Graffitis Mulheres e Periferias Paulistanas (TFG)

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GRAFFITIS, MULHERES E PERIFERIAS PAULISTANAS

Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho Final de Graduação

Luíza Gancho de Almeida Orientadora: Vera Pallamin

São Paulo, dezembro 2016



“A raiz é o espelho Do que eu digo E a semente espalha Tudo o que é dito

No seu jardim nasceu a flor desobediente Enquanto ela existir vai ser diferente (...)”

Flor de Mulher, Luana Hansen


AGRADECIMENTOS À Vera, pelas orientações fundamentais e, sobretudo, por ter acreditado neste trabalho; ao Valdir, pelos ensinamentos sobre gravura e pela paciência; à Juliana - porque família a gente também escolhe - Mariana, Camila e Maísa, pelo companheirismo e ajuda com as questões do TFG mas, principalmente, pela cumplicidade. Aos Manfreds, em especial ao Vitor, Melina, Thaís, Pi e Pri Anderson , pelos momentos de descontração e pela constância. Ao Estevão, pela prontidão. à Frúgoli, por ter se aventurado nas ruas junto comigo, à Caluz, pelas inserções nas quebradas e pela amizade. À Crica, pela sabedoria compartilhada e pela confiança. À Nene Surreal pela inspiração e a todas as grafiteiras que cederam suas entrevistas como fonte deste trabalho, em especial à Bela. Ao Coletivo de Oyá, pela inspiração de sua força. Aos colegas de graffiti que me motivaram a continuar; à Carol, pela convivência que me ensinou infinitas coisas, principalmente a ter mais paciência, serenidade e tolerância; a Elias, Candida e Carolina, meus alicerces.


SUMÁRIO PREFÁCIO 8 Entre a universidade e a rua 8 Graffiti X Gravura 9 Fotografia e Análise 12 INTRODUÇÃO Meus primeiros contatos com o graffiti O movimento Hip Hop e sua permanência em São Paulo Uma percepção pessoal do graffiti nos dias atuais Os eventos de graffiti na periferia e a assimetria de gênero

14 14 16 19 23

Capítulo um: O UNIVERSO MASCULINO DO GRAFFITI NA PERIFERIA Masculinidade na periferia de São Paulo O homem no graffiti e as afirmações da masculinidade Os valores presentes no discurso do homem da periferia

28 29 32 37

Capítulo dois: O GRAFFITI FEMININO NO ESPAÇO PÚBLICO A mulher brasileira e os espaços públicos A mulher no ambiente do graffiti na grande São Paulo A popularização do graffiti nos anos 2000: poder público, mídia e mercado A ocupação do território e as articulações entre grafiteiras A linguagem simbólica do graffiti das mulheres Uma percepção a respeito do graffiti das mulheres

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BIBLIOGRAFIA 76


PREFÁCIO Entre a universidade e a rua Este Trabalho Final de Graduação carrega em si uma assimilação muito pessoal a respeito da vivência de uma cultura periférica – o graffiti, a partir do ponto de vista de uma mulher que transita nos meios da arte urbana e da arquitetura. Os objetos resultantes deste processo de entendimento são, então, frutos de diferentes apreensões do contexto, uma vez que os pontos de vista procuram aproximar os universos do urbanismo e do graffiti.

1. O hip hop é uma cultura que se apoia sobre quatro pilares: na música, o rap cantan-

Este tipo de arte fez-me deparar com uma complexa cultura existente nas periferias onde passei a grafitar a partir de 2012: a cultura hip hop. E, enquanto essas manifestações artísticas na música, na arte urbana e na dança1 revelavam seus encantos, ao mesmo tempo, demonstravam seus conflitos e incompatibilidades de discursos.

do pelos MCs e o som tocado pelos Djs; na dança, o break, pelos b-boys e b-girls; e, na arte visual, o graffiti, realizado pelos grafiteiros.

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Diversas questões dentro da cultura hip hop trouxeram à tona questionamentos e incompreensões. Ao mesmo tempo que denunciava uma situação precária na periferia e possuía uma atitude revolucionária nas letras de música e nas manifestações artísticas, essa cultura revelou um viés muito conservador, que reiterava discursos machistas, misóginos e normativos. Tais tensões e limites referentes à questão de gênero-espaço tornaram-se objetos de estudos teórico e gráfico nesse trabalho.


O propósito deste é, então, realizar três abordagens a respeito do papel das grafiteiras enquanto atuantes no espaço público. A primeira é uma aproximação sensível do tema, a partir do ponto de vista de uma mulher grafiteira: a gravura. A segunda dá-se enquanto espectadora dos espaços em que essas agentes se inserem: as fotos. A última, finalmente, é uma percepção analítica das conjunturas sociais e urbanas que estruturam esse contexto periférico: a monografia.

Graffiti X Gravura Tratar do universo do graffiti e dos espaços da mulher neste meio na periferia da grande São Paulo exigiu a busca de aproximação do tema aos olhos de leitores que não vivem essa realidade. Sendo assim, minha primeira abordagem foi encontrar um processo artístico pelo qual pudesse expressar minhas compreensões sensíveis a respeito dos anos em que participei de eventos de graffiti. Inicialmente, eu não acreditava ser possível elaborar manifestações artísticas visuais do hip hop em um trabalho gráfico. Havia dois motivos preponderantes para essa descrença. Primeiramente, parecia-me uma postura bastante prepotente usar minha linguagem plástica como imagem representativa do graffiti – porque, afinal, meu trabalho como artista urbana não havia nascido nas ruas e isso já configurava uma incoerência. Em segundo lugar, a percepção das tensões dentro da cultura hip hop partia de um ponto de vista minoritário dentro do movimento, que é o

graffiti feito em abril de 2016

gravura realizada em abril de 2016

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2. Os eventos de graffiti aqui tratados ocorrem sob o recorte da periferia da grande São Paulo nos dias atuais. 3. O graffiti, em sua constitui-

feminino. Dessa forma, o propósito de uma manifestação artística acerca da posição da mulher dentro dos espaços dos eventos de graffiti2 não teria a ver, diretamente, com a linguagem “tradicional” dessa arte urbana3. A intenção buscada neste trabalho teria que ser poética, originária de um ponto de vista feminino e particular.

ção inicial era voltado para a escrita – realizada pelos grafiteiros, também chamados writers. Sendo assim, a linguagem “tradicional” do graffiti, enquanto elemento do hip hop tem a ver com uma arte voltada, principalmente, para as letras. Diversos estilos derivam dessa prática, mas, de maneira geral, a gênese da arte dos grafiteiros reside na composição

O resultado que estava buscando, portanto, traduziria esse ponto de vista muito pessoal. O processo de elaboração das questões ali vivenciadas em termos urbanos e artísticos também teria que ser mais lento que aquele próprio à temporalidade do graffiti, uma vez que o resultado final se proporia a criar uma assimilação – e também uma abstração – de vivências muito intensas. Um processo muito direto talvez não desse conta de abarcar as complexidades das sensações que havia experimentado durante aqueles anos de convívio com o universo do graffiti na periferia.

escrita.

Tratava-se da procura de um método de criação diferente daquele a que estava acostumada – uma criação abstrata, espontânea, subjetiva. Era preciso encontrar uma maneira de compor por meio de uma técnica apropriada para uma inspiração advinda de reflexão e síntese.

composição de graffiti, em wildstyle: que se baseia em entrelaçar letras.

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Assim, comecei a investigar a gravura e percebi as possibilidades artísticas que ela me abria para compor o trabalho. Minhas experiências com gravação tiveram início em 2015, quando cursei a disciplina de serigrafia no Centro de Artes Plásticas (CAP) da Escola de Comunicação e Artes da USP. Nesse ano, passei a frequentar não só as aulas do CAP, mas também seu ateliê. A dinâmica da serigrafia, no


entanto, não contemplava certos dégradés e nuances que gostaria de atingir nos meus trabalhos artísticos. Foi por esta razão que, no primeiro semestre de 2016, cursei a matéria de gravura em metal. Durante o curso, descobri, na prática, as diversas possibilidades de gravação do cobre4. Minhas opções favoritas foram aquelas que envolviam o ácido percloreto – e por vezes o nítrico5 – para registrar o desenho no metal.

4. A gravura em metal apre-

A possibilidade de trabalhar com esse tipo de gravura para atingir o resultado desejado revelou-se promissora. As razões principais tinham relação com o tempo de preparo do objeto – que proporcionaria momentos de reflexão e aprimoramento – e também a possibilidade de replicar uma imagem diversas vezes.

5. O percloreto é o ácido

senta diversos métodos de gravação e vários objetos que auxiliam no manejo do cobre. Há métodos diretos de gravação (buril, ponta seca, roleta) e métodos que envolvem o uso de ácidos para corrosão da chapa.

usado para corroer o cobre na maior parte dos processos. O ácido nítrico, no entanto, é utilizado como potencializador de corrosão. Durante meu processo de criação, usei o ácido

Quando se pensa no universo que decidi abordar – do graffiti na periferia de São Paulo – é possível perceber que certas imagens se repetem em diversos eventos: a paisagem da “ quebrada”6, o jeito de se vestir dos homens que grafitam, os jovens que vivem nas periferias e tantos outros elementos que podem ser vistos em diversos locais em que ocorrem as ações voltadas para a arte urbana. Pensar em uma arte que também replicasse essas imagens, de forma que elas não se colocassem como um objeto único – como é uma pintura, por exemplo – mas enquanto diversas impressões de uma mesma matriz, tornou-se uma forma de fazer alusão à repetição desses cenários periféricos.

nítrico em uma técnica derivada da água tinta, chamada “lavis”, que consiste em “pintar” a chapa com o ácido, criando um efeito aquarelado.

6. O termo serve para designar um bairro periférico. É associado aos meandros e aos lugares mais “escondidos” de locais carentes.

Graffiti e gravura estiveram, sobretudo, carregados 11


7. A vivência do ateliê foi muito diferente de outros tipos de criação artística, afinal, nesse local, há normas a serem seguidas: horários específicos de uso, limpeza dos equipamentos, espaço de trabalho reduzido (para dar espaço aos outros usuários). Assim, pude desenvolver um maior comprometimento

com

de significados subjetivos durante minha graduação. Por um lado, grafitar tornou-se uma maneira de expandir e extroverter uma capacidade artística que não encontrava encaixe dentro da universidade. Por outro, a gravura em metal revelou-se uma arte introspectiva e íntima, em que houve uma maturação quanto aos seus processos de gravação e impressão, a partir do conhecimento disciplinado de um ateliê público7, que demanda organização e prática para se chegar a uma constância satisfatória nas impressões8.

minhas

composições, porque aprendi a sistematizar meus processos criativos.

Por todas essas razões, acredito ter chegado a objetos que contemplam as complexidades técnica e processual que esse trabalho contínuo demandava e, ao mesmo tempo, criam uma relação de alusão e réplica das imagens dos cenários onde ocorre o graffiti na periferia.

Fotografia e Análise Ao me debruçar sobre este contexto periférico, no entanto, não pude deixar de perceber que o aspecto da ocupação do espaço urbano pelas artistas mulheres suscitava a necessidade de uma abordagem mais completa.

foto oficial da página do evento Eletro Tintas, no Jardim Miriam, Itaim Paulista, SP.

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Não bastaria, portanto, apresentar uma série de gravuras ou trazer em registro fotográfico as imagens dos graffitis realizados por mim. A apreensão do leitor a respeito de um universo que eu havia acompanhado intensamente durante quatro anos jamais ocorreria satisfatoriamente a partir de uma composição artística. Fazia-se necessário, então, criar um “acervo” por meio do qual se pudesse compreender a complexidade do tema e sua influência na


periferia da grande São Paulo.

8. O processo de impressão da gravura em metal é bastan-

Sendo assim, decidi estabelecer mais dois “alicerces” para a abordagem deste trabalho. Além das gravuras, procurei desenvolver esta monografia, para que pudesse elucidar melhor em que contexto ocorrem os eventos de graffiti, a estrutura social na qual estão inseridos seus agentes, bem como a atuação das mulheres artistas enquanto criadoras de espaços públicos.

te complexo. São quatro etapas realizadas até que a chapa de cobre fique pronta para ser prensada junto ao papel. Primeiro é realizada a entintagem sobre a placa, cobrindo toda sua superfície. Em seguida, utiliza-se um tecido específico

O segundo material que complementa o chamado “acervo” é um anexo de fotos dos respectivos eventos, voltado para a compreensão das assimetrias e tensões relativas à presença e ação no espaço público das mulheres no graffiti.

para retirar o excesso de tinta, em movimentos que prensem a tinta nos sulcos abertos na chapa. Continua-se com um outro tecido, mais limpo, para continuar a preparação. Até

Acredito que estes diferentes produtos, referentes ao mesmo tema, apresentem abordagens complementares para que a questão em si seja apreendida pelo leitor.

que, finalmente, o impressor dá o “palmo”. Este processo é feito com a palma da mão, passando-a

superficialmen-

te sobre a chapa, para retirar o excesso de tinta e obter as luzes e os espaços brancos do desenho.

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INTRODUÇÃO Meus primeiros contatos com o graffiti Diferente da grande parte dos grafiteiros com quem tenho contato, minhas experiências não vêm de uma adolescência vivida em um bairro periférico. Posso inclusive dizer que não tive qualquer vivência de bairro. Desde muito pequena, vivo em Mairiporã, em uma remota chácara, numa rua de terra na Serra da Cantareira. Assim, junto ao isolamento, à tranquilidade incomum e a uma vida um tanto quanto surreal – por conta dos movimentos pendulares que configuraram pequenas viagens diárias durante vinte anos de vida – desenvolvi uma percepção muito íntima sobre expressão artística. Minha vivência do graffiti, ainda que se dê no mesmo espaço e junto aos grafiteiros que começaram a pintar em seus bairros, é muito diferente. Embora eu já desenhasse há muitos anos quase diariamente – em cadernos de anotações pessoais – não concebia meu desenho enquanto algo a ser visto. Fui para a rua por uma inquietação de escala de desenho, mas sobretudo por uma busca por pertencimento. Apesar de ter desenvolvido um traço próprio e de me identificar com as artes plásticas em geral desde bastante jovem, decidi cursar arquitetura, por diversos outros interesses referentes à cidade, ao urbanismo e ao patrimônio. Durante a graduação pude desenvolver uma pesquisa e até mesmo estagiar nessas áreas do meu interesse. 14


Sentia, no entanto, que o ambiente acadêmico da arquitetura abordava a temática das artes a partir de certos pontos de vista voltados à comunicação visual e à história da arte. Ainda que tenham sido ensinamentos valorosos, não senti a liberdade necessária para desenvolver outros trabalhos pessoais no ambiente acadêmico num primeiro momento. O graffiti foi, portanto, um exercício particular de experimentação. Acreditava que, indo para a rua, encontraria espaços abertos e livres. Cria que o ambiente da arte urbana seria fundamental para expor especulações artísticas, que não tinha provado na faculdade até então. Apesar dessa suposta falta de regras plásticas no ambiente do graffiti, houve, a princípio, uma questão da rua que me deixava bastante receosa: o risco de ser detida pela polícia. Assim, só tive coragem de ir de fato para as ruas quando, em 2012, descobri um evento autorizado que uma grafiteira chilena9 estava organizando para pintar os muros dos trens da CPTM, em Mauá.

muro da CPTM em Mauá, 2012

9. Mônica Ancapi, a Santa Mônica. Moradora de Mauá, organiza dois grupos em redes

Fui ao evento para fazer meu primeiro desenho em uma parede e, a partir desse contato com a organizadora, descobri diversos outros eventos, que jamais imaginara que existissem.

sociais, além dessa iniciativa em 2012, nos muros da CPTM.

Para a compreensão dos eventos organizados de graffiti nos dias de hoje, abordarei, primeiramente algumas questões de pano de fundo a partir das quais se estruturam os eventos. 15


O movimento Hip Hop e sua permanência em São Paulo

10. D’ANDREA, T. P., A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de

A cultura Hip Hop originou-se no Bronx – um bairro pobre em Nova York – no fim dos anos 1960. Em meio às gangues e à violência do local, um grupo articulador – chamado Zulu Nation – começou a organizar grupos de dança, grafiteiros, cantores, a fim de criar um movimento voltado para uma consciência social10.

São Paulo. Dissertação (Doutorado) em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 2013. pg. 62.

11. “Segundo o sociólogo senegalês, Abdoulaye

Criado por uma população negra e mestiça11, o hip hop estruturou-se sobre quatro principais pilares de manifestações artísticas. Estas ocorriam em encontros nos quais a população se reunia para dançar e cantar. Nestas ocasiões era possível assistir a “batalhas” de dança e de versos, ou mesmo participar em uma dessas modalidades.

Niang,

a maior parte dos elementos fundantes do rap vieram da África: de um lado a corporalidade expressa nas danças de rua derivava das danças e rituaisafricanos que teriam aportado nas Américas”. D’ANDREA, T.P. A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na

Os “MCs” – ou mestres de cerimônia, que, a princípio, eram os responsáveis por apresentar as ocasiões dançantes e, mais tarde, tornaram-se sinônimo dos próprios cantores de rap – entretinham o público e introduziam as batalhas. Os “Djs” musicalizavam os eventos. Os “b-boys” e “b-girls” eram os dançarinos do “break” – estilo de dança próprio do hip hop – e, finalmente, os grafiteiros eram aqueles que realizavam suas manifestações artísticas nos muros.

Periferia de São Paulo. Dissertação (Doutorado) em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ USP, 2013. pg. 62.

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Essas interações sociais serviam como apaziguadoras culturais das violentas tensões que havia nesse bairro. A arte serviu como um mecanismo de contenção dos conflitos daquela área, vítima de diversas violências – advindas da pobreza, da polícia e das gangues.


A partir dessas articulações, a cultura hip hop conseguiu consolidar-se de maneira muito expressiva. Tal foi sua relevância que, a partir dos anos 1970 – quando de fato foi cunhado o termo “hip hop”12 – diversos artistas começaram a ganhar visibilidade fora do Bronx. Já em 1979, o disco “Rappers Delight” seria lançado e alcançaria não só o território dos Estados Unidos, mas outros locais do mundo. Esse acontecimento foi um ponto fundamental para a disseminação da cultura.

12. “O termo hip hop só viria a ser criado em 1974 e, somente em 1978 surgiu a expressão rap music” D’ANDREA, T.P. 2013. pg. 63. 13. “Faz-se importante notar como os bairros populares de vários países o rap passou a expressar um importante e iné-

Nos locais em que o hip hop foi recebido, apesar das adaptações sofridas pelas questões específicas dos lugares, foi apropriado pelas populações mais pobres. Seu caráter de denúncia social manteve-se e disseminou-se13.

dito processo de transnacionalização por baixo de um gênero musical que passou a ser considerado como a própria voz dos pobres de todo o mundo,

No Brasil essa inserção não foi diferente. No período dos anos 1970, a cidade de São Paulo deparava-se com a formação de uma estrutura decorrente de uma explosão demográfica, que era a periferia paulistana. Formados por ocupações precárias ou clandestinas, os bairros periféricos da cidade eram constituídos por populações migrantes e carentes14. No contexto cultural desse meio, despontava, nos anos 1970, o estilo da “blackmusic”, muito presente entre jovens negros, moradores desses bairros15. Os ritmos do “funk” e “soul” adentraram de maneira comercial nos bailes e clubes. Esses estilos de dança acabaram por ganhar mais espaço nas ruas, de maneira um pouco adaptada, ganhando o nome de “breakdance”. O “break” teve um grande destaque no centro de São Paulo, no Largo de São Bento, onde os rapazes da periferia encontravam-se para realizar

independente de sua nacionalidade”. D’ANDREA, T.P.. 2013. pg. 65. 14. BARONE, A. C. C. Periferia como Questão: São Paulo na década de 1970. Revista do Programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, São Paulo,v. 20, n.33, pp: 64 – 85, 2013.

15. D’ANDREA, T.P. 2013. pg. 66.

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suas batalhas de dança. Esse local tornou-se, de acordo com os estudiosos do assunto, o palco do surgimento do movimento hip hop no Brasil. Lá, os grafiteiros – hoje conhecidos mundialmente – Os Gemeos, começaram a participar de batalhas como dançarinos e logo passaram a pintar muros. 16. O termo “crew” refere-se ao grupo ao qual um grafiteiro pertence. Essa organização funciona como uma família.

17. PANDOLFO, O. e PANDOLFO, G. IN RUIZ, Maximiliano. Nuevo Mundo. Berlim: Gestalten, 2011. pg. 15.

Pintando nomes de suas “crews”16 e testando desenhos de personagens, muitas vezes inspirados por “cartoons”, os novos artistas improvisavam nos materiais utilizados, uma vez que o spray próprio para o graffiti – o de baixa pressão – não estava disponível no mercado. Os encontros de sábado17 no Largo de São Bento serviriam para b-boys, b-girls, grafiteiros, rappers, DJs e MCs como um local de trocas, descobertas e experimentações. A geração de grafiteiros advindos do hip hop pode ser considerada a segunda geração do graffiti em São Paulo. Antes deles, grupos de artistas ligados às artes plásticas já haviam começado a pintar pela cidade, em meados dos anos 1970, ainda durante a ditadura militar. Nomes como Alex Vallauri, Rui Amaral e Celso Gitahy são destaques desse movimento inicial. A segunda geração, dos precursores de grande relevância e atuação até os dias de hoje – artistas como Binho, Vitché, Tinho, Zezão e Speto – é associada à cultura hip hop. Essa associação cultural parece ainda vigorar pelas ruas das periferias. O hip hop é ainda muito presente no meio dos grafiteiros, tanto no estilo plástico adotado,

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quanto nas músicas ouvidas e moda das vestimentas.

Uma percepção pessoal do graffiti nos dias atuais Ainda que tenha lido diversos estudos sobre o graffiti em São Paulo e visto documentários a respeito do movimento, acredito que as visões ainda estejam bastante voltadas para o início da segunda geração do graffiti. Quando se pensa no momento atual da arte urbana em São Paulo, não há uma única visão a respeito do tema do graffiti entre estudiosos e mesmo entre os grafiteiros. Desde que comecei a pintar, as definições sobre o que é ser um grafiteiro nos dias atuais são nebulosas. Anos após o surgimento da segunda geração de grafiteiros, o tema do graffiti parece, muitas vezes, estar em meio a um campo de reivindicações de protagonismo e genuinidade. Fenômenos como a facilidade de acesso a tintas de melhor qualidade a um preço viável – como os sprays de baixa pressão nas lojas especializadas na galeria do rock – abriram as portas para novos artistas se inserirem no meio da arte urbana. Tal inserção é uma novidade, uma vez que esses espaços eram frequentados primordialmente, por pessoas associadas ao movimento hip hop e à periferia. Além disso é necessário ressaltar a questão da legalidade do graffiti. Em 2011 foi sancionada uma lei18 que descriminalizou o ato de grafitar. Essa medida também im-

18. Lei n. 12.408, de 25 de maio de 2011.

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pulsionou muitos artistas a lançarem-se no meio e colaborou com a popularização desse tipo de arte. Hoje em dia, é possível ver artistas de rua que sequer conheciam o hip hop e que nasceram em bairros mais centrais da cidade. Esses novos agentes geraram reações no universo do graffiti que são, inclusive, vocabulares. Termos como “muralista” e “artista urbano” apareceram como contraponto a “grafiteiro”. Para uma vertente dos agentes desse tipo de arte, “grafiteiro” é o artista que nasceu na periferia e conheceu o rap e o breakdance durante sua vida. Esse ponto de vista defende, portanto, que “muralista” e “artista urbano” são aqueles que atuam na cidade, em seus muros e empenas, sem estarem ligados à cultura hip hop. Por outro lado, existem outras pessoas do meio que acreditam que essa “terceira geração” do graffiti já não tenha a ver com o hip hop e que, nem por isso, deixe de ser composta por grafiteiros. Outro ponto polêmico nos dias atuais é a questão do graffiti autorizado e da arte subversiva. É curioso como não há clareza por parte dos próprios artistas. É muito comum que a maioria dos grafiteiros já tenha feito pinturas autorizadas e não autorizadas em suas trajetórias. Quando se pergunta a diferença desse tipo de atuação, no entanto, há muitos artistas que não sabem responder se uma arte autorizada é um graffiti, afinal, nas 20


primeiras gerações, o graffiti surgia de intervenções não autorizadas. Ou seja, quando um artista urbano pinta algo com autorização, estaria realizando um mural e não um graffiti – como é o argumento de alguns grafiteiros. Outros conceitos também são nebulosos. “Bomb” – um estilo de letra rápida, mais redonda, geralmente feita de forma ilegal – e “grapixo” – que seria uma adaptação mais elaborada das letras da pichação – ficam entre graffiti e pichação, sem status definido. É importante ressaltar, no entanto, que a maior parte das questões apontadas nesse tópico: “a arte urbana”, “mural”, “arte autorizada”, “arte não autorizada” (também chamada “vandal”), “bomb”, “grapixo”, “pichação” e “cultura hip hop” fazem parte da trajetória de grande parte dos grafiteiros que conheço e que discutem a atual concepção do que é “graffiti”. Acredito que essas indefinições façam parte do escopo desse trabalho, porque a inserção da mulher no graffiti acontece, mais destacadamente, num momento de grandes dúvidas e questionamentos dentro do próprio movimento.

exemplo de bomb

exemplo de grapixo

Essas incompreensões serão estendidas à arte das mulheres no universo do graffiti. Muitos classificam o trabalho de grafiteiras como “graffiti feminino” e criam mais um ponto de diferenciação, como se o graffiti das mulheres fosse um outro tipo de arte. Tais discussões sugerem tensões e reivindicações dentro do meio atual do graffiti, que vão desde as origens 21


sociais do artista até seu estilo e modos de atuação. Esses debates revelam também que o universo da arte urbana se tornou amplo e resultado de numerosos e diversos agentes. Ainda que as discussões estejam em voga, é impossível pensar no graffiti, ainda nos dias atuais, sem pensar na cultura hip hop e no meio da periferia. A relevância desse tipo de arte, ainda que tenha se popularizado em outros locais da cidade, é fundamental na periferia. E este lugar ainda conta com a cultura hip hop como um elemento de contenção da violência do meio. É certo que outras culturas dividem espaço com o hip hop atualmente. O “funk ostentação” e os novos MCs, por exemplo, – que hoje em dia são cantores desse estilo musical próprio do Brasil – sugerem novas possibilidades de interação cultural na periferia. No entanto, esses movimentos não parecem enfraquecer a influência do hip hop na periferia. Para este trabalho é importante apresentar as visões atuais sobre o graffiti. O campo deste, sem embargo, é o meio periférico da grande São Paulo, porque neste ambiente é perceptível o maior impacto dessa arte, independente das discussões a respeito do tema. O graffiti dos dias atuais não está associado a autorizações, estilos ou origem social, e sim à importância cultural transformadora, principalmente para os contextos sociais da periferia. Muitos eventos de graffiti ainda refletem, em diversas circunstâncias – como a cultura hip hop em seu início 22


– uma proposta de resistência em meio a ambientes violentos e negligenciados pelo poder público.

Os eventos de graffiti na periferia e a assimetria de gênero Quando se fala em “evento de graffiti”, em geral, se diz muito mais do que um dia para pintar um muro qualquer sob esquema de mutirão. Geralmente, esses eventos são organizados nas chamadas “quebradas”, – ambientes pobres da periferia da grande São Paulo – salvo em algumas circunstâncias, como é o caso de eventos que ocorrem anualmente nos bairros da Pompeia19 e do Bixiga20.

19. Evento de Graffiti na Pompéia, que chegou à vigésima

Sob o recorte desses acontecimentos na periferia, pode-se perceber que há toda uma articulação prévia entre grafiteiros e moradores do bairro e organização para divulgação do evento.

sexta edição este ano 20. Dia do Graffiti no Bixiga, que ocorre desde 2005

É preciso definir quais muros são liberados para os grafiteiros que comparecerão no dia. Além disso, é bastante comum que os muros sejam submetidos a uma pintura de uma mesma cor, para que haja uma coesão mínima entre as produções artísticas – que, neste caso é a cor de fundo. Como esses eventos são autorizados, é importante comunicar aos moradores do bairro a presença dos artistas. 23


21. Muito eventos são realizados em escolas públicas, que, por vezes cedem apenas os seus muros e, em outras cir-

Em geral, lanches são distribuídos no dia – para compensar a falta de tintas doadas. A compra de materiais próprios costuma ocorrer, em geral, quando há algum tipo de patrocínio para a ocasião.

cunstâncias, ajudam com tintas ou lanches. 22. “o ProAC apoia financeiramente projetos artísticos, selecionados por meio de Editais. Diversas expressões culturais são contempladas pelo pro-

As motivações para a realização de um evento são diversas. Bairros que se organizam para limpar e melhorar o aspecto de ruas negligenciadas; grafiteiros associados a comércios locais visando a criação de um evento cultural para a região; iniciativas que envolvem shows de rap e arrecadação de alimentos e agasalhos; eventos de graffiti voltados para o fortalecimento do movimento hip hop.

grama em Editais específicos, entre elas: teatro, dança, música, literatura, circo, artes cênicas para crianças, festivais de arte, audiovisual, museus, diversidade e artes visuais”. Site do ProAC – Programa de Ação Cultural, Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo – http://www.cultura. sp.gov.br/.

Para que o evento ocorra com sucesso, geralmente uma crew ou um grafiteiro buscam patrocínio para que haja uma estrutura mínima. Além da tinta para o fundo dos muros e um lanche, os eventos, normalmente, contam com algum equipamento de som, para que DJs e MCs toquem. Muitas vezes, esse apoio financeiro é encontrado junto a um comércio local ou junto a uma instituição do bairro21. Em ocorrências maiores, os grafiteiros organizadores recorrem a projetos públicos de incentivo, como editais do ProAC22 e do Programa municipal VAI23. Eventos grandes como o Arte e Cultura na Kebrada (ACK) – com sua décima edição neste ano, que contou com diversos palcos com shows de dub, reggea, rap; além de batalhas de breakdance, brinquedos para as crianças do bairro, contando com diversos quarteirões do bairro de São Miguel Paulista – em geral conseguem apoio desses editais24.

foto do ACK 2016

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Outros casos notáveis de eventos marcantes ocorrem nos municípios da região metropolitana. Mauá, por exemplo, apresenta um dos coletivos mais expressivos, tanto artisticamente como socialmente. Nessa cidade, o Coletivo Comunidade Viva vem criando, desde 2005, importantes iniciativas relativas ao graffiti e à arte urbana em diversos bairros25. Hoje esse coletivo concentra suas forças no bairro Jardim Zaíra, onde tive oportunidade de participar de dois eventos: um voltado só para grafiteiras e MC’s mulheres – a primeira edição do “Só Minas”26 – e um outro que ocorreu em uma escola pública27, que abriu suas portas para toda a comunidade naquele dia, contando com shows de rap, dança e arrecadação de mantimentos para famílias dos locais mais carentes do bairro em questão.

23. “O Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais - VAI, foi criado pela lei 13540 (de autoria do vereador Nabil Bonduki) e regulamentado pelo decreto 43823/2003, com a finalidade de apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades

artístico-culturais,

principalmente de jovens de baixa renda e de regiões do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais”. http://programavai.blogspot.com.br/.

Quanto à divulgação dessas ocasiões, é possível dizer que as redes sociais apresentam um papel fundamental para conectar os grafiteiros. Pode-se afirmar que um grafiteiro na região da grande São Paulo teria, pelo menos, um evento por fim de semana para pintar com autorização. Alguns de menor porte, evidentemente, mas uma média de um por fim de semana – em certos fins de semana há mais de três eventos simultâneos. Essas ocasiões, finalmente, configuram um local de encontro para muitos grafiteiros, porque representam um espaço de troca, de conhecimento, de divulgação do seu próprio trabalho. Grande parte dessas circunstâncias não exige inscrição prévia, ou seja: qualquer artista pode comparecer, desde que chegue a tempo de conseguir um espaço.

24. Segundo a página oficial do Arte e Cultura na Kebrada, em 2013 e 2014 o programa VAI contemplou o evento. 25. LEITE, A. E. 2013.pg.154. 26. 1º encontro Só Minas, ocorrido em 2013. Esse evento será mencionado com mais detalhes no capítulo 2 deste trabalho. 27. Escola Municipal Cora Coralina, em 201. R. São João, 876. Jardim Estrela, Mauá|SP

25


Para os bairros em que ocorrem, os eventos são verdadeiros acontecimentos. Muitas crianças aparecem nas ruas, a população local passa para ver as artes sendo feitas. Caso conte com música, a atividade atrai ainda mais pessoas, que dançam e interagem. É comum que um evento dure, em média oito horas – das nove horas da manhã quando os muros são liberados até o entardecer. Os eventos de graffiti revelam toda uma dinâmica única da periferia. Interações sociais, trocas, conversas com os grafiteiros. Pude frequentar locais que, em geral, não são acessíveis no cotidiano (como algumas favelas e comunidades).

28. D’ANDREA, T.P., A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cul-

E é certo que por trás desses eventos há toda uma cultura que tem seu lado que é, de fato, aberto e libertador. Mas há também uma conduta, um discurso normativo, um modo de se comportar, que merece atenção crítica. As letras de rap, o modo de conversar, os assuntos em pauta, o que é considerado certo e errado: há, em todas essas manifestações entre os membros da periferia, um determinado código de conduta social. Este reflete uma normativa, que carrega conselhos e imperativos a respeito de como se deve agir frente às incertezas do meio periférico e aos desafios sociais28.

tura e Política nas Periferias de São Paulo. Dissertação (Doutorado) em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 2013. pg. 35.

26

Porém, o fator que mais me chamou atenção junto a esses indicativos comportamentais, às canções e essas ocasiões de encontros coletivos foi a predominância de uma questão de gênero, o masculino. A presença majoritária de homens no meio do graffiti e, principalmente, nos eventos de graffiti na periferia da grande São Paulo carrega uma


assimetria em relação à presença feminina que é evidente. Houve momentos em que a presença feminina fez-se mais presente, como no caso já mencionado do evento “Só Minas”. Também, neste ano, o Arte e Cultura na Kebrada, que contou com uma maior presença das mulheres, devido à organização por meio das redes sociais. Porém, estas ocasiões são exceções. Na grande maioria dos eventos de graffiti, as mulheres assumem uma porcentagem muito reduzida em relação aos homens. A ausência da mulher também evidencia, nesse âmbito, um universo que carrega uma normativa do que é a masculinidade29. Foi por conta dessa diferença tão manifesta e por conta de diversas situações em que pude me perceber afetada pela falta das mulheres nos espaços da periferia, que surgiu o presente trabalho.

29. DE OLIVEIRA, PP. A Construção Social da Masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG/Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesqui sas do Rio de Janeiro; 2004. pg. 142.

Meu intuito, portanto, é compreender a inserção da mulher no meio do graffiti. Num contexto majoritariamente masculino, quais as mudanças que se configuram com a presença das mulheres artistas urbanas.

27


Capítulo um: O UNIVERSO MASCULINO DO GRAFFITI NA PERIFERIA O universo do graffiti é predominantemente masculino. Ainda que haja, atualmente, uma inserção muito expressiva de novas artistas e crews femininas, é destacada a presença dos homens nesses espaços da periferia. Eles parecem dominar esse meio não só numericamente, mas também espacialmente. Em muitos eventos, a grande parte dos muros com as maiores metragens são destinados a homens – ainda que essa condição não seja discutida, porque o critério colocado é a experiência no graffiti. Lugares como as ruas também parecem ser domínio prioritário masculino. Esse predomínio revela-se nos comportamentos dos artistas, tidos como normais ou mesmo naturais. O jeito de tratar os colegas, de andar, de falar: toda a maneira de portar-se em público denota um posicionamento de controle dos locais, principalmente quando se trata das próprias quebradas. Há uma rigidez na conduta dos homens a respeito de muitos assuntos, sugerindo normativas de opiniões e de procedimentos, que criam uma dificuldade de inserção das mulheres. 28


É natural que o ambiente dos eventos de graffiti reproduza a lógica de uma sociedade machista como a brasileira. No entanto, é notável como certos comportamentos relativos à virilidade são exacerbados nos ambientes da periferia.

Masculinidade na periferia de São Paulo As periferias dos municípios da grande São Paulo representam os locais de moradia e sociabilidade da parcela mais pobre da população. Nesta reforça-se mais destacadamente – em relação a outras camadas sociais – a hegemonia do homem sobre a mulher. A questão que se deve salientar nessa reflexão – enquanto característica fundamental para a maior parte desses homens – é o conceito de masculinidade. Compreendida como uma estrutura simbólica, que se manifesta de diferentes maneiras em diversos meios sociais30, a masculinidade é tratada, via de regra, como um instrumento de poder e autoridade.

30. DE OLIVEIRA, PP. A Construção Social da Masculinidade. Belo Horizonte: Editora

Enquanto homem, por meio dessa base simbólica – que, acaba sendo intrínseca às relações –, o indivíduo aproveita-se de comportamentos e normas para justificar seu protagonismo nos meios sociais. Essa conduta é bastante presente nos meios periféricos, em que a masculinidade talvez se manifeste como o principal instrumento de poder e afirmação.

UFMG/Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; 2004. pg. 142.

Tendo em vista que sociedade atual é voltada, cada 29


vez mais, para afirmações individuais e para o consumo, é possível perceber que muitos dos comportamentos sociais são pautados por ações exibicionistas e mercadológicas, principalmente por parte daqueles que têm menor grau de escolaridade. Para sentir-se partícipe desse meio social, os indivíduos parecem viver sob a constante exposição de suas identidades – suas opiniões, gostos, sentimentos – a partir das modas vigentes. Esse modo de colocar-se é muito facilitado pelo consumo, que abre caminho para a exibição dos sujeitos a partir de suas possibilidades de compra.

31. Termo usado para designar os homens da periferia, usado,

Na periferia, esse fenômeno é refletido expressivamente no modo de vestir. Bonés (em geral de aba reta), tênis de marcas conhecidas, camisetas e calças (ou bermudas) largas compõem um modo de vestir quase generalizado entre os rapazes. Essa moda identifica os manos31 entre si e os diferencia dos homens de outras classes sociais.

em geral, entre os próprios.

Ainda assim, diferentemente dos homens das camadas altas e médias – capazes de encontrar mecanismos afirmativos a partir de um maior poder de compra – os sujeitos periféricos recorrem prioritariamente a um dos poucos meios para a constituição de suas identidades, que é a valorização e exposição da virilidade. 32. DE OLIVEIRA, PP. A Construção Social da Masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG/Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; 2004. pg. 108.

30

Se, de um lado, há uma parcela dos primeiros que vem questionando os parâmetros mais tradicionais da masculinidade – por conta das diversas mudanças mercadológicas da sociedade atual, que podem propiciar outros tipos de afirmação da identidade por meio de uma “libe-


ralização” via consumo32– por outro, os últimos ainda se encontram distantes dessas novas possibilidades.

33. DE OLIVEIRA, PP. A Construção Social da Masculinidade. Belo Horizonte: Editora

Já é perceptível a existência de um espaço comercial para outros tipos de homem, diferentes daqueles que seguem o estereótipo viril. Essa gama de possibilidades pode ser notada sob diversas perspectivas, como, por exemplo, os meios voltados aos homossexuais33. Há toda uma moda voltada para este público, bem como locais de sociabilização – bares, restaurantes – e até mesmo meios digitais, como programas de TV, séries e sites. No entanto, esses múltiplos espaços, que dizem respeito a outros perfis de identidade, são voltados àqueles que podem consumi-los.

UFMG/Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; 2004. Construção social da masculinidade pg. 109. 34. DE OLIVEIRA, PP. A Construção Social da Masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG/Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do

Portanto, essa suposta diversidade ainda não é verificada entre os meios da periferia. Menos afetados pelas possibilidades do mercado, os homens dos segmentos mais pobres encontram nos padrões consagrados da masculinidade um motivo de orgulho e de enriquecimento pessoal34. Os diferentes tipos masculinos são motivos, então, de chacota entre os grafiteiros, que costumam fazer “brincadeiras”, taxando outros homens de homossexuais e playboys35. A questão da mercantilização da identidade encontra-se inserida num contexto maior, em meio a dinâmicas sociais da contemporaneidade, associadas a conceitos como diversidade, consumo, políticas de identidade, dispersão e poder financeiro36. Essas variáveis compõem o cenário da atualidade, no qual se destaca a exacerbação das afirmações individuais frente a uma sociedade completamente voltada ao consumo.

Rio de Janeiro; 2004. pg. 203. 35. Termo utilizado para referir-se a homens das camadas média e alta, que desconhecem os perigos e dificuldades da vida na periferia.

36. DE OLIVEIRA, PP. A Construção Social da Masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG/Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; 2004. Pg. 86.

31


Em meio a um momento que abarca tantas possibilidades, dúvidas e questionamentos de identidade, é importante perceber que a masculinidade serve aos grafiteiros como um lugar simbólico seguro e dotado de certezas.

O homem no graffiti e as afirmações da masculinidade A dicotomia entre uma possível crise na masculinidade – nos meios acadêmicos, em que estão as classes média e alta – e a sua constante legitimação – percebida nos ambientes de eventos de graffiti – tornou-se bastante evidente durante os quatro anos em que frequentei locais da periferia de São Paulo.

desenhos de estudo dos “manos” sobre fotos

37. “Os jovens manifestam uma

Muitos grafiteiros apresentam um comportamento afirmativo constante de sua virilidade. Essas manifestações se dão por meio de brincadeiras entre os colegas – que acham cômico chamar uns aos outros de “gay” – pelas referências às respectivas esposas e namoradas; ou, em casos nos quais, em trocas de mensagens por celular, fotos de mulheres “objetificadas” circulam no domínio dos grupos; etc. O fato é que parece muito relevante para a grande maioria desses homens que sua masculinidade seja explicitada.

rejeição à homossexualidade. A violência que provoca ao ver um homossexual como um homem que se perde se aplaca com a distância” AGUIRRE, R e GÜELL, P. 2002. pg.36

32

Por trás desta postura assertiva, há valores implícitos a respeito de ser um homem. Mais que do que ser do sexo masculino, nessas manifestações verbais, os grafiteiros afirmam uma condição essencial para a legitimação de sua hombridade: a heterossexualidade37 – que está associada a


questões como a virilidade38 e autoridade patriarcal39.

38. “A postura dos homens latino americanos frente às

Pode-se afirmar que as condutas masculinas dos meios mais populares da grande São Paulo ilustram as diversas provações que o machismo estabelece para os homens.

mulheres é colocada em termos nos quais os primeiros possuem um “desejo infreável” ,enquanto as últimas podem reprimir-se. AGUIRRE, R e

O estudo encomendado pela OMS a um psiquiatra e um sociólogo chilenos40 a respeito da construção da masculinidade entre os adolescentes da América Latina41 permitiu fazer diversas aproximações a respeito dos homens do graffiti em São Paulo.

GÜELL, P. 2002. pg.24. 39. Idem. Ao mencionar suas esposas, esses homens relatavam, em diversos casos, que haviam deixado de beber ou

As várias esferas de afirmação da masculinidade, levantadas pelos estudiosos, pelas quais passam os homens latino-americanos – o próprio corpo, o caráter, a família, a mulher e o círculo social de seus pares – são muitas vezes percebidas no modo de portar-se dos grafiteiros.

pichar – situações que apresentam riscos – porque haviam casado ou tido filhos. De acordo com o estudo citado acima, esse tipo de comportamento tem a ver com a ideia de que

Partindo do contato inicial, que se dá superficialmente por meio da aparência, já é possível perceber as primeiras afirmações de masculinidade. A ideia de que é preciso ter um corpo forte, na medida em que este indica resistência e capacidade protetora, reflete uma constante busca por um tipo físico. Quando se observa os rapazes do meio do hip hop, percebe-se que a forma de simular corpos mais robustos é por meio do uso de roupas largas, típicas dessa cultura. Mais que uma moda, essa indumentária dá a impressão de força aos corpos.

ser homem é ser responsável

Esse modo de vestir reforça as diferenças com os corpos femininos. Dentro da cultura hip hop, as “roupas

41. O estudo inclui o Brasil

pela família. 40. Rodrigo Aguirre e Pedro Güell.

dentre os países analisados.

33


42. AGUIRRE, R e GÜELL, P. 2002. pg.18. 43. AGUIRRE, R e GÜELL, P. 2002.pg. 20. 44. A expressão é utilizada

femininas” ainda que possam apresentar elementos mais largos, em geral exibem peças mais ajustadas, modelando o corpo – revelando, portanto, como este é de fato. Sendo assim, as roupas largas – que escondem o corpo original e simulam um volume maior – indicam um contraponto ao corpo feminino, encarado como frágil. Essa ideia reforça os opostos ativo/passivo, superior/inferior42.

como forma de demonstrar humildade frente aos colegas grafiteiros e seus trabalhos artísticos. É uma expressão usada por mulheres também. 45. “Os homens legitimam-se entre eles e isso dá-se ‘fora’, na rua, um espaço probatório, onde se desempenham impor-

Com relação a questões menos superficiais, é relevante associar os comportamentos relativos ao caráter dos homens e suas associações com afirmativas da masculinidade. Nos países da América Latina, há uma forte concepção que parte da premissa que o homem deve ser responsável, respeitoso e, sobretudo, autossuficiente. Autocontrole emocional e a não dependência – associada muitas vezes à vulnerabilidade – são quesitos fundamentais para a formação do caráter masculino43.

tantes mandatos do masculino como a honra, o risco e a limitação”: AGUIRRE, R e GÜELL, P. 2002. pg. 26. 46. O termo é utilizado de duas formas no meio do graffiti. Pode tratar-se de um passeio descompromissado ou deum acontecimento marcado,

Essas características são muito perceptíveis nos comportamentos de grafiteiros homens em diversas circunstâncias. Nos eventos, é comum perceber que a questão do respeito é muito valorizada. Há uma expressão que denota essa conduta, usada de maneira recorrente: máximo respeito44. Esse valor revela-se presente também na medida em que é importante ser humilde e cordial com os colegas das diferentes quebradas, compreendendo que há uma lei das ruas, que demanda esse tipo de comportamento.

como no caso do evento. Neste caso, aplica-se a última definição: “ocorrido”, um “espaço de encontro no qual passam diversas situações”.

34

Talvez o ponto de maior destaque, no entanto, sejam as relações estabelecidas no círculo de amizades, que são sugeridas no estudo e podem ser comparadas com as constantes afirmações da masculinidade entre os grafitei-


ros no meio dos eventos de arte urbana45. Sendo assim, o ato de fazer uma intervenção nas paredes nestas circunstâncias parece ser apenas um dos fatores relevantes para o comparecimento dos rapazes aos encontros.

47. “Para os homens, em uma escala mais ampliada e considerando apenas o regime de gênero, teríamos a rua como seu domínio, espaço de incer-

Interagir com os amigos, dominar as técnicas mais complexas de pintura com o spray, contar relatos a respeito de situações consideradas bem-sucedidas em suas vidas – o grande número de locais nos quais pintou, as vantagens que soube aproveitar em algum trabalho comercial, alguma disputa com outros grafiteiros pouco respeitáveis (por não cumprirem códigos no meio da arte urbana) – são questões igualmente importantes em um rolê46. A rua torna-se, então, mais que um espaço de encontro cultural. O domínio público apresenta-se como local de afirmações da masculinidade, no qual os homens exercem um mando territorial47.

tezas, dos conflitos e do poder (público-institucional) e que demanda capacidade de mando e também maior autocontrole (...)”. DE OLIVEIRA, PP. 2004. pg. 234.

48. “Assim, em muitos casos, a exacerbação da identidade construída de modo positivo será reflexo de uma necessi-

Esse poder sobre um território é muito relevante na medida em que esses sujeitos periféricos afirmam suas identidades48 por meio do domínio desses espaços. Organizar um evento de graffiti, ou mesmo participar ativamente desse universo sugere um protagonismo social que estes indivíduos não atingem por meio do capital, como fazem os homens das classes média e alta. Impossibilitados de afirmar-se socialmente por meio do poder econômico, os homens da periferia garantem seu status a partir do fortalecimento da masculinidade normativa e de seu comportamento expansivo.

dade de afirmação frente aos demais grupos aos quais estes se contrapõem. No caso específico da exacerbação masculinista, operada pelos homens dos segmentos populares, estaria em jogo uma estratégia compensatória acionada para contrabalançar a falta de um maior poder de ação e intervenção nas mais diferenciadas esferas sociais”.DE OLIVEIRA,

Grafitar é, portanto, uma dupla ferramenta de afir-

PP.2004. pg. 216.

35


mação de identidade. De um lado, pela marca pessoal deixada enquanto imagem nas ruas e, do outro, o status e o domínio das quebradas.

49. AGUIRRE, R e GÜELL, P. 2002. pg.27.

A afirmação da masculinidade na questão da “conquista do território” é percebida no campo simbólico que essa tomada de espaço público representa. A rua, principalmente nas periferias, é o local da desordem, dos perigos, da violência e dos riscos. Assumir uma postura de ordenadores desse espaço atribui aos homens as qualidades de subordinação das situações e autocontrole49. Assim, principalmente aqueles que organizam eventos, colocam-se enquanto responsáveis pelos locais públicos durante essas circunstâncias. Diversos eventos de graffiti ocorrem em locais em que as ruas estão degradadas, os muros sujos, a vegetação excessiva e desordenada. O papel ativo de diversos rapazes grafiteiros é a revitalização desses lugares, antes mesmo do dia de um determinado evento. Sob o esquema de mutirão, limpa-se a rua, pintam-se os muros com alguma cor padrão no fundo, capina-se o mato. Quando acontece o dia da pintura, também a partir de uma mobilização de artistas urbanos, grande parte da reabilitação do ambiente já foi realizada. A afirmação territorial acontece também na escala do muro. Porém o que talvez se sobressaia nesse meio seja como a adoção de certos costumes plásticos do graffiti confere um maior destaque espacial a certos grafiteiros. O meio do graffiti pode parecer, a princípio, aberto

36


a diferentes estilos artísticos. Ao frequentar os eventos, no entanto, percebe-se que existem certos atributos em uma composição que se destacam. Conversas a respeito dos estilos de cada grafiteiro e desde quando um artista grafita são frequentes. A primeira questão diz respeito ao domínio de diferentes técnicas. Aqueles que sabem fazer letras, 3D, e realismo50 com maestria são mais respeitados em relação aos outros. Esse status confere uma maior relevância na escala do muro, uma vez que esses indivíduos recebem – em eventos em que o espaço é previamente separado – espaços maiores e muros mais lisos para sua arte.

50. Os estilos elencados têm a ver com o graffiti tradicional mencionado

anteriormente.

As letras associam-se ao estilo primordial da arte dos writers do hip hop; o 3D é uma derivação das letras em geral: os grafiteiros desenham as letras, criando ilusão de profundidade por meio de luz e sombra; e o realismo é um tipo de desenho que se faz a partir de uma foto.

A segunda questão reforça o caráter de merecimento dos melhores espaços. Há eventos em que grafiteiros experientes, por serem admirados, conseguem pintar em muros “preferenciais”51.

Neste caso, quanto mais similar à foto, maior a maestria do artista. 51. Nem sempre esse tipo de prática é verificado, principal-

Saber discutir os estilos e dominar as técnicas passa também por um reconhecimento entre os pares. Esse movimento que busca uma unidade entre os indivíduos pode ser verificado também no vocabulário e no modo de vestir dos rapazes. Essa linguagem comum aos grafiteiros é encontrada, sobretudo, nas letras de rap nacional.

Os valores presentes no discurso do homem da periferia

mente se o esquema de mutirão ocorre. Há diversos eventos em que os espaços são divididos por ordem de chegada. No entanto, a prática do “merecimento” tem uma ocorrência que merece destaque.

As letras de rap, em geral, refletem os eventos de graffiti. Diversos episódios contam com palcos em que há músicas desse estilo sendo tocadas ao vivo ou até mesmo, há carros com um sistema de som, que funciona como trilha sonora do processo de pintura. O rap serve de narrativa 37


da vida na periferia e teve, em seus primórdios, associação direta com o graffiti. Ainda que os tempos tenham mudado, seu caráter de denúncia e “voz da periferia” mantém-se. Essa voz traz, sobretudo, revelações. Muitas associadas ao modo de pensar dos homens da periferia. Diversas concepções estão associadas diretamente com a masculinidade. Sendo assim, o rap enuncia as normativas que devem ser seguidas para ser um homem de respeito nesse contexto de precariedade de seus bairros. Para melhor ilustrar esses princípios, serão analisados alguns trechos de músicas que elucidam o universo periférico do rap e do graffiti. Foram escolhidos dois artistas de diferentes momentos no rap nacional, pelo protagonismo no movimento e presença ativa como trilha sonora nos eventos. 52. Grupo de Rap Brasileiro, criado em 1988 por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e o dj KL Jay. 53. Cantor de Rap, que teve sua

trajetória

iniciada

em

1989, mas ganhou visibilidade maior nos anos 2000.

Os Racionais MCs52e Criolo53 apresentam, em suas trajetórias, uma repercussão muito relevante de seus trabalhos, não só entre a população da periferia, mas entre outras classes – que acabaram por se apropriar desse estilo de música. Essas duas escolhas não são, necessariamente, representativas do universo do rap nacional. Há diversos artistas que talvez sejam mais conhecidos nas quebradas, ou mais respeitados entre as populações que vivem nesses locais – uma vez que o próprio Criolo já não tem a mesmo reconhecimento na periferia, como tinha no início da carreira. As canções elencadas aqui, no entanto, têm o viés

38


metodológico de ilustrar casos de artistas que têm suas letras difundidas de modo amplo e que revelam os valores dos homens da periferia a partir de dois pontos de vista: o da arte como alternativa a um ambiente violento e sem oportunidades; e o do caráter forte e batalhador dos sujeitos moradores desses locais. Além disso, o ano em que foram compostas as canções estão mais relacionados ao escopo do trabalho, tendo em vista que foram produzidas já nos anos 2000. Essas duas abordagens são mais relevantes para o contexto do trabalho na medida em que evidenciam o discurso vigente do porquê um indivíduo busca o caminho da arte54 – seja por meio da música, dança ou graffiti – e como deve ser sua postura frente às adversidades impostas pelo meio. Essas atitudes passam diretamente pelo universo masculino, na medida em que colocam os homens como protagonistas nesse ambiente.

A vida é um desafio – 2002 – Racionais MCs

54. D’ANDREA, T.P., A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política nas Periferias de São Paulo. Dissertação (Doutorado) em Sociologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 2013. pg. 87.

“É necessário sempre acreditar que o sonho é possível / Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível / Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase / E o sofrimento alimenta mais a sua coragem / Que a sua família precisa de você / Lado a lado se ganhar pra te apoiar se perder / Falo do amor entre homem, filho e mulher / A única verdade universal que mantém a fé / Olhe as crianças que é o futuro e a esperança / Que ainda não conhece, não sente o que é ódio e ganância (...)” “A vida não é o problema, é batalha, de39


safio / Cada obstáculo é uma lição, eu anuncio” “É isso aí você não pode parar / Esperar o tempo ruim vir te abraçar / Acreditar que sonhar sempre é preciso / É o que mantém os irmãos vivos” “O aprendizado foi duro e mesmo diante desse / revés não pareio de sonhar, fui persistente / porque o fraco não alcança a meta / Através do rap corri atrás do preju / e pude realizar o meu sonho / por isso que eu afro X nunca deixo de sonhar” “A gente reza, foge, e continua sempre os mesmos problemas / Mulher e dinheiro tá sempre envolvido / Vaidade, ambição munição pra criar inimigo / Desde o povo antigo foi sempre assim / Quem não se lembra que Abel foi morto por Caim / Enfim quero vencer sem pilantrar com ninguém / Quero dinheiro sem pisar na cabeça de alguém / O certo é certo na guerra ou na paz / Se for um sonho, não me acorde nunca mais / Roleta russa quanto custa engatilhar /Eu pago o dobro pra você em mim acreditar” “Geralmente quando os problemas aparecem / A gente tá desprevenido né não? /Errado /É você que perdeu o controle da situação / Perdeu a capacidade de controlar os desafios” “Principalmente quando a gente foge das lições / Que a vida coloca na nossa frente ta ligado? / Você se acha sempre incapaz de resolver /Se acovarda moro”

É o Teste (2006)– Criolo “É o teste, é o teste, é a febre, é a glória / Não se 40


corromper pra nóis já é vitória / É o teste, é o teste, é a febre, é a glória / Procure ser feliz, pobreza não é derrota / É o teste, é o teste, é a febre, é a glória / Enquanto deus deixar vou rimar até umas hora / More aonde for, viva o que viver, / Seja um homem, e mantenha sua postura”. “Vários vão pro saco, na vala não tem vaga / O Criolo aqui é doido e não aceita mancada. / O que penso família, ainda nela acredito / Deus abençoe meus pais e fortifique o meu espírito. / Pior que um trator, no Grajaú na missão, / Vários manos representam, relâmpago e trovão. / Sem oportunidades, o negócio que mais cresce, / É vender uma paradinha, ou então cantar um rap. / Na correria a milhão no bolo eu também tô, / Zona sul nossa quebrada valoriza o rimador. (...). Realmente compreendi, sobreviver é só pros fortes. / E da morte, não há como desviar, / O tempo encurtou, então devo me expressar. Caneta e caderno, minhas armas descrevi (...)” . “Porque eu canto é com amor, essa porra de rap / Eu já vi a morte na minha frente, a morte não me esquece. / O que me fez diferente, foi aceitar meu talento, /Rimadores com flow pra aliviar seu tormento. /O que eu digo, é de coração amigo, /Se eu tivesse que parar, eu já tinha parado mas eu sigo. / Porque a arte liberta, esse é o meu desejo, / Talento Deus deu do metalúrgico, ao cozinheiro(...)” Nas duas letras prevalecem posturas relativas a dois principais pontos da construção social da masculinidade: o caráter individual e a família. Os trechos extraídos pretendem mostrar quais são os comportamentos considerados adequados a um “homem de respeito”. 41


Quanto ao caráter, diversas são as passagens em que se podem identificar conteúdos que norteiam o comportamento dos homens. A partir dos grifos, o “truta” – ou o sujeito, indivíduo masculino – deve ser “imbatível” já que sua vida é uma “batalha”. As canções também anunciam que é importante ter controle das situações, como nos trechos “Geralmente quando os problemas aparecem / A gente tá desprevenido né não? /Errado /É você que perdeu o controle da situação” e “Seja um homem, e mantenha sua postura”.

55. AGUIRRE, R e GÜELL, P. Hacerse Hombres: la construcción de la masculinidade en los adolescentes y sus riesgos. Pan American Health Organization, PAHO:OPS/OMS.

Fundación

W.K. Kellogg, 2002. pg. 20.

Existem nesse conteúdo indicações diretas de que o homem deve ter controle de si mesmo e das situações que o rodeiam mesmo que elas sejam adversas55. O meio sugerido para não ceder a situações de descontrole – o crime e a violência – é a arte, como sugerido nas passagens “Rimadores com flow pra aliviar seu tormento”, “Porque a arte liberta, esse é o meu desejo” e “porque o fraco não alcança a meta / Através do rap corri atrás do preju/ e pude realizar o meu sonho”. Esse discurso é muito comum entre os grafiteiros, que manifestam sua resistência a uma vida violenta por meio do graffiti. A arte, para eles, é uma forma de expressão e, principalmente, de conduta correta. Muitos, inclusive, associam fases mais adversas de suas vidas àquela em que pichavam. O graffiti, portanto, diferente da pichação, é tido como uma possibilidade de “batalha” e superação das adversidades. Tal pensamento não é unânime, mas apresenta uma frequência bastante relevante no meio. O outro ponto indicado nas letras é o comportamen-

42


to frente à família. Nos versos fica evidenciado o caráter de responsabilidade e vínculo em relação ao grupo familiar, como em: “Que a sua família precisa de você” e “Falo do amor entre homem, filho e mulher”. Nessas passagens, fica implícita a ideia de que é obrigação do homem manter o controle e prover para sua família, seja esta a de origem – seus pais e irmãos – ou a de destino – sua esposa e filhos56. Fica subentendido também o significado de família para os homens da periferia: um núcleo familiar composto por um casal heterossexual, que tenha concebido filhos. Essa percepção não indica, necessariamente, que todos os grafiteiros tenham filhos. No entanto, o entendimento de um núcleo familiar “verdadeiro” é muito presente em seus discursos, como se verifica em “[amor entre homem, filho e mulher] A única verdade universal que mantém a fé”. Essa ideia é reforçada por crenças religiosas que reiteram esses valores: “O que penso família, (...) / Deus abençoe meus pais e fortifique o meu espírito”57.

56. AGUIRRE, R e GÜELL, P. Hacerse Hombres: la construcción de la masculinidade en los adolescentes y sus riesgos. Pan American Health Organization, PAHO: OPS/OMS. Fundación W.K. Kellogg, 2002. pg. 22.

57. A questão da religião não será abordada a fundo neste trabalho, por sua complexidade. No entanto, é importante mostrar sua influência nos setores periféricos, uma vez que ela reforça dogmas e discursos normativos já presentes em uma sociedade machista.

43


Capítulo dois: O GRAFFITI FEMININO NO ESPAÇO PÚBLICO A mulher brasileira e os espaços públicos São diversos os fatores que conduziram à apropriação do espaço urbano por mulheres grafiteiras. Para compreender melhor essas causas, será importante, primeiramente, traçar uma trajetória histórica da inserção da mulher no ambiente público e, principalmente, periférico. A questão da mulher e do espaço público está associada a uma série de conquistas logradas, sobretudo, por mulheres trabalhadoras a partir dos anos 1960. Antes desse período, sem embargo, sua condição enquanto trabalhadoras já era uma realidade.

58. RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: BASSANEZI, C e PIORE, M. D. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Unesp

Desde as primeiras décadas do século XX, a mulher ocupou espaços de trabalho tanto dentro quanto fora de casa. No espaço rural e urbano, a mulher pobre trabalhou como doméstica, lavadeira, cozinheira, operária até como prostituta. Mesmo as jovens das camadas média e alta já exerciam determinadas funções públicas como professoras, médias, jornalistas etc58.

e Editora Contexto, 1997. pg 603

44

Apesar disso, as autoridades e os homens de ciência


do período consideravam a participação das mulheres na vida pública incompatível com sua constituição biológica. Pelo menos até os anos 1960 era pensamento dominante que o lugar de mulher era no lar, sendo o espaço público (de bares a política) o domínio masculino59. Sendo assim, no Brasil, até o fim desse período mencionado, o espaço designado à mulher na sociedade era o ambiente privado do lar. Ser do sexo feminino era uma condição associada diretamente ao casamento e à maternidade60.

59. idem

60. RAGO, Margareth. Ser mulher no século XXI ou Carta de Alforria. In: A Mulher Brasileira

No início dos anos 1970, a partir da modernização econômica no país, a mulher passou a participar mais ativamente do mercado de trabalho. A nova posição na sociedade foi responsável por começar a desestruturar a ideia de que a mulher seria encarregada, apenas, das questões relativas à domesticidade61.

nos Espaços Público e Privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. pg 31

61. RAGO, Margareth. Ser mulher no século XXI ou Carta de

No entanto, esse vínculo com o lar ainda é muito vigente até os dias de hoje e traduz-se de maneira expressiva na vida pública das mulheres. Sua participação no espaço público é acompanhada por reivindicações relativas a serviços e equipamentos, que permitam que sua vida doméstica não interfira em suas jornadas de trabalho. Creches, parques, praças, hospitais, escolas são lugares indispensáveis para que a questão da maternidade não seja um empecilho para o período laboral feminino62.

Alforria. In: A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. pg 32

62. SANTORO, P.F. Gênero e planejamento territorial: uma

É certo que coube a muitas mulheres tomar o espaço, antes predominantemente masculino, de chefe de família. Essa posição incluiu não só o domínio do lar, mas

aproximação.

XVI

Encontro

Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu, 2008, p7.

45


também dos espaços públicos do mercado de trabalho, para que fosse possível o sustento familiar. Tal condição não garantiu, entretanto, uma maior igualdade social em relação aos homens.

63. SANTORO, P.F. Gênero e

Sendo assim, passou-se a perceber também, uma maior movimentação entre as mulheres em busca de direitos que permitissem a igualdade de gênero. Ou seja, elas perceberam a assimetria que viviam socialmente e seus discursos frente ao território vêm mudando consideravelmente nos últimos anos, sobretudo a partir de 1998, quando a Constituição Federal incluiu uma série de direitos relativos à cidade, à moradia – assuntos que tangem o universo das mulheres63.

planejamento territorial: uma aproximação.

XVI

Encontro

Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu, 2008, pg 8.

64. VENTURI, Gustavo e RE-

É importante salientar, no entanto, que ainda que a postura das mulheres em direção à ocupação do espaço público tenha mudado e elas já não se percebam enquanto exclusivamente domésticas, há ainda muito a ser conquistado no domínio do público. Sendo o mercado o principal meio de entrada nesse universo, percebe-se que campos como o da política, do conhecimento e da arte ainda carecem da presença feminina. A dupla jornada da mulher – ora no trabalho, ora no lar – acaba por dificultar diferentes inserções territoriais. Além disso, o pensamento conservador existente no país coopera para que essa condição seja mantida64.

CAMÁN, Marisol. Introdução. In: A Mulher Brasileira nos Espaços Público e Privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. pg 29

46

Ao estudar as primeiras inserções da mulher no campo do graffiti, verifica-se um atraso frente à presença masculina. Quase não há registro de grafiteiras antes dos anos 2000. Um número expressivo de mulheres no graffiti co-


meçou a atuar apenas trinta anos após a época em que se verifica a maior inserção da mulher nos espaços públicos e vinte anos após o surgimento de artistas urbanos associados ao hip hop. Antes disso, há poucos casos expressivos de sua presença.

A mulher no ambiente do graffiti na grande São Paulo Poucas mulheres participaram das primeiras articulações do graffiti no Brasil. No fim da década de 1970 até o início de 1980, quando os expoentes dessa arte começaram a ocupar as ruas, é possível identificar a presença de apenas três mulheres, dentre os vinte e cinco nomes65 associados àquele movimento de contestação e irreverência no qual formou-se a “primeira geração do graffiti”. Seriam elas Marcia Mayumi Chicaoka e Carmen Akemi Fukunari – que juntas formavam um coletivo Marcia & Carmen – e Cláudia Reis – do coletivo Tupinãodá66.

65. Estudo realizado pela Editora Zupi, no livro Estética Marginal, de 2012 (LEITE, Antonio Eleilson. Graffiti em SP. São Paulo: Aeroplano Editora, 2013).

66. LEITE, Antonio Eleilson. Graffiti em SP. São Paulo: Ae-

Essa tímida presença nos anos 1970 perpetuou-se durante os anos 1980 e 1990, quando o graffiti já estava fortemente associado à cultura hip hop. De certa forma é compreensível que uma cultura que nasceu como alternativa a ambientes violentos fosse predominantemente masculina. Questões relativas à hostilidade da periferia e à criminalidade do tráfico têm associação com os modos de sociabilidade dos homens – que procuram, no crime, a possibilidade de reconhecimento social67. Essa busca masculina por respeito pode ser aproximada, no contexto es-

roplano Editora, 2013, pg 108. 67. PIMENTA, Melissa de Mattos. Masculinidades e sociabilidades: Compreendendo o envolvimento de jovens com violência e criminalidade. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 7 nº3, pp: 701-730, 2014.

47


tudado, ao desejo de destaque social no meio artístico do hip hop. Sendo assim e, como já mencionado no capítulo um, como o poder social masculino tem mais força em locais mais pobres, é compreensível que as mulheres no graffiti tenham levado mais tempo para conquistar seu espaço.

68. PANDOLFO, Nina. Nina

Uma das pioneiras da época do início do hip hop em São Paulo foi Nina Pandolfo. Ela começou a grafitar com Os Gemeos, sendo esposa de um deles até o início de 2016. Nina é uma exceção e, de certa forma, o incentivo dado a ela pelos irmãos ajudou-a a colocar-se no meio urbano68.

Pandolfo ‘Ainda rola muito machismo no grafite’ 2011. Disponível em: http://jovem. ig.com.br/nina-pandolfo-ainda-rola-muito-machismo-no-grafite/n1597255658218. html. Acesso em outubro de 2016. 69. Também são levados em conta fatores intrínsecos à sociedade brasileira relativos à discriminação, como questões de racismo e homofobia

Apesar do pioneirismo de Nina, é importante apontar que o acesso ao graffiti foi dificultado às mulheres por diversos empecilhos durante muitos anos. Alguns deles atingiam a todos os grafiteiros, como a falta de materiais próprios para a arte – sprays de baixa pressão e lojas especializadas em artigos para arte urbana – e os impedimentos legais. No entanto, fatores como a insegurança das ruas e o meio majoritariamente masculino formaram maiores barreiras para a inserção de mais mulheres na cena69. Antes dos anos 2000, portanto, o número de grafiteiras no meio da arte urbana era bastante reduzido70.

70. Ainda assim, é possível levantar nomes como Nene Surreal, Aline Lorenzon, que começaram suas trajetórias com a prática da pichação

48

Já no início dos anos 2000, o quadro feminino no graffiti começou a mudar de maneira significativa. Esse fenômeno tem a ver com certos fatores que permitiram o acesso das mulheres no meio dessa arte. Primeiramente,


em certos locais da grande São Paulo, centros culturais começaram a oferecer oficinas de graffiti71, sugerindo uma maior popularização dessa arte, antes tida como underground.

71. Entrevista da grafiteira Rizka, cedida pela página “Graffiti Mulher e Cultura de Rua”. Oficinas ministradas em 2002,

Diversos relatos de grafiteiras apresentam centros culturais ou casas de cultura como locais que introduziram o graffiti – e as outras áreas da cultura hip hop – como uma atividade de entretenimento72. É possível pensar que esses espaços, portanto, representaram possibilidades mais seguras e experimentais para as mulheres, que ainda se sentiam hesitantes em lançar-se nas ruas. Sendo assim, revelaram-se locais públicos facilitadores para artistas urbanas. Em segundo lugar, as primeiras articulações entre as mulheres passaram a ocorrer por meio da formação de crews entre grafiteiras que já experimentavam o graffiti sozinha. Um dos casos de destaque é a “Crew Noturnas”, que começou a atuar em 2006 nas ruas de São Paulo. A história desse grupo vai além de uma interação voltada para o graffiti. Tratava-se de um grupo de garotas que queria fazer atividades diferentes73. Ana Carolina Meszaros, a Tikka, já desenhava desde de criança e, dentre as muitas ideias, as jovens cogitaram formar um grupo de graffiti. Esse propósito foi impulsionado quando uma de suas componentes, a chamada Miss, começou a namorar o grafiteiro Nove, que as incentivou a seguir com a ideia de pintar nas ruas74.

pelo grafiteiro Onino na Zona Leste de São Paulo. Gestão municipal de Marta Suplicy 72. Cristiane Monteiro, por exemplo, relata a articulação em torno da Casa de Cultura em Embu das Artes

73. RAMOS, M; GREGÓRIO, B e BERNACCHIO, B. TIKKA. (Filme) Estúdio Subterrâneo, São Paulo, 2011.

74. RAMOS, M; GREGÓRIO, B e BERNACCHIO, B. TIKKA. (Fil-

Foi assim que o grupo começou a grafitar em 2002. Parte das garotas decidiu criar a Crew Noturnas em 2006, que foi formada inicialmente pelas grafiteiras Tikka, Suzue

me) Estúdio Subterrâneo, São Paulo, 2011.

49


75. Kel, Miss, Pan, Prila e Yá

76. O site facebook foi lançado em 2004 e, antes dele, a prin-

e Zeila. A crew tornou-se um dos expoentes femininos do graffiti e chegou a contar com mais cinco grafiteiras em sua formação, além de suas precursoras75, ocupando o espaço público de maneira expressiva. Talvez o terceiro fator responsável por dar mais força ao movimento feminino no fim dos anos 2000, foi a internet e suas ferramentas. Os espaços criados a partir das redes sociais76 facilitaram a divulgação de informações e, principalmente, passaram a divulgar eventos de grafftiti.

cipal rede social no Brasil era o Orkut

77. Cristiane Monteiro, já mencionada previamente

78. Prefeitura de São Paulo sob a gestão de Gilberto Kassab (PSDB)

50

Sendo assim, dos anos 2000 a 2012 as mulheres passaram a ocupar as ruas de São Paulo. Já no ano de 2012, a articulação entre mulheres passou a ganhar ainda mais força no meio das redes sociais. Sob a iniciativa de uma grafiteira77 que iniciou sua trajetória em 2002, foi criado um grupo no site faceboook – o “Graffiti Mulher e Cultura de Rua”, voltado para a articulação de grafiteiras. Esse espaço representou uma possibilidade de inserção no meio do graffiti para muitas mulheres que se interessavam pela cultura hip hop e já desenhavam. Essas articulações foram estimuladas por iniciativas que valorizavam mais e mais o graffiti nos espaços urbanos, como o projeto do Museu de Arte a Céu Aberto – organizado por Binho, nas pilastras do metrô Santana ao Tietê, em 201178 – e a lei já mencionada, que descriminalizava o graffiti em nível federal, também do mesmo ano.


A popularização do graffiti nos anos 2000: poder público, mídia e mercado Acredito ser fundamental compreender o panorama geral que parece ter impulsionado a inserção de grafiteiras no ambiente da arte urbana, por meio da popularização massiva do graffiti. Em particular as questões relativas à maior aceitação dessa arte, tendo em vista alguns pontos contraditórios dentro do novo cenário. Como mencionado, nos anos 2000, houve diversas iniciativas, realizadas por diferentes agentes, voltadas para a aceitação do graffiti e sua comercialização. O poder público, as lojas especializadas em artigos para arte urbana e a apropriação da cultura periférica pela mídia desempenharam o papel de facilitadores para a inserção da mulher no meio. Quanto ao poder público, podem ser registradas medidas tomadas no curso dos anos, que permitiram que o período mencionado tivesse condições de protagonizar a grande inserção feminina no graffiti. Essa atuação ocorreu principalmente via poder dos municípios da grande São Paulo a partir de políticas públicas implementadas no início dos anos 1990. A política da Secretaria da Cultura da gestão do município de São Paulo dos anos 1989 a 199279 foi responsável pela criação de iniciativas que começaram a favorecer as culturas periféricas. Sob o comando da secretária Marilena Chauí foi implementado o projeto das Casas de Cultura, que propunha uma reinterpretação dos termos “centro”

79. Prefeitura de São Paulo sob gestão de Luiza Erundina (PT)

51


80. BARRETO, P. S. Casas de

e “periferia”80.

Cultura e o Projeto de Cidadania Cultural. In: FARIA, Hamilton e SOUZA, Valmir de. Cidadania Cultural em São Paulo 1989 – 1992: leituras de uma política pública. São Paulo: Pólis – Estudos, Formação e Assesso-

Foram catorze as primeiras Casas de Cultura implantadas em São Paulo, a partir dos anos 1990 e 1991, inseridas em diversos locais da periferia na extensão do município81. Acredito ser relevante apontar os locais de sua presença por zonas, para perceber melhor seu impacto no território.

ria em Políticas Sociais. nº28, 1997. pp 60 – 71. 81. BARRETO, P. S. São Paulo, 1997 pg 61.

82. BARRETO, P. S. São Paulo,

Na Zona Leste, foram implementadas as seguintes casas: São Miguel Paulista, Itaquera, Itaim Paulista, Chico Mendes (Vila Curaçá), Raul Seixas (José Bonifácio) e Penha. Na Zona Oeste, Butantã. Na Sul, Interlagos, Santo Amaro, CEMMOP (A Casa Amarela em Santo Amaro), M’Boi Mirim e Ipiranga. Finalmente, na Zona Norte, Freguesia do Ó e Pirituba. O projeto das Casas de Cultura buscava estabelecer uma relação que incorporasse as culturas locais, bem como a lógica dos movimentos sociais. Além disso, o intuito era formar agentes culturais, que pudessem ser críticos e argumentativos, de modo a trabalhar junto aos programas, cursos e oficinas que ocorreriam nesses locais82.

1997 pg. 62

O diálogo com as populações locais não ocorreu de imediato. Os primeiros mediadores das casas de cultura não tinham conhecimento cultural amplo a respeito dos movimentos da cidade e, por isso, suscitavam a desconfiança das populações locais. Em 1992, no entanto, mudando a administração das Casas de Cultura e, revendo burocracias, o projeto propôs 52


programações diversas junto às populações locais. Foram criados Fóruns de Cultura, responsáveis por discutir as ações culturais e a quem seriam destinadas. O projeto das Casas de Cultura vigora até os dias de hoje, tendo sofrido mudanças ao longo dos anos e aumentado o escopo de atuação para outros bairros periféricos. Seu intuito de promover ações culturais junto às populações locais ainda é o ponto fundamental de sua existência e foi responsável por criar espaços de acolhimento à cultura hip hop. O protagonismo do projeto das Casas de Cultura parece ter perdido força durante as gestões que se seguiram, de Paulo Maluf (PDS, PPR e PPB, de 1993 a 1996) e Celso Pitta (de 1997 a 2000). 83. NEFS, Marten. Subculturas

No entanto, a questão da cultura, voltada para as movimentações da periferia, foi retomada na gestão Marta Suplicy (PT) – de 2000 a 2004 – que percebeu, na articulação cultural dos jovens periféricos – a possibilidade de revitalização urbana83. Um dos principais objetivos da gestão de sua Secretaria da Cultura, foi apoiar manifestações culturais situadas à margem da indústria e da mídia, bem como a criação de mecanismos de fomento e financiamento de projetos que promovessem essa lógica84.

e Revitalização Urbana: experiências recentes em Amsterdã, Berlim e São Paulo. Revista do Programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, São Paulo, n.18, pp: 116 – 132, 2005. 84. lei nº 13.430, de 13 de setembro de 2002

Em sua gestão, por exemplo, o incentivo financeiro do VAI (Valorização de Iniciativas Culturais) já citado na introdução deste trabalho – foi implementado, no sentido de promover pequenas iniciativas culturais85. Além disso, o incentivo ao uso das Casas de Cultura já existentes era uma

85. NEFS, Marten. São Paulo, 2005.

53


premissa desse governo. Finalmente, no governo Marta, o projeto dos CEUs – Centro Educacional Unificado – buscava a criação de mais espaços voltados para a periferia, isto é, lugares de interação para as populações locais.

86. Prefeitura de Diadema sob a gestão de Gilson Menezes

Além do caso das gestões de Luiza Erundina e Marta Suplicy na prefeitura de São Paulo, é possível identificar como pioneiras de investimentos aos espaços voltados para culturas populares, duas prefeituras do ABCD.

(PSB – ex PT) de 1997 a 2000. De 2000 a 2008, a prefeitura foi assumida por José de Filippi Júnior (PT), que já havia sido prefeito do município entre 1993 e 1996. 87. http://acasadohiphop.blo-

Em 199986, a Casa do Hip Hop de Diadema87 era oficializada como espaço voltado para ensaios, encontros, workshops e oficinas dedicadas a essa cultura. A reivindicação por um local como este, no entanto, existia desde 1993, quando grupos de jovens já vinham se organizando. Hoje este lugar, também conhecido como Centro Cultural Canhema, é mantido pela prefeitura da cidade.

gspot.com.br/2009/06/quem-somos.html 88. Gestão Celso Daniel, do PT

Até hoje o movimento tem grande força em Diadema, que desde 2012, conta com um evento chamado “Diademais Arte”, voltado para o graffiti e organizado pela crew “Art Urbana Crew”.

89. fonte < http://www2.santoandre.sp.gov.br/index.php/ noticias/item/4938-Fundo-de-Cultura-de-Santo-Andre-recebe-inscricoes-de-projetos-voltados-a-captacao-de-recursos >

54

Santo André também tem um histórico de iniciativas de promoção cultural, ainda que não direcionadas fundamentalmente ao hip hop. Por meio da criação de um Fundo de Cultura, que vigora desde o início dos anos 199088 até os dias atuais, são financiados projetos por meio de editais89.


Talvez não seja por acaso, portanto, que diversos nomes relevantes – e também os mais antigos – do graffiti entre as mulheres sejam da região do ABCD90. É importante frisar, no entanto que, além dos investimentos públicos, o movimento hip hop teve, desde a sua inserção nas periferias da grande São Paulo, outras frentes de estruturação não institucionais, no próprio ABCD91 e no Embu das Artes92.

90. Nene Surreal, a “avó” do graffiti, foi precursora nas ruas. Pintando desde sua adolescência, hoje tem cinquenta e um anos. Outro nome importante é o de Dninja, que morava em Belo Horizonte e veio para Santo André nos anos 2000, conhecendo grupos de grafi-

Outro fator marcante a respeito da popularização do graffiti foi o mercado voltado para os artistas urbanos. Esse fenômeno é curioso, porque a venda de produtos para graffiti começou a legitimar sua prática e incentivar novos consumidores, ou seja: impulsionou outras pessoas a começarem a pintar. Em 200393, uma das principais “graffiti shops” de São Paulo foi aberta na Galeria do Rock: a Grapixo, facilitando o acesso a sprays próprios para o graffiti.

teiros do ABCD e consolidan-

Além disso, grafiteiros mais conhecidos começaram a estabelecer parcerias com marcas de tintas ou de materiais para graffiti. Nesses casos, a empresa fica responsável por fornecer o material para a pintura e o grafiteiro, por divulgá-lo nas redes sociais. É importante notar que os artistas que conseguem esse tipo de patrocínio já são bastante populares, uma vez que sua arte é capaz de divulgar marcas de tintas em larga escala.

92. Casa de Cultura Santa Te-

do sua atuação como artista urbana. 91. Posse Housa, entidade de Santo André, que trabalha desde 1992 em função da difusão do hip hop e da cultura negra

reza, que existe desde 1992 de forma independente. 93. fonte: http://grapixo.blogspot.com.br/ 94. O termo está entre aspas, porque essa monografia parte

Nos anos 2000, o graffiti passou a ser também objeto de consumo. “Comprar um graffiti”94 para ambientes como restaurantes, casas e outros estabelecimentos começou a ser uma prática corrente. Além disso, diversos patrocínios foram dados a grafiteiros que pintavam grandes

do pressuposto de que o graffiti não é consumível e tampouco reservado a locais que não sejam junto à vivência da cultura urbana, na rua.

55


painéis na cidade.

95. página da Choque Cultu-

O ano de 2004 merece destaque mercadológico. O curador de arte Baixo Ribeiro cria a galeria “Choque Cultural”, voltada para artistas urbanos. O intuito desse estabelecimento é ser um espaço para novas linguagens artísticas95, além de propor exposições e venda de obras.

ral no facebook: https://www. facebook.com/pg/ChoqueCultural/about/. 96. Segundo outras fontes não oficiais, o programa já existia desde 1993.

97. fonte:

http://tvcultura.

com.br/programas/manoseminas/.

O último fator de maior relevância para explicar a difusão do graffiti e do hip hop é a participação da mídia na divulgação das culturas da periferia. Em 200896, por exemplo, a TV Cultura passou a exibir o programa “Manos e Minas”97, que trata sobretudo de músicas da periferia – rap, funk, soul, reggae e samba – mas também aborda o hip hop enquanto movimento por meio de entrevistas. Mais destacadamente a respeito da questão de gênero e do hip hop na mídia, em 2006, a Rede Globo já havia exibido a série chamada “Antônia”, durante um ano. A série narrava a história de um grupo de rap formado por quatro mulheres de Brasilândia – dentre elas, Negra Li, cantora na vida real e uma das precursoras do rap nacional – com o sonho de serem conhecidas por sua música. Essa valorização do universo da periferia de São Paulo pela grande mídia brasileira merece destaque. Pode-se perceber que o movimento hip hop já era identificado nos anos 2000 como um objeto de consumo midiático, uma vez que se buscava ter audiência por meio de uma série que contasse a história de um grupo de rap feminino. Futuramente, em 2012, foi lançado outro filme de impacto bastante relevante para a popularização do graffti, O

56


“Cidade Cinza”. O filme aborda a questão da prefeitura de São Paulo ter apagado um grande painel feito pelos grafiteiros Os Gemeos, Nina, Nunca e outros artistas convidados. As questões levantadas nesse filme criticam a postura do poder público de apagamento de graffitis e enaltece a importância desse tipo de arte para a cidade. Outros pequenos documentários foram lançados a partir dos anos 2000, bem como diversas reportagens foram escritas nesse período. Todos esses aspectos apresentados, apesar de terem aberto portas para grafiteiros, criaram também novas contestações a respeito dessa arte. A iniciativa do Museu de Arte a Céu Aberto, por exemplo, ao passo que legitimou a arte de diversos grafiteiros, criou uma curadoria para o graffiti, que a princípio seria uma arte livre de julgamentos. A mesma polêmica envolveu iniciativas mais recentes como a pintura dos muros da Avenida 23 de Maio, que contou com o patrocínio financeiro da prefeitura para pagar os participantes por meio de uma seleção, via curadoria. Esse tipo de ação cria discórdia no meio do graffiti. Há quem acredite que existe um favorecimento de certos grafiteiros, que sempre participam desses painéis municipais – as chamadas “panelas”. Outras pessoas defendem que aqueles que pintam há mais tempo têm destaque por conta de seu talento e papel fundamental como precursores do movimento da arte urbana na grande São Paulo. A intenção dessas reflexões não é tomar partido nessa polêmica, mas evidenciar as tensões frente à popularização do graffiti e suas inserções via poder público, 57


mercado de arte e mídia.

A ocupação do território e as articulações entre grafiteiras

98. Ocorrido no dia 5 de junho de 2016, no Parque Onofre Miranda Neto – AJUF, Rua Luiz Silvestri, Guarulhos. 99. Dados do Evento Oficial, < https://www.facebook.com/ events/489385737916912/ >. 100.

É importante desta-

car a ação da organização voltada para o hip hop feminino,

Ao tratar da ocupação do território por meio das grafiteiras, é indispensável levar em consideração os fatores levantados anteriormente. Além deles, quando se fala de articulação entre essas mulheres, percebe-se que há questões voltadas à contestação das estruturas sociais vigentes em seus discursos ou modos de atuação. As associações femininas tratam da preferência do mercado pelos homens, da violência contra a mulher, da discriminação de raça e do machismo na periferia, dentre outros assuntos referentes à marginalidade social. Vale à pena elencar alguns dos inúmeros eventos, organizações e mulheres que, dentro do universo do graffiti, trazem à tona esse caráter crítico.

que é a Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop (FNMH2), que promove o fortalecimento dessa cultura e debate das questões de gênero, existentes nesse meio, desde 2010. Diver-

Nos eventos voltados só para mulheres, é possível enfatizar as atuações que trazem pautas que tangem questões relativas ao feminismo e ao racismo. Quando ocorrem, para além de atividades voltadas para o graffiti, criam oportunidades de trocas e apoio entre mulheres.

sos encontros já foram organizados ou apoiados pela Frente, contando atividades diversas, como no caso desse encontro em Guarulhos.

58

Merece um olhar mais próximo um evento citado brevemente na introdução deste trabalho, ocorrido num bairro carente em Mauá – o Jardim Zaíra – chamado “Só Minas”. Este ocorreu em 2013, reunindo mulheres grafiteiras de diversos locais da grande São Paulo e pode ser considerado um dos eventos precursores, voltados para mu-


lheres e para a questão da posição delas no espaço público enquanto grafiteiras. Além do enfoque no graffiti, o encontro – organizado pela grafiteira Lela – reuniu rappers mulheres, fotógrafas e a comunidade do bairro. Essa reunião foi emblemática, uma vez que conseguiu ser uma das primeiras a reunir organizações em torno de um evento de graffiti exclusivamente feminino. Sobre eventos mais atuais, pode-se chamar a atenção para um encontro na grande São Paulo que teve o caráter crítico como essência, o III Encontro Feminino de Hip Hop Guarulhos98, cujo tema era “Nenhum direito a menos, alguns direitos a mais!”, dando ênfase às reivindicações das mulheres por direitos a políticas públicas e à pauta do empoderamento feminino99.

101.

A questão racial não

será abordada a fundo neste trabalho, por conta do seu recorte metodológico, mas é

O foco desse evento era o fortalecimento da cultura Hip Hop entre as mulheres100. A programação contou com diferentes oficinas, como a chamada “Empoderamento através da estética: Tranças e Turbante”, trazendo à tona as questões da estética negra101. Outras atividades tiveram como pauta ciclos menstruais, confecção de cartazes libertários e oficinas de graffiti para mulheres; além de rodas de debate, apresentações musicais de rappers102 e batalhas de MC’s.

levada em consideração na medida em que se trata de fator estruturante da sociedade brasileira, que é fundamentalmente racista

102.

Leticia

Alcantara

VdK, Luana Hansen e Drika Ferreira.

Eventos como esse surgem de diversas organizações, muitas vezes autônomas. No caso deste, em Guarulhos, não só as moradoras do município se organizaram, como conseguiram o apoio de vários coletivos, voltados para a 59


103.

Buraqueira

Predo-

cultura da periferia103.

mina (BP), Cursinho Cora Coralina, Associação Cultural Nação do Reggae, BaquiraSound System e Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop 104.

Evento ocorrido no

dia 6 de novembro de 2016

105.

Instrumento musical

do maracatu, feito a partir de

Um outro evento que merece menção foi iniciativa de revitalização do Beco do Grito, no Jardim Quisisana, Zona Leste de São Paulo104. A ação ocorreu como consequência de uma tentativa de assalto a uma moradora do bairro, que tornou necessária a articulação de mulheres para contestar os constantes ataques às mulheres naquele local. A vítima, participante do “Coletivo de Oyá – Coletivo de Mulheres Negras de Periferia de São Paulo”, uniu o bairro para pintar as paredes da viela e organizar um evento com diversas atividades no mês da Consciência Negra. A ocasião contou com a presença de algumas grafiteiras de diferentes locais da grande São Paulo e promoveu trocas entre a comunidade local e as artistas. Ainda contou com o apoio de barbeiros locais que cortaram o cabelo das crianças de até dez anos, mulheres que fizeram tranças no cabelo das interessadas, roda de xequerê105 e limpeza da viela.

uma cabaça e miçangas

Houve, sem embargo, uma pequena tensão com os pichadores do local, que surgiram no início do mutirão de graffiti, para contestar seu espaço. O conflito foi apaziguado por meio de uma conversa entre Nene Surreal, do Coletivo de Oyá, e os rapazes. Ainda assim, diversos rapazes jovens sugeriram sua vontade de pintar no dia, evidenciando as tensões de gênero nesse bairro. Um último dado curioso desse dia foi a presença de dois alunos universitários, estudantes de áudio visual, que realizam um trabalho acadêmico a respeito do graffiti das 60


mulheres em São Paulo. Seu intuito era realizar um pequeno documentário de oito minutos e exibi-lo, futuramente, à comunidade. Finalmente, a respeito de eventos, é possível dizer que há acontecimentos relevantes que ocorrem em locais que não são públicos, mas que abrem as portas para a comunidade em dias de mutirão de graffiti. O evento Gol pela Igualdade, por exemplo, ocorreu em uma escola106 – antiga sede da Fundação Gol de Letra107, no bairro de Vila Albertina, Zona Norte de São Paulo. Na ocasião, a atividade principal eram jogos de futsal feminino para times de garotas adolescentes. Contando com cerca de vinte times e quase quinhentas pessoas – entre artistas convidadas, jogadoras, visitantes e organizadores – o intuito do evento foi chamar atenção à desigualdade de gênero no meio esportivo.

106.

R. Carolina Maria do

Carmo, 30 - Vila Albertina, São Paulo

107.

A Fundação Gol de

Letra atua no bairro de Vila Albertina, em São Paulo e no bairro do Caju, no Rio de Janeiro “a partir da integração entre práticas educacionais e de assistência social. Os programas

Por abrir as portas da escola para as ruas, o evento recebeu um grande número de jovens do bairro, criando uma oportunidade de democratização do espaço. É importante salientar que essa abertura, ainda que seja muito positiva para a população local, evidenciou as tensões do bairro. Certos rapazes adolescentes, por exemplo, hostilizaram algumas das grafiteiras na ocasião, na tentativa de conseguir latas de tinta. Apesar de ser um episódio específico, é importante apontá-lo, pois traz à tona as inquietações sociais na periferia.

são voltados ao atendimento de crianças, adolescentes e jovens, aliado ao desenvolvimento comunitário e de suas famílias”. O critério de seleção das comunidades tem a ver com o grau de vulnerabilidade social e risco, de acordo com os critérios da PNAS (Política Nacional de Assistência Social, 2004)

Quanto a articulações entre grafiteiras e sua inserção no espaço, é relevante citar novamente a questão das 61


108.

Bela começou a

ter contato com o graffiti em

mídias sociais. Novos encontros e associações entre as mulheres têm sido viabilizados por meio dessas ferramentas.

2009, por meio de um trabalho de faculdade. Ela é de Arujá, mas mora no centro de São Paulo desde o começo de suas graduações (em jornalismo, fotografia e cinema). 109.

Da Zona Leste de

São Paulo, Amanda Pankill teve a oportunidade de estudar na FAAP por meio do projeto Aprendiz, de Gilberto Dimenstein. É uma artista que teve essa dupla vivência entre peri-

É o caso de grupos como o “Graffiti Mulher e Cultura de Rua”, já mencionado anteriormente, e do “Conexão entre Elas”, viabilizado pelo aplicativo whatsapp. Este foi formado por meio de conexões entre colegas, que juntaram diversas mulheres em um grupo. Ao adicionar as garotas ao “Conexão Entre Elas” – a partir de contatos em eventos por exemplo – o grupo possibilita o diálogo entre quase cinquenta componentes de diferentes locais da grande São Paulo, que nem sempre se conhecem pessoalmente. Esta organização foi responsável por promover um encontro de graffiti na região de Cidade Tiradentes neste ano, ressaltando o intuito de aproximação entre as mulheres grafiteiras.

feria e centro. 110.

Entrevista concedida

a este trabalho no dia 09 de novembro de 2016

111.

Bela acredita que

os editais públicos nem sempre apresentam a constância necessária para movimentar um grupo que depende de verba. Assim, ela se coloca como agenciadora do grupo e busca patrocínios privados.

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Outro coletivo responsável por articular artistas urbanas em São Paulo é o Efêmmera, porém sua dinâmica apresenta um viés diferente. O projeto nasceu de uma associação entre Bela Gregório108 e Amanda PanKill109 e articula mulheres do meio artístico – fotógrafas, grafiteiras, produtoras – para promover a cultura urbana nos meios mercadológicos. O propósito do Efêmmera, segundo a própria110 Bela Gregório, é organizar um grupo – de maneira similar a uma agência – para criar oportunidades de difusão da cultura urbana da mulher, tendo em vista a possibilidade de manutenção dessa estrutura por eventos e patrocínio de empresas111.


O que é interessante dessa associação é que ela acaba por patrocinar o graffiti das mulheres por meio das próprias grafiteiras. O movimento atual na grande São Paulo é conhecido por ter “panelas” que se beneficiam de contatos com a prefeitura, obtendo maior destaque em editais. Sendo assim, o Efêmmera se coloca como um instrumento de autopromoção. Contando com mais de quarenta mulheres – de diferentes origens sociais e profissionais – o Efêmmera já promoveu um festival de dois dias de duração112 e tem o intuito de promover qualquer tipo de cultura urbana na qual haja algum tipo de atuação feminina.

112.

Festival Trilha, ocor-

rido no final do ano de 2015

A linguagem simbólica do graffiti das mulheres Outro ponto que que merece olhar mais cuidadoso é a temática escolhida para ser pintada por diversas grafiteiras. É evidente que nem todas as grafiteiras113 seguem o mesmo tema, no entanto existe uma tendência nos trabalhos: o universo feminino. Abordado de diferentes formas e escolhas plásticas, o tema do feminino é repetido diversas vezes entre as mulheres que grafitam. É bastante curioso como muitas grafiteiras, ainda que tenham começado a pintar letras, acabam por consolidar seus estilos próprios com personagens femininas.

113.

Karen

Kueia, por

exemplo, desenvolve em sua arte desenhos de coelhos.

Esse fenômeno é relevante porque existe uma dupla afirmação da identidade feminina no espaço. Se, por um lado, grafitar já sugere uma forma de se colocar nos meios urbanos, desenhar uma imagem feminina – muitas vezes até parecida com a própria autora – é uma maneira de 63


ver-se literalmente representada nas ruas. Essa prática é bastante frequente e, muitas vezes, aborda recortes que são tabus sociais. Mag Magrela, que começou a grafitar em 2007, tem um trabalho expressivo que tange assuntos do corpo e também do psicológico femininos. Junto às fotos de seus graffitis divulgados na internet, há citações de pequenos poemas que acompanham suas obras, escritos por ela mesma. Outra atividade que chama atenção é a de Carolina Teixeira – Carolzinha-Itza – que criou o desenho de um útero a partir da técnica do estêncil, chamando suas intervenções de “útero urbe”.

114.

Influência revelada

pela própria artista

Na Zona Norte da grande São Paulo, Caluz e Cléo podem ser reconhecidas em diversos bairros próximos ao Jaçanã e à Brasilândia, com suas personagens marcantes. A primeira trabalha imagens de fortes mulheres, ora nuas, com cabelos volumosos, ora com os rostos tapados, como as mulheres zapatistas114; e a segunda apresenta ao público uma personagem chamada Mina Cicatriz, que parece reservada e sóbria como a própria artista. Finalmente, ainda a respeito da temática, é relevante indicar os trabalhos realizados por mulheres negras, que enfatizam a questão racial em seus trabalhos, seja pela estética, ou mesmo por representações acompanhadas de frases ou cenas que evidenciam esse ponto. Nomes como Da Lama, Crica, Lelê Paes, Rizka representam a mulher negra em seus desenhos. Todas, também

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negras e periféricas, introduzem-se nos muros da cidade. Crica é do Embu das Artes. Da Lama é de Ermelino Matarazzo; Rizka, de São Mateus e Lelê Paes mora atualmente em Cidade Tiradentes – bairros da Zona Leste de São Paulo.

Trabalho de Mag Magrela. Foto da fanpage da artista

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EstĂŞncil de Carolzinha-Itza. Foto da fanpage da artista

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graffiti de Caluz. Foto de acervo pessoal

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Personagens de Cléo, em processo de finalização. Foto de acervo pessoal

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Composição de DaLama. Foto do facebook pessoal da artista

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Trabalho prรณprio. Foto de acervo pessoal

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Graffiti de Crica. Foto do facebook da artista

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Uma percepção a respeito do graffiti das mulheres Meu intuito com essas descrições é pincelar a dimensão atual do universo feminino dentro do graffiti na grande São Paulo, principalmente na periferia. É impossível, no entanto, levantar o nome de todas as agentes desse movimento, até porque ele muda a cada dia. Tampouco é meu desejo criar um inventário de grafiteiras de São Paulo. Acredito que mostrar esse panorama possa evidenciar a relevância crítica das mulheres enquanto atuantes no espaço público ligado a tais atividades. Para além de seus trabalhos gráficos, procura-se enfatizar as relações do graffiti feminino com a disputa por espaços físico e discursivo. Frente a um contexto majoritariamente masculino, sendo parte de uma cultura que ainda apresenta certos discursos machistas e misóginos, o graffiti das mulheres coloca-se espacialmente como um modo de resistência. 115.

DE ARAÚJO, A. E.

Entre Manas e Manos: Uma Etnografia com o Movimento de Mulheres no Hip Hop Sanca. Dissertação (Mestrado) em An-

As articulações entre as mulheres do meio e seu modo de atuação são responsáveis por questionar as constantes “invisibilização” feminina e discriminação sofridas dentro da cultura hip hop115, inclusive no meio do graffiti.

tropologia. Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2016. pg 56

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A partir da afirmação de suas aparências, dores e vivências, representadas nas paredes – ou apenas por sua presença nos ambientes voltados para o graffiti – as grafiteiras abrem espaço para novas questões dentro do hip hop, antes silenciadas ou ignoradas. Ademais, é fundamental perceber sua relevância na periferia, uma vez que o


poder masculino ainda se coloca como hegemônico. Notei, ao longo desses anos grafitando – e sobretudo ao longo deste trabalho – que, ainda que não se possa dizer que há um grupo homogêneo de mulheres, que percebem a assimetria no meio do graffiti, há uma parcela significativa que se articula para que sua arte seja mais reconhecida neste meio masculino. É possível perceber o crescimento de uma consciência116 entre as mulheres, que se dispõe a discutir e repensar os moldes rígidos do graffiti – e mesmo do hip hop – trazendo novos sentidos e maneiras de conceber o movimento. A partir de suas contestações e articulações, as grafiteiras sugerem novos espaços e dinâmicas para os agentes e locais da cidade.

116.

Ayni Estevão de

Araújo comenta em seu mestrado, que, além dos quatro elementos do hip hop – o Dj, o MC, o grafiteiro e o dançarino de break – há um quinto ele-

Particularmente, a partir do contato com essas mulheres, pude desenvolver um trabalho próprio que parece ecoar com tantos outros que refletem o universo feminino, chegando a locais da grande São Paulo nos quais a condição feminina ainda é bastante desvalorizada. Por meio do graffiti, percebi a possibilidade de interagir com pessoas em lugares muito diversos na periferia.

mento que confere a todos os outros um tom político e contestador, que é a consciência. É nesse sentido que utilizo o termo no trabalho em questão.

Acredito que essa arte abriu uma possiblidade complementar ao meu olhar de arquiteta e urbanista para perceber o território da cidade. Creio que há uma grande relevância em aproximar o urbanismo e o graffiti na medida em que são formas de pensar a cidade e atuar em sua extensão. 73


A força de vontade e a rede criada pelas mulheres grafiteiras indicam novas formas de conceber a chave gênero e território. Estar inserida no meio cultural do graffiti junto a elas é, portanto, uma maneira contínua de refletir sobre as tensões de São Paulo, porém de uma forma poética e esperançosa, que eu espero ter conseguido transmitir nesse trabalho final sob três diferentes composições. Finalizo esse trabalho com o trecho de uma música da rapper Tássia Reis. Mulher e negra, a cantora discute questões de gênero e raça em suas composições. Acredito que ela possa, em seus versos, sintetizar uma mensagem de luta pela visibilidade das mulheres do hip hop, que é, sem dúvida, uma busca fundamental realizada por muitas grafiteiras.

Ouça-me “Ouça meu grito/ Invadindo os teus ouvidos/ Tomando a sua casa /tocando lá no seu radin / Se o que eu digo lhe fizer algum sentido / É porque o sangue de rainha ginga e ainda corre em mim / Simples assim, os bens irão justificar os fins / E as manas e minas que colam comigo também tão afim / Vim dessa voz ouvida e não mais oprimida / Equalizada por todos cafundós e confins (...)

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