ENSAIOS EM PRETO & BRANCO
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Luiz Roberto da Costa Júnior
ENSAIOS EM PRETO & BRANCO
1ª edição 2016 3
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Sumário
Introdução..........................................................................................................................7 A Felicidade não se Compra (1946) – direção de Frank Capra.........................................9 A Montanha dos Sete Abutres (1951) – direção de Billy Wilder....................................13 Monsieur Verdoux (1947) – direção de Charles Chaplin................................................19 A Sombra de um a Dúvida (1943) – direção de Alfred Hitchcock.................................25 Casablanca (1943) – direção de Michael Curtiz..............................................................37
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Introdução
O livro Ensaios em Preto & Branco analisa cinco filmes multifacetados, em preto & branco, que possuem grande complexidade por causa das sucessivas camadas interpretativas. A proposta de abordar a profundidade em ensaios ajuda a resgatar a importância dos filmes. A Felicidade não se Compra (1946) é um clássico de natal do diretor Frank Capra que está em domínio público. O personagem amargo e desiludido de James Stewart busca sua redenção. A Montanha dos Sete Abutres (1951) do diretor Billy Wilder é uma crítica feroz à imprensa sensacionalista com uma magistral interpretação de Kirk Douglas. Monsieur Verdoux (1947) é um filme dirigido e estrelado por Charles Chaplin. O personagem enfrenta dilemas morais durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, o que provoca uma reflexão no nível do plano individual e do plano coletivo. A Sombra de uma Dúvida (1943) é um filme dirigido por Alfred Hitchcock. O enigmático personagem de Joseph Cotten volta para uma pequena cidade para visitar a família, mas suas atitudes levantam dúvida em sua jovem sobrinha. Ser alçada à vida adulta e descobrir a verdade provoca um grande conflito interior e exterior em relação ao tio. O longo ensaio sobre o clássico do cinema Casablanca (1943) encerra o livro com diversas interpretações sobre o filme como, por exemplo, a análise semiótica de Umberto Eco (1932-2016).
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A Felicidade não se Compra (It’s a Wonderful Life, 1946) é um filme do diretor Frank Capra (1897-1991) que se notabilizou por clássicos, na década de 1930, em que o homem comum vence as dificuldades através de seu caráter moral e determinação. O otimismo aliado à comédia elevava o espírito das plateias durante a Grande Depressão. O filme foi realizado após o fim da Segunda Guerra Mundial e é transicional na carreira do diretor, pois não há aquele otimismo de antes da guerra.
Na véspera do Natal, muitas pessoas começam a orar por George Bailey (James Stewart) na fictícia cidade de Bedford Falls. O Céu envia um anjo para a Terra a fim de ajudá-lo num momento de desesperança. O anjo revisita toda a vida de George para mostrar a ele a importância e o impacto de suas ações não apenas em sua vida pessoal 9
como também na vida da comunidade. Aos 12 anos, George salvou seu irmão Harry de afogar-se no rio congelado. Adolescente, George foi trabalhar na farmácia de Mr. Gower e percebeu que este se equivocara na manipulação de um remédio ao colocar veneno como componente. Isso poderia arruinar a vida do farmacêutico.
George tinha grandes sonhos de viajar pelo mundo com sua namorada Mary (Donna Reed), mas esperou seu irmão Harry terminar o ensino médio para que ele o substituísse no Bailey Building and Loan Association (banco que faz empréstimos a juros baixos e que ajuda as pessoas mais pobres da cidade). Na noite da formatura de Harry, George e Mary fazem planos de viajar quando recebem a notícia que o pai dele teve um derrame que se provou fatal. Meses depois, Mr. Potter (dono do grande banco da cidade e que está interessado no pequeno banco) faz uma oferta de compra, mas os membros do conselho recusam a proposta se George ficar e cuidar do banco fundado por seu pai e por seu tio Billy. George aceita comandar o banco e abre mão de ir para a faculdade e dá o dinheiro para seu irmão Harry. Este cursa a faculdade, mas volta casado com uma grande proposta de emprego feita pelo sogro. George decide cuidar do banco mesmo sabendo que isto mataria seu sonho de viajar pelo mundo.
Mary havia concluído a faculdade e voltado para Bedford Falls. Após alguns desencontros e brigas, George e Mary decidem se casar. Após a cerimônia, o casal está saindo em lua-de-mel quando percebe que há uma corrida bancária para sacar dinheiro do banco. Diante do pânico das pessoas e da possibilidade de falência, eles abrem mão do dinheiro da viagem para salvar o banco. Ao longo dos anos, o casal tem quatro filhos e decide criar o Bailey Park (projeto de casas populares financiadas pelo pequeno banco) para ajudar uma grande parte da população da cidade. O ganancioso Mr. Potter (o avarento banqueiro local) tenta oferecer um grande emprego e um alto salário para George desistir do projeto. George fica muito tentado em aceitar a proposta, mas depois recusa ao perceber que Mr. Potter controlaria toda a cidade.
Na manhã da véspera de Natal, tio Billy vai ao banco de Mr. Potter fazer um depósito e está feliz, pois o sobrinho Harry voltou da guerra e foi condecorado em Washington. A cidade de Bedford Falls está em festa e aguarda a chegada de seu herói de guerra para homenageá-lo. Ao entregar um exemplar do jornal para Mr. Potter com a
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notícia sobre Harry, tio Billy não percebe que colocou o envelope de dinheiro no jornal, não consegue fazer o depósito e não se lembra de como perdeu o dinheiro.
Tio Billy avisa George e este pensa na falência do banco e na prisão por fraude fiscal. Em uma tentativa desesperada de conseguir um empréstimo, George apela a Mr. Potter que não só não ajuda como não confessa que está com o envelope de dinheiro. A única coisa que George tem é uma apólice de seguro. Ele valia mais morto do que vivo. George caminha em direção à ponte da cidade. O momento mais dramático do filme acaba sendo o mais cômico, pois o anjo se atira da ponte e é salvo por George. Depois o anjo diz uma frase enigmática: afirma que foi ele que pulou (do Céu) para salvar George (na Terra). Sem entender, George retruca que foi ele que pulou (da ponte) para salvar o anjo (na água).
O anjo propõe a George que ele considere nunca ter nascido e que visite Bedford Falls. Começa a nevar e eles estão no mesmo lugar, mas num tempo diferente. George descobre que seu irmão Harry morreu afogado e que o farmacêutico Mr. Gower passou anos preso por ter colocado veneno no remédio de um paciente. Além disso, o pequeno banco da cidade faliu, não há o Bailey Park e agora a cidade chama-se Pottersville onde há apenas jogo, bebida e prostituição. Seu tio Billy está num asilo de loucos, sua mãe viúva tem uma pequena pensão para alugar quartos e sua esposa Mary não se casou, pois é uma solteirona e trabalha como bibliotecária. Desesperado, George pede a sua vida de volta. Começa a nevar e ele volta ao tempo presente. George volta para casa e abraça a esposa e os filhos. Ele está resignado a enfrentar seu destino (falência e prisão), mas a notícia de um possível colapso do banco havia se espalhado pela cidade. Muitas pessoas arrecadam dinheiro e Tio Billy aparece dando a notícia, enquanto isso Harry abre mão da recepção que a cidade havia preparado e vai direto homenagear George como o homem mais rico da cidade.
O personagem George Bailey foi até as profundezas do desespero e perdeu a fé nas pessoas, mas pulou para trás antes de cair do precipício. O mal existe e o mundo pode ser um lugar triste e solitário. A vida é uma jornada de esperança e o filme mostra que viver é equilibrar-se entre escolhas e consequências.
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O clássico A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole), dirigido por Billy Wilder (1906-2002) e estrelado por Kirk Douglas, em 1951, faz uma crítica ao jornalismo sensacionalista que explora situações dramáticas para conseguir uma maior audiência (rádio e televisão) ou um aumento de tiragem (jornal impresso).
Kirk Douglas faz o papel do jornalista Charles Tatum que, após ser onze vezes despedido em vários jornais de grandes cidades, chega desempregado à cidade de Albuquerque, no Novo México. O guincho que leva seu carro estaciona numa esquina da cidade. O jornalista desce do carro rebocado e entra na sede do jornal Sun Bulletin em busca de emprego. Boot, o editor do jornal, oferece-lhe um emprego após uma rápida entrevista. Após um ano, inteiramente entediante, nada acontece de importante naquela cidade. Charles Tatum já está muito impaciente em conseguir uma grande matéria que o tirasse daquele buraco. Para quebrar a rotina, o editor Boot propõe para 13
ele acompanhar o jovem recém-formado Herbie e fazer uma cobertura jornalística sobre a caça às cascavéis em Los Barrios.
No caminho para Los Barrios, Charles Tatum e Herbie param para reabastecer o tanque de combustível no posto de gasolina do Minosa’s Indian Curios, onde há também um bar, a venda de artesanato indígena e uma hospedaria. O local parece deserto, mas há uma mulher que reza num quarto diante da imagem de uma santa. No local há uma montanha e uma placa que indica que a visitação é gratuita. Uma viatura da polícia com a sirene ligada passa em alta velocidade e entra em direção à montanha. Charles Tatum e Herbie decidem seguir a viatura e, no trajeto até a montanha, encontram uma loira e dão uma carona para ela. A senhora Minosa é a esposa de um homem chamado Leo que está preso dentro da montanha por causa de um desabamento. Ao pegar um grande vaso indígena dentro da montanha, Leo foi soterrado ficando com uma perna presa sem possibilidade de sair, necessitando ser resgatado.
O jornalista Charles Tatum decide interferir e não apenas cobrir a notícia. Ele arranca uma lanterna do policial que está pegando as informações sobre o acidente, na entrada da montanha, e entra com comida, café e cobertor fornecidos pela esposa de Leo. O jornalista consegue uma entrevista exclusiva com Leo, dentro do local que era sagrado para os indígenas serem enterrados, e tira uma foto para a primeira página do jornal Sun Bulletin.
Na manhã seguinte, a esposa de Leo está decidida a ir embora do lugar, pois não há qualquer movimentação para o resgate em pleno domingo. Após quase cinco anos de casada, ela não aguenta mais ficar naquele buraco poeirento chamado Escudero. O jornalista confronta a esposa de Leo e diz que há três pessoas enterradas naquele lugar (tanto o casal como ele), mas que era uma grande oportunidade para saírem daquele buraco. No momento em que a esposa de Leo aguarda o ônibus para partir, um casal (com dois filhos) chega de carro e pede informações sobre o local onde um homem está soterrado. O casal mostra a edição de domingo do jornal Sun Bulletin e fala sobre toda a movimentação que está acontecendo na cidade de Albuquerque para se realizar o resgate. Enquanto o casal e os dois filhos entram com seu trailer para visitar a montanha, a esposa de Leo desiste de partir no ônibus e volta para dentro do Minosa’s Indian Curios. 14
Tanto o xerife como o médico, que estavam na caça às cascavéis, chegam ao local onde começam os preparativos para o resgate. O médico entra na montanha com o jornalista Charles Tatum e indica a medicação necessária que Leo deve receber enquanto permanecer soterrado. O médico diz ao jornalista que Leo é um homem forte capaz de aguentar até uma semana. Depois, o jornalista encontra o xerife no bar do Minosa’s Indian Curios e negocia um acordo para manter a exclusividade da história em troca de uma ampla campanha de apoio à reeleição do corrupto xerife. O responsável pelo resgate chega e anuncia que seria possível tirar Leo, após escorar todas as paredes dentro da montanha, no mínimo em 16 horas. O imaginativo jornalista Charles Tatum quer que a história renda bem mais do que um dia e propõe um resgate com a escavação de um túnel através da rocha sólida desde o topo da montanha até o local onde Leo Minosa está soterrado, o que levaria seis dias. O plano é aprovado pelo xerife e passa a ser executado pelo responsável pela operação de resgate.
A entrada para visitação em torno da montanha passa a ser paga (25 centavos). A esposa de Leo não está preocupada com o marido, mas sim em como ganhar dinheiro para sair dali. Ela flerta com o jornalista Charles Tatum que a esbofeteia para que ela coloque a aliança de casada no dedo e fique com lágrimas em seu rosto. O jornalista quer controlar toda a história e obriga a esposa de Leo a ir à igreja para rezar um rosário, ordena que Herbie cuide de tudo e tire a foto dela, com o terço nas mãos, para a primeira página do jornal.
A entrada para visitação em torno da montanha passa a 50 centavos. Os jornalistas dos grandes jornais chegam e são instalados numa tenda para a imprensa. Estes questionam o xerife do por que Charles Tatum ter a exclusividade da história, quando este chega e oferece a matéria a quem pagar mais por ela. Os editores dos jornais começam a fazer suas propostas por telefone, quando ocorre a chamada do editor do jornal de Nova Iorque que oferece mil dólares pela história, depois mil dólares por dia e, finalmente, oferece de volta o emprego para Charles Tatum. Pouco antes, o jornalista já havia recebido a visita do editor Boot e se demitido do Sun Bulletin.
A entrada para visitação em torno da montanha passa para um dólar. Há a instalação de um parque de diversão e de um circo. Uma música composta sobre Leo 15
Minosa é cantada em um show country. A letra da música é vendida a 25 centavos. É criado um fundo para receber doações para auxiliar no resgate dele. Um trem expresso faz sua parada para as pessoas descerem e irem para o parque de diversão e o circo. O cínico xerife dá uma entrevista, na qual faz um grande discurso, dizendo que ele está apenas cumprindo o próprio dever e que tudo está sendo feito para o resgate do homem soterrado na montanha.
Na quinta-feira à noite, o médico constata que Leo está com pneumonia em estágio muito avançado e que deveria ir ao hospital em no máximo doze horas. O jornalista Charles Tatum procura o xerife e diz que deveria haver uma mudança de planos para fazer um resgate mais rápido com o escoramento das paredes. O responsável pela operação de resgate afirma aos dois que não é mais possível fazer isso, pois seria perigoso demais fazer o escoramento por causa da precária situação das paredes internas da montanha.
Leo havia contado que no dia seguinte (sexta-feira) seria o quinto aniversário de casamento e que o presente estava escondido dentro de um saco no armário do quarto do casal. O jornalista Charles Tatum procura a esposa de Leo, localiza o presente e o entrega a ela. A esposa de Leo não quer usar a estola de pele de raposa envolta do pescoço. Charles Tatum quase a estrangula na cama com a estola, quando ela então pega uma tesoura e enfia na barriga do jornalista.
O ferido jornalista havia perdido o controle de si mesmo e da história. Ele vai à igreja em Escudero atrás do padre para que este ministre a extrema-unção a Leo, que morre após recebê-la do padre. O jornalista Charles Tatum sobe ao topo da montanha e anuncia a morte de Leo Minosa. O circo mediático havia acabado e as pessoas podiam ir embora da montanha. A esposa de Leo desce as escadas com uma mala na mão, mas não consegue tomar o ônibus que partia naquele exato momento. Ela fica uma mulher perdida em meio aos carros que abandonam o local, enquanto o toldo do circo é desarmado. O jornalista Charles Tatum retorna a Albuquerque e cai morto no meio da redação do jornal Sun Bulletin.
O roteiro do filme é fictício, mas foi inspirado na cobertura real da tentativa de resgate de Floyd Collins, no Kentucky em fevereiro de 1925, quando o jornalista 16
William Burke "Skeets" Miller entrou na caverna para entrevistá-lo e ganhou depois um prêmio Pulitzer pela cobertura do resgate. Este teve ampla cobertura de jornais e de rádios, atraiu muitos turistas e houve venda de souvenir. Durante os trabalhos de resgate houve um desabamento em dois pontos e foi necessário fazer um túnel paralelo. O resgate acabou chegando tarde demais, pois ele havia morrido de inanição.
O filme A Montanha dos Sete Abutres levanta vários pontos importantes sobre o jornalismo. Os dados levantados para uma notícia ser publicada devem ser checados e rechecados (que foi uma fala do editor Boot do jornal Sun Bulletin). O fato de entrar no túnel dentro da montanha, para entrevistar a pessoa soterrada, mostra que o jornalista deve sair da redação, ir para a rua encontrar a notícia e até mesmo correr riscos para obter a informação, mas não pode fazer acordos com autoridades e negociar para ter exclusividade em troca de “propaganda” para a autoridade. Também não se deve misturar a negociação de cargo e valores em dinheiro com uma cobertura jornalística. O ambiente de “circo mediático” pode levar a uma cobertura declarativa de autoridades e não a busca e o levantamento de informações relevantes sobre o acontecimento.
O filme contrapõe o jornalismo prático de Charles Tatum (sem formação acadêmica e sem ética profissional) ao jornalismo teórico do jovem recém-formado Herbie (com formação acadêmica, mas sem experiência prática) para ressaltar o jornalismo experiente do editor Boot (com formação acadêmica em direito e com ética profissional). Vale lembrar que o diploma de jornalismo não é obrigatório para o exercício da profissão nos Estados Unidos.
O filme mostra que elementos religiosos e míticos ajudam no enredo narrativo da notícia: a mãe de Leo reza para a imagem de uma santa; a esposa de Leo é levada a uma igreja com um terço para rezar um rosário; Leo sabe que violou o solo sagrado indígena (de mais de 450 anos), que os espíritos dos mortos não iriam deixá-lo sair da Montanha dos Sete Abutres com o vaso indígena e apenas poderia salvar sua alma com a absolvição mediante a extrema-unção. A frase do jornalista Charles Tatum, pouco antes de parar no posto de gasolina (no início do filme), é emblemática: más notícias vendem mais, pois boas notícias não são notícias. O jornalismo depende de audiência, sendo que os dramas e as tragédias vendem mais para um público ávido por estes eventos que saem da normalidade e ocorrem ao acaso no mundo. 17
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Monsieur Verdoux é um filme de 1947 que foi estrelado e dirigido por Charles Chaplin (1889-1977). O roteiro é do próprio Charles Chaplin e foi baseado numa ideia de Orson Welles. O personagem principal é Henri Verdoux, um dedicado bancário que trabalhou por mais de três décadas até ser demitido por causa da crise de 1929. Havia sido quebrada sua rotina de contar o dinheiro dos outros. Agora ele era um homem de meia-idade, sem emprego e sem perspectivas que decide criar um negócio próprio: casar com mulheres de meia-idade e depois matá-las para ficar com o dinheiro e as propriedades. As vítimas não são encontradas, pois Monsieur Verdoux incinera os corpos em improvisados fornos crematórios. Galanteador e romântico, Monsieur Verdoux incorpora uma ‘persona’ diferente para cada tipo de mulher que tem que conquistar para depois fazê-las tirar o dinheiro do banco, pois é muito perigoso manter o dinheiro nestas instituições financeiras por causa da crise mundial. Monsieur Verdoux usa nomes diferentes, roupas diferentes e discursos diferentes, sempre de maneira adequada para conseguir envolver cada tipo de mulher. O mundo é cruel e as pessoas estão desesperadas, portanto ele está tomando medidas desesperadas, pois sua justificativa é dar condições de vida para a esposa paralítica na cadeira de rodas e seu filho pequeno. Monsieur Verdoux anda de trem por todo o país para cometer seus crimes. Ele vive sempre em tensão o que afeta seu estado de espírito. Apesar do mundo cruel e sombrio, em depressão econômica e aumento do desemprego (manchete do jornal que é lida por sua esposa), Monsieur Verdoux pensa apenas no mundo que ele ama, onde estão a mulher e o filho. No 10º aniversário de casamento, Monsieur Verdoux presenteia a esposa com a escritura da casa onde ela vive com o filho deles, visando dar segurança à própria família.
O dinheiro ganho com os assassinatos é ironicamente investido na Bolsa de Valores, mas quando esta cai, Monsieur Verdoux tem que matar mais mulheres para cobrir os prejuízos. Como em Paris ficaria difícil incinerar um corpo sem chamar a atenção, Monsieur Verdoux decide utilizar um composto de três elementos que misturados acabam provocando um ataque cardíaco na vítima de assassinato. Decidido a testar sua ideia, Monsieur Verdoux atrai, para seu apartamento, uma jovem refugiada belga que saíra da prisão, após cumprir três meses por penhorar uma máquina de escrever que era alugada. Monsieur Verdoux serve uma taça de vinho à jovem belga e está decidido a matá-la. No meio da conversa, a jovem belga revela que havia sido 20
casada com um homem que ficara paralítico por causa da guerra e que ela faria tudo por ele, até mesmo matar. Neste momento, ao cair em si, Monsieur Verdoux tira a taça de vinho e não permite que ela a beba. Ele serve outra taça de vinho (sem o veneno) e ainda dá um pouco de dinheiro para ela manter-se em Paris.
Monsieur Verdoux, em uma de suas viagens, não consegue nem tomar o dinheiro e nem matar uma mulher que sempre dá gargalhadas espalhafatosas. Sempre o acaso o impede no último momento de completar seu plano. De volta a Paris, ele espera ansiosamente uma resposta da mulher para quem envia flores durante semanas. Na floricultura, Monsieur Verdoux é visto por um detetive que o seguia há duas semanas. Ao retornar para sua loja de móveis, que montara em Paris, Monsieur Verdoux é seguido e confrontado pelo detetive. Após ouvir todas as acusações, Monsieur Verdoux afirma que assinaria uma confissão, querendo apenas despedir-se da esposa antes de ser preso. O detetive muito feliz aceita um cálice de vinho e morre de ataque do coração durante a viagem de trem até a cidade onde morava a esposa de Monsieur Verdoux.
De volta a Paris, Monsieur Verdoux vai à floricultura e finalmente recebe, por intermédio da florista, uma carta da mulher para quem constantemente enviava flores. Após telefonar para ela, Monsieur Verdoux marca um encontro e vai a casa dela. Os dois são geniosos e sabem o que querem, pois são do signo de Áries. O discurso é rápido para envolver a mulher que aceita rapidamente marcar o casamento. Antes de a cerimônia começar, Monsieur Verdoux ouve algumas vezes uma gargalhada espalhafatosa e tenta ficar escondido em vários momentos. Para não ser reconhecido, ele é obrigado a fugir do casamento antes do início da cerimônia.
Além de ficar sem condições de obter dinheiro com mulheres em Paris, Monsieur Verdoux perde todo o dinheiro na Bolsa de Valores, após uma corrida bancária que aprofundou a Grande Depressão. A hipoteca da casa é executada e ele perde também a família. Sozinho em Paris e sem esperança, Monsieur Verdoux lê o jornal que noticia o bombardeio alemão na Espanha (provavelmente é uma referência a Guernica). Após sair de um Café, Monsieur Verdoux é quase atropelado ao atravessar a rua. A mulher pede que o motorista pare o carro. Ela é a jovem belga, que ele ajudara anos antes, e agora ela estava casada com um homem que tinha uma fábrica de munição cujas ações renderiam bons dividendos na Bolsa de Valores. Ela se oferece para levá-lo 21
para jantar no restaurante do Café Royal, onde há uma pista de dança. Os dois conversam e Monsieur Verdoux não vê perspectivas do que fazer, mas ela afirma que sempre há um destino a se cumprir porque sempre há algo pelo que se deve lutar, pois a vida está acima da razão.
Durante o jantar, Monsieur Verdoux é reconhecido pela irmã de uma de suas vítimas, que está na pista de dança, e ele percebe o fato. Após despedir-se da jovem belga, Monsieur Verdoux afirma que tem um destino a cumprir e se entrega à polícia no hall de entrada do Café Royal. Durante o julgamento, o promotor acusa Monsieur Verdoux de ter um cérebro, que ele poderia ter trabalhado de maneira honesta e não matado e roubado mulheres. Em seu discurso final, antes da sentença, Monsieur Verdoux afirma que trabalhou durante 35 anos, mas depois ninguém lhe dava mais emprego. Os crimes cometidos em pequena escala não se comparam aos que acontecem em larga escala com bombas e armas matando mulheres e crianças. Condenado à morte, Monsieur Verdoux aguarda a execução. Confrontado com a típica frase moralista “o crime não compensa”, ele responde dizendo que em pequena escala o homem é um vilão, mas em grande escala torna-se um herói. O filme termina com ele caminhando em direção à execução na guilhotina.
A película mostra um Charles Chaplin amargo e reflexivo sobre os acontecimentos anteriores à Segunda Guerra Mundial. O drama discute o moralismo dos pequenos atos e das pequenas ações individuais versus o moralismo dos grandes atos e das grandes ações de governos, empresas e de quem detém o capital. É uma crítica ao militarismo e à crise financeira mundial da década de 1930.
O filme evoca um pouco de mitologia ao mostrar o personagem Monsieur Verdoux com uma lua cheia e citando Endimião. A Lua se apaixonou por Endimião, que era muito belo. Zeus ofereceu a ele escolher o que quisesse, e ele escolheu dormir para sempre, para permanecer sempre jovem e imortal. Na sequência final, durante o jantar no Café Royal com a jovem belga, Monsieur Verdoux diz ter acordado de um sonho, se pergunta se aquele mundo realmente existiu, pois aquele passado parecia não ter acontecido na vida dele.
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A fita cinematográfica resgata um pouco do humor de Carlitos (famoso personagem de Charles Chaplin) nas cenas em que Monsieur Verdoux cai pela janela no início do filme, quando esbofeteia seguidamente um homem numa cena pastelão no restaurante após um show de can-can e, finalmente, quando faz os famosos trejeitos antes de cair da canoa no lago, numa de suas infrutíferas tentativas de matar a mulher das gargalhadas espalhafatosas.
No primeiro encontro entre Monsieur Verdoux e a jovem refugiada belga, eles conversam sobre o filósofo alemão Arthur Schopenhauer do século XIX. No momento em que mostra compaixão pela jovem belga e poupa-lhe a vida, Monsieur Verdoux toma consciência de si em nível radical, como um ser movido por aspirações e paixões. Estas constituem a unidade da vontade, compreendida como o princípio norteador da vida humana.
No final do filme, a jovem belga é confrontada em sua consciência pelos acontecimentos do julgamento e, ao cair em si, percebe que a riqueza e seu conforto eram resultados de negócios que eram administrados de maneira inclemente pelo marido. Para Monsieur Verdoux, matar e roubar (no plano individual) é apenas um negócio como são as guerras e os conflitos. Estes são negócios num mundo que é inclemente. Portanto, as pessoas devem ser inclementes para lidar com este mundo. O bem e o mal não são tão claros, pois o criminoso pecador e o herói santo são figuras mais religiosas do que reais. O importante é cumprir seu destino, pois sempre há algo pelo que se deve lutar neste mundo.
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A Sombra de uma Dúvida – Diretor Alfred Hitchcock
O mestre do suspense Alfred Hitchcock (1899-1980) nasceu na Inglaterra e teve uma rígida formação católica durante a sua infância. Na década de 1920, Hitchcock entrou para o mundo do cinema como autor de roteiros, depois se tornou assistente de direção e começou a dirigir seus próprios filmes no fim da década de 1920. A fase inglesa de sua carreira, como diretor de cinema, ocorre durante a década de 1930. Em 1939, seu prestígio internacional levou-o para Hollywood, nos Estados Unidos, onde dirigiu vários clássicos do suspense durante as décadas de 1940, 1950 e 1960. Durante o longo período em que morou nos Estados Unidos, Alfred Hitchcock viveu na cidade de Santa Rosa, Califórnia. Na década de 1970, após retornar para a Inglaterra, ele ainda dirigiu mais dois filmes.
A ideia de fazer o filme A Sombra de uma Dúvida surgiu a partir de uma história de Gordon McDowell inspirada no caso real do assassino em série Earle Leonard Nelson (1897-1928) que, quando criança, havia sofrido um acidente de bicicleta e se chocado com um bonde. Após isso, ele sofreu uma enorme mudança de personalidade.
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Cometeu pequenos crimes e começou a matar mulheres nos Estados Unidos. Um suspeito usando roupas similares a dele, chegou a ser preso, mas solto depois que ele cometeu outro crime. Após fugir para o Canadá e cometer outro crime, Earle Leonard Nelson foi preso, julgado, condenado e enforcado em Winnipeg, no dia 13 de janeiro de 1928.
O roteiro do filme A Sombra de uma Dúvida foi escrito por Alma Reville (a esposa de Hitchcock), Thornton Wilder e Sally Benson. O escritor Thornton Wilder (1897-1975) recebeu três prêmios Pulitzer, um pelo romance The Bridge of San Luis Rey (adaptado para o cinema em 1929, 1944 e 2004) e dois pelas peças de teatro The Skin of Our Teeth e Our Town. Nos créditos iniciais do filme A Sombra de uma Dúvida, o diretor Alfred Hitchcock agradece a inestimável colaboração de Thornton Wilder para a realização do filme.
Joseph Cotten (1905-1994), ator que trabalhou em muitos filmes do diretor Orson Welles (1915-1985), foi escolhido para o papel de Tio Charlie. Tereza Wright (1918-2005) foi escolhida para o papel da jovem Charlie. Embora com 25 anos na época, a atriz interpreta uma adolescente de 19 anos. Tereza Wright já trabalhara na peça Our Town de Thorton Wilder. No cinema, A Sombra de uma Dúvida era o quarto filme de sua carreira, ela havia sido indicada ao Oscar em seus três primeiros filmes: The Little Foxes (Pérfida), The Pride of the Yankees (Ídolo, Amante e Herói) e Mrs. Miniver (Rosa da Esperança), pelo qual ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 1942.
O filme A Sombra de uma Dúvida estreou nos Estados Unidos em 12 de janeiro de 1943 e foi indicado ao Oscar de melhor roteiro original. Trata-se de um filme noir com cenas expressionistas (influência de Fritz Lang), que foge do tradicional esquema hitchcockeano da personagem claramente inocente que se torna suspeito e tem que fugir para provar sua inocência e encontrar o culpado. O filme permite nuances interpretativas que serão analisadas no final do ensaio, após a descrição do filme.
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Sombra de uma Dúvida – O Filme
O filme começa com um homem, vestido de terno preto e gravata preta, deitado na cama de um quarto alugado. Ele está pensativo e segurando um charuto na mão. Há muito dinheiro sobre o criado-mudo e jogado no chão. Mrs. Martin bate à porta e entra no quarto do senhor Spencer. Ela avisa o inquilino que dois homens o estão procurando e que os viu na esquina esperando por ele. Após uma rápida conversa, Mrs. Martin fecha a persiana para o senhor Spencer continuar sua soneca e se retira do quarto. Então, Spencer senta-se na cama, bebe um copo d´água, levanta-se e depois quebra o copo ao atirá-lo no chão. Ele anda pelo quarto, olha pela janela e vê dois homens na esquina. Spencer então pega o dinheiro, o charuto, coloca o chapéu, sai do quarto e depois pela porta de entrada da casa de número 13. Spencer caminha em direção aos dois homens, passa por eles e caminha em direção a uma esquina e vira à esquerda. Os dois homens o perseguem e o procuram num terreno baldio, mas Spencer repentinamente aparece no alto de uma construção, longe do alcance deles.
Depois de escapar dos seus perseguidores, Charles Spencer Oakley aparece ao telefone e passa um telegrama para a irmã Mrs. Newton em Santa Rosa, Califórnia. No telegrama, ele avisa a irmã que chegará na quinta-feira para passar uma temporada com a família e manda um beijo do tio Charlie para a jovem Charlie. Enquanto isso, na pacata e tranquila cidade de Santa Rosa, a jovem Charlie está deitada em sua cama em um momento de reflexão e pensando na vida, após concluir o High School (correspondente ao nosso Ensino Médio). Quando toca o telefone no andar de baixo da casa, sua irmã Ann atende, mas não anota o teor do telegrama por não ter um lápis à mão e estar muito concentrada lendo o livro Ivanhoé, romance do escritor britânico Walter Scott (1771-1832), publicado em 1819.
Mr. Newton chega em casa e sobe as escadas até o quarto da filha. O pai quer saber se está tudo bem com ela e Charlie reclama da monotonia da vida. Logo em seguida, Mrs. Newton também chega ao quarto e pergunta se está tudo bem com a filha e, logo depois, depois o casal desce as escadas. Ann avisa a mãe sobre o telegrama e ela recebe a notícia que o irmão dela chegará em breve.
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Enquanto isso, a jovem Charlie havia pegado um casaco no armário, descido as escadas, saído de casa e decidido enviar um telegrama para a única pessoa que poderia tirá-la daquela monotonia. No momento em que a jovem Charlie está escrevendo o telegrama, a telegrafista avisa que há um telegrama para a mãe dela. Ela abre o telegrama e descobre que, como se fosse telepatia, seu tio Charlie estava chegando para passar uma temporada com a família.
No trem que partiu da Filadélfia, Pensilvânia, e que vai fazer uma rápida parada em Santa Rosa, Califórnia, vemos o diretor Alfred Hitchcock fazendo sua rápida aparição no filme ao segurar treze cartas (2 a A de espadas) numa partida de bridge com um médico e sua esposa em férias (não se vê se há uma quarta pessoa na mesa). O trem chega à cidade expelindo uma espessa fumaça pela chaminé da locomotiva que faz uma enorme sombra sobre a estação.
Tio Charlie é o único a descer e sua sobrinha corre para abraçá-lo na estação. A família feliz carrega suas malas. Mrs. Newton ficara em casa preparando o jantar para o irmão e, quando ela escuta o carro chegar, abre a porta da casa e sai muito feliz para encontrá-lo depois de tantos anos sem vê-lo. Charlie chama a irmã pelo nome de solteira: Emma Spencer Oakley, a garota mais bonita da rua Burnham, endereço de uma cidade em Massachusetts, quando eles eram crianças e moravam com os pais.
Tio Charlie é levado por Mr. Newton (seu cunhado Joe) até o quarto da sobrinha que fez questão de cedê-lo ao tio e, para isso, ela teve que se acomodar no quarto ao lado com a irmã Ann. Tio Charlie, então, tira o chapéu e ameaça colocá-lo na cama quando o cunhado o alerta que não se deve desafiar a sorte, pois chapéu em cima da cama provoca azar. Sozinho no quarto, ele olha a foto da formatura da sobrinha, coloca uma flor na lapela, olha pela janela da pacata e tranquila cidade de Santa Rosa e atira o chapéu sobre a cama.
No jantar em família naquela noite de quinta-feira, tio Charlie presenteia a irmã com uma estola, o cunhado com um relógio de pulso, a sobrinha Ann com um coelho de pelúcia. Tio Charlie entrega também para a irmã um porta-retratos com as fotos de 1888 dos avós das crianças. O menino caçula Roger exclama com admiração que as fotos tinham 53 anos. Isto situa a história contada no filme em 1941 (embora o filme tenha 28
sido rodada em 1942 sendo que a estreia no cinema foi em 12 de janeiro de 1943). Tio Charlie afirma que o ano 1888 era muito diferente e que era um prazer ser jovem naquela época.
Tio Charlie tenta entregar o presente para a sobrinha, mas ela não quer receber presente nenhum, mas o tio a segue até a cozinha. Ela afirma para o tio que ter como nome (Charlie) o apelido do tio (Charlie) os fazem ser parecidos. Não são apenas tio e sobrinha, pois há algo mais entre eles. Ela afirma para o tio que, como ele, não conta muitas coisas para as pessoas. Além disso, há algo dentro dele que ninguém sabe, mas que ela vai descobrir.
Finalmente, tio Charlie entrega um anel de esmeralda para a sobrinha. Após agradecer e ver o anel com mais atenção, ela percebe que há uma inscrição “Para T.S. de B.M.” A sobrinha fica intrigada e passa a cantarolar uma música antes do término do jantar, mas não se recorda do nome. Quando finalmente lembra-se de ser “A Viúva...”. Tio Charlie derruba uma taça de vinho na mesa.
Após o jantar, Tio Charlie está lendo o jornal e fica muito incomodado com uma notícia. Ele, então, chama as crianças para brincar e faz uma casa de jornal. Após sumir com as páginas 3 e 4, ele enfia a folha do jornal no bolso do paletó e sobe para o quarto. Depois, a sobrinha sobe até o quarto e leva uma bandeja com jarra d’água e copo para o tio, quando percebe que a folha do jornal sumida está dobrada no bolso do paletó do tio que está pendurado na cadeira. Ao pegar a folha do jornal de surpresa, a sobrinha deixa o tio furioso e este agarra o braço da jovem com força e não permite que ela leia a notícia do jornal.
No dia seguinte, Tio Charlie está tomando seu café da manhã na cama quando recebe a notícia de que a família foi escolhida pelo National Public Service para uma pesquisa nacional, por ser representativa do que é uma típica família americana, e que haveria entrevistas e iriam ser tiradas fotos da casa e da família. Tio Charlie avisa a irmã que não quer ser incomodado e nem tirar fotos. Ele afirma que nunca tirou fotos, então ele é lembrado que há uma foto dele guardada em casa. A sobrinha pega um portaretratos com a foto do Tio Charlie quando era garoto, tirada no Natal quando ele ganhara uma bicicleta e sofrera um acidente ao escorregar no gelo e bater num bonde. 29
Terminado o café da manhã, Tio Charlie caminha pelas ruas da cidade com a sobrinha em direção ao banco, onde trabalha o cunhado dele (Joe). Ao atravessar o corredor do banco, ambos passam por um banner preto com uma figura de branco no centro com 13 estrelas em volta dela. Ao chegar ao guichê, Tio Charlie pergunta ao cunhado, de maneira sarcástica, se este poderia parar de fazer desfalques ou manipular a escrituração bancária dos balancetes, pois ninguém sabe o que acontece portas adentro. Após ficar sem graça com as insinuações, o cunhado vai até a sala do gerente para verificar se este está disponível para atender Tio Charlie, a fim de verificar sobre a possibilidade da abertura de uma conta com 40 mil dólares. Após a assinatura da ficha e dos detalhes legais, Tio Charlie volta com a sobrinha para casa.
Dois homens aguardam num carro em frente a casa e se apresentam para tirar fotos e entrevistar a família. Tio Charlie sobe as escadas e procura se esconder deles. O homem que carrega a máquina fotográfica consegue tirar uma foto do Tio Charlie no corredor do segundo andar e este exige a entrega do filme. Os dois homens vão embora, mas antes o outro homem, o entrevistador, pede permissão a Mrs. Newton para sair com a jovem Charlie.
A jovem Charlie sair para passear, jantar e depois senta no banco da praça para conversar, quando então descobre horrorizada que o homem, com quem passou horas conversando, era na verdade um investigador de polícia que considera Tio Charlie como suspeito de ter cometido um crise na costa leste do país e depois fugido para a costa oeste do país. Após voltar para casa, a jovem Charlie fica perturbada com a ideia de seu tio ser um criminoso e sai andando pelas ruas em direção à biblioteca municipal e chega no exato momento em que esta está fechando ao badalar do sino da igreja às 9 da noite. A bibliotecária, ante a insistência da jovem, permite que ela consulte um jornal após repreendê-la pela inconveniência de sua atitude. A jovem Charlie senta-se e começa a folhar o jornal e descobre horrorizada que há uma caçada nacional em busca do assassino de três viúvas ricas. A última vítima tinha sido Thelma Schenley, viúva de Bruce Matthewson, cujo assassinato ocorrera em Gloucester, Massachusetts em 12 de janeiro. A jovem Charlie, desconsolada, tira o anel do dedo e lê a gravação: “Para T.S.
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de B.M”. Ao se levantar para ir embora, a câmera se afasta dela para acentuar o abandono e a solidão da jovem Charlie no meio da biblioteca.
No dia seguinte, a jovem Charlie fica trancada em seu quarto e não vê nem o tio e tampouco o investigador de polícia. Ela desce apenas para o jantar e insinua que sonhou com o tio indo embora de trem. Tio Charlie desconversa e acerta com a irmã Emma para ir ao clube de mulheres, que é presidido pela esposa do gerente do banco, a fim de dar uma palestra no domingo à noite. Durante o jantar, Tio Charlie refere-se às mulheres viúvas ricas como inúteis, pois bebem, comem e jogam bridge toda noite e cheiram a dinheiro. Orgulhosas de suas joias, mulheres horríveis, enrugadas, gordas e mesquinhas. Animais gordos e horripilantes que não são seres humanos. A irmã responde que ele seria linchado se fizesse um discurso desse tipo no clube de mulheres.
Ainda durante o jantar, quando um amigo do pai chega para conversar sobre o hobby deles (venenos e assassinatos em livros de literatura policial), a jovem Charlie tem uma explosão emocional e sai correndo da casa. Tio Charlie a segue pelas ruas da cidade de Santa Rosa, ambos entram no bar Til-Two, onde há “mesas para senhoras”, muito frequentado por militares. Ao começar a conversa, Tio Charlie usa de ironia e fala para a sobrinha que eles são almas gêmeas e que lhe conte o que está acontecendo com ela.
A jovem Charlie tira o anel do bolso, coloca-o sobre a mesa e pergunta para o tio como ele pôde fazer tudo aquilo. Ele a confronta perguntando se ela pode concluir algo porque leu uma notícia de jornal e tem um anel com uma gravação. Ela não sabe que o mundo é um inferno, pois vive o cotidiano e a monotonia de uma tranquila cidade pequena sem preocupações, onde pode dormir tranquilamente e ter seus ingênuos sonhos.
Tio Charlie e a sobrinha voltam para casa. Ele pede um tempo para a sobrinha, que esta o ajude, pois a família era a última esperança dele, para evitar ser preso o que significaria a cadeira elétrica. Após a missa no domingo de manhã, o investigador e o fotógrafo esperam para falar com a jovem Charlie na saída da igreja. Ann chama a irmã e depois conversa com o investigador, enquanto o fotógrafo revela à jovem Charlie que ele trocara os rolos de 31
filme e a foto do tio dela havia sido enviada para a costa leste do país para ser identificada pelas testemunhas. Caso a identificação fosse positiva, ela deveria fazer o tio sair da cidade para que a prisão fosse realizada sem escândalos.
Quando a jovem Charlie chega em casa, ela ouve o pai e o amigo dele conversando no jardim sobre o assassino das viúvas ter sido pego em Portland, Maine. Durante a fuga da polícia no aeroporto da cidade, o suspeito foi atingido pelas hélices de um avião e morreu decapitado, sendo identificado pela roupa que usava com as iniciais CO’H. A jovem Charlie com um rosto imóvel e um olhar fixo confronta o tio que sobe as escadas da casa de maneira despreocupada, mas para e vê, do alto da escada, a sobrinha de pé e imóvel na entrada da casa e segurando um chapéu.
Durante a tarde de domingo, o investigador conversa com a jovem Charlie e se despede dela no interior da garagem da casa, ambos estão enamorados. Ele vai embora de carro e avisa que tinha deixado endereços e telefones para ela entrar em contato com ele. Por um momento, ela hesita e grita o nome do investigador, que não ouve, ao lembrar-se de suas suspeitas sobre o tio. Após a partida do carro do investigador, Tio Charlie está imóvel na porta da casa e olha fixamente para a sobrinha que caminha de volta a casa.
No final da tarde, a jovem Charlie vai sair para comprar algumas coisas para a mãe. Ela desce a escada dos fundos da casa, como sempre fazia, quando de repente um dos degraus se quebra, mas ela consegue se segurar e evitar um acidente mais grave, ficando apenas com um tornozelo torcido. Ela então cai em si e percebe que não foi um acidente. Usando uma lanterna, ela volta à noite e verifica que o degrau havia sido serrado para quebrar de maneira proposital. A jovem Charlie então confronta o tio no alpendre da casa e pergunta quando ele vai embora da cidade, mas este afirma que vai permanecer na cidade. A jovem Charlie então o ameaça dizendo que ela mesma o mataria se ele não saísse da cidade.
Ainda naquele domingo à noite, a família se prepara para sair a fim de ouvir a palestra do Tio Charlie no clube das mulheres. Este insiste que todos devem ir de taxi, enquanto ele iria de carro com a sobrinha para ensaiar o discurso daquela noite. Tio Charlie pede para a sobrinha tirar o carro da garagem. Quando ela chega à garagem 32
descobre que o carro já estava ligado, mas a chave não estava na ignição. Em meio à fumaça, ela desfalece após esmurrar a porta e ao gritar por socorro, pois a porta estava emperrada, mas por sorte o amigo do pai ouviu os gritos de socorro, após passar pela garagem e antes de chegar para ver o amigo e, assim, avisa a família dela. Todos saem correndo e Tio Charlie entra na garagem coloca a chave de volta na ignição, desliga o carro e pega a sobrinha nos braços e a retira da garagem. A jovem Charlie recupera os sentidos e pede furiosa para ele ir embora da cidade. Tio Charlie ainda tenta obrigá-la a beber um pouco de sua garrafa de uísque, mas ela recusa temendo ser envenenada por ele.
Finalmente, todos vão à palestra, menos a jovem Charlie que fica sozinha em casa. Ela, então, vai ao quarto do tio e faz uma busca até encontrar o anel. Quando retorna da palestra, a família está acompanhada de vários convidados que elogiam Tio Charlie pelo melhor discurso proferido em anos na cidade e pela generosa doação para ajudar as crianças da cidade. Quando a jovem Charlie é chamada da sala de estar, ela responde e desce as escadas com o anel no dedo. Tio Charlie percebe e anuncia, após um brinde de despedida, que recebeu uma carta e tem que partir na manhã seguinte para São Francisco.
A família se despede do Tio Charlie na estação de trem, mas ele pede para a sobrinha esperar, pois ele queria conversar com ela, junto à cabine dele, antes da partida do trem. Quando este então começa a mover-se, Tio Charlie agarra os braços da sobrinha com força e ameaça jogá-la do trem. A jovem Charlie consegue segurar-se na porta com uma mão e é o Tio Charlie quem cai na frente da composição de trem que vinha na direção contrária e morre esmagado por ela.
Na última cena, o investigador chega para a missa e conversa com a jovem Charlie na porta da igreja. Segundo ela, o tio considerava o mundo um lugar horrível, não confiava nas pessoas, odiava o mundo inteiro e dizia que as pessoas não sabiam como o mundo era de verdade. O investigador afirma que o mundo não é tão ruim assim, mas se deve vigiá-lo de perto, pois de vez em quando este enlouquece como o tio dela.
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Nuances Interpretativas
O diretor Alfred Hitchcock, para marcar sua ambientação nos Estados Unidos, utilizou a própria cidade em que vivia como cenário do seu filme A Sombra de uma Dúvida. Há vários elementos no filme que permitem ver aspectos religiosos colocados pelo diretor. Quando Tio Charlie quebra o copo no quarto alugado, isto significa que ele decidira reconstruir sua identidade em outro local (simbolicamente os pedaços quebrados determinam o fim de um momento para reconstruir uma nova identidade em outro lugar). Ao sair pela porta há o número 13, cujo significado leva a uma associação com o demônio. A identificação com a chegada do demônio à cidade é reforçada pela espessa fumaça preta, na chegada do trem, que faz uma enorme sombra sobre a estação de trem da cidade de Santa Rosa, fato mencionado por François Truffaut no livro de entrevistas com Alfred Hitchcock (p. 92) e cuja intenção foi confirmada pelo diretor inglês.
O confronto do tio com a sobrinha na parte final do filme mostra a queda da escada como a perda da inocência (expulsão do paraíso) por parte da jovem Charlie. Na cena em que a sobrinha está presa nas trevas da garagem, o tio está sob a luz da sala de estar, na segunda tentativa de matá-la. A terceira tentativa ocorre na estação quando o trem, que foi a salvação de Tio Charlie no início do filme, transforma-se em sua perdição, isto marca o confronto final entre o bem e o mal. Por contraste com o início do filme, há agora uma pequena fumaça branca que sai da chaminé do trem.
De maneira engenhosa, Alfred Hitchcock colocou várias referências ao vampirismo no filme. Tio Charlie está deitado de preto no início do filme como se estivesse num caixão. Não gosta de luz e apenas se levanta após a persiana ser abaixada. Ao sair da casa e fugir por um terreno baldio sem saída, aparece rapidamente no alto de uma construção, como se tivesse alçado voo. Sua relação com a sobrinha apresenta momentos de telepatia como no caso do telegrama e quando ela cantarola a opereta A Viúva Alegre de Franz Lehár (1870–1948), música que atraiu muito a atenção de Adolf Hitler para o compositor, o que arranhou a reputação do músico após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
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Além do fato de Tio Charlie não gostar de tirar fotografias, a cena que comprova a colocação do tema de vampirismo no filme é quando, após sair da igreja, a pequena Ann conversa com o investigador sobre Drácula. Além disso, no início do filme, Tio Charlie viaja da Pensilvânia para o oeste, assim como Drácula viaja da Transilvânia para o oeste.
Outra interpretação importante do filme é quando Tio Charlie faz críticas ao governo, ataca os bancos e faz um violento discurso contra viúvas ricas que merecem a morte. Além disso, há o fato de ele ter distribuído (dando de presente) bens da viúva morta, como a estola e o anel, o relógio do falecido marido e brinquedo das crianças. Quando insinua para o cunhado no banco que ele pode ficar com o cargo do gerente do banco, há uma mensagem subliminar na cena. Quando o cunhado move-se para sair da sala do gerente do banco, atrás da sua cabeça aparece a palavra (BUY) num quadro de parede ao fundo, como se a cabeça dele pudesse ser comprada por interesses financeiros. Tudo isso pode ser comprovado pela frase final no filme que é dita pelo investigador para a jovem Charlie e que mostra a importância de combater a semente do nazismo: o mundo não é tão ruim assim, mas se deve vigiá-lo de perto, pois de vez em quando este enlouquece como o tio dela. Parte-se do particular (a cidade) para explicar o geral (o mundo).
A interpretação psicológica do filme nos mostra a relação de amor platônico entre o tio e a sobrinha, mas que são almas gêmeas. Enquanto ela é o mundo da inocência, ele é o mundo adulto da culpa. Conhecer a alma de alguém é descobrir o oculto na personalidade do outro. As cenas de olhar fixo com rosto imóvel versus rosto móvel com olhar flexível entre os dois personagens em duas cenas, além das longas sombras no chão, mostram a utilização do expressionismo muito usado por Fritz Lang.
O jogo imaginário de assassinatos, em decorrência da leitura de romances policiais, do pai com seu amigo tem um paralelo no jogo real do tio com a sobrinha. O amigo do pai, que tanto pensa em como matar alguém, acaba sendo a pessoa que dá o alerta para salvar a jovem Charlie que está sufocada pela fumaça na garagem da casa.
O confronto entre o bem e o mal é o embate entre a luz e as trevas, como o conhecimento versus a ignorância. Ao se adquirir conhecimento perde-se a inocência. A 35
pequena Ann é a personagem que tem muito conhecimento pelos livros, mas por ser criança ainda não desenvolveu a maturidade que se adquire com a experiência de enfrentar a realidade do mundo. A jovem Charlie, que caminha para abandonar a inocência e entrar no mundo adulto, passa pela provação de descobrir a culpa do tio e, assim, perde a inocência. Viver é sempre uma luta entre a luz e as trevas. A luz equivale ao ser e à unidade. As trevas, a aparência e a duplicidade. Segundo Jean Douchet, na revista Cahiers du Cinema, o suspense é a espera de uma alma entre duas forças (a Luz e as Trevas), havendo a dilatação do presente, que está retida entre dois futuros iminentes e contrários. O suspense nos filmes de Hitchcock muitas vezes utiliza a batalha entre a luz e as trevas para marcar a suspensão do tempo e, assim, prender a atenção da audiência do público no cinema.
O mundo nos filmes de Hitchcock é marcado pelo estado permanente de instabilidade, incerteza e dúvida. O olhar do policial em seus filmes é sempre marcado pela aparência do senso comum, cabendo ao herói sair do mundo das aparências e reencontrar a verdade e trazê-la à luz. Nosso conhecimento do mundo é sempre incompleto, pois não temos todas as informações que permitam uma ampla análise do quadro geral e, por isso, estamos sempre à sombra de uma dúvida...
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O filme Casablanca possui um gênero híbrido que é muito diferente dos outros filmes de sua época. Isso foi amplamente analisado por Umberto Eco em seu clássico texto de semiótica. O filme retrata um mundo em crise de identidade e passando por mudanças. Casablanca nos transporta para um lugar exótico e distante do mundo ocidental durante a Segunda Guerra Mundial, exatamente para poder colocar os elementos necessários para analisar a realidade. A ambiguidade dos personagens, o conflito de sentimentos e a necessidade de assumir uma posição estão presentes no filme. Rick Blaine aparenta ser isolacionista (como os Estados Unidos), mas ele se torna intervencionista devido às circunstâncias da guerra. O capitão Renault atua como colaboracionista (apoio ao governo de Vichy), mas acaba revelando-se aliado da França Livre. Ilsa Lund parece solteira para proteger o marido (a ideia é dele), mas no final do filme acaba tomando a consciência de que é a Senhora Laszlo. Há um jogo de cena entre o oculto e o visível que permite acompanhar a transformação das personagens. O próprio Rick’s Café Américain é o retrato deste jogo 37
onde há o visível para a maioria das pessoas (o bar e a música) e o oculto para poucas pessoas (o carteado e a roleta). O encontro de Rick Blaine com Ugarte se dá exatamente na porta entre o oculto e o visível. Há vários eventos que não se materializam aos olhos do espectador e isso acentua o jogo entre o oculto e o visível. Não se vê a morte dos dois couriers alemães, assim como a morte de Ugarte ou mesmo a reunião da resistência. Vê-se a cena do beijo do casal novamente enamorado, pouco antes do fim do filme, e depois eles conversando sobre o que fazer e que decisão tomar, mas há um longo lapso de tempo entre as duas cenas. Isso foi preenchido pelo farol com sua circulante luz. As duas cartas de trânsito em poder de Ugarte são entregues a Rick Blaine para que as guarde. Ele as esconde dentro do piano, no meio do bar, e ao alcance de qualquer pessoa que abrisse o piano. Posteriormente, todo o Rick’s Café Américain é revirado (não se vê no filme), em busca das cartas de trânsito, mas elas não são encontradas. Isso evoca o conto A Carta Roubada (The Purloined Letter) de Edgar Allan Poe (18091849) no qual uma carta está colocada no lugar mais evidente aos olhos de todos, mas não é reconhecida durante a realização das buscas por ela. As cartas de trânsito não existiam na realidade, apenas na ficção, mas serviram para mostrar a dialética na tomada de decisão. A abordagem racional (tese) utilizada Victor Laszlo é com patriotismo, apoio aos movimentos de resistência ou pela venda a dinheiro, mas não é aceita por Rick Blaine. A abordagem emocional (antítese) utilizada por Ilsa Lund ameaçando matá-lo ou amá-lo acaba gerando uma tomada de decisão baseada numa abordagem racional/emocional (síntese) por parte de Rick Blaine que percebe que ambos (Victor Laszlo e Ilsa Lund) estavam dispostos ao sacrifício para o outro escapar e, assim, ele sacrifica sua paixão para mantê-los juntos. Casablanca nos lembra de que o mundo está em movimento, como o globo que gira no início do filme, que não se pode ficar estático e que muitas vezes medidas dinâmicas e mesmo sacrifícios são necessários em busca de se retomar um novo equilíbrio. Os problemas de três pessoas parecem pequenos diante dos grandes problemas do mundo. Não somos responsáveis por nossos sentimentos, mas sim por nossas ações.
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Umberto Eco e a Semiótica em Casablanca
Umberto Eco (1932-2016) escreveu uma importante análise semiótica1 sobre Casablanca. Ele considera que o filme trabalha com arquétipos2 que frequentemente reaparecem em narrativas e que desempenham uma vaga sensação de dèjá vu: situações em que se tem a impressão de já ter visto ou vivido. O filme permanece em nossa memória como um todo, pois apresenta não apenas uma ideia central, mas sim várias e isso o torna um Clássico do Cinema. A semiótica parte da análise: de estrutura comum (common frame) que é a situação estereotipada, sequência de ações codificadas do dia a dia como, por exemplo, jantar no restaurante ou ir à estação de trem; de estrutura intertextual (intertextual frame) que é a situação estereotipada baseada em conhecimento prévio como o duelo entre o xerife e o bandido ou em narrativa onde o Herói ganha ao enfrentar o Vilão, ou ainda como o suspeito que escapa de um posto de controle e é baleado pela polícia. Além disso, há a iconografia estereotipada como o Nazista Mal (Evil Nazi) que pode desenvolver uma estrutura intertextual. O filme Casablanca3 tem início com uma música africana (gênero de filme de aventura) e depois muda para a Marselhesa (gênero de filme patriótico). Em seguida, sobre a imagem do globo, uma voz sugere uma reportagem (gênero de jornal cinematográfico) descrevendo a Odisséia de Refugiados e a rota Casablanca-Lisboa (gênero de Intriga Internacional). Casablanca é a cidade que representa o Último Posto Avançado no Fim do Deserto. O Rick’s Café Américain incorpora a visão da Legião Estrangeira perto do Grande Hotel para onde pessoas vêm e vão e nada acontece. Há o Inferno do Jogo em Macau ou Singapura (mulheres chinesas) e o Paraíso dos Contrabandistas neste café, onde tudo pode acontecer: amor, morte, perseguição, espionagem, jogos de azar, sedução, música, patriotismo. Há a tentativa de fuga e a prisão de Ugarte (filme de ação) 1
O paper “Casablanca: Cult Movies and Intertextual Collage” foi apresentado por Umberto Eco no Simpósio “Semiotics of the Cinema: The State of the Art”, em Toronto, no Canadá, em 18 de junho de 1984. 2 O uso feito por Umberto Eco não tem nenhuma conotação psicológica ou mítica. 3 A montagem da abertura do filme foi feita por Don Siegel (1912-1991) baseando-se no estilo do March of Time, jornal cinematográfico que era narrado por Westbrook Van Voorhis (1903-1968).
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depois aparece o agente norueguês Berger (filme de espionagem). Pétain (Vichy) versus a Cruz de Lorena representam a oposição entre colaboracionismo e resistência (filme de propaganda de guerra). Victor Laszlo e Ilsa Lund – o Herói Incontaminável e a Mulher Fatal (ambos de branco) em contraste com os alemães que normalmente estão de preto e o casal é apresentado ao major Strasser que se apresenta de branco para reduzir a oposição visual. Ilsa e Strasser representam a Bela e a Fera. Depois que o café é fechado à noite, pouco antes do flashback, Sam e Rick Blaine estão sozinhos. Eles são o Servo Fiel e seu Amado Mestre (Dom Quixote e Sancho Panza). No início do filme, Rick Blaine aparece como sinédoque (sua mão) e metonímia (seu cheque). A sua personalidade complexa aflora como O Aventureiro, o Self-Made Businessman (dinheiro é dinheiro), o Homem Inflexível (Tough Guy) de filme de gangster, Nosso Homem em Casablanca (Intriga Internacional), o Cínico Sedutor (despreza Yvonne) e o Herói Hemingwayano (pois ajudou tanto etíopes como espanhóis contra o fascismo). O fato de não beber representa um problema, mas o flashback ajuda a introduzir o Amante Desiludido que se transforma no Amante Desesperado (Beber para Esquecer) para no fim ser o Bêbado Redimido. O Flashback representa O Poder da Memória para recordar o Encontro Breve (com Ilsa Lund) na Última Vez que Vi Paris. Rick Blaine representa o Diamante Áspero: permite que o casal búlgaro obtenha o dinheiro necessário para os vistos de saída após ele ser ríspido com Annina Brandel; permite a execução da Marselhesa após ser ríspido com Victor Laszlo e negar a venda das cartas de trânsito; descobre que o Amor é para Sempre depois de dizer que Ilsa poderia atirar nele. Há a quinta essência do Drama na figura do Clímax depois de todos os anticlímax. Casablanca-Lisboa significa a Passagem para a Terra Prometida. Casablanca representa a Porta Mágica. Entretanto, para fazer a passagem deve-se submeter a um Teste. Há a Longa Espera do Purgatório. A Chave Mágica é a carta de trânsito. O Capitão Renault encarna o Guardião da Porta que deve ser conquistado pelo Presente Mágico (dinheiro ou sexo). A Chave Mágica não é comprada pelo dinheiro, pois é dada como Presente (recompensa pela Pureza). O Dono (da Chave) é Rick que dá dinheiro (de graça) para o casal búlgaro e ele também dá as cartas de trânsito (de graça) para Victor Laszlo. A Roleta de Vida ou Morte (Roleta Russa que devora fortunas e pode destruir a felicidade do casal búlgaro – Epifânia da Inocência). 40
Ao se sacrificar, Rick Blaine consegue a Redenção. Os impuros não vão para a Terra Prometida (a América), mas para a Resistência (Rick e Renault) visando a Guerra Sagrada (Holy War) que é um glorioso Purgatório. Victor Laszlo vai para o Paraíso por ter sofrido com a clandestinidade. O avião é o Cavalo Mágico (na cena final há inclusive um emblema do cavalo Pegasus no avião). A ideia de sacrifício perpassa todo o filme: o sacrifício de Ilsa Lund em Paris quando ela abandona o homem que ama para voltar para o Herói Ferido; a jovem búlgara decidida a se sacrificar para ajudar o marido; o sacrifício de Victor Laszlo que está resignado a ver Ilsa Lund e Rick Blaine juntos a fim de garantir a segurança dela. O Amor Infeliz é arranjado em triângulo4. Normalmente há o Marido Traído e o Amante Vitorioso. Neste caso, ambos os homens são traídos e sofrem uma perda. Todavia, há um elemento subliminar (Amor Platônico) nesta derrota que escapa do nível da consciência, pois Rick admira Victor, este é ambiguamente atraído pela personalidade de Rick: ambos chegam ao extremo de um duelo de sacrifício próprio em prol do outro. Como no livro As Confissões de Rousseau (1712-1778), a mulher é o intermediário entre os Homens, um jogo de virilidade, dança de sedução em torno da Bela. A resolução se dá com o Sacrifício Supremo (que permite que Victor e Ilsa partam juntos) e, assim, ocorre a Redenção de Rick Blaine.
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Ilsa Lund aparece no meio de Victor Laszlo e Rick Blaine em várias cenas reforçando a ideia de triângulo amoroso na trama do filme.
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A propaganda antinazista Há claros elementos de propaganda antinazista no filme. A própria abertura do filme narrada por Lou Marcelle (1909-1994), que fez narração em duas dezenas de filmes na década de 1940, baseia-se na ideia de criar no espectador a verossimilhança com a realidade, como se fosse o cine jornal comum na época. Ao transportar a realidade para o campo da ficção busca-se trabalhar os elementos necessários na formação de um quadro amplo que permita uma análise da realidade com base em personagens fictícios. Ao criar a identificação do espectador com a realidade, o filme permite a construção do consentimento ativo (plano das ideias) e de um posicionamento pró-ativo (plano da ação), atingindo-se assim o objeto da propaganda antinazista. Logo no início do filme, um inocente tenta fugir, mas morre fuzilado junto a uma parede, onde há a imagem do Marechal Philippe Pétain (1856-1951), com a frase: Je tiens mes promeses meme celles des austres5. A câmera sobe e mostra uma bandeira tricolor e o lema da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade). Portanto, há uma nítida crítica ao governo colaboracionista de Vichy e ao período da França Ocupada (1940-1944). O folheto retirado da mão do homem fuzilado apresenta a Cruz de Lorena, símbolo do movimento Free France (França Livre). Este mesmo símbolo aparece após a prisão de Ugarte no Rick’s Café Américain, quando Berger mostra o anel para Victor Laszlo: há novamente a identificação favorável à resistência que se opõe ao regime nazista. Quando o oficial francês e o oficial alemão brigam por Yvonne, Rick Blaine ainda tenta contemporizar, mas logo depois, após recusar vender as duas cartas de trânsito, a negação faz com que Victor Laszlo peça que a orquestra toque A Marselhesa se opondo ao hino patriótico alemão Die Wacht am Rhein, tocado ao piano, e, assim, não há mais como impedir um posicionamento próativo com o duelo dos hinos. Quando Rick Blaine recusa-se a vender as cartas de trânsito, ele é lembrado por Victor Laszlo que esteve do lado certo da luta ao apoiar a Etiópia contra a ocupação italiana e as Brigadas Internacionais contra o fascismo na Espanha. Já havia o consentimento ativo em prol da resistência e, no final, ao permitir que Victor Laszlo e Ilsa Lund embarquem no avião6, há a reveladora frase de Victor Laszlo para Rick Blaine em favor dos Aliados: And welcome back to the fight. This time I know our side will win. Ao final do filme, o Capitão Renault atira a garrafa de água de Vichy e depois chuta o cesto de lixo, claramente engajando-se na luta ao lado de Rick Blaine (aliança franco-americano). Coincidentemente houve o apoio dos Estados Unidos e o reconhecimento da liderança das Forças da 5
I Keep my Promises, Just as I Keep The Promises of Others. O prefixo F-AMPJ do avião que decola na cena final parece codificar a mensagem: Freedom to Allied Members Politically Joint. 6
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França Livre que ocorreu na Conferência de Casablanca, em janeiro de 1943, quando o filme Casablanca entrou em cartaz nos Estados Unidos. Provavelmente o elemento de propaganda antinazista mais oculto no filme seja o de ter o desejo de ver o Coronel Strasser morto7 desde o começo do filme e ver este acontecimento com grande prazer ao final do filme. Logo no início da película, há a imagem do avião com o prefixo D-AGDF aproximando-se para aterrissar no aeroporto. A frase Death to Acting Great Dictador Führer seria uma mensagem subliminar? O prefixo do avião D-AGDF parece um epitáfio para um caixão pousando na pista do aeroporto. Após o avião taxiar e parar, com a imagem congelada do filme pode-se ver claramente uma pequena bandeira com a suástica nazista ao lado da porta do avião e outra bandeira bem maior no leme do avião. Além disso, quando o Coronel Strasser desce do avião, há a saudação nazista ao seu ajudante de ordens, o Capitão Heinze, bem abaixo das letras GDF que estão na asa do avião. Vale lembrar que dois anos antes do filme Casablanca, havia sido produzido o magnífico filme O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940) de Charles Chaplin (1889-1977). Portanto, as letras GD já estavam no imaginário coletivo e, portanto, coladas à figura de Hitler. O filme Casablanca acrescentou o F (de Führer) nesta cena e, assim, de maneira inconsciente já se quer a morte do nazista que está atuando no lugar de Hitler, naquele lugar distante na ficção da cidade de Casablanca do filme, mas próxima para analisar-se a realidade. As filmagens de Casablanca iniciaram-se em 25 de maio de 1942. Coincidentemente o Comandante Nazista Reinhard Heydrich (1904–1942) sofreu um atentado realizado pela resistência checa, em Praga, em 27 de maio de 1942, sendo que, uma semana depois, veio a falecer em 4 de junho de 1942. Em 1943, a história foi contada no filme Os Carrascos Também Morrem (Hangmen Also Die!), dirigido por Fritz Lang. A propaganda antinazista esteve muito presente em dezenas de filmes nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e tornou-se um material muito interessante para análise e compreensão da época, no tocante à construção do consentimento ativo em favor da resistência ao regime nazista como também ao posicionamento pró-ativo de engajamento ao lado das tropas dos Aliados.
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Quando o corpo dele é retirado aparece a placa do carro A452ML. Em química um gás ideal cujo volume inicial é de 452ml, sob pressão constante e sendo aquecido de 22ºC a 187ºC, aumenta para 705ml, ocorrendo uma mudança. Deixo em aberto ao leitor a interpretação disso em meio à névoa da cena final.
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Pode-se colocar o filme Casablanca como uma espécie de precursor da microhistória, corrente da História que surgiu na Itália em meados da década de 1970: reduzir a escala de observação, concentrando-se em pessoas comuns, buscando ouvir suas vozes, a fim de apreciar ações humanas e seus significados e extrair de fatos do cotidiano uma dimensão relevante para análise, ao apelar para o recurso da narrativa histórica, com elementos de ficção (no caso do filme). Por isso, Casablanca mantém a sua atualidade.
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A Defesa Francesa no tabuleiro de xadrez O xadrez está relacionado com um dos filmes mais emblemáticos da história do cinema: Casablanca8. Humphrey Bogart, Paul Henreid e Claude Rains jogavam xadrez durante os intervalos das filmagens. Logo no início do filme, o dono do Rick’s Café Américain aparece sentado junto ao tabuleiro de xadrez, montando uma posição de abertura e depois analisando, antes de decidir a jogada a ser realizada na posição. A inclusão do tabuleiro de xadrez se deu por sugestão de Humphrey Bogart para a cena em que Ugarte (Peter Lorre) fala com o dono do Rick’s Café Américain. O xadrez cumpre função semiótica neste filme, uma verdadeira Obra-Prima onde todo detalhe é potencialmente significativo. A situação no filme pode ser comparada com a situação das peças no tabuleiro de xadrez. Rick Blaine está sozinho em frente ao tabuleiro e analisando uma posição delicada do ponto de vista das pretas, quando a convenção das publicações enxadrísticas é sempre analisar colocando-se o lado das brancas. Dentro do tabuleiro, e segundo se pode reconstituir a partir dos fotogramas do filme (apesar da taça cobrir o canto do tabuleiro), a posição é a seguinte quando ele termina de montá-la com o cavalo branco em b5 e, depois, ao analisá-la decide efetuar o roque pequeno como lance das pretas:
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Uma imagem inspirada nesta cena foi utilizada como base para o cartaz publicitário do filme destinado
à França, ainda que substituindo Ugarte pelo Signor Ferrari (Sydney Greenstreet), o volumoso chefe do mercado negro, cujo cigarro rodeia de fumaça o rosto circunspecto de Ilsa Lund (Ingrid Bergman).
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Esta posição surge de uma abertura denominada Defesa Francesa. As pretas são responsáveis por sua aparição no tabuleiro, pois as brancas não podem forçá-la. O fato de que seja uma posição derivada da Defesa Francesa (e não de qualquer outra abertura) a que aparece nesta cena de Casablanca, tem uma razão semiótica, Rick Blaine é um personagem ambíguo ou aparentemente neutro - "não arrisco meu pescoço por ninguém" (I stick my neck out for nobody) – mas é no tabuleiro de xadrez que começa a se delinear sua complexa personalidade. O fato de que Rick Blaine apareça analisando a posição (não jogando), e que esteja sentado do lado defensor (as pretas), são elementos chaves, elementos que permitem decifrar as intenções autênticas e inconfessas de Rick Blaine. A posição no tabuleiro de xadrez depois do roque pequeno (0-0) das pretas, considerando-se as horizontais (a-h) e as verticais (1-8), é conhecida como o Ataque Alekhine-Chatard na Defesa Francesa após os lances: 1.e4 e6 2.d4 d5 3.Cc3 Cf6 4.Bg5 Be7 5.e5 Cfd7 6.h4 c5 7.Bxe7 Dxe7 8.Cb5 0-0
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O ator (e enxadrista amador) Humphrey Bogart não realizou as jogadas, ele simplesmente foi montando a posição das peças de memória, porém ele retirou do tabuleiro os dois bispos de rei. Portanto, por um lapso, há uma peça mal colocada na cena de Casablanca, pois o bispo das brancas não deveria estar na casa c1 (primeiro diagrama), mas sim na casa f1 (segundo diagrama). Por isso, vamos considerar a posição correta para analisar a abertura. Não é uma mera coincidência que Humphrey Bogart tenha escolhido a Defesa Francesa e analisado a posição para as pretas, pois a inclusão do xadrez e a escolha desta abertura têm razões semióticas. Na realidade, o tabuleiro de xadrez representa o campo de batalha da guerra: o Ataque Alekhine-Chatard (com o peão branco em h4) representa a blitzkrieg nazista; a estrutura de peões pretos (c5, d5, e6, f7, g7 e h7) representa a linha Maginot9; enquanto o cavalo branco em b5 representa o ataque pela retaguarda, invadindo o território das pretas cuja posição está restringida. Ao realizar o roque pequeno, as pretas fazem o sacrifício da torre em a8, após o lance de cavalo branco em c7. Em contrapartida, as 9
Linha fortificada de defesa na fronteira da França idealizada por André Maginot (1877-1932).
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pretas conseguem mobilidade para contra-atacar com a tomada do peão central em d4 e com o futuro avanço de peão em f6. Simbolicamente este contra-ataque aparece no filme com o duelo dos hinos.
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Façam suas apostas: ... Preto 22 Na Numerologia, o número 22 representa o Mestre Espiritual atuando no mundo material. As características positivas indicam o altruísmo, a filantropia, a praticidade, o equilíbrio e o idealismo com senso prático. Por estar voltado para o coletivo, quem tem o número 22 possui uma excelente capacidade para entender os outros e, ao usar sua força interior, é capaz de realizar projetos que transformam sonhos em realidade. Do ponto de vista religioso: há 22 letras no alfabeto Hebreu; há 22 capítulos no livro Apocalipse na Bíblia; há o Salmo 22 que é aquele que Cristo cita o primeiro versículo durante a crucificação: “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?”; na Cabala há 22 caminhos entre as 10 emanações chamadas sephiroth. No Tarot há 22 Arcanos Maiores que podem ser numerados de 0-21 (A carta O Louco é zero) ou de 1-22 (A carta O Louco é 22). Portanto é uma questão de interpretação se é a carta O Louco (quando é 22) ou se é a carta O Mundo (carta 21 se O Louco é zero) que representa a 22ª carta dos Arcanos Maiores. Os 22 Arcanos Maiores representam os estágios da evolução humana através do simbolismo de suas cartas. O baralho de Tarot com 78 cartas possui também 56 Arcanos Menores que possibilitam o acréscimo de detalhes para a análise mais pormenorizada e compreensão dos Arcanos Maiores. As cartas do Tarot representam a evolução do ser humano no plano terreno e no plano espiritual. Os Arcanos Maiores revelam a dualidade (união do corpo e da alma), assim como a possibilidade de transparência do oculto, apresentando conhecimento e sabedoria. A linguagem das cartas fala de um universo de significados com o qual estabelecer uma comunicação. Os Arcanos Maiores revelam as diversas maneiras do ser (no plano interior e no plano exterior) e serve de instrumento tanto de autoconhecimento como de possibilidade para estudos filosóficos, psicológicos e históricos em busca da essência humana e universal. Para analisar o significado do número 22 na roleta deve-se antes recorrer à cena do filme Casablanca: Annina Brandel pergunta a Rick Blaine se o Capitão Renault manterá a palavra de que vai “ajudá-la” a conseguir o visto de saída mesmo ela não tendo dinheiro. Rick Blaine confirma que sim, mas em tom ríspido aconselha que o 49
casal volte para a Bulgária. O casal tem problemas, assim como todos em Casablanca. Ilsa Lund entra acompanhada de Victor Laszlo, no Rick’s Café Américain, no instante em que termina a referida conversa. Rick Blaine vê o casal entrar, indica-lhes a mesa 30, dirige-se a Sam para que toque As Time Goes By, depois verifica o faturamento da noite e em seguida dirige-se à mesa de roleta onde pergunta para Jan Brandel se ele já apostou no número 22, sob o olhar de Emil, o croupier. Então, o número 22 sai duas vezes em seguida e o casal búlgaro consegue o dinheiro para obter os vistos de saída. Começando pela carta O Mundo (carta 21, mas a 22ª carta se a carta O Louco é zero), temos uma carta de movimento (das mudanças naturais) que normalmente não é boa para o amor. Salvo se for uma relação que está começando então é positiva para o amor (casal búlgaro). O Mundo é um Arcano Maior que indica que relacionamentos vividos intensamente que empacam, não seguindo em frente, acabam terminando e ficando um sentimento de frustração e tristeza indicando que a missão foi cumprida (Rick Blaine & Ilsa Lund). Ao mesmo tempo, a carta O Mundo possui um fator humano importante que é a fé que impulsiona a crença na Energia Universal para enfrentar grandes obstáculos, sem medo de novos desafios. Vamos analisar agora a carta O Louco começando como zero e terminando como 22. Esta carta indica a necessidade de ficar sozinho (vemos Rick Blaine no início do filme sozinho com seu tabuleiro de xadrez), retirando-se do meio dos outros em busca de respostas no seu íntimo. Muitas vezes o destino se apresenta sem pedir permissão e produz uma mudança em sua perspectiva (Rick Blaine revê Ilsa Lund ao som de As Time Goes By). Depois ele precisa dominar seus medos ao relembrar o sentimento do amor (cena do flashback que termina com Rick Blaine entrando no trem sem a sua amada; ele teme nunca mais vê-la, não sabe o motivo e nem tem uma explicação). Ao parar e ver o mundo com os olhos do espírito aprende-se a importância da doação, sente-se o medo de perder, mas ao romper, pode-se harmonizar e equilibrar para começar de novo num processo de transformação (Rick Blaine entrega as cartas de trânsito para o casal partir para Lisboa e em seguida decide acompanhar o Capitão Renault para Brazzaville onde há tropas da França Livre, quando termina o filme). A carta O Louco indica o início, o meio e o fim. Como número 22, a carta O Louco indica que o ser humano chegou ao final de sua jornada e sua sabedoria permite o desapego. A riqueza está em sua alma e ela está pronta para reiniciar a jornada. 50
Amor, Rejeição, Paixão e Sacrifício em Casablanca O caso de paixão e sacrifício envolve Rick Blaine e Ilsa Lund, após ele rejeitar Yvonne no início do filme e pagar o tributo ao amor (casal búlgaro ajudado na roleta com o número 22, duas vezes seguidas, para fornecer dinheiro suficiente para os dois vistos de saída). Há abordagens diferentes já realizadas anteriormente e que merecem registro como, por exemplo: William Donelley em seu livro Love and Death in Casablanca enfoca o relacionamento de Rick Blaine com o pianista Sam e posteriormente com o capitão Renault para mostrar a repressão à homossexualidade. Sam recusa proposta de ganhar o dobro para trabalhar para o Signor Ferrari do Blue Parrot (Papagaio Azul) enquanto Renault declara seu ciúme por Ilsa Lund ao dizer-lhe que se fosse mulher, ele se apaixonaria por Rick Blaine10. Enquanto isso, Harvey Greenberg apresenta uma leitura Freudiana em seu livro The Movies on Your Mind, no qual considera que as transgressões que impedem Rick Blaine de retornar aos EUA constituem o complexo de Édipo e que ele identifica a figura do pai em Victor Laszlo. Sidney Rosenzweig considera, em seu livro Casablanca and Other Major Films of Michael Curtiz, que ambas as análises são reducionistas, pois o aspecto mais importante é a ambiguidade da personalidade de Rick Blaine. O dono do Rick’s Café Américain rejeita Yvonne no início do filme, num claro indício de reconhecimento de que ele não quer iniciar uma nova relação. Ao ser questionado onde esteve na noite anterior, ele responde que não se lembra. Perguntado o que faria naquela noite, ele responde que não faz planos com antecedência. Yvonne pede mais bebida para esquecer a desilusão amorosa, mas Rick Blaine pede que o barman Sascha acompanhe Yvonne até em casa. Yvonne retorna na noite seguinte acompanhada de um oficial alemão numa clara atitude provocativa em relação a Rick Blaine. Um oficial francês decide tomar satisfação provocando uma discussão com o oficial alemão e forçando Rick Blaine a interromper o conflito entre os dois oficiais.
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Além é claro da “ambiguidade” da frase final do filme dublada por Humphrey Bogart que voltou aos estúdios após o término das filmagens para dizer: Louis, I think this is the beginning of a beautiful friendship.
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A relação mais marcante do filme sem dúvida é entre Rick Blaine (Humphrey Bogart) e Ilsa Lund (Ingrid Bergman). A expressão do rosto da atriz Ingrid Bergman durante a música As Time Goes By é muito marcante e cheia de significados. Quando a atriz ia jantar em restaurantes na Itália e havia um pianista, invariavelmente o maitre avisava para que a música As Time Goes By fosse tocada para ela, tal o impacto que o filme permaneceu ao longo dos anos11. Algo interessante é que no filme nunca foi dito: Play it again, Sam. A confusão surgiu porque na verdade este é o título do filme estrelado por Woody Allen, em 1972, em que ele homenageou Casablanca. O semblante de Ilsa Lund revela a emoção interior da relação vivida por ela, enquanto a cena do flashback do ponto de vista de Rick Blaine revela a emoção visível da relação12. Ao guardar segredo do ocorrido e não contar nada para o marido, Ilsa Lund age não só para preservar o casamento como também para não demonstrar a importância e impacto que isso teve em sua vida (sozinha em Paris e pensando que ficara viúva). Sair da rotina diária de uma relação com um líder da resistência sempre em risco de ser preso e morto para viver uma grande paixão em Paris reverberou com grande intensidade na audiência feminina em relação ao filme. Victor Laszlo não consegue obter as cartas de trânsito e, ao perguntar o motivo da insistência de Rick Blaine em não vender mesmo que por um milhão de francos, é confrontado com a realidade da frase: I said, ask your wife. Diante de uma situação extrema e sem outra opção, só restava a Victor Laszlo mostrar publicamente os motivos e razões porque ele a amava tanto quanto à causa que defendia. O duelo dos hinos é não só a resolução de um conflito externo de lutar por uma causa como a resolução de um conflito interno de lutar pelo amor da esposa. Ilsa Lund está com a respiração acelerada durante esta cena, em clara demonstração de uma emoção contida pronta a ser revelada. Ilsa Lund tenta obter as cartas de trânsito numa conversa com Rick Blaine em que ela está disposta a matar ou amar a fim de obtê-las. A determinação de ambos
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Numa de suas últimas viagens aos Estados Unidos, a música As Time Goes By foi tocada para ela numa homenagem, em um programa de televisão, e ninguém menos que Frank Sinatra pegou um vôo de costaa-costa apenas para cantar a canção para uma emocionada Ingrid Bergman. 12 A mensagem do bilhete de Ilsa Lund para Rick Blaine que é dissolvida pela chuva nunca será esquecida ao contrário do muro do início do filme com a mensagem do marechal Pétain que nunca será lembrada.
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impressiona Rick Blaine que termina por sacrificar a paixão que sentia por ela a fim de preservar o amor do casal13. A imagem de Ilsa Lund refletida no espelho – quando o garçom Carl é instruído a levá-la de volta ao hotel, enquanto Rick Blaine desce para conversar com Victor Laszlo – mostra uma mulher dividida. A porta que se abre revela a dualidade de sentimentos no interior da personagem. Ao longo do filme a personagem Ilsa Lund utiliza quase uma dezena de figurinos que é acompanhada ora por um lenço na cabeça, ora por um chapéu diferente, ora por um broche, ora por uma pequena bolsa ou por um par de luvas nas mãos. Entretanto, apesar do filme ser em preto&branco, o vestido azul mencionado no primeiro diálogo quando Rick Blaine e Ilsa Lund reencontram-se em Casablanca, possui uma conotação importante (um homem lembrar com que roupa uma mulher estava em Paris). Ilsa Lund afirma neste diálogo que só voltaria a usá-lo quando os alemães marchassem de lá. Ao estar com o vestido azul na cena final, ela se mostra pronta no plano interior para partir com Rick Blaine enquanto no plano exterior confiante na causa da resistência. O azul, cor do céu e do mar, traz paz de espírito, segurança, tranquilidade e harmonia. Algo que Rick Blaine e Victor Laszlo precisavam contemplar para seguir em frente, na luta que agora tratavam em comum, na certeza de que desta vez seriam vencedores. O chapéu de Ilsa Lund levemente inclinado na cena final era moda como a pièce-de-résistance na França Ocupada (1940-1944).
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Muito interessante a discussão feita no filme Harry e Sally – Feitos Um Para o Outro (1989) em torno de amor e sexo em Casablanca.
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