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Fotos: Paulo de Tarso Riccordi

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Raul Ellwanger: hoje, a ditadura é da mídia

Dica Sitoni e Paulo de Tarso Riccordi

Aos 73 anos, desde meados dos anos 1960 Raul Ellwanger é uma das referências da música feita no Rio Grande do Sul. Sua grande “arrancada” em palcos (shows e festivais), no coração da Frente Gaúcha da Música Popular Brasileira, durou pouco mais de três anos – entre o show coletivo “PUC Canta em Amor e Verso”, em 1966, e o exílio político, em 1969.

Então, trocou o Direito, que estudava aqui, pela Sociologia, no Chile, e a Composição musical, na Argentina.

No retorno ao Brasil, em 1978, integrou o movimento MPG-Música Popular Gaúcha – que teve por marco fundador o disco coletivo Paralelo-30 -, com Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves, Gelson Oliveira, Nei Lisboa, Musical Saracura, Talo Pereyra, Robson Barenho, Canto Livre, Loma, Gloria Oliveira, Carlinhos Hartlieb, Jerônimo Jardim, Almondegas, Fernando Ribeiro, entre tantos, e o fomento do jornalista Juarez Fonseca e do produtor musical Ayrton dos Anjos, o “Patinete”.

E passou a gravar seus discos autorais, entre eles, trilhas, versões e discos coletivos. Sua música Pealo de sangue, com 30 gravações em cinco países e quatro idiomas, foi apontada, em votação pública, como uma das dez melhores músicas da história do estado.

No mês de maio, ainda cumprindo um rigoroso auto confinamento pela pandemia, e em meio à finalização de seu 16º disco autoral (Fronteiras), Raul concedeu esta entrevista ao Grifo, via internet.

Grifo – Como iniciou tua carreira musical? Raul Ellwanger - Na metade dos anos 60, em torno do Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da URGS e do Clube de Cultura de Porto Alegre, foram se sucedendo eventos de final de semana, canjas, saraus. Isso foi tomando corpo. O pessoal da Arquitetura começou a tocar em outras faculdades. Começaram a fazer shows com artistas no centro do país, como o MPB-4 e o Chico Buarque. Eu, mais no Clube de Cultura, com toda aquela geração de compositores iniciantes, até um pouco pretensiosos, a gente foi também fazendo pequenas apresentações, junto com outras vertentes que havia, como o rock and roll, que se espalhava pelos bares de bairros, e grupos de bailes melódicos.

Isso foi gerando aqui um movimento musical que serviu de base para que empresas de comunicação criassem festivais, imitando os grandes eventos do centro do país. O principal deles foi o da TV Gaúcha, chamado de Festival Sul Brasileiro da Canção Popular. Que teve três edições, 1967, 68, 69. Na de 68 eu participei com uma canção que foi finalista chamada “O gaúcho”, que tinha lá um versinho que espinafrava um pouco os militares. Isso foi bem sintomático, porque era metade do ano de 68. No final daquele ano veio o AI 5. Eu ainda me apresentei no Rio de Janeiro nas finais nacionais do festival da TV Excelsior, que chamava-se “O Brasil canta no Rio”. Gravei a canção no disco do festival - minha primeira gravação.

E logo, já em janeiro de 1969, as coisas foram degringolando. Eu tive minha vida cada vez mais molestada por espionagem, perseguições, visitas intimidatórias à casa de meus pais e irmãos, boatos que inundavam meu trabalho no âmbito de advogados. Muitos foram saindo para o outro lado, para o Uruguai, para Argentina, Peru, pra Europa. E nossa Frente Gaúcha da Música Popular Brasileira - que era o nome que tinha esse nosso movimento de compositores, instrumentistas, arranjadores, artistas -, ela feneceu depois desses efervescentes dois anos.

Grifo - A música, como para outros artistas, foi tua arma? Ela esteve, está, associada a uma militância política? RE - Existem compositores profissionais que fazem a música pensando no intérprete, no conjunto, e fazem excelentes músicas. Basta pensar na música para o cinema. Como imaginar o Cine Paradiso sem a música? Eu sou mais compositor, talvez mais personalista, inspirado numa linhagem brasileira de grande qualidade em todas as épocas, mas particularmente depois do samba canção e da bossa nova, quando a qualificação na letra brasileira sobe muito, com grandes precursores. Para exemplificar, Vinicius de Moraes e Sérgio Ricardo, verdadeiros papas da letra musical brasileira.

Eu sempre fui um compositor muito visceral, muito verdadeiro comigo mesmo, com o que eu dizia para fora. A mistura com a política, na medida em que eu assumo, é naturalmente espontânea, e flui com toda força, ou com toda meia força, dependendo o assunto. Agora, tem uma força com a qual ela não funciona, que é a política comum, as brigas, ingerências de grupos, facções, partidos, músicas que reflitam claramente esses conflitos.

O sentido político da música, para mim, é o sentido da cidadania. O grande projeto, o grande sonho, a grande reivindicação, a grande revolta. Eu sou grande admirador da Marselhesa e da Internacional. São grandes canções de época, com suas características, mas são comovedoras.

Sequer tive a tentação de escrever músicas políticas. Pode ter uma que outra coisa feita assim de brincadeira, de momento, mas gravar um disco ou procurar me posicionar, de maneira nenhuma, essa não é minha praia.

Grifo - Em que circunstâncias foste para o exílio? RE - Outros companheiros tiveram mais compromisso e foram mais valentes do que eu. Ter ido para o exterior não é uma coisa de que eu me orgulhe. Houve companheiros que sofreram no pau de arara pra me proteger. Houve outros que resistiram a essa prisão, à tortura e até foram “desaparecidos”. São opções que se toma no momento, olhando para si mesmo. Eu percebi que não iria estar à altura daquilo que a militância exigia. Eu seria um tormento para mim e um risco para os meus companheiros. E mais, familiares, amigos, colegas que não tinham nada a ver com isso passaram a ser molestados pela polícia da ditadura. Foi assim que eu fui para o exterior, para o exílio.

Grifo - Que mudanças e influências em tua vida e tua arte o exílio produziu? RE - Ter vivido e sobrevivido no Chile, Argentina* e, por menos tempo, no Uruguai foi um grande privilégio, excepcional. Simplesmente considero que metade da formação e informação que eu possa ter é relativa a isso. Nós brasileiros, no nosso sistema educacional, sem falar em outras esferas, nós estamos absolutamente mutilados em relação ao que é a nossa América Latina. Desde a sua história geológica, biológica, social, política, suas estruturas atuais, cultura, é uma coisa terrível. Vivemos cegos. Para mim foi maravilhoso. Estudei Sociologia, estudei marxismo, tive grandes professores, como o Rui Mauro Marini, o Mario Toer.

Estudei Composição no Conservatório de Buenos Aires, com professores pra lá de maravilhosos, extraordinários, estrelas internacionais. Creio que aprendi algumas coisas boas, percebo isso na minha criação atual, nos meus arranjos, na minha composição.

Fora isto, a vida cotidiana, o passeio, a cor do céu, o clima, o tempero da comida, a culinária, uma namorada, as canções que se escuta, os museus, o tipo étnico, o gelo do oceano Pacífico. São como duas vidas. É como se eu fosse duas pessoas. Uma, fui eu com até 21 anos, como fui aqui no Brasil, e outra, esse período de nove anos no exterior, que eu incorporei àquele jovem provinciano, com a educação meia boca que eu tive no nosso país.

Eu tenho uma gratidão, um carinho, um amor! Não me toque na América Latina, que eu viro uma fera!

Grifo - Na ditadura houve reação, tu estavas na militância. Nosso momento, por diversas razões, não possibilita a organização e a ação. Como tu compararias esses dois momentos da história do País? RE - Não dá pra comparar a sensação de opressão que havia no tempo do regime militar com agora. São coisas completamente diferentes. O que dá para ter é uma aproximação e a sensação de perigo. A percepção difusa, inconsciente, de que tem uma nuvem ameaçadora em algum horizonte nos espreitando. Eu associo muito isso a dois outros momentos da minha vida: um, no Chile, nos meses que antecederam o golpe militar que em 1973 derrubou o doutor Salvador Allende; o outro na Argentina de 1976, que derrubou a presidenta Isabel Perón. A gente fica numa espécie de limbo, flu-

tuando, olhando para os lados, o que está acontecendo, o que é isso?

E, para completar, temos hoje no Brasil um presidente falastrão, charlatão, que parece um bobo falando coisas terríveis, que assustam muito. Essas mensagens dúbias nos deixam neste “pendura”: o que é verdade, o que é falso? “O meu exército vai pra rua”. O que é isso? O que nós passamos aqui em 69, 70, pra falar da minha experiência pessoal, ou mesmo no final de 77, quando retornei, é outra coisa. É uma diferença muito grande.

Grifo - Tu temes que o Brasil possa viver de novo sob uma ditadura militar? RE - Bem ou mal, ainda temos recursos, ainda temos Judiciário, ainda há uma Constituição vigente, apesar de estar sendo esfaqueada diariamente por amplos setores do país, políticos, judiciais, midiáticos então nem se fala. E é bem diferente. Não é como estar numa ditadura. É farejar uma ditadura.

Grifo - Não te dá uma sensação de impotência? RE - Eu sinto uma sensação de impotência, um certo desamparo, uma certa desesperança. Mas isso não está originado no poder. Isso está originado na falta de resistência aos atropelamentos diários desse poder que temos hoje no Brasil. Se nós tivéssemos manifestações de centenas de milhares de pessoas nas cidades do país, nós teríamos outra sensação. Teríamos a sensação de que é possível resistir, de que é possível terminar com esse pesadelo que vivemos. Então, a fraqueza está muito do nosso lado, de nossa desorganização, de nossa divisão, na falta da reação popular. O filósofo La Boetie dizia que o maior poder do opressor consiste no desejo do oprimido de ser oprimido.

É muito estranho. Eu acho isto agora muito pior. A ditadura agora é da mídia. Não há censura a nós. Nós simplesmente não existimos para essa mídia. A censura agora é contra a população. A força, o poder, a sedução, a indução, a influência que tem o monopólio da mídia no Brasil é muito pior do que a ideologia e a censura imposta pelos militares.

A gente nem sabe bem o que acontece no Brasil. Nós não sabemos o que está acontecendo na literatura. Como é que nós sabemos do cinema produzido aqui? Ou nós sabemos coisas que o chamado mainstream permite ou quer que a gente saiba. Vou dar um pequeno exemplo: qual é a música do Rio Grande do Sul popular ou erudita que toca aqui? Essa música fala de alguma realidade verdadeira do Rio Grande do Sul? Ela é contemporânea? Ela testemunha alguma coisa, ela relata, ela revela, ela mostra? Ela vaticina, ela antecipa? Ela grita, ela chora, ela canta? Cadê a MPB histórica, cadê as músicas que corresponderiam a um Edu Lobo, um Chico Buarque, ao Aldir Blanc aqui no Rio Grande do Sul nestes últimos anos? O que toca é nada. O que toca é Anitta, depois a dupla Bruno & Minhoca, depois Morroco & Marruna, Alegrete & Santa Maria... É tudo superficial, reiteração triste, até. Em algumas músicas tu vês até os caras tentando ser regionalistas. Mas não sabem nada, então eles falam bobagens, usando palavras que, evidentemente, consultaram em algum dicionário. A minha geração está desde os anos 60 lutando para criar uma música aqui no Rio Grande do Sul com características daqui, poética daqui, com o uso da nossa personalidade rítmica, trazida pelos negros, pelos açorianos, pelos portugueses, pelos espanhóis, pelos indígenas, pelos vizinhos, pelos judeus, alemães, turcos, italianos, quanta coisa rica nós temos aí!

Mas tu ligas o rádio e não tem nada disso. Tem a Maroca & Muruca. “Você me beijou, você me abandonou”. Eu tenho vergonha da mídia eletrônica gaúcha. E a mídia escrita, no caso da música, ela depende que se veicule música. É uma coisa bem triste. Tirando um que outro programa, tirando a Rádio FM Cultura, de Porto Alegre, e algumas emissoras do interior e tirando canais web de música, que estão se proliferando graças ao esforço de jornalistas, músicos, e programadores musicais. O panorama é devastador.

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