidade e é ritual, na medida em que o poeta foi erigido como um emblema. Patativa, parafraseando uma biógrafa de Clarice Lispector, é um ser que se poetiza: Sua voz é ancestral, sua dicção é clássica, de popular ele tem a extração, o pertencimento de classe social. Tudo nele é sincero. Até a modéstia, que chega a parecer falsa, resiste à provocação. Ele é modesto do jeito dele. Impressionante como Patativa consegue atualizar a tradição. Quando ele fala, é o poeta e, por trás, o violeiro. Ele estabelece com o entrevistador uma peleja cujas regras são as da cortesia sertaneja. E não se deixa intimidar pela impertinência da pergunta. Trata-a como se fosse um repente que precisasse de uma resposta à altura. Está estabelecido o jogo. A conversa flui, respeitável. Ele responde como quem acumula os versos dos poemas na memória privilegiada. Ganha tempo, se esconde para depois se mostrar, como a luz de muitos sóis nordestinos. Patativa é voz. O corpo franzino é traído pela contundência com que rebate o interlocu-

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tor. Depois vem a paz de quem se sabe maior. É quando a tradição se atualiza, à nossa frente, e Patativa incorpora novas falas. Sabe dos meninos de rua, do MST, mas vai fundo na dor da nossa condição, no sentimento de finitude e no amor. Um Cristo humano e imperfeito em suas pretensas deficiências. Anda com muletas, ouve com ajuda de aparelhos, está cego, mas decifra e devora-nos. É um oráculo com uma sabedoria que vem dos tempos imemoriais. Entrevistá-lo é correr riscos e se tornar vulnerável à sua grandeza e à sua sedução. Patativa joga limpo. É cristalino como um olho d’água e sonoro como a patativa de onde foram buscar o epíteto que lhe serviu de marca. Patativa do Assaré, poeta pássaro, metáfora de um viver sem fronteiras. Um canto singular, na sua unicidade, e plural, porque de todos os homens, de todos os tempos. Um Patativa que nos desafia, que supera os referenciais teóricos que julgamos operacionalizar e que se desnuda, com a segurança do ancião e a intrepidez do jovem. Ave, Patativa. As palavras são imperfeitas para tentar esboçar um perfil, por mais apressado que seja, esgarçado e tênue, impreciso e rígido. Patativa do Assaré é a própria voz que enuncia, conciliando natureza e cultura, engenho e arte, razão e emoção. Poucas vezes a poesia foi elevada a esta condição. O poeta disse tudo. Podemos desligar o gravador. O texto está pronto. Pode ser salvo. Eu estarei a salvo. O desafio nunca será cumprido. As palavras se revelarão impróprias, é preciso dilatar os limiares da expressão e experimentar a sensação do pássaro em pleno voo. Patativa, o poeta que se fez verbo para se fazer homem.


Entrevista. Lado A

Gilmar de Carvalho. O que significa para o senhor a Serra de Santana? Patativa do Assaré. A Serra de Santana eu posso dizer que é o meu paraíso, viu? Ali eu nasci em mil e novecentos e nove, no dia 5 de março. Sou filho de um agricultor também muito pobre. E então eu fiquei como que enraizado naquela Serra de Santana — que eu já hoje me tornei conhecido... posso dizer, em todo o Brasil – e todos me querem e têm a maior atenção e tal, mas aquela Serra de Santana num sai aqui do meu coração. Eu vivo aqui no Assaré, mas o coração ficou lá na Serra de Santana, onde eu trabalhei muito até a idade de sessenta e tantos anos, trabalhando de roça... porque a minha poesia é... Muita gente num sabe como é que eu componho os meus poemas. Não é escrevendo! É... faço a primeira estrofe, deixo retida na memória. A segunda, do mesmo jeito; a terceira e assim por diante. Pode ser um poema de trinta estrofes! Quando eu termino, eu estou com todas elas retidas na memória, aí é que passo para o papel. Sempre fiz verso assim! Meu trabalho manual diariamente nunca interrompeu a minha missão de poeta, de simples poeta do povo, cantando a nossa terra, a nossa vida, a nossa gente, viu? E assim por diante. E o principal da minha vida é a Serra de Santana. Estou nessa idade, mas de quando em vez eu vou à Serra de Santana, onde eu nasci e me criei trabalhando ali ao lado de meus irmãos, minha mãe, viu? Tanto qu’eu tenho aquele meu poema, que eu falo “Meu Campina”, não é? É. Ali foi quando eu saí da Serra de Santana já com sessenta anos, viu? Gilmar. Mas nunca deixou de ir lá... Patativa. É. “Foi em mil e novecentos e nove que eu vim ao mundo. Meus pais naquele momento

tiveram prazer profundo. Foi na Serra de Santana em uma pobre choupana, humilde e mudesto lar. Foi ali onde eu nasci e a 5 de março vi o raio da luz solar. Eu nasci ouvindo o canto das aves da minha terra e vendo os belos encantos que a mata bunita encerra. Foi ali que eu fui crescendo, fui lendo e... (engasga) fui lendo e fui aprendendo no livro da natureza, onde Deus é mais visível, o coração mais sensível e a vida tem mais pureza. Sem puder fazer escolha de livro artificial, aprendi nas lindas folhas do meu livro natural. E assim, longe da cidade, lendo nessa faculdade que tem todos os sinais, com esses estudos meus, aprendi a amar a Deus na vida dos animais. Quando canta o sabiá, sem nunca ter tido estudo, eu vejo que Deus está por dentro daquilo tudo. Aquele pássaro amado, no seu gorjeio sagrado nunca uma nota falhou! Na sua canção amena, só diz o que Deus ordena, só canta o que Deus mandou. [breve pausa para respirar] Na ciência, os... [engasga] os campos belos

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na minha adorada terra, compondo da minha adorada Serra compondo versos singelos brotados da própria terra, inspirado nos primores dos prado com suas flores de variado formatos, que pra mim são obras-primas, sem nunca invejar as rimas do pueta literato.” E assim por diante! É um poema que eu tenho: “Eu e meu campina”. Que quando eu... eu voltei de lá, eu trouxe um... aquele passarinho que é muito conhecido e que canta... canta muito bem, viu? Ele é mais conhecido, pelo sertão, de “Cabeça Vermelha”, mas o seu nome clássico é “Galo de Campina”[Paroaria gularis gularis]. Gilmar. E fez um poema para ele? Patativa. Aí eu disse: “Olhe...” Que lá no meio do poema eu falo assim, viu? É... “Com setenta anos de idade o destino me fez guerra fui residir na cidade, deixando a querida terra! Minha Serra pequenina, mas um Galo de Campina de trazer num me esqueci, porque nesse passarinho estou vendo um pedacinho lá do sítio onde eu nasci! Canta, Campina! O teu canto faz de mim cura meu tédio (?) para aplacar o meu pranto a tua voz é o remédio. Nesse nosso esconderijo és o único reguzijo para os triste dias meus. Tu és meu anjo divino e este teu canto é um hino louvando o poder de Deus! Morando na merma rua e seguindo a merma linha a minha sorte é a sua!

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E a sua sorte é a minha. Se vivendo na cidade, tu cantas numa saudade, saudade o teu dono tem! Meu querido companheiro, se tu és prisioneiro, eu vivo preso também. Se tu tens a tua história que um mau destino te deu, perdi também uma glória, o mesmo padeço eu. Meu querido passarinho, vamos num mermo caminho, seguimos a merma meta. Padecem a mesma sina o poeta do Campina e o Campina do poeta. Era boa a tua vida, purque vivias liberto e para a tua dormida, tu tinhas o ponto certo. Mas não lamentes o fardo, vivendo hoje preso ao lado deste teu pobre senhor. Quem sabe se no porvir tu não irias cair nas garras... [engasga] nas armas do caçador!? Eu te conduzi do mato com desvelo e com carinho, porque nesse mundo ingrato ninguém quer viver sozinho. Se a merma sorte tivemos, juntinho nóis viveremos por ordem do Criador, nesse sombrio recanto, tu consolando o meu pranto e eu cantando a tua dor!” Gilmar. Como é que o senhor se sente sendo o filho mais ilustre de Assaré? Pode-se dizer que o senhor colocou Assaré [a 623 km de Fortaleza] no mapa? Patativa. Sim, eu me sinto feliz, embora sem vaidade. Eu apesar de ter feito o que eu já fiz e ser o que eu sou, assim, modéstia à parte... Mas


me sinto muito feliz, porque eu prezo a minha terra, principalmente a Serra de Santana, mas é um sítio do Assaré... [a 18 km da cidade] e o Assaré está no meu coração, para nunca se desligar! É tanto que, se eu quisesse fazer profissão da minha capacidade de poeta, você sabe que eu não estaria aqui, não é!? Estaria aí por longe... Eu tive até oportunidade de ir até a Europa inda uma vez ou duas, onde uma delas já era com a Violeta, que é até minha amiga, aliás até parenta, a Violeta Arraes [1926/2006], viu? Gilmar. Sim. Patativa. Irmã do Miguel [líder socialista, exgovernador de Pernambuco, exilado durante o período autoritário, depois do golpe de 1964]. Mas nunca quis. Não! Quis não, num quero. Se eu num falo bem nem a minha língua, o meu português, vou agora me socar aí dentro do meio desses estranhos? Gilmar. [Risos] Patativa. Me dá um elogio e eu penso que é assim, um elogio e eu penso que tão é me tachando de alguma coisa negativamente... Não, não, não! Às vezes me dão... me lascam aí, me diminuindo, eu digo: “Muito bem! Ah, o senhor é que tá certo, viu?” Gilmar. [Gargalhadas, de ambos] Patativa. E por isso eu num quis nunca sair do Assaré. Eu quero aquele meu Ceará mesmo, viu? É... Cê dá licença eu dar uma tragadinha? Gilmar. Pode fumar... Patativa. Nem interrompe você... perguntar o que você quer, não? Assim, meu cigarrim já se desmancha... Gilmar. Patativa, na sua autobiografia, o senhor diz que estudou no livro do Felisberto de Carvalho [livro escolar adotado no país entre 1892 e o final da década de 50 do século XX]. Me fale um pouco deste livro. Patativa. É... o livro de Felisberto de Carvalho... Eu li naquele livro... um livro muito bom

para o analfabeto aprender, porque era uma coisa muito bem explicada, viu ? E eu até no... na introdução do meu livro “Cante Lá Que Eu Canto Cá” eu falo em verso sobre o livro Felisberto de Carvalho, que tinha a “pá, o dedo do papa, pia, pua, dedo, dado, pote de melado”, e assim por diante, viu? “Dá meu dado... a fera é má.” Finalmente, esse grande professor, quando o aluno fizesse, assim, o quarto ano... aquele livro tinha até o quinto ano, viu? O livro... Gilmar. Sim. Patativa. Ele já sabia muita coisa, porque ele ensinava com tanta perfeição, com uma facilidade do aluno desenvolver... É tanto que eu aprendi a ler no livro Felisberto de Carvalho, viu? E por isso... Eu...eu sou um semi-analfabeto, posso dizer. Eu fui apenas alfabetizado. Agora, fui um leitor assíduo, cuidadoso, curioso pra saber das coisas. Aprendi a ler, queria ler tudo. Sabe o que era que eu menos lia? E até era... eu acho que de obrigação, seria até o principal... Gilmar. Sim? Patativa. Os livros escolares. Gilmar. Hum, hum. [Risos] Patativa. Acho que não lia os livros escolares, eu num lia. Eu curioso pra saber ... lia revista, jornal, os poetas da língua e muitas outras cosa, viu? Até Camões, aquele... “Os Lusíadas”, de Camões, que é uma coisa intrincada. Gilmar. Bastante... Patativa. O camarada que é só alfabetizado, como eu, é preciso estar com um dicionário ao lado pra saber muita coisa, porque ali encerra a mitologia, num é? Gilmar. É um clássico... Patativa. É. Ali é uma história muito bonita, mas pra quem não estudou muito, não é tão compreensível. Mas eu li todo e aprendi aquela forma de versificação dos “Lusíadas”. É tanto que naquele meu poema “O Purgatório, o Infer-

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no e o Paraíso”, a versificação é aquela mesma: “Das armas e barões assinalados, que da ocidental praia lusitana, por mares dantes nunca navegados, ainda passaram além da Itapobrana, entre guerra e perigos e corsários, mais do que permitia a força humana. E entre gente remota edificaram novo reino que tanto sublimaram”. Veja bem, aqui a entrada do meu poema é obedecendo essa mesma tônica, essa mesma medida, viu? Agora, o sentido, diferente. É. “Pela estrada da vida nóis seguimos cada qual procurando melhorar. Tudo aquilo que vemos e que ouvimos desejamos na mente interpretar, pois na Terra nóis todo possuímos o sagrado direito de pensar. Nesse mundo de Deus, olho e diviso: o purgatório, o inferno e o paraíso.”

tante leitura, esse vocabulário, embora pobre que eu tenho... Gilmar. Pobre? Patativa. É, é com ele... foi, não foi eu que pegasse nesse livro que chamam de gramática, de num sei quê, outras coisa... Foi a prática de ler, viu? É por isso que nos meus sonetos eu num tenho erro de concordâncias. Mas por quê? O povo se engana comigo. Foi a prática de ler! Eu aprendi que ninguém diz “vóis é” e nem “tu sois”, não é? Gilmar. Pode até dizer... Patativa. Hum... [som de tragada] Mas eu sou muito tímido. Eu sou muito acanhado. Eu tenho uma timidez que... isso aqui eu não... acho ruim e ao mesmo tempo agradeço, porque isso aqui é uma coisa natural, a gente já nasce com aquela timidez, não é?

Gilmar. Pode fumar, Patativa. Patativa. Mas você num quer que eu recite o poema, não?

Gilmar. Sim. Patativa. É, justamente. Às vezes eu quero botar a culpa na falta do estudo, de colégio, essas cosa, mas ao mesmo tempo eu vejo que não. Eu seria tímido de qualquer... formatura que eu recebesse. Seria a mesma timidez, viu? Agora, quando eu encontro um amigo assim como você...

Gilmar. Eu estou preocupado, porque o senhor acendeu o cigarro e não está fumando. Patativa. Não, minha fumarada é essa mesma.

Gilmar. [Risos] Patativa. Desculpe eu lhe tratar você pelo... eu num gosto de tratar senhor, Sua Excelência...

Gilmar. É essa mesma? Patativa. É assim mesmo, dei um traguim, jogo pra acolá. Num tô preocupado com isso não.

Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Pra essas pessoas que procuram se familiarizar comigo, que vêm com essa maneira boa. Bem, aí foge aquela minha timidez, viu? Eu fico à vontade, vejo que ele sabe me julgar, sabe interpretar a ... o que eu digo, sabe estar comigo naquilo que eu sinto, naquilo que eu vejo e... e reproduzo com os meus versos, viu? Porque nóis temos muito versejador, Gilmar, mas o poeta mesmo, o que tem a criatividade, nós não temos uma infinidade não. Agora, versejador nós temos muito, viu?

Esse meu poema, viu? Eu, na divisão das classes: inferno, classe pobre; purgatório, classe média; paraíso, classe rica.

Gilmar. Quantos anos o senhor fez de escola? Eu sei que o senhor foi um leitor atento e que a gente está sempre aprendendo. Mas quantos anos o senhor passou em banco de escola? Patativa. De escola, eu passei apenas seis meses, somente. Com seis meses eu aprendi a ler, então, dali por diante meus professores foram os livros, viu? Foram os livros. Com essa cons-

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Gilmar. [Risos] Patativa. Eu sou o poeta que crio tudo na minha imaginação. Gilmar. Sim. Patativa. E bato sempre em cheio na vida real. Esses... esses verso que eu vou recitar aqui... Gilmar. Sim. Patativa. Com o título “A Cobra Falou”. Está na minha voz lá em São Paulo no Museu da Voz, no Museu do Som. Gilmar. Museu da Imagem e do Som... Patativa. Umas professoras ouviram eu recitar na Bandeirantes [rádio] e falaram com Amorim Filho [apresentador, juntamente com Expedito Duarte, do programa “Nas Quebradas do Sertão”] e pra me levar até lá o Museu da Voz, onde eu recitei o dito poema, porque menciona o Butantã, viu? Gilmar. Sim. Patativa. E nóis sabemos que cada pessoa deve mesmo se orgulhar com a santa vaidade daquilo que tem na sua própria terra, coisa de utilidade. Nós sabemos que o Instituto Butantã, em São Paulo, não é? E o poema é esse aqui “A Cobra Falou”: “Zé Maria era um rude camponês assinar o seu nome não sabia mas contudo encerrava polidez a moral natural do Zé Maria. O trabalho foi sempre seu estudo. Para ele essa lida era um brinquedo. Era o nome de Deus o seu escudo e por isso de nada tinha medo. Mas um dia encontrou grande perigo medonha cascavel, um monstro imundo. O camponês até pensou consigo que era aquela a mais velha deste mundo. O caboclo sentiu grande surpresa, porém dando uma prova de valente erguendo um pau já tinha por certeza machucar a cabeça da serpente. Quando a cobra falou bem comovida:

‘Zé Maria, eu lhe peço por piedade. Eu lhe rogo que poupe a minha vida pela santa e divina majestade! Meu veneno é fatal, é bem verdade! Sei que muitos me chamam de assassina, mas eu tenho uma grande utilidade: eu concorro em favor da medicina. Que eu sou útil no mundo não esqueça. Eu sou filha de Deus, sou sua irmã! Se há de esmagar sem dó minha cabeça é melhor me levar ao Butantã.’ Aquele homem sensato e muito crente, fé nas coisas de tinha tinha com sobra. Fez com gosto o pedido da serpente. Voltou da roça sem matar a cobra.” Gilmar. Ainda bem... [Risos] Patativa. Aí sai... Pois bem. Gilmar. Maravilhoso! Patativa. Pois bem. É... é... eu estava lhe dizendo há pouco que tudo eu crio na minha imaginação, como este simples poema, não é? Mas veja o fundo de verdade: se o caboclo matasse aquela cobra ali, bem, se acabaria ali a sua utilidade... Gilmar. Verdade... Patativa. Se fosse preciso, num era? Ao passo que se a levasse para o Butantã, para o Instituto Butantã, ela ficaria fornecendo seu próprio veneno para curar as picadas de cobra, não é? Gilmar. Sendo útil. Patativa. E assim por diante. Gilmar. Eu queria que o senhor falasse um pouco de como começou o seu problema de perda de visão. Patativa. Olha, eu... Com quatro anos eu, em consequência do sarampo, que num era... naquele tempo não havia médico aqui no Assaré e muitas cegueiras vieram do problema do sarampo, onde eu perdi o olho direito. Foi em consequência de um sarampo. Não houve meio. O olho vazou. E há... há pouco tempo eu falei de Camões, não é?

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Gilmar. Foi. Patativa. Camões tinha também um olho perdido. Gilmar. Coincidência... Patativa. E, segundo eu li, foi na Guerra de Ceuta, uma seta que, quando veio, atingiu o olho dele e vazou. E sabemos também que Jesus Cristo nasceu em extrema pobreza e por isso eu tenho essa estrofe. Gilmar. Qual? Patativa. “Nasci dentro da pobreza e sinto prazer com isto, por ver que fui com certeza colega de Jesus Cristo. Perdi meu olho direito ficando mesmo imperfeito sem ver os belos clarões. Mas logo me conformei por saber que assim fiquei parecido com Camões.” Gilmar. [Gargalhada] O senhor acha que a perda de um olho pode ter contribuído para o senhor se tornar uma criança mais voltada para dentro e, ao mesmo tempo, aumentar a sua sensibilidade para o senhor ser o grande poeta que é? Patativa. Não. Eu acho que não. Eu acho que não concorreu nesse sentido não. Nós num sabemos. Esse é um segredo natural, num é? Gilmar. Deve ser... Patativa. Poderá ser também, mas eu, no meu pensamento, não. Eu acho que não. Agora que o poeta sofre muito! Parece que é um destino, num sei o que é!? Num sei se é porque ele é conformado com as coisa. Eu tenho sofrido muito, viu? Desde pequeno. Gilmar. Patativa, você falou em Camões. Homero era cego. Aderaldo era cego. O senhor é muito modesto, mas concordaria com a minha afirmativa de que cegueira, no caso desses grandes poetas e do senhor, significaria genialidade?

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Patativa. Hum... É que... Olha, aquele que perde a sua visão, como eu estou... perdi a minha, posso dizer que eu num tô mais enxergando. Vejo apenas o claro do dia. Se eu vou aqui em alguma casa ou mesmo numa bodega, é porque eu saio pelo pé da parede, como gato, viu? Gilmar. [Risos] Patativa. Num deixo aquele itinerário sem chegar lá. Já conheço o Assaré de cor e salteado, como diz o povo. Mas há uma grande vantagem: é que o pensamento... aquele que vê, como eu já vi, li e escrevi tudo, depois que cega, muda o pensamento. Ele fica enxergando é somente com o tino, com o siso ou a visão... vem duma base do que ele enxergava quando tinha a visão. Ele via, ele ia lê, ele lia de todo, não é? Gilmar. Sim. Patativa. E é por isso que eu me conformo. Eu me conformo com tudo aquilo que vem pela parte natural. Eu num me conformo é com aquilo que vem pela parte do artificial, como perseguição, opressão, essas coisas que num pertencem aí à natureza, pertencem à maldade dos homem mesmo, viu? A isso aí eu num me conformo, não! Mas essa outra parte, não, purque eu olho para a vida como realmente a vida é e, por isso, eu sou conformado... Fazendo meus versos e atendendo aquele que me procura, como você veio com... com o interesse de conversar comigo. Você pode perguntar o que quiser. Gilmar. O senhor conheceu o cego Aderaldo [Aderaldo Ferreira de Araújo, 1882/1967]? Patativa. Não conheci, não. Foi meu contemporâneo, mas eu não o conheci pessoalmente. Logo eu fui sempre um poeta... Fui até violeiro, eu cantei ao som da viola, mas aqui. Eu cantava assim por esporte, só porque tinha paixão. Toda vida fui um apaixonado da poesia, da cultura, mas gostava de fazer profissão, viajar cantando e tudo, tudo, não! Nunca quis. Mas eu cantei ao som da viola, improvisei como os grandes cantadores, como Lourival Batista foi


um deles, viu? Lá mesmo no Recife, quando o Miguel foi prefeito do Recife, Miguel Arraes...

ram bem novos, ainda bem moço, viu? Foram à procura da vida e por lá se ficaram, viu?

Gilmar. No início dos anos 60... Patativa. Lá, o Recife ofereceu um São João sertanejo com tudo aquilo que pertencia ao folclore, à cultura popular. Houve até corrida de cambiteiro nesse tempo do São João até São Pedro. O Miguel, que era o prefeito, mandou me apanhar aqui no Assaré. Eu fui o cantador da prefeitura, viu? Porque cada firma apresentava uma dupla, um poeta, um cantador e tal. Bem, nesse tempo eu cantei... Foi só o tempo que eu cantei, assim, fora aqui do Assaré. Eu só atendia a convite de aniversário de criança, casamento que num queria... num queriam dança, aí me convidavam pra eu ir passar a noite improvisando. Eu recitando poesia, viu?

Gilmar. Sim. Patativa. E o Cazuzinha, que era José [ José Pereira Montoril, 1888-1977], mas era conhecido por Cazuzinha, veio visitar os parentes que ele deixou todos novos aqui e nunca mais tinha vindo. E quando chegou... foi à casa da minha mãe, que era prima legítima deles. E me encontrou com a viola improvisando. Ele ficou encantado. Naquele tempo, as mães num deixavam os filhos sair pra parte alguma. Eles que estivesse tudo até na barra da saia dela. Mas ele tanto pelejou, até que minha mãe, confiando muito nele, cedeu que eu fosse com o Cazuzinha — ele custeando todas as despesas, tudo, que eu num tinha nada! — Aí nós fomos. Foi uma viagem muito boa [à bordo do vapor Itapajé]. Quando chegamos em Belém do Pará, naquele tempo José Carvalho de Brito,[1872-1933] que é o filho do Crato, foi que me deu esse pseudônimo de “Patativa”. Era tabelião do primeiro cartório de Belém do Pará. Aí, José Montoril, o Cazuzinha, era o homem duma relação muito agradável.

Gilmar. Ao som da viola? Patativa. Sim, com a viola, cantando ao som da viola. Gilmar. A viola, o senhor ganhou aos 16 anos? Patativa. Foi. A minha viola eu ganhei aos 16 anos. Depois fiquei trocando ela por outra melhor e tal. Até quando eu fui ao Recife, lá, o Miguel Arraes me fez presente de uma viola boa. Viola boa mesmo! Gilmar. Pro bom cantador... Patativa. Essa ainda está lá na Serra de Santana guardada lá num quarto [atualmente faz parte do acervo do Memorial Patativa do Assaré]. Nem eu vendo nem dou pra seu ninguém e nem também uso ela. Gilmar. Agora, antes do senhor ir pro Recife, o senhor esteve em Belém [1928]. Dá pro senhor tentar se lembrar um pouco dessa viagem a Belém? Patativa. Ah, eu relembro muito essa viagem a Belém, porque lá no Pará tinha três primos legítimos da minha mãe, que saíram daqui no tempo da propaganda da borracha. E eles saí-

Gilmar. Como assim? Patativa. Gostava de procurar esses homem que escrevia, viu? Me levou logo à presença de José Carvalho, viu ? É tanto que ele me recebeu com a maior atenção, que ele também era poeta. Não era improvisador, mas escrevia verso, viu? Tanto que ele escreveu uma quadrinha, quando eu entrei lá no escritório dele. Ele disse bem assim, pra saber o que eu respondia: “Você, que agora chegou / Do sertão do Ceará / Me diga que tal achou / A cidade do Pará?” E eu respondi: “Quando eu entrei no Pará / Achei a terra maior / Vivo debaixo de chuva / Mas pingando de suó!” Que lá chove, chove muito lá, viu!? Gilmar. [Risos] Todo dia... Patativa. E é uma quentura danada! E assim por diante. Ele me recebeu com muita atenção. Parece que era o governador do Estado era um Barata, viu?

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Gilmar. Magalhães Barata? [Patativa deve terse enganado, visto que ele foi Interventor no Estado, de 1930 a 1935. O Presidente do Estado quando da visita de Patativa era Dionysio Bentes [1924-1928] ou Eurico de Freitas Valle, empossado em 1º de fevereiro de 1929]. Patativa. Sabe que eu gostei muito da viagem? Quando eu voltei, José Carvalho me deu uma carta para que eu entregasse a carta à doutora Henriqueta [poeta, 1887-1964]. Filha do grande poeta Juvenal Galeno [1836-1931, poeta cearense recriador da tradição popular]. Aí, eu vim. Quando eu cheguei, perguntei onde era e fui. Era até noitinha. Cheguei, ela estava assim, eu digo: — “A doutora Henriqueta...?” Disse: — “Sou eu. De que se trata ?” Eu disse: — “Essa carta aqui que José Carvalho de Brito, lá de Belém, mandou que eu entregasse pra senhora.” Ela disse: — “Bem, pois está despachado.” Recebeu a carta e... também [estala os dedos] dei meia volta, todo aborrecido... Tenho o meu jeito, mas eu fiquei... Napoleão de Menezes, que era um poeta, viu? E muito amigo dela...Quando ela abriu a carta, que viu do que se tratava, que ele me recomendando a ela, contando a minha poesia e num sei quê e tal, aí ela disse: — “Napoleão, você vá procurar aquele rapaz. Olhe, e nem que seja em Fortaleza toda você só me volte aqui com ele, viu?!”

Gilmar. Bem despachado... [Risos] Patativa. Não é? Quem tá despachado, a gente sai [estala os dedos]. Aí, ele riu e disse: — “Pois vamos, que ela mandou que eu lhe levasse lá à presença dela.” Ah, quando eu cheguei lá, foi uma festa, viu? Me levou logo à presença do poeta, viu? Pra eu vê-lo assim, viu?

Gilmar. E foi fácil? Patativa. Aí eu tava lá num hotel até dum Cabo Silvino, quando chegou aquele cidadão e disse: — “Mas me diga uma coisa: o senhor é que entregou uma carta à doutora Henriqueta?” Eu disse: — “Sim.” — “Mas pra que o senhor fez isso? Por que o senhor não demorou lá?” — “Eu num demorei, porque ela disse que eu tava despachado!”

Gilmar. O senhor se lembra se saiu alguma coisa no jornal sobre o senhor nessa época? Patativa. Saiu, sim! Saiu. E também saiu a seguinte carta que eu fiz à doutora Henriqueta Galeno. Xô ver... Eu pedindo o livro de Juvenal Galeno que eu não conheci, tinha uma curiosidade danada e não havia pra vender naquele tempo... Aí, eu fiz a carta pra ela pedindo o livro.

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Gilmar. Do poeta Juvenal? Patativa. Ele, sim, o Juvenal Galeno, já bem velhinho... Com a barba grande, bem alvinha a barba dele, também com as vestes branca e a rede branca, tudo era bem alvo, parecia assim uma visão... Pois eu passei foi tempo olhando assim pra ele, viu? Foi, aí que eu tive o prazer, tive a glória de ver o poeta, um grande poeta cearense. E aí, quando eu cheguei aqui... Gilmar. O senhor fez alguma apresentação na casa? Patativa. Fiz, tem até no meu livro “Inspiração Nordestina”, tem os versos que eu recitei por lá. Agora, eu não os tenho mais gravado na memória, viu? [“Eu voltei pra Fortaleza / Cheguei no mês de dezembro / Estou dizendo e me lembro / Falo com toda certeza / Truxe a viola em defesa / Bem preparada e direita / Cum ela tudo se ajeita / Gente branca, gente preta / Munta saudade sentia / Mas hoje, tarde do dia / Eu senti muita alegria / Quando vi dona Henriqueta”, de “O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará, segunda edição, página 141].

Gilmar. O senhor se lembra com quem cantou lá na casa de Juvenal Galeno [Rua General


Sampaio, 1128, Fortaleza]? Patativa. Não. Foi só. Gilmar. Sem parceiro? Patativa. Só eu [engasga-se]... eu mesmo improvisando lá, falando sobre as coisas de Belém, dizendo que vinha da colônia do Pará e tal, viu ? E também o Napoleão dando o mote para que eu fizesse verso ali. Certo que eu fiquei... Gilmar. Mas era com viola? Patativa. Era, com a viola, viu? Mas eu tinha deixado a viola na pensão quando eu fui entregar a carta, viu? Gilmar. Mas lá em Belém o senhor também se apresentou? Patativa. Me apresentei e muito mais... Me apresentei nas colônias do Pará, porque eu passei só seis meses lá em Belém, em Belém não! Esse meu tio morava onde hoje é Macapá e era onde ele morava, era lá embaixo nas ilhas, viu? Gilmar. Muita água... Patativa. Mas eu deixei ele lá e fui pras colônias do Pará. Aí, fiz aliança com um cantador chamado Rufino Galvão [não citado nos dicionários de violeiros] e ficamos fazendo cantoria no alto das colônias do Pará, habitadas quase somente por nordestino, viu? Era uma maravilha! O dito cantador, meu colega, era do Rio Grande do Norte, o Rufino Galvão, que a gente fazia cantoria, viu? Fui a Castanhal, São Luís, Igarapé-Açu, Capanema até no fim onde era a derradeira cidade, Bragança, que já era no litoral. Pois bem, ali nós viajávamos cantando, fazendo cantoria na casa daqueles camponeses e na casa de quem quisesse, viu? Era uma coisa bem alegre. Depois aperreou a saudade danada, viu? Gilmar. Tinha que voltar... [risos] Patativa. Voltei. Escrevi pra o Cazuzinha: queria voltar, queria voltar e queria mesmo! Aí voltei. Foi quando o José Carvalho de Brito mandou essa carta e ainda hoje eu tenho... Fui, assim, bem recebido na casa de Juvenal Galeno.

Hoje, vive lá o Alberto Galeno [escritor, 1917]. Já tá bem velho, não é? E agora eu fui também muito amigo de Nenzinha. Gilmar. Nenzinha Galeno... Patativa. Nenzinha faleceu... era neta. Henriqueta era filha. Cândida Galeno [1918-1989], mais conhecida como Nenzinha, ela até escreveu muitas quadras minhas num livrozinho que foi publicado com o título “Jangada” [na verdade, “Trovadores Cearenses”, Fortaleza, Editora Henriqueta Galeno, 1987]. Tem muitas quadras minhas dentro desse livro. Gilmar. O José Carvalho, no livro “O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará” [publicado em 1930, com segunda edição pela Imprensa Universitária do Ceará, em 1973], fala no senhor, não é? Patativa. Fala. Ele fala de mim com o título “Um cantador de viola em Belém” [na verdade, o título do capítulo é “O Patativa”]. Aí... quem pegar o livro pode olhar que tem. Aí, ele fala muita coisa, viu? Fala dos versinhos que nós fizemos, eu e ele... Gilmar. O nome de Patativa foi ele ou foi o Montoril que colocou? Patativa. Foi ele! Foi ele, foi até em verso, mais eu perdi o verso que ele fez. Eu sei que terminava dizendo: “É ave que canta solta / Inda mais canta cativa / Seu nome agora é Antônio, / Crismado por Patativa.” [Sporophylla plumbea plumbea]. E foi publicado no Correio do Ceará [jornal que circulou de 1915 a 1982], mesmo ele estando em Belém... Gilmar. Sim. Patativa. Ele colaborava no Correio do Ceará e os ditos versos que ele fez, botando o meu apelido Patativa, ele publicou no Correio do Ceará e o jornal circulou e o apelido pegou. Ficaram me chamando de Patativa, Patativa, Patativa... Depois surgiram outros Patativas mesmo da Paraíba, Rio Grande, não sei o quê, também

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violeiros, mas quando saía alguma coisa publicada, eu fazia parte às vezes em jornais por aí, diziam: “Aqui tem uma poesia do Patativa!” O ouvinte dizia logo: “Se é do Patativa do Assaré, eu quero!” Gilmar. E aí.... Patativa. Aí ficou Patativa do Assaré, por causa desses, pra poder distinguir um dos outros, viu? Patativa do Assaré, Patativa do Assaré... e hoje muita gente num sabe nem a minha assinatura, o meu nome de Antônio... Gilmar. Gonçalves da Silva [diz, sussurando]. Patativa, nessa época que o senhor foi a Belém a Editora Guajarina estava a pleno vapor [funcionou em Belém, de 1914 a 1949]. O senhor andou por lá, conheceu o pessoal que fazia folheto? Patativa. Não! Não cheguei a conhecer. Eu num cheguei... porque a minha demora mesmo na capital foi pouca, meu tio morava era nas ilhas, viu? Gilmar. E o senhor... Patativa. Aí eu fui pras ilhas com ele. De lá quando eu voltei... ele era comerciante, mandava muita cosa de lá do... das ilhas aí para o... que ele tinha um cacaueiro danado que ele possuía, viu? Ele mandava o barco aí... no barco muita coisa pra Belém. E numa dessas viagens, eu digo: “Olha, Cazuzinha, eu num quero mais estar aqui como peixe, fosse um pato, por cima d’água não!” Porque lá tudo é ilha, meu amigo! Olhe, a casa é assoalhada alta assim. Quando a maré enche, debaixo da casa é aquela água e ali tem o tronco da canoa amarrada na corrente. A gente só sai de dentro daquela casa na canoa. Todas as casas eram assim, viu? E eu achava aquilo ruim. Logo eu não sabia remar. A garotinha dele – também era até uma menina, num era mais do que isso aqui! — pra ir lá pro outro lado do rio — porque são muitos rios, viu? Quer dizer, são muitos braços de rio — pra outra casa de conhecido, eu entrava na canoa, a criança ia remando comigo – um medo dana-

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do! — aquele mar d’água e só aquela criancinha com o remo. Quero não, viu? Gilmar. [Risos] Patativa. Eu digo: “Ave Maria, aquilo é vida, homem?” Gilmar. Essa primeira viola foi seu pai que lhe deu? Como foi que o senhor ganhou? Patativa. Não! Meu pai morreu eu num tive a felicidade de poder possuir o meu pai muitos anos. Ele morreu eu estava com oito anos. É, quase que não conheço meu pai! Não conheci meu pai. É tanto que eu relembro uma coisa que eu disse e ele riu muito, viu? Que ele sabia fazer verso, ele tinha uma timidez. Eu acho que essa timidez eu herdei de meu pai. E a poesia também! Ele era lá um agricultor, mas tinha relação aqui na cidade, porque tinha José Pereira da Silva, que era primo dele. E ele até uma vez fez o seguinte verso... José Pereira da Silva, conhecido por Pereirinha, ele tinha uma bodega, viu? Uma bodeguinha pobre e a casa dele desabou uma parte. E ele era muito econômico, viu? Gilmar. E o que aconteceu depois? Patativa. Aí, aqueles prego ele arrancava e batia com um martelo pra endireitar, pra pregar novamente quando fosse reconstruir a casa, ali na parte que tinha caído. E meu pai brincava muito com ele. Eles eram amigos íntimos, além de primos. Aí aprendeu esse verso com ele porque ele tinha uma bodega: “José Pereira da Silva / Vive aqui quase morto, / Vendendo cachaça ruim / E diz que é vinho do porto! / E quando a casa desaba / Vai catar preguinho torto.” Gilmar. [Gargalhada] Patativa. Num é bem feito? Gilmar. Muito! Patativa. Pois eu herdei esse dom do meu pai. Meu pai foi poeta, além de isso aqui. Olha, eu vi um livro, depois que eu fui alfabetizado, né? Eu encontrei um livro de um doutor Calazans,


que viveu aqui em Assaré, viu? Doutor Calazans gostava muito do meu pai, viu? E tinha um livro oferecido ao meu pai. Gilmar. Sim... Patativa. Ofereço ao senhor, ao amigo Pedro Gonçalves da Silva [1876-1917]. E, mais embaixo, com a caligrafia do meu pai, essa quadra: “Se este livro for perdido / E depois for encontrado / Para ser bem conhecido / Leva o seu dono assinado: / Pedro Gonçalves da Silva.” Bem, eu nunca encontrei essa quadrinha em ponto nenhum. Essa quadra é, com certeza, é de autoria dele, num é? Gilmar. É muito provável. Patativa. É como se fosse trova, viu? E é uma quadra muito bem feita, até cruzada... com as rimas cruzadas, viu? Pois é, mas eu não tive, eu, na realidade, eu pouco me lembro... É, assim, uma passagem de criança mesmo, ainda boba como eu fui. Ele estava assim num livro escrevendo e o Zezé, mais velho do que eu, cinco anos [1904-1976], e eu comecei a teimar com o Zezé, viu? E o Zezé disse assim: — “Mas você hoje tá brabo. Você tá muito valente. Você tá parecendo um... um pai de família!” E eu respondi: — “Se eu for pai de família, você é pai de chiqueiro!” Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Aí, meu pai deu uma risada e eu, tão ingênuo, que num soube porque o meu pai riu. Só depois de decorridos muitos anos, foi que me veio à lembrança que ele riu porque ser pai de família é uma coisa honrosa, num é? Gilmar. Sem dúvida... Patativa. E eu fiquei com tanta raiva porque ele me chamou de pai de família. E disse: “Se eu fosse pai de família ele era pai de chiqueiro!” [Risos, de ambos] Gilmar. E a história dessa viola? Você viu o pessoal tocar e começou a improvisar, como é que foi?

Patativa. É porque aqui em Assaré, isso no tempo da festa, aparecia cantadores, mas eu muito tímido, menino, viu? Nem conversava com eles... mas fiquei com uma vontade também danada de possuir uma viola. Então, essa viola, eu tinha uma cabra, viu? Eu troquei um dia essa cabra, pedi a minha mãe pra vender a minha cabra e comprar essa viola. E ela, muito amorosa, muito carinhosa, fez o meu pedido. Aí, então eu fiquei cantando, mas só em casa mesmo, treinando na vizinhança. Depois, atendendo convite de pessoas amigas, mas, mesmo quando eu cantava ao som da viola, eu nunca deixei de criar esses poemas que eu crio, assim, na minha imaginação. Olha aqui, o primeiro poema, em linguagem cabocla, em linguagem matuta que eu... Gilmar. Pode dizer... Patativa. Sim, como eu ia lhe dizendo, mesmo quando eu cantava ao som da viola, eu num fazia profissão. Era, num era mais do que um agricultor. Mais que eu cantava era de improviso, aquilo não interrompia nada. Não vivia sempre a fazer versos. Onde o primeiro poema que eu fiz em linguagem matuta é esse aqui, “Maria Gulora”: “Vem cá, Maria Gulora! Escuta, que eu quero agora uma coisa te contar. É uma recordação dos dias das inlusão que faz a gente chorar. Eu antonte andei na varze. Não morri, mas porém quase enlouqueço, de repente. Quando meus óio avistou as casa que tu morou, quando nóis era inucente. Senti aguda lembrança do tempo da nossa infança de tanta vadiação. Que brinquedinho colosso a nossa vaquinha de osso amarrada num cordão! Eu fiquei em desatino que parecia um minino

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pisando em riba de brasa. Até parece que eu via você, querida Maria, lá na janela da casa. Era ali que eu mais você brincava de se esconder por debaixo do jirau. Era ali que o dia inteiro eu corria nos terreiro em meu cavalo de pau. Quando a noite começava que a lua se ilarguiava que brinquedinho de amor! E quando chegava o dia nóis dois juntinho corria pros canteiro de fulô. Arrudiei a carçada já velha, dismantelada. Entonce eu pensei ali até na rede de fita da tua boneca Rita na sombra do tambori. Quase com as perna morta entrei pela véia porta de sodade pra morrer. E senti tanta aflição que me abracei com o pilão pensando que era você!” Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Isso aqui... foi o primeiro poema em linguagem mais pra matuta, foi essa aí. Gilmar. Patativa, como é que o senhor consegue fazer poemas com o modelo de Camões, com a métrica perfeita, a rima perfeita, a ortografia perfeita e consegue fazer esses poemas caboclos? Como é que fica na cabeça do senhor essa divisão? Patativa. Ah, sim, é porque Deus me deu o dom, um dom admirável que, quem me ver recitar uma “Maria Gulora”, não sabe se eu também componho verso em forma literária com todas as sílabas predominante, como seja “O Purgatório, o Inferno e o Paraíso” e outros... e outros poemas, outros sonetos, viu?

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Gilmar. Sim. Patativa. Como esse aqui, “O Castigo do Vaidoso”. Tem gente que fica bem preocupada quando vê um cabelo branco sair, aparecer um cabelo branco na sua cabeça e eu sou contra essas besteiras! “Quando ele viu o cabelinho branco na sua farta e negra cabeleira, disse com raiva e cheio de canseira: Demora, diabo, que eu te pego e arranco! Porém o tempo, sério, rijo e franco, que não gosta daquela brincadeira da planície o levou para a ladeira e o pôs bem no cimo do barranco. E hoje o vaidoso tristemente chora bem diferente do que foi outrora magro e pálido qual um esqueleto. Com o espelho quando se depara desconfiado e sem saber repara se ainda vê algum cabelo preto.” Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Dum vaidoso, viu? Gilmar. Agora, como é que o senhor faz, uns na linguagem literária e outros na linguagem matuta? Na hora, lhe dá, assim, um estalo pra fazer de um jeito ou de outro? Patativa. É porque... olha, é preciso um grande cuidado porque a poesia, a beleza da poesia não consiste na linguagem, viu? É um segredo natural. Consiste no poeta saber dizer com precisão aquilo que ele pensou, aquilo que ele quer, quer na linguagem matuta ou quer na linguagem certa, é a mesma coisa, viu? Então, do jeito que eu faço essa poesia, esse soneto, como esse que eu recitei agora e muitos outros que eu tenho, num mesmo instante eu faço a poesia matuta também, apresentando como você já conhece “A Aposentadoria de Mané do Riachão” ou não? Gilmar. Conheço... Patativa. Pois bem, aquilo ali é uma sátira onde eu faço até... debochando da burocracia reinante nessas repartições de aposentadoria


que dão a maior dificuldade para o pobre se aposentar. Então, isso pra mim não há dificuldade nenhuma.

Patativa. É sim! Olha aqui, esse poema aqui, qu’eu num vou recitar ele todo porque você conhece... “A Maior Decepção”. Conhece ou não?

Gilmar. Sim, mas eu queria saber... Patativa. Muda apenas a linguagem.

Gilmar. Conheço. Já li todos os seus livros! Patativa. Pois é! Justamente. Aquilo ali... olha, ele é mostrando que de tudo tem. E em todo o universo tem sempre uma ironia contra os opressores, não é?

Gilmar. Quando o senhor tem uma ideia, como é que o senhor decide se vai ser na linguagem culta ou na linguagem matuta? Patativa. Ai, é porque... quando é... essas sátiras eu sempre escrevo mais na linguagem matuta, esses poemas, tudo, a questão é o pensamento, é a criatividade, viu ? Não é a facilidade. Pra mim, tanto faz. Se houver decassílabo, em linguagem certa, como essa poesia matuta, não há dificuldade pra mim. Tanto faz um como outro, viu? Gilmar. E o senhor tem alguma preferência? Gosta mais de uma linguagem que da outra? Patativa. Não. Eu... eu gosto mais é porque quando eu apresento... ninguém sabe o que é o pensamento. Quase todo o meu poema matuto é apresentado por um analfabeto, num é? Aquilo ali eu quero mostrar ao povo, quero mostrar ao leitor que não é a filosofia não é uma coisa que ele vá aprender lá no colégio, na escola ou coisa não! É uma coisa natural que o camarada recebe como uma herança da natureza. Saber filosofar, saber dar certeza e isso e aquilo e aquilo outro, viu? E é por isso que eu apresento sempre ao caboclo. Gilmar. Por que? Patativa. Veja bem. O analfabeto, se ele nasceu com o dom da inteligência, ele só num fala certo, mas tudo ele sabe. Ele... ele tem o raciocínio de saber o que é bom, o que é ruim, ou de saber como é a vida. E assim por diante, viu? É isso o que eu apresento no... nos meus poemas, viu? Em tudo por tudo. Gilmar. Quer dizer que nos poemas caboclos, é sempre o matuto que está falando na primeira pessoa?

Gilmar. Verdade... Patativa. Sempre tem! Meus poemas são assim, porque eu sou muito revoltado contra a injustiça. Sempre fui. Agora, sei respeitar os donos do poder. Eu num vou afrontar ninguém coisa nenhuma. Tanto é assim que minha poesia é assim dentro desse tema do povo. É assim como um grito de alerta, apresentando o estado de vida aqui... ali na... na classe pobre, né? Gilmar. A sua poesia é social. Patativa. E assim por diante. Como nós... como eu apresento naquele meu poema “Brasi de Cima e Brasi de Baixo”, que é a divisão das classes... Gilmar. O senhor fala muito disso em seus poemas... Patativa. Que eu apresento ali. E finalmente, eu me sinto bem com a minha poesia, porque os intelectuais, os julgadores — assim como você é um deles — sempre estão comigo naquilo que eu digo, naquilo que eu vejo, naquilo que eu sinto... Gilmar. O que você faz é muito bom, Patativa. Patativa. Aí, então, eu me sinto satisfeito com isso, porque eu nunca fiz verso pra querer agradar a Seu Ninguém. Eu faço por conta própria, pra mim porque gosto, nasci apaixonado pela cultura, pela poesia, mas sou tão feliz que todos que ouvem minha... minhas produções estão comigo. Gostam, seja em qualquer tema, em qualquer sentido. Gilmar. Por que o senhor deixou a cantoria? Foi por causa da timidez?

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Patativa. Foi não! É porque quando eu ia cantar, às vezes, eu... Eu fui até ao São José do Egito [PE] uma vez, viu? Fui ao Recife e essa viagem maior que eu fiz! Porque eu nunca deixei de compor poemas. Assim como eu sei e você sabe, conhece meus livros... Gilmar. Todos. Patativa. É repleto de poema. Tudo criado na minha imaginação! Mas que bate dentro da vida real, num é? Gilmar. E como... Patativa. Pois bem. Onde eu cantava ao som da viola, eu também naquele espaço eu ia recitar poema. Aí eu pude observar que na cidade o povo gostava muito mais de me ouvir recitando do que qualquer cantador cantando, eu próprio mesmo, viu? Gilmar. Por que? Patativa. Aí eu... eu sempre num fazia profissão, eu digo: “Sabe duma coisa, o que eu sou é um agricultor. Vivo é de minha roça. Eu num vou mais cantar ao som da viola não!” Aí deixei. Nunca mais cantei. Mas o Lourival, Lourival Batista [violeiro, pernambucano, 1915-1992] — cê sabe quem foi ele? Gilmar. Sei. Patativa. Lourival Batista, que ele tinha uma voz dissonante, viu? Mas era um improvisador grande. Gilmar. Dos grandes... Patativa. Eu sempre cantei com ele onde encontrava assim por oportunidade, porque eu mesmo tendo deixado de cantar, quando me convidavam pra um festival de violeiro — que sempre me convidam! Pra eu ir declamar poesia... Gilmar. Certo. Patativa. Foi quando eu... há o convite — muitos dizem — “Só vou se chamarem o Patativa! Pra ele recitar.”. Aí, eu sempre vou. E ele quando me encontrava num desses festivais, pegava a viola dum camarada e dizia: “Ó, Patativa, cê

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vai cantar um baião de viola comigo.” Eu digo: “Mas, Lourival, eu num já disse que cantava.” “Não, mais... tem nada! Só... só aqui um baião de viola.” — que é rojão assim sem... Gilmar. De improviso... Patativa. Aí, às vezes, eu peguei a viola e fui cantar, viu? Contra a vontade como todo. Eu vou lhe mostrar o quanto ele era... improvisador pra fazer o verso... desde a verdade, quando ele replicando a gente. Gilmar. Sim!? Patativa. Eu disse bem assim... Eu, sabendo que ele era pai de oito filhos, a Dona Helena... ela era... é mãe de oito filhos, viu? E o Lourival até já morreu. Aí, eu peguei a viola e disse bem assim: “Vou fazer o teu pedido / porque sou amigo teu. / E satisfazendo ao povo / que aqui apareceu / e em honra dos oito filhos / que a D. Helena te deu.” E ele replicou bem ligeiro... e assim: “Sei que isso aconteceu / mas você não falou bem. / Se ela me deu oito filhos / eu dei a ela também. / Se ela me deu, dei a ela, / não devo nada a ninguém!” Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Bem feito, num era? É. Improviso rápido! Gilmar. Patativa, o fato de ter sido cantador influiu na sua poesia ou o improviso já era um dom? Patativa. Não, num influiu nada não! Eu cantei porque eu sou apaixonado pela poesia. É cantada, é recitada, é gravada de todo jeito, mas num influiu não! Quando eu cantei ao som da viola eu já tinha... quando eu cantei ao som da viola, eu já tinha era poema, viu? Já recitava poema, viu? Num influiu coisa nenhuma! Apenas aumentou, assim, o meu prazer, porque eu tinha as duas partes, viu? Parte que eu recitava e a parte que eu cantava, viu? Gostava dos cantadores e é uma diversão muito boa os cantadores cantando... Gilmar. Mas essa agilidade que o senhor tem pra fazer poesia, tem tudo a ver também com a


agilidade do improviso do violeiro... Patativa. É sim, sendo cantada é mais fácil, viu? Porque vem mais lento a... por causa da toada, num é? Do que recitar, assim, dar o mote e o camarada recitar, falando mesmo, viu? A cantoria é muito mais fácil do que o improviso falando, viu? É, muito mais! Gilmar. Verdade? Patativa. Agora, versejar, Gilmar, é até fácil. Olhe, um carro vira ali e tal e mata dez, doze, quinze pessoas, viu? O poeta versejador, ele conta tudo aquilo bem direito, não falta um nada, viu? Gilmar. Tem tempo para criar... Patativa. Mas é porque ele viu, num é? É o que eu digo: a diferença do poeta para o versejador é porque o Patativa faz é criar na mente, como isso aqui, olha: “Filho de Gato é Gatinho”. Cê num já viu aquilo meu? Gilmar. Vi. Patativa. Que é um casal de ladrões, o esposo e a esposa. Pois bem, nada... eu nunca vi aquilo. Eu crio na minha mente qualquer um trabalho desses. Gilmar. Patativa, quando o senhor tinha uma melhor capacidade de visão, você já criava na mente ou alguma vez cê chegou a criar em papel, retocando? Patativa. Não... não... Toda vida eu criei assim na imaginação. É. Eu tenho um pensamento muito fácil em todos os sentidos, sempre tive, viu? Aí, então, eu depois que pensava assim, aí eu ia apresentar o poema. Fazia na minha mente, pensava a história, aquele quadro aí, ia contar ele todo em verso, bem, com toda espontaneidade, com toda graça, coisa assim, mas coisa que valesse, com bem aquelas... Gilmar. Só depois é que passava pro papel? Patativa. Era sim. Pensava a história na mente, depois era que eu ia passar pro papel. E às vezes eu pensava na mente primeiro o quadro, aquilo... o esboço, vamos dizer...

Gilmar. Sim. Patativa. Daquilo... do que ele queria fazer. Gilmar. E não esquecia? Patativa. Deixava assim na mente. Aí era reproduzir em verso. E guardando na mente ficando retido na memória. Depois de tudo era que se eu tivesse chance de publicar, eu mandava bater à máquina ou no tempo que eu mesmo escrevia, com a minha letra, viu? Olhe, aquele meu poema “A Escrava do Dinheiro” aquilo é um poema onde eu apresento... Ali é um sonho desfeito e ao mesmo tempo é eu mostrando a verdade sobre o dinheiro, de quem não sabe possuí-lo. O dinheiro é tanto que o derradeiro poema, a derradeira estrofe eu digo: “Dinheiro é um fogo ardente que faz muito coração se derreter como cera na quentura do tição. Dinheiro transforma tudo faz dum alegre um sisudo da nó e desmancha nó. E finalmente o dinheiro é o maior feiticeiro é o rei do catimbó.” Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Porque o dinheiro é isso mesmo, viu? Gilmar. Complicado... Patativa. Quem não sabe possuir, emprega em qualquer coisa... o dinheiro é pra tudo. Agora, não é o próprio dinheiro, é o elemento que o possui. Mas o dinheiro é pra ser o nosso escravo, é o nosso moleque, é o nosso criado... pra poder fazer uma coisa de precisão. Aí tá certo, viu? Mas pra adorar o dinheiro não! E nesse poema, olha, eu digo bem assim no começo: “Bom noite, todo minino e muié desse lugar! Peço que se... me dê licença pra uma história contar. Como matuto atrasado, eu deixo a língua de lado pra quem a língua aprendeu. E quero a licença agora

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pra eu contar minha estóra com a língua que Deus me deu. Mas antes de começar eu premeramente vô dizer que o dinheiro é o maior transformador... [tosse] Ah, pois sabe o mundo inteiro que este bichinho, o dinheiro, com sua força e poder, a sua manha e seu jeito tem feito muito sujeito se dê... sisudo se derreter. Dinheiro transforma tudo. Dinheiro é quem leva e traz Eu não quero nem dizer tudo o que o dinheiro faz. Apenas aqui eu conto que ele pra tudo tá pronto. Ele é cabreiro e traidor, é carrasco, é vingativo só presta pra ser cativo, não presta pra ser senhor. A pessoa neste mundo bota o pé na perdição quando ela deixa o dinheiro gonvernar seu coração Pra todos que tão me ouvindo não dizer que eu tô mintindo eu vou agora contar uma estóra piquinina a estóra de Regina pra ninguém me duvidar.” E aqui continua, num é? Gilmar. E vai longe... Patativa. Aqui é aquele poema que eu criei “A Cabocla”, viu? Já tinha o noivo dela, mas na noite de Natal apareceu um sujeito todo pronto, com... cheio de anel, diabo a sete... Quando ela viu ele, se apaixonou. Gilmar. Quando você mesmo escrevia os seus poemas, eles saíam da cabeça prontos ou na hora que estava escrevendo você mudava alguma coisa?

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Patativa. Não, num mudava nada, nada! Saía do meu jeito. Eu... aqui na cabeça era como... assim, um gravador que eu gravava com o maior cuidado, com o maior carinho pra não faltar nada. É tanto que aí pelas gráficas, quando eu mando lê meus versos, é raro o livro num sair com um erro, viu? E eu fico assim tão desgostoso! Gilmar. Com razão... Patativa. Quando eu faço, às vezes, num é nem a frase toda, uma palavra só! Gilmar. Uma palavra só já...já faz diferença! Patativa. É, é. Gilmar. Quer dizer que o senhor nunca gostou de retocar? Fazia na cabeça e pronto? Patativa. Ah, fazia na cabeça e tava pronto! Num... num retocava nada. Era qualquer... qualquer sentido, viu? Gilmar. E como é que o senhor consegue gravar tudo o que faz? Esse grande gravador que o senhor falou... Como é que o senhor acha que é a sua memória? Patativa. É sim, porque... eu tenho até aquele que fala no gravador, não é? “Gravador, que estás gravando aqui no nosso ambiente Tu gravas a minha voz, o meu verso e o meu repente, mas gravador, tu não gravas a dor que o meu peito sente! Tu gravas em tua fita com a maior perfeição o timbre de minha voz e a minha fraca expressão. Mas não gravas a dor grave gravada em meu coração. Gravador, tu és feliz e ai de mim, o que será? Bem só ser desgravado o que em tua fita está e a dor do meu coração jamais se desgravará!”


Gilmar. E o senhor fazia exercícios de memória para gravar ou é porque tem a memória privilegiada mesmo? Patativa. Não. É porque eu tenho uma memória, modéstia à parte, é uma cosa quase como que rara, porque eu nunca encontrei quem tivesse a memória o quanto eu tenho... Tive! Hoje em dia já não sou mais como eu... sabe por quê? O homem já com 87 anos – posso dizer, porque vou completar 87 agora no dia 5 de março...

Gilmar. E gosto muito dos seus poemas. Patativa. Muito obrigado, viu? Muito agradecido.

Gilmar. Com mais uma festa... Patativa. Mas eu sempre... sempre tive, assim, uma memória grande, porque... se eu for recitar os poemas que eu tenho retido na memória...

Gilmar. “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa” também? Patativa. Ao Zé Bernardo da Silva, viu?

Gilmar. Ah, vai uma semana! Patativa. Ah...o resto do dia num dá não, viu? Que é muita coisa. É muita coisa, viu? Gilmar. O senhor nunca se interessou muito pelo cordel, por que? Patativa. Não! Eu nunca me interessei, porque o cordel, aquele ali... é um comércio. Se aquele camarada publica o cordel e aí vai vender pr’aqui, pr’acolá, num sei o quê e tal e tal, mas eu sempre escrevi cordel bem... Num foi muitos não! Mas escrevi bem uns treze ou quinze ou até mais por aí, viu? Mas, no meu cordel, é quase que era eu que criava as coisas também, viu? [Os folhetos do Patativa estão enfeixados na coletânea “Cordéis”, publicada pelas Edições UFC, em 1999]. Gilmar. Sim. Patativa. Era. Como aquele negócio que tá no meu folheto “ Brosogó, Militão e o Diabo”. Isso foi que eu inventei, viu? Mas no fim, porque eu desejo minha poesia assim, o desfecho dá sempre dentro da nossa vida real. É contando como o que um poema aquilo equivale quase o mesmo conto, apenas é versejada em verso, viu? Não é em prosa. Você já leu mesmo os meus livros todos com certeza, já!? Gilmar. Todos eles. Patativa. Pois é.

Gilmar. O senhor tem lembranças do José Bernardo [alagoano, 1901/1972, estabelecido em Juazeiro do Norte] da Tipografia São Francisco? Patativa. Tenho lembranças de Zé Bernardo. Fiz presente a ele de cordel, viu? “Abílio e o Cachorro Jupi” é um cordel de minha autoria que eu fiz presente a ele.

Gilmar. O “Aladim...” também? Patativa. Sim, a “Lâmpada de Aladim” também, fiz presente. Ele... foi meu amigo. Eu gostava muito dele, viu? Quando eu ia a Juazeiro, eu sempre ia lá à tipografia... bater um papo com ele e a Dona Ana [1901-1973], que era a esposa dele, viu? Gilmar. Foi o senhor que deu o nome Lira Nordestina à gráfica antes de ser vendida? Patativa. Não! Eles disseram que fui? Gilmar. Disseram. Patativa. Pois então, tá muito bem! É porque eu posso ter esquecido, num é? Gilmar. Porque era Tipografia São Francisco e quando foi vendida ao Governo do Estado, em 1980, o nome era Lira Nordestina. O seu Expedito disse que quem deu o nome foi o senhor. Patativa. Ah, então, muito bem. Eles com certeza combinaram comigo e eu dei... e tá bem aplicado, num é? Gilmar. Tá! Bem aplicado. Patativa. É. Muito bem. E você conhece o Expedito [Sebastião da Silva,1928-1997]? Gilmar. Muito! Muito meu amigo. Gosto muito dele. Patativa. Pois é. E ele é um poeta, viu?

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Gilmar. Dos bons... Patativa. Ele escreve cordel bem feito, viu? Gilmar. Não é versejador não? Patativa. É não. É poeta mesmo, viu? É. Gilmar. O senhor teve alguma influência do Padre Cícero, Patativa? Patativa. Não! Eu num tive o prazer de conversar com o padre Cícero, viu? Não, nunca conversei com o Padre Cícero, viu? Agora, eu fiz aquele poema, que você viu, “O Juazeiro”, não é? Gilmar. “Saudação a Juazeiro”. Patativa. Uma “Saudação a Juazeiro do Norte”, que ali é uma verdade. Juazeiro cresce apoiado na glória do Padre Cícero. E há de continuar! Que ninguém tira aquela crença. E nem deve procurar tirar. Gilmar. É muito forte. Patativa. E nem desviar aquele povo. Cada um precisa de ter prazer na vida. E o prazer daquele povo, o maior prazer, a glória deles é aquela crença, é aquela via sacra penosa que eles fazem constantemente ali, não é? Gilmar. Verdade. Patativa. É. Eu dou razão a eles. Deus me livre de fazer um poema contrariando a... Gilmar. Contrariando os romeiros? Patativa. Sim! Contrariando o romeiro. Gilmar. O senhor é devoto de Padre Cícero [Romão Batista, 1844-1934]? Patativa. Eu? Não, não sou devoto do Padre Cícero não! Sou não! Apenas... (zoada de palito sendo riscado duas vezes; depois, silêncio...) Mas gostei muito do que ele fez, viu? Toda vida julguei ele como um grande político, inteligente, inteligente... Ele sabia tudo. É tem muita coisa que o Padre Cícero profetizava... O povo dizia que ele profetizava. Aquilo não era profetizar! Ele era estudioso, sabia o que tava havendo lá... em certo países, no fim do mundo e sabia que aquilo chegaria aqui...

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Gilmar. Como se fosse profecia... Patativa. Eu ouvi que uma vez em São José de Araticum [atualmente Quincuncá, distrito de Farias Brito, CE], o povo, muita gente até zombando, porque ele disse que um bezerro chegaria a dar... até dez contos de réis. Naquele tempo era conto, num era? Gilmar. Sei. Patativa. Ora, naquele tempo um bezerro num era nem duzentos mil réis. Como diabo era que ia dar nisso? Gilmar. Dez contos. Patativa. Ora, quando decorreu o tempo, decorreu, decorreu, decorreu e quando chegou, aí foi um milagre! Disse... : “Bem que Padre Cícero disse!” Porque ele disse, que ele sabia que aquilo estava em tal país e vinha de lá pra cá até chegar aqui também, não é? E assim muitas coisas, viu? Eu... eu gostei... eu nunca fui contra o Padre Cícero não! Deus me livre! Agora num tinha ele como milagroso, não. [som de fósforo sendo riscado] Gilmar. O que Juazeiro do Norte representa para o senhor? Patativa. Ah! Juazeiro do Norte... representa assim a figura do Padre Cícero e continuará crescendo constantemente sempre apoiado nas glórias do Padre, viu? Por causa dessas romaria. O Juazeiro é feito pelos romeiros, viu? Essas propagandas, tudo isso e esse dinheiro... Há tanta gente que propaga ali o Padre Cícero, mas que... não acredita! Mas que acredita no dinheiro, no progresso, nos dois... e assim, Juazeiro vai crescendo, crescendo... E há de crescer, viu? Gilmar. E é um grande centro de artistas, não é, Patativa? Tem muitos artistas lá. Patativa. Muitos artistas. Olha, porque o povo fala que o Crato, assim, que é o centro de cultura num sei o quê e tal e tal, assim. Mas na indústria é Juazeiro, viu? Juazeiro tem de tudo, meu amigo. Juazeiro tem de tudo! E tem atraído muita gente, muitos artistas, viu?


Gilmar. É uma cidade que o senhor quer bem? Patativa. Quero bem, viu? Quero bem o Juazeiro! Eu gosto do Juazeiro, porque... sim, eu gosto de todas as cidades que eu chego... eu tenho o mesmo acolhimento, em Juazeiro. Eles gostam muito de mim, como em Crato também. Mas eu chego em Juazeiro, me sinto mais... mais à vontade, porque... Juazeiro a gente vive como bem quiser, viu? Ali ninguém ignora nada. Cada um tem sua vida do jeito que pode e num é ignorado e tal, viu? Num é cidade de luxo, de desatino, não! Gilmar. O senhor conheceu Mestre Noza [Inocêncio da Costa Nick, 1897-1983]? Patativa. [Silêncio de uns poucos segundos] Conheci não! Num conheci não! [Toca o sino da igreja, repetidas vezes] Mas... eu sempre ouvi dizer, assim, os improvisos dele... ele era espirituoso, fazia as coisas, num era? Gilmar. E fazia muita escultura do Padre Cícero, muito santo... Patativa. Era... e ele... Gilmar. Mas o senhor não conheceu não, Mestre Noza? Patativa. É! Não conheci ele... assim, pessoalmente não! Apenas... me disse... um cidadão me disse... um senhor me disse, o camarada chegou lá e disse isso: — “Mestre, que preço tem isso aqui?” Ele disse: — “É tanto.” Aí, ele... disse: — “Num deixa por tanto não!?” Baixou um pouco. Ele disse: — “Não! O preço é esse.” Aí, ele... saiu. Quando voltou, acho que num encontrou outro material por lá do jeito que ele queria, mais barato e tal, voltou pra comprar e ele disse: — “Não! Eu acho que eu vou querer assim mesmo dez, viu?” Ele disse: — “Não! O senhor num quer que o senhor

botou foi oito. Pode procurar uma de oito por aí! viu?” [Gargalhadas de ambos] E assim por diante. [Provável confusão com Joaquim dos Santos Rodrigues, o popular “seu Lunga”, de Juazeiro do Norte, conhecido por suas respostas ríspidas]. Gilmar. Deixa que eu acendo. Patativa. É porque eu... [som de fósforo sendo riscado, duas vezes] Cada um, Gilmar, tem sua forma de pensar, não é? Gilmar. E o direito de pensar... Patativa. Olhe, quando alguém me perguntou o que eu dizia sobre o Beato Zé Lourenço [1872-1946], eu fiz o seguinte verso no dia: “Sempre digo, julgo e penso que o Beato Zé Lourenço foi um líder brasileiro que fez os mesmos estudos do grande herói de Canudos nosso Antônio Conselheiro. Tiveram o mesmo sonho de um horizonte risonho dentro da mesma intenção criando um sistema novo para defender o povo da maldita escravidão! Em Caldeirão trabalhava e boa assistência dava a todos os operários... [tosse] com a sua humilde gente lutava pacificamente contra os latifundiário. Naquele tempo passado Canudos foi derrotado. Sem dó e sem compaixão com a mesma atrocidade e maior facilidade destruíram o Caldeirão! Por ordem dos militares avião cruzou os ares com ódio, raiva e com guerra na grande carnificina contra a justiça divina o sangue molhou a terra. Porém, por vários caminhos

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pisando sobre os espinhos com o sacrifício imenso, seguindo o mesmo roteiro sempre haverá Conselheiro e Beato Zé Lourenço.” Gilmar. Ah, que bonito! Patativa. É... é. Gilmar. E qual é a sua opinião sobre Lampião? Patativa. Eu nunca escrevi nada sobre Lampião [Virgulino Ferreira da Silva, 1898-1938]. Mas... se o Lampião não tivesse sido injustiçado... Lampião teria sido outro homem, viu? [Engasga-se] Segundo... a história que eu já pesquisei... quem me contou tudo foi o Sargento Feitosa. Gilmar. Sim... Patativa. E até as perseguições, ele disse que não chamava perseguir, ele ia porque era mandado... por seus... superiores. Mas não que ele tivesse coragem de atirar em Lampião. Aí ele me contava que Lampião era, assim... era até um tropeiro quando bem rapazinho novo, viu? E ele disse que essa história de dizer que Lampião chegou... chegou em certo lugar, mandou que o povo dançasse despido, ele disse que Lampião num tinha... num tinha essa qualidade coisa nenhuma! Esse sargento que conta... Gilmar. Sim. Patativa. Já até morreu. Morava lá em Araripina [PE]. Mas eu nunca quis escrever nada sobre Lampião não. Gilmar. Por que? Patativa. Porque mesmo eu não quis! Mas não que eu considerasse ele um bandido. Eu não! Eu... eu considero ele... que ele foi, assim, um guerrilheiro, viu? É, sim. É revoltado contra injustiça. Gilmar. Quer parar um pouco, Patativa? Patativa. Hum? Gilmar. Tá cansado? Quer parar um pouco? Patativa. Não! Eu quero conversar...

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Gilmar. Como foi a publicação do seu primeiro livro? Patativa. Meu primeiro livro foi uma coisa, foi um sonho realizado, que eu num sequer pensava... Eu nunca pensei em publicar um livro. Eu vivia aqui na... na minha roça, mas no Crato tinha a Rádio Araripe e Teresinha Siebra [1924] era naquele tempo bem jovem, viu? E apresentava um programa lá na Rádio Araripe [fundada em 1951]. E sempre quando eu ia ao Crato, assim, voluntariamente... e me chamavam lá e eu ia... E eu ia recitava poemas lá. Naquele tempo, eu tinha uma infinidade de poemas, todos retidos na memória... Gilmar. Ainda hoje... Patativa. E Teresinha era a apresentadora desse programa que eu nem sequer relembro o nome do programa, Teresinha Siebra. E dessa vez eu estava lá, o doutor José Arraes de Alencar vinha sempre visitar a mãe dele, a finada Silvina, aí no Crato. E, certa vez, eu estava recitando na Rádio Araripe, quando ele perguntou. Ele disse assim: — “Mãe, quem é que recita na Rádio Araripe, uma maravilha de poema! Uma coisa tão digna de atenção e de divulgação?” Ela disse: — “É um rapaz lá do Assaré, lá da Serra de Santana. Ele é um agricultor, mas ele é um poeta. O povo fala que ele é um grande poeta. Eu num sei julgar, mas acho muito bonito ouvir quando ele recita ali.” E aí ele.. ele disse: — “Eu vou mandar chamar esse rapaz aqui.” Aí mandou uma pessoa lá na Rádio Araripe, pra quando eu terminasse ir à casa da finada Silvina, mãe dele. Gilmar. Sim. Patativa. Aí, quando eu cheguei lá... Eu não o conhecia! Coisa nenhuma! Nem sequer quase o nome. Ele era até conhecido por “Du”. Todo o povo do Crato tratava ele “Du”. Aí, eu fui. Quando eu cheguei lá, ele disse: — “Mas, assim, me diga uma coisa: você tem uma riqueza de cultura, por que você num


publica ?” Aí, eu disse: — “Doutor, eu sou um agricultor muito pobre. Eu nunca sonhei em publicar nada meu, porque... num há condições!” Ele disse: — “Pois, olha, vamos publicar um livro? Você tem muitas coisas fora essas... você?” Eu disse: — “Tenho! Eu tenho muita coisa retida na memória, viu?” — “Vamos publicar um livro?” Eu disse: — “Doutor, eu num posso.” Ele disse: — “Não! Mas você está tratando com gente amiga. Olha, você... Antônio Gonçalves – você quer que eu lhe diga uma coisa? Se você num quiser, num aceitar o que eu tou pedindo, você num vai ficar como um poeta não! E prova é que fica... de que... de você, um grande poeta, como eu estou vendo que é, sem você publicar um livro? Você tá tratando com gente amiga.” Aí, disse: — “Menino, vai lá no cinema. Diga a Moacir Mota que venha cá, que aqui tem coisa muito melhor do que cinema!” Gilmar. [Risos] Patativa. Ai, ele era muito amigo dele. Ele era bancário também. E já até aposentado. Aí, quando doutor Moacir Mota chegou [1913], filho do grande Leota [o folclorista Leonardo Mota, 1891-1948], ele disse: — “Olha aqui esse rapaz. Tem tanta poesia bonita, viu? E eu disse a ele que poderia publicar um livro. Tou chamando ele pra gente publicar um livro. E você, o que diz? Olha, ele aqui tem uns versos. Fala até do seu pai.” Aí, ele... — “Recita aí, Patativa, alguma cosa!” Eu recitei. Agradeci. Eu disse: — “Mas, doutor e se esse livro?” Ele disse: — “Olha, é assim: a cópia vai para o Rio. Eu publico lá no Rio. E pago o impresso – não só

eu, porque eu com meus amigos! Que eu num tenho fundo de reserva. Eu num tenho... dinheiro. O livro vem pra aqui, vai guardado no Banco do Brasil, você vai vendendo e pagando parceladamente com a venda do próprio livro. Aí, você paga assim dessa forma.” Eu disse: — “Mas, doutor, e se o livro num tiver sorte, como é que fica?” Aí, ele riu e disse: — “Você ou é um vencido ou então é muito honesto, viu?” Gilmar. [Risos] Patativa. — “Já tou conhecendo! Não! Isso não acontecerá não, Patativa.” Aí, o Moacir Mota disse: — “E eu me ofereço pra datilografar a cópia sem cobrar um vintém.” Ele disse: — “Olha aí, como está dando certo! Você vem aqui para o Crato, você faz refeição aqui na casa da minha mãe, quando o Moacir deixar o trabalho do banco, vai lá para o Pimenta, onde ele mora. Você vai recitando e ele vai batendo, até completar essa cópia.” E assim aconteceu. Foi. E ele mesmo deu o título: “Inspiração Nordestina” [Rio de Janeiro, Borsoi Editor, 1956]. Foi o primeiro livro que publiquei. Aí, quando esse livro saiu, foi guardado no Banco do Brasil. Era o José Albuquerque era o intermediário que ia me entregar o livro. Quando eu cheguei lá... Naquele tempo era uma atração grande quase que num tinha nem transporte para o Crato. Eu ia era... era num animal, com duas malas, uma dum lado e outra do outro, pra trazer livro. Chegando lá, ele... contava os livros... passava lá um tal recibo e me entregava. E eu marcava o dia de ir entregar o dinheiro e trazer mais livro. Aí, eu já tinha muita preferência por aqui, pelo campo, toda parte, viu? Gilmar. Sim? Patativa. Num instante eu vendia e ia lá. Quando eu fui a terceira vez deixar os livros... deixar o dinheiro e trazer mais livro, aí o Zé

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Albuquerque que trabalhava no banco disse: — “Patativa, cê quer que eu lhe diga uma coisa? Taqui a chave. Você sabe onde é o quarto, você destranca, você leva os livro que quiser, vem no dia que bem quiser e nós aqui já estamos sabendo que estamos tratando é com um cabra danado mesmo, viu?” Aí, eu fiquei muito satisfeito com essa confiança, viu? Aí, e assim eu fiz. Se eu tratava de chegar na quinta, eu chegava terça ou quarta, levando o dinheiro e trazendo mais livro. E foi assim que foi publicado o livro. E eu fiquei satisfeito. Aquilo foi um sonho realizado que eu nem sequer esperava na minha vida! Eu devo tudo ao doutor José Arraes de Alencar [filólogo e bancário, 1896-1978]! Hoje, ele já até morreu. É de saudosa memória. Gilmar. Você vendeu esse livro então mais no campo do que na cidade? Patativa. É. Vendi muito mais no campo do que na cidade. É, mais vendia depressa, viu? Porque todos já conheciam os poemas que tinham nele. Não sabiam eles gravados, decorados na mente, mas... ouviam eu recitar, não? Gilmar. Quer dizer que saiu direto da sua cabeça para a máquina de escrever? Patativa. É que... olha... Gilmar. Você chegou a escrever à mão? Patativa. Não! Gilmar. Você ditava pro Moacir Mota? Patativa. Era. Eu ia recitando...E ele batendo, viu? Era raro eu levar um poema. Mais poema novo que eu publicava e... escrevia, mas alguns mesmo. O resto eu tinha tudo gravado na mente, viu? E a apresentação do livro tem: “Leitor, caro amigo eu te juro e não nego meu livro te entrego bastante acanhado. Por isso, eu te aviso me escuta o que digo: Leitor, caro amigo,

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não leia inganado! (tosse, falta ar) Não vá percurar nesse livro singelo o canto mais belo da lira vaidosa, nem brilho de estrela, nem moça encantada, nem ninho de fada nem cheiro de rosa. Em vez de perfume do luxo ou da prata tem cheiro sem graça de amargo suor, suor de um caboco que vem do roçado com fome e cansado.” Gilmar. Nunca teve medo da pessoa que datilografava mudar alguma coisa do seu poema? Patativa. Não! Graças a Deus que nunca aconteceu, porque eu tenho o maior cuidado e até ciúme e eu sempre estou ao lado, quando eu tou recitando para alguém datilografar. Eu... eu sou muito ciumento com a minha poesia. Eu num quero que mude nada, quero que diga o que eu disse. Gilmar. O senhor tem algum original que tenha sido escrito pelo senhor? Patativa. Eu não tenho guardado não. Mas que aí nessa sala da frente, naquele retrato meu e de Luiz Gonzaga tem ainda a minha letra escrito. É só o que eu tenho. Gilmar. Mas poema escrito com a sua letra? Patativa. Não, não tenho! [apareceram uns cadernos, com manuscritos, quando da organização do Memorial Patativa do Assaré, inaugurado em 1999] Gilmar. Tem um poema do senhor, dos mais famosos, “Cante Lá Que Eu Canto Cá”. Mas o senhor cantou aqui e cantou lá, também! Como é que é isso? Patativa. Foi. Cantei aqui e cantei lá, cantei em toda parte, viu?


Gilmar. [Risos, risos] Patativa. É, mas ali é um poema muito... É preciso saber interpretar... porque “Cante Lá Que Eu Canto Cá” é só em um sentido que eu digo: é que o poeta da cidade ele não sabe cantar o sertão como o Patativa canta, porque ele poderá já ter até vivido no sertão um dia, um mês e tal, mas ele não sabe a vida do sertão! Ele não sabe por experiência, que é o que eu digo no poema. É que muita gente acha que aquilo é como uma sátira. Não é! Não é uma sátira! Eu conto lá a vida dele, onde é que ele vive e tal: “Pueta cantor da rua que na cidade nasceu cante a cidade que é sua que eu canto o sertão que é meu. Se aí você teve estudo aqui Deus me ensinou tudo sem de livro precisar. Por favor, não mexa aqui que eu também não mexo aí. Cante lá que eu canto cá.” Gilmar. Cantou, aliás, em quase todo o mundo... Patativa. “Você teve inducação aprendeu muita ciênça mas das cosa do sertão não tem boa experiença. Nunca fez uma paioça. Nunca trabalhou na roça. Não pode conhecer bem, pois nessa penosa vida só quem provou da cumida sabe o gosto que ela tem. Pra gente cantar sertão precisa nele morar, ter armoço de feijão e a janta de mucunzá. Viver pobre sem dinhero trabalhando o dia intero socadodentro do mato de apragata currulepe pisando em riba do estrepe brocando a unha de gato. Você é muito de todo.

Sabe ler e sabe escrever. Pois vai cantando o seu gozo, que eu canto o meu padecer. Enquanto a filicidade você canta na cidade cá no sertão eu enfrento a fome, a dor e a miséra. Pra ser pueta de vera pricisa ter sufrimento! Sua rima ainda que seja bordada de prata e oro para a gente sertaneja é perdido esse tesoro. Com os seus esse bem feito não canta o sertão dereito, pruque você não cunhece nossa vida aperriada. E a dor só é bem cantada cantada por quem padece! Só canta o sertão dereito com tudo quanto ele tem quem sempre correu estreito sem proteção de ninguém cuberto de pricisão suportando a privação com paciência de Jó, puxando o cabo da enxada na quebrada e na chapada, moiadinho de suor. Amigo, não tenha quexa. Veja que eu tenho razão em lhe dizer que não mexa nas cosa do meu sertão! Pois se não sabe o colega de qual manera se pega num ferro pra trabalhá por favor não me chateie que eu não mexo aí cante lá que eu canto cá. Repare que a minha vida é deferente da sua. A sua rima pulida nasceu no salão da rua. [tosse e se engasga] Já eu sou bem deferente meu verso é como a semente

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que nasce em riba do chão Não tenho estudo nem arte a minha rima faz parte das obra da criação. Mas porém, eu não invejo o grande tesouro seu. O livro do seu colégio onde você aprendeu. Pra gente aqui ser pueta e fazer rima completa não precisa professor basta ver no mês de maio um puema em cada gaio e um verso em cada fulô. Seu verso é uma mistura é um passará papé, que quem tem poca leitura lê, mas num sabe o que é! Tem tanta coisa encantada tanta deusa, tanta fada tanto mistério e condão e outro negócio impussíve. E eu canto as coisa visíve do meu quirido sertão! Canto as fulô e os abróio [engasga-se] com todas coisa daqui. Pra todo lado que eu óio vejo um verso se bulir. Se às vez andando nos vale atrás de curar meus male quero reparar pra Serra, assim que eu óio pra cima vejo um dilúvio de rima caindo em riba da terra. Mas tudo é rima rastera de fruita de jatobá, de folha de gamelera e fulô de trapiá, de canto de passarim e da pueira do caminho quando a ventania vem. Pois você já tá ciente nossa vida é deferente e o nosso verso também. Repare que diferença

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existe na vida nossa. Enquanto eu tô na sentença trabaiando em minha roça, você lá no seu discanso fuma o seu cigarro manso bem prefumado e sadio. Já eu aqui tive a sorte de fumar cigarro pobe feito de paia de mio. Sua vida é divirtida e a minha é grande penar só numa parte da vida nóis dois somo bem iguar. É no dereito sagrado, por Jesus abençoado, pra consolar nosso pranto conheço e não me confundo. Das coisa mió do mundo nóis goza do mermo tanto. Eu não posso lhe invejar nem você invejar eu. O que Deus lhe deu por lá Deus aqui também me deu. Pois minha boa muié me estima com muita fé, me abraça, beija e qué bem. E ninguém pode negar que das coisa naturá tem ela o que a sua tem.” Gilmar. Patativa, donde veio essa sua preocupação social: foi da Igreja, de algum partido político que você fez parte? Donde foi que veio essa sua preocupação com as injustiças sociais? Patativa. É que eu fui um leitor assíduo. Eu gostei muito de ler. E o que eu li com mais prazer sempre era as pregações de Jesus Cristo, viu? Era os direitos humanos, o direito de cada um e, finalmente, foi... Eu, que também de nascimento mesmo, eu comecei logo a ver a verdade, a justiça e a verdade, viu? Gilmar. Com muita lucidez... Patativa. E por isso, então, eu apoio esse tema: ser um poeta social, um poeta do povo, um poeta que você já tem visto muito minha... onde


tem aquele meu poema, “O Agregado e o Operário”, num é? É. Gilmar. A gente pode dizer que tudo foi a partir da doutrina de Cristo? Patativa. Foi! A partir da doutrina de Cristo foi que me veio com muito amor, continuar fazendo verso dentro da verdade e da justiça, defendendo o povo como tem muito poema aí, até soneto... que tenho um soneto aqui “O Peixe”... Gilmar. Mas o senhor foi ligado a alguma religião? Patativa. Não! Nunca. Sempre fui um católico, por causa do meu jeito, acreditando nas pregações de Cristo e também nas obra da criação. O supremo dominador de todas as coisa, que tudo fez, viu? É tanto que certa vez, eu li um livro de um autor, mas não gostei, porque ele vacilava ou então com uma certa descrença sobre o criador do mundo. Gilmar. Sim... Patativa. O criador de todas as coisas. E então eu fiz esse soneto com o título “O Burro”: “Vagueia o trote pelo chão da terra com a vista espantada e penetrante e ninguém nota em seu marchar volante a estupidez que esse animal encerra. Muitas vezes manhoso ele se enterra sem dar uma patada para adiante. Outras vezes pinota revoltante e sacode o seu dono sobre a terra. Mas contudo esse monstro [tosse... silêncio] sem noção... Não!! [erra] Mas contudo, esse bruto sem noção que é capaz de fazer uma traição a quem que que ele venha na defesa é mais manso e tem mais inteligência do que o sábio que trata de ciência e não crê no autor da natureza.” Gilmar. O senhor fez parte de algum partido político? Patativa. Não! Eu nunca fui político, viu? Fui

um simples eleitor. Agora, eu sempre tive foi muita responsabilidade... É tanto que tantos os governantes gostam de mim. E sabem que eu não sou político! Eu fiz uma política somente uma vez. Foi do Tasso quando ele... foi candidato a primeira vez a governador do Estado. Mas veja bem por qual motivo. Gilmar. Qual? Patativa. Eu estava aqui com a minha esposa... a Belinha, que hoje está... no céu.. e, naquele tempo, o candidato a governador era o Tasso Jereissati [empresário, 1948, três vezes governador do Ceará] e o outro era Adauto Bezerra [banqueiro, 1926, ex-governador do Ceará por eleições indiretas]. E o Pedro Bandeira [violeiro, 1938, ex-vereador de Juazeiro do Norte], que era do outro lado, ele lá na Rádio Iracema [de Juazeiro] — você veja bem, sobre campanha política, viu? Gilmar. Sempre apaixona muito... Patativa. As mentiras que surgem na política. Ele disse assim: — “Esse Tasso Jereissati que anda acima e abaixo com a sua caravana a fazer comício, enganando a boa fé do camponês e do operário, é um comunista disfarçado, viu? O homem é comunista do pé à ponta! Porque quem disse foi um homem que nunca ninguém viu ele andar com mentira. Quem disse que ele é comunista foi o Patativa do Assaré!” Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Foi! E eu aqui ao pé do rádio, viu? Gilmar. Pensando no que deveria fazer... Patativa. Houve tudo isso. Eu fiquei revoltado e desgostoso, mas falei assim pra minha esposa. Eu digo: — “Belinha [Belarmina Paes Cidrão, com quem se casou em 1936], só há um cano de escapação para mim, viu? Porque se eu silenciar, todo o povo que está ouvindo o que o Pedro está dizendo aí, mentindo, fica acreditando que eu disse mesmo. E por isso eu

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vou procurar esse homem onde ele tiver, vou entrar na política dele, na campanha dele e... e vou desmentir o Pedro e quem pensar que eu disse isso!” Ela disse: — “Você é quem sabe!” No mesmo dia Mauro Sampaio [médico, 1927, ex-deputado federal e duas vezes prefeito de Juazeiro do Norte] chegou aqui e eu contei tudo a ele. Eu disse: — “Mas, doutor Mauro, isso é revoltante! Eu nunca andei fazendo campanha, mas sou obrigado a procurar esse homem.” Ele disse: — “Olhe, amanhã ele está em Ipaumirim [CE] e eu vou pra lá. Quer ir comigo?” Eu disse: — “Vou!” Levei até roupa. Cheguei lá me apresentei a ele. Dele eu só conhecia o nome: Tasso Jereissati e tal. Aí, contei a ele. Aí continuei. Fui até o fim. Até quando ele foi no interior. Ói, calcule, que querem brincar com a gente!! Quando eu encontrei o Pedro, não! Quando eu encontrei o Pedro, eu disse assim... — “Pedro, você! Pedro, tenha vergonha! Mas, rapaz, como é que você faz aquilo comigo!? Você trepa aí num tamborete da Rádio Iracema e disse que eu havia dito que o doutor Tasso Jereissati é um comunista danado, heim!?” Ele disse: — “Ai, Patativa, você nunca fez política não? Rapaz, isso é a política! A gente... a gente mete o couro no outro e mente que é pra poder derrubar, rapaz!” Eu digo: — “Mas, rapaz, isso é... isso é..”. — “Pois é, eu disse e vou ficar dizendo.” Eu digo: — “Pois você vai errar!” De fato. Pois bem, foi só a vez que eu entrei na política. E política... eu falo é sobre a política. Gilmar. E o senhor não teve medo assim de subir em palanque e desgostar o seu leitor? Patativa. Não! Como?

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Gilmar. Não, eu digo: o senhor subir num palanque com o Tasso podia ser que uma parte dos leitores dos seus poemas não gostasse... Patativa. Nada que eu não estava pensando nisso não! Eu, quando entrei na campanha do Tasso Jereissati, todos os camponeses gostam muito de mim e acreditam sempre naquilo que eu digo, viu? Modéstia à parte, eu sou muito acreditado pelos camponeses, pelos populares, viu? Gilmar. Sei disso... Patativa. Pois foi um entusiasmo danado pra todos que me ouviam falar que o Tasso ia ser o porque era vitorioso num sei o quê e papapá e eu falava era em verso. Ainda me lembro de estrofe que eu dizia: “Camponeses, meus irmãos e operários da cidade, é preciso dar as mãos e gritar por liberdade. Em favor de cada um formar um corpo comum operário e camponês e todos num mesmo abraço votar em Doutor Tasso, candidato de vocês!” Gilmar. [Risos] Quer dizer que o senhor fez isso espontaneamente? O senhor teve vontade de apoiar o Tasso? Patativa. Foi, sim! Gilmar. Não foi contratado pelo Tasso pra fazer verso não? Patativa. Não! Eu sempre fazia o comício era em verso. Gilmar. Sim, mas eu digo: o senhor não era pago pra fazer isso não? Fazia por que acreditava? Patativa. Era. Porque acreditava. Eu sabia que ele era um homem de bem. Você veja que ele foi o primeiro governador que entrou no Ceará pra satisfazer à população pobre, os camponeses pobres. Os outros governadores, quando chegava o tempo de... duma seca, olha...


os camponeses iam lá pro terreno desse outro coronel fazer cacimbão ou fazer estrada, isso e aquilo. E... sem proteção, sem nada! Quando o doutor Tasso ganhou pegou logo uma seca na frente... Gilmar. E aí? Patativa. Aí ele criou o trabalho de emergência de mutirão. Lá mesmo na Serra de Santana onde eu vivo era oito... cinco, seis, oito, dez... hoje fazendo minha broca. Amanhã aqueles mesmos iam pra outro. E tinha mais uma mensalidade cada um inda recebia uma mensalidade... oferecida pelo governador. Foi o homem que entrou e satisfez a toda população rural pobre, viu? Foi o Tasso. Depois o Ciro [Gomes, advogado, 1957, ex-governador do Ceará] também entrou cobrindo o rascunho do Tasso. Foi também bom [a amizade com Tasso Jereissati não impediu Patativa de apoiar, publicamente, o candidato do Partido dos Trabalhadores, Luís Inácio Lula da Silva, em suas três tentativas de chegar à presidência da República]. Sim, como eu disse [tosse]... de política eu faço é ironia, é critica, é isso aqui ói: “Tendo por berço o lago cristalino, folga o peixe a nadar todo inocente. Medo ou receio do porvir não sente, pois vive em causa do passar destino. Se na ponta de um fio longo e fino, a isca avista, pega inconsciente, ficando o pobre peixe de repente preso ao anzol do pescador ladino. O camponês tambêm do nosso estado ante a campanha eleitotal, coitado! Daquele peixe tem a mesma sorte. Antes do pleito, festa, riso e gosto. Depois do pleito, importo e mais importo! Pobre matuto do sertão do nosso.” Gilmar. [Risos, risos] Patativa escreveu umas“Glosas contra o Comunismo”. Como é que foi isso? Patativa. Ah, ali foi a pedido do Padre David Moreira [1910-1962]. Ele foi vigário de Altaneira [então Santa Tereza, distrito de Assaré, emancipado em 1957], ali, viu?

Gilmar. Sim. Patativa. E então ele veio a mim. Ele gostava muito dos meus versos. Ele veio a mim, pediu pra eu fazer aquelas... aquelas glosas, viu? Gilmar. Em 1946, com o Partido Comunista na legalidade... Patativa. Aí, eu publiquei. Você viu o folheto por aí, foi? Gilmar. Ele foi republicado na campanha de 1986, pelos adversários do Tasso... Patativa. Pois é. Eu fiz aquilo [estala os dedos duas vezes]... Eu era rapazinho naquele tempo, viu? Mil e foi em... Ele me encontrou, me pediu pra fazer. Aí eu fiz aquelas glosas, viu? Gilmar. A esquerda gosta muito do senhor, porque é um poeta social; a direita gosta muito do senhor, porque o senhor fala das tradições. Como é que Patativa se sente, assim, entre a esquerda e a direita? Se bem que essa história de esquerda e direita hoje está meio desgastada! Patativa. Eu... eu me sinto bem, porque de ambas as partes eu tenho, eu recebo a maior atenção e muito elogio. Por logo eles sabem que eu sou um caboclo bem honesto, amigo da verdade, amigo da justiça... [engasga-se] e nunca fui um poeta lisonjeiro, não! Todos eles sempre apoiam, porque eu sempre estive ao lado do povo [Patativa solicitou ao governador Tasso a solução para o problema de abastecimento d’água de Assaré, resolvido com a construção do açude Canoas, inaugurado em 1999]. Gilmar. Porque é povo... Patativa. É tanto que... esse doutor Tasso Jereissati ele já andou aqui, ele já andou aqui três vezes aqui nesse barraco meu. O Ciro já esteve também aqui e todos eles sabem qual é o meu tema. Quando eles fazem um discurso aqui que faz uma referência sobre o Patativa, ele diz: — “Muita gente se queixa que o Patativa é um poeta triste, que só canta tristeza. Mas como é que ele num há de cantar tristeza se é

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só o que ele vê é tristeza e sofrimento e tudo o mais?” Eles próprios dizem, viu?

no meu poema muito... muito debochado, viu? [ri, com gosto]

Gilmar. “A lição do pinto” foi feita para a campanha pela anistia aos presos políticos? Patativa. E eu fiz também um poema para as eleições diretas para Presidente, em 1984... Gilmar. Patativa, o que é liberdade para você? Patativa. Hum...olha, liberdade para mim é o mesmo direito humano, é aquele camarada que... Liberdade que eu quero dizer num é possuir isso e aquilo não. É ser dono do seu direito. Bem, se ele é um trapeiro, ele merece o respeito dele, na sua missão de trapeiro e tudo, viu? É... é isso é que eu chamo liberdade, viu? É liberdade! É ninguém contrariar o direito do outro, o direito do próximo, viu? É justamente a liberdade que eu vejo é essa, viu? Mas é preciso a pessoa saber, porque... como eu digo bem assim, olha, naquele meu poema, que eu digo... “Nordestino sim, nordestinado não!”. Lá para o finzinho assim: “Uma vez que o conformismo faz aumentar... faz crescer o egoísmo e a injustiça aumentar em favor do bem comum é dever de cada um pelo direito lutar. Por isso vamos lutar! Nós vamos reivindicar o direito e a liberdade procurando em cada irmão justiça, paz, união, amor e fraternidade.”

Gilmar. Patativa, o senhor? Patativa. A mentira e a verdade, né?

Justamente aqui. É aqui é onde está a liberdade, ói: [tosse] “Somente o amor é capaz e dentro de um país faz um só povo bem unido um povo que gozará porque assim já não há opressor nem oprimido.” É, justamente. É a liberdade de cada um. E nós não temos... é assim é... na verdade, há um quê

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Gilmar. É verdade. Você tem consciência, da sua importância para a literatura? Patativa. Não! Eu num tenho! Minha consciência vem já do julgamento dos meus apreciadores, viu? É. Aí, então, eu fico acreditando neles, viu? [ri, novamente] Gilmar. Mas Patativa, como é que você consegue ser um monumento e uma pessoa tão modesta? Patativa. Ah, isso é... é com certeza! É um segredo natural, viu? A natureza me deu essa qualidade e eu num posso retirá-la, viu? Mas sempre, tudo aquilo que eu faço, o povo apóia, porque eu sempre gosto de falar a verdade, uma coisa filosófica... Você sabe que eu fui à Brasília em outubro, não sabe? Gilmar. Receber um prêmio. [MinC, categoria Cultura Popular, 1995] Patativa. Não foi nem o prêmio. O prêmio o tempo leva, se acaba tudo. Foi o certificado do maior poeta popular brasileiro. Eu tenho esse certificado guardado aí, viu? Gilmar. Merecido. Patativa. Agora, aquele dinheiro, bem, eu agradeço de coração, porque sem dinheiro a gente num vive e vive aperreado, porque de toda forma a gente vive. Mas do que eu gostei foi o certificado, viu ? Do maior poeta popular brasileiro. Maior poeta dentro da cultura popular, viu? Gilmar. Pra mim, o senhor é mais que um poeta popular... Patativa. Que é justamente... que eu tinha, modéstia à parte, eu tinha esse pensamento, porque eu pesquiso como são os outros poetas no Brasil inteiro, tudo... e não viu um que


já tivesse feito o que eu já fiz. E vivo fazendo, viu? Mas eu não sabia se os intelectuais também estavam vendo isso. Vim saber agora nessa viagem que eu fui, nessa pesquisa que eles fizeram sobre os poetas populares, sobre os poetas da cultura popular. E eu acho que a causa é deu ser o poeta que tem criatividade e tem abordado todos os temas, não é? Na minha poesia, quer na forma literária, quer na poesia matuta, é a mesma coisa, que a beleza da poesia não consiste na linguagem. É um segredo que nem o próprio poeta sabe descrever! É falar com desenvoltura, com espontaneidade, com graça, com beleza, aplicando, mostrando aquelas imagens, aquelas comparações do tipo daquele, não é? É justamente o que eu tenho feito! É como o escritor. Olhe, dentro do mesmo tema, contando a mesma coisa, você lê um escritor, vê que ele disse a verdade ali, mas vê... Gilmar. Sim. Patativa. Mas você não gostou tanto. Tem outro escritor contando a mesma história. Você fica tão satisfeito! Fica até querendo bem ao escritor, não é? É tal qual o poeta é assim! É um segredo natural, que o próprio não sabe nem explicar, porque... [Tosse] Gilmar. Patativa, algum dia o senhor quis ser príncipe dos poetas? Patativa. Deus me livre! [Gargalhada, de ambos] Coisa nenhuma! [gargalhada] Não quero ser nem o Papa, rapaz! [risos] Eu... quero ser o que eu sou mesmo, o que Deus quis que eu fosse e estou sendo. É. Gilmar. Você acha que poeta nasce ou poeta pode se fazer? Patativa. Não! Poeta num pode se fazer. E ele poderá se fazer, fazendo uma poesia muito sem graça, uma composição toda mecânica, viu? Que o verdadeiro poeta julgador, quando lê, ele não gosta, viu? Pode ter medida, pode ter ponto, tudo, mas não tem beleza. Não tem graça, viu? Não tem graça!

Gilmar. E como é essa ciência? Patativa. Olha, a gente não sabe dizer não, viu? É tal qual o escritor também como eu falei há pouco, viu? Gilmar. Dá para explicar um pouco mais? Patativa. Dois escritores escrevem a mesma coisa. Você gosta muito dum, mas não gosta do que o outro disse. É a mesma coisa. Esse não... você não acha erro não acha nada, mas também não acha graça, não é? É... não acha beleza naquilo que ele... escreveu. É... é tal qual o poeta. Olha, porque de tudo eu tenho... Você veja aqui, eu começando aqui a estrada de minha vida. Eu vou recitar umas estrofes, viu? Que é “Do Berço ao Túmulo”. “Trilhei na infância querida composta de mil primores a estrada de minha vida ornamentada de flores. E que linda estrada aquela sempre havia ao lado dela encanto, paz e beleza. Desde a terra, o grande espaço, em tudo eu notava um traço do pincel da natureza. Viajei do passo lento pisando rodas e relvas ouvindo a cada momento gemer o vento na selva. Colibris e borboletas dos ramos das violetas viam render-me homenagem. E do cajueiro frondoso o sabiá sonoroso saudava a minha passagem. O sol quando despontava convertendo a terra em ouro em seu raios eu notava o mais sublime tesouro. E de noite a lua bela era qual linda donzela de uma beleza sem fim. A sua luz prateada tinha a cor imaculada da vestes de um querubim.

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[silêncio... sino bate novamente] Se a noite chegava envolvida em seus negrores uma santa me embalava cantando trovas de amores. E quando raiava o dia que do bercinho eu descia chegava aos ouvidos meus pelas brisas matutinas o som das harpas divinas dos santos anjos de Deus. E eu seguia o meu caminho sempre alegre e sorridente balbuciando baixinho minha canção de inocente. E enquanto sem embaraço eu transpunha passo a passo os tapetes da campina do templo da espessa mata as águas de uma cascata cantava ao pé da colina. Nessa viagem de amor nada me causava tédio tudo vinha em meu favor pelo divino intermédio. Mas a sorte e sedução qual fera na escuridão manhosa, sagaz e astuta atirou sem piedade sua seta de maldade contra minha alma em ponta Desde este dia maldito tudo tornou-se o contrário foi-se tornando esquisito meu luzente itinerário segui pela minha estrada como a folha arrebatada na correnteza do rio. Entre a grande natureza tudo quanto era beleza apresentou-se sombrio. O sabiá não cantava entre bosques e colinas nem pelas brisas chegava o som das harpas divinas. Só me ficou na memória

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aquela estrada de glória onde andei calmo e feliz. Lá onde deixei guardado dentro da roseira e dos prados meus brinquedos infantis qual peregrino sem fé atrás dos santos socorros um dia cheguei ao pé do mais altaneiro morro. E subi entre os esporros levando sobre os meus ombros um fardo de impaciência sem encontrar, depois de grande obstáculo galguei o alto pináculo do monte da decadência na mais horrível peleja. Vivo hoje em cima do cume, onde a brisa não bafeja e as flores não têm perfume. A vagar triste, sozinho, sem conforto e sem carinho, na solidão deste monte não ouço o canto das aves nem o sussurro suave das lindas águas da fonte. No deserto desta cripta ninguém consola os meus ais. Fugiram da minha vida as belezas naturais. A luz do sol é tão baixa e a lua pelo sol passa desmaiada e já sem cor. E a lanterna das estrelas procuro e não posso vê-las é triste, o meu dissabor. E aqui o que mais me pasma me faz tremer e chorar é ver o negro fantasma com as mãos a me acenar. Sempre sempre me rodeia e com voz horrenda e feia de quando em quando murmura baixinho nos meus ouvidos para descermos unidos os degraus da sepultura!”


Gilmar. Patativa, você disse que foi um leitor muito atento. O que foi que você leu? Patativa. Sempre quase os poetas brasileiros, viu? Mas os poetas brasileiros. Já assim, de estrangeiro, eu li apenas o Camões, viu? E mais alguns poetas também de Portugal. Mas o que eu mais gostei de ler, como eu já lhe disse, as pregações de Jesus, a vida daquele tempo, aqueles exemplos, com aquelas parábolas, mostrando a verdade. E sobre os poetas, eu li Casimiro de Abreu, li. Catulo da Paixão Cearense. Li esse grande escritor aqui, que foi... aquele historiador? Gilmar. Quem? Patativa. Capistrano de Abreu. Eu li também, viu? Li muita coisa dele, viu? E Arthur de Azevedo, Aluísio de Azevedo, Raimundo Correia, Olavo Bilac e muitos outros poetas...viu? Casimiro de Abreu! Gilmar. Castro Alves? Patativa. Castro Alves, o maior poeta brasileiro! Cada um tem seu direito de julgar. Para mim, o maior poeta brasileiro foi Castro Alves. Tanto era grande na espontaneidade, como no tema, porque o tema dele foi um tema muito honroso, que será lembrado em todos os tempos. Foi o defensor dos escravos, naquele tempo, é aquele “O Livre América”, “O Navio Negreiro”, “Espumas Flutuantes”, “Os Escravos”, tudo... eu li tudo aquilo, viu? Gilmar. E vocês têm essa afinidade. Patativa e Castro Alves têm uma preocupação social. Patativa. Sim, sim. É, o mesmo tema. Ele como um poeta culto, que tinha preparo, com certeza... e eu mesmo nessa linguagem rude, mas cantando a mesma coisa, né?

meus versos, eu sabia o que era, o que aquele escritor disse ali, viu? E por isso, eu não precisava de professor. O professor era o próprio livro, não é? Até que me fizeram presente de um livro, que esse me serviu bastante, viu? Que pertence aos livros escolares. Com o título de “Português Prático”. Você talvez até já tenha visto esse livro por aí. Gilmar. Não. Patativa. Pois era. Foi um livro muito bom, “Português Prático”, viu? Esse me ajudou bastante. E a versificação que eu já tinha assim de ouvido, mesmo de natureza... [tosse] me fizeram presente de um livro “Tratado de Versificação”, de Olavo Bilac e Guimaraens Passos [Livraria Francisco Alves,1930, sexta edição]. Aí com esse livro, eu terminei de aprender alguns pormenores que faltavam na medida da poesia, porque a medida da poesia, a sílaba da poesia é diferente da sílaba da gramática, viu? Por exemplo: /quan-do-en-tro/, na gramática, são quatro sílabas, ao passo que na poesia são três, porque as vogais se unem, viu? /quan-doen-tro/ não é? Gilmar. /quan-doen-tro/ Patativa. Formam só três sílabas na poesia, porque há união das vogais, viu? Gilmar. O Olavo Bilac também foi um poeta que o senhor leu? Patativa. Foi. Olavo Bilac é aquele mundo de poesia, viu? É. “Ouvir estrelas”, viu? Gilmar. E aqui no Ceará, quem o senhor leu e que pode ter contribuído para a sua formação? Juvenal? Patativa. Não!

Gilmar. É. Patativa. O mesmo tema. E finalmente eu fui um leitor muito curioso. [som de fósforo sendo riscado, duas vezes] E eu não tive professor, só enquanto fui alfabetizado, viu?

Gilmar. Juvenal Galeno, não? Juvenal Galeno não contribuiu para a sua formação? Patativa. Li, mas quando eu vim apanhar o livro dele, eu já tinha era muitos poemas, viu?

Gilmar. Sim. Patativa. Mas por quê? Porque eu sempre aquilo que eu lia eu gravava, assim como eu gravo os

Gilmar. Porque cada um tem a sua forma de escrever, de compor, não é? Patativa. É. Cada um tem... e eu sempre tinha

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cá o meu jeito de fazer os meus poemas, como olha “A Escrava do Dinheiro” e “A Mãe Preta”, que você conhece, não é? Gilmar. Conheço. Patativa. Aquilo ali é uma homenagem que eu ofereço às crioulas, que tanto serviram às famílias brasileiras! Gilmar. Está em um dos seus discos... Patativa. Naquele tempo, né? Então, eu... pensando nisso, escrevi “Minha Mãe Preta”, foi um poema que eu recitei lá no Rio de Janeiro e umas pessoas até da África choraram foi muito, umas mulheres, viu? Quando eu recitei aquele poema, eu recitei aquilo muito choroso... Num tem aquele canto de ninar, não é? Gilmar. Comovente. Patativa. Ela embalando um menino, eu digo: “Dorme, dor,e meu menino / já chegou a escuridão / a sombra da noite escura / está cheia de papão” Gilmar. Em que evento Patativa recitou no Rio? Patativa. Porque fui convidado. Pra me apresentar no Rio, em 92, não é? Naquele muvimento... Gilmar. Que movimento Patativa? Patativa. Homem, o Brasil inteiro... os estrangeiros tudo foram pra lá! Como era o título? Gilmar. Eco 92! Foi aquela reunião de ecologia, não foi [Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, junho de 1992]? Patativa. Sim, eu fui convidado pra lá. Eu fui quem fiz a abertura. Foi, com os poemas novos que eu preparei. Recitei outras coisas... Tinha gente da África, tinha de todos os países. Gilmar. Mas o senhor foi antes ao Rio de Janeiro. Acho que para fazer uma cirurgia. Patativa. Fui, sim. Foi essa perna aqui. Eu fui acidentado lá em Fortaleza, ali bem pertinho da Igreja do Coração de Jesus [em 1973. Não é

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verdade, como dizem alguns sites, que ele tem uma perna mecânica]. Gilmar. Sim. Patativa. Bem ali perto mesmo, tanto que não havia nem sinal ali... quando um táxi me apanhou aqui. Daí eu ainda passei nove meses em Fortaleza, aí eu fiz como um desertor, pedi licença ao doutor pra ir lá pra casa, porque eles me prometeram que com noventa dias, estava emendado, quando tirou o gesso estava do mesmo jeito! Aí botaram novo gesso. Quando enxugou o gesso, pedi licença lá a eles pra eu ir pra casa do Filgueira Sampaio [folclorista cearense amigo de Patativa, 1915-1994]. Gilmar. E eles deixaram? Patativa. Sim. Aí era muito meu amigo. Aí, eles me deram licença e a dona Hilda foi... Telefonei, Dona Hilda, a esposa do Filgueira Sampaio, foi me apanhar lá. Quando assim que eu cheguei, no outro dia, apanhei um ônibus e vim foi me embora pra aqui pra Assaré. Gilmar. Mas o senhor não teve no Rio hospitalizado um tempo? Patativa. Não, demora, deixa o trem aí! Isso aí é o começo da história! Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Cheguei aqui no Assaré, estava aqui um parente meu que é médico lá no Rio de Janeiro, na Clínica Guanabara. Mas ele num é ortopedista. Aí, ele disse: — “Você quer ir comigo para o Rio? Você vai comigo para o Rio. Lá eu lhe boto no hospital e lá tem ortopedista e você vai fazer seu tratamento lá!” Eu disse: — “Quero!” Aí, fui. Fiz a maior sujeira. Saí de lá sem a licença de médico nem coisa nenhuma... [risos] E vim me embora. Gilmar. E ainda fez um poema falando mal da comida do hospital, não foi?


Patativa. Foi sim! Gilmar. [Risos] Patativa. E lá eu passei um ano, viu? Passei um ano e num emendou não. Isso aqui é grampeado de platina, viu? Mas num chegou a colar... com o grampo não. Falou ele que a parte superior e a inferior tinham secado e num prestavam mais... Aí eu passei, assim, um ano lá. Quando cheguei aqui... Gilmar. Mas todo no hospital, não? Patativa. Sim! Não! Mas eu tava no hospital e tinha licença de ir pra casa de parentes que eu tenho lá no Rio, viu? Passaram muitas semanas e dias na casa de amigos lá que eu tenho. Aí, certa vez, deu azar! Era até na época do carnaval. De manhã, rapaz, não teve manteiga na hora da merenda não! O pão foi mesmo sem manteiga. Na hora do almoço foi um pouco de farofa para todos os pacientes. Então, na sala que eu estava nós éramos doze acidentados, viu? Gilmar. Sim. Patativa. E eu toda vida fui assim com esse meu jeito assim... eu nunca... num gosto de me entristecer com nada, num gosto! Eu sou inimigo da tristeza! Agora, só tem uma coisa que me faz sair da linha: é uma dor. Uma dor grande num há quem esteja conformado, não é? Gilmar. Não. Patativa. Aí, na hora do almoço um pouco de farofa para cada paciente e lá nas outras salas também. Chegou a janta, veio uma comida desconhecida que eu até hoje não sei que o era aquilo... Gilmar. Tá! [responde a alguém da casa] Patativa. Que lhe falaram? Gilmar. O carro veio lhe pegar. [Um carro veio buscar Patativa para o almoço na casa de dona Lúcia, que nessa época morava no bairro José Dodô] Patativa. Já veio pegar? Gilmar. Já. A gente continua a conversa à tarde. Patativa. Demora aí um pouquinho, rapaz,

porque eu aqui vou recitar um verso que eu fiz! Aí num outro dia à tarde, o hospital era Hospital São Francisco de Assis [Bairro São Cristóvão]. Eu falei pra São Francisco de Assis: “Meu São Francisco de Assis, meu santo, meu bom amigo, qual foi o mal que eu lhe fiz pra me dar tanto castigo? Seu amor nunca se apaga é venerado o seu nome se tiver comida traga istô danado de fome! O senhor foi penitente padeceu tanta amargura e hoje trata seu doente com farofa conhecida. Meu canto isso não adianta tenha dó de minha vida.” Gilmar. Ele vai já! [fala alto para alguém que entra na casa] Patativa. “Se achamos que ainda não chega a nossa grande aflição tirou-se também a manteiga que tinha o nosso pão. Eu preciso ser feliz e o senhor de mim se esquece. Meu São Francisco de Assis tenha dó de quem padece!” Aí, veio uma irmã. E disse: — “Seu Antônio Gonçalves tá é atacando o hospital?” Eu disse: — “Irmã Natália, eu não sou homem para tanto! A senhora é que não sabe interpretar a minha poesia. Olha, eu aqui... a minha poesia é uma coisa sagrada que eu considero. Eu falo para os anjos, eu falo para Deus, falo para os santos. E eu aqui tou falando pra São Francisco de Assis. Eu num mencionei nome de pecador!” Gilmar. [Risos] Patativa. E a senhora vem agora? ... Aí, ela... (estala os dedos uma só vez) Foi embora! [gravação interrompida]

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Entrevista. Lado B

Gilmar. Patativa, eu queria saber da sua amizade com Luiz Gonzaga. Patativa. Pois não. O Luiz Gonzaga não foi compositor, mas como cantor, foi o maior no nosso ritmo, como nós sabemos, viu? Na “Triste Partida”, naquele poema eu retratei uma família indo para São Paulo em mil e novecentos e cinquenta e sete. Bem, aquilo ali, eu cantava ela ao som da viola, não só eu, os outros cantadores também cantavam a “Triste Partida”. Todos os lugares que a gente ia a uma cantoria o auditório, a assistência pedia logo: ói, canta a “Triste Partida”! Aí o violeiro cantava. Luiz Gonzaga me disse que indo a Campina Grande, lá na Paraíba, ele ligou o rádio no carro dele e ouviu alguém cantando aquela “Triste Partida”. Alguém não! O Zé Gonçalves que é um grande violeiro, que tem um programa na Rádio Borborema. Gilmar. Sim. Patativa. Aí, ele disse que assim que chegou, procurou logo ir à rádio e chegou lá, perguntou quem cantava uma... um trabalho... um poema, a retirada de nordestino pra São Paulo em um caminhão num sei o quê. Aí, disseram: é o Zé Gonçalves. Ele disse: — “E onde está Zé Gonçalves?” Ele está aqui. Está em outra sala, que ele tem o programa dele e depois vai arranjar as coisas. Aí ele perguntou: — “Me diga uma coisa: de quem é aquele trabalho que você cantou? Eu fiquei maravilhado quando ouvi, vindo no meu carro.” Ele disse: — “É... todos nós cantamos, todos os violeiros... aquilo ali é de Patativa do Assaré. É o autor de a “Triste Partida”.” Aí, ele veio à minha procura. Quando chegou no Crato, eu estava e ele quis comprar até o direito autoral. Eu disse:

— “Não, Luiz! O meu mundo eu posso dizer que é a minha família e a minha poesia. Aí, eu num vendo direito autoral por preço nenhum! [A proposta da compra da composição é citada pelo livro “Vida de Viajante, a saga de Luiz Gonzaga”, de Dominique Dreyfus, Editora 34, 1996, p.235]. Aquilo que eu compus com muito carinho e com muito cuidado.” Ele disse: — “Então, Patativa, vamos fazer outro negócio. Vamos fazer parceria. Você assim não está vendendo. Você me dá as ordens e eu levo pra RCA disco e vamos gravar a ‘Triste Partida’. No livro constará, você como autor e eu como cantor.” [o violeiro João Alexandre, 1920, que se apresentava com Patativa, reivindica coautoria de “Triste Partida”, o que leva Patativa a admitir que ele contribuiu para melodia] Gilmar. Proposta correta... Patativa. Aí, eu aceitei. E ele gravou a “Triste Partida” no ano de sessenta e quatro, viu? Aí foi um estouro quando ele gravou com aquela voz maravilhosa e tudo, viu? Deu um compasso mais... lento também, que a gente cantava num compasso mais apressado um pouco e não tinha também aquele coro: “Ai ai ai ai!” Não tinha, viu? Ali foi ele com a sua gente que pôs na “Triste Partida”. Gilmar. Foi sua estreia em disco [em 1964]. Patativa. Aí, deu um sucesso muito grande. Decerto que a gente tinha sempre um encontro, uma intimidade. Quando ele estava em um lugar que o Luiz Gonzaga ia se apresentar que eu estava também era eu quem apresentava ele no palanque, viu? Gilmar. Sim. Patativa. Para os populares, para o povo, dizendo que era aquele “O Rei do Baião”. E até as

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crianças conheciam a sua voz e chamavam de cabra macho quando ele saía com o seu programa. Ele veio aqui à minha casa, mais de uma vez e quando eu tive um convite pra São Paulo, pra me apresentar no Memorial da América Latina, onde eu já me apresentei já umas três vezes e ele faleceu quando eu estava lá. Ele faleceu [2 de agosto de 1989]. Por isso eu não acompanhei o cortejo fúnebre do Luiz Gonzaga. Mas quando voltei, eu fiz a seguinte referência como uma homenagem póstuma ao “Rei do Baião”: “Eu sou o poeta sensível. Falar do rei do baião é custoso, é impossível eu não sentir emoção. Foi um artista colosso o Nordeste em carne e osso triste coisa aconteceu. Meu coração abalou quando o rádio anunciou Luiz Gonzaga morreu. Nasceu esse sanfoneiro lá na terra de Nabuco glória do país inteiro inda mais do Pernambuco. Foi artista preferido em toda parte querido do patrão e do operário a jóia pernambucana prazer de Dona Santana e orgulho de Januário. Sua sanfona saudosa com quem vivia abraçado era santa milagrosa ressuscitando o passado. Até mesmo a criatura sisuda, de cara dura e de cruel coração ficava alegre e ditosa ouvindo a voz milagrosa do grande Rei do Baião. Artista do gênro popi com proteção soberana era do sul e do norte do palácio e da choupana vivia provando a raça

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desde o campo até a praça na vida de sanfoneiro. Era forte, firme e humano artista pernambucano que soube ser brasileiro. Mas o dia dois de agosto o dia de sua morte transformou gosto em disgosto com seu eterno transporte. Querido Rei do Baião é triste a separação! E enquanto na eternidade tu vives entre os primores aqui dos compositores sofrem a dor da saudade que deu sucesso e deu vida e com amor divulgaste a letra ‘A Triste Partida’ que eu compus e tu gravaste. E hoje só resta a saudade do campo até a cidade agora ninguém está triste cantando ‘A Triste Partida’ porque para outra vida fizeste a partida triste. Porém, com saudade mil qual farol que não se apaga enquanto existe Brasil existe um Luiz Gonzaga no coração do Nordeste e aí na corte celeste de Jesus de Nazaré gozando de paz completa roga a Deus por teu poeta Patativa do Assaré.” Gilmar. Então Patativa não considera o Luiz Gonzaga compositor, apenas cantor? Patativa. Somente cantor. Ele ajuda, ele ajudava um pouquinho na composição. É tanto que mencionam sempre o nome dele em muitas... mas ele mesmo me dizia, ele mesmo disse a mim. Uma vez ele disse: — “Patativa, eu só sei compor o comercial, porque eu aproveito aquela música que já saiu


até da moda e faço um versinho, mencionando o comércio, fazendo a propaganda, mas mesmo compor como... eu tenho muita coisa, mas eu não sou compositor. Eu sou cantor.” E você pode cantar os discos dele e num tem nenhum somente ele, viu? Tem o nome para compor, porque ele é muito famoso, não é? Dava também uma certa opinião ao compositor como queria e tal, não é? Mas ele não foi compositor. Era... foi um grande cantor que eu acho que... ninguém vai substituí-lo tão cedo o Luiz Gonzaga com aquela sua voz metálica, harmoniosa. Era uma coisa maravilhosa, viu? Eu admirei muito o Luiz Gonzaga e aquele Lindô. Você conheceu o Lindô? Gilmar. Não! Patativa. Era do “Trio Nordestino”, Cobrinha, Coronel e Lindô. Era o dono da voz maravilhosa, viu? Ele morreu até dos rins, foi operado. Ele andou aqui em Assaré algumas vezes e era muito amigo do médico, doutor Laércio, aqui em Assaré. Doutor Laércio [ José Alves de Freitas, vice-prefeito de Assaré], que é um médico, pelejou com ele. Disse: — “Lindô, você tenha cuidado! Você tenha cuidado com esse seu problema... nos rins, que isso aí é muito prejudicial.” E ele pouco ligou, sempre cantando. Até que quando cuidou não houve mais jeito. Faleceu. Gilmar. Patativa, e além da “Triste Partida”, que outro poema seu também foi cantado? Patativa. Por Luiz Gonzaga não teve outro. Gilmar. E por outros compositores? Patativa. Sim, ah! Com muito sucesso, teve a “Vaca Estrela e Boi Fubá”, cantada por Raimundo Fagner, viu? É, ele deu um sucesso muito grande, que é eu mencionando um caboclo lá no sul, contando a causa de se achar no sul. Perdeu a sua fazenda, seu gado, principalmente duas rezes famosas: a Vaca Estrela e o Boi Fubá. A Vaca Estrela é aquela vaca que tem uma mancha branca na testa, sempre é conhecida por vaca estrela. E Fubá é uma qualidade,

um amarelo queimado, que os fazendeiros dão o nome de fubá. Gilmar. Em 1980... Patativa. Aí, é por isso, eu me apoiei nessas duas qualidades e fiz o poema. Criei na minha imaginação aquele caboclo, contando a um doutor, lá no sul, a causa de ter ele saído do nordeste. E deu um sucesso muito grande. Já foi gravada por uma dupla de caipiras lá em São Paulo, Pena Branca e Xavantinho, que eles se apresentam no programa duma mulher que é muito minha amiga, a Inesita Barroso. Ela tem um programa, “Viola, Minha Viola” [Tv Cultura], viu? E então esses caipiras gravaram “Vaca Estrela e Boi Fubá”. O Luiz também gravou com o Fagner “Vaca Estrela e Boi Fubá”. [A música teve várias outras gravações, como a de Sérgio Reis, Cláudio Nucci, Rolando Boldrin]. Gilmar. Aquela música “Seca D’água”, no tempo das inundações de 1985, é do senhor? Patativa. É minha! Mas só a letra... Gilmar. Só a letra? Patativa. Aquilo aconteceu assim: eles criaram um plano, os cantores famosos lá do sul, Chico Buarque, Mílton Nascimento, inclusive o Fagner também, ele também é famoso, viu? Gilmar. Que plano? Patativa. Criaram um plano pra fazer uma campanha em benefício dos flagelados das enchentes de oitenta e cinco. Aí, ficaram pensando quem poderia fazer a letra. Aí, o Fagner que me conhece muito, sabe da minha capacidade de versejar, ele disse: — “É, o Patativa do Assaré.” Aí telefonou pra mim. Estava aqui quando o mensageiro chegou e disse: — “Tão telefonando pra você lá na Teleceará [estatal de telefonia do Ceará hoje privatizada e fazendo parte da Telemar]... tão lhe chamando.” Aí, eu fui. Cheguei lá era o Fagner. Ele aí me disse:

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— “Olhe, é um plano que nós tivemos pra fazer uma gravação pra ser vendida em benefício dos flagelados das enchentes, viu? E eu disse aqui ao Chico Buarque e aos outros, ao Mílton Nascimento, que você tinha capacidade de fazer essa letra pra todos gostarem!” Eu disse: — “Mas você, pra que que você disse isso? Você sabe que eu num gosto de fazer nada atendendo a pedido de ninguém? Eu já lhe disse isso mais de uma vez.” Ele disse: — “Não, mas você num vai fazer isso comigo! Comigo e nem com os outro, viu?” Aí eu pensei... e disse: — “E quando é que eu mando essa letra pra aí?” — “Não, Patativa, você diz o dia que está pronta e eu telefono novamente. Você vai dizendo aí, eu vou anotando aqui! Aí, eu vou copiando.” Gilmar. Sim. Patativa. Eu disse: — “Bem, Fagner, pois sendo assim, hoje mesmo, às quatro da tarde – era mais ou menos oito da manhã – hoje mesmo, às quatro da tarde, você pode telefonar que eu estarei aqui na Teleceará. Aí, eu já tenho feito. Ou que preste ou que não preste, mas eu já tenho feito os versos.” Aí, voltei e procurei assim na mente um título. Aí, me veio à lembrança... [tosse] que a seca sem chuva, o caboclo pode trancar a sua casinha e entrar pelo mundo à procura da vida. Quando o tempo melhorasse, ele volta, vai morar na mesma casa. Ao passo que com as inundações, as enchentes, como houve aqui no Ceará e em mais Estados, as enchentes levam com chuvas torrenciais e enchente de toda forma, carregam até a casa, como nós sabemos, não é? Às vezes, mata até gente. Gilmar. E como... Patativa. Aí, eu disse: — “Bom, eu vou botar o título de ‘Seca D’água’.”

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Aí, foi. Dei o título de “Seca D’água”, que diz: “É triste para o nordeste o que a natureza fez mandou cinco ano de seca uma chuva em cada mês. E agora em oitenta e cinco mandou tudo de uma vez! A sorte do nordestino é mesmo de fazer dó. Seca sem chuva é ruim mas seca d’água é pior. Quando chove brandamente depressa nasce o capim. Dá milho, arroz e feijão, mandioca e amendoim. Mas como em oitenta e cinco até o sapo achou ruim. A sorte do nordestino é mesmo de fazer dó. Seca sem chuva é ruim, mas seca d’água é pior. Maranhão e Piauí estão sofrendo por lá mas o maior sofrimento é nessas bandas de cá: Pernambuco, Rio Grande, Paraíba e Ciará. O Jaguaribe inundou a cidade de Iguatu e Sobral foi alagado pelo rio Acaraú. O mesmo estrago fizeram Salgado e Banabuiú. A sorte do nordestino é mesmo de fazer dó. Seca sem chuva é ruim mas seca d’água é pior. Ciará martirizado eu tenho pena de ti. Limueiro, Itaiçaba, Quixeré e Aracati faz pena ouvir o lamento dos flagelado dali. Meus senhores, governantes da nossa grande nação, o flagelo das enchentes


é de cortar coração. Muitas famílias vivendo sem lar, sem roupa e sem pão. A sorte do nordestino é mesmo de fazer dó. Seca sem chuva é ruim mas seca d’água é pior.” Foi isso aqui, viu? E deu sucesso isso aqui. Eles perguntaram, eu disse: — “Não, eu num cobro nada!” Seria eu imprudente ou até um desonesto se eu fosse cobrar uma letra que eu faço para arranjar dinheiro em benefício dos meus irmãos flagelados aqui das enchentes... e meus conterrâneos. Mas, deu um sucesso grande! E o presidente do sindicato dos músicos no Rio de Janeiro, escreveu para mim e disse: — “Olha, a sua canção — e ele até chamou de canção! — ... a sua canção deu um sucesso no Brasil inteiro, onde ela é rodada é com muita admiração no povo. E você não quis nada. Mas o sindicato dos músicos do Rio de Janeiro vai lhe gratificar com trinta e dois milhões. Eu vou enviar aí para o seu Assaré, para o Banco do Brasil.”. De fato, eu recebi, viu? Mas não que eu cobrasse. Eu não queria. Gilmar. A melodia do “Vaca Estrela e Boi Fubá” é do Fagner? Patativa. Não! Ele ali só tem a voz. Gilmar. A música é do senhor? Patativa. É também. Ele só tem a voz e o compasso, porque eu e os outros cantadores cantavam era assim mais apressado, viu? E ele, como cantor, estilizou assim a harmonia, a música, viu? Botou um compasso bem mais lento, viu? Mas naquele meu livro “Cante Lá Que Eu Canto Cá” já no final do livro está: olha, poema musicado pelo próprio autor. Gilmar. Pelo próprio autor? Patativa. É, pelo próprio autor. Está no livro “Cante Lá Que Eu Canto Cá”, já quase no fim do livro.

Gilmar. Patativa, aconteceu de gravarem músicas suas e botarem o nome de outros autores? Patativa. Sim, já aconteceu, mas foi uma coisa que passou e ninguém fala mais disso, viu? E foi daí de onde surgiu a nossa relação, a nossa amizade. Nem eu conhecia ele, nem ele me conhecia. Quando eu estava internado lá no Rio de Janeiro, aconteceu que um camarada foi me visitar. Um conhecido meu levou uma radiola, um disco, botou o disco pra rodar. Quando o disco rodou, estava... uma letra minha, foi mudado o título. A letra era do ... “O Vaqueiro”. Ali estava “Sina”. Gilmar. Sem lhe dar os créditos... Patativa. E finalmente que ele rodou, eu disse: — “Olhe, esse trabalho aí está deturpado. Mas é meu! Isso aí é meu. Está até no meu livro...” Aí, ele disse: — “Pois é, mas está aqui, com o nome do Fagner e Ricardo Bezerra.” Aí, eu disse: — “Tem nada não!” Eu cheguei e comecei a dar reportagem na “Tribuna” [do Ceará, 1957-2001] e no “Povo” [1928, jornais de Fortaleza] e lá pra São Paulo naquele jornal o “Movimento” — você não se lembra daquele jornal? Gilmar. Do tempo da ditadura? Patativa. Eu fiz parte daquele jornal. Aí mandei publicar também no “Movimento” [19751981]. E sempre onde ele cantava, o povo trazia um recorte do jornal e mostrava, dizia: — “Olhe, Patativa é muito famoso, é muito querido. E olha aqui o que ele escreveu?” Mas eu não escrevia afrontando. Coisa nenhuma! Apenas defendendo a minha propriedade, não é? Somente! Gilmar. É claro. Patativa. Aí, o doutor Francis [Vale], que era o advogado dele, falou para ele. Disse: — “Fagner, é muito melhor você ir à procura do Patativa. Você não conhece ele pessoalmente, nem ele também lhe conhece, mas ele vive

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sempre lá no Assaré dele. Ele não viaja.” Aí, ele veio. Quando chegou no Crato, eu estava. Disseram qual a pensão. Quando entrou aquele... aquele homem muito simpático, com a cabeleira bonita e tal. Já tinham informado a ele, que quando ele entrou na sala da pensão, ele disse logo: — “Me diga uma coisa, o senhor é o Patativa do Assaré?” Eu disse: — “Sou. E com quem tenho o prazer de estar me entendendo agora mesmo?” Ele disse: — “Eu sou o cantor Raimundo Fagner.” Aí, eu ri. E disse: — “Ah, é você, Fagner!? Mas olhe, você num venha pensando... você num vem pensando que eu tenho raiva de você, tenho rancor, essas coisas. Não, olha, aqui nesse coração nunca germinou tal semente! Eu apenas fiz reportagem dizendo a verdade.” Ele até disse: — “Não, tudo eu li e vi que você o primeiro assunto era dizendo que não tava visando a parte comercial, tava defendendo aquilo que era seu e tal! Patativa, você tem toda a razão e a culpa não foi minha não! Rapaz, o Ricardo Bezerra disse que não tinha nada. A gente podia gravar.” [Ricardo Bezerra, arquiteto, 1949, refuta a versão de que teria sido o responsável pela não atribuição da autoria de Patativa, situação que persistiu quando o disco “Manera Fru-Fru” foi lançado como cd, em 1996.] Eu disse: — “Sim, podiam ter gravado mesmo... com o meu nome! Eu num ia sequer ia procurar coisa nenhuma! Vocês e tal... Eu num ia atrás de dinheiro? E vocês estavam divulgando o Patativa com um trabalho daquele.” Gilmar. O senhor achava justo? Patativa. Aí, ele... Sim, ele disse: — “Mas eu venho trazendo um papel, quero que você assine aqui, viu?” O certo é que eu escrevi lá meu nome onde ele mandou e tal, mas eu fiquei assim... passado.

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— “Porque eu hei de fazer uma amizade sincera com você!” Eu disse: — “Olha, eu sou muito exigente com amizade!” Gilmar. [Risos, risos] Patativa. Amizade pra mim, eu só quero uma amizade sincera e decidida, sem sentido de exploração, viu? Ele disse: — “Não! E eu garanto. E quero até gravar uma coisa sua.” Eu disse: — “Pois vamos lá para o meu quarto.” Nós fomos lá para o quarto da pensão onde eu estava e ele com um gravador. Aí, eu comecei a cantar umas toadas que eu tenho. Cantei “Casinha de Palha”. Cantei “A Tristeza Mais Triste” e... e “Lamento do Nordestino”. Mas quando eu cantei “Vaca Estrela e Boi Fubá”, quando eu comecei a segunda estrofe, ele num teve paciência e disse: — “É essa aí que eu vou gravar! Essa eu vou gravar, que ela vai dar sucesso!” Gilmar. [Risos] Patativa. Como cantor é inteligente, né? Bem, e aí ele voltou e disse: — “Olhe, ‘Vaca Estrela e Boi Fubá’ nós vamos fazer propaganda dela pra você vê como vai dar sucesso. Depois a gente grava.” Eu disse: — “Não! Eu não vou gravar com você porque eu não sei cantar no ritmo da orquestra. Num... num entendo desse negócio, viu? Minhas coisas são todas naturais. Mostrei essa música porque eu gosto mesmo e acho que tá bem.” E ele disse: — “E tá muito bem. Mas nós vamos fazer uma viagem só mostrando ‘Vaca Estrela e Boi Fubá’.” Aí, nós cantamos lá em Fortaleza, fomos ao Rio de Janeiro, cantamos no Teatro Carlos Gomes, foi um estrondo mesmo! Depois cantamos no Som Brasil, do Rolando Boldrin, cantamos também naquele programa da Hebe Camargo, que me fez um convite muito honroso para


o programa dela. Naquele tempo ela estava na Bandeirantes. Aí, eu fui, nós fomos lá, cantamos. Depois fomos ao Festival de Verão [tosse]... lá em Guarujá [São Paulo]. E o certo é que onde a gente cantava “Vaca Estrela e Boi Fubá” era um estrondo, viu? Aí, ele gravou e deu sucesso mesmo... “Vaca Estrela e Boi Fubá”. Porque eu sempre gostei, de fazer esse trabalho do nordestino, falando do norte e do sul, falando do nosso nordeste, nossa terra e o sul, o sofrimento deles quando vão pra lá, isso e aquilo tudo. Pois eu tenho “Lamento de um Nordestino”, gravado por um garoto, José Fábio, lá em São Paulo, viu? “Eu sou sertanejo das terras do norte. Mas a negra sorte me fez arribar. Hoje vivo ausente sem ver minha gente, o meu sol ardente e o meu branco luar. Ai, quem me dera voltar! Ai, quem me dera voltar ao meu lar! Oh, terra querida da minha amizade a dor da saudade me faz soluçar. Há tempo não vejo um São João sertanejo com o seu festejo de fogo duar. Ai quem me dera voltar! Ai quem me dera voltar ao meu lar! Voltar ao nordeste e à terra a... adorada ouvir na chapada o bizerro berrar, a vaca mugindo, o cachorro latindo, chucalho tinindo, e vaqueiro aboiá. Ai quem me dera voltar! Ai quem me dera voltar ao meu lar! Pra ver meu casebre de palha de coco, tapada à reboco,

que eu deixei lá. E ouvir no terreiro sobre um juazeiro cantar prazenteiro o meu sabiá. Santa Aparecida, rainha celeste, me leva ao nordeste que eu quero escutar a vaca mugindo, o cachorro se... latindo, chucalho tinindo e vaqueiro aboiá. Ai quem me dera voltar! Ai quem me dera voltar ao meu lar!” Isso aqui, desperta uma saudade tão roxa ao nordestino que está lá ouvindo cantar isso aqui, viu? Com uma toada assim penosa, viu? Tocante. Esse é musicado também por mim, esse aqui. E esse rapazinho, esse menino, é um menino! É uma coisa admirável, só a natureza mesmo fazer uma coisa daquela. Ele tem onze anos e gravou o disco lá em São Paulo. No dito disco eu tenho quatro letras. É o Zé Fábio. Era um menino de rua. Ele vivia solto, abandonado, lá em Nova Olinda, que é a cidade que você passou por ela, não foi? Gilmar. A cidade da Casa Grande... [projeto comunitário de Alemberg Quindins e Roseane Lima Verde, no campo da comunicação comunitária, com crianças e adolescentes]. Patativa. Passou nela. Pois bem, ele é filho dali. Vivia pobremente, batendo um triângulo e cantando. Já tava assim um legítimo menino de rua. Ninguém dava atenção, mas eu trazia ele pra aqui, quando ele vinha aqui pro Assaré, pra cantar pra Belinha ouvir, que ele cantava muito, que ele tinha aprendido ao pé do rádio e na televisão. Até que um assareense, que há trinta anos que está lá em São Paulo, veio a passeio aqui e, quando viu o menino cantando, ficou maravilhado! Foi ao juizado de menores. Foi também aos pais dele, pediu licença, ajeitou documento. Quando chegou lá apresentou

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ele ao doutor José de Abreu [deputado federal paulista,do PTN], que é dono da Rádio Atual... [rádio paulistana que só toca música regional e do Centro de Tradições Nordestinas no bairro do Limão]. Gilmar. E ele gravou logo? Patativa. O José de Abreu já esteve até aqui em Assaré. Ele e a Dona Cristina, a esposa dele. Aí ele patrocinou um disco. E ele gravou um disco, com a voz bem bonita, bem fininha! Mas entoada como eu nunca tinha visto... Gilmar. Você sabe o que o seu público gosta? Você se preocupa em agradar o seu público? Patativa. É, eu me preocupo em agradar o meu público com muito carinho, com muita atenção. Outra, que eu sou o artista mais humilde de todos os artistas que já existiram! Poderá haver um igual a mim, mas mais do que eu, na humildade, na simplicidade, não tem! Porque eu posso estar em qualquer um ponto, numa roda assim de chapeado, de.. ajudante de carro. Todo esse povo vem se dar comigo: — “O senhor é que é o Seu Patativa? Eu digo: — “Sou, sim!” — “Recita aí uns poemas pra nós, umas poesias!” Ali, no lugar que ele pediu, eu recito, viu? Eu sou o poeta do engraxate, do chapeado, do ajudante de carro, do dono do carro e do doutor, quando ele me quer. Comigo não há distinção! Sempre fui assim e hei de ser. Sabe por quê? Porque meu julgamento é diferente de muitos. Eu num tenho vaidade com essas coisas. Foi Deus que me deu, num é meu, num fui eu que criei! Foi a natureza que me legou. Então, se os filhos do chapeado têm o mesmo direito de me escutar e gostar do que eu digo, com os mesmos direito que têm os filhos do doutor, num é? Num é? Num é a mesma coisa? Gilmar. É a mesma coisa. Patativa. É a mesma coisa! Mas a maioria dos artistas num olha pra esse lado. Eles querem

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é dinheiro e fama! E coisa nenhuma, rapaz? Olha, eu tenho esse poema aqui. Porque lá em São Paulo, quando eles veem gente daqui, eles até ficam com raiva, mas depois já consolei a eles. Eles dizem: “Olhe, Patativa, a gente fica com raiva... lá em São Paulo. Às vezes, eles perguntam o que é... Eu digo que é do Ceará. Digo: ‘No Ceará tem um grande poeta: Patativa do Assaré!’” Ele disse: “Eu sou do Assaré! O Patativa... Ó, rapaz, me diga aí como é o Patativa!?” Ele disse: “O Patativa é assim... Você se entende com ele no lugar que encontrá-lo. E ele recita também, numa calçada, numa praça onde o camarada quiser ouvi-lo.” Ele disse: “Olha, você desculpe que eu num tô acreditando não! viu? Porque esse Patativa que eu estou falando é muito famoso. Aqui, ele sai aqui nas reportagem, aqui mesmo de São Paulo, se apresenta até na televisão. A gente vê gravações... e você dizer que ele é assim!” E aí ele fica com raiva. Eu digo: “Olha, menino, não fica contristado não! É porque os outros artistas fazem... todos são assim como ele tá pensando. Enquanto está lá no palanque, tudo bem! Mas quando eles descerem dali, se um popular qualquer procurar dar a mão a ele, conversar um pouco, ele não gosta. Ele dá meia volta e sai. Pois isso eu conheço por experiência. Já tenho visto, viu? E por isso vocês não fiquem muito contristado não. E quase que eles têm razão de dizer isso. É o mau exemplo dos outros artistas. Mas é porque eles não sabem ver as coisas. Olhe, toda a capacidade, menino, principalmente dessa... na cultura, vem da mesma fonte de sabedoria. É o mesmo método, é o mesmo professor. E por isso nós não temos esse direito. Mas eu vou compor um poema e... e oferecer a vocês e recitar pra vocês. Aí, criei aquele poema, “O Sabiá Vaidoso”, não é? Não é? Você já viu no meu livro? Gilmar. Já. Patativa. É... um passarinzinho que nem sequer tinha nome, é: “O sabiá vaidoso do seu canto se julgava um maestro quase santo


e de todas as aves a primeira. Na linda copa de uma larajeira seu gorjeio, repleto de doçura, dispertava saudade, amor, ternura. De orgulhoso e vaidoso, ele pensava que o mundo inteiro a ele se curvava. Com a força vibrante de harmonia novas notas criou naquele dia. Um simples passarinho, uma avezinha, que nem sequer no mundo um nome tinha. por direito que assiste aos passarinhos naquela copa fez também seu ninho e modesto, com muita singeleza, obedecendo à sábia natureza, cheio de vida o seu biquinho abriu: Piu-piu, piu-piu-piu! Piu-piu, piu-piu-piu! Piu-piu, piu-piu-piu! O sabiá, se achando enfurecido, para ele falou: ‘Seu atrevido! Com este canto que soltaste agora, tu desvirtuas a minha voz sonora. Com a tua cantiga dissonante, tu não passa de um bicho ignorante! Eu não quero te ouvir perto de mim. Quem te ensinou cantar tão feio assim?’ E o passarinho pobre de harmonia, mas muito rico de filosofia, logo a resposta o sabiá ouviu: ‘Esse meu canto, piu-piu, piu-piu-piu! que o destinho fiel me permitiu para ninar os filhotinhos meus, seu sabiá, quem me ensinou foi Deus!’” Foi. O mesmo método do sabiá, não é? Pois bem, mas os artistas não olham para essa parte, viu? Por isso eu publiquei isso aqui. Tá publicado no “Aqui Tem Coisa”, mas eu botei assim: “O Sabiá Vaidoso” e abaixo eu botei: “Aos artistas vaidosos.” Gilmar. Patativa teve músicas gravadas, livros publicados. O senhor recebe bem seus direitos autorais? Patativa. Não, não ganho bem! O direito autoral é bem fraco, viu? E além disso, falha tam-

bém no tempo de receber. Às vezes, além de ser só dez por cento, não é? Mas eu num fico impressionado com isso nem coisa nenhuma, porque eu sou um poeta nato. Gilmar. Mas o senhor não se chateia de outras pessoas ganharem dinheiro às suas custas? Patativa. É, eu pouco ligo com isso. Eu só num quero é que roube a minha criação, é a minha [tosse]... Gilmar. Autoria. Patativa. Sim, a minha autoria, viu? Publicar uma coisa com o nome de outro. Ah, isso aí eu fico muito contristado e fico até com raiva, viu? E vou à procura, vou à justiça procurar. Mas pode ganhar rios de dinheiro com coisas que eu faço, importa não! Gilmar. Como foi que a Editora Vozes chegou até o senhor pra publicar o “Cante Lá Que Eu Canto Cá”? Patativa. Eu devo a publicação daquele livro ao professor Plácido Cidade Nuvens [sociólogo, 1943]. Aquele camarada, ele é aqui filho de Santana do Cariri, mas quando moço, ele teve a felicidade de estudar na Itália. Ele é formado pela Universidade Gregoriana de Roma [Doutor em Sociologia pela Universidade Santo Tomás de Aquino]. Ele ia ser padre e já perto de receber as ordens – segundo ele me contou tudo – ele se arrependeu, desistiu, viu? Quando ele voltou – e eu não conhecia dele nem o nome, aí quando ele voltou, que chegou aqui no Cariri e viu o meu livro “Inspiração Nordestina”, ele ficou impressionado e gostando do livro e tal. E veio a mim pra publicar outro livro. E eu sempre vejo picareta como diabo por esse mundo. Nem confiei. Ele, eu num sabia quem era! Ai ele disse: — “Olha, vamos publicar outro livro?” — “Publicar um livro meu?” — “Pela Editora Vozes. Eu lá tenho colegas que... de estudos que já são... padres lá e foram meus colegas e é uma editora de muita importância. Ela é conhecida não só no Brasil, como também no exterior.”

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Aí, eu disse: “Não, não quero não!” Ele então: “Pois vamos, porque eu serei o intermediário desse negócio.” E eu num acreditei bem. E ele muito amigo do Vicelmo, [Antonio Vicelmo, 1942, jornalista, correspondente do Diário do Nordeste, jornal cearense fundado em 1981, no Cariri], contou ao Vicelmo. Eu ainda num sabia bem quem era ele. Aí, o Vicelmo veio a mim e disse: “Rapaz, o Plácido falou com você, você... ficou...” Eu digo: “Sim, porque eu não conheço a ele.” Ele disse: “Olha, o Plácido é isso e isso e isso e isso e isso... Um homem muito honesto, muito estudioso e que gosta de ajudar a quem merece e ajuda, como você merece. Você... ele vai outra vez conversar.” Aí quando ele veio, eu pedi desculpa a ele. Ele disse: “Você tem toda razão. Se você não fosse inteligente você não teria feito o que você fez. Mas se o mundo é repleto de picaretas aqui, aqui e acolá, cê achou que era eu querendo tirar partida...” Eu digo: “Não, senhor! Pois agora...” Aí, foi o livro publicado. Foi datilografado na Fundação Padre Ibiapina... [tosse] e foi ele o portador da cópia lá para o Rio e eu fiquei recebendo direitos autorais. Depois saiu também o “Ispinho e Fulô” [IOCE, 1988]. E quando a Editora Vozes viu o “Ispinho e Fulô” ficou danada. E veio a mim. Aí, eu também cedi o “Ispinho e Fulô”. Ele publica, mas o direito autoral como você deve saber que é bem pouco, é só dez por cento, não é? Falham muito no pagamento. Gilmar. E eles não se interessaram pelo “Aqui Tem Coisa” [Secult, 1994] não? Patativa. Não. Eu disse logo que num queria. Eu num quero mais publicar não. Eu num queria... Queria publicar era por aqui mesmo, mas num quero mais fazer negócio com editora não. Eu num gostei muito não. Gilmar. Mas tem a vantagem do livro ser distribuído no país todo. Patativa. É sim. Tem essa vantagem muito grande porque, olhe, todas as capitais a Editora Vozes tem livraria.

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Gilmar. Nas principais, pelo menos... Patativa. E cada livraria pode procurar que o meu livro “Cante Lá Que Eu Canto Cá” ele está. E o “Ispinho e Fulô” também. Agora principalmente o “Cante Lá Que Eu Canto Cá”. Ele já foi publicado oitenta milheiros de livros... daquele volume, viu? É muito querido, viu? Gilmar. O senhor conheceu um professor francês, Raymond Cantel [1914-1986], que vinha fazer pesquisa de cordel aqui no Ceará? Patativa. Eu conheci, eu vi. Raimundo Cantel, não é? Foi ele o portador do meu livro “Inspiração Nordestina” lá para a França. E esse livro, houve um estudo sobre esse livro... [“Cante Lá Que Eu Canto Cá”, conforme depoimento de Martine Kunz que participou desses seminários na Sorbonne-Nouvelle, Paris III] É, o doutor Raimundo Cantel... Gilmar. Sim. Patativa. Foi no tempo em que me convidaram para eu ir à Europa e eu num quis ir. Nem quis e nem quero. Agora eu conversei com ele lá em Crato. Aquele folclorista e escritor também J. de Figueiredo Filho [1904-1973, organizador do livro “Patativa do Assaré — Novos Poemas Comentados”, publicado pela Imprensa Universitária do Ceará, em 1970] Gilmar. Sim. Patativa. Que era uma capacidade e ao mesmo tempo uma humildade! Eu gostava muito dele, de conversar com ele, com aquela... [tosse] simplicidade tão grande, tão humilde! E quando o doutor Raimundo Cantel passou para a casa do Luís da Câmara Cascudo [folclorista norteriograndense, 1898-1986] Gilmar. Sim. Patativa. Eu estava no Crato e o J. de Figueiredo Filho me procurou, levou pra apresentar a ele. Eu recitei umas coisas pra ele e tudo. E ele próprio portador do livro levou pra França. Eu autografei um livro pra ele, viu? Pois, olhe, eu conheci esse doutor Raimundo Cantel. Depois


veio um senhor de muito estima, de muita capacidade, doutor Colin [Colin Henfrey, do Institute of Latin American Studies, da Universidade de Liverpool, Inglaterra]. Ele me disse que lá em Londres, olhando lá no arquivo quando viu o jornal com uma reportagem sobre a minha pessoa. Ele disse que teve a curiosidade maior da vida e veio aqui ao Ceará. Foi à minha casa, passou três dias lá na Serra de Santana, para pedir licença para traduzir o livro “Cante Lá Que Eu Canto Cá” em inglês. E mandou... e ficou mandando cartão pra mim, pra Belinha, minha esposa, que ele era tão humilde e sabia... Ele sabia se adaptar assim à vida dos camponeses... Gilmar. Sim. Patativa. Para poder colher o que ele queria, não é? Gilmar. Sei. Patativa. Que eu sei bem como é, como são os pesquisadores, a sua maneira, a sua qualidade pra poder arranjar aquilo que ele está interessado. Ele ia lá pra cozinha conversar com a Belinha. E naquela alegria. Aí, eu digo: “Doutor Colin, eu da minha parte eu dô licença. Agora, é preciso o senhor se entender também com a Fundação Padre Ibiapina, no Crato e com o Plácido Cidade Nuvens e depois com a Editora Vozes, lá em Petrópolis, no Rio de Janeiro. E assim ele fez. Mas ele mandava cartão pra mim, cartão pra Belinha. Mas quando chegou... Sim, e de lá ele mandou aquele meu poema, até traduzido em inglês... Gilmar. Que consta do livro do Dr. Plácido [“Patativa e o universo fascinante do sertão”, editado pela Universidade de Fortaleza, em 1995]. Patativa. Sim, você não viu? Gilmar. Vi. Patativa. Pois é, justamente! É que é “Caboclo Roceiro” [“Peasant Farmer”]. E depois que entrou aquela Guerra da Malvinas, ele me disse que era um oficial, viu? Era uma pessoa que estava incluída também nesse meio dessa guer-

ra. Eu penso que ele se acabou por essa guerra, porque ele nunca mais deu notícias [o Dr. Colin está vivo e é Research Fellow da Universidade de Liverpool]. Gilmar. Nunca mais deu notícias? Patativa. Nada, nada! Não mandou cartão pra Belinha nem pra mim nem pra ninguém. Não deu notícia de forma nenhuma. E era um tradutor... Ele disse: “Olhe, eu vou traduzir. Eu... num é de interesse de ganhar nada! Se houver lucro nesse sentido será pra você e também a Editora Vozes, que com certeza ela quer também, mas a minha parte não! A minha parte é lhe apresentar.” Gilmar. O senhor sabe se a Fundação Padre Ibiapina pagou alguma coisa à Vozes pra publicar o seu livro? Patativa. Não. Gilmar. Patativa, como é que você se sente sendo objeto de livros, teses, estudos? Você pede que alguém leia o que foi escrito sobre você? Você tem curiosidade sobre o que a gente escreve sobre você? Patativa. Bem, eu tenho... curiosidade como, que você fala? Gilmar. Se fica curioso, assim, pra saber o que o Gilmar vai escrever depois? O que foi que Fulano escreveu a seu respeito? Patativa. Ah, eu sinto. Eu sou muito curioso. Nesse sentido, eu sou muito curioso, porque eu mando ler. Sempre tive esse cuidado. Quando eu lia, ainda estava lendo, eu mesmo lia e dava pra admirar o que o camarada dizia sobre a minha poesia, as imagens que eu aplico nos meus poemas, comparações que eu faço e tudo. Eu sempre gostei de procurar. E sempre sou feliz. Nunca ninguém escreveu sobre mim para eu num achar que era uma crítica construtiva. Era contando sempre a verdade da minha índole, o que eu sou e tal. É tanto que eu não gostei... Agora, você viu o novo livro — o novo livro não! A nova edição do “Aqui Tem Coisa” !? Você viu?

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Gilmar. Vi. Patativa. Mas o seu prefácio eles tiraram. Eu não gostei. Num falei nada, porque se tivessem falado antes... é eu num sabia lá que iam tirar! Mas o seu prefácio...Você num prefaciou aquela primeira edição? Gilmar. Sim. Patativa. Pois bem. Um prefácio muito honroso aquele, viu? Gilmar. Obrigado, Patativa. Patativa. Agora, tem um prefácio também que é bem agradável e eu nem sequer conheço aquele senhor. É Raimundo Cavalcante [poeta, artista, plástico e dramaturgo]. Você sabe quem é? Gilmar. Não. Patativa. Também não conheço, viu? Agora, que o prefácio também é agradável, mas o seu é além. Gilmar. Patativa guarda livros, teses, artigos escritos sobre sua vida e sua obra? Patativa. Tenho nada. Sempre fui displicente nesse sentido, viu? Um desleixado grande, viu? Não tenho nada guardado sobre o que escreveram sobre mim, viu? Onde tinha um que eu fiquei muito triste em ter desaparecido, não ter guardado, não ter tido um grande cuidado, que é de um jornalista que eu não sei o nome dele, mas tem as iniciais e adiante Tinhorão. Gilmar. Ah, José Ramos Tinhorão [1928]! Patativa. Como? Gilmar. José Ramos Tinhorão, um pesquisador de música brasileira... Patativa. É que ele fez uma reportagem muito honrosa, que ele... e o título é este: “Quem quiser conhecer poesia em estado puro leia o Patativa do Assaré.” É o título da reportagem dele. [Publicada pelo Jornal do Brasil, edição de 2 de setembro de1981]. Então, ele sai dizendo alguma coisa e faz uma referência sobre “A Morte de Nanã”. Ele diz bem assim: “Vejam que imagem é essa aqui! ‘Daqueles óio tão lindo, / eu vi a luz

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se apagando / e tudo diminuindo. / Quando eu tava reparando / os oinho da criança, / vinha na minha lembrança / um candieiro vazio, / com uma tochinha acesa, / representando a tristeza / bem na ponta do pavio.” E aí apresentava outras estrofes, viu? Eu gostei muito da reportagem dele, viu? Porque essa passagem assim, de quando eu estou criando, eu faço quase chorando. Eu sou muito sensível, sou muito sensível. Aquela “A Morte de Nanã”, aquilo ali é uma criatividade que me comove muito... Gilmar. Por que? Patativa. Não foi só uma Nanã! As Nanãs, viu? Gilmar. As Nanãs. Patativa. Aquilo ali eu tô me referindo é a todas as crianças que morreram naquele tempo, né? Gilmar. Tempos difíceis, que ainda continuam... Patativa. Não é só a uma criancinha acolá! E assim por diante. Mas eu sempre tive sorte, Gilmar, de ser bem recebido e também a referência ser bem agradável. Uma pessoa que eu não conhecia... tinha até assim uma timidez danada se um dia acontecesse de me encontrar com ela, mas o que... ela mandou me convidar. Eu ia a Fortaleza, demorei em Quixadá, estava a escritora Rachel de Queiroz [1910-2003]. Quando ela soube, mandou um parente dela me levar à fazenda dela e eu gostei. Ela me teve a maior atenção. Olha... e, finalmente, beijou até a minha mão! [ri] Gilmar. Ela era amiga do Aderaldo. Escreveu um artigo sobre ele. Patativa. Ela? Pois ela... pediu que eu recitasse alguma coisa sobre o sertão. Ora, eu tenho aquele meu poema “O Retrato do Sertão”... Aí, quando eu recitei, ela... ficou toda comovida... Gilmar. Interessante! Patativa. “Patativa você é o poeta sonoro!” Mandou buscar fotógrafo... aí nós nos fotografamos lá na fazenda dela, [“Não-me-deixes”] viu? Certo que eu fui muito bem recebido por Rachel de Queiroz. Mas se eu soubesse que


ela estava em qualquer lugar, que eu chegasse numa cidade pra eu mesmo ir... atrás... Gilmar. Não ia não... [ri] Patativa. Não, nunca! Nunca. Morreria de velho sem conhecê-la, se fosse preciso fazer assim. Mas ela mandou me chamar... Gilmar. Patativa, o que é que vem primeiro: é a ideia do poema, o título do poema? Você começa por onde? Patativa. Eu... eu começo assim... o título do poema? Não! Primeiro, eu penso o quadro, aquela história que eu imaginei na mente, viu? Gilmar. Sim. Patativa. Aí, por ali, pelo sentido, aí eu procuro o título. O título é preciso ser bem aplicado... Gilmar. Sedutor... Patativa. Pra poder dar certo com a história, não é? Gilmar. Sim. Patativa. Com aquilo que o poeta vai escrever, aquele poema e assim por diante. É... é tudo ao mesmo tempo. É tanto que esse meu livro “Cante Lá que Eu Canto Cá”, o Plácido, fui eu que dei aquele título, porque no outro livro, eu tenho um poema com o título “Cante Lá que Eu Canto Cá”... Ele veio me pedir que eu desse o título do livro. Eu disse: “Bem, o título do livro poderá ser o título do poema, o mesmo ‘Cante Lá Que Eu Canto Cá’ e pronto! Mas não acertou muito bem. Só se eu tivesse ‘Canto Lá e Canto Cá e Canto Lá’” Seria até melhor, viu? [Risos] Porque eu me espalhei no mundo inteiro, não é? Gilmar. Patativa, tem gente que gosta mais de trabalhar à noite, tem gente que gosta mais de trabalhar de dia. O senhor tem alguma preferência? Patativa. É à noite. Gilmar. À noite? Patativa. À noite. Olha, aquele... aquele meu poema “O Purgatório, o Inferno e o Paraíso”

antes de ser publicado no meu livro, ele foi publicado na revista “Ocidente: Revista Portuguesa de Cultura”, lá em Lisboa. Esse doutor José Arraes ele era um homem inteligente e escrevia muito bem e fazia parte, lá em Lisboa, dessa revista. Aí ele publicou “O Purgatório, o Inferno e o Paraíso” nessa revista, antes de ser publicado o meu livro, antes d’eu escrever o livro. Que aquilo... aquela criatividade, aquele meu poema, onde eu... faço a divisão das classes, eu custei a encontrar o tema. Foi assim: ele disse... mandou uma carta para mim dizendo: “Patativa, eu sempre admirei esse seu pensamento penetrante, com essas suas poesias, quer em linguagem certa, quer em linguagem... poesia matuta, quer em forma literária, a sua facilidade é a mesma. E por isto aí vai este título pra você... eu quero saber o que é que você vai mandar para mim em verso, viu?” Aí estava “O Purgatório, o Inferno e o Paraíso”. Eu fiquei encabulado até achando ruim ele ter mandado aquilo, mas fiquei pensando, pensando... mas à noite é sempre quando eu mais... acho aquilo que eu quero, viu? Gilmar. Por causa do silêncio? Patativa. Eu sozinho lá, recatado num ponto. Quem vê assim acha graça... com jeito de maluco, viu? Gilmar. [Ri] Patativa. Pois é, assim... aí eu já tava... já tarde da noite pensando, viu? “O Purgatório, o Inferno e o Paraíso”... Aí quando me veio a lembrança das três classes: pobre, média e rica. Eu digo: “Pronto, achei!” Agora... [Risos, risos] pra fazer os versos vai ser fazer mais fácil. Gilmar. Tinha o ponto de partida. Patativa. Aí, então, o título ele mandou, mas não dizendo o que eu ia fazer. Ficou curioso. Quando eu mandei e ele publicou na revista “Ocidente: Revista Portuguesa de Cultura”. Aquele meu poema “Mãe Preta” também antes de publicar no meu livro foi publicado na mesma revista “Ocidente”, lá em Lisboa, por intermédio dele, viu?

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Gilmar. Fez à noite também? Patativa. Foi. Também à noite, viu? A maioria dos meus poemas eu sempre faço à noite, depois que todos vão se agasalhar... E outra também, não... É por onde eu vou é fazendo verso. Eu tou na roça... Olha, “A Triste Partida”, que eu criei a “Triste Partida” naquele movimento dele pra São Paulo a procura da vida naquelas viagens tão penosas, viu? Nem o próprio motorista não sabia quando chegaria em São Paulo, porque nem sequer havia estrada asfaltada naquele tempo! Na década de 50. Pois bem, eu estava... eu ainda me relembro. Eu estava limpando uma mandiocazinha aqui assim, quando me veio a lembrança de fazer um trabalho sobre a retirada dos nordestinos para São Paulo. Gilmar. As grandes levas... Patativa. Aí, criei logo com o título a “Triste Partida”. Aí fiz aquele trabalho com o camponês fazendo aquelas experiências e dando negativa, negativa, negativa. Até chegar no dia 19 de março, que é dia de São José [padroeiro do Ceará], que é a derradeira esperança do sertanejo [próximo à passagem do equinócio]. Aí botei tudo negativo pra puder ele ir pra viagem dele. Gilmar. Nordestinado não... Patativa. É. Pois bem, fiz aquilo... [tosse] limpando aquela mandiocazinha numa tarde. Eu comecei. Aí, de noite, fiz mais outros estrofes... ali não precisava escrever. Eu fazia as estrofe e ficava aqui em minha mente. No outro dia, tava do mesmo jeito. Aí, no outro dia, eu terminei a “Triste Partida” que é dos meus poemas mais conhecidos...É aquele. Por causa de ter sido gravado... Gilmar. Por Luiz Gonzaga. Patativa. Sim, o “Rei do Baião”, viu? É, a “Triste Partida”. Gilmar. O senhor gosta de produzir poesia na Serra de Santana? O senhor acha que lá tem mais inspiração do que aqui em Assaré? Patativa. Tem, tem mais inspiração lá na Serra de Santana e também quando eu faço essas

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viagens que ninguém conversa comigo eu vou compondo poemas em qualquer sentido, viu? E também retratando... Olha aqui, o “Crime Imperdoável”, viu? Eu pensando que muitas vezes um... (tosse) um rico vai desarmonizar a casa de um pobre e fica por isso mesmo. Então aqui eu criei esse poema “Crime Imperdoável”: “Com sua filha de bondade infinda, Maria Rita, encantadora e bela, morava a viúva, Dona Carolinda, junto do engenho do Senhor Farela. Paciente e boa e cheia de carinho, passava os dias sem pensar na dor. Reinava ali, naquele pobre ninho, um grande exemplo do mais puro amor. A linda jovem, flor de simpatia, de olhos brilhantes e cabelo louro, além de arrimo e doce companhia, era da mãe o virginal tesouro. Tinha uma voz harmoniosa e grata, Maria Rita, a filha da viúva, igual à voz do sabiá da mata, quando ele canta na primeira chuva. Maurício, um filho do senhor de engenho, um estudante, bacharel futuro, apaixonou-se com maior empenho de saciar o coração impuro. E com promessa de um porvir brilhante, fazendo juras de casar com ela, tanto insistiu o traidor pedante, que conquistou a infeliz donzela. Tornou-se... em pranto da menina o riso anuviou-se o doce amor materno. Aquele rancho que era um paraíso foi transformado em verdadeiro inferno. Depois expulsa pelo mundo afora, sorvendo a taça do amargoso fel, soluça a mãe e a triste filha chora, horrorizada do chacal cruel. Vive hoje o monstro prosseguindo o estudo, enquanto o manto da miséria cobre, porque só o rico tem direito a tudo. Não há justiça para quem é pobre.” Gilmar. Patativa, você falou dos poetas que você tinha lido: Olavo Bilac, Casimiro de Abreu


e vários outros. Agora, de poesia matuta, poesia cabocla, quem foram os autores que você leu e que mais lhe impressionaram? Patativa. Foram... Catulo da Paixão Cearense e Zé da Luz, um paraibano, viu? Que é o autor de um livro com o título “Brasil Caboclo”. Você ainda não leu esse livro, não? Gilmar. Ainda não... Patativa. Pois é, é muito bonito, viu? Ele tem os poemas bem criados, viu? E o estilo dele é aquele de Catulo: rimas baralhadas, não tem estrofe de dez, de oito ou de seis, não! É do jeito que quiser. Sai versejando e faz ponto final onde precisar fazer o mesmo, viu? Ele tem, olhe... “A Fulô de Muçambê” é um grande poema dele, viu? E também “Confissão de Caboco” é outro grande poema dele. É grande mesmo, porque lá, segundo a estória dele, esse casal, que vivia muito bem e tal, viu? E o camarada já tinha sido apaixonado por aquela pessoa... Gilmar. Não correspondido... Patativa. Mas não deu certo, não casou. Mas ele ficou sempre com ela na lembrança. Certa vez ele foi a um baile, o homem... Gilmar. Sim. Patativa. E a mulher disse que não ia, viu? E ele foi. Quando chegou lá, o dito apaixonado da mulher estava. Disse: “Fulana não veio?” Ele disse: “Veio não. Ela está doente e não veio não.” Aí ele... quando deu fé, ele seguiu. E ele viu que ele ia em direção da casa dele, na mesma estrada... e ele saíu devagarinho, devagarinho, devagarinho... chegou lá viu quando ele bateu na porta. Aí ele... [tosse, tosse] parece que ele foi... atirou. Aí ele... ele correu. Quando ele correu, caíu um objeto assim. Era uma carta. Ele pegou a carta. E o danado era analfabeto, coitado! E a vantagem desse poema é essa. Aí ele entrou de casa adentro e matou a dita, viu? Gilmar. Sim... Patativa. Apunhalou e matou mesmo, viu? E.... mas foi logo se entregar ao delegado. Mas chegou lá pediu ao delegado que primeiro...

Gilmar. Lesse a carta? Patativa. Queria que ele lesse aquela carta pra saber o que era que tinha aquela carta. Quando ele leu a carta era a pobre mulher dizendo ao cara que nunca mais andasse na casa dela, que ela tinha casado com aquele senhor por amizade pura e decidida! Que ele não voltasse mais lá não, senão ela contava ao marido. Tudo isso, e ele escutando, coitado! Viu? Aí, ele vai dizer: “Fui... fui criminoso duas vezes! Que crime não saber ler!” Ele diz. Gilmar. Patativa gosta de poesias sociais, mas também gosta de uma poesia apaixonada? Patativa. É, mas, não tenho muita poesia apaixonada, não. É.. quase que não tenho. Eu tenho é... só poesia... quase só poesia social. Eu tenho também poesia... “Bem no cimo do monte florescente, em lembrança do nosso amor passado, ainda encontra-se exposto a sol ardente um casebre sem dono, abandonado. Quando às vezes por lá passo chorando, recordando da vida uma passagem, no terreiro da choça me acenando, me parece surgir a tua imagem. Outras vezes eu penso estar ouvindo, na pequena varanda da casinha, teu cantar sonoroso, belo e lindo, na bela entoação de uma modinha. Penetro na palhoça com cautela, procurando te ver, mulher amada, mas tudo quanto encontro dentro dela são corujas, morcegos e mais nada!” Então, o Padre Pereira... olha, porque muita gente não sabe como é a vida da gente do sertão, isso e aquilo, viu? Gilmar. Tem que viver o sertão... Patativa. Padre Pereira disse: “Mas, Patativa, eu admiro muito aquele seu poema com o título ‘O Casebre’, viu? Mas, veja bem, termina... assim, uma coisa... Por que é que você disse que, quando entrou na palhoça, à procura da mulher, só encontrou foi morcego, corujas e mais nada?” Aí, eu ri e disse: “Padre, o senhor

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quer que eu lhe diga uma coisa? Essas casas velha abandonadas pelo sertão, as aves noturnas no decorrer do dia estão escondidas ali... dali saem quando chegar a noite, que vão andar que sempre voam à noite, não é? E é por isso que eu digo: são corujas, morcegos e mais nada. Porque, no decorrer do dia, nessas casas velhas que ninguém mais habita estão ali corujas, morcegos, finalmente, as aves noturnas. É o esconderijo delas!” Aí foi que ele ficou ciente, viu?

Gilmar. De 1981... Patativa. É aquele disco onde eu falo sobre Antônio Conselheiro, tem “A Morte de Nanã”, também, não é?

Gilmar. Quem é Padre Pereira? Patativa. Era vigário de Nova Olinda. Padre Manoel Pereira [1923], viu? Gostava muito de me ouvir... eu recitava pra ele “Ave Noturna”: “É muito feio o corujão da mata e bem poucos lhe votam simpatia. Para a pessoa ingênua e insensata o seu canto é horrível profecia. Porém, se o mesmo é feio e não encanta, a sua voz também não causa mal. E com certeza o pobrezinho canta cumprindo, assim, a ordem natural. Quando o seu canto à noite escuto ao longe, no coração eu sinto uma surpresa e tenho a sensação de ouvir um monge obedecendo a sábia natureza. E se ele anda... [tosse] E se ele anda a vagar como assassino, pela treva da noite tenebrosa, Deus traçou dessa forma o seu destino. Ninguém lhe chame de ave criminosa! O mocho para mim é um beato, desapegado do prazer do mundo. E quando penso sobre o seu recato, vejo um sentido muito mais profundo. É porque, revoltado, não concorda da humanidade a sua falta enorme. Por isso dorme quando a gente acorda e sempre acorda quando a gente dorme.”

Gilmar. Com produção do Fagner... Patativa. Todo o povo se admirou, porque eles deram o aviso: “Vai começar!” Não dá certo. “Vai começar de novo!” Mas eu, quando entrei, fui até o fim. Num errei nem foi preciso recomeçar coisa nenhuma. De cada poema que eu ia apresentar eu ia até o fim, sem precisar recomeçar ou ter uma fala pra depois consertar. Não, não foi não! E o primeiro disco que eu gravei foi ao vivo, lá em Fortaleza [“Poemas e Canções, de 1979].

Gilmar. [Risos] E em relação aos discos, como foi a sua experiência em termos de gravação? Patativa. É, eu gostei. Eu gostei de ter gravado disco... principalmente o meu disco “A Terra é Naturá”.

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Gilmar. E o senhor ficou à vontade no estúdio ou ficou encabulado? Patativa. Não, eu estava sozinho, eu estando sozinho, eu não tenho essa coisa de encabular não! Foi lá na CBS.

Gilmar. Gravou um agora por último também? Patativa. Sim, foi. Agora por último eu gravei aquele... Gilmar. Que foi produzido pelo Dílson Pinheiro...[“85 anos de poesia”, depois transformado em cd] Patativa. É, sim, foi. Gilmar. E televisão, o senhor gosta de participar de programas de TV? Patativa. Não, quase que não gosto! E tenho ido poucas vezes, viu? Gilmar. Mas já foi no Jô Soares, na Hebe Camargo... Patativa. É, eles me convidam, eu vou e dou show. Tenho ido várias vezes, viu? Gilmar. Mas fica à vontade também lá? Patativa. Fico, fico à vontade, porque já sou ambientado. Fortaleza é como se eu estivesse aqui em Assaré, viu?


Gilmar. E São Paulo? Patativa. E São Paulo também é quase que a mesma coisa, viu? Gilmar. Como é que o senhor se sente em cidade grande? Se sente perdido, gosta ou é indiferente? Patativa. Bem, eu sinto com dois dias eu já tô é com uma saudade danada do interior daqui do meu nordeste, desse povo simples e tal, viu? Agora, quando a gente se apresenta, que vê o entusiasmo do povo, pronto! Ali foge toda timidez, viu? Toda emoção. Eu sou assim: eu estou assim num ambiente, um grande auditório, eu sei que eu vou... Aquele povo falando lá no microfone e eu aguardando a minha vez, viu? Gilmar. Sim. Patativa. Pra declamar poema, viu? Um medo mais danado do mundo! Mas quando eu me aproximo e pego o microfone, aí passa tudo, viu? Gilmar. Passa tudo? Patativa. Não se acaba... se acaba ou pelo menos melhora muito, viu? Gilmar. Menos mal. Patativa. Logo eu tenho um pensamento comigo que conserta mais ou menos, sabe o quê? É que aquele auditório não tem nenhum... nenhuma daquelas pessoas que seja capaz de dizer o que eu vou dizer, fazer o que eu tenho feito e faço e tudo, viu? Aí, eu melhoro. Gilmar. (risos) E cinema? O senhor fez um filme com o Rosemberg Cariry e o Jefferson Albuquerque [“Patativa do Assaré - um poeta do povo”, 1984], não foi? Patativa. Foi. Eles vieram aqui e filmaram muita coisa, viu? Lá, na Serra da Santana. Filmaram eu colhendo o algodão e muitas outras coisas, viu? Gilmar. As pessoas gostaram do filme? O que é que dizem do filme para o senhor? Patativa. É... sempre me falam que gostaram muito do filme. Ele já levou até para o exterior o Rosemberg, viu?

Gilmar. Sim. O senhor gostou de fazer cinema e fazer esses documentários? O senhor também não se incomoda, não? [Patativa foi personagem de documentários dos alunos de Comunicação Social da UFC, 1984; de Oswald Barroso e Ronaldo Nunes, da Cia de Imagens, em 1994, dentre outros] Patativa. Não. Não, eu num gosto, não. Eu... basta, assim, os que eu já fiz e tal... e já está muito bem aquilo que eu tenho feito, aquilo que eu tenho apresentado. Olha, aquele.. esses versos que eu recitei há pouco tempo sobre o beato Zé Lourenço... Está filmado naquele cinema do Rosemberg, viu? Gilmar. No Caldeirão? [“O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto”, 1986] Patativa. Me pediram a minha opinião sobre o beato Zé Lourenço, aí eu dei aquela opinião, porque é aquilo mesmo. Ele estava sendo um defensor dos desprotegidos, dos oprimidos, viu? Vinha gente de longe. Aquela perseguição foi por causa disso. Os latifundiários estavam ficando sem braço, sem trabalhadores, viu? Que ali em Caldeirão já estavam fabricando ferramenta agrícola ali dentro mesmo, viu? Naquele tempo, viu? Era quase o Conselheiro [Antonio Mendes Maciel, 1828-1897, líder de Canudos], viu? Agora, que ali foi a facilidade de destruir, porque a ciência já estava bem aproximada, a tecnologia resolveu tudo daquele tempo do Conselheiro até agora, né? Gilmar. Bem mais. Patativa. Agora, lá no Conselheiro deu bronca, né, como diz o povo? Pra poder tirar aquele povo de lá... Gilmar. Está fazendo 60 anos que eles bombardearam o Caldeirão. Patativa. 60 anos, né? Pois bem. Foi a maior facilidade, como eu digo nos meus versos. Tem uma coisa: essa luta do povo não se acabará nunca! Aqui, ali, acolá é tal qual o Movimento dos Sem-Terra.

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Gilmar. Movimento sério. Patativa. Morre um, morrem dois, morrem três e vão presos, mas não acaba. E é tal qual eu digo naqueles versos. “Porém por vários caminhos, pisando sobre os espinhos, com o sacrifício imenso, seguem no mesmo roteiro, sempre haverá Conselheiro e beato Zé Lourenço.” É, esses condutores dos sem-terra é um deles, viu? É um deles, um desse movimento. Que eu sou muito revoltado contra isso, viu? É tanto, em meus livros, você vê que aqui e acolá eu falo sobre reforma agrária, eu mostro que a terra é de todos... Naquele meu poema “A Terra é Naturá”, que ali é um grande poema, é uma prova certa como... diria, “A Terra é Naturá”. Aquilo ali representa sabe o quê? É um agregado falando para o chefe do país. É! Gilmar. Patativa, o senhor gosta muito de declamar? Patativa. Sempre gostei. Eu gosto, porque todo programa que eu vou fazer eu digo logo: “Vocês me chamaram para o espaço de tempo para eu me apresentar? Porque material [ri] eu tenho com pólvora e tudo! [risos] É, sim. Gilmar. E como é feita a seleção? Patativa. Aí escolho conforme o ambiente, mas a minha poesia é quase toda social. Mas também tem outro sentido. Tem mais, né? Mas eu sempre gosto de publicar como “Mãe de Verdade”. Aquele meu poema que eu tenho, “Mãe de Verdade”, né? Sobre o aleitamento materno, falando contra as mulheres que desprezam o filho, não quer que ele mame e tal, viu? Aquilo ali é muito engraçado, quando eu estive na cidade, o povo ri tanto – e as mulheres também, viu? Gilmar. Agora, o poema... o senhor acha que ele se completa na hora que o senhor tá recitando? Patativa. Sim.

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Gilmar. Porque enquanto não recita ele não existe, não é? Patativa. É, ele não existe. É enquanto eu tou recitando, ele... eu tou mostrando a verdade dentro daquele poema, tudo direito, viu? É tanto que, nesse... “Mãe de Verdade” num é dois caboclos? Um chega na casa do outro e diz: “— Boa noite, amigo Jacó! Eu num lhe disse que vinha? — Boa noite! Veio só? Por que não trouxe Zefinha? — Jefinha não veio, não. Ficou mamentando o João. Deus, que tanto cartucho! O menino tá dum jeito que quando agarra no peito só larga quando enche o bucho! [Gilmar ri] — Migué, tudo isso é o amor. O que ela faz com o João não tá fazendo favor. É a sua obrigação! Mãe que não quer... que não dá de mamar não quer bem nem sabe amar nem merece confiança. Faz o papel de ladrona, porque do peito ela é dona, mas o leite é da criança! [Gilmar ri] Depois do fio nascer, o leite dos peito tem pertence todo ao bebê. É dele e de mais ninguém. Toda mãe que não mamenta pra mim nada representa, pois comete um grande erro é desamorosa e fraca. Eu comparo com uma vaca quando ela enjeita o bezerro.” Aí continua, não é? É um poema bem pensado e também uma réplica danada, um conselho pras mulheres, viu? Gilmar. Mas declamar não é só dizer o poema, é dizer também com a voz, com as mãos, com o corpo...


Patativa. É, é sim. É sim. Pra poder... Gilmar. Emocionar? Patativa. É. Ficar... apresentar a verdade com mais certeza, não é? Gilmar. Mas o senhor tem uma colocação de voz que parece voz de cantador, quando você está declamando... Patativa. É, sim. Eu tou declamando, eu sempre... é na minha forma natural. Não vou atrás de moda, de seu ninguém. Não, coisa nenhuma! É cá, do jeito que a natureza me deu, viu? As minhas poesia.... Em tudo, o sentido... Você conhece a Débora? [fala, com voz se afastando da fonte de gravação] Gilmar. Débora Cronemberger? Patativa. Eu fui entrevistado lá em Brasília por ela, viu? E ela me disse que trabalha n’ “O Povo” [entrevista publicada na edição de 11 de novembro de 1995]. Débora, uma mulher bem fortona [na verdade, mede um pouco mais de 1,50 m e pesa em torno de 50kg]. Gilmar. Eu vi a sua entrevista de Brasília. Eu vi e guardei. Patativa, atualmente, quem você considera os grandes nomes da cultura popular? Patativa. Olha, eu não sei nem dizer, porque são muitos por aí, não é? Gilmar. Aqueles que o senhor admira o trabalho, de cordel, de música... Algumas pessoas das quais o senhor admira o trabalho. O senhor falou antes do Expedito... Patativa. Sim, é. Olha, o Expedito escreve muito bem, viu? Eu gosto do cordel escrito pelo Expedito. Pedro Bandeira tem também uma infinidade de cordéis, viu? Mas o Expedito eu acho, assim, uma coisa mais... Mas o dele parece que é mais, assim, digno de atenção. João Bandeira também tem muitos cordéis, viu ? Finalmente, o Nordeste é cheio de cordelistas e poetas, mas... mesmo poeta que escreve volume, como quem escreveu Pedro Bandeira, João Bandeira e muitos outros por

aí. Mas o primeiro cantador de viola que lançou livro fui eu, viu? Foi eu. Gilmar. Em 1956. Patativa. Depois os meus colegas viram aquilo também começaram a fazer livro, viu? Livreto, livro, viu? Parece que eles achavam que o cantador de viola não podia fazer... publicar assim um livro e tal. Não! O grande cantador de viola que eu conheci e foi meu amigo de improvisar comigo lá naquele lugar lá em Fortaleza que chamavam de “Passeio Público” [Praça dos Mártires, onde foram executados os participantes da Confederação do Equador] Gilmar. Sim? Patativa. Foi o grande Rogaciano Leite [19201969], que foi meu amigo, viu? O grande... Ele admirava muito minha poesia, inda veio aqui ao Assaré com a amante dele, a Ana, mas eu não estava. Infelizmente, eu não estava quando ele veio. E ele foi um violeiro também, viu? Gilmar. Dizem que dos bons. Patativa. Ele publicou aquele livro “Carne e Alma”. Ele tinha um poema falando “Ceará Selvagem”. Aquele poema é muito bonito! É muito bonito. Tem também outro poema [tosse] que é “A Praça do Ferreira” [principal praça de Fortaleza]. É, eu sei que ele tem muita coisa boa... no livro dele. Pois bem, foi o primeiro cantador de viola que lançou livro aqui no Nordeste foi ele. Depois do Rogaciano, fui eu. Gilmar. Patativa conheceu um poeta chamado Moisés Matias de Moura [1891-1976], que morou um tempo em Juazeiro? Patativa. Conheci. Conheci lá em Fortaleza. Ele morou em Fortaleza, viu? Muito tempo, não era? Era ele que fazia um cordel bem extenso, umas coisas compridas danada, viu? Eu me lembro. Gilmar. Ele era guarda do trânsito. Patativa. É. Agora, é que... os cordelistas, eles sempre... eles não criam, não é? Ele gostam de contar aquele passado, isso e aquilo e tal.

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Gilmar. Ou então alguma coisa que aconteceu. Patativa. É, sim. Uma coisa que aconteceu. Não é como o Patativa de contar uma “Escrava do Dinheiro”, “A Morte de Nanã”... Gilmar. “A Terra é Naturá”... Patativa. ... “As Proezas de Sabina”, “Voltei e Deixei Isabé”, “Maria Tetê”, aquela mulher que achava os objetos, né? [Patativa ri] Gilmar. Patativa, como é que você se mantém bem informado? Você assiste televisão, ouve rádio, pede pra ler jornal pra você? Como é que você sabe das coisas que acontecem no mundo? Patativa. É porque eu sou muito cuidadoso e os jornais sempre noticiam — não todos! — ali tem muita coisa que eles procuram encobrir, viu? Mas há muitos jornais e também certos programas que contam a verdade. E mesmo a gente sabe, meu filho, como é... os tráficos, os assaltos, quanta miséria nós temos no Brasil. É tanto que eu fiz aquilo, quando me deram aquele número, aquele mote, “Viva o Povo Brasileiro!”... Gilmar. Sim. Patativa. Veja como foi que eu fiz: “Quando passaram as chacinas, que surge de dia a dia, e o tráfico de cocaína e a real democracia seguir os caminhos certo e os Chicos Mendes libertos das balas do pistoleiro diremos em nossa terra, por vales, sertão e serra: ‘Viva o povo brasileiro!’ Quando o artista que tem fama e ocupa o televisor só apresentar programas de moral, de paz e amor, quando o cruel mercenário, este monstro sanguinário, deixar de ganhar dinheiro pra matar seu semelhante e não houver assaltante, ‘Viva o povo brasileiro!’

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Quando o infeliz agregado, se libertar do patrão para viver sossegado no seu pedaço de chão; quando uma reforma agrária que sempre foi necessária para o caboclo roceiro for criada e resistrada em nossa pátria adorada ‘Viva o povo brasileiro!’ O sonho de nossa gente foi sempre viver feliz trabalhando independente em nosso grande país Quando o momento chegar do nosso Brasil pagar o que deve ao estrangeiro o maior prazer teremos e libertos gritaremos: ‘Viva o povo brasileiro!’” Gilmar. [Ri] Patativa. É... Só poderemos dizer “Viva o povo brasileiro!”, se acontecer isso que eu estou dizendo e muitas e muitas mais outras coisas, viu? Gilmar. Patativa, além dos vários autores que o senhor citou que.. que tinha lido, o senhor também gostava, como outros cantadores gostam, de dicionários, almanaques, livros de geografia? Patativa. Eu gostava do dicionário. Agora de geografia, eu quase que nunca lia, viu? Lia sempre alguma coisa, porque eu lia tudo, viu? Mas o dicionário é porque auxilia, não é? O dicionário auxilia ao escritor. Às vezes ele tá vacilando sobre uma palavra, não é? Ele vai... pra saber se tá errado ou não, ele pega o dicionário e vai ver, não é? É justamente. Foi um livro que eu sempre procurei folhear foi o dicionário, principalmente nesses meus poemas em forma literária, numa linguagem mais ou menos polida, não é? Gilmar. E almanaque? Patativa. Almanaque eu também gostava de ler, porque com o almanaque sempre saía... toda vida fui curioso pra gostar disso, daqui-


lo, anedota, piada, essas coisas no almanaque gosta de sair. Tinha o “Mensageiro da Fé” publicado lá na Bahia. Era os frades, viu? Lá no convento. Saía muita coisa engraçada. Um dia, tinha um velho dormindo de óculos e dois garotinhos assim perto. Aí, um dos garotos disse: ‘Eu vou tirar os óculos de vovô. Vou tirar os óculos de vovô, que ele tá dormindo.” O outro disse: ‘Não é pra tirar, não! O óculos tá aí é pra ele ver as coisas quando ele sonhar.” (Gilmar ri, ri, ri) Não é engraçado? Gilmar. É. [Patativa ri] E o Almanaque do Manuel Caboclo, o senhor conhece? [Manoel Caboclo, 1916-1996, manteve o almanaque “O Juízo do Ano” em circulação de 1960 a 1996, sem interrupção. Era radicado em Juazeiro do Norte]. Patativa. Conheço, viu? É... ele sempre me oferece aquele almanaque, viu? Agora, Gilmar, eu nunca acreditei muito em profecia, não. Nessa profecia sobre chuva, porque até esses intelectuais que estudam os astros e não sei o quê erram tanto. Erram muito, viu? Gilmar. Patativa, e sobre a família? Patativa. A minha família? Gilmar. O que é que ela representa pro senhor? Patativa. Ah, é o primeiro, o principal tesouro da minha vida é a minha família, viu? É como eu tenho dito por aí: ‘Meu mundo é a minha poesia e a minha família.’ Como eu disse a Luiz Gonzaga quando ele quis comprar o direito autoral de “A Triste Partida”. Foi, sim. Eu sou muito feliz, porque eu vivo rodeado de protetores. Esse camarada que entra aqui, de quando em vez, viu? Gilmar. Sim. Patativa. É meu genro [Romualdo, 1948]. É o marido da Lúcia, a minha caçula. Quando ele não tá bebendo é educado e tal. Mas ele bebe e se joga por aí. Faz nada! Mas eu nunca deixei de ajudá-lo, viu?

Gilmar. O senhor tem três filhas [Inês, Mirian e Lúcia] e quantos filhos? Patativa. Quatro filhos, viu? [Geraldo, Afonso, Pedro, João. Patativa não gosta de falar dos filhos que morreram adultos: Maria Maroni e Raimundo, que suicidou-se]. Tem um em São Paulo, o João Batista. Ele trabalha lá num grande frigorífico. Ele é operador de máquina. Trabalha até a noite, viu? É um sujeito de muita confiança. Ele lá é dono das chaves de tudo, viu? Há dez anos que ele está morando em São Paulo, viu? É João Batista. E decorrido o tempo, sempre quando eu canto, eu andava lá, uma das vezes que eu andei ele disse: “Olha, pai, eu vou telefonar para os três patrões que eu tenho, se eu posso levá-lo à presença deles.” Eu disse: “Por que essa besteira?” [Gilmar ri] Ele disse:”‘Não, não é besteira! Sabe o que é. É que eles elogiam muito o Patativa do Assaré, segundo eles falam, que é o primeiro poeta da atualidade, é o Patativa do Assaré. E eles não sabem se... se o Patativa é o meu pai. Eu nunca disse e nem... nem diria nunca. Agora, eu vou telefonar se eu posso lhe levar lá.” Eu disse: “Pois é, pois telefona.”... “Não, o que é isso, Cidrão!?” Ele só assina João Batista Cidrão. “Que é isso, Cidrão? Traga seu pai. Por que, então, você não poderá trazer o seu pai aqui pra gente conhecer?” Aí quando nós chegamos lá, tavam aquele Seu Arlindo, Seu Irineu e outro lá que eu nem me lembro o nome, todos lá na sala. Aí, ele me apresentou. Falaram comigo. Ele disse: “Olha, os senhores têm me dado grande prazer quando falam do Patativa do Assaré, que é um grande poeta, tem título em todos os temas, tem a bordado todos os temas. E eu nunca falei... nunca fiz referência nenhuma. Apenas escutava com o maior prazer e aqui no meu coração ainda mais. Pois olhe, esse aqui é que é o Patativa! [Gilmar ri] Esse aqui é o meu pai!” Gilmar. Bonito. Patativa. Aí, tornaram até a falar comigo. [ri] Aí, eu fui recitar poesia pra eles, viu? Gilmar. Os outros moram aqui.

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Patativa. É, aqui, são três que tratam de agricultura lá na Serra, viu? Na mesma vidinha que eu passei, viu? [Afonso, Geraldo e Pedro] Gilmar. Mas nenhum deu pra poesia? Patativa. Não. Eles sabem fazer uns versinhos quando querem, viu ? Mas... Não, nenhum dos meus filhos é poeta. Agora, eu tenho uma neta [Toinha Cidrão,1970, filha de Inês] que faz versos, viu? E versos bem feito, viu? Mas nunca se preocupou com isso não. Quando mesmo entende de fazer uns versinhos, ela faz os versos. Mas os filhos meus, não. Eu tenho um sobrinho, Geraldo Gonçalves [1945], que até publicou um livro [vários, aliás: “Suspiros do Sertão”, 1982 e “Clarão da Lua Cheia”, 1985,”Reflexos”, s/d e “Atrativos do Amor e da Paz”, 2001, além da organização dos dois volumes de “Balceiro”. É com quem Patativa faz torneios poéticos na Serra de Santana, reunidos no livro “Ao pé da mesa”, Secult/Terceira Margem, 2001] Gilmar. Além de o “Balceiro” [Secult, 1991]? Patativa. Sim. Não, o “Balceiro” é de todos os poetas e versejadores do Assaré . Gilmar. Foi o senhor que organizou? Patativa. Foi, sim. Eu e o Geraldo. Nós organizamos escolhendo os versejadores e fazer aquele... publicar aquele livrozinho com o título “O Balceiro”. Porque balceiro, na expressão do sertanejo, do agricultor, é aquele agrupamento de garrancho e tudo. Faz aquele monte de garrancho de todo jeito, aí a gente chama “balceiro”. E ali, como são muitos poetas, é um balceiro de poetas, viu? [Gilmar ri, ri; Patativa tosse] Onde tem um Vicente Gonçalves [1919-1988], meu primo legítimo, viu? E era poeta. Este não foi divulgado, mas ele era um camarada extraordinário! A gente brincava muito fazendo poesia. E ele... [tosse] era muito crítico. Ele fez essa estrofe: “Depois da Segunda Guerra sabe um portuga o que fez? Querendo aprender inglês viajou pra Inglaterra. Chegando naquela terra

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bastante civilizada teve uma escola adiantada, mas não aprendeu inglês. Se esqueceu do português, voltou sem saber de nada!” [Gilmar ri] Aqui nós temos uma cidade denominada Tarrafas [município desmembrado de Assaré em 21 de outubro de 1988]. E ele fez essa ironia. Ele... “Eu na Tarrafa cheguei com grande satisfação, depois a decepção, não almocei nem jantei. As horas que lá passei parando aqui e acolá só de ‘Cariri com K’ bebi mais de uma garrafa. Pra mim aquela tarrafa não passa de um landuá”. [Gilmar ri] Landuá cê sabe o que é, não sabe? Gilmar. Instrumento de pescar? Patativa. Instrumentozinho, assim, de pegar peixe. Aqueles que fizeram...e assim por diante. Ele... ele diz... ele gostava de beber e fez essa estrofe. Gilmar. O senhor foi casado durante quanto tempo com Dona Belinha? Patativa. Cinquenta e oito anos, viu? Foi uma vida exemplar, viu? 58 anos. [Dona Belinha, nascida em 1914, morreu em 1994]. Me deixou essa imorredoura saudade, viu? Mas que a vida é assim mesmo, viu? Vai um, o outro fica. Tem que se conformar. Gilmar. O senhor tem poemas escritos sobre ela? Patativa. Ah, eu tenho um naquele meu livro “Balceiro”, ô, esse “Aqui Tem Coisa”. Eu não tenho o poema decorado, mas tem um poema sobre o comportamento dela, a filosofia dela, sobre a própria vida é... tem o título “Felicidade”. É, pode procurar no livro que tem. Os versos são meus, mas o pensamento é dela.


Gilmar. Patativa gosta de festas? Festas de São João, esses folguedos populares, tudo isso você gosta e usou na sua poesia? Patativa. Sempre. É porque o São João é a festa mais conhecida que nós temos no Nordeste. É quase no Brasil inteiro, principalmente aqui no Nordeste. Só nas grandes cidades é que o São João não é bem comemorado, mas... já foi diferente, viu? Mas depois... olha, depois que chegou a televisão, o rádio e essa desenvoltura danada tudo enfraqueceu mais, viu ? Até os violeiros, as cantorias, naquele tempo havia muita cantoria na casa de fazendeiro. Hoje, quase toda estação de rádio tem um programa de violeiro. Daí eles não vão convidar. Deixa praquele dia... escutar, né? Diminuiu muito, viu? As cantorias no sítio por causo do rádio e da televisão. E tudo isso em minha poesia eu recito, como naquele “Presente Desagradável” que tem nesse meu poema... nesse meu livro “Aqui tem Coisa”. Na Fazenda Cangati — sei lá se existe o diabo dessa fazenda! [Gilmar ri] Na Fazenda Cangati chegou energia rural. Aí depois chegou a energia rural. Ali morava uma velha e as suas filhas, viu? Gilmar. Sim. Patativa. ... naquele [tosse, tosse]... naquele esconderijo tem televisão, às vezes até tem rádio, mas que a dita mulher, a dita velha tinha um filho em São Paulo, o Julião, vivia lá. Quando ele soube que na Fazenda Cangati havia chegado energia rural, ele mandou uma televisão – uma beleza! — pra mãe e a filha assistir o programa e novela. Mas a moça danou-se quando ligou. Aí ela... Ficou é retratando e metendo o pau nos programas indecorosos e novela e tudo, viu? Ela disse: “Ó, mamãe, o Julião que lá no São Paulo mora, que é seu filho e meu irmão, tendo certeza que agora também já chegou aqui na Fazenda Cangati, a energia rural manda essa coisa pra gente. As coisas desse presente

pra mim não vale um zuá. Era melhor meu irmão mandar dinheiro pra gente do que a televisão que só sai coisa indecente! Toda vez que eu ligo ela no chafurdo da novela vejo logo papel feio. Vejo o maior fumaré com a briga das muié querendo os marido alheio. Do que adianta ter fama, ter curso de faculdade, pra apresentar programa com tanta imoralidade? Sem escrupo e sem respeito quem faz assim desse jeito tá prantando uma semente pra cuiê crime e tristeza tá estragando a pureza das criancinha inucente. Eu vejo a maior anarquia é uma coisa medonha, eu não sabia que havia tanta falta de vergonha. Vi uma moça elegante, bonita e no mesmo instante sua vergonha perdeu andando pra lá e pra cá modo se fotrogafar nuzinha como nasceu. Assistir televisão dessa maneira eu não posso. Não sei porque meu irmão mandou pra nós esse troço, que a gente não se acostuma. Eu vi uma tal de Juma toda nua a se banhar, bem desconfiada e sonsa, que já tá virando onça nas terra do Pantaná.” [Gilmar ri] E aí continua, né? Metendo o pau. Gilmar. Patativa, a gente pode dizer que atravessou o século. Nasceu em 1909, nós estamos

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em 1996. O que mudou nesse tempo e o que é que ficou? Patativa. [galo canta ao longe] Ah, mudou muita coisa, viu? Mudou muita coisa porque em tudo por tudo. Até o cinema e tudo. Naquele tempo nós não tínhamos o cinema falado. E mudou tanta coisa que, finalmente, a gente não pode nem dizer o que mudou e o que não mudou e o que ainda está. O que ainda está é a ilusão do povo, cada um procurando uma melhora, apoiado na esperança e vivendo, viu? Porque isso sempre houve e há de haver. [tosse] Gilmar. O que é que significa tradição para o Patativa? Tradição. Quais são os valores que o senhor acredita que a gente deva lutar por eles? Patativa. É, sim. Eu já escrevi. Eu tenho escrevido sempre nesse sentido, não é? Vai mudar mais. Podia não haver tanta mudança. É conservar a tradição, acho que é o dever de cada um. Você vê que meu poema...“O que é Folclore”, né? Eu digo n’“O Que É Folclore”... [pausa, na qual murmura]: “De conservar o folclore todos têm obrigação para que nunca descore a rosa da tradição. Os homens de grande escudo como Maynard e Cascudo guardam sempre nos arquivos populares tradições, cantigas, superstições e costumes primitivo. Você, caboco que cresce sem instrução nem saber, escuta mas não conhece folclore o que quer dizer. O folclore é um pilão, é um bodoque, um pião, garanto que também é uma grosseira cangalha aparelhada de palha de palmeira e catolé. Posso lhe afirmar também Folclore é superstição, o medo que você tem do canto do corujão. Folclore é aquele instrumento

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para o seu divertimento que chamamos berimbau e aquela brincadeira, ritmada e prazenteira chamada maneiro-pau. Folclore, meu camarada, ouvimos à toda hora. É a história de alma penada, de lobisomem e caipora. Presta atenção e decore, pois com certeza folclore, ainda posso dizer, que é aquele buzu de osso que você põe no pescoço do filho pra não morrer. É o aboio magoado do vaqueiro na amplidão. É o festejo animado da debulha de feijão, carro-de-boi e gaiola e desafio à viola do cantador popular. E é aquela toadinha da ciranda cirandinha vamos todos cirandar. Eu e você que vivemos no nosso pobre sertão muitas coisas inda temos da popular tradição, além doutras o girau e a carrocinha de pau, em vez de bunito carro. E pra ver satisfação, a gente cumê pirão mexido em prato de barro. E agora, prezado irmão, esses versos lhe dedico. Já dei alguma noção do nosso folclore rico. Não posso continuar, pois nada pude estudar, de dentro do cena saio. O resto lhe dirá tudo Romão Filgueira Sampaio, Maynard e Câmara Cascudo.” É isso aqui, viu?


Gilmar. Patativa, o senhor não gosta muito de fazer trabalho de encomenda, não é? Patativa. Não, eu não gosto. Eu não gosto porque eu temo não... não agradar. Não gosto, viu? Não gosto mesmo de fazer trabalho de encomenda. Eu fiz esse trabalho de encomenda para o Dr. José Arraes de Alencar, mas veja como: ele apenas deu o tema, não é? Não foi nem o tema, deu o título, “O Purgatório, o Inferno e o Paraíso”, e pediu que eu fizesse... que ele tava curioso pra saber o que eu ia dizer com aquilo. Aí então me apoiei nas três classes: pobre, média e rica, viu? E no fim ele ficou tão satisfeito que publicou, como eu lhe disse, na revista “Ocidente: Revista Portuguesa de Cultura”. [Patativa fez também um cordel, por encomenda de Dom Hélder Câmara, sobre o assassinato, em Recife, do Padre Henrique, durante o período autoritário] Gilmar. Propaganda, também, o senhor não gosta muito de fazer não? Patativa. Como? Gilmar. Fazer propaganda, publicidade, reclame? Patativa. Não, nunca gostei. Gilmar. Foi só um do Bromil, não é? Patativa. Não. Do Bromil [marca de xarope/ expectorante] eu já fiz uma vez, você ouviu? Gilmar. Ouvi [“Quem cruel tosse lhe ataca / e em vez de estar satisfeito / vive tristonho e sem graça / pra você só há um jeito / vá logo à farmácia e compre / Bromil, amigo do peito”]. Patativa. Aquilo foi uma adulação danada pra eu fazer aquilo, mas... [tosse] Vou lá em Fortaleza, viu? [Gilmar ri] Aí eu pensei assim e fiz, viu? Também foi só aquilo. Não gosto de fazer propaganda, não. Gilmar. Você tem algum poema inédito, Patativa, ou algum livro pra ser publicado? Patativa. Tenho não. Eu num tenho quase poesia inédita, viu?

Gilmar. Por quê? Está se concentrando menos ou está com preguiça? Patativa. É, com preguiça, viu? Já acho que já chega, viu? Já cheguei já. Já estacionei, viu? Eu faço verso de toda natureza eu faço verso, viu? Aqui, só para os camponeses, viu? Que sabem o que é a nossa linguagem, a nossa expressão e nossa gíria e tudo, é aqui no Nordeste, “Pai Luís”. “Pai Luís” é um velho imaginário que, ele chega na roça do preguiçoso, aquele que tem preguiça de trabalhar, aí ele se põe lá numa moita e o preguiçoso não limpa aquela roça, porque ele, ele não deixa, viu? Gilmar. Sim. Patativa. É que o povo cria, viu? Aí “Pai Luís” disse... passa aqui e diz: “ ‘Pai Luís’ tá na roça de Fulano. E sabe de uma coisa: e ele vai comer aquela roça, ele não limpa aquela roça, viu?” Aí nesse meu poema que é muito extravagante, é uma coisa, uma criatividade muito, assim, meio debochada, mas termina o Jacó botando um adjunto na roça dele pra tirar “Pai Luís” pra fora, viu? [Gilmar ri] Mas veja bem de onde vem o negócio, viu? Gilmar. Mas esse é... poema é novo? Patativa. É bem novo, não foi publicado, não. Só pre’u recitar pra turma aqui da Serra de Santana, por aqui. Gilmar. Mas não mandou anotar ainda não? Patativa. Nada, coisa nenhuma! Eu vou deixar ele assim. Só para os meninos, não vou publicar nunca ele. [“Pai Luís” faz parte do volume “Balseiro 2”, organizado por Geraldo Gonçalves, publicado em 2001] Você vai ver como é, viu? E tem outro cujo título é “A Capação foi Assim”: “Em um lugar bem distante, em uma terra afastada, deu-se um caso extravagante que serviu de palhaçada. Um terreiro de galinha, um frango tão grande tinha que fazia admirar. A dona o mesmo pegou

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e o dito frango levou pra sua nora capar. “Cocorocó”, muito bravo gritava o frango zangado! “Cocorocó o quê, diabo? Você hoje vai capado!”, dizia a séria velhinha. “Correndo atrás de galinha, vejo você enxerido. Hoje você não escapa! E a minha nora é quem capa, que tem o dedo comprido.” Transpondo barroca e escombro, saíu com muita alegria, com o seu frango no ombro, pois nos braços não podia. Chegou lá e... vermelha igual uma brasa, chegou lá e disse: “Ó, de casa!” E alguém lhe disse: “Ó, de fora.” Quando um minuto passou na sala se apresentou a sua querida nora, dizendo: “A bença, madrinha!” Foi logo entrando no tema: “Isso é raça de galinha ou é um frango de ema.” Disse a velha: “Minha filha, veja bem que maravilha, veja o grande crescimento, só poderá ser capado com seu dedo deformado que herdou de nascimento.” “Não me afobo nem me zango com meu dedo deformado, pois com ele muito frango eu aqui tenho capado. Se este muito grande vem meu dedo é grande, lhe digo e posso provar, a operação não falha. Se assente nessa cangalha, que a faca eu vou amolar.” Cumprindo a ordem da nora,

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na cangalha se assentou e a nora sem ter demora depressa a faca amolou. E, para dar boa sorte, um meio palmo de corte do desgraçado rasgou. Como quem põe um consolo o seu dedo fura-bolo de frango adentro socou. Escrafunchando e bulindo com o seu dedo comprido vive ela sorrindo. Isso é muito parecido com coisa bem diferente! Num manda muito vivente que de nascença é capado. É minha desconfiança o meu dedo não alcança nos troços desse dadado! Com um... [ligeiro engasgo] Com um grande ar de tristeza ficou a velha a dizer: “Maria, eu tenho certeza que o meu frango vai morrer. Enquanto está remexendo, ele está esmorecendo e esfria igualmente um sapo. Eu estou com muito medo. Parece que esse seu dedo já está mexendo no papo!” E a nora dentro, animada: “Ou no papo ou na garganta, se aqui tem coisa encantada, o meu dedo desencanta! Madrinha, eu tenho costume. Puxei agora um volume, repare, presta atenção.” E a velha disse: “Ó, Maria, não era assim que eu queria. Isso aqui é o coração!” (Gilmar ri) “Então, morreu o coitado, mas que a culpa não é minha! Eu nunca tinha capado dessa raça de galinha. Já que isso aconteceu


e esse seu frango morreu a gente muda de assunto. Para não ficar perdido, seu filho, que é o meu marido, bota agora um adjunto.” “Veja, madrinha, o Jacó, só tá vivendo de troça, de brincadeira e forró e ‘Pai Luís’ lá na roça. E essa... pobre vizinhança com o fim de encher a pança da carne desse sendeiro, de alegria se alvoroça e vai limpar nossa roça, sem precisar de dinheiro.” O Jacó, que é sem respeito, gosta de esculhambação, contando a cada sujeito como foi a capação, vai servir de caçoada, de mangofa e gargalhada e é grande o divertimento. E esta turma de gaiatos das roças limpam os matos e a comida é o pagamento. Na manhã do outro dia começou logo o fofó, chegava um e dizia: “Cadê o frango, Jacó?” “Carne a gente não enjoa, sua sogra é gente boa e Maria é de primeira, malva, relógio e capim, das duas vão levar sim, roça nova e capoeira.” Na mais quente animação cada qual com sua enxada, com dois dias de rojão, o mato não deu pra nada. Do grande frango comendo e o trabalho resolvendo cada qual foi o mais brabo. E Jacó, muito feliz, despachou o ‘Pai Luís’ pra casa da mãe do diabo. [Gilmar ri]

A Maria, muito séria, tratando do seu labor, sempre escutava pilhéria, de cada trabalhador. Pois o povo sem respeito, logo assim que arranja um jeito para fazer mangação, para o apelido apela, ficaram chamando ela ‘Maria do Coração’. Tudo sorria animado somente a velha chorou. Do seu frango idolatrado nem mesmo um caldo tomou. Vivia a soltar gemido: ‘Adeus, meu frango querido, da maior estimação. A minha nora malvada, que não sabe fazer nada arrancou-lhe o coração. De uma maneira qualquer, meu filho é um vagabundo. E a minha nora a mulher mais safada desse mundo com o seu dedo comprido matou o meu frango querido e foi de caso pensado. Com isso que aconteceu eu vejo que ela nasceu com o dedo amaldiçoado.’ Já sofrendo do juízo, delirando ela dizia: ‘Ó, meu Deus, que prejuízo! Cadê meu frango, Maria?’ Lhe deram xampu rião de quem nasce que nem limão porém nada resolveu. Deram tangolangomango e com saudade do frango com sete dias morreu. ‘Mas que tristeza, meu Deus!’” Gilmar. [Risos, risos, risos] Ah, Patativa, me diga uma coisa: quem é mesmo o “Pai Luís”? Patativa. “Pai Luís”? Na mente dos camponeses, viu?

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Gilmar. Sim. Patativa. É assim um velho abstrato, assim, imaginário, viu? Um velho fantasma que criam e lá na roça do preguiçoso... porque em todo lugar tem preguiçoso que às vezes deixa o mato estragar os legumes, não é? Gilmar. Um mito, como a caipora? Patativa. Aí, eles têm essa superstição, viu? Que o “Pai Luís” vem se senta ali numas moitas, diz: “Ele não limpa isso aqui, que isso aqui tudo é meu. É mato, é legume, é tudo, é meu!” É o “Pai Luís”. Gilmar. Patativa, um poeta de bancada, quando não gosta de um verso, ele rasga. Você guarda na memória: quando você num gosta dum verso, como é que apaga? Patativa. O meu próprio verso? Gilmar. Sim. Quando o senhor está fazendo um que não gosta, como é que faz? Patativa. Verso que eu tenho feito? Gilmar. Não, quando está ainda na sua cabeça e o senhor não gosta, como é que faz pra apagar? Porque o que tá no papel, risca, rasga o papel e o seu é na memória. Como é que você apaga? Patativa. Sim! Não, eu quando não simpatizo com o verso, viu? Aí eu mudo, assim na mente, viu? Gilmar. Muda como? Patativa. Mudo assim, na mente, qualquer coisa. Mas é muito raro, viu? Porque a beleza da poesia consiste na colocação das palavras. Toda palavra cabe no verso. Depende de saber colocar... Gilmar. Depende. Patativa. Pra poder ficar... simpático, bonito, ter graça, não é? É tal qual a quadrinha. A quadrinha não é tão fácil de fazer! É muito fácil de fazer uma quadra. Mas pra quadra ficar bonita e encerrar uma verdade, ela é... assim meia difícil. Começo as minhas quadras que eu faço dizendo assim, ó:

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“Somente o rico na Terra tem o seu nome na história quando o pobre vence a guerra O rico alcança a vitória Se o orgulho e a hipocrisia não fossem ao cemitério pouca gente dormiria naquele lugar funéreo. Saudade dentro do peito é qual fogo de monturo por fora, tudo perfeito por dentro fazendo furo. Saudade é uma sentença que dentro da gente fica quanto mais nela se pensa mais ela se multiplica. (ligeiro engasgo e pausa) Aqui tudo aquilo... (erra e recomeça) Aquilo que eu não espero gosta de me aparecer. Vejo sempre o que eu não quero, em vez do que eu quero ver. Ser poeta... (esquece e para; sussura) Ser poeta é ter paixão é sentir da dor o espinho. Ter tudo no coração e viver sempre sozinho. O poeta é um vagabundo, que vive vagando além procurando nesse mundo o que esse mundo não tem.” Gilmar. Todas essas quadras são suas? Patativa. São quadras que eu tenho. Gilmar. E o que é poesia para Patativa de Assaré? Patativa. A poesia é assim uma expressão sagrada, viu? É uma coisa santa. Eu comparo a poesia com uma coisa que merece o maior res-


peito, maior respeito. E ela ameniza a vida daquele que a compõe, viu? A poesia é um dom divino, um dom divino, viu? Eu... por que é que eu nunca quis fazer profissão da minha poesia como comércio, viu? Porque eu até respeito a minha poesia. Gilmar. Muitos respeitam... Patativa. Sou o poeta nato. O poeta, vamos dizer, o poeta apaixonado. E gosto da poesia que traga, assim, essas filosofia, essas verdade contidas nela, como diz... “Há dor que mata pessoa sem dó e sem piedade. Porém, não há dor que doa como a dor de uma saudade. Saudade é canto magoado no coração de quem sente. É como a voz no passado, ecoando no presente.” E assim por diante, viu? Gilmar. Quadras não são fáceis de fazer... Patativa. E a quadrinha é fácil de rimar. Mas pra encerrar essas verdades que eu to dizendo é mais difícil. Não é só improvisar, não! [Fim da gravação.]

Entrevista concedida ao professor Dr. Gilmar de Carvalho, do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC), na cidade de Assaré – Ceará, em 15 de fevereiro de 1996. Transcrição das fitas por Ane Katerine Medina Néri, jornalista e professora universitária.

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PATATIVA DO ASSARÉ Pássaro liberto

Tirando o chapéu

A

lém

da

voz

maviosa, da coerência e do compromisso, o que melhor poderia representar, iconicamente, Patativa do Assaré? O chapéu e os óculos. Patativa ia receber um troféu, em setembro de 2001, e veio a constatação de que o Museu do Ceará não tinha nada dele em seu acervo. Foi comprado um chapéu de massa, igual ao que ele usava, inseparável, e um par de óculos escuros, de aros dourados. Patativa aceitou de bom grado a troca, feita no alvoroço que antecedeu a solenidade, e registrada pela fotografia. Mais que um acessório, o chapéu se incorporou à sua persona pública. Era um sinal de respeito dos homens de seu tempo (embora ele seja de todos os tempos).

As lentes protegiam sua cegueira, eram um biombo contra o olho perdido aos 4 anos e o outro que foi se desgastando ao longo da vida. Chapéu e óculos que compõem a figura e exaltam uma racionalidade que não prescinde da emoção. Sua força vinha da voz, que lhe assegurou o epíteto de pássaro. Esses objetos desencadearam a exposição Pássaro Liberto, que o Museu do Ceará inaugurou como tributo a um canto político, sem perda de sua qualidade poética. Ele fez dos noventa e três anos de sua vida um longo poema épico sobre a terra, o trabalho e as condições de vida de sua (nossa) gente. Camponês de mão grossa e fina sensibilidade, encontrava na comunhão com a terra a força que seu verso emanava. Seu corpo franzino, de um metro e meio, escondia uma força insuspeitável. Patativa foi (e será) sinônimo de poesia. Detido porque reclamou da prefeitura sem prefeito (nos anos 40), colaborador de jornais

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alternativos, teve sua prisão decretada no período autoritário. Por encomenda de Dom Hélder Câmara, denunciou a morte pela repressão do Padre Henrique, no Recife. Publicado, nunca deixou de ter na voz sua forma de expressão poética. Violeiro, abandonou o instrumento e o introjetou, compondo à capela, pelejando pelo resto da vida, por meio das palavras, pela reforma agrária, pelo socialismo e contra o preconceito, a exclusão e a miséria. Voz a favor da Anistia e das Diretas-Já, compreendeu o embuste Collor de Mello. E até o fim de sua vida tomou partido a favor dos meninos de rua, do uso educativo da televisão e em defesa de movimentos libertários, como Canudos, Caldeirão e o MST. Eleitor de Tasso Jereissati, então arauto das mudanças, de quem se tornou amigo, nunca deixou de apoiar as tentativas de Lula de chegar à Presidência da República. Apesar da cegueira, via longe e fugia das glórias vãs. Nunca buscou o aplauso fácil e manteve uma coragem que poucos são capazes de mostrar. Nunca esqueceu o prazer de trabalhar a terra, só comparável ao prazer de fazer versos, que armazenava na memória, sob o sol inclemente que o chapéu amainava, e que as lentes escuras tratavam de fingir que filtravam. Prevalecia sua luta pela construção de um mundo melhor. Nesse sentido, era um utópico. Com quatro meses de escola, Doutor Ho-

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noris Causa de quatro Universidades, ganhou comendas, troféus, títulos de cidadania. Nada disso mudava sua rotina. Gravou discos, transformou-se num olimpiano, ocupou espaços na mídia impressa e eletrônica. Estes ensaios tentam montar um caleidoscópio de um poeta cidadão chamado Antônio Gonçalves da Silva. Intelectual orgânico, na acepção de Gramsci, admirador de Cristo, foi um leitor voraz do que lhe chegava às mãos, na inacessível Serra de Santana. Ensaios que são peças de um quebra-cabeças maior, colcha de muitos retalhos, emendados, pacientemente, ao longo de quase dez anos de convívio, mais de 600 páginas de conversas gravadas e transcritas, um objeto de pesquisa que se tornou amigo. Ensaios que são complementados por um achado: o folheto O Crime de Cariús, escrito por Patativa com o pseudônimo de Alberto Cipaúba, em 1946. Dado como perdido, este exemplar da biblioteca de Thomaz Pompeu Gomes de Matos traz valiosas pistas sobre criação e encomenda, pauta e o distanciamento com que lemos hoje este fato de 1942. Patativa cantou e subiu. Não nos sentimos órfãos. Sua obra clássica, acima das contingências de tempo e espaço, vai prevalecer como referência, marco, monumento. Hoje é palavra impressa, mas antes foi voz e vai continuar a ecoar sertão adentro. E dentro de nós que sabemos de sua grandeza.


Oralidade e Indústria Cultural

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arece que tudo já foi dito sobre Patativa do Assaré. Existe uma unanimidade em relação à sua importância para a chamada poesia popular. Ele seria a expressão maior dessa manifestação marcada pela espontaneidade, pela riqueza musical e pela força telúrica. Serviu como emblema tanto de posições conservadoras, em razão da tradição que representa, quanto da retórica esquerdista que elevava à condição de paradigma da resistência alguém que se definia como revoltado contra as injustiças. Patativa é bem maior do que qualquer maniqueísmo reducionista. Isso vale à pena ser ressaltado. A verificação do que já foi escrito sobre o poeta do Assaré (ou do mundo?), em meio a indefectíveis adjetivos, afirmativas hiperbólicas e referências a sua prodigiosa memória, leva a alguns pontos que mereceriam um aprofundamento. O primeiro seria a valorização do seu lado cantador. Foi assim que ele começou, aos dezesseis anos, quando comprou a primeira viola, empreendendo, aos vinte, uma viagem à Belém, descrita com entusiasmo por José Carvalho em O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará (1930). Na volta, fez apresentações no salão dos Galeno, espaço privilegiado da cantoria, por conta dos vínculos do velho poeta Juvenal com a produção popular. É pouco explorado o fato de que, embora tendo abandonado a viola, Patativa continua no terreno da oralidade. A agilidade do improviso, o inesgotável repertório de situações, as respostas instantâneas às sugestões recebidas fazem dele o repentista à capela, sem as cordas do instrumento musical, mas em sintonia com o prazer do ouvido, com a música da fala poética e com o caráter de arauto das verdades ancestrais.

Patativa não recorre aos artifícios do poeta de bancada. Não burila o verso porque abre mão do rascunho, não empreende a busca da forma perfeita. E sua obra, mesmo escrita, evidencia a dicção da oratória. Métrica, ritmo e rima fluem com a naturalidade com que enuncia seu canto. O que ele diz é transcrito para o papel, mas continua fiel aos códigos da transmissão oral. É como se ele estivesse em permanente peleja, não contra um rival de ofício, que nenhum chegaria à sua estatura, mas com a própria poesia. Ele é seu opositor e seu duplo, enunciador e personagem de uma litania sertaneja. A oralidade não seria decorrente de sua cegueira, no que ele também retoma uma tradição que passa por Homero, Aderaldo e Borges. A cegueira seria a marca dos deuses para que ele fosse apenas voz, que aspira a dar conta da totalidade do real. Não é descabida a palavra dom. Como ninguém, ele invoca o engenho e manifesta a arte. Ouvi-lo é uma experiência mais rica do que lê-lo (outra vez a oralidade). Sem o saber, ele é um performer, mantendo uma herança trovadoresca que se supõe perdida no emaranhado dos referenciais massivos. Seu canto se completa com seu corpo franzino, sua voz anasalada e seu silêncio. É um arauto que não canta na praça, no mercado, nem no adro da matriz, mas em todos os lugares. Patativa é puro deleite. Ele é maior do que qualquer tentativa de interpretação. Seu vigor nos desautoriza. Diante dele, somos meros arremedos de uma análise que se pretende distanciada. Patativa, ao contrário, é pura emoção, com a sabedoria de quem diz o mundo através das palavras e desvenda segredos. Ele é autor de um único e interminável poema que flui e se confunde com sua própria vida. Natureza e cultura se imbricam. E sua voz se

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fraciona, como num prisma, dando conta de todas as possibilidades do que pode ser dito. O segundo ponto seria sua relação ambígua com a Indústria Cultural. O poeta zomba dos quinze minutos de fama porque tem a dimensão do eterno. Sempre cortejado, ele cumpre os rituais das entrevistas e das recitações, com a paciência de quem não pode se recusar a falar, porque este é seu ofício. Ele é o olimpiano da terra, dos bichos e dos homens da Serra de Santana, se dá o luxo de fazer com que as pessoas pensem que ele está sendo cooptado. A dificuldade e um disfarçado fascínio que ele deve ter em lidar com essa parafernália de instrumentos e com essa complexa teia de relações fazem com que eleja intermediários que, na maioria das vezes, se apresentam como tutores do poeta. É quando vêm à tona questões mal resolvidas de direitos autorais, casos de apropriações e de presença em palanques políticos. Mais uma vez, ele é apresentado como uma atração para plateias que se encantarão com a riqueza e a facilidade do seu improviso. A impressão que fica é paradoxal, mas generosa. Patativa faz que se deixa levar, como se aqui também precisasse de guias. Cegos somos

nós que insistimos nessa exposição do poeta à mídia. O que ele canta independe de sucesso. Ele está acima da engrenagem da fabricação e da destruição dos ídolos. Na sua grandeza, ele é pouco importante para o mercado, assim como os conteúdos massivos são poucos significativos no contexto de sua poética. Ele rejeita o sensacionalismo e recorre quase nunca ao factual. Patativa é um clássico. Está acima dos modismos e será sempre lido com a mesma emoção da descoberta. Mas ele faz com que haja sempre vários filtros entre seu mundo particular, de cheiros, texturas e lembranças e este caos onde somos forçados a sobreviver. Mediação que impede que se tenha com Patativa uma experiência de encontro pessoal. Ele é o poeta, igual a todos nós e ao mesmo tempo diferenciado por ser o porta- voz de uma comunidade que se amplia sem limites. Entre o oral e o escrito, o recolhimento em Assaré – que de topônimo passou a patronímico – ou a exposição aos refletores, Patativa se mantém íntegro, ciente de seu próprio valor e por isso não cai nas armadilhas da vaidade. Nem rei, nem príncipe, apenas poeta. E é essa integridade que faz com que aos 85 anos ele seja o gênio que nos emociona, cada vez mais, com sua vida feito poesia.

Prefácio do livro “Aqui tem coisa”, Fortaleza, Secult, 1994.

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Patativa do Assaré: memória e poética

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alar da capacidade de rememoração de Patativa associa-se ao prodigioso e evoca o jovem espanhol, de 21 anos, que era capaz, em 1446, de recitar de cor a Bíblia inteira, Nicolas de Lyre, os escritos de Santo Tomás, Alexander of Hales, Boaventura, Duns Scot e muitos outros... mas é verdade, apenas uma parte de Aristóteles! A dúvida que ficava era se a inspiração vinha de Deus ou do diabo. O processamento das artes mnemotécnicas, sistematizadas por Simônides, encontra no teatro da memória de Camillo, nos esquemas de Raymond Lulle, nos secrets de Giordano Bruno e nas propostas de Fludd, exemplos apresentados por Frances A. Yates, uma tradição iniciática e também uma maneira de compreender o mundo e não apenas enunciá-lo aos jorros de uma acumulação privilegiada. Patativa sabe de cor seus poemas. E os recita com prazer, nos momentos em que é chamado a performatizar. É quando sua voz anasalada se emposta como a do contador que ele foi, e o corpo franzino assume as proporções de mito. O poema é ele todo, perfazendo-se por meio de várias linguagens. Mas Patativa é também a esfinge que ganha tempo, durante as entrevistas, declamando poemas. Pode-se falar num estratagema para evitar questões polêmicas, fugir das tensões e tomar, ele próprio, o rumo da conversa que teria seguido por atalhos muitas vezes incômodos. E ele chega a se irritar se o gravador for desligado ou se o interlocutor insistir numa pergunta. Por conta de uma pretensa objetividade jornalística, pretendemos arrancar de Patativa o máximo de informações. É a falsa ideia de produtividade. Mas o que ele tem a dizer está na

verdade nos poemas. E cada vez que ele diz é diferente, é um outro poema. Falta-nos sensibilidade para compreender que a voz do recitante atualiza os poemas por um momento. Estamos longe de compreender que este é o livro de sua memória, como dizia Zumthor. Patativa incorpora a afirmativa de Funes, o memorioso, de Borges, para quem o pensado uma só vez já não se lhe podia apagar. Sua capacidade de retenção é fabulosa e relaciona-se, intimamente, com sua maneira de criar. Daí a facilidade deste fluxo, onde a escrita, como dizia outra vez Zumthor, relaciona-se ao poder e a voz, à transmissão viva do saber. Quem lê ou quem ouve Patativa compreende porque a voz poética é memória ou, invertendo os termos da premissa, porque a memória se sustenta, aqui, na voz poética. É sua dicção que compõe a tessitura de suas lembranças pessoais que, por sua vez, atuam, como dizia Halbwachs, como um ponto de vista sobre a memória coletiva. Patativa é maior porque sua dimensão é épica. Não a poesia dos grandes feitos heróicos, dos mitos fundantes ou dos gestos memoráveis, mas de um cotidiano que assume essa conotação na aceitação e valoração de um povo, a sua gente. De que outra maneira justificar a força de sua voz, a amplidão do que enuncia e o inaugural subjacente a verdades que parecem estabelecidas e arcaicas como todo o saber que define como tradicional? Esse agricultor sertanejo tem a força de um oráculo. Ele não é só porta-voz, mas a própria voz da comunidade e elemento de sua coesão. Patativa trabalha o verso com a paciência e determinação com que prepara o chão. Ele descreve seu processo: “Toda vida eu criei assim na imaginação. Fazia na minha mente, pensava a história, aquele quadro, aí eu ia contar ele todo em

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verso, com toda a espontaneidade, com toda graça.” Mas é sobre a estruturação do poema, de como ele se encaixa e ganha forma, que vale à pena comentar, porque, relacionando outra vez com uma memória que é relembrança: “Pensava na mente. Aí eu ia reproduzir em versos e guardando na mente, ficando retido na memória. Depois de tudo, se tivesse onde publicar, eu mandava bater à máquina ou, no tempo que eu escrevia, eu mesmo escrevia com minha letra.” Os impasses do poeta eram resolvidos nessa etapa. Tudo feito na cabeça sem a necessidade do retoque. A espontaneidade a que ele se refere é aparente. Inegável que sua sensibilidade, a indignação diante das injustiças sociais, a fluência para encontrar uma tradução poética, para o que de outro modo seria apenas mais um discurso panfletário, atingem em Patativa uma culminância que fazem dele uma espécie única. Mas para chegar a esse refinamento, ele foi um leitor assíduo, cuidadoso e curioso para saber das coisas. Suas leituras vão dos poemas românticos às composições em linguagem cabocla de um Zé da Luz ou Catulo da Paixão Cearense, para não deixar de falar num tratado de versificação de Olavo Bilac e Guimaraens Passos, o que o leva a ter consciência de que seu antológico Purgatório, Inferno e Paraíso tem a mesma cadência de as armas e os barões assinalados. Uma memória que não está centrada apenas em suas recordações pessoais, mas como que retoma e reatualiza uma tradição. É onde fica bem claro que se trata de algo mais que uma simples memorização. Os poemas de Patativa se perdem nas vigílias sertanejas, nas longas conversas nos terreiros, nas reminiscências de um pai que gostava de poesia e teria escrito na dedicatória de um livro que deu ao amigo uma estrofe que, oitenta anos depois, Patativa ainda diz com emoção. Seus poemas se constroem a partir dos violeiros que passam pelos sítios da Serra de Santana, como menestréis medievais transplantados para outras andanças e outras performances. A partir de todas essas informações, ele sin-

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tetiza tudo com seu sentimento do mundo, baseado na doutrina cristã e na emoção derramada como sol e contida como água escassa, mesmo na paradisíaca Serra de Santana. O que parece prevalecer é autoria definida, o que contraria a norma do anonimato da produção popular. Mas as raízes de Patativa são outras. Não vai ser no cancioneiro indo-europeu que ele vai buscar a inspiração para seus poemas. Passa ao longo dos ciclos arturiano e carolíngio, não tem maiores afinidades com o que se convencionou chamar de literatura de cordel, embora tenha escrito e publicado cerca de uma dúzia de folhetos. Muito mais por insistência do editor José Bernardo da Silva, a quem ele presenteou alguns originais, como Abílio e o cachorro Jupi e Aladim e a lâmpada maravilhosa. A escrita não é fundamental para Patativa, porque não cumpre seu papel de contraponto à fragilidade da memória humana, outra vez segundo Zumthor. Ele tem consciência de que é um privilegiado:“Eu tenho até um verso sobre o gravador... Não é porque eu tenho uma memória, modéstia à parte, é uma coisa quase como que rara. Porque eu nunca encontrei quem tivesse a memória que eu tenho, tive. Hoje em dia, um homem com 87 anos...” O registro em livro veio muito depois. Foi posterior à fama que correu o sertão, valorizando a produção de Patativa, fazendo com que aparecessem outros patativas, até que ele tivesse de assumir que era o de Assaré, como uma marca. Interessante que ele tenha passado pelos meios massivos, antes de ter seu tabalho publicado. A ideia do livro parecia um sonho. As apresentações na rádio Araripe eram frequentes, quando ia ao Crato. Foi assim que José Arraes de Alencar, que tomou a iniciativa da publicação de Inspiração Nordestina, teve contato com a obra de Patativa. O livro lhe assegurou um poder. Servia para as pessoas que estavam privadas de sua performance. Vieram outros, como Cante lá que eu canto cá, Ispinho e Fulô e Aqui tem coisa, onde no prefácio eu chamo a atenção para as marcas do oral no impresso. A hipótese era de que o cantador que ele foi asseguraria a agilidade, a mu-


sicalidade e a contundência de um repente ou de uma peleja travada consigo mesmo. Patativa como um violeiro à capela. Ele contesta e coloca a experiência de cantar ao som da viola como algo prazeroso, que alternava com os poemas que podem ser caboclos ou, na observância dos cânones, eruditos, o que mais uma vez ressalta seu talento e versatilidade de poeta e não de versejador, como ele rotula aqueles que não têm criatividade. Como poeta, ele cria tudo em sua imaginação e bate sempre em cheio na vida real. Pode-se dizer que as marcas do impresso também impregnam uma oralidade fluente, como um curso permanente de água que, paradoxalmente, não corre em sua Serra de Santana, que forneceu o barro de onde foram modelados o agricultor e o poeta. Patativa não tem a memória frágil, como a maioria dos homens. O livro veio para que sua obra pudesse ultrapassar os cem anos, que é o tempo, de acordo com Guénée, das lembranças individuais. Então Patativa poderia ser uma matriz a direcionar criações futuras, a semente de novos poemas, um Patativa que superaria a litania de seu cantochão para se transformar numa polifonia de variantes, no emaranhado de um corpus do que seria uma memória popular, muito mais que uma coleção de lembranças folclóricas, como assegurava o medievalista Paul Zumthor. Nesse outro contexto, a reprodução substituiria a produção. E uma das características da poética de Patativa é que ela não é glosada ou fragmentada. Os versos não são destacados de seu contexto para se transformarem em motes ou frases de efeito. É como se ele fosse citado, e a referência implicasse numa necessidade de busca de fontes impressas dos registros fonográficos ou da própria presença, da força de sua performance, instante em que ele reatualiza a voz, sob a inspiração da memória, e reforça a autoridade dessa voz.

A memória em Patativa se acentua no caráter lothmanino de preservação dos textos de cultura. É o que faz Patativa. Muito antes do modismo em que se transformou o discurso ecológico, ele cantava sua terra. Sua poesia é visceralmente ligada ao que vivenciou. Está impregnada de natureza, com o compromisso de quem sempre esteve em profunda comunhão com a terra. O paraíso da Serra de Santana, a visão que poderia ser idílica é contaminada pela questão da terra, pelas inclemências das secas, em suma, por tinturas realistas que evitam qualquer pieguice e dão a grandeza do que ele canta. O pássaro que se transformou em seu epíteto é uma metáfora de como contar é natural. Memória é cultura, disse Lotman. Cultura em Patativa não se opõe à natura. A oposição consciente se dá em relação ao que não é natural: desigualdades, injustiça, opressão. Esta é sua não-cultura. Com o que é natural, ele se integra e faz disso matéria-prima para seus poemas, que soam verdadeiros porque coerentes com a vida que leva, com as opções que fez, com sua visão de um mundo solidário e justo. A terra de Patativa é naturá. Ele também é natureza, e sua voz, ancestral na enunciação de um mundo que existe. Ele não nomeia, ele reforça e acentua o desequilíbrio que não deve existir no que é natural, como a patativa que gorjeia. Sua memória não é apenas sua. Ela se perde, se sobrepõe, se cola, se projeta para o futuro e mergulha em direção a um passado. É nesta síntese que sua dicção se atualiza. Patativa é Antônio Gonçalves da Silva. Poesia em estado puro. O que ele diz não pode ser resumido, o que é uma das características do fazer poético, segundo Eco. O que muitos rotulam como popular, seria melhor definido como clássico. Patativa é nossa memória e nosso cantor maior, inaugural e definitivo. Texto apresentado no III Congresso Internacional Latino-Americano de Semiótica, PUC de São Paulo, 1996 e publicado no número 5 (abril/setembro de 1996) da revista Moara, dos Cursos de Pós- Graduação em Letras da UFPA.

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O oral e o escrito em Patativa do Assaré

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oralidade em Patativa do Assaré remete à infância do poeta e se confunde com sua história de vida. Nas rememorações que atestam o maravilhoso de sua memória, estão os registros que vão nos ajudar a compreender a gênese de seu ofício. No princípio, era a viola: “Aqui em Assaré, no tempo de festa, apareciam cantadores”. O menino tímido não chegava a conversar com eles: “Mas fiquei com uma vontade danada de possuir uma viola”. O desfecho é folhetinesco e resgata a afetividade familiar. Antônio Gonçalves da Silva tinha uma cabra. O cenário era a Serra de Santana, que ele considera, ainda hoje, um pedaço de paraíso. O menino, inusitadamente, pediu à mãe para vender a cabra e comprar uma viola. Ele ficou cantando só em casa mesmo, treinando na vizinhança e depois atendendo a convites de pessoas amigas. Isso a partir dos dezesseis anos de idade, com um olho perdido aos quatro, por conta do sarampo, o que, metaforicamente, pode ser lido como uma premonição que levaria à profissão dos cegos de vender poesia, mas que na prática não impediu que o jovem fosse um agricultor, o que ele continuou sendo até depois dos setenta anos. Patativa faz questão de afirmar que, mesmo quando cantava ao som da viola, não fazia profissão. Eu não era mais do que um agricultor. E mesmo quando prevalecia o cantador, nunca deixou de criar os poemas que vinham à sua imaginação. Nesse instante, vale ressaltar a oralidade como instância de criação e de enunciação da matéria poética. Podemos pensar num movimento complementar: o improviso dando agilidade ao poeta e ditando um ritmo que marcaria todo um conjunto de sua produção e, por outro

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lado, a declamação do poema como a possibilidade de negação do parceiro e a evidência de uma expressão que alcançava a plenitude. A falsa timidez do poeta, levantada como herança paterna, não se sustenta diante do fato de que Patativa fez ecoar sua voz não apenas nos limites de sua Assaré, mas enfrentou públicos diversificados e espaços legitimados, com a força de uma contagiante performance. O poeta, enquanto jovem, saiu de sua mítica Serra de Santana na companhia de um parente e cumpriu o périplo de muitos cearenses em busca da água da Amazônia paraense. Paradoxalmente, não era o agricultor que viajava em busca de solo fértil e fugindo da hostilidade das secas. Quem desembarcou em Belém, aos dezenove anos, viola em punho, foi um cantador ainda não batizado. Foi o jornalista cearense José Carvalho, radicado em Belém e autor de O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará, quem lhe nominou por meio destes versos: É ave que canta solta / e inda mais canta cativa / seu nome agora é Antônio / crismado por Patativa. Curioso que os registros afirmem o violeiro em detrimento do poeta que Patativa sempre disse ter sido. Mas essa distinção é arbitrária, e o que importa é considerar o aspecto da oralidade, marca de sua produção, mesmo quando sua voz se transforma em letra e a performance se confunde com a impressão. O epíteto Patativa, depois acrescido de Assaré, quando surgiram outros Patativas da Paraíba e do Rio Grande, também violeiros, é um forte indício de que é o canto, a voz que prevalece. É uma poesia enquanto música que ele faz e seu público aprova e consome. Foi no Pará, cantando para a colônia nordestina, que ele se preparou para maiores de-


safios. Na volta, em Fortaleza, uma exibição na casa do poeta Juvenal Galeno, autor de uma obra que partiu da tradição oral. Patativa passou a ser o cantor das coisas de sua terra, daí viria sua universalidade. Espécie de intérprete da beleza, do sofrimento e dos sonhos do homem do campo, ele afinou seu canto nessa perspectiva e, pássaro que é, soltou-se, sem perder de vista sua inserção em uma realidade contraditória e perversa. É onde se acentua seu cristianismo primitivo, ansioso pela partilha, pela igualdade de oportunidades e pela correção do social, como se um mundo às avessas fosse o ideal de sua comunidade e dele, porta-voz daqueles que interferem pouco nas decisões do poder. Previsível que essa voz tão bem recebida por grandes contingentes de sertanejos nordestinos fosse publicada como folheto de cordel, o que seria mais compatível com o estágio de desenvolvimento das artes gráficas na região. Porque, mesmo que os poemas fossem, de certo modo, estranhos ao universo narrativo do folheto, eram frequentes as impressões de desafios ou repentes, mesmo que as pelejas pudessem ser inventadas, como a do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, ainda hoje lida e discutida. Previsível também que, por um desses caprichos de pesquisador, fosse feita uma recolha da produção de Patativa, englobada em uma das antologias e seletas, tão frequentes, a partir dos folcloristas do século XIX. Previsível ainda por uma tardia descoberta do filão pela Indústria Cultural, tão ávida pelo novo, já testado e aprovado, o que é bem o caso da produção de Patativa. Imprimir essa voz seria uma chancela, uma legitimação por parte da norma culta e também a possibilidade de voltar como matriz do oral, num processo de realimentação incessante, onde oral e impresso se contaminam, se interpenetram e se enriquecem, por meio da pluralidade de versões ou variantes. Imprimir esse canto seria reatualizar o percurso das narrativas ao pé das fogueiras, que se transformaram nas primeiras edições, quando

a tipografia se desenvolveu e os relatos precisavam não apenas se eternizar, mas se tornar acessíveis a outros receptores. O curioso de todo esse percurso é que antes do suporte do papel, os versos ditos e repetidos na Serra de Santana, em Assaré e no Cariri cearense, foram mediatizados pelo rádio. Em 1951, os Diários Associados fundaram a rádio Araripe, do Crato. Na grade da programação, a radialista Teresinha Siebra apresentava uma emissão de variedades, e um dos achados de sua produção foi a participação de Patativa do Assaré. Realizada todas as segundas, a feira do Crato é uma referência na vida comercial e nas relações sociais da região. O fato de ser esse pólo de concentração de pessoas e de irradiação de influências era ainda mais forte nos anos 50. Patativa não perdia a feira. De um lado, estavam os interesses do agricultor em fazer escoar sua pequena produção, Do outro, o artista, curioso pelo barro, pela exibição da banda Cabaçal do véi Aniceto e atento à comercialização dos folhetos com o selo editorial de José Bernardo da Silva, cuja Tipografia São Francisco, na vizinha Juazeiro do Norte, funcionava a pleno vapor. Patativa já era uma personalidade e passou a ser convidado para dizer seus poemas nos dias de feira. Sua voz tinha mais alcance. A partir de então, não eram grupos restritos que podiam participar de suas performances, ele que tinha uma infinidade de poemas retidos na memória. O acaso levou a que José Arraes de Alencar, um intelectual cratense radicado no Rio de Janeiro, em uma das visitas anuais que fazia para rever a família, um dia ouvisse aquela voz entusiasmada a dizer poemas no rádio. Patativa tenta reconstituir o diálogo de Arraes com a mãe: Quem é que recita essas maravilhas de poemas? Uma coisa tão digna de atenção... de divulgação. A mãe, dona Silvina, respondeu que era um rapaz lá de Assaré, da Serra de Santana. Arraes não perdeu tempo e mandou alguém ir ao estúdio pedindo que Patativa fosse à casa dele após a emissão. Outra vez o poeta tenta

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reconstituir a cena: Quando eu cheguei lá ele disse: você tem uma riqueza de cultura. Por que você não publica?. O poeta teria replicado: Eu sou um agricultor muito pobre. Eu nunca sonhei em publicar nada porque não tenho condições. Arraes disse enfático: Vamos publicar o livro. Um livro que não existia como original preparado, como se diz no jargão editorial. Um livro que foi se constituindo de uma série de poemas que Patativa recitava e Moacir Mota, filho do folclorista Leonardo, ia datilografando. Uma nítida passagem do oral para o escrito. Assim ganhou forma o Inspiração Nordestina, mais que um livro de estreia, um trabalho seminal, espécie de síntese e de arcabouço para toda a obra que Patativa passou a construir. A opinião do poeta é elucidativa: Vendi muito mais no campo que na cidade, mas vendia depressa porque todos já conheciam os poemas que tinham nele. E nesse processo de venda é bom frisar que, nesse ínterim, Patativa ainda se exibia na condição de cantador, participando de exibições nos sítios e fazendas sertão adentro. A mediação do rádio é representativa não apenas do fato de ter chamado a atenção daquele que levou posteriormente os originais para Borsoi Editores, no Rio de Janeiro, mas pelo recurso à eletrônica para amplificar o que antes era conseguido nas vigílias sertanejas, na execução do próprio trabalho e nas festas de pequena escala, já que Patativa faz questão de salientar que abandonou a viola como forma de fugir de plateias especialmente atraídas pelo lado espetacular, assumindo uma relação com a arte mais compatível com sua propalada timidez, com sua opção pelo trabalho no campo e com sua visão de mundo. Paradoxal que, ao se tornar o performer, ele assumisse o centro da cena e brilhasse, de modo mais narcísico, sem a companhia do parceiro, rival das pelejas, o que desmente seu mal- estar de show-man. Além de nova, a mediação do rádio passa a servir como parâmetro, por exemplo, para os violeiros que fazem desse meio um espaço a ser ocupado e recorrem à impressão ou à gravação

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como instâncias não apenas legitimadoras, mas como formas de oferecer a seu público outros produtos além do desempenho, como o livro, a fita de vídeo, o cassete ou o compact disc. Da mesma maneira que não foi a imprensa que acabou com o cordel, como profetizou Sílvio Romero, o rádio, ao invés de enfraquecer e desorganizar a cantoria, aqui compreendida como manifestação da oralidade popular com cânones, mercado e permeabilidade às inovações, serviu como veículo de reforço e difusão dessa manifestação. No caso dos pioneiros, como Hermínio Castelo Branco, no Piauí, ou das coletâneas, o oral passou para o impresso sem essa mediação. A partir da interiorização do rádio, fica impossível pensar no trânsito direto entre o oral e o escrito. E Patativa reforça bem essa afirmativa porque não ocupa sistematicamente os microfones, como empreendedor, adquirindo cotas ou tempo de programação, como a maioria dos cantadores. Muitas vezes é o escrito que passa a ser emitido pelo rádio, ressaltando, em muitos casos, sua procedência oral. Na verdade, trata-se de um jogo complexo que não permite reduções simplistas, nem afirmativas categóricas. O Patativa impresso em livro, primeiramente com o Inspiração Nordestina, de 1956, ganha segunda edição, onze anos depois; Cante lá que eu canto cá, com selo editorial da Vozes, de Petrópolis, datado de 1978, é seu grande sucesso de vendas, com sucessivas reedições. Ispinho e Fulô, de 1988, e Aqui tem coisa, de 1994, completam sua bibliografia que não pode excluir a coletânea Balceiro, que organizou em parceria com Geraldo Gonçalves, em 1991. A produção de Patativa para folhetos de cordel foi muito mais em decorrência de sua amizade com José Bernardo da Silva, a quem teria presenteado alguns originais. Ele faz a ressalva: Eu nunca me interessei porque cordel, aquilo ali é um comércio. Apesar das restrições, seus títulos se situam entre treze e quinze (alguns se perderam em razão da fragilidade do suporte), e esse conjunto foi reeditado, em uma caixa, pela Secretaria da Cultura do Ceará, em 1993,


ganhando o formato de livro, graças às Edições UFC, em 1999. Esses folhetos estão a merecer um estudo mais detido. É pouco assinalar que eles adotam um formato mais próximo do universo do público receptor. Preocupações mercadológicas desse tipo estão muito distanciadas do poeta de Assaré. Pode-se dizer, de acordo com declarações de Patativa, que vários desses folhetos foram encomendados. Uma tentativa de classificação mostra um espectro que vai da enumeração exaustiva sobre os perigos do comunismo, escrito no período após a Constituinte de 1946, por sugestão do Padre David Moreira, quando o Partidão estava na legalidade, ao jornalístico da morte do Padre Henrique, em Recife, no período autoritário pós-64. Intrigante que quase todos esses folhetos foram incorporados aos livros, sendo essa informação omitida em todas as edições, o que tornou necessárias a consulta a obras de referência, a pesquisa em várias coleções e a participação do autor para um levantamento desses títulos específicos. Patativa impresso guarda as marcas da oralidade. São outros os ritmos da voz anasalada, da sílaba que se dilata ou se contrai, das síncopes e elipses dos poemas que não escondem sua origem. Patativa oral traz as marcas do impresso, do leitor voraz que ele foi, de Camões aos poetas românticos, dos livros de referência, como o de Carlos Magno, à preocupação formal expressa

pelo apego e pelas recorrentes citações ao Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimaraens Passos. Patativa em disco – e são vários, ainda em vinil, a partir da Triste Partida, gravada por Luiz Gonzaga, em 1964 – resgata a voz, mas nos priva do gesto, da emoção de todo um corpo que se faz poema, do homem pequeno que cresce à medida que enuncia e assume o canto ancestral com as marcas de sua autoria. Um Patativa que chegou à tecnologia do laser com dois de seus discos lançados. Ainda no processo do oral que se baseia no escrito, que, por sua vez, já foi oral, entram as músicas. Mas aí são outros parâmetros que informam o que o rei do baião, Fagner, Daúde e uma infinidade de intérpretes, de Pena Branca e Xavantinho ao forró Mastruz com Leite, fizeram ao dar uma outra dimensão ao poema com o suporte de uma melodia que, no caso de Triste Partida e Vaca Estrela e Boi Fubá, é do próprio Patativa. É onde entra a dimensão da Indústria Cultural e suas implicações de mercado, uma lógica que tanto incomoda ao poeta de Assaré. No oral da voz que se amplifica, na memória que ficou do violeiro, no escrito que foi composto de cor e ganhou, em alguns casos, o rascunho de uma caderneta de campo, nesses incessantes trânsitos que passam pela intervenção da mídia, Patativa é o porta-voz de uma ancestralidade que permanece e se atualiza e o construtor de um mundo por meio das palavras.

Texto apresentado no Seminário Patativa, 88, promovido pela URCA – Universidade Regional do Cariri, Crato (CE), março de 1997.

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Patativa e Juvenal Galeno: o encontro da vida inteira

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cena tem direito aos esfumaçados dos efeitos cinematográficos: “Me levaram logo à presença do poeta Juvenal Galeno, já bem velhinho, com a barba grande, bem alvinha a barba dele. Também com as vestes brancas e a rede branca. Tudo era alvo, parecia uma visão. Eu passei foi tempo olhando assim pra ele.” Um daqueles encontros provocados pelo acaso e que nunca se repetiram e cuja rememoração emociona, sessenta e sete anos depois. Juvenal Galeno e Patativa do Assaré, no velho casarão da rua General Sampaio, constituindo um emblema de atitudes diante da poesia. Um encontro para ficar na história. Podemos voltar no tempo e encontrar um contexto marcado pelo romantismo. A valorização das culturas populares se deve, em grande parte, aos Irmãos Grimm e sua incansável recolha do que constituiria a tradição. Claro que recolher é selecionar, o que já implica num filtro e no afloramento de preconceitos, ranços, viéses. Além da seleção, a transcrição é outro passo que pode ser dado no sentido da depuração. No caso brasileiro, temos a admissão, mesmo de José de Alencar, de que teria feito algumas alterações no Rabicho da Geralda (narrativa oral que circulava pelo sertão central do Ceará desde final do século XVIII). O ideal a ser atingido era o da norma culta, mas as marcas populares passaram a contar na vigência do romantismo. Juvenal Galeno, na segunda metade do século XIX, já fazia uma poesia que partia da recolha da tradição oral e assumia essas matrizes como um elemento de valorização do exercício poético.

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Estavam lançadas as bases do conceito de nação que passa a ter na língua um de seus pontos de sustentação. Galeno devolveu ao povo aquilo que o povo cantava e contava, com a perda do anonimato que caracterizava essa produção e com a chancela autoral, como era comum no seu tempo. Havia a certeza de uma recepção que se sustenta no fato de a estrutura e os fragmentos, ou mesmo do ritmo e da melodia, serem de domínio público. Reduzia-se o estranhamento a grau zero. Os poemas, retirados da moldura em que foram sendo tecidos, eram devolvidos de acordo com os cânones vigentes e estilizados para o consumo de todos, principalmente da elite letrada. Importante o que Galeno fez, o que se inscreveu no esforço comum de folcloristas, como Sílvio Romero ou Rodrigues de Carvalho, de fixação dos cancioneiros populares. Atitude, além de romântica, impregnada de positivismo. No que se refere a Patativa, a atitude é outra. O romantismo aflora na definição tardia do que seria a nação dos excluídos e deixa marcas quando ele define suas leituras: Casimiro de Abreu, Raimundo Correia, Olavo Bilac, Catulo da Paixão Cearense e Castro Alves, o maior poeta brasileiro. Relação que inclui o clássico Luiz de Camões e o historiador Capistrano de Abreu. Um romantismo tardio que afeta até mesmo os que tiveram uma escolaridade formal e passam por cima ou ao largo das rupturas e das vanguardas transgressivas. Um romantismo que teria ficado, na vertente do lirismo de Casimiro de Abreu ou na exaltação condoreira de Castro Alves, como a matriz do que seria poesia. É onde atua Patativa, voltado para a natureza, com tal nível de envolvimento que não é o de quem fala, mas o de quem se confunde com


o que é natural. Essa fusão (ou confusão) parece ser um dos traços característicos de uma dicção do poeta de Assaré. Ele anula o embate entre natureza e cultura, quando o que canta é natureza e cultura. Uma diferença básica entre ele e Galeno é que Patativa não reelabora o popular, ele cria, lança as bases de uma fala inaugural do mundo, repete o gesto adâmico de nomear, o que significa criação no sentido mais estrito e ao mesmo tempo mais amplo do termo. A voz de Patativa funda sua poética. O romantismo é seu armazém de topos, de situações e do ideal de uma estética. Mas Patativa reatualiza esse romantismo. Daí a acusação de anacronismo não poder ser levantada contra sua produção. Ele faz a ponte entre natureza, liberdade e utopia, que é onde entra seu lado profeta, como no dizer de Zumthor. Donde não ser difícil entender que o apego à tradição tenha feito com que Patativa passasse a ser cortejado pelos conservadores. É o poeta da raiz que ele passa a ser, da exacerbação do lirismo, dos sentimentos à flor da pele. Um poeta do eu e do outro que se reflete neste eu. A contrapartida é o cantor das injustiças sociais, da luta pela terra, pela igualdade de oportunidades sociais. O arrebatamento se filia ao do Navio Negreiro. Castro Alves passa a ser o grande paradigma da correção social, o modelo do que seria uma poesia participante, uma militância desassombrada, um épico social, se podemos dizer assim, ou um condoreiro sertanejo. Sem um maior aprofundamento, pode-se dizer que a poesia social de Patativa é tributária

de um socialismo cristão, e que seu modelo de denúncia teria sua matriz em Castro Alves. É de onde viria seu repertório. Isso faria com que sua voz pudesse ser compreendida pelo povo a quem se destina, que estaria familiarizado com esses códigos. Patativa, diante de Juvenal Galeno, é mais que uma lembrança que o tempo não diluiu, é a criação popular que prescinde da mediação das elites. Mediação que implica em proteção e também em interferência. Não se trata de rejeitar o papel de Galeno ou a recolha dos folcloristas da virada do século. Talvez seja até o momento de dar a Câmara Cascudo a importância que lhe foi negada por muitos estudiosos mais recentes. Mas hoje essas pesquisas são compreendidas à luz de outros referenciais. É quando emerge a figura de um Patativa tido como revolucionário e cortejado pelas esquerdas. É igualmente falso ver só este lado. Vale o esforço de lê-lo por inteiro e compreender o homem que foi capaz da ternura e do grito de guerra, da declaração de amor e do poema engajado. Um Patativa que funde as faces da mesma moeda, como Castro Alves. E que, ao invés de recorrer à produção popular para estilizá-la, faz o processo inverso. Um Patativa intérprete de seu povo, nosso povo. Patativa do Assaré como o poeta que rompe o novo milênio e passa a ser objeto de abordagens outras que não a dos folcloristas. Um homem de seu tempo, como Galeno foi do dele. E de quem guardaremos recordações menos esmaecidas e mais contundentes.

Texto publicado pelo caderno Sábado, do jornal O Povo, Fortaleza, 5 de março de 1997.

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Patativa e a reinvenção das utopias

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a ilha de Thomas Morus, a palavra utopia se afirmou como a ideia que indica mais que um sonho, uma construção coletiva que desafia a mesmice de um presente insatisfatório para se projetar num ideal de futuro que se quer. Utopia como nenhum lugar ou como o lugar que satisfaz todas as necessidades de fantasia, escapismo e projeção de uma comunidade. Utopia como a suspensão da história em um contexto histórico. Utopia como o texto solidário que pode ganhar um porta-voz ou intérprete, meio profeta, meio poeta.

Até onde vai o mito? Onde termina a ideologia? Onde os dois conceitos se imbricam, em que ponto? Num mundo marcado pela crise dos valores, pela revisão dos paradigmas e pela incerteza, é possível que não haja mais lugar para as utopias. Tudo se dilui sob o impacto de uma velocidade que é a da informática e se banaliza no contexto das mídias. A utopia igualitária do socialismo real pode ter sido a última manifestação nestes moldes do milênio. E, enquanto outra utopia não é construída, podemos ver as marcas que elas deixaram na produção artística e literária, por exemplo, na poética de Patativa do Assaré.

Voz plural

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arcante na produção de Patativa do Assaré é o seu compromisso com o outro ou com todos, melhor dizendo. Mesmo quando o poema está centrado na primeira pessoa, mesmo quando a dor ou o amor parece individual, ele se projeta e assume uma dicção que passa a ser da Humanidade como um todo. Isso faz com que uma toada que possa parecer singela ou despretensiosa, em sua formulação original, ganhe a força e a contundência 130

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de um épico. Essa grandeza de abrangência se embate com a simplicidade e a discrição de um enunciador que brinca de se anular, valorizando o poema, impregnado de um tom iniciático. Essa poderia ser a primeira utopia: a de amplificar uma voz fora das instâncias de legitimação da fala. Patativa se situa na periferia do poder e à margem das mídias. O que pode ser considerado como uma utopia também se inscreve como um paradoxo. Sua fala se afirma nessa polifonia ou destoa desse coro, como a de um oráculo que soasse estranho e por isso mesmo torto.


Quem é esse poeta que é um e parece muitos, como se o seu canto fosse uma resultante de muitos sonhos que se tecem ou se acumulam (se sedimentam)? Parece um canto vário para ser de um só autor e, no entanto, é formulado por alguém que é capaz de sentir todos os sentimentos do mundo, com uma intensidade tal que se transfigura em palavras, que, mais que palavras, são uma utopia de uma Humanidade solidária, ao pé do fogo, agregando-se em tempos de individualismo exacerbado e extrema competitividade. Ir na contramão dessas tendências não seria lançar as bases de uma utopia que pode parecer nostálgica, de um projeto comum? Alguma ideia que reatualizasse o cristianismo primitivo, com uma pitada romântica de Fourier?

A quem se dirige esse apócrifo evangelho sertanejo? Não seriam inócuas as tentativas de corrigir o social e interferir numa História que para muitos já chegou ao fim? Como essa voz, que faz questão de ser regional, anunciada de um espaço determinado, consegue superar tantas barreiras e ser tão universal (globalizada?) nestes tempos cínicos de mascaramento da exclusão e de constituição do grande mercado? Como consegue se impor no tempo? Porque é ao mesmo tempo ancestral e profética. Porque ela se projeta a partir de tudo o que foi dito e vivido antes. Porque sua atualidade vem desse anacronismo que faz com que ela seja ou esteja permanentemente atualizada, como uma voz ritual que se ampara nos mitos e supera as ideologias.

O paraíso possível

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o mesmo tempo que luta para edificar a utopia de um mundo mais justo e igualitário, que não é o mesmo dos slogans publicitários ou da retórica do poder, Patativa reforça seu sonho de lugar, seu paraíso pessoal, que é a Serra de Santana, a dezoito quilômetros de Assaré, onde nasceu, que para ele se reveste de significação toda especial. A Serra é seu lugar idílico, onde todos os problemas estão em suspensão. Ao olhar distanciado, fica difícil antever as belezas ou as maravilhas que aquele lugar esconderia. Como se, outra vez, apenas os iniciados tivessem o privilégio de ter acesso e de desfrutar dessas benesses. Como Patativa não é um lírico (no sentido da prevalência do eu), a Serra de Santana

precisa ser compreendida como um sonho de lugar ou uma construção utópica que acolhesse a todos, num contexto em que cada um tivesse direito a seu paraíso e assim por diante. Quando ele fala da Serra, que é áspera e sertaneja, seca e pedregosa, está falando da terra que poderia ser partilhada. É lá que ele e sua família de pequenos proprietários rurais vivem o sonho concreto do chão que se deixa trabalhar, do mistério da semente e fecundação, dos ritos propiciatórios da colheita. A poesia que ele, Geraldo, Maurício, Manoel Calixto e todos os torneios que eles improvisam na Serra não seria uma forma de retribuir a generosidade do solo? Não poderia a manifestação poética ser vista como uma forma de rito agrário, um regozijo pelo que eles têm e que poderia ser um direito de todos?

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Esse paraíso a que Patativa se refere não poderia ser compreendido como a comunhão mais profunda entre o homem e a terra? Espécie de palavra-chave (paraíso) que se associa aos quatro rios, ao jardim no Éden plantado e à queda, que aqui poderia se aproximar da ideia de reconquista, salvação pelo trabalho, expurgado da conotação de castigo e re-significado como modelagem do mundo à imagem e semelhança do equilíbrio e da justiça. Diante da importância e contundência de sua obra e de sua atitude em relação à vida e ao mundo, custa crer que o paraíso a que se

refira Patativa seja apenas uma rede, uma cadeira na calçada alta de sua casa na Serra ou ao convívio com a família. Claro que tudo isso conta, mas seria reduzir o alcance de suas proposições compreender esse paraíso como algo apenas pessoal. Há muito de razões mitopoéticas nessa formulação. Seu sonho de lugar é a utopia de um lugar sem contrastes, de que a Serra seria uma espécie de microcosmos, a Serra/paraíso, no sentido de possibilidade. Um paraíso poeirento e abafado, feito de suor e improviso, de torneios poéticos e de concretização do sonho de um lugar.

O mundo às avessas

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utopia da abundância se justifica no Nordeste, como se justificava no medievo, pela ameaça de fome. Quem vivenciou um trabalho no campo até os setenta anos, sujeito a todas as adversidades climáticas e à falta de seriedade das políticas públicas neste sentido, sabe, como Patativa, do que fala. Em termos de poéticas populares, talvez a mais significativa expressão dessa abundância seja o poema A Terra de São Saruê, do paraibano Manoel Camilo dos Santos. Aí, como no relato bíblico e nos relatos que se sucederam, na perspectiva do mundo ao revés, a terra jorra leite e mel, as montanhas são de manteiga e todos os índices de abundância se presentificam. A abundância em Patativa é contida e não hiperbólica, mas a perspectiva de que todos tenham acesso (direito) à dignidade e à substância é um tema recorrente em sua produção. Só que, ao invés de trabalhar com um símbolo que 132

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se inverte, ele constrói na direção de uma denúncia da estrutura perversa que sustenta um mundo desigual, esse sim, às avessas em relação ao ideal de justiça e ao conceito de cidadania. É o concreto que precisa ser transformado, não o alegórico. A abundância para Patativa não é o exagero, mas aquilo que se necessita a cada dia. Por contiguidade ao paraíso e com a mesma dicção solidária de sempre, essa abundância tem o limite da dignidade e não do excesso, em sua poética muito mais apolínea que dionisíaca. A transgressão em Patativa não é o carnaval, mas o cotidiano. É o dia-a-dia difícil de ser vivido, aventura que se renova com o prazer de folhear o livro das horas e de fincar na terra as colunas de sustentação do homem, o que reforça a atualidade e permanência de uma luta pela terra e pela questão agrária. A abundância, nesse caso, poderia ser também a regularidade. De nada adiantaria a festa seguida de escassez. Para isso, Patativa tem improvisados


silos em sua casa da Serra de Santana. A utopia de abundância, do país da Cocanha da mitologia medieval, pode ser compreendida, em nosso caso, como a utopia da constância, não no sentido de interferir na órbita que não é a humana, do equilíbrio de todas as coisas, mas de fazer o que nos compete nessa questão. Não de querer ser o herói divinizado, mas cada vez mais humanos com a consciência do papel de cada um nesse processo. Consciência que rompe com a postura vitimal e inaugura uma nova atitude que é a da construção de um novo tempo e de um novo mundo, onde a abundância rabelasiana do festim é substituída por uma quase ascese de

frugalidade, onde a festa é a conquista de mais um dia e de todos os dias possíveis, onde a vida segue seu ritmo natural e onde a ecologia deixa de ser uma bandeira trêmula ou um modismo para significar a verdadeira comunhão do homem com a terra. É isso o que Patativa tem cantado, avant la lettre. Quando não se falava de ecologia, ele, pássaro, se integrava à terra, fazia do lavrar o chão o tempo e o espaço privilegiado de sua criação, tinha consciência de que modelados do barro ao pó voltaríamos, não sem antes cumprirmos um destino que nos cabia traçar, do direito ao pão de cada dia, ganho com o suor do rosto, as mãos calejadas e o rigor do sol.

O milênio e a liberdade

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utopia milenarista de um tempo de justiça, paz, suspensão da dor povoou o imaginário de muitos povos, com gradações e variações que se adequavam a cada cultura, a cada contexto. O milênio como que incorpora a ideia do paraíso e com ela a de abundância e constituem, de certo modo, uma única utopia ou várias facetas ou nuances de um ideal igualitário. Essa trégua de conflitos por mil anos configura uma suspensão do tempo, como se outra vez, por meio de um mistério iniciático se penetrasse em uma dimensão que se desdobra para dar conta do que poderia ter sido, de como as relações sociais poderiam ter se organizado, de maneira menos agonística ou predatória. É neste sentido de justiça que a poética de Patativa se ressalta, ele como o arauto de um novo tempo, que é nirvana e comunismo, utopia e sonho.

O milênio é o sonho de uma sociedade sem classes e sem mazelas, é o retorno da condição idílica, mito tão arraigado ao imaginário que dele se apropriou o nazismo no delírio de um Terceiro Reich, que também duraria mil anos. Um milênio que em Patativa não significa o fim das tensões, mas a superação de um quadro de desigualdades mais contundentes, com soluções negociadas que refletem outra composição de forças, com a entrada em cena de novos atores sociais. O milênio de Patativa seria a refuncionalização de um social em que prevalecem privilégios. É nessa perspectiva que ele poetiza o mundo, enfatizando uma nova ética, a partir de uma estética caleidoscópica que recorre a fragmentos da tradição oral, a ecos do romantismo com sua valorização da natureza e da liberdade e um componente telúrico, em que as referências da terra impregnam uma poesia que é revolução e

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paz, bucólica e condoreira, feita de música e de imagens, de gritos e de silêncios. A visão milenarista de Patativa é contaminada pelo fato de que o homem para ele é profundamente histórico e, ao optar por uma dicção comprometida com o aqui e o agora, ele

rompe com a escatologia do final dos tempos. Para ele, o que importa é a atitude inaugural, é a prevalência da democracia, compreendida em sua acepção mais profunda e de liberdade, que vai muito além do slogan para vender moda jovem.

A invenção da utopia

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que se pode concluir das utopias em Patativa (ou de Patativa) é que ele não renega o sonho, mas trabalha numa interferência do real que necessita de uma transformação, em todos os níveis. Sua utopia não é escapista, não abre as porta para uma dimensão que não seja a humana, vivenciada em toda sua dramaticidade. O que ele pleiteia é a importância da participação, é a ruptura com o imobilismo e a instauração de uma nova ordem. Isso fica bem claro pela leitura de seus poemas.

Nesse sentido, solidariedade, paraíso, abundância e justiça constituiriam as ferramentas básicas de construção desse novo quadro ou as premissas de um novo contrato social. É possível encontrar em seus poemas eco de um medievo que está sempre próximo do Nordeste (e não apenas no Armorial), de um tardo-romantismo e de um socialismo cristão que encontra na ilha mágica de Thomas Morus a contundência da denúncia, a lógica da argumentação e o sentido de utopia enquanto sonho que se constrói a partir de muitas mãos, de muitas vozes e de múltiplos sentidos.

Texto publicado pelo caderno Sábado, do jornal O Povo, Fortaleza, 5 de março de 1998.

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O poder de Patativa

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s relações entre Patativa do Assaré e a política passam pela compreensão da síntese que ele fez entre o trabalho manual e o intelectual, superando a velha dicotomia que tanto inquietou filósofos e cientistas sociais. Interessante como ele se refere ao campo como o local privilegiado para seu fazer poético. Recolhido ao seu roçado, longe da conversa – que nos momentos de trabalho ele evitava –, Patativa se concentrava na preparação do solo para o cultivo e na transformação em versos das imagens que se formavam em sua mente e eram a matéria-prima de uma poética marcadamente social. Compreendê-lo como um intelectual orgânico, na acepção gramsciana, é contestar a própria formulação do teórico italiano para quem esses quadros nunca sairiam do meio camponês e sim do operariado. Não deixa de ser forçado tentar enquadrar o poeta de Assaré em uma camisa de força teórica, principalmente quando transplantada e formulada em função de outros contextos. A verdade é que Patativa precisa e deve ser considerado um intelectual, afastadas as polêmicas e qualquer conotação depreciativa que a expressão possa ter guardada. Um intelectual no sentido do que formula seus poemas e de sua interferência no mundo, com a força de seu talento e a legitimação de sua sabedoria. Posição que implica em assumir uma dignidade e uma altivez de quem se recusou a ser mais um dos integrantes dos currais coronelísticos e a trabalhar, pacientemente, na perspectiva de um questionamento por parte de seus leitores, do senso comum e de verdades que pareciam cristalizadas. Com o operário em construção, do poema de Vinícius de Morais, Patativa é um camponês em germinação. O que ele escreve tem a força da se-

mente que irrompe de uma terra hostil e desafia a previsibilidade de um meio desfavorável. Essa inserção ou atitude é profundamente política porque transformadora e plena de tensão. Essa dignidade e altivez podem ser traduzidas como a consciência de seu papel social, o que passamos a chamar de cidadania, palavra que se tem desgastado por ser usada à saciedade, das campanhas publicitárias à retórica governamental. Isso o diferencia de muitos poetas populares, comprometidos com o mercado editorial, forçados a escrever versos de encomenda, muitas vezes como forma de sobrevivência, outras como pura subserviência. Patativa guardou uma distância regulamentar dessa engrenagem. É onde ele reitera que não fez comércio de sua arte. O livro veio para reforçar sua importância – pela possibilidade do registro do que estaria condenado ao esquecimento, por conta da transmissão oral. Vale a pena ressaltar que, até os setenta anos, ele fez da comunhão com a terra sua principal atividade e seu ganha pão. Ligado ao romantismo como visão de mundo e influências de leitura, traz daí o ímpeto de inquietação e de tranquila rebeldia. Patativa assumiu – talvez por pura intuição ou por conta desse compromisso com sua terra e sua gente – o conceito de Weltschmerz, dores do mundo. Ele é capaz de sentir como poucos os problemas de todos e de cada um. Como se ele, ao mesmo tempo, fosse capaz de ter todas essas experiências e ser o intérprete eloquente de uma poética que não cai no denuncismo panfletário, que evita o clichê e supera a pieguice de quem pensa a poesia apenas como emoção. Essa consciência da cidadania e essa aceitação das dores do mundo dão uma dimensão de sua ética pessoal e de sua empreitada de criar e de tentar modificar o mundo a partir das palavras. Forma de munição muito especial porque é

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embalada pela musicalidade da rima e do ritmo e reforçada por sua performance, pela voz trêmula, pelo corpo aparentemente contido, mas prenhe de significação na expressividade dos gestos. Militante em favor de uma justiça social, que o aproximaria de um cristianismo comunitário e primitivo, que se perdeu no tempo. Tal ideário o aproximaria desse cristianismo. Sua poesia é religiosa, no sentido etimológico de re-ligação do homem com a terra e com o cosmos, embora ele não seja adepto de uma doutrina ou fiel de um culto, no sentido estrito dessa ritualização e codificação do sagrado. O que o levou, no entanto, a aceitar a encomenda de um folheto condenando o comunismo, feita por um vigário de uma cidade do Cariri, utilizado pelas forças conservadoras nas eleições de 1986, quando o poeta e os partidos comunistas apoiaram Tasso Jereissati ao governo do Estado. Antes, retomando uma trajetória cronológica, ele foi convidado por Arraes, prefeito de Recife (1959/1962), e participou de um São João popular, no sítio Trindade, sob a égide do MCP (Movimento de Cultura Popular), que não conseguia compreender o fluxo da produção do povo sem o exercício de uma tutela. O que lhe tem valido severas críticas pelo equívoco iluminista de pensar que as camadas populares não são capazes de fazer seu próprio caminho. Patativa do Assaré é o melhor exemplo de que esse elitismo à esquerda não se sustenta (nunca se sustentou), o que não compromete, no entanto, a importância dessa efervescência no período anterior ao golpe de 1964. Instalado o período autoritário, a liberdade de Patativa foi ameaçada por uma ordem de prisão que teve, possivelmente, o propósito de fazer calar uma voz discordante. Afinal de contas, ele fazia referência a Prestes, embora tenha mudado o verso quando o poema ganhou sua forma impressa. Tinha afinidades com as Ligas Camponesas e foi preso quando ironizou um prefeito de sua terra. Preso por cantar, enquanto os pássaros são aprisionados para cantar, como ele disse com propriedade.

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A coerência de sua trajetória o levou a ser uma referência para um grupo de jovens do Crato, nos anos 70, o que se refletiu na produção do movimento Nação Cariri, foco de irradiação cultural da cena cearense no final do período autoritário e início do processo de redemocratização. Patativa foi também colaborador do jornal Movimento, da imprensa alternativa e constestatória ao golpe, quando passou a ter seus poemas recusados pela Tribuna do Ceará. Envolveu-se na luta pela Anistia e pelas Diretas-Já, em cujo palanque fortalezense sua presença franzina e sua fala contundente foram pontos marcantes dessas campanhas de mobilização nacional pelo fim do regime militar. Sua visão do mundo, do ponto de vista político, passava ao largo do poder do homem sobre a natureza, com quem estabelecia uma relação de amor e cumplicidade, no trabalho diário em seu sítio, na Serra de Santana, município de Assaré. Seu difuso socialismo (utópico?) apontava para uma justiça social, para uma correção romântica das dores do mundo e para as relações de poder baseadas no consenso e nunca na força. O que se torna evidente pelas leituras de seus poemas e que se consolida quando ele fala como um sábio, espécie de sacerdote leigo de antigas sociedades, ou como o intelectual que difunde valores e transmite conhecimento. Apropriado, ao mesmo tempo, pelos conservadores, que viam nele a manutenção de tradição, e, do outro lado do espectro social, pelos que encontravam em sua fala poética os ecos de uma sociedade que desejavam construir sobre os escombros da velha ordem, Patativa foi capaz de fazer esse trânsito e continuar como o poeta, o sábio e o oráculo. Ele fez questão de se manter em seu lugar privilegiado, de onde interferia na realidade e conservava seus hábitos roceiros, preservando sua privacidade e não se deixando deslumbrar pela sedução da mídia. Seu socialismo estaria mais próximo de um reformismo do que de uma revolução, e pode ter sido este o gancho de sua adesão a Tasso Jereissati, em 1986. Sua subida ao palanque foi espontânea. Ele estava (e ainda está) convenci-


do do acerto de sua opção, a mesma dos partidos comunistas que rejeitavam a candidatura do Padre Haroldo (PT). A decisão foi uma resposta ao uso de seu nome em vão: disseram que Patativa teria dito que Tasso Jereissati era comunista. Num contexto em que a palavra tem um valor inquestionável e constitui a força de sua expressão, o poeta chegou às raias da indignação e decidiu subir nos palanques do então candidato do PMDB e das mudanças. Essa adesão significava um grande reforço dessa candidatura no sentido de abrir brechas e ampliar espaços junto às camadas populares e a alguns focos das camadas médias para quem o poeta de Assaré era uma referência de independência, liberdade e coerência. A afinidade não é tão díspar quanto parece, afinal de contas, a palavra-chave era mudança, e essas transformações aconteceriam de acordo com o processo democrático, sem rupturas institucionais, no melhor modelo social-democrata, onde, pouco tempo depois, o grupo instalado no poder desembarcaria com grande alarde. Passado o ânimo da cruzada anti-coronelista, os comunistas romperam com o projeto dos jovens empresários, mas Patativa continuou como fiel aliado, voltando aos palanques nas

sucessivas eleições estaduais, espontaneamente e por convicção, como faz questão de salientar. O que não o impediu de se entusiasmar com a candidatura de Lula nas eleições presidenciais de 1989, 1994 e 1998 e de considerá-lo um paradigma de homem político sério. Não se pode falar em cooptação, na medida que houve uma compatibilização de afinidade, uma reciprocidade de afetos e, no fundo, um messianismo impreciso, que não se assume como tal, revestido de uma aura de modernidade e de racionalidade que esse grupo faz questão de reforçar. Razão com a qual Patativa tenta acertar as contas, apesar de traído muitas vezes pela voz embargada, pelos olhos marejados e pela emoção que representa sua figura, aparentemente frágil, enunciando verdade ancestrais. O canto de Patativa é elucidativo de suas posições. É clássico, em suas raízes românticas, é apolíneo na limpidez de sua formulação e envolvente na medida que a criação ecoa o mítico, que o homem aflora no poético, que o político não abre mão do estatuto estético. Um canto que prossegue refletindo nossas contradições e anseios, tangenciando o exercício do poder, mas político enquanto essencial à coesão do grupo e exercício de invenção e cidadania.

Texto publicado pela revista Inside Brasil, Fortaleza, julho de 1998.

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Patativa do Assaré: natureza e cultura

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conceituação clássica da antropologia estabelece uma dicotomia entre natureza e cultura, o primado do que está posto e a intervenção humana, o campo do acaso e da ordem, o espaço da liberdade e da invenção. Essa dualidade de níveis pressupõe um corte metodológico que não necessariamente se perfaz nas práticas cotidianas, em que a oposição perde parte de sua contundência, de rigidez de limites para cair no terreno das fronteiras que se dilatam, dos campos que se interpenetram. Em Antônio Gonçalves da Silva, natureza não é apenas um jardim ou a ordem do que está ao nosso redor e onde nos inserimos. Nesse sentido, seu discurso é ecológico avant la lettre, ao propor a fusão do homem com a natureza, a integração de duas ordens que poderiam parecer complementares e que, em sua poética, se soldam na constituição de uma liga. É assim que Patativa se posiciona no mundo. Seu próprio epíteto de pássaro, que denotaria, em um sentido estrito, sua condição de virtuose de uma dicção poética que se perfaz na oralidade, pode ser compreendido como uma metáfora dessa integração sem limites. Patativa é um pássaro como poderia ser uma árvore – que, aliás, ele é – ou um fruto maduro ou um rio que corre em seu recorte idílico de um paraíso, em permanente reinvenção. Uma das chaves para a compreensão do homem ou para a decifração do mito poderia estar na sinalização dessa síntese. Patativa tem consciência de que essa divisão é arbitrária, de que homem e natureza se integram, de que natureza e cultura são apenas angulações de uma mesma dimensão do real.

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Sua fuga para a cidade foi motivada por contingências familiares e uma prova de sua inadequação ou mal-estar ao tipo de relações sociais que se estabelecem, mesmo no espaço de uma pequena e morna Assaré, é sua necessidade de uma fuga semanal para sua Serra de Santana, onde se revigora para enfrentar o embate das visitas diárias em uma rotina onde não cabe a privacidade, em que sua casa, no número 27 da rua coronel Pedro Onofre, Praça da Matriz, há muito passou a ser a principal referência no roteiro turístico e cultural da cidade. Em Patativa, a natureza não é apenas o motivo de decantados poemas. Não há marcas de nostalgia de um paraíso perdido, já que o seu, na Serra de Santana, é permanentemente reatualizado nessas visitas rituais, como se cumprisse o roteiro de uma peregrinação que se explicaria como sua própria necessidade de religação com o sagrado. Onde, outra vez, o sagrado não é algo que se coloca em uma órbita, distanciada e inacessível, mas como manifestação de uma consciência de que natureza e cultura, sagrado e profano, não se separam para quem tem uma visão cosmogônica, em que prevalece o todo, que não se estilhaça ou se dilacera, diante da necessidade que Patativa não tem de estabelecer rótulos, escaninhos ou rubricas. Essa integração do homem com a natureza e, por conseguinte, da natureza com a cultura, pode ser também compreendida como a vivência aprofundada e amadurecida de um tardo romantismo que idealizava o natural como um valor intangível. Sua natureza não é idílica, no sentido da lamentação da queda. Ela está aí, presentificada e pode ser sentida como algo em que emissor e emissão se imbricam. Patativa está longe de


ser um poeta diletante, para quem falar em natureza seria meramente ornamental ou um desesperado recurso de busca de uma cor local. Ele extrapola essa necessidade de criação ou reforço de estereótipos ou do lançamento de uma nova mitologia, em que a natureza seria sacralizada. Antes, em Patativa há um processo simultâneo (dialético?) de dessacralização da natureza e de mergulho na condição humana, compreendida aqui em toda sua fragilidade e vigor, complexidade e finitude. Uma palavra para tentar definir a atitude de Patativa diante do mundo seria compaixão. Sua natureza é telúrica, ele não se exclui dela, pelo contrário, se ligou à terra de modo mais visceral até os setenta anos, quando tirava do chão o sustento, como no preceito bíblico. Sua ideia de paraíso não pressupõe a queda e não rejeita todas as adversidades que ele encontrou numa vida inteira de lavrar, semear e colher. Patativa fala da Serra de Santana como da mata cerrada de sua infância, que teve de ser sacrificada para o vicejar das culturas de milho, feijão e mandioca. Mas ele sabe o que significa uma seca, não porque tenha visto na mídia a espetacularização da miséria, mas porque vivenciou o problema. Ele sabe o que significam as pragas, como o bicudo que arrasou o algodão, que já foi uma das maiores riquezas do Ceará. Patativa sabe também que a questão não se resume à falta de água. Nesse sentido, ele, de certo modo, é um privilegiado porque é um pequeno proprietário de terras e não precisou se sujeitar a regimes feudais de relação com os donos para tirar da terra o seu sustento. Patativa exemplifica que uma das questões básicas do Nordeste – melhor dizer do País – é a questão fundiária. A terra partilhada entre ele, os irmãos e os filhos, os 120 hectares na Serra de Santana e em seu sopé, é a prova inconteste de que existe uma dignidade sertaneja que vem dessa consciência e dessa condição de propriedade e posse. Neste contexto, o eixo da discussão se desloca da problemática da água, que não se esvazia de sua significação, mas que

deixa de ser o centro para ser apenas mais um elemento complicador de um quadro hostil que ele cantou, por exemplo, em Triste Partida. Ao falar de seu processo de criação, Patativa insiste em que prescindia do papel. Não estamos diante da imagem que se fez do poeta como o de alguém que doma as palavras. O próprio conceito de poeta de folhetos, em contraposição ao violeiro, dá ênfase ao espaço da folha de papel, território privilegiado em que o verso ganha forma, numa perspectiva de prevalência da letra em detrimento da voz, os dois vetores da proposição de Paul Zumthor. Patativa desloca a questão do que seria pura voz, para a importância da acumulação, da justaposição e da experimentação que antecederiam à expressão, à fala como performance, ao poema que se perfaz na medida que é enunciado. Patativa nos sugere esse estado embrionário, espécie de limbo onde o poema é gestado. É a memória que prevalece, memória que deixa de ser pura sedimentação, para ser o processo em que as conexões são feitas, a sensibilidade aflora, a voz poética se articula e o poema brota. Patativa fala de sua criação durante as tarefas no campo. Diz que, enquanto trabalhava a terra, o poema ganhava corpo, que não gostava de ser interrompido, que pedia para que ninguém interferisse em sua concentração, nessa espécie de transe racional, de mergulho no mais fundo de nossa condição humana, de meditação às avessas, onde o absoluto é buscado, não como esvaziamento, mas como plenitude, que se perfaz num jogo mais amplo em que todo o corpo se envolve. Cultura que se aproxima, não apenas etimologicamente, de cultivo, mas de um processo que acontece, ao mesmo tempo, no chão ressequido, sagrado, como se costuma dizer, do Nordeste e na mente de um Patativa agricultor e poeta, não necessariamente nessa ordem, de maneira que não se possa falar em hierarquia ou prevalência das atividades. Um Patativa que ara e articula, que se perde,

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sol a pino, chapéu de palha, mãos calejadas, como se fosse um espantalho a atemorizar outros pássaros. Um Patativa que se esquecia da hora do almoço para não se esquecer de um verso que, depois, ganharia o suporte da folha do papel. Essa integração levada às últimas consequências poderia se associar a outra metáfora bíblica de que teríamos sido modelados do barro, e é como se Patativa fosse esculpido no barro cru e se projetasse do solo ressequido, como uma alegoria do monumento que ele é ou como um marco de um saber poético. Imagem que incorpora tudo o que está a seu redor, o poeta e seu ethos, todos nós e o cosmos. A poesia não apenas como uma expressão, mas como uma visão de mundo. A poesia como profecia, como disse Zumthor, mas também como genealogia, apontando, ao mesmo tempo, para a recuperação do passado e para a construção do futuro. O que em Patativa podia ser, também, o manejar de uma enxada ou de uma foice, a sinuosidade das linhas no chão, a simetria das covas, o gesto de espalhar as sementes. Como se tudo isso fosse um paralelismo ou uma extensão do quadro que ele visualizava, das palavras que se encadeavam e, principalmente, da emoção que perdura, apolínea, sintonizada com o repertório de seus fruidores, onde o locus da recepção também pode ser o trabalho e onde a performance ganha a dimensão de um rito. Natureza e cultura que se imbricam porque não se pode delimitar o que seria natureza e o que seria cultura, como uma figura saída do grotesco. Essa seria a subversão de Patativa, que colocaria nossa necessidade de um rigor conceitual de ponta-cabeça ou que nos informaria da pouca importância de uma discussão que se esvaziaria de significação, na medida que se desse a partir de seu exercício poético. Patativa escreve sobre o que vive, daí mais uma vez essa solda entre natureza e cultura. Essa dicotomia é algo que não deve constar de suas preocupações, porque seu filosofar vai na direção da discussão de uma práxis. Patativa nos propõe uma poesia de construção, lança as bases de questões em que emerge

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uma ética pessoal, que passa por uma estética e, por isso, ganha uma dimensão mais ampla, de uma fala que é poética e é histórica. Apesar de toda a força de uma dicção inaugural do mundo e da ancestralidade de que se reveste, é a fala de um homem político, que diz sobre outros homens, em determinadas condições econômicas e sociais, fala que é enunciada de um lugar específico, apesar de sua universalidade, em que subjaz uma regionalidade que, longe de limitar, reforça esse cosmopolitismo sem fronteiras, a partir de todo um substrato de Humanidade. A poesia de Patativa ecoa um tardo-romantismo, e ainda que sua dicção possa ter as marcas de um Gonçalves Dias, é no condoreirismo de Castro Alves que ele vai buscar a justificativa de uma interferência social que pretende alcançar e pode ser encontrada na matriz camoniana, numa tentativa apressada de mapear suas influências, que, paradoxalmente, também apontam na direção da poesia matuta de Catulo da Paixão Cearense ou de Zé da Luz. Natureza e social se fundem porque para Patativa são uma mesma manifestação. E para que maior contundência política na denúncia de que a terra é naturá? Não existe qualquer paradoxo na convivência do que consideramos duas ordens e que ele sintetiza numa poesia que faz parte dele mesmo, como se ele fosse o seu mais completo e forte poema. Como se sua vida também pudesse ser compreendida como resultante de sua criação. A natureza em Patativa é espaço, tempo e matéria. A Serra de Santana é seu microcosmos. É lá que ele se sente inteiro. É lá que ele interage com as forças telúricas, que o atemorizam e o apaziguam, o que faz com que tenha consciência de sua pequenez e de sua grandeza. É tempo, com toda a renovação dos ciclos, com o processo de vida e morte, com as gradações e passagens, com a consciência de que a vida não é linear, como nas categorias medievais. É matéria na dança dos quatro elementos e na proporção com que terra, água, sol e fogo deixam de ser referências, apenas literárias, para fazer parte do cotidiano de quem antevê


na semente o fruto e a liberdade. Cultura para Patativa é uma interferência que passa pela relação íntima com a natureza, muito mais do que apenas uma “segunda natureza” criada pelo homem na práxis social, como propõe Gourevitch. Daí ser decorrente dessa vivência, muito mais do que de uma contemplação, uma necessidade de interferir no que está posto. Por mais polêmica que possa parecer a afirmativa, diria que a poesia de Patativa é uma poesia-cidadã. Mesmo sabendo de todos os riscos de esvaziamento deste conceito, que ganhou uma acepção clichê, no campo puramente retórico. Mais que militante ou engajada, a poética de Patativa aponta ou sinaliza para uma redefinição do social. Não no sentido de sua correção, mas na perspectiva de um novo pacto ou contrato, de uma composição de forças em que os privilégios cessem e em que um equilíbrio seja mantido, o mesmo equilíbrio que ele busca nas relações com a terra, no contato com a natureza, dicotomia que não faz sentido para ele. Quando Patativa tem uma relação amorosa com o que convencionamos chamar de natureza, compreendida como algo do qual fazemos questão de nos excluir, é porque ele tem consciência de que, como bichos, não temos outra alternativa, sob pena de um desequilíbrio que é queda, não no sentido edênico, mas na perspectiva do caos, da degradação e do esgotamento dos recursos de que o homem dispõe. Cultura para Patativa está longe de ser uma atitude diletante, de quem assume um outro estatuto pela condição de poeta ou para quem o papel de intelectual significa uma ruptura com a condição de trabalhador. É essa outra síntese que ele nos propõe, como o intelectual orgânico da conceituação gramsciana. Não que se possa cair, por outro lado, num determinismo que poderia colocar sob suspeição sua capacidade de fazer poesia, como se ele não tivesse consciência da importância de seu ofício. Esse exagero levaria o poeta à categoria de meio e não de criador. Como se sua poética não fosse refinada por milênios de inquietação

do homem e sintonizada com os grandes temas como a morte, o amor e o trabalho. Como se Patativa fosse mera intuição e toda a sua produção, mesmo com a possível intervenção do acaso, como em todas as obras de arte, não passasse por um processo de elaboração, seleção e depuração. Impossível negar a Patativa a consciência de seu papel de poeta ou sua condição de clássico. O seu processo criativo mereceria uma reflexão mais detida, pelas especificidades de que se reveste, com especial atenção para a memória. Sua prodigiosa capacidade de rememoração é apenas um fator a mais para evidenciar sua importância. E essa memória não teria qualquer valor em si se estivesse a serviço de informações banais ou se o que ele enunciasse não se impusesse como algo que não é datado, que não se confina à Serra de Santana, mas pode ser lido, ouvido e compreendido por todos os homens, de todos os tempos, de todos os lugares. Patativa trabalha a memória como a essência da cultura, diria o semioticista Iuri Lotman, e não apenas a condensa, como a produz. Para Patativa, como para Lotman, a oposição à cultura não seria a natureza, mas a não-cultura. Ou como diria Jerusa Pires Ferreira: Aqueles conjuntos cujos pressupostos de organização experimentam uma outra ordem, ou seja, a desordem. E o que poderia ser a não-cultura para Patativa? A ruptura dessa integração do homem com a natureza? O silêncio de uma voz que enuncia verdades e que se amplifica na dimensão oral em que se difunde? Ou o esquecimento, como se de repente os poemas deixassem de cumprir um papel social? A produção poética de Patativa se configuraria como um texto cultural, outra vez como diria Lotman, um programa condensado de toda a cultura. O poeta investido da função de porta-voz de nossas inquietações, de nossos anseios e mais que isso, como se pudéssemos encontrar em Patativa, além do telúrico, do lirismo e da contundência da crítica social, as bases em que

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se estrutura a sociedade brasileira, mais especificamente a nordestina, e tivéssemos nessa poética uma síntese ou um espelho da economia, das condições sociais, um inventário das crenças, dos saberes e do imaginário de um povo. Poesia que desse conta de uma visão ou possibilitasse uma leitura ampla, sensível e generosa, mas nem por isso menos rigorosa, da

natureza e da cultura que para o poeta são uma coisa só, fazendo parte de um conceito mais amplo de vida, de Patativa e de todos nós que tivemos o privilégio de tê-lo como intérprete de uma Humanidade que busca outras mediações e amplifica a importância de um canto persistente como uma litania e rico como um mundo que nunca chegamos a descobrir.

Texto apresentado na XVI Jornada de Estudos Linguísticos do Nordeste, Fortaleza, setembro de 1998, e publicado pela Revista do GELNE, ano 1, número 2, 1999, páginas 129/132.

Poesia e liberdade canto de trabalho

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aboio ecoa, plangente, como chamamento e elegia, pras bandas de Assaré, que significa atalho. A cadência dos apanhadores de côco do litoral nordestino se transformou em uma dança ritmada, ao som de palmas, em volta da roda, como quando canta dona Selma, de Olinda para o resto do mundo. Cantos que teriam vindo da Idade Média, com as canções de toile, o lamento das fiandeiras, para espantar o sono. O trabalho de muitos

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era cantar, como os trovadores e menestréis, com seus fagotes e rabecas (como a do Cego Oliveira). Canto que depois passou para o território da mineração, bodejo escravo que denunciava o banzo da terra mãe e os maus tratos a que eram submetidos. Cantos de engenho (canaviais do Cariri), cheiro forte da rapadura fumegante, nos tachos de metal. Engenho novo/ seu Francisco está para moer. Gente que traduzia o suor na forma de canto. Patativa, na Serra de Santana, fazendo de


seu ofício poético um canto de trabalho. Canto solitário e silencioso, ritmado pelo bater da enxada, no chão de barro, que se confundia com as paredes de taipa da casa em que ele nasceu. Barro que emendava com os tijolos do ladrilho e se fundia com aquele chão sagrado. Patativa compondo seus poemas, sem lápis e sem papel, guardando tudo na memória, como se armazenava feijão-fava e milho, nos silos de folha-de-flandres. A poesia como canto de trabalho, que o embalava por dentro e que só muito tempo depois podia brotar como a semente do chão. Movimentos sincronizados: o do barro que era escavado e o acumular das camadas de versos que sedimentavam um poema por inteiro. O prazer de compor e de cantar. Uma poesia comprometida com a terra, que é roça e semeadura, que é broto e floração. Patativa fazendo com que todos cantassem o que tinha sido tecido na surdina, com o poeta concentrado no que fazia, tendo consciência de que outra era sua lavoura. Poesia e trabalho, no campo, como variantes de um mesmo amor a sua gente. Poeta espantalho, ao sol do meio dia, atraindo os pássaros e sem querer conversa. Um Patativa que sabia de sua condição de cantor (do trabalho), como se fizesse antigas bucólicas, porque seu canto sempre foi contemporâneo e ancestral. Um Patativa que tinha consciência de sua condição de pássaro, escondido na mata, uma patativa imitando todos os pássaros, camaleônico em seu cantar, virtuose, liberto de todas as gaiolas, dando asas à imaginação. A poesia como canto de trabalho. Uma obra construída como se faz uma parede de taipa, a armação de madeira trançada, o artesanato de modelar o barro, com a paciência do ceramista que esculpe a figura ou o vaso, como Ciça do Barro Cru. Compor solitário e cantar fraterno. Como se o solo, à capela, pudesse se transformar em uma polifonia desafinada, rascante e cabocla. A poesia de Patativa ganhando, outra vez,

a dimensão da voz, ela que nunca perdeu esse registro da oralidade e que, só muito tempo depois, amplificada pelo rádio, pode assumir a condição do impresso. Um Patativa que espalhou seu canto, mavioso, como se fosse um vento que soprasse no final da tarde ou uma chuva que tudo fertilizasse, terra molhada em sua Serra, paraíso particular, onde deixou a mais valiosa de todas as sementes: a da poesia. Uma Serra fértil para o ofício poético, como o da Serra do Teixeira, na Paraíba, berço de tantos cantadores e cordelistas. Ou uma Serra que se fez poesia, por conta da influência de um Patativa seminal, fundante e, por isso mesmo, mítico. Serra como um locus privilegiado, comunidade poética onde o pássaro não apenas se refugia, mas onde busca os parceiros de aventura: Geraldo, Maurício, Cícero, Miceno e muitos outros. Poetas que estiveram no Balceiro (Fortaleza, Secult, 1991) e outros que chegaram depois, como Flávio, ou sua neta Toinha, filha de Inês. Que sentido faz essa poesia? Que dimensão social ela atinge? Que papel desempenha para esses poetas/roceiros da Serra de Santana? Patativa faz questão de subir a Serra semanalmente. Freta um carro, faz algumas compras e vai brincar de fazer poesia. Quando chega lá em cima, dezoito quilômetros de areia batida, muita pedra e pouca água, se concretiza seu sonho de lugar. Lá está a terra não Prometida, mas possuída. Sua dignidade e altivez podem provir do fato de ter sido filho de pequenos proprietários rurais. Sua relação com a terra é de amor, não de luta ou de expectativa, como a de muitos outros. Em volta da mesa de cedro, retangular, de cerca de sessenta centímetros por quarenta, sem toalha, duas cadeiras são postas. De um lado, Patativa, despojado como quem sabe que precisa apenas dele para fazer poesia. Do outro, preferencialmente, Geraldo Gonçalves de Alencar, de lápis e caderno em punho, pronto para o duelo pela palavra.

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Cada qual dá um mote. Patativa cria sua estrofe na cabeça, enquanto Geraldo escreve na folha branca do papel. Estamos diante de um torneio, com suas regras rígidas, ainda que o jogo seja marcado pelo prazer. Vence a poesia, no ritmo ágil com que eles vão dizendo seus versos, que se justapõem e formam a estrofe, com a melodia da rima e a observância do mote, misto de motivo e prisão. O jogo avança: Mote vai e mote vem, arremata Patativa. Digo a verdade completa/ Pois tenho rima de saldo/ Com meu amigo Geraldo/ Dou volta de bicicleta/ Porque nasci poeta / Ele é poeta também / Por isso eu me sinto bem/ Vamos à tarde brincar? Eu com Geraldo Alencar / Mote vai e mote vem. Nesta tarde de verão/ Estou muito satisfeito/ Sentindo dentro do peito / Badalar o coração / Não me falta a inspiração / Nem a você falta também / O que eu tenho você tem / Você diz eu também digo / Hoje aqui no seu abrigo / Mote vai e mote vem. Agora quem dá o mote e começa a glosar é Geraldo: A chuva não quer chegar: O nordestino padece / Com este sol causticante / Mesmo que no seco plante / A chuva não apa-

rece / O povo reza uma prece / Mas o sol é de amargar / Para a pessoa plantar / No sertão esturricado / Pois aqui no nosso Estado / A chuva não quer chegar. Vejo grande padecer/ Da Serra até o sertão / É verão, verão, verão/ Sem a chuva aparecer / Que é para a rama crescer/ E a criação escapar / É grande o nosso penar / Aqui no nosso terreno / Quando vem é um sereno / A chuva não quer chegar. E, pela tarde adentro, se estende essa peleja sem viola, com os contendores frente a frente, parando para tomar um café. Patativa, orgulhoso por ter um conterrâneo parceiro, herdeiro presumido, por saber que a tradição continua, que a poesia permanecerá neste e em outros cantos, que a oralidade registrou e a transmissão confirmou. Os poetas da Serra formam uma comunidade cujo patrono é Patativa e a poesia continuará a ser um canto de trabalho, de amor à terra e de compromisso dessa gente com a palavra. Descer a Serra é deixar para trás esse mundo, que faz do torneio uma forja de poetas modelados do barro, em cujas narinas a poesia sopra o que poderíamos chamar de trabalho (e que outros poderiam chamar de inspiração).

Texto publicado pelo caderno especial dos 90 anos de Patativa, pelo jornal O Povo, Fortaleza, 2 de março de 1999.

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Patativa e a comunidade poética da Serra de Santana

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Serra de Santana é um território idílico para Patativa do Assaré. Lá ele nasceu e viveu até os setenta anos, trabalhando o chão e compondo sua obra poética. A Serra, a dezoito quilômetros da cidade, com acesso por estrada carroçável e íngreme, é, na verdade, um pedaço de sertão elevado, de solo fértil, partilhado entre pequenos proprietários. Essa pode ser uma das diferenças entre os que possuem sua própria terra e não precisam se submeter a regimes feudais de meia e terça, trabalhando a terra alheia, em uma situação fundiária que se agrava, em um país que adia uma reforma agrária, o que, aliás, ele tem denunciado em seus poemas. A Serra para Patativa é paradisíaca. Ele relembra quando a mata cerrada foi sendo devastada para as plantações e para dar conta das partilhas em razão dos processos sucessórios. Com plantações de milho, feijão e de maracujá, cujos frutos não são trabalhados, apenas as folhas entram na composição de calmantes naturais, a Serra forma uma grande comunidade unida por laços de parentesco e amizade. E uma questão se afirma como relevante dentro dessa reflexão: o porquê de ter sido um local privilegiado para a emissão de uma poesia oral e berço de um número tão expressivo de poetas – próximo aos vinte e cinco –, em um levantamento sem muito rigor, consultando os constantes das duas edições de Balceiro, a segunda ainda inédita, dando uma visão de conjunto dessa comunidade de agricultores/poetas. O fio que enreda todos eles é Patativa do Assaré, e urge rememorar sua iniciação, em tempos de acesso ainda mais difícil, quando a

antecipação do telefone, que veio com a inauguração do posto, constituía um exercício de ficção científica e as leituras eram escassas, em um local sem energia elétrica, cujas condições de expressão poderiam impossibilitar ou inibir o ofício poético. Patativa não deve ter nascido do nada, mas de uma tradição que poderia não ser organizada o bastante para se impor, mas enredava os Serranos em um contexto de prevalência da voz na transmissão não apenas da poesia, mas das narrativas míticas e de uma História a partir das genealogias, e ganhava consistência na medida em que era a forma de expressar as vivências daquele grupo. Ele fala na mãe que cantava uma Asa Branca da tradição oral e depois, retrabalhada por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, se tornaria um manifesto estético (e ético) do Nordeste. Relembra também o pai que compunha quadrinhas humorísticas, as quais brincavam com um parente sovina. A alfabetização ou a inscrição no âmbito da escrita, por meio dos livros de Felisberto de Carvalho, contou com a ajuda do irmão mais velho, José, que se iniciara primeiro e lia para ele folhetos de cordel. Vale a pena também imaginar as visitas dos violeiros, bardos sertanejos, a propor desafios, fazendo apresentações nos sítios, como semente de uma manifestação que irromperia, tempos depois, quando o garoto, órfão de pai, pediu licença à mãe para vender uma ovelha e comprar uma viola. Viola em punho, Patativa começou, de acordo com suas próprias palavras, a fazer uns versinhos para agradar aos matutos. Daí veio a construção do menino poeta, rápido no im-

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proviso, criativo e tímido, não ao ponto de impedir sua exibição em aniversários, casamentos, malhação de Judas e festas juninas, onde exercitava seu canto. A iniciação foi rápida, a ponto do parente José Montoril, radicado no Pará, em visita à Serra, em 1928, quando Patativa contava com dezenove anos, ter insistido em lhe levar para Belém do Pará, onde chegou, apesar da relutância da mãe, a bordo do vapor Itapajé. Essa viagem foi decisiva para a carreira do poeta. Foi onde ele foi crismado de Patativa, pelo jornalista cratense José Carvalho, e exercitou seu canto nas colônias dos nordestinos que haviam migrado para a Amazônia, em função da borracha. Mas o que explicaria apenas uma trajetória pessoal se imbrica na tessitura de um quadro mais amplo. Como Patativa pode ser considerado como uma figura referencial, sua consolidação como poeta vai significar a importância dessa manifestação no contexto em que ele estava radicado – a Serra de Santana – e onde, de 1930 a 1955, vai desenvolver, paralelamente, seu trabalho como agricultor e como poeta. Um trabalho anônimo, que se irradiava pelas circunvizinhanças e servia de matriz ou molde para o que viria a seguir. Um Patativa que desenvolvia uma carreira, como a de centenas de outros cantadores, viajando pelos sítios da região, em lombo de burro, viola em punho, afinando a arte do improviso, sua dicção social e passando a documentar a vida de toda esse grupo. A figura de Patativa é fundamental na vida da Serra de Santana. Sua voz era ouvida nas festas, ele declamava seus poemas quando havia pessoas reunidas, dispostas a saber o que acumulava o poeta enquanto trabalhava a terra. Versos que muitas vezes eram registrados, à noite, à luz da lamparina, em cadernos, não porque ele desconfiasse de sua memória, mas como um exercício para mantê-los ainda mais fixados. Patativa passou a ser, como ele mesmo diz, a fonte. Tempos depois, ele chegou ao livro

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(1956), com Inspiração Nordestina, e ao disco (1964), quando Luiz Gonzaga gravou sua Triste Partida e seu canto foi amplificado nacionalmente. Mas o que interessa saber é como, a partir dessa influência, um grupo de poetas surgiu, impôs seu canto e continua a se renovar nas vozes dos filhos e netos, em um processo de transmissão cultural que é da essência mesma da oralidade. Por mais que se saiba da importância de Patativa, para seus conterrâneos, por si só seria um elemento desencadeador de tantas vocações e tantas dicções? Convém insistir na relação que eles mantêm com a terra e no fato de a grande maioria ser constituída de pequenos proprietários para apontar em outra direção. É onde poderíamos falar em dignidade, na ideia de cidadania, na consciência de ser sujeito de ações, atores sociais e não meros figurantes. A influência de Patativa é algo que não se pode desprezar, pelo contrário, mas ela se soma a outros fatores e se dá não apenas no fazer poético, mas na qualidade de uma poesia comprometida com as questões sociais. A poesia desse grupo não é diletante, no sentido em que tem um papel social e político da maior relevância. A essa influência vem se somar o que eles chamam de dom, na acepção religiosa, como se tivessem sido escolhidos para serem intérpretes de um povo e não como se seus poemas fossem resultantes da necessidade mesma de uma expressão, onde a voz passa a ser o canal para uma inserção em um contexto mais abrangente, de interferência política, na qual o dom se alia a uma espécie de missão, e o religioso assume um caráter leigo de forma de reivindicar, de reinventar o sonho e de, por meio das palavras, recriar o mundo na medida das utopias e das expectativas de cada um deles. Na linhagem familiar de Patativa, vamos encontrar algumas criações do irmão mais velho, o Zezé do Cachoeirão (1905/1988), e do irmão mais novo, Pedro Mariô (1915),


ainda vivo. Ambos fazem parte do Balceiro, o volume dos poetas da Serra de Santana, cuja primeira versão, de 1991, foi organizada por Patativa e Geraldo Gonçalves. Mas pode-se falar em algo episódico, sem a pretensão de um compromisso, como iluminações que foram passadas para o papel, na maioria das vezes, graças à memória privilegiada de Patativa. Seria equivocado insistir em uma herança familiar, ainda que esse grupo seja marcado pelo cruzamento de laços, tenha uma raiz comum e vivências que reforçam esses vínculos, mesmo quando os laços não sejam sanguíneos. Mas a influência se irradia a partir da voz primeiro de um Patativa violeiro, que se tornou uma lenda viva da região, depois dos poemas que ele declama sempre, fazendo de onde está uma ágora, poeta em tempo integral, onde a poesia se confunde com sua própria vida e, depois, do Patativa por escrito, que é lido e retomado, mesmo pelos de pouca educação formal, que não abrem mão de reler seus livros, já clássicos. Da Serra, brotaram esses poetas, como a herança patativana, como se Patativa permanecesse no canto que outros enunciam, como se o poeta se multiplicasse em outras vozes, em uma polifonia sertaneja. Seu sobrinho, Geraldo Gonçalves (1945), autor de dois livros publicados (Suspiros do Sertão e Clarão da Lua Cheia) e um inédito, é considerado por Patativa como seu principal herdeiro. Agricultor, cultiva com o irmão Maurício (1950), também poeta, os 100 hectares do pai, ainda vivo. É Geraldo o parceiro das brincadeiras de pé de mesa, onde a partir de um mote eles improvisam e se tornam rivais. Patativa compõe e memoriza, de improviso, Geraldo, pacientemente, escreve suas estrofes. Parece apenas um jogo, mas traz em si a ideia do aprendizado, como se ele tivesse resolvido aprimorar o discípulo dileto. Aliás, essa aprendizagem é enfatizada na entrevista com Geraldo, que considera Pa-

tativa como o inspirador ou o influenciador da inspiração de cada um. Para ele, tudo começou com Patativa, o que os outros faziam antes era pouco relevante e não ficou. E os laços de família são valorizados, como se a poesia fosse uma herança genética. Maurício é agricultor e dono de uma pequena venda na Serra. Para ele, o poeta nasce com o dom, ainda que não possa negar o incentivo que teria recebido de Patativa, a quem considera uma grande influência, presente em seu livro de estreia O sertão é minha terra, a ser lançado. Desde pequeno, ouvia seus repentes. Patativa sempre gostou de recitar, é no campo da performance que sua poesia se completa e perfaz seu sentido. Maurício passou a escrever depois dos 40 anos. Diz que nunca teve aulas, ao contrário de seu irmão Geraldo, merecedor de mais atenções de Patativa. Não desdenha da influência recebida, mas argumenta que Patativa está na cidade de Assaré, desde 1979, e nem por isso houve um incremento da poesia, no espaço urbano, em torno de sua figura de mestre. Filho de Maurício, Flávio (1984) começou a escrever a partir da morte de Ayrton Senna (1994). Também admite a influência de Patativa se não fosse ele ter iniciado a fazer poesia, os outros não teriam seguido esse caminho. Patativa seria uma espécie de pai dos poetas da Serra. Trabalha no campo com o pai e, além de ter ouvido o poeta-pássaro, desde criança, já leu todos os seus livros. É dos que admitem o dom e se refere aos tempos em que o poeta maior dava a glosa, ele fazia o verso e mostrava para ter a aprovação. Estuda em Assaré, onde cursa a primeira série do ensino fundamental. Cícero Batista (1939) mora um pouco afastado dos sítios da Serra, onde é proprietário de umas vinte tarefas de chão. Faz poesia há dezoito anos e tem um livro no prelo: O caipirinha do amor. Também toca viola, improvisa e compõe canções. Como é mais veterano, chegou a fazer cantorias com o Patativa, espécie de iniciação privilegiada, a que poucos

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tiveram acesso. Também considera a poesia um dom e seria poeta, mesmo que não tivesse conhecido Patativa, mas reconhece a influência do mestre e considera-se como se fosse seu filho. Antônio Gonçalves para ele é o chefe, o mais talentoso dos poetas que surgiram no Nordeste ou mesmo no Brasil. Além da agricultura, para manter a família numerosa (oito filhos), trabalha como carpinteiro, fazendo móveis, porque a vida é muito sacrificosa. Um dos filhos, Sérgio, (1985) também faz poesias sobre coisas do sertão. Manoel Calixto (1963) vive no sítio Catolé, na Serra. O chão onde está edificada sua casa é dele, a terra que cultiva é dos outros e ele paga uma renda para poder cultivá-la. A agricultura é de subsistência. Colhe pouca coisa: 35 sacos de milho, feijão, fava, amendoim e arroz. Faz poesia desde os dez anos de idade. Criança, gostava de ouvir Patativa, que muito o incentivou para publicar o primeiro livro Manoel Calixto e seus admiradores. Relembra um Patativa que andava por aqui, amontado e de quem ele escondia os primeiros versos, por medo de ser reprovado pelo mestre. Por timidez, recitava para os filhos do poeta, mas daí a chegar à fonte demorou algum tempo. Admite a influência, mas considera a poesia como natural e diz que a gente nasce aprendido. Afinou a lira lendo os livros do Patativa, quase todos, com exceção do Inspiração Nordestina, embora tenha tido apenas quinze dias de bancos escolares. Falando por metáforas, considera-se um brolho do Patativa que, além de fonte, seria a semente. Lamenta não tê-lo visto de viola em punho. Sobre a poesia que faz, diz que é popular, cantando as malfeitorias políticas, mas sofre influências da cultura de massas, o que o levou a fazer poemas para Ayrton Senna, Daniela Peres e para os Mamonas Assassinas. João Lino (1935) também mora na Serra, onde trabalha na agricultura, cultivando quinze hectares dos outros, tarefa que partilha com

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sete filhos homens, dos quais dois migraram para Porto Alegre (RS). Diz que concluiu o primeiro grau e teria começado a fazer poesia em 1957, tempo em que começou a bater uns baiãozinhos. Além da agricultura, trabalha com couro, fazendo arreios e selas. Refere-se a Patativa como uma influência muito próxima, pois teria ficado trabalhando com ele, durante onze anos, depois da morte do pai. Lino diz que perguntava muito, prestava muita atenção e tinha medo de dizer ao poeta que já tinha alguns versos prontos. Para ele, a influência de Patativa foi fundamental na minha vida de poesia e em tudo. Um dia criou coragem e o poema foi aprovado. É bem feito, teria dito Patativa. Relembra Patativa no campo, trabalhando e resmungando, podia ter certeza de que “era verso”. Ele, quando estava concentrado, não gostava de ser interrompido e não dava atenção a quem se aproximasse. Lino também diz que chegou a cantar com Patativa, nos sítios próximos, chegando até os Inhamuns. O ponto final foi dado pelo atropelamento do poeta, em Fortaleza, em 1973. Considera-se cria de Patativa, tem consciência de que fazia uns arremedos e ia colocando no modo de verso. Só não sabe de quem Patativa teria herdado sua voz maviosa, sua capacidade de improviso e a profundidade do canto. Talvez ele seja a síntese de todas as vozes que antes deles davam conta dessa fabulação e da transmissão oral dos relatos. Nessas cantorias de outrora, Lino evoca um Patativa que, distraído, botava cigarro aceso nos bolsos do paletó e quebrava as violas nas cancelas, no que é veementemente desautorizado pelo poeta de Assaré. Seu filho Roberto (1984), amigo de Flávio, filho de Maurício, toca viola e faz poesias, tendo abandonado a escola para trabalhar com o pai e fazer carreira como cantador. Na linha direta da descendência de Patativa, sua neta Toinha Cidrão (1970), filha de Inês, escreve poemas há uns oito anos, com


aprovação e entusiasmo do avô, causa primeira da dedicação à poesia, que não é tanta. Toinha tem poucos poemas, escritos em um caderno, e o avô gosta muito de um que fala das desigualdades sociais, onde é acentuada a dicção patativana. Fez até a quarta série do primeiro grau, na própria Serra e, por excesso de timidez, não abre o jogo ou não queira dar divulgação aos trabalhos que faz. Outra vez retorna a pergunta impertinente: de onde vêm esses poetas? A filiação de todos eles a Patativa é inegável, mas essa influência se fez difusa, sem que o poeta assumisse a condição de mestre, ditasse regras, funcionasse como um orientador ou como alguém que partilha, conscientemente, uma experiência. A contribuição de Patativa a esse grupo se impôs, em primeiro lugar, como exemplo de alguém que soube amplificar seu canto e ser intérprete dos anseios não apenas de uma comunidade isolada, mas do sertão, acepção que extrapola fronteiras e se afirma em um território mítico, sertão dentro de mim, na formulação roseana (ROSA, 1995,p.47). Também teria contribuído muito a declamação, onde a arte de fazer poesia, que Patativa exercitava no cabo da enxada, ganhava concretude. E, por último, a leitura dos seus livros, ainda que sua poética guarde, de modo acentuado, as marcas do oral. Esses poetas brotam de um chão menos hostil, unidos pela agricultura, e a maior parte deles é proprietária da terra em que trabalha. Se não explica de todo, ajuda a compreender uma atitude, embora Geraldo tenha dito que tanto o dono da terra como o agricultor são vítimas da falta de uma política de financiamento e da garantia de um preço mínimo para o que colhem. A ligação deles com a terra é visceral e daí vem a força que a poesia expressa. É significativo que constituam um grupo, com afinidades de visão de mundo, linguagem e repertório. As experiências são afins. Mas não conviria

dizer que constituem uma escola. O conceito que estamos propondo é de comunidade, pelo espaço partilhado, pela interação dos esforços, pela comunhão de interesses e pelo ideal solidário. A presença de Patativa, como um farol, sinaliza a ideia de dom, como coisa nata, que se contrapõe à cultura como construção e organização da sociedade (ou na sociedade). Esses poetas vão além da poesia, implodindo a construção ideológica que separa trabalho intelectual de trabalho braçal. Seriam os intelectuais orgânicos da proposta gramsciana que excluía, no entanto, a possibilidade da formação desses quadros no campesinato. De onde viriam esses poetas? De uma tradição que remonta a tempos imemoriais, onde a poesia se estabelecia como a dicção inaugural do mundo, tendo a linguagem sua função adâmica. Trata-se de uma comunidade que encontra na palavra seu elemento de coesão e de expressão. É a palavra que eles cultivam, modelam e acionam no limite da tensão. Palavra artesanal que ganha o estatuto de manifestação poética, donde a suposta impressão de cosmicidade (ECO,1987,p.69) é uma poesia com função ritual que se laiciza e se politiza no embate da sociedade contemporânea, onde essas camadas de homens do campo são vistos como mantenedores do atraso, donde a ousadia das propostas que eles levantam. Curioso que a educação formal não seja relevante nesse contexto em que a palavra enunciada tem mais força do que a palavra escrita, a tradição não significa, necessariamente, um apego conservador (ou reacionário) ao status quo, mas uma herança que se transmite, nesse caso, com elementos de denúncia e de contestação. Operacionalizando ideias de Pound, Patativa seria o inventor ou o mestre e os outros os diluidores, que vieram depois e não foram capazes de realizar tão bem o trabalho (POUND, s/d,42). Importante ressaltar que essa poesia não precisa da escrita para se perfazer, é na instân-

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cia da performance que ela atinge seu apogeu e a figura de Patativa é agregadora de pontos de vista entrelaçados na afinidade, uma influência que se irradia como círculos concêntricos, sem que seu autor se coloque, ostensivamente, no meio da cena. Tudo isso serve, como diria Eco, para reconduzir ao social muitas manifes-

tações até então apressadamente atribuídas à genialidade individual (ECO, 1988, p.107) É esse contexto polifônico que faz brotar esses poetas agricultores, universais em suas preocupações, impossíveis de terem seus cantos resumidos, bucólicos, reformadores na busca de um mundo mais justo.

Texto apresentado na XVII Jornada de Estudos Linguísticos do Nordeste, Fortaleza, 1999, e publicado pela Revista do Gelne, número 1, volume 2, 2000, páginas 144/147.

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Lira PatativaNA

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eu primeiro encontro com Patativa do Assaré se deu no início de dezembro de 1988, no restaurante do Hotel Municipal, em Juazeiro do Norte. Eu acabara de participar do Ciclo de Estudos da Literatura de Cordel e optara por passar mais uns dias na cidade. Ele estava com Stênio Diniz, que gravava uma entrevista para fundamentar o cordel A Vida de Patativa, que lançaria quando dos oitenta anos do poeta, em março de 1989. Eu trazia um gravador e não perdi a oportunidade, quando eles já estavam se preparando para ir embora, de fazer duas ou três perguntas ao poeta. Tenho ainda hoje essa fita em meus guardados. Uma das perguntas se referia ao spot publicitário que Patativa havia gravado para um xarope contra tosse. Assunto que ele não gosta de falar porque diz que nunca fez comércio de sua lira. Eu insisti porque estava elaborando minha dissertação de mestrado, publicada com o título de Publicidade em Cordel, e me parecia relevante ouvir o poeta, para me situar melhor diante da questão controvertida da encomenda. A outra pergunta foi sobre os folhetos de cordel que ele teria publicado. Patativa fez uma listagem dos títulos e a partir daí veio a ideia de reuni-los em um volume. Uma primeira tentativa foi feita pelo arquiteto e editor Américo Vasconcelos e sua mulher Inês, da Livraria Tucano. Eles chegaram a pedir um orçamento à Lira Nordestina e desistiram diante dos custos e da dificuldade de patrocínio. Em 1993, convidado pelo secretário Paulo Linhares para coordenar a política editorial da Secretaria da Cultura, tive a ideia de retomar o antigo projeto. Reuni os folhetos e contei com o apoio da Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte, que então dividia a administração da

Lira Nordestina com a Universidade Regional do Cariri. A opção pela caixa, testada e aprovada por outras iniciativas, mantinha o formato folheto e o aspecto tipográfico que o projeto editorial pretendia evidenciar. As capas foram encomendadas a sete xilógrafos que viviam e atuavam em Juazeiro do Norte: Abraão Batista, Francorli, José Lourenço, Cícero Vieira, Nilo, Demontiê Lourenço e Luís Karimai. Não cheguei a fazer uma curadoria, pois os próprios artistas se encarregaram de distribuir os títulos entre si, o que é frequente na edição popular. Muitas capas eram originalmente gráficas, outras com reprodução de fotografias ou de clichês de zinco. Eles deveriam cortar a umburana, depois de uma leitura detida, que sintetizasse, em códigos visuais, o que cada folheto tinha de mais expressivo. O ponto fraco da caixa ficou por conta da especificação da cartolina, ilustrada por outra xilogravura de José Lourenço, a partir de fotografia de Dário Gabriel, com uma gramatura baixa, o que provocava rasgões e amassaduras, além de dificuldades de manuseio. Depois de muita demora, em função do volume da encomenda, que já encontrava uma Lira Nordestina em plena obsolescência, o material ficou pronto. O lançamento se deu na Casa de Juvenal Galeno, dia 30 de novembro daquele mesmo ano, com a presença de convidados, cantadores e autoridades, em conjunto com um folheto-homenagem dos poetas de Fortaleza e diante de um emocionado Patativa, que declamou muitos de seus poemas, evidenciando a oralidade de sua produção e a importância de sua performance. Pouco tempo depois, eu viajei sertão adentro pela Estrada do Algodão, em um velho Gol branco, da Secult, com cerca de mil caixas dos cordéis, retomando o projeto Um Escritor na

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Cidade. O périplo incluía Quixadá, Quixeramobim, Iguatu, Barbalha e Juazeiro do Norte, onde falei em escolas e bibliotecas para um público jovem, curioso pelo contato com um escritor que se materializava diante deles. Da cidade do Padre Cícero a Assaré, foram cem quilômetros de pura ansiedade. A expectativa era a de surpreender o poeta em sua casa, longe da festa, no número 27 da rua Coronel Pedro Onofre, na praça da Matriz. Dona Belinha, sua esposa, que havia sofrido um acidente vascular cerebral, estava na cozinha, em uma cadeira de rodas. O poeta, como sempre, no fundo do corredor, de onde já foi captado por tantas objetivas. A conversa foi longa e prazerosa. O motorista, seu Aluísio, estava muito excitado pelo fato de ter de dividir o poeta apenas comigo. Entregamos as caixas à filha Miriam, que as guardou em um dos aposentos da casa. Foi em meio a essa conversa que perguntei a Patativa se tinha algum livro inédito. Ele falou que concluía o Aqui tem coisa e me mostrou alguns poemas datilografados. Eu tinha consciência de que estava à frente de um monumento e que tinha em mãos uma prova de confiança. Patativa ficou de me mandar os originais, o mais rápido possível. Tudo ficou pronto para a I Febralivro, em abril de 1994, quando foi lançado mais este título de sua bibliografia. Um Aqui tem coisa, que ganhou uma segunda edição, no ano seguinte, em que foram retirados meu prefácio, os textos que redigi para as orelhas e quarta-capa e a gravura de José Lourenço, que ilustrava o projeto do design gráfico Evandro Abreu. Mas essa é outra história. Os Cordéis – Patativa do Assaré, que antecipavam, na caixa, a informação de que se tratava de uma primeira edição, em pouco tempo, se tornaram peça de colecionador. É onde se torna oportuna sua republicação, em formato de livro, pelas Edições UFC, em homenagem aos noventa anos do poeta. Interessante refletir sobre a relação do Patativa com a edição popular. Ele não tem o perfil de um autor marcadamente de folhetos, como

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Expedito Sebastião da Silva, Joaquim Batista de Sena ou Manoel Caboclo. O compromisso de Patativa com a poesia, ora matuta, ora nos moldes da norma culta, chegando a assumir uma dicção camoniana, como em Inferno, Purgatório e Paraíso, se volta para várias formas de expressão, do ABC ao soneto. Os originais de alguns folhetos foram dados de presente a José Bernardo da Silva, seu amigo e editor da Tipografia São Francisco. Outros trabalhos foram feitos de encomenda, como as Glosas sobre o comunismo, sugeridos por um vigário da região, e o Padre Henrique e o dragão da maldade, solicitado por Dom Hélder Câmara, que enviou a Assaré uma emissária com a pauta. A Triste Partida, gravada pelo lendário Luiz Gonzaga, dialoga com o ABC do Nordeste Flagelado e se desdobra na Emigração, que fez parte de uma proposta de Stênio Diniz para uma Bienal Internacional de São Paulo. Como ressaltou Eleuda de Carvalho, no caderno de O Povo comemorativo do nonagésimo aniversário do poeta, outros temas são tradicionais, como a História de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, tributário de As Mil e uma Noites e História de Abílio e o seu Cachorro Jupi, variante adaptada de uma narrativa ibérica. Vicença e Sofia ou a Vingança de Mamãe é um libelo anti-racista e Brosogó, Militão e o Diabo, opta pelo picaresco, na linhagem do “amarelinho”, humor perseguido por As Façanhas de João Mole. Surpreendentemente, O Doutor Raiz contesta o papel das ervas medicinais e O Meu Livro encontra um Patativa pleno, que fala de si mesmo, de seu contato com a natureza, com a qual dialoga ao fazer cultura. O poema Saudação ao Juazeiro do Norte significou uma referência à cidade onde os folhetos foram editados, enfatizando o fato de ter sido o pólo por excelência da produção do cordel brasileiro e de Patativa ser o responsável pelo batismo da Lira Nordestina, conhecida como Tipografia São Francisco, até o final dos anos 70. O certo é que Patativa, armazenando seus versos na memória/silo, se afastava da ideia do


poeta de bancada, sentado em busca do verso perfeito, da rima rica, da cadência melódica. Sua criação estava sujeita ao contato com a natureza, enquanto trabalhava a terra, e sua lira ecoa, muitas vezes, o fundo comum das histórias, como no cordel. Patativa, no entanto, dosou a tradição com a vivência, a oralidade, de quem tocou a viola, com a importância da palavra impressa, donde o fato de seu Inspiração Nordestina, de 1956, constituir um marco em sua trajetória. A relação do Patativa com a edição popular sempre foi frágil. Ele não fazia encomendas de versos a José Bernardo, nem aproveitava as cantorias nos sítios para vender folhetos. Seu cordel, nesse sentido de molde ou de forma, é esporádico. Não que tenha representado uma ruptura com as raízes ancestrais, mas uma forma diferente de expressar uma dicção inaugural, uma enunciação de poemas que não podem ser resumidos. Poemas que são ditos com a voz e com o corpo, que são lidos e ouvidos, nas noi-

tes sertanejas, como antes foram transmitidos, ao pé das fogueiras, nas vigílias medievais. Um Patativa clássico, universal, a partir de sua aldeia Assaré, que quer dizer, etimologicamente, atalho, ou de sua idílica Serra de Santana, de onde nunca se afastou, e que consideramos como popular, na falta de uma expressão que dê conta de sua grandeza ou em razão de nossa necessidade redutora dos compartimentos e rótulos. Um Patativa, que faz dessa caixa, que se transforma em livro, um tesouro de vivências, de observações e de sabedoria, que se cristalizam e se amplificam. Um poeta que antes empunhou a viola, como um jogral sertanejo, o que talvez explique sua agilidade no improviso. Um Patativa, arauto e intérprete de um povo e de um tempo, memória viva que se desdobra, ele próprio um poema ou a fonte patativana, de onde emana a poesia em estado puro. Um poeta que solda razão e emoção, enunciação e performance, tradição e contemporaneidade.

Prefácio do livro “Cordéis”, Fortaleza, Editora UFC, 1999.

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O rondó romântico e a tradição popular

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ponto de partida é um jogo de armar, a técnica é da edição fragmentada de vários planos onde se desenvolvem episódios de uma mesma história, contada por várias vozes, em diferentes tempos e espaços. Como envolver em um mesmo enredo Gonçalves Dias, José de Alencar, Juvenal Galeno, Alberto Nepomuceno e Patativa do Assaré? O que teriam em comum e em que ponto suas histórias de vida e suas obras se entrelaçam? Juvenal Galeno da Costa e Silva, cearense, nascido em 1834, era filho de fazendeiro, proprietário de terras férteis, onde cultivava café, na Serra de Aratanha, em Pacatuba, proximidades de Fortaleza. A família era tradicionalmente letrada. Estava ligado por laços de parentesco a figuras de destaque da história cearense do período e, como rapaz de posses, foi estudar no Rio de Janeiro, de onde voltou com um livro de poemas, Prelúdios Poéticos, na melhor tradição lírica, recebido sem maior entusiasmo pela crítica. Em 1859, chegou ao Ceará a Comissão Científica, retomando uma tradição de naturalistas e viajantes europeus, que haviam começado, anteriormente, o mapeamento do País, como Spix e Martius, por exemplo. Esse mapeamento mantinha um viés cientificista e integrava o Brasil por meio de uma série de relatos e de observações que ocupariam o acervo dos gabinetes de curiosidades, antecipando os museus de história natural e de antropologia que se disseminariam pelo mundo afora. A Comissão cumpria um objetivo de estudar a fundo uma província que era pouco conhecida e se notabilizava pela ocorrência das secas. Foi atraída pela possibilidade da incidên-

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cia de minerais. O pessoal não foi bem recebido pelos cearenses que não compreendiam e, por isso mesmo, desdenhavam a importância daquele levantamento. Chamavam-na, ironicamente, de Comissão Defloradora ou de Comissão das Borboletas. O deboche se acentuou com a chegada dos camelos, com a justificativa de que se aclimatariam bem ao calor cearense. Restaram alguns relatórios, as aquarelas de Reis Carvalho e os desenhos do botânico Freire Alemão, o que não é pouco como pesquisa, aventura e recriação estética. Muita coisa se perdeu no naufrágio do iate Palpite, outra parte se deteriorou em razão da falta de cuidados específicos. O certo é que a Comissão expôs no Rio produtos naturais e relativos às artes, usos e costumes da Província do Ceará (BRAGA, 1959, p.91). A Seção Etnográfica, dirigida pelo poeta Gonçalves Dias, chegou, com dificuldades, ao íngreme sítio Boa Vista, do pai de Juvenal. Imbuído do ideal romântico, que preconizava uma língua nacional e valorizava as tradições, a partir da influência dos estudos alemães, Dias visitou o casarão dos Costa e Silva e lá encontrou o poeta Juvenal. No relato da expedição, publicado tempos depois, ele era descrito como moço que tem alguma educação e que é meio poeta – estuda no Rio de Janeiro (ALEMÃO, 1964, p.259).Gonçalves Dias não encontrara naquela figura deslocada, com dinheiro para bancar uma publicação, os traços do autor de uma poesia com alma nacional. Um dos membros da Comissão Científica, segundo José de Alencar, teria feito boa colheita de curiosidades literárias, de que depois de seu falecimento, sensível para o país, eu tentei, mas debalde, obter uma cópia. Talvez já estejam


perdidas ou soterradas no pó. Entre elas, havia uma lição do Rabicho da Geralda. (ALENCAR, 1994, p.40). Esse material, mandado para o Rio de Janeiro, teria deleitado certo diplomata estrangeiro que solicitou cópia desses trabalhos para comunicá-la aos sábios de seu país, no interesse da ciência. (ALENCAR, 1994, p.41). Contado como anedota e com uma boa dosagem de fina ironia, o episódio se fortalece à participação de Manuel Ferreira Lagos, autor de uma Linguagem Popular do Ceará, observações de costumes, de preconceitos, de usos, de festas populares e até de palavras especialíssimas e de significação exclusiva da população menos civilizada do Ceará (BRAGA, 1959, p.97). Foi fruto da Comissão a sugestão feita por Gonçalves Dias para que Juvenal deixasse de versos acadêmicos e que procurasse no povo e na terra a matéria dos seus versos (BARREIRA, 1948, p.69). Galeno obedeceu ao patriarca do indianismo e converteu-se ele mesmo no patriarca da musa popular e regionalista (BARREIRA, 1948, p.69). Conversão que lhe rendeu viagens ao litoral, sertão e Serras, isso bem antes dos estudos folclóricos se disseminarem pelo País, o que aconteceu nas últimas décadas do século XIX, com Sílvio Romero e, no caso cearense, com a contribuição de Rodrigues de Carvalho e seu Romanceiro do Norte, de 1903. Era preciso ter ouvidos para o cantar do povo. A terra de Gonçalves Dias tinha palmeiras, ele cantou seu índio I - Juca Pirama, o Exílio e, cosmopolita que era, não via entraves entre esse sentimento nacional, a recolha dessas tradições e uma poesia antenada com o romantismo europeu, aqui em sua vertente mais épica ou de expressão do chamado belo natural. Um romantismo que antecipava um pensamento amplificado pelos conservadores, de apego às raízes valorizando o amor e a pátria, a natureza e a religião, o povo e o passado, que afloram tantas vezes na poesia romântica (BOSI, 1982, p.99). A conversa entre Dias e Galeno deve ter transcorrido numa tarde modorrenta, regada a biscoitos, ao forte e encorpado café do sítio dos Costa e Silva. Pontificavam nos anúncios da

época as máquinas para a colheita e o estímulo ao cultivo dessa riqueza nacional. Plantações envolvendo escravos que seriam libertos, em 1884, no bojo de uma campanha abolicionista que contagiava as elites letradas e as camadas médias cearenses e ficou como um dos episódios mais marcantes da história oficial do Estado. Galeno levou fundo as sugestões recebidas. Em 1865, lançou suas Lendas e Canções Populares, e estava plantada a semente de uma poesia falando do cajueiro pequenino, das rendeiras com seu ponto no ar e da jangada com sua vela, intrépida, recortada contra um mar verde, o mesmo de Iracema de José de Alencar, que radicalizava a experiência romântica com o cantar da formação mítica cearense com seu poema/romance indigenista. Galeno estava absolutamente convencido do novo ideário que absorvera, tanto que no prólogo da primeira edição de suas Lendas e Canções prometeu escrever outros livros, procurando fazer conhecidos os nossos cantos populares, dos quais este volume é uma pequena parte (GALENO, 1978, p.42). Muita água correu por baixo das pontes fantasmas que sugerem os rios secos, temporários e fugazes. Alencar cantou sertanejos, Peris e Cecis e foi além ao evocar em O nosso cancioneiro, datado de 1874, sua infância em Messejana, onde quase todas as noites, durante os invernos, ouvia eu ao nosso vaqueiro o romance ou poemeto do Boi Espácio. (ALENCAR, 1994, p.31). A influência dos relatos do ciclo do gado e os aboios que ele ouvia umedeceram-me os olhos lágrimas de tristeza incutida pela toada merencórea sentida da rude cantiga (ALENCAR, 1994, p.32). Adulto, ele teria tido a ajuda de Capistrano de Abreu nas recolhas destas rapsódias sertanejas, como ele chamava ao Boi Espácio e ao Rabicho da Geralda, boi de fama conhecido / Nunca houve neste mundo / outro boi tão destemido, dos sertões de Quixeramobim. Em 1864, um ano antes das Lendas e Canções Populares, de Galeno, e mesmo ano da

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morte de Gonçalves Dias, no naufrágio do Ville de Boulogne, nas costas do Maranhão, nasceu Alberto Nepomuceno. Viveu pouco em Fortaleza e foi para Recife aos oito anos de idade, onde se tornou musicista, por influência do pai, e, depois de outra temporada cearense, onde se ligou aos abolicionistas e deu concerto para a causa, viajou, em 1885, para o Rio de Janeiro. Aí fez carreira e, abolicionista e republicano que era, teve dificuldades para ganhar uma bolsa do Império para estudar na Europa. Viajou com a ajuda de amigos e lá, principalmente em Berlim, estudou, fez contatos e se tornou um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Curiosa sua afirmativa de que Não tem música um país que não canta em sua própria língua. Nepomuceno levou a sério essa premissa e fez uma série de canções em português. Antes dele, outros recorreram ao vernáculo para composições musicais, mas ele fez isso com uma tal excelência que é como se tudo começasse a partir dele. Um de seus parceiros foi Juvenal Galeno. Música com brejeirice Medroso de Amor, (Que eu tenho medo dos amores / Que só trazem desventuras), a derramada Tu és o sol (Seus lindos raios – teus olhares vívidos: / E teu sorrir, / O seu fulgir), ambas compostas em Paris, em 1894, além de Cativeiro, de 1896, Cantiga Triste, de 1899, e Porangaba, de 1887/88, episódio lírico em 3 atos, extraído de poema indigenista que só seria publicado muitos anos depois da morte de Galeno. Não deixa de ser significativo que sua última composição, quase às vésperas de morrer, em 1920, tenha sido A Jangada. Depois de ter trabalhado com vários poetas brasileiros, como Machado de Assis, Coelho Neto, Olavo Bilac, Duque-Estrada e, curiosamente, com um lírico Gonçalves Dias de O sono, datado de 1901, ou de Saudades, de 1906, tão distante do telúrico da Comissão Científica, e depois de uma série de canções europeias, com letras de poetas franceses, alemães, italianos e suecos, Nepomuceno foi buscar em A Jangada uma forma de elegia, o canto que fechou um ciclo. Como se ele também tivesse se

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aconselhado com Gonçalves Dias e recebido a mesmo influência que Galeno. Soa delicado e nostálgico o minha jangada de vela/ que vento queres levar? / Tu queres vento de terra / ou queres vento do mar? ao som do refinamento musical e da síntese entre o nacionalismo e o cosmopolitismo de Nepomuceno. Parece mais um ajuste de contas, que ele já evidenciava em sua famosa entrevista à revista carioca A Época Teatral”, em 1917, quando diz que: “nunca me dediquei a esses estudos, mas possuo, como diletante, uma coleção de uns oitenta cantos populares e danças (CORRÊA, 1996, p.31). O compositor chama a atenção para a importância do trabalho dos folcloristas, como Sílvio Romero e Mello Moraes Filho, em um instante em que esses estudos definiam identidades e ajudavam a construir o arcabouço de um país. Mais adiante, na mesma entrevista, faz menção aos aboiados cantos tristes que os vaqueiros entoam à frente do gado para reuni-lo, guiá-lo e pacificá-lo. Vaqueiro que amplia o seu aboiar com vocalizes que lembram os do cantochão. (CORRÊA, 1996, p.31). Galeno viveria mais de uma década além de Nepomuceno (sua morte se deu em 1931) e foi visitado, em 1929, por Patativa do Assaré. O violeiro, no vigor de seus vinte anos, chegava de uma viagem ao Pará e trazia uma carta de recomendação do folclorista José Carvalho, autor de O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará, para a filha do poeta, Henriqueta. O salão dos Galeno era ponto de encontro de violeiros e repentistas, e antes de se apresentar lá Patativa foi levado ao quarto do velho Juvenal. A descrição é comovente, em sua riqueza icônica e sua plasticidade: Ele, sim, o Juvenal Galeno, já bem velhinho... Com a barba grande, bem alvinha a barba dele, também com as vestes brancas e a rede branca, tudo era bem alvo, parecia assim uma visão... Pois eu passei foi tempo olhando assim pra ele, viu? Foi, aí que eu tive o prazer de ver o poeta, um grande poeta cearense” (CARVALHO, 2000, p.30) Patativa foi beber na fonte de Galeno, a quem ele considera uma referência, a quem


homenageia em um poema escrito na linguagem matuta: É o livro do poeta honrado / Que tem o nome gravado / Na histora do Ceará / E foi quem cantou primêro / Neste país brasilêro / As cantiga populá (ASSARÉ, 1988, p.190) e a quem diz ter superado, porque Juvenal foi buscar a influência no cantar do povo e ele, Patativa, cria. Essa busca do estatuto de criador é que faz a diferença para ele, como se a estilização de Galeno valesse pouco ou como se o salto de fazer o tradicional e o popular vicejar nas páginas da chamada alta literatura não tivesse o paralelo com o que fez, a seu modo, Alencar e Nepomuceno, mais acentuadamente, em seu Batuque – Dança de Negros. Patativa revisita Juvenal, com um olhar menos romântico e mais comprometido com a realidade social. Mas é o mesmo poema dito ou cantado por duas vozes. Porque para Juvenal a fala popular era uma ruptura com seus anseios acadêmicos distanciados do que estava à sua volta. Para Patativa, o processo de criação ecoa os romances de feira lidos, as histórias de trancoso ouvidas e até uma Asa Branca, da tradição oral entoada por sua mãe. Patativa retoma Gonçalves Dias no modo de ver a natureza em profundidade, criando-a como significado (CÂNDIDO, 1969, p.83). O poeta de Assaré não precisou pesquisar o cantar do povo, porque ele era (e é) povo e

o que ele escrevia, antes compondo e acumulando em sua memória, era o que ele vivia e sentia, fazendo uma síntese dos saberes, experiências e oitivas, de natureza e cultura. É como se as camadas de poemas de Patativa, acumuladas durante seus quase noventa e dois anos de vida, contivessem resíduos de Galeno e por sua vez de Alencar e de Gonçalves Dias, embalados pelos aboios e pelos lieder de Nepomuceno, como pelos ponteios de viola que Patativa manejou tão bem durante tantos anos como a fonte de emissão e um jeito de dizer que parte do oral para ganhar a escrita e se completar na performance, como se todos essas personagens envolvidas neste enredo fossem figuras de um mesmo vitral, cacos de um mesmo mosaico ou enunciadores de uma polifonia. Parafraseando Lotman, Patativa é a soma de tudo o que veio antes dele, dos camelos se arrastando Pacatuba afora, do jovem Juvenal fazendo as honras da casa ao espírito científico do século XIX, de Alencar recolhendo fragmentos de histórias de bois, de Capistrano bebendo na fonte para fundar uma historiografia brasileira e de Nepomuceno compondo a trilha de toda essa história, que é processo, que flui e explica como o nacionalismo, em uma de suas vertentes, se forja e de como o popular se cristaliza e se evidencia como um jeito de criar, de sentir e de ler o mundo.

Texto publicado pela revista Ângulo, Lorena (SP), número 87, jan/mar 2001, páginas 36/39.

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O cânon de Patativa

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mpossível condensar a poesia de uma vida inteira em uma antologia. As lacunas seriam inevitáveis e as tensões, por demais latentes. A impressão é de que tudo poderia ter sido resolvido de outra forma e cada qual faria a sua proposta. Teríamos, em um enredo de literatura fantástica, tantas antologias quantos fossem os leitores ou a antologia se confundiria com a obra completa, o que não deixa de ser uma ideia apaziguadora, que elimina fissuras e obtém um aparente consenso. Mas não é isso o que nos move. Partindo do pressuposto de que nenhuma escolha é inocente, corremos os riscos de uma seleção. Afinal de contas: o que é melhor em Patativa? Se uma antologia poética deveria trazer o melhor, o mais expressivo, o que ela deveria englobar? Selecionar é tomar um partido. A operação é assumidamente ideológica e ganha visibilidade porque o resultado final se transformará em uma antologia, a primeira que se organiza e com autorização formal do poeta Patativa do Assaré. O que se entende mesmo por uma antologia? Que critérios podem ser adotados para uma recolha de poemas que faça jus ao conjunto da obra? Muitas perguntas e um grande desafio. Procurei ouvir o poeta, antes de iniciar o trabalho. Ele tentou escapar com a comparação, até certo ponto previsível, a uma mãe que não sabe dizer de qual filho gosta mais porque é tudo do mesmo jeito. Insatisfeito, tentei obter algumas sinalizações de outra forma e fui mais direto e insistente para que o poeta me desse algumas balizas. Ele então pôde falar dos seus preferidos, do que consideraria indispensável em uma publicação desse tipo. Algumas escolhas são óbvias: O Inferno, o Purgatório e o Paraíso, com sua dicção camoniana, mostrando a desenvol158

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tura com que o poeta leu e incorporou as lições do Tratado de Versificação, de Guimarães Passos e Olavo Bilac. Podia também se tratar de uma forma de legitimação, em termos de norma culta, o que não deixa de fazer sentido, como alguns poemas que remetem a uma influência romântica, principalmente ao condoreirismo de Castro Alves. Patativa avançou em sua seleção pessoal. Incluiu Cante lá que eu canto cá, Eu quero e O agregado e o operário, políticos em um sentido mais estrito. Indicou o filosófico O maió ladrão, reflexão sobre a passagem do tempo, As proezas de Sabina e o bem humorado As narrativas de Zé Tataíra, uma história de caçador. Em relação aos cordéis, seu preferido é Brosogó, Militão e o diabo. E não foi além, mesclando declamações com alguns títulos ditos de maneira pouco metódica, como se soubesse ou quisesse insinuar que a tarefa não era dele, que apenas dava pistas e que eu é que deveria assumir a escolha, na condição de organizador da coletânea. É onde entra o campo movediço da memória, com a recuperação de fragmentos, de trechos de poemas, das insistências com que Patativa nos faz ouvir aquilo que gosta de dizer, das lacunas em relação ao que finge ter esquecido e ao silêncio que ainda hoje envolve sua produção perseguida pelo regime autoritário, instalado com o golpe de 1964, que ele soube driblar com competência e argúcia. Tempo de ouvir as horas e horas de entrevistas, transcritas, procurando indícios, pistas (algumas falsas), mascaramentos, álibis e verdades, onde entra também a familiaridade com sua vida e sua obra que se tecem com uma coerência e uma unidade pouco comuns. Pacientemente, li e reli tudo o que ele publicou. E tomei partido de fazer a seleção nessa perspectiva, de livro a livro. Descartei os blo-


cos temáticos e procurei ver a obra de Patativa como um todo, como realmente se apresenta. É onde se ressalta a importância da voz em uma produção para ser dita (cantada) ou para ser lida em voz alta, uma poética que traz essas marcas em sua enunciação. Uma poesia que só consegue atingir sua plenitude na performance e daí a certeza de que essa antologia será um documento, um registro chancelado, mas terá sempre esse caráter de falta, pela perda da dimensão da voz, da entonação − onde se acentuam os pigarros, as ironias, as hesitações – e do gesto, do corpo todo que expressa. A leitura de todos os livros de Patativa, por ordem de publicação, enfatiza a peculiaridade do entrelaçamento dos poemas, que se imbricam, poemas de um livro que se deslocam para outro, onde o que se tem é um único e grande livro onde cada poema é um canto, a sua rapsódia, ao mesmo tempo, pessoal e universal. Como se o poeta, conscientemente, tivesse optado por não fechar cada livro com uma marca ou com um caráter, dando cada um deles uma identidade. Essa seria a lógica da Indústria Cultural. O que não significa que ele não valorize sua produção impressa, não se preocupe em ter todos os seus livros disponíveis para o possível/futuro fruidor ou não se aborreça com os descasos de acabamento ou revisão. Patativa optou pela confusão. E a maneira como embaralha os poemas é representativa de que, em outro contexto, eles assumem outros significados. Sobre cada um deles, passam a incidir outras luzes, e eles projetam outras zonas de sombras. Trata-se da estratégia do caleidoscópio e não de um engodo editorial ou uma maneira de justificar uma possível crise criativa. Poemas ele os tem de sobra, e qualidade é o que não lhe falta. E, organizado e metódico como é, tem a consciência de que sua obra é predominantemente apolínea, embora possa ter sido dionisíaca em alguns momentos. Ele não propôs esse labirinto por acaso. É a esfinge que quer ver o enigma decifrado e não tem prazer em devorar ninguém, mas em seduzir.

Seus poemas se articulam como uma rede, uma imaginária teia ou uma engrenagem em que cada peça cumpre uma finalidade e uma função. Isso se reforça na proposta dessa antologia, que é a de retirar cada poema do contexto em que se articula com o anterior e com o posterior. Trata-se de um desafio, e uma forma de fruição pode ser a leitura ao sabor dos caprichos e conveniências, da curiosidade de cada um de nós, chamados a participar do jogo e a definir suas própria regras. São ecos ou atualizações intuitivas da obra aberta de Eco ou a ideia de que, como está lúcido e ainda atuante, essa antologia possa ser vista como o rascunho de uma obra que não se propõe definitiva, embora seja um clássico, seminal de nossa poesia. Mas afinal a que se propõe esse cânon patativano? A fazer uma seleta, a partir de cada livro, do que na verdade não foi composto para estar em livro. O impresso em Patativa é mais uma necessidade de permanência, visto que, de outro modo, sua obra estaria condenada ao esquecimento. Uma coleta que esclarecesse como ele tratou a relação natureza/cultura nos múltiplos poemas sobre o sertão, compreendidos sob a rubrica de uma produção telúrica (Eu e o sertão) onde não se pode perder de vista uma possível dimensão xamânica, sob o viés do trabalho e da festa, avançando (A terra é naturá) para a urgência de uma inadiável reforma agrária. Que passasse pelo amor, mal realizado, ainda que no plano pessoal ele tenha vivenciado um casamento de 58 anos com dona Belinha. Ele fala brincando que alguns receptores de seus poemas dizem que ele (ou o seu sujeito poético) não teve sorte com as mulheres. Que mostrasse sua noção de cidadania, com a poesia militante de quem não se omitiu nos principais momentos da vida brasileira, como no período autoritário, em que colaborou com jornais da UNE e com a imprensa nanica ou alternativa ou se engajou na luta pela Anistia, na campanha pelas Diretas-Já e

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na denúncia às mazelas que resultam no drama do menor abandonado, cantado no poema Menino de Rua. Que evidenciasse um Patativa de bem com a vida, com uma noção muito particular de humor, sutil, e nunca escancarado. Humor que incorpora uma astúcia sertaneja, o código do aparentemente mais fraco, que o cordel passou a chamar de amarelinho. Que reproduzisse à capela o violeiro que ele sempre foi e, nos motes e glosas, continuou a ser pela vida afora. Que não deixasse de lado o poeta de bancada com sua releitura sertaneja das Mil e Uma Noites (no folheto A história de Aladim e a lâmpada maravilhosa). Que elogiasse formas solidárias de convivência superadas pelo progresso em O puxadô de roda e Ingém de ferro e denunciasse o racismo em Vicença e Sofia ou o castigo de mamãe. Enfim, um Patativa único em sua multiplicidade, onde a emissão simultânea da fala cabocla e a observância à norma culta não significasse um antagonismo, mas registros adequados a diferentes enunciações e a um mesmo projeto poético. Patativa que se sustenta na voz, fluida como um curso d’água, a fonte patativana que ele cultivou, como semente e que brotou, vigorosa, de sua Serra de Santana, onde mais de vinte poetas articulam uma polifonia que traz sua marca. Uma poesia compreendida como expressão estética e política, tradicional porque vinda de tempos ancestrais, de camadas remotas e superpostas da memória. Um Patativa que tem aqui neste compêndio um roteiro (possível) de leitura e uma amostra do que é capaz de fazer, onde a poesia atualiza o passado e antecipa o futuro, como profecia, como no dizer do medievalista suíço Paul Zumthor. Uma poesia que se presentifica e passa a ser não apenas o lugar de onde é enunciada, mas um ponto de onde interfere na realidade. Esse é um cânon para ser questionado e, paradoxalmente, é aceito por Patativa que sabe se tratar de um jogo de projeções e oposições, da leitura e do viés de um organizador que faz

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força para se diluir ou se distanciar, mas cuja visão de mundo e da obra patativana fica escancarada em cada poema. Porque é impossível se omitir quando essa escolha ganha concretude, à medida em que os poemas se justapõem e passam a ter um peso, uma densidade e a significar, sob o influxo da organização. Um cânon patativano que lamenta tudo o que se perdeu na voz e não ganhou o estatuto de palavra escrita ou impressa e que ficou por aí, talvez como matriz de outros poemas, de outros cantadores. Uma produção que a memória de Patativa, por mais privilegiada que fosse, não teria condições de abarcar. Uma antologia de Patativa, que não trouxesse, necessariamente, o melhor (e quem teria autoridade ou saberia dizer o que é o melhor?) e sim o mais importante para o olhar do organizador, a partir de um determinado ângulo, nos dias de hoje, e assim constituir um cânon. Uma antologia que, ao mesmo tempo, fosse uma amostragem do que ele enunciou com a voz (às vezes, mediatizada) e do que viveu, de tal forma que os poemas contam, também, sua história, estão inscritos em sua trajetória pessoal não apenas como um recorte do que ele criou, mas como algo que dele emanou, donde a intensidade e o vigor que esse conjunto irradia e atraí, expande e congela, sugere e define. Um cânon que perpassa a discussão do conceito de poesia, desde a função adâmica da palavra ao caos instalado por Babel, incorporando o profético dos oráculos, a litania dos saltérios e as variadas possibilidades das poéticas da voz (glossolalia, mantra, oriki, ponto, aboio, repente e rap). Muito provavelmente, Patativa não se dê conta de que condensa tanta informação e teoria, mas o que ele diz vem do oco do tempo e do agora; de sua Serra de Santana, em Assaré e de lugar nenhum, porque de todos os lugares. O que ele diz é dele e de todos os homens/poetas que vieram antes e que virão depois. Essa a característica de sua poesia que essa antologia tentou captar/capturar e trazer como as


páginas do seu livro (das horas) e da vida, testemunho ou testamento estético e político de um homem que viveu intensamente todos os momentos, sintonizando sua idílica terra com

os centros de decisão, antenado com os grandes temas, intérprete dos que não têm como elevar a voz e dizer as verdades que ele passou a pontear pela vida afora.

Prefácio da “Antologia Poética de Patativa do Assaré”, Fortaleza, Fundação Demócrito Rocha, 2001.

O sertão: Guimarães Rosa e Patativa do Assaré

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ertão é um só, em Cordisburgo, cidade do coração, ou em Assaré, atalho entre os Inhamuns e o Piauí, caminho antigo das boiadas. Isso junta, nas duas pontas de um mesmo laço, Guimarães Rosa e Patativa. O ponto de partida é compreender o sertão não como um recorte geográfico ou uma fronteira demarcada, mas como um espaço mítico, na dimensão do imaginário, onde cada um é capaz de inventar o seu e levá-lo pela vida afora. Chamou-me a atenção a coincidência entre o sertão dentro de mim, de Guimarães Rosa na entrevista a Gunter Lorenz, e o vivo dentro do sertão/ e o sertão dentro de mim, do poema de Patativa. O que intriga pelo fato do poeta pássaro de Assaré, leitor atento, nunca ter incluído Rosa entre os seus autores, na companhia de Camões, dos românticos brasileiros, principalmente do condoreirismo de Castro Alves, do

telúrico de Gonçalves Dias e da tradição recriada por Juvenal Galeno. Guimarães Rosa não faz parte de suas referências, que chegam a Jorge Amado e a Rachel de Queiroz, muito mais porque a escritora fez questão de conhecê-lo e o convidou para uma visita à fazenda Não-me-deixes, em Quixadá, sertão central do Ceará. As afinidades entre Rosa e Patativa passam, curiosamente, pela mesma data de estreia do poeta roceiro cearense e do lançamento do Grande Sertão: Veredas, 1956. O desafio é definir o sertão, conceito amplificado nacionalmente por Euclides da Cunha, a partir do conflito de Canudos, transformado em matéria poética por Patativa, que elogia Antônio Mendes Maciel, o cearense Conselheiro. Espaço de conflagração, sob o signo do sol, onde tudo parece estático, mas onde tudo se move por um passe de mágica: uma palavra/

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signo, um aboio, um grito de agouro de ave ou a litania bodejada pelo beato. Planura quebrada por Serras, além e mais além, e assim por diante. Lajedos de onde brotam mandacarus, cenário de um plano sequência glauberiano, com seus jagunços ou beatos, da Pedra Bonita, do romance social de José Lins do Rego, relido como a heráldica Pedra do Reino armorial de Ariano Suassuna. Sertão que desafia a quem tem olhos para ver, ouvidos para ouvir e faro para perscrutar as armadilhas do quadro, outra vez congelado, que se convulsiona pela passagem hierática de um bando de cangaceiros, de uma cobra que se prepara para o bote ou de uma história de onça que não se conta mais. Pleno na secura, que muitos preferem ao verde, onde tanto podem se erguer altaneiros e bons buritis ou carnaúbas com suas copas que estilizam abanos e nos protegem deste sol causticante. Paisagem que se torna complexa e ganha a conotação de natureza que, para Patativa, como na Idade Média, é um livro que se abre para a compreensão do mundo: O sertão é o livro aberto / Onde lemos o poema / Da mais rica inspiração. Rosa, cidadão do mundo e diplomata de bons ofícios, levava um sertão dentro dele, sertão que Patativa corporifica, depois de tê-lo vivenciado durante os quase setenta anos que trabalhou a terra, revolvendo-a para acolher a semente do poema. Patativa é o sertão, porque, ao contrário de Rosa, optou ou teve de ficar em seu paraíso particular, sua Serra de Santana. Rosa é o sertão visto de fora e querendo ser dentro, tangendo boiadas, anotando tudo em sua caderneta de campo e conversando noites a fio com Miguelão. Escritor/repórter/antropólogo, refazendo o caminho de volta a uma terra que Patativa nunca largou, antes fez o percurso inverso ao se abrir para o mundo quando sua poesia estava legitimada e sua condição de poeta cidadão o habilitava a ampliar sua aldeia. Patativa como o olhar de dentro para dentro. Que não perde, no entanto, a riqueza

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e a diversidade das referências de fora, porque antenado com o mundo e intérprete de um sentimento coletivo. O voltar-se para dentro foi proporcional à necessidade de falar por todos, não isolando o poeta de Assaré no lirismo e enquanto Rosa saiu do elitismo dos gabinetes, dos salões mundanos e das conversações letradas em busca do sertão de suas memórias: algo recôndito, cuja decifração só ele era capaz de fazer. Duas visões de um sertão encantado, que só os iniciados são capazes de compreender e decifrar, e ao qual só esses poucos têm acesso pelo umbral mágico da dimensão poética. Eles se unem, outra vez, pela tradição, Rosa indo buscar, no oco das gerais, quem inventou as estórias, e Patativa atualizando, por meio da voz, a tradição que se acha nos tempos ancestrais. Voz que veio do impacto da leitura do primeiro cordel, da Asa Branca que a mãe cantava e dos repentes de viola a quebrar o silêncio do sertão. Os poemas que Patativa enuncia são de agora e de sempre. Ele, mais que autor, é intérprete de uma comunidade e porta-voz dos excluídos que têm a possibilidade de uma interferência. Poesia política que não se quer panfletária porque reduziria seu impacto e sua importância. Quando Rosa escreve vai buscar na tradição as estruturas arcaizantes, palavras que não estão dicionarizadas, que ele cria com seu sopro de vida e dizem o que outras palavras não conseguem expressar. Patativa ecoa uma fala mítica, relato que dá conta da invenção de tudo. Sua Assaré é um álibi, como o sertão roseano, uma licença poética e uma dilatação espacial, que vai das ribeiras do São Francisco ao riacho dos Bastiões que banha sua cidade. Onde os jagunços do Grande Sertão podem ser os fazendeiros maus que submetem o agregado a regimes de mandonismos ou as elites insensíveis que impedem, até hoje, uma reforma agrária. Onde o combate está sempre anunciado, pelo aguçamento das tensões e onde os amores são sempre infelizes e não poderia ser de outro modo.


O sertão de Patativa é trabalho e luta. Sertão que não se deixa domar, como o boi mandingueiro (Boi Fubá?), o cavalo misterioso do cordel ou o pangaré baixêro que o levava de paletó xadrez e gravata larga, viola em punho, pelas trilhas afora para fazer as cantorias. Território de uma tensão permanente que se instala, apesar das novenas de maio, do ciclo junino e das festas de apartação. Onde o aboio plangente marca o final da tarde, a hora de tanger o gado que trota ao ritmo do martelo agalopado do repente. Patativa propõe uma luta, sem tréguas, entre o pessoal e o solidário, entre o que amealha para si e o que sonha com a construção de um mundo mais justo. Luta contra um inimigo/monstro, bicho de sete cabeças, chamado sistema, com todas as suas iniquidades. O sertão de Rosa é enigmático como uma carta (o Louco?) do Tarô, rito iniciático e lugar de passagem para o mistério com seus códigos de honra, estabelecidos sob a chancela da coragem e determinação, paciência e temperança. Uma valentia presente na poética patativana, como o enfrentamento de um cotidiano de privações, onde heroísmo é sobreviver às provas, sendo a poesia o ajudante mágico que vai contribuir para se chegar à vitória. Valentia que transcende as páginas do Grande Sertão como o grande épico do Brasil profundo, longe dos centros hegemônicos, ponte entre o erudito e a tradição das camadas populares. Honra que se presentifica na dimensão da voz, que prescinde do escrito para se tornar lei, como a poesia de Patativa abre mão da letra para se perfazer no recitativo, na dimensão da performance e só depois, de acordo com Zumthor, se deitar na escrita. Prosa roseana, também marcada pela importância da voz, enunciando um texto para ser dito em voz alta, com a riqueza das entonações pressupostas, das síncopes e aliterações, ao sabor de uma prosódia arrevesada que é música em estado bruto. Patativa acumulando poemas durante mais de vinte e cinco anos até dar a luz a seu

livro, sendo o impresso a possibilidade da permanência e seu veículo a voz, até abandonar a viola que há de passar constrangida / às mãos de outro cantor. Voz fundamental para a compreensão de uma poética que vem de tempos remotos e ganha a dimensão adâmica de nomear o mundo ou dar o recado do morro. Poesia patativana que parte da visualidade, do enquadramento de uma cena para decompô-la e ir montando aos pedaços, camada por camada, como a imagem fotográfica tem por unidade o ponto que se estoura, como a luz de Vidas Secas, sertão sobre o qual se fala e se escreve. Antigo e atual, contemporâneo e arcaico, valores que questionam uma realidade que é metáfora ou a alegoria do real, por meio do emaranhado das palavras que se ordenam ou se confundem, dão voltas, com o sabor peculiar que só elas podem ter: polissemias, achados, como botijas, escondidas no chão ou incrustadas nas paredes de taipa. Rimas e métricas, música e sentido. A tarefa da construção de obras que são marcos, referências míticas, como castelos intransponíveis, fala e cristal, pedra e sonho. Sertão que, além de Rosa e Patativa, João Cabral foi capaz de sintetizar com seu minimalismo, se contrapondo ao barroco, e com a falta, contrabalançando a hipérbole, em nossa educação pela pedra. Sertão que não se confunde com estereótipos porque grau zero de uma fala despida de ideologias, esvaziamento de todo o luxo ou supérfluo para a construção de uma secura despojada do ornamental, onde tudo se ressignifica, tanto em Rosa como em Patativa. Ouróbouros, serpente que engole a si própria, numa proposta para se pensar, antes para se viver, um sertão mais perto do selvagem coração da vida. Espaço indizível, ainda que precisemos de tantas palavras para nomeá-lo, que se configura na concisão de um jardim japonês, com a aparente simplicidade de um ideograma e com a magia das pedras de sal que se derretem antecipando chuvas. O lado do avesso, o que se pode viver, mas não se pode explicar.

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Sertão é lugar sempre igual, sem heroísmo evidente, contraponto da cidade, antagonismo insuperável de quem desafia: Poeta, cantô da rua / Que na cidade nasceu / Cante a cidade que é sua / Que eu canto o sertão que é meu. Delimitação de espaços, demarcação de territórios que não se confundem e que lhe teria dado um mundo cheio de rima e de onde pra toda parte que eu oio / vejo um verso se buli. O crescente fluxo de poemas pode ser lido como um único poema, épico, falando do sol, das condições de vida e de trabalho e também da alegria, das festas, da colheita, de uma vida natural que se contrapõe à tensão da vida urbana. Patativa diz querer viver e morrer no sertão e ter, além do sentimento do mundo, mãos calejadas e pele bronzeada pela quentura, que não se torna idílico porque cenário dos contrastes, síntese de nossa condição humana descarnada, reduzida à essência ou à sociedade sem fronteira da afirmação de Burke. É onde pontifica o vaqueiro, que não tem a ousadia do vaqueiro de Rosa, trabalhador esvaziado de sua condição mítica, desbravador dos caminhos do povoamento do Ceará, do estabelecimento das fazendas que deram origem às vilas. Hoje, um assalariado ou um agregado que mantém, no entanto, a armadura de couro: pernêra, chapéu, gibão, confundindo-se com um personagem de vaquejadas, em sua aparente quietude de silêncios entrecortados pelo aboio e sonhando ser, querido dos fazendêro / do sertão do Ceará e fazendo com gosto os mandado / das fia do meu patrão, em que dá pra ficá maginando

/ que o dono do gado é eu, anulando a possibilidade da contestação. Vaqueiro que campeia o boi que pode se tornar ritual. Folguedo onde a rês é abatida para satisfazer a um capricho, como a Destemida, de Rosa, contada por Joana Xaviel. Como antes se falou do Boi Espácio e do Rabicho da Geralda, que fazem parte de nossa memória ancestral, que se situa no recôndito, onde natureza se confunde com a cultura, e o mundo se faz meio da voz. Espaço onde se constrói uma ética pessoal que se transforma nos códigos de uma cortesia matuta, que insiste em se manter, e é nesse sentido que Patativa atua, como o que dá forma ao costume que passa a ser lei. Vaqueiro que traz sua sina derne menino, como se houvesse predestinação ou rotas traçadas, das quais fosse impossível escapar. Vaqueiro que exalta sua condição sertaneja, contrapondo-as aos valores urbanos, pois eu não invejo dinhêro / nem diproma de dotô. A ideia que fica do vaqueiro de Rosa é o do combatente, que peleja muitas vezes consigo mesmo. Patativa retira do seu vaqueiro esse caráter beligerante e faz com que ele, aparentemente amansado, cumpra um papel ou uma missão de luta contra uma situação que precisa ser modificada. E que a paz possa reinar nesse sertão na eterna expectativa de virar mar, como na prédica de Conselheiro, e que o vaqueiro, personagem de xilogravura e de poema (de cordel), possa aboiar chamando a rês desgarrada ou contendo, metaforicamente, a boiada que ameaça estourar.

Texto apresentado no II Seminário Internacional Guimarães Rosa, PUC, Belo Horizonte (MG), agosto de 2001.

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Brincando de poesia

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arece não haver dúvidas quanto à poesia de Patativa do Assaré ser marcada por forte oralidade. Não apenas por ele ter sido violeiro, mas porque ela existe e se perfaz na dimensão

da voz. Foi essa característica que assegurou sua permanência no longo intervalo (mais de vinte e cinco anos) entre sua criação/enunciação e a chegada ao impresso. A poesia oral traz essas marcas, ecoa pelo espaço mítico do sertão e comunica ao receptor, que não precisa ter domínio dos códigos da escrita. Assim, Patativa foi construindo seu domínio. Sua poesia, nesse sentido, é um marco, fortaleza inexpugnável e imaginária, objeto de divagações poéticas e das loas mais admiráveis, em função de sua força simbólica. Essa poesia foi durante muito tempo embalada pela viola, da qual ele se afastou de vez, em um dia qualquer do final dos anos 50 ou início dos anos 60, do século XX. Encontrar essas marcas do oral no impresso é processo lento e prazeroso. Mas quem teve o privilégio de ouvi-lo sabe que, ditos em voz alta, seus poemas atingem um significado que permanece obscuro na leitura silenciosa e solitária. Patativa, paradoxalmente, escreve para ser ouvido. O livro foi a maneira mais fácil e mais legitimadora de fazer com que seus poemas ganhassem um registro, se fixassem deitados na escrita, mesmo com os riscos de perder parte de sua significação que fica no gesto, na modulação da voz e se vai tecendo até o instante final em que a voz terá cumprido sua função de suporte dessas mensagens. Sua poesia é algo que não se pode conter e se esparrama por este sertão, cujas fronteiras se dilatam, como um leitmotiv ou uma aparente

litania que tem seus altos, cresce e explode no instante final em que se concretiza a epifania. Uma de suas características é essa sintonia com seu ouvinte/receptor ou leitor. Ainda que refinadíssima, a voz de Patativa é natural, no sentido em que não faz questão de se apresentar como cultura e se funde com a natureza, escamoteando essa dimensão da reelaboração e da atualização desse canto ancestral. É como se ele se abstraísse e ocupasse a cena a pequenina patativa, pássaro de mil cantares que, às avessas, materializasse a metáfora e instaurasse a dimensão dessa natureza/cultura que desse à sua poética a mesma propriedade da chuva, do fluir do riacho ou do crescimento inaudível da muda de feijão. Patativa não é pássaro por acaso. Talvez nunca tenha havido uma simbiose tão forte entre pessoa e epíteto. Como se, magicamente, ele se abstraísse de sua condição humana para gorjear poesia. Mas cujo canto traz, de modo contundente, a complexidade das questões filosóficas da dor, da finitude, do amor e da cidadania. Patativa sempre soube dosar sua voz com sua escrita. Fácil imaginá-lo, à noite, depois de um dia inteiro no eito, a passar para o papel os poemas compostos. Ou nas noites ou finais de semana vê-lo dizendo seus poemas em voz alta para a comunidade da Serra de Santana. A escrita de Patativa não foi capaz de trair essa voz, e os impressos que dela se fizeram não reduzem a importância de ouvi- lo de viva voz. Ele se afastou aos poucos da viola e incorporou o instrumento em sua poética, com suas cordas, que, plangentes ou agressivas, o desafiam para serem tocadas. Quando a unha arranha sua escala, ela vibra, ponteia e cavalga no lombo de velhos burros, no caminho de volta das cantorias ajustadas, no reencontro com antigos parceiros e na expectativa do improviso.

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Já no primeiro livro, Inspiração Nordestina, de 1956, quando a decisão de se afastar da viola precisava ser mais bem definida, Patativa já incorporava ao texto alguns motes e glosas, em que pelejava consigo mesmo ou com um suposto rival, em uma contenda surpreendente. Naquele tempo, a ideia de formação de uma comunidade dos poetas da Serra era um sonho, ainda que a ação de Patativa junto ao grupo pudesse antecipar esse desdobramento. Viola que vai pontificar também em Patativa do Assaré - Novos Poemas Comentados, organizado por J. de Figueiredo Filho, em 1970, e em Cante lá que eu canto cá, de 1978. Patativa dava o mote e ele mesmo glosava, nostálgico, talvez, dos tempos em que tinha um contendor e em que essa peleja se fazia, nervosa, junto a espectadores/participantes, cúmplices ou exigentes, sob o calor de aplausos ou muxoxos de desapontamento. Essa reunião e o que ela tinha de único, como comunhão, forma de sociabilidade e festa, precisava ser passada para o papel, com evidentes perdas. Mas estava ali, pontuando cada livro de Patativa, como Ispinho e Fulô, de 1988, um pouco no Balceiro, de 1991, nos Cordéis, de 1993, e também no Aqui tem coisa, de 1994. Nesse momento, já se podia falar na emergência do grupo de poetas camponeses da Serra de Santana. Geraldo Gonçalves de Alencar, sobrinho de Patativa e seu interlocutor mais frequente, havia publicado Suspiros do sertão, em 1982, Clarão da Lua Cheia, em 1985, e Reflexos (sem data). Curioso como Patativa se deu conta da afirmação do sobrinho como poeta, em um episódio no plano da memória em que Patativa, surpreso, lê um poema dele antes de dar a aprovação. Nesse ínterim, Maurício, irmão de Geraldo, Cícero Batista, Manuel Calixto e mais uns quinze que fizeram parte do Balceiro, cujo sub-título Patativa e outros poetas de Assaré já atestava essa efervescência. Mas o preferido de Patativa é Geraldo, amigo e herdeiro da fortuna poética. Patativa o considera seu sucessor, o que é muito significativo das relações de poder

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e da hierarquia que o austero Sinhôzinho, como Patativa é conhecido pela família, instaura de sua cadeira de palhinha, a partir de Assaré. Em 1995, Patativa e Geraldo publicaram o cordel Motes e Glosas, indício de que a relação lúdica com a poesia já se fazia há algum tempo. O volume publicado pela Lira Nordestina, de Juazeiro do Norte, trazia na capa uma xilogravura de José Lourenço, que colocava os dois em volta de uma mesa e era uma coletânea de quinze pelejas a capela. O cordel antecipava uma possibilidade rica de recolhas e de pesquisas de campo. O que instigava era a performance, o momento mesmo do jogo, com suas regras rígidas e sem abrir mão do prazer do risco, do inesperado e da surpresa da glosa a partir da provocação do mote. Isso tudo me intrigou e, estimulado pela curiosidade, pela possibilidade do testemunho e pela expectativa do registro, subi a Serra para ver a brincadeira de perto, em 1999, às vésperas dos noventa anos de Patativa. Esse material foi, primeiramente, aproveitado no artigo publicado pelo caderno especial do jornal O Povo, de Fortaleza, intitulado Poesia como canto de trabalho e de liberdade (edição de 5.03.99). Foi interessante subir a Serra e chegar à casa de Inês, generosamente aberta para um terreiro, bifurcação dos caminhos de terra e onde Patativa se hospeda quando vai ao seu paraíso. Patativa foi comigo, em uma velha caminhonete de aluguel, incômoda, mas intrépida ao subir a estrada carroçável, esburacada pela incidência das chuvas. Depois das apresentações e conversas, um passeio até a casa onde Patativa nasceu, que resiste, com suas paredes de taipa, à passagem dos anos e acolhe Pedim Mariô, seu irmão caçula, e à casa onde ele viveu com dona Belinha e onde hoje mora sua filha Miriam. Na ida e na volta, muitos poemas e insistentes perguntas, inclusive sobre um poço que ele teria ajudado a cavar, metáfora de sua condição de poeta seminal e de mentor desse grupo de poetas da Serra, tributário de sua fonte patativana.


Depois do almoço, uma rede na varanda e a chegada de Geraldo por volta das três da tarde. Era a senha para a preparação do cenário. A mesa retangular de cedro foi posta na sala e, em volta, duas cadeiras. Eu fiquei em uma terceira, ao lado, como observador privilegiado de um instante único. Geraldo chegou com sua caderneta de anotações, Patativa, arrogante, exibia como único aparato sua memória. E o jogo estava iniciado. As regras eram bem claras para eles, acostumados a essas intermináveis pelejas, toda vez que Patativa sobe a Serra, o que ele faz com relativa frequência. Eles se revezavam e quem dava o mote geralmente glosava por último, para deixar o contendor sob pressão temporal e sob o impacto da surpresa, da novidade. Geraldo escrevia suas glosas, sob o olhar compreensivo de Patativa, como que o perdoa por não ter a mesma agilidade. Afinal de contas, Geraldo é o típico poeta de bancada, tímido, pouco performático e cuidadoso na maneira como desenvolve sua estrofe. Patativa tenta fingir, mas desdenha de Geraldo porque faz suas glosas na cabeça e com a rapidez com que estava acostumado em seus tempos de violeiro. Seus versos saem aos jorros e se superpõem, certeiros, na formação da estrofe, como se ele tivesse um armazém de rimas, o controle das tônicas e a dimensão exata da concisão das ideias que fazem parte das regras desse jogo. É uma criação instantânea, como se à provocação ou ao estímulo ele reagisse com a enunciação, fluxo poético que vai além do exercício e supera o virtuoso pela capacidade sempre renovada de surpreender. Sua atitude em relação ao parceiro é professoral, como se precisasse de paciência e compreensão para ver o discípulo crescer e conseguir atingir sua mesma estatura poética. Cuidadoso, Geraldo anota os improvisos do tio e mestre e, assim, vai se constituindo um corpus de valor inestimável porque mostra um Patativa surpreendido em pleno processo criativo, instigado pela encomenda e, muitas vezes,

pelas trapaças do sobrinho. Essas brincadeiras, pela tarde afora, revelam a poesia como jogo e evidenciam um inusitado prazer em poetar. Nesse instante, eles são rivais na busca da rima mais rica, da métrica perfeita, da acentuação adequada e do impacto. Lado a lado, na velha mesa de cedro, são guerreiros de outros combates que escolheram a palavra como arma, acionada com a maestria com que empunham enxadas ou com que aram a terra. É um jogo antigo que se atualiza e pode ser interrompido para um café, com direito a comentários e elogios sobre um verso, a propriedade de uma comparação ou o inusitado de uma armadilha. São rivais na palavra, como diria Jerusa Pires Ferreira, em um jogo marcado por uma ética pessoal e pela observância de códigos de uma cortesia sertaneja. É um jogo sem fim, onde os competidores param pelo prazer de retomá-lo depois e assim por diante. E é um jogo que está registrado em parte por essas cadernetas, material significativo para se compreender a gênese desse processo e daí a ideia de publicar a edição integral desse Ao Pé da Mesa – Motes e Glosas, como um instante privilegiado para a compreensão da criação patativana. Patativa sempre pelejou contra um invisível rival em vários poemas e incorporou à sua poética essa dimensão de se dividir, ele mesmo, em um duplo enunciador, argumentando e contraditando, visando à lógica do poema comprovar alguma hipótese ou ao simples prazer de duelar. São inúmeros os exemplos desse tipo de poema em todos os seus livros, juntamente com a inclusão dos “motes e glosas”, desenvolvidas por ele sozinho, mas esse trabalho, em conjunto com Geraldo, mostra a permanência da oralidade nas regras e modalidades de uma cantoria sem a viola. O desenvolvimento das estrofes chega ao requinte de fazer do mote o pretexto para a tessitura de um soneto, com sua aparente simplicidade de adequação à fôrma, complicadíssimo para se fazer no calor da hora ou para uma peleja como o do Desafio Malcriado, em que, em

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uma espécie de prólogo, Patativa diz: afinei a viola e vou cantar, como se todas as vinte e nove estrofes da peça fossem pontuadas pelas cordas do instrumento que ele rejeitou, colocou em seu Memorial, na cidade de Assaré, mas, vez em quando, lamenta ter abandonado.

Essa brincadeira de poesia não trata apenas de mostrar domínio, mas se inscreve em uma categoria maior de compreender a poesia como contraponto a um universo o qual é possível interferir por meio da palavra cantada ou escrita.

Prefácio do livro “Ao pé da mesa”, São Paulo, Terceira Margem, 2001.

Memórias da cantoria

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ponto de partida é compreender a instância da voz como matriz de matéria poética por excelência e procurar mapear um Patativa violeiro, que depois ganhou o suporte da escrita. Nesse sentido, sua voz é poética, sua poesia é voz, e isso ele tenta escamotear, negando a condição de violeiro, escondendo-se por detrás das cordas, como se a fugacidade da emissão fosse culpada por uma poesia que não resiste ao tempo e ao processo de transmissão, já que transformada por meio dos receptores. Patativa voz pode ser compreendido a partir de um universo marcado pela oralidade em que ele se criou. Histórias que a mãe contava, inclusive uma Asa Branca anônima, da tradição, sobre a qual deve ter-se apoiado a versão de Gonzaga/Teixeira.

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Uma oralidade que se sustentava nas quadras que o pai improvisava, como a que insultava um parente sovina que desentortava prego e vendia cachaça como se fosse vinho do Porto. Um pai que, do ponto de vista de Patativa, já expressava essa veia poética numa simples assinatura em um livro quando admitia ser o possuidor daquele exemplar. Nesse universo de pouco letramento, a iniciação à leitura – por conseguinte o acesso à escrita, por meio do livro de Felisberto de Carvalho – não teria, nos primeiros momentos, maiores consequências, como não teve para a maior parte de seus conterrâneos e contemporâneos. Tanto é que a veia poética manifestou-se no menino que vendeu a ovelha para comprar a viola, por meio de brincadeiras para distrair os Serranos, improvisações de testamentos de Judas, peças orais, sem maiores implicações poéticas, rito iniciático que deveria afinar com o


imaginário da Serra de Santana, onde nasceu e era bem acolhido, como o menino violeiro, ágil no improviso, um deleite, o que justificaria o encantamento do parente Cazuzinha Montoril e a viagem a Belém do Pará, já em função do mavioso de seu canto e de sua performance nas noites sertanejas. Um Patativa chamado para se apresentar em festas de casamento, aniversário, batizado, pontuando o cotidiano com seu comentário poético. A viagem ao Pará foi travessia: a resistência inicial da mãe, o compromisso da volta, o vapor Itapajé, onde teria pintado o sete e a água amazônica se contrapondo ao sertão nordestino, aqui virando mar, nas impressões que ele guardou de uma exuberância hiperbólica. Em Belém, o contato com José Carvalho e o registro precoce em O matuto cearense e o caboclo do Pará, publicado em 1930, de um desafio de Patativa com José Francisco, um violeiro procedente de Juazeiro do Norte, ou de seu confronto com o velho Inácio, um paraibano exilado na amazônia paraense. José Carvalho foi cuidadoso na reprodução dos versos, procedimento adotado pelos folcloristas que fizeram as primeiras recolhas, como Sílvio Romero, Rodrigues de Carvalho, Gustavo Barroso ou Leonardo Mota: — Você que chegou agora do sertão do Ceará Me diga que tal achou a cidade do Pará? — Quando eu entrei no Pará achei a terra maió vivo debaixo de chuva mas pingando de suó. Foi nessa longa viagem de seis meses, que implicou em apresentações nas colônias de nordestinos situadas às margens da via férrea Belém – Bragança, na parceria com Rufino Gavião, violeiro potiguar, e na crisma com o epíteto de Patativa, efetuada por José Carvalho, que Antônio Gonçalves da Silva pôde mostrar seu

domínio da palavra cantada e dar mostras do que faria a seguir por meio da voz. Patativa, na volta, ainda teve tempo de se apresentar nos salões dos Galeno, ainda que nas pesquisas que desenvolvi não tenha encontrado registro dessa apresentação. A visita à casa da rua General Sampaio rendeu a Patativa a possibilidade de encontrar Juvenal e esse encontro é paradigmático de duas atitudes em relação a uma poética com dicção popular: Juvenal buscando recriar um universo de jangadeiros e rendeiras, buscando trabalhar uma fala que não era a sua na proposta romântica de retomada das raízes. Patativa, por outro lado, seria esse povo tendo voz e construindo sua própria poética sem essa visada iluminista dos tutores do povo. Juvenal se baseava, Patativa criava: assim ele sintetiza essas diferenças que não excluem uma afinidade, mas apontam caminhos diferenciados de fazer e de compreender o popular, esse conceito tão complicado, cuja discussão, por si só, ocuparia toda essa fala e mais tempo se tivéssemos para patinar em uma discussão que pode não levar a lugar nenhum. Juvenal e Patativa unem-se na ponta de um romantismo tardio, no caso do poeta de Assaré, que transpunha para os segmentos populares uma possibilidade de trabalhar as tradições, o que foi compreendido por muitos como o reforço de posições conservadoras, do ponto de vista político, daí a opção integralista de Barroso e Cascudo. Posição que é contestada nos anos 60, com o manifesto do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes) e da ênfase nos movimentos populares a reboque de uma vanguarda intelectualizada, o que é tão questionável quanto o apanágio desse nacionalismo romântico popular conservador, que compreendia a tradição como o locus de um conformismo, no dizer de Marilena Chauí, e não do tradicional como ponto de partida para a criação artística importante, transgressora e vanguardista, no ponto de vista do semioticista ucraniano Iuri Lotman.

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Mas estamos ainda no campo da voz que enuncia poesia e profecia, como disse Paul Zumthor. Patativa situa-se neste entrecruzamento de códigos. E voltou para sua Serra de Santana, cumprindo a promessa feita à mãe, casou com Belarmina Cidrão, dona Belinha, em 1936, e foi cuidar das terras que tinha herdado do pai, pequeno proprietário rural, o que talvez ajude a compreender sua atitude de altivez, de quem não teve que se submeter a regimes feudais na relação que não precisou estabelecer com os grandes donos de terras. Patativa, da volta à Serra, no início dos anos 30 até 1955, quando dita seu primeiro livro ao bancário Moacir Mota, filho de Leonardo, na cidade do Crato, por insistência de José Arraes de Alencar, cumpriu uma rotina que implicava em um trabalho solitário no campo, onde se concentrava e fazia poemas que à noite, sob a luz da lamparina, transpunha para o papel. O escrito era uma decorrência, o resultado final de seu processo de criação, longe da luta contra as palavras que travam poetas letrados ou mesmo o poeta de folhetos, chamado de bancada. Patativa bodejava poesia. Dava um jeito de ficar longe dos outros agricultores para poder se concentrar melhor e assim brotava poesia, à medida que trabalhava a terra, na mais íntima integração entre natureza e cultura, aqui entendida como atitudes complementares e nunca como a oposição que se procurou estabelecer. Ele imaginava o poema como se fosse um quadro e depois ia constituindo verso a verso, guardando na memória privilegiada, acumulando como se fossem as camadas da terra. Seu trabalho com a palavra era braçal e ao mesmo tempo elas brotavam como as sementes da terra fértil que ele cultivou até os setenta anos. Mas, enquanto dava forma a essa produção que, de certo modo, foi para o papel – porém ficou mesmo fixada em sua memória –, Patativa se exercitava por meio da viola. Foi talvez o que lhe deu ritmo, agilidade, essa capacidade incrível de esgrimir um verso, de trabalhar as palavras como malabares e de construir um fio, uma trama que se tece à medida que o poema é enunciado.

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Quem conhece Patativa, quem já o viu dizer seus poemas sabe exatamente a importância não apenas da voz, mas do corpo todo que cresce e diz o poema, sabe exatamente o que significa performance e que seu poema escrito ou impresso é apenas um ponto de partida para uma dimensão muito maior que se perfaz quando de sua enunciação. Isso tudo pode ter vindo desse incansável exercício da peleja, da luta não apenas contra um rival, mas contra a palavra, a favor de uma fala inaugural, cosmogônica, que se propõe a explicar o mundo e a inserção do homem no mistério. Daí o convite para seguir Patativa pelas trilhas e veredas sertanejas, acompanhá-lo nos terreiros das fazendas, à noite, saber quem eram seus parceiros – e muita gente passava pela Serra para ter o prazer de conhecê-lo, de pelejar com ele. Reconstituir essas pelejas é tarefa vã ou impossível, mas interessa saber o que restou delas, como residual, matéria prima, estratégia de construção do poema ou como álibi para a tessitura de uma obra. Um Patativa que seguia de paletó verde, com sua gravata larga, em lombo de cavalo, viola em punho, muitas vezes bêbado, o que ele nega, na reconstituição de sua trajetória, rasgando a roupa em cercas de arame farpado, a viola encharcada de água, de acordo com o relato de antigos parceiros. Um Patativa que, segundo ele, interrompia uma peleja para dizer um poema, daí um certo estranhamento que causava, porque as pessoas estavam ali para ver a disputa, para torcer por um dos contendores, neste ofício de lutar com as palavras vindo de tempos imemoriais e que ganhou na Idade Média um palco, umas regras e uma historicidade. O roteiro incluía Assaré, Iguatu, Mombaça, Cedro, Jucás, Saboeiro, Arneiroz, Potengi, Campos Sales e descambava para o Piauí. Cantou com Andorinha, um violeiro da Serra do Quincuncá, sertão de Várzea Alegre: O Andorinha atraía a multidão onde ele cantava, porque a voz era bonita e o baião de viola muito bonito, mas a cantoria dele não tinha sentido não.


Na linhagem que seria posteriormente atribuída a Zé Limeira, cuja existência controvertida Patativa reforça, Andorinha versejava: Eu sou Raimundo Andorinha vivo cumprindo esta sina sou o apito do trem o xoto da gasolina pato velho não anda e canta Quando não chove, neblina Patativa relembra que o povo dizia: Andorinha, você tenha cuidado, velho, que esse menino daqui a alguns anos vai lhe dar trabalho. Ao que Andorinha retrucava: É, tou criando cobra pra me morder... Ficam no campo da memória o dia em que desafiou Miguel, filho de Manoel Passarinho e as cantorias com Antônio Marinho, de São José do Egito, e com o alagoano Vicente Granjeiro Landim. Um grande parceiro foi João Alexandre, alagoano de São João de Ipanema, hoje Ouro Branco, nascido em 1920, que chegou a Juazeiro do Norte aos oito anos, fugindo do bando de Lampião, ouviu falar em Patativa por meio de um cantador cego chamado Zuquinha e foi encontrá-lo na Serra de Santana. Cantou com Patativa de 1948 até quase 1958, quando começou a seca e voltou para Juazeiro do Norte. Morou um tempo na Serra: três anos. Além de cantador, vendia ouro, trocava cavalo, tirava retrato com a mão no saco e a viola a tiracolo. Reclama a co-autoria de Triste Partida, o que desagrada a Patativa que, depois de muita insistência, termina por admitir que ele fez parte da melodia. Sobre Patativa, ele hoje avalia que foi um bom repentista, mas com voz ruim, longe daquele tom de vozeirão, empostado, que os violeiros assumem para agradar as plateias e que fez parte do espetáculo. Diz que Patativa cantava pensando que era um improvisador consciente, que rimava muito bem, muito mais ainda do que escrevendo.

Pega a viola, afina e improvisa em homenagem ao velho amigo: Eu cantei com Patativa Residente em Assaré Lá na Serra de Santana E na fazenda Catolé Só eu compreendi tudo De Patativa o que é Patativa repentista Grande professor de escola Desses que cantam um minuto E todo mundo se consola Foi responsável da rima E foi o baião da viola Patativa relembra o parceiro e admite que levava umas estrofes prontas, recurso chamado de balaio, ainda que não precisasse dessa estratégia, e é capaz de se esforçar para relembrar uma estrofe que fez para o velho companheiro: Esse cara é da raça de um bichinho Que aonde vê lama se esparracha Um que anda com a cabeça baixa E aqui e acolá dá um roncozinho. Quando chove faz grande burburinho E não pode ver porta sem tramela Bate logo o focinho abre ela E os pés das paredes às vezes romba O que faz encontrando sentar tomba E depois de comer vira donzela. O insulto cifrado era adivinhado por alguém da plateia, e se instalava um clima de algazarra, que animava a cantoria. João Alexandre relembra uma estrofe feita por Patativa quando uma prima do poeta de Assaré se interessou pelo amigo e contendor e precisava deixá-lo em situação constrangedora: A família desse João É maior do que a minha Tem um filho caminhando Tem outro que engatinha

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E eu soube que a mulher dele Ficou comendo galinha. Onde o ficar comendo galinha é indício de filho recém-nascido, visto que essa era a dieta das mulheres paridas no sertão. João Alexandre relembra o dia em que a glosa dele terminava assim: Nossa Senhora lhe dê/ tudo quanto deu ao bode, assim desenvolvido por Patativa: Ela querendo bem pode Transformar você também Porque se me fizer um bode Tem você pra querer bem E se der o que deu ao bode Lhe dá o que a cabra tem. Ou como no dia em que um estudante, defronte à livraria Ramiro, no Crato, disse que Patativa era poeta sem o e. A resposta veio incontinenti: Sou poeta de verdade Porque nasci com o dote Pra glosar em qualquer mote Sou filho da soledade Nasci em uma cidade Denominada Assaré E sou glosador de fé Sou da lira sertaneja Sua mãe é quem talvez seja Poeta tirando o é. Esse episódio é transcrito com variações por J. de Figueiredo Filho em Patativa do Assaré – Novos Poemas Comentados, onde o duplo sentido se perfaz na medida que o o de poeta se transforma em u na dicção popular. Outro episódio envolve um negócio com cavalos em Campos Sales, fronteira com o Piauí, onde Patativa assim glosou sobre um cavalo que seria objeto de troca com o animal em que viajava o parceiro João Alexandre: Na marcha é uma teteia Para quem a arte conhece

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Braia que desaparece Nas mãos de quem tem ideia Dando nas rédeas enfreia Encosta no chão a testa Esse meu bom cavalinho Esquipa que desembesta. Complementando com redobrada ironia: Com esse esclarecimento Dessa peça esquipadeira Fui pegando na carteira Pra fazer o pagamento Porém no mesmo momento Gritou-me o velho Moisés: Você não dê cem mil réis Que o cavalo do seu João Das mãos é muito xotão Só é baixeiro dos pés. Anacleto Dias, nascido no sítio Cacimbas, hoje município de Tarrafas, em 1924, mora em Assaré e faz um programa aos domingos na rádio Patativa do Assaré. No campo das relembranças estão as viagens a cavalo, pelos idos de 1937 e 1938, a chegada às casas onde eram ajustadas as cantorias e as histórias e anedotas que eram contadas, também à noite em que Patativa bebeu muito e ficou só criticando o rival, mas a convicção de que o companheiro era ótimo, cantava muito bem, tinha uma palestra excelente e versos tão polidos que o povo admirava. Anacleto diz que cantador é como mercadoria de feira, vai levando sua vida, ainda hoje fazendo cantorias, bebendo sua cachacinha no mercado de Assaré, às segundas-feiras, apesar da pressão alta, e também homenageia Patativa: O Patativa da Serra Grande poeta da gente Dos vultos tão diferentes Que a beleza se encerra Enfrentou mais de uma guerra Com o poeta melhor Derramou muito suor


Na banca da poesia Por isso digo hoje em dia É o poeta maior. Miceno Pereira, nascido em 1937, no sítio Umbuzeiro, distrito de Amaro, em Assaré, é outro que começou a cantar em 1965 e nunca viveu exclusivamente da viola, trabalhando como agricultor nas terras da família. Relembra um Patativa que o incentivava muito e que, quando arranjava uma cantoria, ia até a casa dele e o convidava para ir junto, o que constituía um elogio e um reconhecimento da capacidade do parceiro. Também no capítulo das rememorações, o pagamento é na base da amizade, a referência à cachaça e um olhar distanciado que hoje vê Patativa como alguém que cantava uns gracejos, mas nunca foi de cantar coisas profundas. Nas viagens a cavalo empreendidas, as conversas eram rimadas e brincalhonas, sempre provocando o parceiro pela resposta mais ágil e certeira. É o único dos que conseguem relembrar, de cor, uma estrofe que teria sido dita por Patativa depois de uma cantoria que varou a noite inteira: Eu venho duma brincadeira Lá na casa de seu Pedro E a farra não foi brinquedo Tomei cana a noite inteira Formei a maior touceira Cachaça foi meu café Eu saí do Catolé Todo cheio de aguardente Agora é que tou ciente Que sou irmão do Zezé. O depoimento, de certo modo, contradiz Patativa, que cita a administração Arraes à frente da Prefeitura do Recife (1959/ 1962) como sua última apresentação pública com a viola, em um São João popular, organizado no sítio Trindade, que contou com a participação do poeta/violeiro do Assaré. Convidado para o evento, Patativa ganhou do prefeito uma viola, que hoje faz parte

do acervo do Memorial Patativa, em Assaré, e teria cantado em dupla com outro grande nome do repente, Otacílio Batista. Miceno vai além quando rememora outro improviso de um Patativa na linha do gracejo, que foge da produção mais consequente do poeta de Assaré: Caguei num pé de banana Para um estrume fazer Ele agora vai crescer Sete dias da semana O povo da Umburana Me disse que merda é nojenta Mas a produção aumenta Ele vai safrejar bem Se um cacho vingava cem Vai vingar cento e noventa Patativa desautoriza o depoimento do conterrâneo João Lino, da Serra de Santana, que diz ter aprendido a tocar viola com ele e ter sido seu parceiro em várias cantorias, na qualidade de professor, o que reconhece com uma certa admiração. Enfático, o poeta-pássaro nega esse convívio e a parceria, o que pode se compreender talvez pela necessidade de buscar legitimação com alguém reconhecido e cuja lenda ou legenda paira com a força de um mito, condição conquistada ou amadurecida ao longo de mais de oitenta anos de exercício poético. Mas o certo é que Patativa rejeita a viola como algo menor, do seu ponto de vista e insiste em que nunca fez comércio de sua lira. O que ele talvez não leve em conta é que sua poesia traz as marcas dessa oralidade. É uma poesia para ser dita. Foi elaborada para os recitativos, nas noites da Serra, nos terreiros das casas dos sitiantes, daí ter funcionado como uma palavra/semente, a ponto de contar com mais de vinte poetas em exercício apenas nessa localidade. A poesia de Patativa foi transmitida oralmente, de 1930 a 1955, com fortes vínculos com seu público-receptor. Chega ao livro como uma forma de manutenção desse corpus

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que precisava do suporte primeiro da escrita e depois do recurso às tecnologias de impressão como forma de assegurar uma permanência. Passa a ser a letra versus a voz, e para Patativa assumir a condição de poeta como que implica em rejeitar a fugacidade de uma poesia enunciada, volátil e ao sabor de desvios e interferências entre a emissão e a recepção, entre a instantaneidade da criação e sua fruição. Por isso ele nega a voz como valorização do poeta legitimado, que se volta, ao mesmo tempo, para a norma culta e para a chamada poesia cabocla, que vai da influência camoniana à interferência de um modelo ditado por Catulo da Paixão Cearense ou Zé da Luz. Poesia cabocla essa mais próxima dos códigos da oralidade, da fala, e que ganha no livro de estreia (Inspiração Nordestina) um glossário, atitude ao mesmo tempo valorativa e complacente da parte de seu organizador que elogia e congela, que abre para o dialeto, mas valoriza a norma culta, o que tacitamente pode ser lido como um mecanismo de desqualificação do poeta. Sobre a filiação de Patativa à tradição, pode-se pensar como Umberto Eco, em a Obra Aberta, para quem não é unicamente o aumento da imprevisibilidade que determina o fascínio do discurso poético (1988, p.107). Para Roland Barthes, em O grau zero da escritura, o gesto oral aqui visa a modificar a Natureza, é uma demiurgia; não é uma atitude de consciência, mas um ato de coerção (1989, p.146). Nesse sentido, a poética de Patativa, que foi voz, se apropria de uma tradição, mas a atualiza com as marcas de uma autoria, afastando-se do folclore ao optar pela escrita. Das literaturas orais ele manteria os códigos de recitação, as fórmulas métricas e os protocolos de apresentação, com ou sem a viola. Mas ele não apenas domina o código cujo uso partilha com os ouvintes, ele vai além ao criar, na condição burguesa do autor, de não apenas trabalhar uma produção marcada pelo anonimato e ser um virtuose intérprete ou porta-voz da tradição, mas alguém que dentro deste contexto é

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capaz de atualizar a tradição com a marca ou com a interferência da criação. E essa criação implica numa experiência totalizadora, na mímese como recuperação dessa totalidade. Esse individualismo do autor é sua ânsia de participar, seu desejo de totalidade, e essa insistência em se apresentar como autor vem da pulsão moderna do individualismo, onde a autoria não é apenas o desaguadouro de uma criação, como no cordel, mas a condição de sujeito da elocução. É como se Patativa rejeitasse o oral como um capricho por considerar que esses códigos seriam o elogio ao analfabeto e às estruturas arcaizantes que ele tanto tenta superar quando se mostra como o poeta cidadão que interfere na vida de seu (nosso) povo. E aqui ele supera a dicotomia de um discurso esquerdizante, quando antes já rejeitou a noção de autenticidade dos postulados nacionalistas de direita porque está acima dos rótulos. É onde ecoam as afirmativas de Pound em ABC da Literatura, de que a literatura não existe no vácuo e que os escritores têm uma função social definida, exatamente proporcional à sua competência como escritores (1970, p.36). Ainda de acordo com Pound, podemos encontrar na poética de Patativa a fanopeia, a projeção de uma imagem na retina mental, indo buscar as explicações de como ele cria, do quadro que visualiza e se transforma no poema e da imagem visual que se pretende lançar na imaginação do leitor (idem, p.53). E da melopeia, poesia feita para ser cantada, salmodiada ou entoada (idem, p.61). Patativa passa ao largo dessas discussões teóricas porque o que o interessa é fazer poemas, mas impregnado pela leitura dos poetas românticos brasileiros não perde de vista a crítica ao verso livre, à poesia sem rima ou métrica, marca talvez da importância da voz no contexto de sua produção e dos códigos que teria assimilado em seu fazer. Um Patativa que peleja consigo mesmo, como no poema Curioso e Miudinho, em que dois rivais se confrontam:


C. Quem é você, que alegre se apresenta Com a altura de dois metros e oitenta? M. Onde eu ando me chamam Miudinho, Tudo vejo e decifro em meu caminho. Até a estrofe final, em que se acertam em torno dos paradoxos da política: C. E na campanha quem vitória alcança? M. Quem mais mentira sobre o prato lança. C. Miudinho, obrigado por ser franco Nas eleições eu vou votar em branco. Ou que recorre a essa estrutura/jogo dos dois enunciadores nos poemas Conversa de Matuto, Bertulino e Zé Tingó, na conversa de Parafuso com João Granjêro em No terreiro da choupana e no desafio com o sobrinho Geraldo, que deu origem a Pergunta de moradô e Resposta de patrão, onde cada poeta vive um dos protagonistas da ação poética. Um Patativa que sempre deixou marcas da cantoria mesmo nos poemas impressos, como nos motes que passou a glosar, primeiro sozinho, depois na companhia de Geraldo Gonçalves, com quem faz jogos poéticos na Serra de Santana, em volta de uma mesa de cedro, tardes inteiras, onde cada um se reveza em dar o mote e desenvolver o improviso, o que já resultou em um cordel Motes e Glosas, em várias provocações englobadas pelo livro Balceiro 2 ou do novo livro intitulado Ao pé da mesa. E se a viola já serviu de álibi para um poema onde ele lamenta ter abandonado o instrumento, serve de mote neste torneio poético. O mote é No museu do Patativa, o que antecipa, em termos poéticos, um desfecho de

aposentadoria e de preservação do instrumento abandonado. Geraldo: Patativa já cantou Com a viola de lado Cada verso improvisado A muita gente agradou Sua viola tocou Mas hoje vive cativa Porque o dono se priva De na viola tocá-la No entanto vão colocá-la No Museu do Patativa Patativa: Eu ouço o povo falar Já parece sururu Carregaram meu baú Para no museu botar E a viola de tocar Com a escala ainda viva Ninguém lá não se esquiva Têm revistas, tem jornais Não sei o que querem mais No Museu do Patativa. As marcas da oralidade impregnaram toda sua poética que se sustenta na voz. E, de forma mais clara, esses exemplos se presentificam nas memórias de cantorias, nos poemas que se estruturam em forma de pelejas ou nos jogos que Patativa exercita com Geraldo, na Serra de Santana. Em todos esses instantes, o que prevalece é um Patativa violeiro à capela, que dispensa o instrumento, dentro dele mesmo, como o sertão, e vai compondo pela vida afora.

Texto publicado pela Cult - Revista Brasileira de Literatura, ano V, número 54, São Paulo, páginas 8/13, janeiro de 2002. C E M PATAT I VA

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Folhetos de Patativa do Assaré

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alar de cordel em Patativa do Assaré, este poeta dito popular, diante de nossa necessidade de rótulos, uma voz que ecoa a tradição, atualizando-a, é por demais reducionista. Cordel é tudo o que Patativa faz, no sentido de ressignificar um conjunto de narrativas, um modo de dizer — e não uma fôrma — uma visão de mundo que vem de tempos imemoriais e se liga a um presente, dando conta dos anseios, sonhos e expectativas dos receptores/fruidores. Parece-me inadequado confundir cordel com folheto, produto de uma atividade editorial que se estabeleceu, de modo tardio, no Brasil, chegando ao Nordeste no último quartel do século XIX. O folheto de feira, romance, “foiete”, arrecife, seria uma das formas de expressão do que se convencionou chamar, muito mais recentemente, de literatura de cordel. Mas a questão não se esgotaria aí. O folheto seria uma das formas de veiculação e de suporte desses relatos, a partir da interiorização dos prelos, de um imaginário que veio na bagagem do colonizador e que aqui se adaptou, ganhando não apenas cor local, mas a contribuição fundamental da cantoria, que trouxe a essa manifestação a agilidade do improviso, a rima e a métrica que implicaram na musicalidade como estratégia de memorização. Teria tido, também, a contribuição das etnias indígenas e a herança africana, resultando em um produto que sintetiza nosso sincretismo que não se baseou, evidentemente, na cordialidade, mas na violência e exclusão que repercutem até hoje. Equivocado se falar em cultura autóctone, no genuíno ou no autêntico, em que insistem alguns estudiosos, quando se sabe que a multiculturalidade é uma evidência, e a dinâmica

da cultura implica em um processo de trocas, interpenetrações e “contaminações”, não apenas hoje, com a consolidação da chamada Indústria Cultural, mas desde sempre. O folheto de feira foi o elemento desencadeador do processo poético de Antônio Gonçalves da Silva, nascido a 5 de março de 1909, na Serra de Santana, a 18 km do núcleo urbano de Assaré, distante, por sua vez, 520 km de Fortaleza. Nas relembranças do menino, cego de num olho aos quatro anos, com apenas quatro meses de educação formal e tendo de enfrentar os trabalhos do campo após a morte do pai, quando tinha oito anos, a audição de um folheto foi fundamental para que ele percebesse que também poderia fazer poesia ou que era aquela forma de expressão que ele gostaria de desenvolver. Para efeito de hipótese, diríamos que aquele encantamento do mundo foi a centelha que levou o menino, aos 16 anos, a vender uma ovelha, como beneplácito da mãe, para comprar uma viola. O cordel se instaura aí, na manutenção de uma tradição que ele soube romper no tempo certo. Como ele mesmo disse, em várias entrevistas e em uma precária autobiografia, encomendada pelo organizador de seu livro de estreia, passou a fazer quadrinhas e a se apresentar nos sítios para distrair os Serranos. A viagem ao Pará, em 1928, levado por um parente, funcionou como um rito de iniciação. Lá ele ganhou o epíteto de Patativa, pela maviosidade do seu canto, e foi objeto de capítulo do livro “O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará”, de autoria do cearense José Carvalho de Brito, publicado em 1930. Na viagem de volta, depois de uma breve passagem por Fortaleza, onde conheceu Juve-

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nal Galeno, referência de uma poesia com influências da fala popular, Patativa, que depois passou a assinar do Assaré, retornou às suas terras e à agricultura. Assim, ele compôs quase toda a sua obra, da qual a maior parte se perdeu, na transmissão oral, cantada e recontada que era pelos Serranos, matutos e feirantes do Crato, a cidade onde vendia sua produção e encontrava os amigos com os quais tomava sua cachaça. Insisto na hipótese de que o chamado cordel, tributário do romanceiro indo-europeu, dos trovadores e jograis medievais, esse fundo de histórias que constitui um “corpus” do qual Leandro, Athayde, Camilo, Caboclo e Batista de Sena foram refinados intérpretes e porta-vozes, impregna toda a poética Patativana. Ele compôs sua obra no campo, sol a pino, se afastando dos colegas enquanto imaginava o poema e ia armazenando, verso a verso, para depois passar a limpo, à noite, à luz da lamparina, em sua casa na Serra. A estreia em livro, no ano de 1956, passou pela mediação do rádio. E ainda que o livro tenha legitimado sua produção e contribuído para sua fixação e permanência, vale insistir na importância da voz. Sua poesia é, continua sendo e será oral, e seu grande momento é o da performance, quando o corpo todo expressava o que ele dizia, e o homem de um metro e meio se agigantava, a voz se alteava e os gestos eram eloquentes. Patativa fez da performance seu grande trunfo. Sua poesia não é para ser lida (embora nada impeça que o seja), mas para ser ouvida e, mais que isso, vivenciada. Ele proporcionou esse prazer a muitos, instante mágico, cerimônia, ritual, comunhão mais íntima do poeta com seu público. Violeiro durante algum tempo, se apresentava nos sítios e cidades da região do Cariri, sul do Ceará, e nos estados vizinhos. Mas insiste em que nunca quis fazer comércio de sua lira. E rejeitou os convites, a bacia, onde depositadas as contribuições para os repentistas. Passou a recitar poemas em meio às pelejas, o que

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causou estranhamento e o levou a sair de cena, ainda que tenha incorporado o violeiro, agora à capela. Considerar que o cordel estaria apenas nos folhetos que publicou não daria o alcance da importância de sua produção. O cordel está em todos os seus livros, em todos os seus poemas. Leitor atento dos poetas românticos brasileiros, de Camões, teve no “Tratado de Versificação”, de Olavo Bilac e Guimaraens Passos, paradoxalmente, um modelo que combatia o ideal romântico, um guia/mapa para o que chamaríamos de forma, que, na verdade, se imbrica com o conteúdo perfazendo um todo. Essa síntese é fundamental para uma avaliação de sua importância no contexto da poesia tradicional contemporânea. Aedo sertanejo, Patativa largou a viola, e foi a memória que preservou sua produção. Foi assim que ele ditou o primeiro livro, datilografado pelo filho do folclorista Leonardo Mota. A memória privilegiada faz com que ele saiba de cor todos os seus poemas. No entanto, seu contato com as gráficas, essencial para a edição do folheto, foi fugaz. Juazeiro do Norte passou a ser o grande pólo de “fabricação” de folhetos, a partir do final dos anos 20, com a entrada em cena do editor alagoano José Bernardo da Silva. A princípio, seus folhetos eram impressos no Crato, até que ele pôde adquirir maquinaria e colocar a Tipografia São Francisco como uma referência do folheto brasileiro, o que se acentuou, a partir de 1949, quando adquiriu o acervo de João Martins de Athayde. Em torno da tipografia, gravitavam poetas, outros se iniciavam na velha casa das palavras, depois de passar pela limpeza das aparas, pelo corte do papel, pela composição, montagem da chapas ou impressão. Patativa, em seu sítio, cultivando feijão, milho e algodão, estava longe de toda essa animação. Continuava compondo seus poemas, e o livro de estreia não modificou sua rotina, fundindo natureza e cultura, trabalho intelectual e braçal, razão e emoção.


Passava ao largo de uma movimentação que trazia poetas de fora, como João Ferreira Lima, que cumpria temporada anual em Juazeiro para editar seu Almanaque de Pernambuco. Longe da atividade de José Bernardo, marcada pelo estímulo às vendas, dosagem da redundância com a novidade, atualização do catálogo com a contribuição do gerente, doublé de gravador e poeta Damásio Paula, de Expedito Sebastião da Silva e de Manuel Caboclo, Patativa poetava, embora à margem da atividade editorial. O que faz com que considere menores os poetas ditos de bancada, por ele considerados “escrevinhadores”. Como grande parte de sua produção se perdeu e também não era datada, pode-se falar do folheto “Glosas contra o comunismo”, como seu título mais antigo, dos que foram preservados. Datado de 1946, período em que o Partido Comunista esteve na legalidade, foi feito por encomenda do capelão de Altaneira, cidade vizinha a Assaré, padre David Moreira. Mote O regime comunista É contra a religião Nas folhas de uma revista li um conselho exemplar Que ninguém deve aceitar o regime comunista quem se assinar nessa lista Ficará sem proteção pois a negra escravidão grita ali em altas vozes e além de outras grandes faltas é contra a religião! A encomenda típica refletia os pontos de vista da Igreja Católica e repetia clichês, como “Quem apóia o comunismo / Gosta do Diabo também”, ou “Na doutrina de Lênin / Só reina a imoralidade”, em uma atitude muito diferente do Patativa que, no período autoritário, por encomenda de Dom Hélder Câmara, que mandou um emissário a Assaré, escreveu “O Padre Henrique contra o Dragão da Maldade”, sobre

a morte, com requintes de perversidade, de um sacerdote progressista pelas forças da repressão, em Recife, em plena vigência do Ato Institucional número 5 que instaurou, a partir de dezembro de 1968, um clima de supressão das liberdades individuais, o que denotava coragem do bispo e do poeta. O Padre Antônio Henrique muito jovem e inteligente a 27 de maio foi morto barbaramente no ano 69 da nossa era presente Estava o corpo do padre de faca e bala furado também mostrava ter sido pelo pescoço amarrado provando que antes da morte foi bastante judiado No mato estava seu corpo em situação precária: na região do lugar Cidade Universitária foi morto barbaramente pela fera sanguinária Sob a perspectiva da história de vida, entre os dois instantes, uma consciência política que se aguçou, a referência a Prestes, em um poema que ele mesmo censurou, a ordem de prisão emitida pelos ditadores de plantão, em 1967, por conta de seu “Poeta Roceiro”, e a colaboração com jornais alternativos, desde o da UNE, na década de 60, ao Movimento, já no Governo Geisel (1975/ 1978). Patativa teve publicado, como folheto, a letra de “Triste Partida”, sua estreia em disco, acontecida em 1964, interpretada por Luiz Gonzaga, que ouviu no rádio um violeiro cantando aquela toada dolente. Passou-se setembro outubro e novembro

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estamos em dezembro meu Deus que é de nós? Assim diz o pobre do seco Nordeste com medo da peste e da fome feroz Também foi editado como folheto o poema “O Vaqueiro”, depois musicado com o título de “Sina”, por Fagner, em 1972, onde a autoria era atribuída a esse intérprete e a seu parceiro Ricardo Bezerra.

Eu venho dêrne menino Dêrne munto pequenino cumprindo o mermo destino que me deu Nosso Sinhô eu nasci pra sê vaquêro sou mais feliz brasilêro eu não invejo dinhêro Nem diproma de doto Patativa, em entrevista concedida, em 1999, admite ter feito presente a José Bernardo de alguns folhetos, como “Abílio e o Cachorro Jupi” e “Aladim e a lâmpada maravilhosa”. Os dois títulos constavam do catálogo da Tipografia São Francisco, depois Lira Nordestina. Abílio teria sido elaborado a partir de um texto que Patativa leu e do qual guardou alguns vestígios. Trata-se de uma narrativa com elementos do maravilhoso, segundo Propp: Vizinho a uma cidade residia um cidadão de alma fervorosa e justa e um sincero coração tendo 3 filhos consigo Abílio, Grigório e João O preferido e o único de bom procedimento ganha um cão fiel: O padre da freguesia era de Abílio o padrinho

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um dia lhe fez presente dum mimoso cachorrinho dali em diante o menino nunca mais andou sozinho Os irmãos, como no episódio bíblico de José, preparam uma emboscada: Convidou um dia João o seu único camarada pra nas matas com Abílio fingirem uma caçada e darem fim ao pequeno por meio duma cilada Abílio experimenta a vida selvagem, longe da civilização, em um contexto mítico que remete a outras histórias: Fazia mais de três anos que aquele pobre inditoso habitava aquelas brenhas num estado lastimoso era de Nossa Senhora um devoto fervoroso A mediação da Virgem se dá pela inscrição na gruta: Abílio deixa esta vida onde sofreste bastante sem conforto e sem guarida já é tempo de gozares a liberdade querida Some-se a este enredo, a proteção do cão, a velha provedora, o casamento, a herança, o reencontro com os irmãos, a morte de Jupi e o final feliz. “Aladim e a lâmpada maravilhosa” recria o episódio das Mil e Uma Noites com uma competência poética que evidencia também o gênio de Patativa (e não apenas o gênio da lâmpada). Essa lâmpada tinha um gênio que obedecia a ela


aparecia vexado quando se apertava nela pronto para obedecer a quem fosse dono dela Revisita sertaneja das narrativas de Scheerazade, o folheto de Patativa pode ser inscrito como um clássico e evidencia a circularidade da cultura e a importância dos relatos que constavam de livros aos quais ele teve acesso. A figura do diabo para Patativa não vem carregada da hipérbole e do caráter maniqueísta da maioria dos folhetos. Em “Brosogó, Militão e o Diabo”, relato de um homem que, depois de ter acendido velas para todos os santos, resolve ir além no seu ritual: Disse consigo: o Diabo merece vela também se ele nunca me tentou para ofender ninguém com certeza me respeita está me fazendo o bem O diabo volta no final para, travestido de advogado, salvar a personagem, vítima de um argumento falacioso, de uma enrascada: um certo Militão queria extorquir Brosogó, por conta de uns ovos que havia emprestado e queria cobrar a fatura a partir dos pintos que deveriam ter sido gerados. O Diabo veio com argumentos irrespondíveis, falando, metafórica e mentirosamente, de um feijão cozido que teria servido de semente para a agricultura. Desmascarado o vilão e livre no final, Brosogó agradece, e o Diabo se explica: Eu sou o diabo a quem chamam de monstro ruim e só você neste mundo teve a bondade sem fim de um dia queimar três velas oferecidas a mim. Ironicamente, o desfecho é surpreendente quando diz:

pois toda história de diabo tem um pipôco no fim... Em “O Diabo Tolo”, folheto que se extraviou, o anjo decaído era logrado, o que constitui o que alguns autores consideram um ciclo na literatura popular em versos. “Sofia e Vicença ou o Castigo de Mamãe” é um libelo anti-racista. O protagonista diz: Eu sou branco quage loro mas no prêmero namoro com a santa proteção da Divina Providença eu casei com a Vicença preta da cô de carvão. O irmão José, obediente ao racismo da mãe, casa com Sofia, que lhe põe chifres, e o epílogo é esclarecedor: Neste mundo de vaidade critéro, honra e bondade não tem nada com a cô eu morro falando franco tanto o preto como o branco pertence a Nosso Senhô. “João Mole” também desmonta estereótipos, como o machismo, tão arraigado à cultura brasileira: Na Paraíba do Norte junto à Ribeira do Poço morava um tal João Mole, sadio, robusto e moço mas de apanhar de mulher Já estava de couro grosso Resolve mudar de vida quando anuncia: De hoje em diante eu não apanho fui paciente até hoje d’agora em diante eu me assanho, é desgraçado o carneiro

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que não governa o rebanho Depois de bater na mulher e na sogra, o que não condiz com os códigos de uma cortesia sertaneja, volta a reforçar a construção ideológica do macho triunfante, João Mole Mudou no seu nome e entrou no grupo de Lampião O alcance da poesia social de Patativa se amplia quando se refere à natureza. É assim no “ABC do Nordeste Flagelado”, em que, recorrendo à modalidade em que cada estrofe começa por uma letra, denuncia a situação de penúria da região nordestina. A- Ai como é duro viver Nos estados do Nordeste quando o nosso Pai Celeste não manda a nuvem chover é bem triste a gente ver findar o mês de janeiro depois findar fevereiro e março também passar sem o inverno começar no Nordeste brasileiro Em “Emigração”, feito de encomenda para Stênio Diniz, integrando sua participação na XXII Bienal Internacional de São Paulo, Patativa revisita a “Triste Partida”, ainda mais carregado nas tintas: O carro corre apressado e lá no sul faz “desejo” deixando desabrigado o flagelado cortejo que procurando socorro uns vão viver pelo morro um padecer sem desconte outros pobres infelizes se abrigam pelas marquises outros debaixo da ponte “Doutor Raiz” surpreende pela contundên-

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cia com que mostra o raizeiro preparando as beberagens que vai vender na feira: Depois que a panela ferve com aquela misturada ele enche aquilo tudo dois costais de garrafada bota uma carga num jegue viaja de madrugada E segue-se uma relação de doenças que a medicina caseira promete curar: Cura a congestão e o impaludismo o reumatismo e constipação mal do coração tontice e cegueira febre e batedeira e dor de barriga curuba, bexiga sarampo e papeira Patativa é cruel com o raizeiro, o que parece contradizer sua relação com a natureza: sempre o fim de quem toma é morrer intoxicado E conclui: fujo do Doutor Raiz como o cão foge da cruz o rato foge do gato e as trevas fogem da luz Nem mesmo brincando não dou atenção a tal charlatão que vive enganando e ainda eu me achando com o boca torta e uma perna morta se tal raizeiro chegar no terreiro


eu bato-lhe a porta A questão que ele coloca é de ordem ética: a denúncia da charlatanice, como discurso da ordem médica e não a negação do poder curativo das plantas. Já “O Meu Livro” é uma verdadeira ode à natureza, onde a personagem Chico Braúna aprendeu a ler de uma forma diferente: ABC nem beabá no meu livro não se encerra O meu livro é natura é o má, o céu e a terra cum a sua imensidade. Livro cheio de verdade da beleza e de primô, tudo incadernado, iscrito pelo pudê infinito do nosso Pai criado Mostrando sua relação íntima com a natureza, Patataiva revela um Deus em tudo, que é próprio de sua noção de sagrado, menos ligado à instituição eclesiástica e relacionando-se com Deus, sem mediações: O meu livro é todo cheio de muita coisa incelente em sua foia é que leio o pudê do Onipotente. Alguns folhetos de Patativa se perderam, além do “Diabo Tolo”, “O Crime de Cariús”, acontecido em 1942, nesta cidade do Cariri cearense, objeto de uma encomenda pela família Gomes de Matos, à qual pertencia a vítima, o Dr. Carlos, farmacêutico, morto por pistoleiros, a mando de um colega e concorrente no exercício da profissão. Patativa assinou com pseudônimo. A família Gomes de Matos não tem um exemplar sequer, sessenta anos depois, e a prova de que o folheto existiu é de que está listado no Dicionário Biobibliográfico dos Repentistas e Poetas de Bancada, de Átila de Almeida e José Alves

Sobrinho. Mesma fonte que se refere a outro folheto extraviado intitulado “O Vício da Embriaguez”. “A Morte de Artur Pereira”, relato de uma filha que matou o pai envenenado, no município cearense de Arneiroz, provocada pela oposição a um casamento, pertence à categoria dos folhetos sumidos. “Presente Agradável” foi um folheto que azedou as relações do poeta com sua cidade natal. Ele bendiz o fato dele ter-se perdido: “Eu acho é bom que não exista porque eu dou um ataque tão grande no Assaré...”. E relembra alguns fragmentos: De onde vem tão flagelado? Pois está me parecendo que foste martirizado se dessa forma vieste De toda corte celeste receberás uma palma Pois aqui sou o porteiro fico muito prazenteiro quando recebo uma alma Quando eu lhe disse Que era do Assaré um habitante Ele me suspirou dizendo: Tem padecido bastante Mas sei que serás aceito Nesta santa residência Por Jesus de Nazaré Pois ser filho de Assaré Já é uma penitência. O último folheto publicado por Patativa narra seu encontro com a alma de Zé Limeira no céu. Patativa desconversa quando questionado sobre este violeiro que não tem historicidade comprovada. Diz que o viu de costas, de longe, conheceu alguém que cantou com ele. Parece que, por trás de tudo, existe um laço afetivo dele com Orlando Tejo, a quem interessa manter viva essa polêmica. Mas o folheto, na verdade, serve para o exercício virtuoso de Patativa que escreve nos moldes da surreal e desconcer-

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tante personagem. A produção de folhetos de Patativa é desproporcional ao volume e à importância de sua obra. Mas como foi dito no início, tudo é cordel, superando o barbante, marcado pelo eco da tradição que ele atualiza quando fala de reforma agrária, televisão, meninos de rua, supera a tradição e promove uma ruptu-

ra, ao mesmo tempo que, dialeticamente, a mantém. O imaginário na produção de folhetos de Patativa se apresenta em um espectro que vai do maravilhoso ao gracejo, do paródico ao jornalístico, sendo político mesmo quando fala de amor, na consecução de uma poesia militante, sem perda da qualidade estética.

Depois da escrita desse ensaio, em 2000, foi localizada uma cópia do folheto “O Crime de Cariús”, na biblioteca do bibliófilo Tomás Pompeu Gomes de Matos, que, gentilmente, a emprestou para ser copiada e fazer parte do livro “Patativa do Assaré - Pássaro Liberto”, editado pelo Museu do Ceará, em 2002.

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Obra sempre cantou o mundo acima de rótulos

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or que em meio a tantos poetas violeiros e poetas populares Patativa do Assaré se destacou e se tornou referência? Por que tantos passaram e ele ficou? Na maior parte de seu tempo, Patativa esteve na Serra de Santana, a dezoito quilômetros do Assaré, onde nasceu e que considerava seu paraíso particular. Tomou conhecimento da poesia pela tradição oral, ouvindo um cordel. Aquilo calou fundo. Aos quatro, perdeu um olho, o que deve ter aguçado sua compreensão do mundo. Estudou quatro meses numa escola formal e passou a ler pelo resto da vida, até a década de noventa, quando cegou de vez. Por que Patativa vai ficar? Por ter trabalhado com afinco e determinação, não para construir uma carreira, mas pela necessidade de dizer o mundo. Aos dezesseis anos, veio a viola que lhe deu a agilidade do improviso e ecoa na musicalidade de seus poemas. Passou a fazer versos para distrair os Serranos. E desde 1930, chamou a atenção de José Carvalho de Brito, que incluiu o artigo O Patativa no livro O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará (Gráfica do Jornal de Belém), levado que foi à Amazônia por um parente encantado com a maviosidade de seu canto. Na volta, o trabalho do campo, no eito, cultivando os poucos hectares herdados do pai. E construiu-se a trajetória do violeiro que nunca fez comércio de sua lira: viagens em lombo de burro, apresentações com vários parceiros e os aplausos. Longe dos holofotes, durante vinte e cinco anos ele elaborou sua obra. Na roça, isolava-se para compor poesia. A memória privilegiada ajudava. Visualizado o

quadro, composto o poema, passava à limpo à noite, à luz de lamparinas. Muito do que ele criou perdeu-se na voragem do tempo. As palavras ditas, apesar de fortes, se diluem. Ficou o escrito, depois impresso, sempre marcado por forte oralidade. Seus poemas, recitados durante as cantorias, circulavam sertão adentro. Assim começou a sedimentação do mito. Patativa como um aedo, herdeiro da linhagem de Homero, fez da poesia um canto de trabalho e de liberdade. Poemas que animavam as noites sertanejas, com a força deste performer, intérprete e porta-voz. Assim se tecia a obra de Patativa. Até o dia em que, indo à feira do Crato, passou a dizer seus poemas na rádio Araripe, no programa de Teresinha Siebra. José Arraes de Alencar ouviu e teve a ideia de publicar um livro. Moacir, filho do folclorista Leonardo Mota, ficou encarregado de datilografar os poemas. Foi a gênese da Inspiração Nordestina (1956), semente de uma obra essencial. Em livro, podia ser lido e relido, mas a força de sua poesia vinha de uma oralidade que se perfaz quando é enunciada e de ser escrita para ser lida em voz alta. Depois foi o disco: Luiz Gonzaga gravou sua Triste Partida, em 1964. Patativa continuou na Serra, mesmo depois de ter publicado outros livros, gravado discos, sido homenageado pela SBPC (1979), participado da campanha pela Anistia, das Diretas-Já. Quando se mudou para a cidade, já tinha setenta anos e era uma referência. Disputado pela esquerda, que via nele a resistência, e pela direita, que recuperava antigos folhetos (Glosas

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contra o comunismo) e tentava vendê-lo como mantenedor das tradições. Patativa sempre foi mais que isso, esteve acima dos rótulos e desorientava as dicotomias. Sempre pensou maior. Da sua aldeia, ele cantou o mundo e o fez com a leveza do pássaro que lhe serviu de epíteto e com a contundência de quem foi capaz de se indignar e interferir por meio do verso feito arma. Sua poesia social nunca foi militante, no sentido do panfleto político, mas uma poesia cidadã, enunciada por uma voz que parte da ancestralidade para atualizá-la. Daí a sua importância. Por isso ele vai permanecer, porque nunca quis ser anedótico e, quando fala de algo presente (reforma agrária, televisão, meninos de rua), trata o cotidiano com a grandeza do épico e a eternidade de um clássico. Sua voz veio do oco do tempo e ecoará en-

quanto a poesia for necessária: sempre. Seus versos brotavam da terra como frutos, superando a dicotomia entre natureza e cultura. Como disse um semioticista ucraniano (Lotman), toda obra inovadora é elaborada com um material tradicional”. Patativa fez essa síntese. A mídia o cercou com insistência. A academia aos poucos se abre para sua contribuição. E sua fruição vai das camadas subalternas à intelectualidade. Impressionante sua dignidade, sua altivez e sua ética sertaneja, marcada por códigos rígidos como lealdade e coerência e, ao mesmo tempo, pela generosidade e compaixão. Lê-lo é importante, mas dá uma pálida ideia do que significava ouvi-lo, não por meio de registros sonoros, mas de viva voz, onde o corpo franzino se agigantava e sua gesticulação fazia dele não o poeta, mas a poesia.

Publicado na Folha de S. Paulo, Ilustrada, página E45, dia 10 de julho de 2002.

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O crime de Cariús Cordel gentilmente cedido pelo bibliófilo Dr. Thomaz Pompeu Gomes de Matos Eu sou um poeta nato Versejar é o meu ofício Gosto da sinceridade Versejo em sacrifício Sou filho de Pernambuco Desta terra de Maurício Mas como nunca estudei E moro na solidade Sem nunca dar os meus versos A luz da publicidade Ninguém conhece o meu nome Dentro da sociedade Porém a história de um crime Vou narrar publicamente Passou-se em 42 Da nossa era presente Na vila de Cariús Ao Ceará pretendente Portanto peço licença Aos leitores mais sensatos Que quero contar a todos Em meus versinhos exatos Como se deu a morte De Carlos Gomes de Matos Esse ilustre farmacêutico Que hoje a glória está Teve como berço o Crato Nasceu e criou-se lá Descendendo das melhores Famílias do Ceará De Pedro Gomes de Matos E a senhora Josefina Nasceu esse bom senhor O qual teve a triste sina De morrer barbaramente Por uma fera assassina

No rol da sociedade Vivia alegre e ditoso Branco, preto, rico e pobre O chamavam de bondoso Pois além de competente Era muito caridoso Dentro de sua farmácia Trabalhava o dia inteiro O seu negócio gozava De um conceito verdadeiro Na praça do Ceará Recife e Rio de Janeiro Era casado e a esposa Dona Emília Mussalem O amava com fervor

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Que uma santa esposa tem Porém o diabo não folga Quando um casal vive bem Diz-nos um velho rifão: Quem é bom não vive em paz, Quando a fortuna nos chega A miséria vem atrás E não há quem esteja livre Dos laços de Satanás O Doutor Nelson Carreira Paraibano infiel Estabeleceu-se no Crato Com seu destino cruel E praticou contra Carlos O mais horrível papel Esse orgulhoso Doutor Tipo de perversidade Saiu lá da Paraíba Por causa de inimizade E veio então para o Crato Desacatar a cidade Com dois anos que o tal médico Se achava no Cariri Já era antipatizado Por muita gente dali Segundo as informações Que em vários jornais eu li Sempre onde ele conversava Seu assunto era questão Pelo que logo notamos Seu perverso coração Talvez até tenha sido Do bando do Lampião Gabava-se de valete Apesar de muito fraco Parece que a natureza Ocultou naquele saco O orgulho do peru E a trapaça do macaco

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Em Crato ele começou Mostrando grosseiros atos Falando contra a Farmácia De Carlos Gomes de Matos E surgiu deste motivo O maior dos desacatos Certa vez Nelson Carreira Receitando um sertanejo Valeu-se da falsidade E aproveitou o ensejo Para assim satisfazer Seu satânico desejo E depois do exame feito E a receita escriturada Entregou-a a um cliente Porém com ordem passada Pra na Farmácia de Carlos A mesma ser aviada Disse mais ao sertanejo Que quando se despachasse Novamente ao gabinete Com o remédio voltasse Pois sem o examinar Não convinha que tomasse Foi o matuto à farmácia Com a receita na mão E Carlos Gomes de Matos Que não pensava em traição Despachou tal receita Com a devida atenção Com o remédio legal O bom camponês voltou Chegando ao gabinete Ao Doutor entregou E este pegando o remédio Falsamente o revistou Logo depois de ter feito A falsa examinação Disse ali publicamente


Com ares de sabichão Que Carlos havia errado Sua manipulação E para melhor completar O papel de traiçoeiro Ordenou que o cliente Fosse à farmácia ligeiro Devolvesse o tal remédio E procurasse o dinheiro O matuto admirou-se Daquele mandado tal Porque Carlos sempre foi Farmacêutico especial De nome bem conhecido Do sertão à capital Mas contudo foi depressa O remédio devolver Porém o bom farmacêutico Se recusou a receber E saiu com o sertanejo Para a questão resolver Chegando ao consultório Depois de uma saudação Disse: Doutor, por favor, Faça-me uma declaração. Em que consiste o meu erro Nesta manipulação? Carlos fez a pergunta Com o sertanejo ao seu lado O doutor Nelson ficou Um tanto sobressaltado E negou cinicamente O que antes havia afirmado Porém o matuto ouvindo Atalhou com certo tédio: Doutor o senhor me disse Aqui mesmo nesse prédio Que o Doutor Carlos errara No despachar do remédio

Disse Carlos: Doutor Nelson, Isso não lhe fica bem Rebaixar minha farmácia Que tanto critério tem E da qual até o presente Nunca se queixou de ninguém Disse o doutor: De hoje em diante Em fiscal vou me tornar Para a sua farmácia Eu mesmo fiscalizar Farmacêutico de hoje em diante Comigo vai se apertar Carlos com muita razão Replicou ao atrevido: Sendo assim eu também tenho O meu direito devido De fiscalizar os erros Que o senhor tem cometido O primeiro destes erros Causou a pior impressão O senhor em minha prima Aplicou uma injeção Contra a receita e a ordem Do senhor doutor Leão Maria Gomes de Matos A minha prima, a doente, Morreu depois da injeção Quase repentinamente E o doutor querendo eu dou Do fato a prova evidente Sabendo o doutor que Carlos Justa verdade dizia Se enfureceu de tal modo Que o corpo todo tremia Como cão raivoso sofrendo O choque da hidrofobia Enrubeceu-se de raiva Mudou logo de feição Pois nunca soube o que fosse

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O valor da educação E vibrou afoitamente Em Carlos um bofetão Pois aquele astuto médico Do coração de chacal Estudou porém não Obedeceu à moral Nele só reina o instinto Da natureza brutal O farmacêutico tombou Com a grande bofetada E saiu do consultório Sem ao doutor dizer nada Suportando a dor secreta Da sua honra ultrajada Ocultou consigo a mágoa Nunca se queixou a ninguém Mas nele s lia um quê De quem não se sente bem Demonstrando as qualidades Que o criterioso tem Do que fez o doutor Nelson Logo se espalhou a notícia E este orgulhoso crescendo Cada vez mais a malícia Trazia a casa guardada Por soldados da Polícia E além daqueles soldados Vigiando o seu abrigo Arranjou quatro capangas Que andavam sempre consigo Como se estivesse exposto Ao mais tremendo perigo Aquilo mais aumentou Sua grande antipatia Rodeando por capangas O pessoal sempre o via De cada lado um revólver O bandoleiro trazia E Carlos Gomes de Matos Nem sequer tinha a lembrança 190

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De procurar o patife E tomar uma vingança Pois sempre foi uma pessoa Modesta, sensata e mansa Mas um dia por acaso Aquele honrado senhor Numa das ruas do Crato Encontrando o tal doutor Sentiu magoar-se a ferida Dentro do seu pundonor De tomar uma vingança Chegou-lhe um certo desejo E sacando do revólver Fez com o mesmo um manejo Indo uma bala alojar-se No corpo do malfazejo Carlos sustou a arma Pois matá-lo não queria, Notando em seu inimigo O cúmulo da covardia, Pois nem sequer pegou num Dos revólveres que trazia Vendo o doutor que os capangas Não vieram lhe valer Valeu-se das grossas pernas Pensando que ia morrer Como quem diz: um Carreira Pode muito bem correr! E assim que chegou em casa O famoso valentão Mandou um carro a Barbalha Buscar o doutor Leão Pois os doutores do Crato Nenhum lhe dava atenção O doutor Leão Sampaio Que em medicina é o tal Chegando a fazer o exame E terminou afinal Garantindo ao doutor Nelson Não ser o tiro mortal


Este sabendo que o tiro Não lhe causaria morte E conhecendo que em Crato A coisa não dava sorte Voltou para sua terra A Paraíba do Norte Voltou mas deixou em Crato Lembrança pra vida inteira: Além dos mais desacatos Deu um bolo de primeira De umas dezenas de contos No cofre da padroeira Deixemos o doutor Nelson Em sua terra natal, Urdindo tramas e tramas Atrás de fazer o mal, E vamos falar de Carlos Sobre o seu crime animal Após aquele ocorrido Carlos sendo interrogado Disse que no doutor Nelson Havia mesmo atirado E conforme manda a lei Foi o mesmo processado Não obstante ele ter A sua clara razão Pois baleou o doutor Em paga do bofetão Foi condenado a um ano E dois meses de prisão O doutor Nelson Carreira De tudo teve certeza Porém sempre o perseguia Com desmedida fereza Como o lobo sanguinário Que anda à procura da presa Certa vez Carlos se achava No estado de Goiás E quando pensou que ali Estava vivendo em paz

Notou que um cabra o seguia Bem de longe por detrás Aonde fosse o farmacêutico O cabra sempre o seguia E Carlos Gomes de Matos Por sua vez já sabia Que aquilo era um assassino Que o doutor lhe remetia Saiu então de Goiás Mudando assim o seu plano Porém sempre perseguido Do doutor paraibano Era qual sombra maldita Na pista do corpo humano Mas Carlos que só temia O grande poder de Deus Foi com a sua farmácia Com os bons produtos seus Pra vila de Cariús Município de São Mateus E então no Ceará Seu lindo berço querido Na vila de Cariús Se achava estabelecido No mesmo lugar onde outrora Carlos já tinha vivido E enquanto ele ia exercendo Sua honrada profissão O Nelson continuava Na mesma convicção Agredindo-o no Iguatu De uma arma exposta na mão Falava a um e a outro Oferecendo dinheiro Para matar o farmacêutico Homem justo e verdadeiro Que sempre deu boas provas De um honrado brasileiro Pois o tal doutor Carreira Da covardia é escravo

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Mas pra mandar matar É astuto, fino, bravo Capaz de tirar do cofre O derradeiro centavo Certo dia lembrou-se De um velho camarada Celso Holanda Montenegro, Alma perversa e malvada Que para maior defeito Tem uma perna amputada Celso Holanda Montenegro, Posso ao leitor afirmar, É um cearense injusto De falsidade sem par Tem as mesmas qualidades De Domingos Calabar Então o doutor Carreira Encontrando o seu amigo Disse: Um grande negócio Eu quero fazer consigo Boa soma dar-lhe-ei Pra matar meu inimigo E quando você o matar Tomando a minha vingança Procure se despistar Com a maior segurança De modo que do ocorrido Não haja desconfiança Celso aceitou de bom grado A proposta do doutor Pois é pior do que Judas, Infiel e traidor E a fim de arranjar dinheiro Nega a alma ao Criador Este monstro sem critério, Mentiroso e imprudente, Tem as manhas do Dragão, A peçonha da serpente Se existe tal cão-coxo É aquele certamente

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Morando na mesma vila Que o farmacêutico morava Com ele todos os dias Sempre se comunicava E Carlos tão inocente Té injeções lhe aplicava Celso procurava um meio De executar a traição E pra melhor despistar Travou essa relação Com um sorriso nos lábios E o diabo no coração Mas aquele infame hipócrita Não dispondo de coragem Fez um dia a Paraíba Oculto numa viagem À procura de um sujeito Que oferecesse vantagem Foi ver se encontrava um cabra Que tomasse o seu lugar E o papel de assassino Pudesse desempenhar Pois destes na Paraíba É fácil de se encontrar Chegando a Campina Grande Teve uma sorte o bandido De encontrar Antônio Freire A quem julgou destemido Proprietário de carros E muito seu conhecido Disse Celso: Antônio Freire Tu és disposto, é exato Portanto eu hoje desejo Fazer contigo um contrato Trata-se da execução De um oculto assassinato Respondeu Antônio Freire Que a tanto não se atrevia Porém podia arranjar Um cabra que lhe servia


Celso aceitou a oferta E voltou no outro dia Domingos Aquino, o cabra Que com Nelson contratou No carro de Antônio Freire Logo depois viajou E chegando a Cariús Montenegro o ocultou Sob a direção de Celso Ficou a fera escondida Atrás de roubar de Carlos Sua preciosa vida Mas não podendo alvejá-lo Deu a viagem perdida Mas contudo Montenegro Não mudou o plano seu Procurou Antônio Freire E enorme vaia lhe deu Dizendo: É fraco o rapaz Que você me forneceu Mas você há de dar provas De um amigo verdadeiro Arranjando outro rapaz Corajoso e escopeteiro Porém quero que o segundo Não faça como o primeiro Prometi ao doutor Nelson Meu benfeitor e amigo De matar o farmacêutico O seu maior inimigo E venho compartilhar Este negócio contigo Respondeu-lhe Antônio Freire Que seria pontual Arranjando outro sujeito Para a tarefa fatal Traindo desta maneira A quem nunca lhe fez mal Com fim de satisfazer Do Montenegro a vontade

Foi ao tenente Queiroga Com quem mantinha amizade E a este pediu um cabra Para aquela falsidade Em vez de o tenente ter A ele repreendido Foi muito franco e correto Em atender-lhe o pedido Prometendo para o crime Um caboclo destemido Ursulino o tal caboclo Forte, disposto e valente Residia em Bamburral A fazenda do tenente E vivia trabalhando Pobre, miseravelmente O tenente o retirou Da fazenda Bamburral E meteu em suas mãos Um revólver especial Cometendo desta forma Um crime descomunal Este tenente é um membro Da Força Paraibana Porém provou desta vez Dom eloquência soberana Ser um dos entes mais falsos Que já deu a espécie humana Porque sendo autoridade Em vez de ser justiceiro Reparando alguma falta Aconselhando a um terceiro Desonrou a sua farda Na morte de um brasileiro O traidor Antônio Freire Ficou muito satisfeito Quando o tenente Queiroga Apresentou-lhe o sujeito E disse consigo: Este Faz o serviço direito

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Botou-o dentro do carro E viajou pressuroso Pra vila de Cariús Conduzindo o criminoso Pelo qual o Montenegro Já esperava ansioso Celso Holanda Montenegro Fitava o cabra Ursulino Disse consigo: Este cabra Tem jeito de assassino Talvez não faça o que fez O tal Domingos Aquino E então particurlamente Com ele fez o contrato Dizendo-lhe: Se você Fizer o assassinato Dou-lhe quatro mil cruzeiros E fico achando barato Se quer fazer o negócio Seja esperto e vigilante Tome quinhentos cruzeiros Pois não quero ser maçante Depois que fizer o crime Entregarei o restante Ursulino respondeu-lhe Que tal negócio aceitava Porque já fazia meses Que quase nada ganhava E sua pobre família Com fome em casa chorava Depois que Celso Narrou-lhe Tudo tim-tim por tim-tim Foi mostrar-lhe o farmacêutico Com um disfarce sem fim O qual achava encostado Em um fícus benjamin Disse Celso: O farmacêutico É aquele cidadão Olhe bem pro jeito dele

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Faça a identificação E no momento do crime Segure a arma na mão Depois que o cabra Ursulino De tudo teve a certeza Ficou vigiando a vítima Com a maior sutileza Aguardando a hora própria Pra aniquilar sua presa No ano quarenta e dois Da nossa presente era Numa noite de dezembro Aquela assassina fera Por trás de poste se achava Acautelada, de espera A tal noite estava escura Sem alegria e sem graça Como que pressagiando A hora de uma desgraça Bem profunda era a tristeza Reinante naquela praça Lá pelo azul do infinito Nem uma estrela luzia Em tudo a gente notava Um tom de melancolia Parece que revoltada A natureza gemia E Ursulino no seu posto Calmo, frio e sanguinário Esperava cauteloso O momento necessário De executar brutalmente Seu papel de mercenário O farmacêutico passando Justo onde estava a serpente Encontrou ali um homem Que vinha apressadamente À procura de remédio Para seu filho doente


A conversa com o mesmo Um pouco se demorou Então por trás do poste Ursulino aproveitou Essa demora de Carlos E um tiro lhe desfechou Mais dois tiros em seguida Ursulino disparou Ferido sobre a calçada O farmacêutico tombou E o cara no mesmo instante Correndo de retirou Carlos apensar de achar-se Horrivelmente ferido Inda pegou seu revólver Com esforço desmedido E atirou na direção Que o cabra tinha saído Porém naquele momento Seus tiros foram em vão Porque além de ele achar-se Em triste situação Ursulino ia amparado Pela imensa escuridão Logo em socorro de Carlos O povo todo correu Dizendo porém a um tempo Ser mortal o estado seu Tanto assim que no outro dia O farmacêutico morreu Faleceu em Iguatu Operado no hospital Aquele moço distinto Tão amigo e social Causou a maior impressão Essa notícia fatal Sobre a pessoa de Carlos Vamos fazer ponto aqui Pra falar sobre o bandido O qual correndo dali

Saiu no dia seguinte Na fazendo Potengi João Cardoso em Potengi Que era o sub-delegado Da morte do farmacêutico Já tinha sido avisado E assim que viu Ursulino Com o mesmo tomou cuidado Por ser muito experiente O cidadão João Cardoso Conheceu que aquele cabra Era o dito criminoso Por ver que o mesmo trazia Um revólver precioso Com o auxílio de uns paisanos Que se achavam ali perto Desarmou o bandoleiro E de tudo ficou certo Pois pelo próprio assassino Foi o crime descoberto Ursulino a São Mateus Levaram com brevidade E este contou a história Novamente na cidade A mais de duzentas pessoas Sem se afastar da verdade Citou nome por nome Dos malfeitores cruéis E como representaram Aqueles negros papéis E também que fez o crime Por quatro contos de réis Disse mais que o Montenegro Daquela justa quantia Deu-lhe quinhentos mil réis Porém sob a garantia Que depois do assassinato O resto lhe entregaria O senhor Mário Leal De nome contraditório

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Isso assistiu e louvou Mas logo, tipo do mal Negou que tudo sabia Desonrando-se afinal Ficou o público ciente De como forjamos os planos Aqueles cinco traidores De corações desumanos Um filho do Ceará E quatro paraibanos Mas o quatro co-autores Por serem bem abastados Procuraram logo meios Que dessem bons resultados Abarrotando as carteiras De espertos advogados E com trapaça e chicana Mentiras de toda sorte Afirmavam que o mandante Daquela bárbara morte Não era o doutor Carreira Da Paraíba do Norte O juiz de São Mateus Conhecendo que os malvados Estavam todos ali Por protetores cercados Pediu que em outra comarca Os mesmos fossem julgados Ao júri de Fortaleza Foram eles remetidos E o quatro co-autores Da Polícia protegidos Por um falso julgamento Saíram absolvidos Foi um julgamento contra As leis humanas e divina Ficando assim libertada Aquela corja assassina Pois onde não há consciência O interesse é que domina

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Ursulino o mercenário Foi indigno de atenção Deram-lhe como sentença Trinta anos de prisão Porque quem não tem dinheiro Também não tem proteção O desgraçado Ursulino Por ser um pobre o prenderam Os outros por serem ricos Penitência não sofreram Porque os juízes de fato Do Ceará se renderam O promotor Lourival Não fez apelação Porque pra ele dinheiro É a chave da prisão Mesmo vinte mil cruzeiros Lá é um gordo pirão Este doutor por dinheiro Tem tão grande cobiça Que faz tornar o seu jugo Maneira como cortiça Os próprios réus defendeu No plenário da Justiça Pisou por cima da lei Por ser mui ganancioso Mas depois de praticar Este ato escandaloso Ficou também incluído No tal grupo criminoso A história deste crime Cheia de horror e traição Onde a autoridade falta Com a sua obrigação É tinta negra que mancha O nome de uma nação Se contra o que escrevi Alguém pensar o contrário De falar com Ursulino Faça tudo necessário


Que o mesmo lhe contará O infeliz mercenário Agora caro leitor Espero ser desculpado Em simples e toscos versos Relatei todo o passado Daquele crime horroroso Em Cariús praticado Cariús lugar sinistro Que apavora a humanidade Onde reina o luto e a dor A tristeza e a saudade A mulher na viuvez E a criança na orfandade Ali sempre foi um ponto De assassinos e danos Teatro sanguinolento Dos matadores humanos Onde vai o assassino Realizar os seus planos

De Cariús o passado Nos causa medonho espanto E descrever ninguém pode Sem ter os olhos em pranto A série de desatinos Havidos naquele recanto Lugar de agouros malditos Fonte funesta do mal Onde um mostro foi oculto Cheio de instinto brutal Saciar no sangue humano A sua sede infernal Ali meia noite em ponto Quem pela rua se lança Vê um grupo de assassinos Que pelas trevas avança E a alma do farmacêutico Clamando a pedir vingança

Edição revista e ampliada do livro Patativa do Assaré Pássaro Liberto, publicada em Fortaleza pelo Museu do Ceará, em 2002.

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Alcymar Monteiro – “Rosa dos Ventos”, (faixa “Sofreu”), 1987. Patativa do Assaré – “Canto Nordestino”, 1989. Patativa do Assaré – “80 anos de Luz”, 1989. Gonzagão e Gonzaguinha – “Gonzagão e Gonzaguinha juntos” (faixa “A Triste Partida”), 1991. Gonzagão e Fagner – “Gonzagão e Fagner” (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”), 1991. Joãozinho do Exu – “Lembrando você” (faixa “A natureza chora”), 1993. Patativa do Assaré – “85 anos de poesia”, 1994. José Fábio – “José Fábio” (faixas “Vaca Estrela e Boi Fubá”, “ Menino de Rua”, “Lamento de um nordestino” e “Estrada da minha vida”), 1994. Mastruz com Leite – “O Boi Zebu e as Formigas” (faixa título), 1995. Sérgio Reis – “Marcando Estrada” (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”), 1995. Cláudio Nucci e Nós & Voz – “É boi” (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”), 1995.

Patativa do Assaré – “Patativa do Assaré” (Projeto Cultural do BEC), 1985.

Cícero do Assaré – “Meu passarinho, meu amor” (faixas “Meu passarinho, meu amor” e “Lamento de um nordestino”), 1996.

Criação coletiva – “Seca D’ Água”, a partir de poema de Patativa, 1985.

Daúde – “Daúde” (faixa “Vida Sertaneja”), 1996.

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Mastruz com Leite – “Em todo canto tem cearense, inclusive neste cd” (faixa “Sem Terra”), 1996.

Alcymar Monteiro – “Os grandes sucesso de vaquejada” (faixa “Nordestino sim, nordestinado não”), 1998.

Fagner – “20 Super Sucessos II” (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”).

Rolando Boldrin – “Som RuralCaipira” (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”), 1998.

Pena Branca e Xavantinho – “Cio da Terra” (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”), 1996. Gildário – “Sou Nordestino” (faixas “Saudade”, “Tenha pena de quem tem pena”, “Assaré Querido” e “Sou Nordestino”), s/d. Alcymar Monteiro –“3º Circuito de Vaquejadas” (faixas “Ingém de Ferro” e “Nordestino sim, nordestinado não”), 1997. Gildário – “Agora” (faixas “A tristeza”, “Saudação a Juazeiro”, “Morena e Mastruz com Leite”), s/d. Baby Som – “Quente e Arrochado Volume 2” (faixa “ Ao rei do baião”), s/d. Abidoral Jamacaru – “O Peixe” (faixa título), 1997. Simone Guimarães – “Cirandeiro” (faixa “Sina”), 1997. Cantorias e Cantadores 2 – Pena Branca e Xavantinho (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”), Kuarup Discos, s/d. Alcymar Monteiro – “Eterno moleque” (faixa “ Minha viola”), 1998. Renato Teixeira e Pena Branca e Xavantinho – “Ao vivo em Tatuí” (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”), 1998. José Fábio – “José Fábio canta Patativa”, single promocional, 1998. José Fábio – “José Fábio canta Patativa do Assaré”, 16 faixas com poemas de Patativa musicados por Téo Azevedo, Playarte, 1998. Programa Cultura Musical do BNB (faixa “O Peixe”, cantada por Abdoral Jamacaru), 1998.

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Joãozinho de Exu – “Preciso de Você” (faixa “A natureza chora”), 1999. Patativa do Assaré – cd encartado no livro “O Poeta do Povo. Vida e Obra do Patativa do Assaré”, de Assis Ângelo, com poemas declamados pelo poeta, entrevistas feitas pelo autor do livro e trilha sonora de Gereba, 1999. Luiz Gonzaga – caixa “50 anos de chão” (faixa “A Triste Partida”, disco 2), s/d. Gildário – “Contos de Patativa”, 15 faixas com poemas de Patativa musicados, 1999. Daúde – “Simbora” (faixa “Vida Sertaneja” remixada) , 1999. Geraldo Amâncio e Moacir Laurentino – 2° Festival Nordestino da Viola (faixa “Patativa e D. Hélder são dois reis coroados de fé e poesia”), 1999. Waldonys – “Waldonys canta e toca sucessos nordestinos” (faixa “Vaca Estrela e Boi Fubá”), 2000. Liga Independente das Escolas de Samba de Barbalha – Escola Águia de Ouro (faixa “Patativa do Assaré – Estrela do Ceará”, composição de Toinho, George e Friaça), 2001. João Alexandre Sobrinho – “Memórias de um poeta” (faixa “Triste Partida”), 2001. Cantar – Volume I – Rede de Protagonismo pelo Meio Ambiente e Cidadania. Apoio UNICEF (faixa “A lição do pinto”, cantada por Zé Vicente”), 2001.


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Cronologia

1909 – Nasce, dia 5 de março, na Serra de Santana, a 18 km de Assaré, filho de Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva, pequenos proprietários rurais. 1913 – Perde um olho em decorrência de uma doença. 1917 – Morte do pai, a 28 de março. A pequena propriedade da família, na Serra de Santana, é dividida entre os filhos José, Antônio, Joaquim, Pedro, Maria e Mercês. 1920 – Trabalha no campo, na serra de Santana. 1921 – Alfabetizado por meio do livro de Felisberto de Carvalho. Fica menos de seis meses na escola. 1922 – Começa a fazer “versinhos que serviam de graça para os serranos”. 1925 – Vende uma ovelha para comprar a primeira viola. Passa a se apresentar nos sítios e festas da região.

de conhecer o poeta das “Lendas e Canções Populares”. 1931 – Citado no livro “O matuto cearense e o caboclo do Pará”, de José Carvalho, que relembra o episódio do encontro com o jovem poeta. 1936 – Casa-se, dia 6 de janeiro, com Belarmina Paes Cidrão, a dona Belinha. 1940 – Apresenta-se com violeiros, como João Alexandre, nos sítios e festas do Cariri. 1955 – Conhece José Arraes de Alencar, que toma a iniciativa de transcrever seus poemas por meio de Moacir Mota, filho de Leonardo Mota. 1956 – Publicação de “Inspiração Nordestina”, por Borsoi Editovr, do Rio de Janeiro. 1962 – Apresenta-se no São João Popular, no sítio Trindade, em Recife, promovido pela administração Miguel Arraes. 1964 – Luiz Gonzaga grava “A Triste Partida”. 1970 – Publicação de “Patativa do Assaré - Novos Poemas Comentados”, de J. de Figueiredo Filho.

1928 – Viagem a Belém do Pará, onde ganha de José Carvalho de Brito, jornalista e advogado do Crato, aí radicado, o epíteto de Patativa. Apresenta-se nas “colônias”, núcleos de nordestinos que migraram para o Pará. Faz o percurso, pela linha férrea, de Belém a Bragança.

1972 – Raimundo Fagner musica e grava “Sina”, no disco “Manera Fru-Fru”, poema cuja autoria não lhe foi atribuída.

1929 – De volta ao Ceará, visita a Casa de Juvenal Galeno, onde se apresenta em noite festiva e tem o privilégio

1973 – Atropelado quando atravessava a avenida Duque de Caxias, em Fortaleza, dia 13 de agosto.

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1978 – Lançado “Cante lá que eu canto cá”, com o selo da Editora Vozes. 1979 – Passa a residir em Assaré, à Rua Coronel Pedro Onofre nº 27, Praça da Matriz. – Homenageado pela programação cultural do encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, em Fortaleza. – Grava o disco “Poemas e Canções”. – Participa do disco “Soro”, de Raimundo Fagner.

– “Patativa do Assaré - Um Poeta do Povo”, filme de Jefferson Albuquerque Jr. e Rosemberg Cariry, em 16mm, ampliado para 35 mm, em cores. 1985 – Faz a letra de “Seca d’ Água”, criação coletiva para angariar fundos para as vítimas das enchentes que assolaram o Nordeste naquele ano.

– Participa da campanha pela Anistia aos presos políticos brasileiros.

– Lança o disco “Patativa do Assaré”, um projeto cultural do Banco do Estado do Ceará.

– Personagem de “Patativa do Assaré”, super-8 de Rosemberg Cariry.

1986 – Apóia a candidatura de Tasso Jereissati ao governo do Estado do Ceará.

– Participa da Massafeira Livre, dias 15 a 18 de março, no Theatro José de Alencar, show lançado em disco com o selo Epic (CBS), no ano seguinte.

1987 – Recebe a “Medalha da Abolição”, pelos “relevantes serviços prestados ao Estado”.

1980 – Fagner grava “Vaca Estrela e Boi Fubá” (CBS). 1981 – Lança o disco “A terra é naturá”. – Apresenta-se no programa “Som Brasil”, da Rede Globo, dia 31 de outubro. 1982 – Recebe o diploma de “Amigo da Cultura”, outorgado pela Secretaria da Cultura do Estado, pela “decidida atuação a favor do aprimoramento cultural do Ceará”. – Cidadão de Fortaleza, título aprovado pela Câmara Municipal. 1984 – Participa da campanha pelas “DiretasJá” e sobe ao palanque, em Fortaleza, para dizer poemas, ao lado de lideranças políticas nacionais. – Publicação de “O metapoema em Patativa do Assaré: uma introdução ao pensamento literário do poeta”, de Francisco de Assis Brito, pela Faculdade de Filosofia do Crato.

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– Vídeo “Patativa do Assaré”, realizado pelo Projeto Experimental dos alunos do Curso de Comunicação Social da UFC, com apoio da Tv Educativa.

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1988 – Publica o livro “Ispinho e Fulô”, pela Imprensa Oficial do Ceará. – Submetido à cirurgia em clínica oftalmológica de Campinas (SP). 1989 – Enredo da “Escola de Samba Prova de Fogo”, do Crato. – Doutor Honoris Causa da Universidade Regional do Cariri URCA. – Seminário “80 anos de Patativa do Assaré”, promoção da URCA. – Lança o disco “Canto Nordestino”. – Inauguração da rodovia “Patativa do Assaré”, com 17 km, ligando Assaré a Antonina do Norte, pelo governador Tasso Jereissati. – Apresentação de Patativa do Assaré e Théo Azevedo, no Teatro das Nações (Av. São João, 1737), em São Paulo. – Evento “Patativa do Assaré - 80 anos de vida e poesia”, dia 30 de novembro, no BNB Clube, em Fortaleza.


– Apresentação de Patativa do Assaré com Fagner, no Memorial da América Latina, em São Paulo, de 7 a 9 de dezembro. 1990 – Participação no evento “Fortaleza das Violas”, no BNB Clube, em Fortaleza, dias 26 e 27 de janeiro, como convidado especial, juntamente com Otacílio Batista e Geraldo Amâncio. – Lançamento do disco “Patativa do Assaré - 80 Anos de Luz”, com apoio da Prefeitura Municipal de Assaré, URCA, Secretaria da Cultura do Estado e Associação dos Artistas e Amigos da Arte, de Juazeiro do Norte. 1991 – Enredo da Escola Acadêmicos do Samba, de Fortaleza. – Lança o livro “Balceiro”, organizado por ele e por Geraldo Gonçalves, que reúne parte da produção dos poetas de Assaré, publicado pela Secretaria da Cultura do Estado/ IOCE. 1992 – Apresenta-se na ECO-92, no Rio de Janeiro. 1993 – Participa da novela “Renascer”, da Rede Globo de Televisão. – Entrevistado pelo programa Jô Onze e Meia, do SBT. – Lança a caixa “Cordéis do Patativa”, editada pela Secult com apoio da Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte, na Casa de Juvenal Galeno, em Fortaleza, dia 20 de novembro. 1994 – Lança o livro “Aqui tem coisa”, na I Feira Brasileira do Livro de Fortaleza. Documentário “O Voo da Patativa”, com roteiro de Oswald Barroso e direção de Ronaldo Nunes, produzido pela Tv Ceará. – Grava o vinil “Patativa 85 Anos de Poesia”. – Evento “Patativa do Assaré - 85 anos

de Fidelidade e Amor à Poesia e a sua Gente”, dias 4 e 5 de março, em Assaré. – Inauguração do Centro de Cultura Popular Patativa do Assaré, à rua Euclides Onofre, dependências da antiga usina, em Assaré (depois desativado). – Morte de Dona Belinha, dia 15 de maio. – Sócio honorário do Museu do Gonzagão, em Exu (PE). 1995 – Lançamento de “Patativa e o Universo Fascinante do Sertão”, de Plácido Cidade Nuvens. – Recebe o “Prêmio Ministério da Cultura”, categoria Cultura Popular. 1997 – Seminário “88 anos de Patativa do Assaré”, promovido pela URCA e Secretaria de Cultura do Estado, no Crato. – Lançamento do cd “Patativa 88 anos de Poesia”. – Inauguração da Rádio Comunitária Patativa do Assaré, em sua cidade natal. – Defesa da dissertação “A linguagem regional popular na obra de Patativa do Assaré”, de Maria Silvana Militão de Alencar, no Mestrado em Linguística e Ensino da Língua Portuguesa da UFC, dia 5 de dezembro de 1997, sob a orientação da Dra. Maria do Socorro Silva de Aragão. 1998 – Álbum de xilogravuras “Patativa - Vida Poesia”, com 16 matrizes em umburana, de autoria de José Lourenço Gonzaga. – Recebe, dia 22 de maio, a “Medalha Francisco Gonçalves de Aguiar”, do Governo do Estado do Ceará, outorgada pela Secretaria de Recursos Hídricos.

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– Sessão solene da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, dia 10 de agosto, em homenagem aos noventa anos de Patativa do Assaré, transcrita no volume 108, número 166, do dia 1° de setembro de 1998, do Diário Oficial do Estado de São Paulo. – Inauguração, dia 1° de outubro, da exposição “De um pingo d’água um oceano de rimas”, em homenagem a seus 90 anos na III Feira Brasileira do Livro de Fortaleza. Curadoria de Dodora Guimarães. – Homenageado pela Associação dos Docentes da Universidade Federal do Ceará, com a impressão de um calendário referente a 1999, com projeto gráfico de Evandro Abreu e xilogravuras de José Lourenço. Peça escolhida em concurso público. 1999 – Festa de aniversário, com a inauguração do Memorial, em Assaré, e lançamento da revista Inside Brasil, em que era matéria de capa. – Recebe, na festa dos noventa anos, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual do CearáUECE. – Recebe, em outubro, em Assaré, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Ceará -UFC, quando é feito o lançamento do livro “Cordéis”, publicado pelas Edições UFC. – Recebe o Prêmio Unipaz, no VII Congresso Holístico Brasileiro, em Fortaleza, dia 20 de outubro. 2000 – Na festa dos 91 anos, recebe o título de Cidadão do Rio Grande do Norte. – Lançamento, em maio, dos livros “Patativa do Assaré”, de Gilmar de Carvalho (Fundação Demócrito Rocha) e “Patativa do Assaré”, de Sylvie

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Debs (Editora Hedra), no Sindicato dos Jornalistas, em Fortaleza. – Recebe o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Tiradentes, de Sergipe. – Defesa da dissertação de mestrado “Patativa do Assaré. As razões da emoção. Capítulos de uma poética sertaneja”, de Cláudio Henrique Sales Andrade, na FFLCH, da Universidade de São Paulo, em setembro. – Patrono da IV Bienal do Livro do Ceará 2000 (17 a 22 de outubro). – Lançamento do cd “Patativa do Assaré”, volume IV da Coleção Memória do Povo Cearense, no encerramento da Bienal do Livro. – Internado, dia 18 de novembro, no Hospital São Francisco, no Crato, com problemas urinários. Teve alta dia 24 do mesmo mês. 2001 – Lançamento do livro “Balceiro 2 - Patativa e outros poetas de Assaré”, organizado por Geraldo Gonçalves de Alencar e publicado pela Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará e Editora Terceira Margem, de São Paulo, nas festas de seu 92° aniversário. – Estreia do curta de animação “Patativa”, em 35 mm, colorido, 10 minutos de duração, de Ítalo Maia, durante o Cine Ceará, pelo qual foi premiado. O curta participou de festivais na Bahia, Goiânia, Vitória e recebeu o Troféu Jangada do OCIC. – Terceiro colocado na eleição para o “Cearense do Século”, promovido pelo Sistema Verdes Mares de Comunicação (o vencedor foi Padre Cícero). – Recebe o troféu “Sereia de Ouro”, do Grupo Edson Queiroz, no Memorial Patativa do Assaré, dia 28 de setembro.


– Lançamento da “Antologia Poética de Patativa do Assaré”, com organização e prefácio de Gilmar de Carvalho, editada pela Fundação Demócrito Rocha, dia 30 de outubro, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. – Estreia do espetáculo “Patativa do Assaré”, de Alan Castelo Branco Xavier, no Teatro Glória, Rio de Janeiro, dia 3 de novembro. – Integra a exposição “O Mote do Cordel”, aberta dia 11 de dezembro no Museu do Ceará, que exibe um chapéu e um par de óculos doados por ele ao acervo da instituição. – Lançamento do livro ”Digo e não peço segredo”, organizado e

prefaciado pelo professor Tadeu Feitosa, dia 27 de dezembro no Crato, onde Patativa estava internado, acometido de infecção urinária (teve alta dia 30 de dezembro). 2002 – Defesa da tese de Doutorado em Sociologia (UFC) de Tadeu Feitosa, com o título “Patativa do Assaré: A voz de um canto”, dia 3 de maio, orientada pela professora-doutora Maria Auxiliadora Lemenhe. – Morre dia 8 de julho, de falência múltipla dos órgãos, de acordo com laudo médico. Foi sepultado na tarde do dia 9, no Cemitério São João Batista, em Assaré.

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Anexos

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A MORTE DE ARTUR PEREIRA Folheto gentilmente cedido pelo poeta Arievaldo Viana.

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Texto composto em Adobe Jenson Pro corpo 12/15 e tĂ­tulos em Didot LT Std e em Helvetica Neue pela Omni Editora e impresso em fevereiro de 2009, pela GrĂĄfica Pouchain Ramos, em Fortaleza (CE)



E

ra início de noite de uma segunda-feira quando uma multidão se ocupou em frente ao número 27 da rua Coronel Pedro Onofre, em Assaré. A angústia que tomava conta da cidade durante os últimos dias tinha chegado a seu desfecho.

Acabara de ser anunciada, por volta das 19 horas, no telejornal da TV Verdes Mares, afiliada da TV Globo, a confirmação da morte do poeta Patativa do Assaré. Os órgãos de imprensa, por sinal, acompanhavam atentos desde os últimos dias, inclusive com o envio de correspondentes, o estado de saúde de Patativa. Havia piorado no sábado anterior e já sofria há dias com uma pneumonia dupla, uma infecção na vesícula e problemas renais. A causa oficial da morte foi falência múltipla de órgãos. Era 8 de julho de 2002. Dia em que Patativa, aos 93 anos, partiu. Começaria uma noite de choros, orações e homenagens ao filho mais ilustre daquela terra.

P A T R O C Í N I O


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