Finalmente a Indonésia

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Setembro de 2002 Número 12

Cadenos de Viagem

Finalmente a Indonésia Após tantos anos de expectativa o que nos esperará na Indonésia? Essa foi a pergunta que me fui fazendo durante a longa viagem – verdadeiramente longa: saímos de Lisboa no avião das 16h20 e só chegámos a Jacarta às 17h35 locais, que cor-

respondem às 11h35. Quando fomos jantar estávamos há mais de 24 horas a pé! O voo correu bem como era de esperar; até Frankfurt fomos em económica, mas a viagem FrankfurtSingapura-Jacarta fizemos em business. Jantámos,

vimos um ou dois filmes e dormimos. Em Singapura, tivemos uma paragem técnica para limpeza do avião e mudança de tripulação de 45 minutos.

Jacarta—primeiras impressões O aeroporto de Jacarta é moderno, cheio de luz e com traços da arquitectura tradicional indonésia. A cidade em si é caótica e incaracterística como qualquer grande metrópole (10 milhões de habitantes!) que seja o pólo de atracção de populações à procura de melhor vida. Em Java, a ilha onde está Jacarta, habita mais de metade da população da Indonésia; mesmo apesar do programa de recolocação (voluntária, mas a mim parece que é antes voluntária à força) noutras ilhas, Java continua a ser um íman. Como em muitos outros países asiáticos, vive-se na rua, apesar de não se chegar ao extremo da Índia. Ao longo das ruas, pequenos restaurantes de rua, uns atrás dos outros. Sempre tapados por panos – viemos a saber mais tarde, que os indonésios não comem na rua, daí resguardarem warungs com panos para que ninguém veja os clientes a comer.

Ao ver os warungs, comentei com o Hans-Jürgen que comer uma vez numa dessa baiúcas seria de certeza a “morte por diarreia”. Como me enganava! Mesmo cansados fomos jantar fora. Lily, a nossa amiga / vizinha da residência Dessauer Haus em Frankfurt, veio ter connosco ao hotel. Que bom foi revê-la ao fim de quase duas décadas (uau, estamos mesmo velhos...)! Ela está muito mais magra (já sabíamos) e parece muito mais nova. Serão os ares indonésios? Veio com a mãe, holandesa, naturalizada indonésia por via do casamento, e com Carisa, a filha mais nova. Mais tarde, juntou-se-nos César, o filho, o amigo de fraldas da Joana. E onde fomos jantar? Quando ela nos perguntou que tipo de comida queríamos, respondi-lhe: “Algo típico”. E ali estávamos, acabadinhos de chegar a Jacarta, sentados nuns banquinhos dum... warung, comendo com as mãos (bem, na realidade, nós comemos de garfo e

colher) ayam goreng (frango frito), ayam satay (espetadas de frango), nasi (arroz branco ) e cap cay (legumes) com molho de amendoim e bebendo es kelapa kopyor (água de coco com pedaços de coco fresco). Atirei-me de cabeça e deliciei-me com tudo. Perdido por cem, perdido por mil... Fiquei convencida de que iria te um grande desarranjo intestinal, mas...


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Jacarta

No centro da Praça Merdeka, eleva-se a coluna de Monas o símbolo omnipresente da luta do povo indonésio pela sua liberdade.

Afinal, os medos tinham sido infundados. Nada aconteceu a ninguém. Somos mesmos fortes. De manhã, fizemos uma volta pela cidade, com o nosso guia Agustin (?) e o nosso condutos Wiranto – os dois ainda nos iriam acompanhar durante muitos dias, nomeadamente até chegarmos a Bali. Confirmámos que o trânsito em Jacarta é realmente caótico. Parece que a cidade está constantemente entupida. Demora-se imenso tempo a ir dum ponto para outro. Começámos o nosso passeio pelo Museu Nacional que mostra bem a riqueza e a diversidade da história, da geografia, da arte e das tradições populares do arquipélago indonésio – de lembrar que a Indonésia se estende desde Papua a Sumatra com um total superior a 17 mil ilhas, algumas das quais ainda totalmente virgens - através da sua colecção de objectos vindos de toda a Indonésia. Segundo o nosso guia, foi uma das coisas boas do colonialismo. Quando os holandeses ocuparam a ilha, trataram de

recolher neste museu todas as peças antigas que iam descobrindo pela ilha. Os habitantes ou não lhes viam o seu significado históricosocial-antropológico e utilizam as “pedras” para a construção das suas casas ou tentavam destrui-las por motivos religiosos. Assim se conservam ali, no museu, estátuas budistas e hindus do séc. IX. Muito interessante é a colecção de miniaturas das casas típicas das diversas ilhas indonésias, mandadas fazer propositadamente para o museu pelo governo, ainda no tempo colonial, assim como os crânios do famoso “homem de Java” (pithecanthropus erectus), o nosso “avô” de 350 mil anos (!), um dos homens mais velhos do planeta. Pensa-se que o homem de Java media 1,60 m e pesava aprox. 80 kg. Seguimos para a Praça Merdeka (merdeka significa liberdade em indonésio – não pensem outras coisas), uma praça enorme com uma forma muito original: não é nem quadrada, nem

rectangular, mas em forma de trapézio! No centro, eleva-se a coluna de Monas que é considerada o símbolo omnipresente da luta do povo indonésio pela sua liberdade. Mede 137 m, lembra um obelisco e termina com uma chama coberta com 35 kg de ouro fino. A sua forma inspirou-se num velho símbolo da religião hindu, o lingam, emblema da forma de falo ligado ao culto de Shiva. Associado ao yoni, o símbolo feminino, representa a vida e a fertilidade (entre os indonésios, há quem também diga que a coluna e a sua chama é antes “a última erecção de Sukarno”...).

A maior mesquita da Ásia No ângulo nordeste da praça, ergue-se a mesquita Istiqlal, a maior da Ásia. Eram 11h10, duma sexta-feira. Ou seja, aproximava-se a hora da oração principal dos muçulmanos. De todos os lados, milhares e milhares de pessoas acorriam de todos os lados, respondendo ao chamamento do muezzin. A praça fronteiriça à mesquita fervilhava de devotos que se dirigiam à mesquita para orar e vendedores de comida, e, entre muitas outras coisas, sacos de plástico para os fiéis colocarem os sapatos ao entrarem na mesquita. Pois sendo uma mesquita tão grande é muito provável que os sapatos desapareçam durante a oração...

Espantada fiquei com os vendedores de ... vinho de palmeira. Vinho à venda à porta da mesquita? O meu guia sossegou-me: é tomado como remédio e assim aceite pelos muçulmanos. Bem, haverá assim tanta gente doente?!... Deixemos porém esse pormenor à consciência de cada um. A mesquita foi construída em 1958-60 e recebeu o nome de Istiqlal que significa liberdade em árabe, mas que no contexto muçulmano significa submissão a Deus. Como prova da tolerância religiosa do país, a sua construção foi confiada a M. Silaban, um arquitecto cristão. A mesquita tem capacidade para 20

mil fiéis e está cheia de símbolos: o minarete tem 6.666 cm de altura, o mesmo número de páginas do Alcorão. A sala de orações tem cinco andares, tal como o número de orações diária obrigatórias. As colunas medem 17 m, o espaço entre cada uma é de 8 m e o diâmetro da cúpula é de 45 m: os números 17-8-45 correspondem à data da independência da Indonésia, a 17 de Agosto de 1945!


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A catedral católica de Jacarta Mesmo em frente, realçando mais uma vez a liberdade e a tolerância religiosas do país, erguese a catedral católica. Ao meio dia, quando o muezzin parou o chamamento, começaram a tocar os sinos... Catedral de Santa Maria, construída em 1930, é uma grande igreja moderna sem grande interesse de especial. Interessante para nós foi estar a decorrer

no local um casamento tradicional javanês. Toda a gente, dos noivos aos convidados, estava vestido a rigor com belíssimos fatos javaneses. Os sarongs das senhoras impediam-nas de dar grandes passos e faziam que, ao andar, lembrassem as japonesas nos seus quimonos... Todas elas tinham os grandes penteados tradicionais. Os homens, também de

sarong, traziam os kris, as espadas tradicionais, presos atrás, na cintura . A noiva tinha a raiz do cabelo com uma pintura que vinha para a face e tinha a cara tão pintada quer parecia uma boneca de porcelana.

O bairro antigo de Jacarta Seguimos para o bairro antigo de Jacarta, ainda conhecido por Batavia, o nome holandês para a sua colónia das índias orientais. Para gerações e gerações de marinheiros europeus, Batavia era uma palavra exótica que simbolizavam a promessa da chegada ao fim do mundo... no verdadeiro sentido da palavra. A viagem da Europa até ás Índias Orientais parecia sempre interminável. Durante muitos séculos, a história de Jacarta confundiu-se com a história de Batavia e do seu porto de Sunda Kelapa, onde os primeiros europeus a desembarcar foram os portugueses. Infelizmente escondido no meio das muitas tendas de vendas, está o mariam, o canhão português, único no seu género, uma herança da nossa artilharia quando os portugueses ainda eram os donos dos mares asiáticos. A palavra indonésia para canhão, mariam, vem mesmo dos portugueses: sempre que disparavam um canhão , os portugueses diziam: “Avé Maria”; ao ouvirem tantas vezes esta palavra, os indonésios baptizaram esse objecto de mariam. O coração de Jacarta antiga – e o centro administrativo e político do poder colonial - é a praça Fatihillah, ladeada de edifícios coloniais. Comece-

mos pelo café Batavia, uma paragem obrigatória de qualquer turista. Está instalado numa casa de 1937, da época colonial, primorosamente restaurada. No rés-do-chão funciona o café europeu, onde se encontram os jovens ricos e chiques da capital, em ambiente muito intelectual e boémio. Do outro lado da praça, o Museu de Jacarta. O que tem de mais interessante é o edifício onde está instalado, construído em 1627, em plena época colonial, num estilo que lembra as casas holandesa, com janelas altas, uma grande varanda e um sino. Terminámos o nosso passeio no Porto de Sunda Kelapa. No caminho, passámos por ruas paralelas a canis ou braços de rios que desaguam no Mar de Java, ladeados de velhas (velhíssimas, pois não estão restauradas) casas holandesas. Todo o lixo é deitado para os canais; o aspecto é horrivelmente nojento e o seu cheiro é nauseabundo. O porto porém vale a pena ser visitado. Lá se encontram , arrumados com grande ordem, enormes veleiros que ainda fazem o transporte de madeira de Sumatra para Java (levando de volta bens industriais e arroz) e que lembram as nossas caravelas... Parece até que história

marítima do arquipélago indonésio continua o seu caminho como no passado. Tábuas de madeiras estreitas ligam o barco ao porto e homens enfezados e maltrapilhos descarregam a madeira; as tábuas de madeira estremecem à passagem dos homens que carregam aos ombros umas quantas tábuas de madeira. Parece que as tábuas vão ceder a todo o instante – para já não falar do equilíbrio dos homens para não caírem à água. São verdadeiramente periclitantes! Também nós entrámos num dos barcos através dessas tábuas que não tinham mais de 20 cm de largura. Tudo tremia. Debaixo dos nossos pés, a água NOJENTA do cais.

Realçando a liberdade e a tolerância religiosas do país, ergue-se a catedral católica mesmo em frente da maior mesquita da Ásia..


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17 de Agosto, dia da independência Logo de manhã, muito cedo, fomos acordados ao som de marchas militares. Tinham começado as celebrações do Dia de Independência, levadas muito sério em todas as escolas, empresas, bairros, enfim, em todo o lado.

De manhã, fomos com a Lily e a mãe a um bazar do corpo diplomático— quem diria que um mercado na Indonésia poderia ter um ar tão limpo e civilizado?! À tarde, deixámos os miúdos no hotel e fomos—no carro da Embaixada! - entrevistar

a Ana Gomes, a nossa “mulher” em Jacarta. Fomos muito bem recebidos e conversámos animadamente. A entrevista deu para duas peças, uma na Laços e outra na Guia.

budistas de Sanjaya e de Sailendra que deram origem a monumentos extraordinários, como os de Borobudur e Prambanan, entre os séculos VII e X. Infelizmente, depois dessa data, os reinos entraram em declínio e os monumentos foram abandonados. O seu renascimento político teve lugar no final do século XVI com o surgimento do reino islâmico de Mataram, muito poderoso, sob liderança de Agung. O reino muda frequentemente de capital,

até que Pakubuwono, um neto do fundador, elege a Yogyakarta para capital, dando-lhe o nome de Ngayoga, tirado da epopeia mítica de Ramayana e que significa “paz e prosperidade”.

Yogyakarta

Yogyakarta é uma cidade muito simpática, como aliás o são todas as cidades universitárias.

Yogyakarta foi o ponto de partida da nossa viagem pelo leste da ilha de Java. Esta é a ilha mais populosa das mais de 17 mil ilhas que compõem a Indonésia, que tem sido um íman para os indonésios de todo o país, que ali vêem uma possibilidade de melhorar a sua vida. Yogyakarta é uma cidade muito simpática, como aliás o são todas as cidades universitárias. Além disso, tem uma importância cultural inigualável. Foi aqui que nasceram os reinos hindus e

O sultão apoia os rebeldes independentistas Em 1940, Hamengkubuwono IX, de somente 27 anos, foi coroado sultão. Teve um papel fundamental na Indonésia, pois apoiou abertamente a luta pela independência dos holandeses. Em 1945, logo após a retirada dos japoneses que tinham invadido o país, aprova a nova constituição da república proclamada por Soekarno e abriga no seu kraton (palácio) não só Suharto como o governo provisório dos revoltosos. Nessa altura, o sultanato de Yogyakarta torna-se a verdadeira capital política e moral do país, e o emblema e o símbolo da luta contra o colonialismo e contra os invasores. Assim se

colonialismo e contra os invasores. Assim se compreende a razão de ser actualmente o único sultanato com um sultão em exercício: em 1949, após a vitória sobre os Países Baixos, a potência colonizadora, o sultanato é declarado uma “província especial”. Mais: o sultão torna-se o vicepresidente de Suharto! Mantendo a tradição de luta pela justiça, também o actual sultão, Hamengkubuwono X, teve um papel fundamental na vida do país: em Maio de 1998, aquando das grandes manifestações contra o regime de Suharto durante as quais cidades

regime de Suharto durante as quais cidades inteiras eram pilhadas, Hamengkubuwono X intervém para tentar salvar a a cidade e apoiar a comunidade chinesa. No decorrer duma manifestação em que estava presente mais de um milhão de pessoas, Hamengkubuwono X apela a reformas políticas e à calma. Parece que o seu discurso foi não só ouvido como entendido pelo chefe do governo: no dia seguinte, Suharto pede a demissão.


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O kraton

Pensa-se que terá sido construído para servir de ponta de lança espiritual destinada a

Hamengkubuwono X abriu o seu palácio (kraton) ao público – mas só durante a manhã. À tarde, o sultão e a família querem ter o seu sossego e poder deambular livremente. Apesar de seu muçulmano, só tem uma mulher, ao contrário dos seus antepassados que as “coleccionavam”, de quem tem cinco filhas. No entanto, neste ponto ainda é muito tradicional. Segundo a lei do sultanato, o herdeiro do trono é sempre o filho varão do sultão; ora, não tendo ele nenhum filho, o herdeiro é o irmão mais novo do sultão. Modernidade mas não tanto assim! Kraton foi o nome dado ao palácio do sultão de Yogyakarta no século X; o actual palácio foi construído entre 1756 e 1796. Tem diversos pavilhões e pátios, cujo chão está coberto de areia vulcânica. Tudo no palácio é muito sóbrio. O pavilhão central não tem paredes e serve para recepções oficiais, durante as quais uma orquestra de 30-40 músicos tocam gamelan, o instru-

mento musical típico da Indonésia. À volta do palácio aglomerase a “cidade imperial”, que antigamente formava um mundo à parte. Um versão modesta da Cidade Proibida de Pequim... Neste “cidade” vivem actualmente mais de 5.000 pessoas que trabalham directa ou indirectamente para o sultão: guias do palácio, vendedores de bilhetes, limpeza, cozinha, etc. Mas é também aqui que vivem os artistas e boémios. É muito interessante deambular por estes becos e travessas e encontrar pintores e artistas de batik a trabalhar. É assim que se encontram verdadeiras obras de arte a preços muito mais acessíveis do que numa galeria de arte. Estamos mesmo na fonte...

combater a dinastia Sailendra, budista.

Prambana, centro hindu A planície limitada pelo vulcão Merapi, a poucos quilómetros de Yogyakarta, esteve em tempos “coberta” de templos hindus e budistas. Muitas deles desapareceram, outros estão em ruínas e muito poucos foram restaurados. O mais imponente e importante é sem dúvida candi (complexo de templos) Prambanan. Os templos têm uma forma que parece uma espiga de milho, lembrando a silhueta do monte Merou, um monte sagrado da cordilheira dos Himalaias. Aqui em Prambanan, o maior centro hindu da Indonésia, encontramos o esplendor do mundo hindu com as suas divindades pincipais: os deuses Shiva, Vishnu,

Brahma e Ganesh. Pensa-se que terá sido construído para servir de ponta de lança espiritual destinada a combater a dinastia Sailendra, budista. Terá sido uma luta de religiões? Hinduismo contra budismo? Não se sabe ao certo. O que se sabe é que este complexo religioso é duma grande beleza e duma grande importância cultural. Na sua época gloriosa, este complexo chegou a ter mais de 270 candis. Somente uma mão cheia foi restaurada, não porque não houvesse verbas para tal, mas por rigor hsitórico: não sabendo ao certo como eram originalmente, preferiu-se não se restuarar. Dos templos res-

taurados temos os dedicados aos três principais deuses hindus: Brahma, Vishnu, e Shiva, o deus da destruição e da dissolução, e com templos mais pequenos à frente dedicados aos seus meios de transporte (no hinduísmo todos os deuses têm um animal que lhes serve de transporte, sendo também alvo de dedicação por parte dos crentes).


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Borobudur — ruínas budistas

A ilha de Java está tão populada que não há um cantinho livre. Aldeias seguem

Ao aproximarmo-nos de Borobudur ficamos espantados com o seu tamanho monumental. Há quem lhe chame um templo, mas na realidade trata-se dum mausoléu em forma duma pirâmide colossal. É muito imponente graças às suas 270 stupas, que lembram sinos sobre platafomas, cada uma delas com uma estátua do Buda. Lembra um mandala gigante de base quadrada e círculos interiores, construída em nove andares. À volta de cada andar, as paredes estão todas trabalhadas em baixo-relevo – são mais de 5 km de altos e baixos relevos em 1212 painéis! Cada círculo (andar) é dedicado a um tema. No 1º círculo é contada a história do buda Shakiamuni. Alcançar o topo – o 9º andar – é como atingir o nirvana – na realidade, é assim que nos sentimos depois de termos trepado

(sim, trepado, pois os degraus são altíssimos) nove andares! A paisagem do cimo é maravilhosa e permite-nos ver toda a região. Borobudur foi construído pela dinastia Sailendra entre 750 e 850 a.C. Com o declínio do budismo e a mudança do centro de poder para a parte ocidental da ilha, Borobudur foi abandonado, tendo ficado enterrado por diversas camadas de pó vulcânico . Foi somente em 1815 que o local foi redescoberto e limpo. Um programa gigantesco de recuperação de 21 milhões de euros foi lançado; entre 1973 e 1984, foi possível recuperar quase todo o complexo e voltar a dar-lhe a glória passada. Somente os dois primeiros níveis se

mantém debaixo de terra – é que o então presidente Soekarno considerava os baixos relevos muito eróticos e num gesto muito púdico mandou deixar enterrados esses níveis! Foram no entanto fotografados e podem ser visto – em fotografia, claro está – no museu do complexo.

a aldeias, a vilas, a cidades.

Arrozais, campos de tabaco O caminho entre Yogya e Bromo, um dos maiores vulcões indonésios, nunca deixou de ter localidades. A ilha de Java está tão populada que não há um cantinho livre. Aldeias seguem a aldeias, a vilas, a cidades. Entre as diversas localidades, muita agricultura. Arrozais alternam com campos de tabaco, de soja e de cana de açúcar e grandes plantações de árvores de teca, madeira que é exportada para a Europa para móveis de jardim... Nos intervalos, são plantados pezi-

nhos de cravinho e outras especiarias. Aliás, cravinho é a especiaria mais cultivada hoje em dia – é que os indonésios misturam cravinho no tabaco para o aromatizar! A arquitectura javanesa é um pouco diferente da que estamos habituados a ver: as casas têm telhado triplo que as protege bem na época das chuvas; muitas delas têm ainda paredes de bambu. Também as mesquitas são bem diferentes das que normalmente vemos. Até há pouco tempo, as mes-

quitas em Java eram construídas seguindo os padrões árabes, com tecto em abóbada. As mesquitas actuais caracterizam-se pela sua orientação ao estilo javanês tradicional, ou seja, mantém o tecto triplo, no cimo do qual repousa a bola de metal que representa o mundo e a lua crescente, símbolo do Islão.


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Blitar, a terra-natal de Soekarno A caminho de Bromo, passa-se por Blitar, uma pequena cidade de província, mas com grande importância para a história da Indonésia. Foi aqui que nasceu Soekarno (6/6/1901-21/6/1970), o pai da nação indonésia, e é aqui que ele está sepultado. O seu mausoléu tem três sepulturas: a de Soekarno ao meio, ladeado pelas sepulturas da mãe e do pai. Para nos

aproximarmos do túmulo, temos de descalçar os sapatos como se dum local sagrado se tratasse. Perto de Blitar, pode visitar-se o candi Panataran, um complexo de templos da época da dinastia Majopahit. É o maior candi do leste da ilha, mas está infelizmente em ruínas. A primeira inscrição data de 1119 ou 1197 d.C.; o complexo demorou mais de dois séculos a

construir, pois cada rei o ia aumentando. Tem três pátios e um lago. O 3º pátio era sagrado e era aqui que estava o templo principal que teria tido nove edifícios; actualmente só resta uma plataforma, da qual se tem uma vista muito bela e muito

Bromo, o nascer do sol em paisagem lunar As excursões para o cimo do monte Bromo partem quase todas de Torasi, já a 1700 m de altitude. O clima aqui já é bastante diferente do da planície: à noite fica bastante fresco, podendo chegar aos 0° C, havendo muitas vezes nevoeiro denso. A viagem até Torasi é muito interessante pois a estrada está literalmente ladeada de arbustos de cravinho – o que levou os portugueses a correr mundo há 500 anos! O cravinho que usamos na nossa cozinha é na realidade a flor do arbusto, que é seca ao sol durante 2-3 dias e depois vendida ou para as fábricas de tabaco ou para a exportação. O cheiro é muito intenso. Para se ver o nascer do sol do cimo do monte Bromo é preciso madrugar! A alvorada é por volta das 3h30, às 4 horas partem os jipes para a cratera da caldeira que alberga diversos vulcões, entre eles o Bromo. Muitos dos vulcões estão ainda em actividade e lançam uma nuvem de vez em quando. Todo o ambiente cheira a sulfúrio. A paisa-

gem é extraordinária lembrando as imagens que se vêem da lua. E depois é esperar que o sol surja: primeiro a escuridão do horizonte começa a ficar algo clara. Essa claridade vai-se tornando cada vez mais forte até que, por volta das 6h, salta do horizonte uma enorme bola encarniçada: o sol! Nessa altura, ouve-se um “Ah!”, dito por todas as pessoas que ali estão, ao frio, enroladas em mantas, casacos, gorros e cachecóis, a ver o nascer do sol sobre o monte Bromo. A excursão não fica completa se depois do nascer do sol não se descer ao fundo da cratera, passando por um mar de areia vulcânica (preta), para voltar a subir à cratera do monte Bromo. Centenas de burrinhos esperam os turistas para os ajudar na travessia dos quase 100 metros de areia. Para chegar à cratera há ainda que subir 250 degraus (uff!, chega-se ao cimo a arfar!). Da cratera vê-se um buraco enorme, donde sai muito fumo cinzento com um

cheiro muito intenso a sulfúrio. O vulcão! Depois é regressar ao hotel, tomar o pequeno almoço e ficar ali ao sol a descansar e a trabalhar interiormente tudo o que se vivenciou.

De repente, salta do horizonte uma enorme bola encarniçada: o sol! Nessa altura, ouve-se um “Ah!”, dito por todas as pessoas que ali estão, ao frio, a ver o nascer do sol sobre o monte Bromo.


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Bali

Parece que estamos num aquário: à nossa volta, passam peixes de todos os feitios, tamanhos e cores. Lindo!

O descanso na “ilha dos deuses”. Escolhemos a parte norte da ilha para ficarmos bem longe dos centros turísticos. E mesmo assim, ali em Lovina, ainda havia muitos turistas. Bem, nem eram assim tantos, pelo menos a ouvir as queixas das vendedoras de panos e fruta que estavam na praia. Bem, descanso também não era lá muito—deitadas na areia preta de Lovina, nem uns cinco minutos tínhamos de sossego. Constantemente, passavam por ali vendedores a quererem impingirmos alguma coisa—tudo, diga-se passagem, coisas de que não precisávamos... E se no início éramos muito fortes a afastá-los, essa maneira de ser foi-se esmorecendo perante a simpatia dos ditos vendedores, ou melhor, vendedoras. A praia está dividida por zonas, que correspondem às saídas dos hotéis, onde

actua um grupo de mulheres. Vendem fruta, sarongs, artesanato de madeira, dão massagens, fazem tranças no cabelo. Todos os preços são negociáveis. As mulheres juntam numa caixa comum o que ganham durante o dia e à noite dividem o “bolo” por todas as mulheres. Mas a vida está má, a crise económica e o medo de atentados têm feito com que os turistas evitem a ilha. As mulheres já pouco ganham, a maioria tem os maridos desempregados, etc. Para “fugir” aos vendedores, o melhor é ir para dentro de água—a temperatura lembra a temperatura da banheira num bom banho de imersão: 30 graus! Os dias em Bali passaram-se languidamente, sem atropelos: praia, piscina, mar, jantar. Num dos dias, fomos até ao

outro lado da ilha, para uma ilhota deserta fazer snorkeling (mergulho de baixa profundidade). Foi óptimo, pois como a água é quente, podemos estar ali horas a fim, sem nunca arrefecermos. E parece que estamos num aquário: à nossa volta, passam peixes de todos os feitios, tamanhos e cores. Lindo!

parte interior (=o mundo dos deuses, onde só os sacerdotes têm acesso). Três é um número importante significa a trindade, a união com o universo, a formação duma unidade. Também na religião hindu há três deuses principais que em si formam um so: Brahama, o deus criador, Vishnu, o deus protector e Shiva, o deus destruidor. Estes deuses representam também os três elementos do mundo: fogo (Brahama), água (Vishnu) e terra (Shiva). Os três formam um todo: Brahama cria, Vishnu protege e Shiva destrói para se poder renascer. Formam o ciclo completo da vida, um ciclo que nunca acaba, que recomeça sempre.

Todos os templos têm altares aos três deuses; todos eles têm telhados, excepto o altar do meio, o padmasana, que significa o altíssimo, o universo. A entrada para os templos é sempre feita por portal aberto ao meio, que significa que o templo está aberto a todos, mas que, em caso de perigo, pode fechar—se. Formará assim a unidade, torna-se forte e impede que os espíritos maus entrem no templo.

Templos hindus Fizemos dois passeios ao interior da ilha: a Kintamani e a CCCCC. No caminho para Kintamani, visitámos o templo Pura Beji, perto de Sangsit. Para se entrar nos templos, dever-se-á sempre vestir uma sarong. Este gesto tem um significado, como aliás na vida tudo o que se faz tem um significado, segundo nos disse o nosso guia. Ao vestir o sarong fica-se só com uma perna, ou seja, é-se um com deus, com o universo. Os templos hindus de Bali são sempre compostos por três partes: a parte exterior (= o mundo dos espíritos, da natureza), a parte do meio (= o mundo dos homens, onde nós estamos e onde tudo acontece) e


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As cores

Pura Beji Este templo foi construído por volta do séc. XIII e é dedicado a Vishnu, ao deus protector. Daí que de seis em seis meses, os camponeses façam uma cerimónia neste templo para que Vishnu proteja as suas plantações.

Para a religião hindu, as cores são fundamentais. Cada um tem um significado:  preto—corresponde ao ponto cardeal Norte. Significa a destruição, a maldade  Branco — corresponde ao ponto cardeal Este. Significa a pureza  Amarelo e verde — correspondem ao ponto cardeal Oeste. Significam a prosperidade. O verde lembra as plantas do arroz ainda verdes, o amarelo lembra o arroz pronto a ser colhido.

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Azul — tal como o preto corresponde ao ponto cardeal Norte. Significa o conhecimento  Encarnado — corresponde ao ponto cardeal Sul. Significa a energia. O centro é a junção de todas as cores

Corridas de búfalos Este é um dos espectáculos preferidos pelos balineses. Trata-se de corridas de parelhas de búfalos, presas por uma canga, a puxar um arado e guiadas por uma camponês, normalmente o dono. Debaixo do pescoço, os búfalos têm um sino enorme. As corridas lembram o trabalho dum lavrador a lavrar a terra. Um júri observa a corrida das várias parelhas. Ganha a parelha que tiver deixado o rasto do arado mais direito e cujos búfalos tenham mantido a cabeça e a cauda bem ao alto.

Templo Pura Udun Danu Este templo, construído no séc. XVI, à beira dum lago, é dedicado à deusa Dewi Danu, que é a deusa protectora das água e assim das colheitas do arroz. O templo com 8 telhados feitos com fibra de palmeira está integrado num jardim muito cuidado. Duas vezes por ano, os camponeses da região vêm aqui em procissão pedir protecção para os seus arrozais. Atiram para o lago pétalas de flores e levam, numa cana de bambu, um pouco da ágia do lago; eles sabem que é preciso dar para receber. Se queremos algo da natureza, temos de dar lhe algo.

Templo Penulisan Construído no séc. XVI pelos aga (= o início, os primeiros), ou seja, os javaneses hindus que saíram de ilha de Java aquando a sua islamização, ficando aqui isolados durante sete gerações. No séc. XVI. Houve uma nova vaga de fuga de hindus de Java para Bali; os aga consideravam-se descendentes directos dos deuses e não se queriam misturar com os novos colonos. Assim, construíram este templo no cimo do monte mais alto de Bali (com 1.745 m de altitude), de difícil acesso. Para se alcançar o templo há que subir 299 degraus, divididos por 9 lanços. O número nove é um número sagrado para os hindus. À entrada do templo, temos o lingtauomi, o símbolo da fertilidade: um falo dentro duma vagina. Este templo é muito simples, sem baixos relevos. O que tem de especial é a sua grande colecção de falos e vaginas.


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Um galo no nosso jipe Com alguma dificuldade conseguimos encafuar toda a nossa tralha nas várias malas e sacos que tínhamos. Fizemos realmente muitas compras em Bali! Mas não são só compras: vamos levar dezenas de conchinhas e pedaços de corais! Despertar às 4h30. Pontualmente, às 5h, o nosso condutor chegou. Partimos de Lovina às 5h10, ou seja, com um atraso de 10 minutos em relação ao combinado. O caminho é duro: na primeira parte temos de atravessar o monte/vulcão, o que significa curvas e contra-curvas a uma velocidade bastante baixa pois é sempre a subir. Depois começa a descida, igualmente em curvas e contra-curvas. O pior de tudo é que o carro mete os vapores do escape para dentro ! Atrás estamos todas enjoadíssimas. Pior de nós está a Dany que além de enjoada está a lutar com uma gripe enorme: até parece que está a começar ficar com febre. Veremos se não piora. Interessante foi ver a grande actividade que já havia nas

ruas aquela hora da madrugada: pessoas a ir para os mercados para vender os seus produtos agrícolas, outras a ir para os campos, bandos de crianças a ir para a escola levando nas mãos as coisas mais incríveis, como por exemplo, vassouras... A dada altura, ouvimos cantar um galo. O som estava muito perto, até parecia que o galo estava dentro do carro. Passado um bocado, novamente um galo a cantar... E o condutor a mandálo estar quieto. Depois, pediu-nos desculpa, que tinha comprado um galo no campo, estava num saco aos seus pés e agora o galo devia estar a ficar cansado... “No problem”. E repente, após tantos dias em sossego, chegámos à confusão da cidade. Kuta, sinónimo de Cancun ou Albufeira, um pólo de atracção de turistas que procuram unicamente sol, praias e vida nocturna, estava um caos – e ainda não eram 8h! Engarrafamentos, confusão no trânsito. O nosso condutor ia fugindo o melhor que

podia, mas acabava sempre a encalhar noutro engarrafamento. Chegámos ao aeroporto 30 minutos antes da partida do avião para Udung Pandang (Makassar), a capital de Sulawesi (Celebes). Corremos para o balcão de check-in, corremos para a sala de embarque, entramos no avião. Uff! Conseguimos! Toca o telele na fila da frente onde estavam a Joana e a Daniela. Passado um bocadinho, viram-se as duas para trás aflitas: o senhor não desligou o telele. Tentam avisá-lo de que tinha de desligar o telemóvel. O senhor ou não entende inglês ou faz que não entende. A Daniela chama uma hospedeira que fala com ele em indonésio. Que não desligou porque não sabe como se desliga... Mas a Daniela sabe e num ápice, truc, telelmóvel desligado.

ver a grande actividade que já havia nas ruas aquela hora da

Avião estragado — voo atrasado E de repente, as luzes apagam-se, os motores param. “Temos de esperar 20 minutos”, foi-nos dito. Passado muito mais do que esse tempo, fui à casa de banho e perguntei a uma hospedeira o que se estava a passar: “Oh, uma coisa sem grande importância, As luzes de aterragem não funcionam. Mas partiremos dentro de 20 minutos”. Passado mais do que esse tempo, um anúncio do comandante: “Há um problema no avião, teremos todos de sair”. Tiramos toda a bagagem de mão e voltamos para o edi-

fício do aeroporto. Grande confusão na entrada , junto à porta. Pergunto a uns estrangeiros o que se passa, mas também não sabem. Consigo finalmente chegar à frente . estão a distribuir cupões para snacks. Afinal a espera vai ser grande... Subimos as escadas rolantes para ir à cafetaria e esbarramos com... Ana Gomes, em trânsito para Timor Ocidental. O mundo é mesmo pequeno. Esperamos no aeroporto 2 horas. A constipação da Daniela está a piorar. Finalmente, às 10h30 par-

Interessante foi

madrugada timos para Ujung Pandang – para quê a corrida de hoje de manhã?


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Pallawi — uma aldeia típica de Toraja

Quando alguém morre na região de Toraja, é

Hoje embrenhámo-nos em Toraja e vivenciámos os seus costumes tão diferentes do resto do mundo. Comecámos o passeio por uma visita à aldeia de Pallawi, um bom exemplo da arquitectura tradicional torajense. As casas da região de Toraja, as tongkonan, chamam logo à vista. As ruas das aldeias estão ladeadas por tongkonan dum lado e por allang, celeiros de arroz, do outro. Os allang têm precisamente a mesma forma que as tongkonan, só que são mais pequenos. As tongkonan são pontos de encontro da família; aliás, a palavra vem de tongkon = sentar-se + an = junto de. Uma casa não poertence a

uma pessoa, mas a uma família. Está sempre virada para norte, porque os torajenses acreditam que os seus deuses vivem no norte; durante a manhã, as janelas estão abertas para que os

deuses possam entrar em casa e abencoá-la. Além disso, os seus antepassados também vieram do norte, da Indochina. Viajaram em barcos e assim se explica a forma dos telhados das tongkonan, que lembram um barco. As casas não estão assentes directamente no chão, estando construídas sobre estacas, para evitar inundações durante a época das chuvas. As tongkonan têm três divisões: numa ponta, o quarto dos pais, no meio a cozinha onde também se tomam as refeições, e,

na outra ponta, o quarto das crianças. Sobe-se para as casas por uma escada, mas subir para os celeiros é mais complicado: a “escada” é uma cana de bambu com uns cortes para apoiar as pontas dos dedos dos pés. Muito difícil! À saída da aldeia, uma mulher tentou vender-nos um conjunto de três caixinhas de bambú. Eram tão baratas (8.000 rupias = 1 euro) que comprámos. Logo a sair vemos umas esteiras com arroz a secar ao sol. Pedimos se podíamos encher as caixinhas com arroz – a velha, dona do arroz, fez nesse dia um bom negócio: vendeu uma mão cheia de bagos de arroz por 3.000 rúpias (0.45 euros)!

embalsado e fica – calmamente! aguardando em casa que haja oportunidade de ser enterrado.

Ritos funerários Entrámos no carro, começámos a andar e ficámos com a impressão que nem o gui nem o condutor sabiam o caminho. Passado um pouco, soubemos o porquê de tanta hesitação: sabiam que ali ao perto estava a haver uma cerimónia fúnebre e queriam levar-nos lá. Saímos do carro, vamos atrás do guia e vemonos de repente num terreiro onde jaziam quatro búfalos mortos! Os 400 mil habitantes da região de Toraja diferem dos restantes habitantes da ilha Sulawesi, antiga Celebes, não só por serem cristãos, mas acima de tudo pelos seus ritos funerários que se baseiam nas tradições dos seus antepassados. Ao pincípio fica-se um pouco chocado: pode repetir? Estarei mesmo a ouvir bem? A

morte não é nada de estranho para os torajenses, habitantes da região de Toraja, na ilha de Sulawesi (Indonésia), que têm uma convivência muito saudável com os mortos. Morrer não significa desaparecer do mundo dos vivos. Quando alguém morre na região de Toraja, onde 70% da população é cristã[1] – no resto da ilha, 80% da população é muçulmana -, é embalsado e fica – calmamente! aguardando em casa que haja oportunidade de ser enterrado. Oportunidade financeira, normalmente após as colheitas, ou oportunidade social, isto é, quando os trabalhos nos campos não exigem a labuta de todos e quando se consegue reunir todos os familiares e amigos. Não nos esqueçamos que a Indonésia é um país compos-

to por mais de 17 mil ilhas e os transportes entre as ilhas nem sempre são fáceis. Muitos habitantes emigraram para outras ilhas ou mesmo para outros países, especialmente no Sudeste asiático. E as oportunidades pode ser que demorem uns anos a surgir! É normalíssimo uma pessoa ser enterrada dois ou três anos depois de ter morrido!


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De tomasati a tomate Depois de embalsamado, o morto continua a viver em casa, mais precisamente,... no quarto das crianças. Para nós ocidentais, pode parecernos muito macabra a ideia de deixarmos um morto embalsamado no quarto das crianças, para nós figuras muito sensí-

veis. Na região de Toraja, é uma situação normal. As crianças não têm receio ou nojo dos mortos nem ficam com pesadelos por conviver com um. Para eles, as pessoas que morreram, ainda não estão mortas, estão somente doentes (tomasati); assim sendo, são respeitadas pelos

outros membros da família que lhes continuam a levar comida e bebida. Só quando se iniciam as cerimónias fúnebres (que, como já se disse atrás, poderão ser alguns meses ou anos depois), é que são considerados mortos (tomate).

Começam as cerimónias, matam-se os búfalos Quando finalmente surge a oportunidade de enterrar os mortos, fazem-se grandes cerimónias que podem demorar vários dias. É uma oportunidade para uma pausa nas tarefas diárias árduas e para um convívio entre familiares e amigos. Durante o tempo que duram as cerimónias não se trabalha nem se vai à escola. A família e amigos da terra preparam o terreiro para as cerimónias. Ao lado das casas de habitação, são montadas barracas de bambu – só chão e cobertura - para os familiares e amigos de longe; todos trazem ofertas para a família do tomate, que podem ser animais (búfalos, porcos ou galinhas), sacos de arroz, tuak (vinho de palmeira), açúcar, café ou mesmo somente tabaco. Sempre que alguém oferece um ou mais búfalos, a pessoa que os recebe fica na obrigação de retribuir na próxima cerimónia fúnebre. É o princípio do “dar e receber”, muito arreigado na Indonésia. Muita importância têm os búfalos, objecto de veneração dos seus donos, e sinal evidente da sua riqueza. No caso das cerimónias fúnebres, o número de búfalos sacrificados corresponde à riqueza da família ou do defunto. No primeiro dia das cerimónias fúnebres, recebem-se os familiares e amigos. No segundo dia, são mortos os animais. Os búfalos são mortos no terreiro preparado pela família

em ambiente de festa. Todos os convidados estão sentados à volta no terreiro, nos abrigos de bambú, sentados no chão sobre esteiras, bebendo café, chá ou tuak e comendo pastéis e bolinhos, como os depatori, bolinhos fritos de farinha de arroz e sésamo. Quando param de sangrar, cinco ou seis homens (por búfalo) dirigem-se aos animais e, com a ajuda dos seus inseparáveis kris (pequenos punhais que os indonésios usam à cintura, nas costas, presos nos sarongs), os búfalos são esfolados e a carne cortada e distribuída. O rabo e as patas ficam para os convidados menos importantes, que deles fazem, mais tarde, nas suas casas, uma sopa. Parte da carne é utilizada para preparar as refeições para todos os convidados. A carne é cortada aos pedaços e temperada e depois metida em canas de bambú, que se colocam sobre o fogo para cozer. Todo o trabalho com os animais – matá-los, esfolálos, retalhá-los, cozinhar a carne e tratar da pele – é feito por homens; as mulheres são responsáveis pelo café e chá e por cozinhar o arroz e legumes. Digamos que estas são das únicas ocasiões em que os torajenses se enchem de carne; são normalmente muito parcos, tendo uma alimentação à base de arroz e legumes. Mas durante as cerimónias fúnebres e comer

carne até fartar! As partes mais importantes dos búfalos – os cornos e o fígado – vão para o chefe da aldeia, que vai colocando os cornos na façhada da frente da sua casa. Assim, casas com muitos cornos de búfalo significam que essas famílias são muito importantes e já foram convidadas para muitas cerimónias. O tomate só vai a enterrar no último dia das cerimónias.

Quando finalmente surge a oportunidade de enterrar os mortos, fazemse grandes cerimónias que podem demorar vários dias.


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Luta de galos

Normalmente os mortos não são enterrados na terra, pois esta é necessária para a agricultura.

As cerimónias fúnebres podem ainda incluir muitos espectáculos, como por exemplo, lutas de galos. Ouvir uma descrição duma luta de galos é bastante mais macabro do que assistir a uma. Senão vejamos: dois camponeses desafiam-se para uma luta; colocam numa das patas dos galos uma lâmina muitíssimo afiada e impregnada de veneno. Antes de irem para a luta, os galos passam vários dias numa gaiola muito pequena sem comer para excitar os seus sentimentos de agressividade. Quando os galos são largados, atiram-se um ao outro e basta tocar no outro galo com a pata, ou seja, com a lâmina, para este morrer. A descrição é realmente horrível. Qualquer pessoa, mesmo que não seja activista dos direitos dos animais, fica com um mau estar no estômago. No entanto, ver ao vivo uma luta de galos, não impressiona nada, porque tudo se passa ao longe e muito rapidamente. O ambiente à volta do terreiro onde a luta de galos tem

lugar, é verdadeiramente de festa. Vendem-se não farturas como seria na nossa terra mas bolinhos de arroz, fritos de farinha de arroz e sésamo e muitas outras especialidades. Tal como no resto do mundo, onde há ajuntamento de pessoas, surgem vendedores de tudo possível e imaginário: comida (muito peixe fresco), bebidas, brinquedos, tecidos, etc. Resumindo: um ambiente de feira e festa. A arena da luta está muito bem protegido; monta-se no meio dum terreiro e está protegido com arame farpado numa área a 1 metro de distância – isto é para os galos não fugirem; não esqueçamos que os galos têm uma lâmina venenosa presa à pata e que o veneno também é prejudicial às pessoas). As bancadas para os espectadores, construídas em bambu, estão a uns 3-4 metros de distância do arame farpado. A animação reina entre os espectadores, todos gritando e fazendo apostas. Ou seja, da bancada dos espectadores, onde toda a gente tem de estar –

ninguém se pode aproximar da arena – não se vê quase nada. Os galos são animais pequenos e estão quase a 45 metros de nós. Daí as lutas não impressionarem nada.

Cemitérios horizontais Chegou então o momento de enterrar os mortos. Na região de Toraja, normalmente os mortos não são enterrados na terra. A razão baseia-se num aspecto prático: a terra tem sido sempre a fonte de rendimento dos torajenses, sendo necessária para a agricultura. Não se pode assim “perder” pedaços de terra para enterrar mortos. Estes são “enterrados” ou em buracos escavados nas rochas, seguindo a tradição iniciada no século XVII, sendo um buraco para cada família, ou em mausoléus; este tipo de enterro foi iniciado no tempo da guerra pela independência, no início do século XX, quando morria muita gente e

não havia tempo para grandes cerimónias fúnebres. Os túmulos (os buracos nas rochas) dos mortos das classes superiores (os tana bulaang) estão “guardados” por tao-tao, bonecos de madeira que fazem a ligação entre os antepassados e o mundo dos vivos. Têm normalmente uma mão virada com a palma para cima, indicando os antepassados, e a outra com a palma virada para baixo (os vivos). Uma visita a estes cemitérios nas rochas é novamente algo macabro. Por todo o lado há ossos e caveiras – alguns com 300-400 anos – e à mão de semear! Noutros, as tampas dos buracos já caíram e

podem ver-se os corpos embalsamados. E para voltar a realçar a ideia de que a morte não é algo inexplicável, crianças brincam por ali com o ar mais natural do mundo. Como se ao lado delas, não estivessem corpos embalsamados e ossos de pessoas! A vida e a morte lado a lado.


Umas belíssimas férias Estas foram umas férias extremamente interessantes, diversificadas e, ao mesmo tempo, relaxantes. E serviram para nos mostrar como o povo indonésio é pacífico e acolhedor— bem diferente da imagem que dele se tem em Portugal.

O povo indonésio é extremamente pacífico e acolhedor.

Singapura

Consumismo, consumismo, consumismo –esta é a melhor maneira e descrever Singapura

Realmente, após a experiência de Toraja, já nada nos poderia encantar. Sair da simplicidade de vida dos torajenses para nos embrenharmos na selva consumista que é Singapura foi um erro, próprio de quem ainda conhecia nem um nem outro povo. Singapura é sinónimo de consumo. Comprem, com-

prem, comprem— sente-se por todo o lado. Uma cidade moderna num espaço ultrapequeno, querendo mostrar ao resto do mundo asiático que é melhor do que o resto, mas que, apesar de tudo, ainda é fiel depositária das tradições. Um erro totall! As tradições sói se respeitam

para “chamariz” dos turistas. Só uma coisa interessa: consumo, consumo, consumo.


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