UM DEDO DE PROSA
Alex Guergolet, Christine VianNa, Edra Moraes, Ernesto FerReira de Oliveira, Eduardo BacCarin Costa, Fábio Giorgio, Fernando Gimenez, Herman Schmitz, José Antonio Pedriali, José Maschio, Marco Fabiani, Mário BortolotTo, Maurício ArRuda Mendonça, Nelson Capucho, Samantha Abreu, Silza Maria PaselLo Valente
Copyright © 2019 ISBN 978-85-62586-54-5 Londrina - 2019 2ª Edição
Coordenação Editorial: Christine Vianna
Capa, Projeto Gráfico e Editoração: Marco Tavares
Agradecimentos: Áurea Palhano, Cely Norder, Leandro Benevides, Mário Fragoso
Patrocínio:
PROMIC: 18-066 PROJETO: Um Dedo de Prosa PROPONENTE: Marco Antonio Fabiani TERMO DE COMPROMISSO CULTURAL: SEI Nº1393123
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Av. Arthur Thomas, 342 - Londrina-PR - CEP 86063-380 atritoart@gmail.com - atritoarte.wixsite.com/atritoarte - www.facebook.com/AtritoArte
ÍNDICE Apresentação . . . . . . . . . . . . .
06
Alex Guergolet . . . . . . . . . . . .
11
Célia Musilli . . . . . . . . . . . . . .17 Christine Vianna . . . . . . . . . . .
23
Edra Moraes . . . . . . . . . . . . .
29
Eduardo Baccarin Costa . . . . . . . . . 35 Ernesto Ferreira De Oliveira . . . . . .
41
Fabio Giorgio . . . . . . . . . . . . . .47 Fernando Gimenez . . . . . . . . . . . .53 Herman Schmitz . . . . . . . . . . . .
59
José Antonio Pedriali . . . . . . . . .
65
José Maschio . . . . . . . . . . . . .
71
Marco Fabiani . . . . . . . . . . . .
77
Mário Bortolotto . . . . . . . . . . .
83
Maurício Arruda Mendonça . . . . . . . . 89 Nelson Capucho . . . . . . . . . . . .
95
Samantha Abreu . . . . . . . . . . . . 101 Silza Maria Pasello Valente . . . . . . .107
Apresentação Poucos têm se atentado para o fato de que a literatura é muito mais que o leitor isolado folheando as páginas de um livro. A literatura é sempre um encontro, sendo que a vida literária reserva várias situações e contextos nos quais os encontros acontecem. A etimologia da palavra “encontrar” traz uma certa curiosidade: ela origina-se no latim tardio “incontrare”, que ao pé da letra significa defrontar-se com o oposto, estar diante do contrário. Um encontro, a partir desta perspectiva, pode tanto refletir um ágon, isto é, uma disputa, uma competição, como também a tensão de algo que se opõe devido ao enfretamento de ideias contrárias. A arte, entendendo aí a arte literária, é em sua natureza e essência o lugar de tensão e, por tal motivo, trabalha com os opostos. A linguagem artística deve inquietar, provocar a alteridade, encenar a diferença, levar o outro a pensar. Em suma, a linguagem artística opera-se por meio de um confronto de ideias. Por exemplo, a comédia na Antiguidade era considerada a verdade que se desvelará mediante o ágon, sendo o confrontar o nascedouro da riqueza do encontro. Competir e confrontar não é o mesmo que cultivar a inimizade. Pelo contrário, a competição e o confronto fertilizam desapercebidamente o terreno onde poderá ser plantada a melhor amizade. A presença dos contrários é afeita à 6
amizade quando pessoas buscam trazer os sentimentos dos outros para si e, também, dividir suas inquietações. Nessa perspectiva, o encontro torna-se um espaço para a interlocução, para a criação do projeto coletivo, para o fazer verdadeiramente político. O encontro aí transcende a etimologia de oposição e antagonismo que o criva. “Um dedo de prosa”, o título deste livro não poderia ser mais apropriado, é uma expressão popular que significa uma pausa para uma conversa entre amigos. Um encontro entre escritores londrinenses ou que desenvolvem/desenvolveram trabalhos literários na cidade, numa conversa propícia à amizade, com um fundo falsamente despretensioso, pois cercado de uma atmosfera de convergência e dissentimento. Trata-se de um projeto que promove o encontro de escritores com estudantes do ensino médio, tendo aí a grande função de política. Provoca a amizade pois faz da literatura uma performance que, além de estender o texto impresso para a voz, reúne pessoas para o exercício da sensibilização, para sentir com o outro. O livro é um dos resultados deste projeto, cujos poemas, crônicas e contos aqui presentes trazem, por meio do atrito das ideias, uma verdade sobre o mundo. Frederico Fernandes Professor de Teoria Literária na UEL Pesquisador CNPq 7
UM DEDO DE PROSA
Alex Guergolet, Christine VianNa, Edra Moraes, Ernesto FerReira de Oliveira, Fábio Giorgio, Fernando Gimenez, Herman Schmitz, José Antonio Pedriali, José Maschio, Marco Fabiani, Mário BortolotTo, Maurício ArRuda Mendonça, Nelson Capucho, Samantha Abreu, Silza Maria PaselLo Valente
ALEX GUERGOLET Alexsandro Guergolet é antropófago formado em Letras pela UEL. Não escreve, transcreve leituras, momento em que procura se dissociar do que leu. Diverge de si mesmo a todo instante. Acredita que a literatura é, antes de tudo, resultado de muitas leituras. Perde seu precioso tempo tentando mapear o primeiro livro, pedra fundamental que sintetiza todas as ideias literárias. Pura quimera. Possui pós-graduação em Antropologia pela PUC e atualmente está matriculado no mestrado em Antropologia na UFPR.
Pierre Na saída do colégio, Pedro surpreendeu-se ao não encontrar seus pais. Desde a primeira série sempre fora recebido por eles com pipoca ou algum docinho, e como foi seu dia na escola hoje, Pedrinho? Pedro contava com 15 anos. Chegar em casa não lhe seria difícil, bastava caminhar um pouco, chegar até a estação de metrô e fazer as baldeações necessárias. Sentiu-se frente a uma liberdade arrebatadora, nunca tivera a cidade aos seus pés desta forma. Seus pais eram controladores, não lhe deixavam fazer nada, davam-lhe tudo o que queria. Escolheram sua escola, suas roupas, suas companhias e até mesmo seu time de futebol. A única missão de Pedro era satisfazer os desejos que muitas vezes não eram seus. Como tinha algum trocado no bolso, comprou uma lata de refrigerante e alguns chicletes - sua mãe o reprovaria! - de um vendedor próximo ao colégio. A próxima estação de metrô ficava a algumas quadras, por isso, Pedro, após abrir sua lata de refrigerante, colocou-se a caminho. Quando atingiu a esquina foi cercado por um grupo pequeno de pessoas. Surpreendeu-se com suas gargalhadas - eram terrivelmente altas - e por que olhavam em sua direção? Possivelmente riam de mim, Pierre. Uma das garotas do grupo interpelou-o pelo nome - Como sabiam meu nome? Pedro fez-se de desentendido, aproveitou o sinal aberto e atravessou a rua. Acreditava que seu gesto afastaria as pessoas, porém o grupo continuava a segui-lo, sempre rindo, em festa. - Pedrinho! Pedrinho! - Gritavam vez ou outra. 13
Aquilo o assustava. Não conhecia aquelas pessoas. Saía tão pouco de casa, seus pais não deixavam que fosse sozinho nem mesmo ao cinema. Teria feito algo esdrúxulo na internet? Estaria sendo alvo de algum flash mob? Apertou os passos em direção à estação Ternes, jogando o olhar para trás para se certificar se estava enganado, incrédulo com os acontecimentos. Percebeu que o grupo, inicialmente pequeno, havia aumentado muito e não dava mostras de que iria abandoná-lo. Tirando o caso da garota que o interpelara, ninguém mais ousou dirigir-lhe uma palavra sequer. Chegando à estação, comprou seu bilhete e percebeu que houve um princípio de confusão. O pequeno espaço não comportava tantas pessoas. Pierre caminhou em direção à catraca, esboçou uma atitude de quem iria atravessá-la, mas parou logo em seguida. Algumas pessoas entraram, confiantes de que ele faria o mesmo. Quando perceberam o engodo, insultaram-no de todas as formas. Pedro voltou à superfície e caminhou em direção a outra estação. O mapa do metrô de Paris oferece uma variedade grande de opções. Há estações por todas as partes sem que haja necessidade de caminhar muito para encontrar uma. Pedro decidiu descer a A. de Wagram em direção ao Arco do Triunfo. Percebeu, logo atrás, que ainda havia muitas pessoas no seu encalço. Precisava despistá-las, mas não imaginava como. Tinha medo de acionar a polícia e acharem que havia enlouquecido. Continuou pela A. de W. com passos firmes, passara pela R. de l’Étoile, mas, quando se viu na esquina da R. Brey, girou à direita e fugiu em disparada. Connard! Pôde ouvir ainda ao longe. O grupo, 14
atônito pela repentina escapada de Pedro, demorou algum tempo para se reorganizar. Decidiram, enfim, dividir-se em três pequenos grupos a fim de se adiantarem a Pedro. Dois deles seguiram em direção à Ternes e estação Argentine. O outro preferiu segui-lo pela R. Brey. Pedro podia sentir a atmosfera do ódio que exalavam seus perseguidores - perguntei-me, contudo, por quê, o que fizera, quais os motivos para isso? Correndo, dobrou a A. Mac Mahon. Sem saber ao certo qual destino tomar, continuou reto, atravessando a A. de Ternes e dobrando à direita na A. de Niel. Sentiu um forte tapa dado em sua nuca que fez com que seu boné caísse no chão. Fui roubado? Apertou mais o passo, estava desesperado, correu mais que pôde. Poderia chegar à estação Pereire quando, de repente, ouviu que o chamavam de dentro de um táxi. Subiu depressa e pediu que o motorista partisse o mais rápido possível. Pensou que não tinha dinheiro para pagar a corrida, mas isso já não importava, pelo menos estaria livre daquele grupo, daquela história absurda ocorrida numa manhã de. Respirou tranquilo, encostou todo seu corpo no banco, e, então, pôde ouvir a voz do motorista, uma voz que parecia vir de um filme noir: On vous fait peur, Pierre?1
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Nós lhe causamos medo, Pierre? 15
CÉLIA MUSILLI Jornalista, cronista e poeta. Autora de Sensível Desafio (poesia/editora Atrito Arte/2006) e Todas as Mulheres em Mim (prosa poética, editora Kan e Atrito Arte/2010), lançado também em versão e-book pela editora e-galaxia, em 2015. Tem conto publicado na coletânea É Duro Ser Cabra na Etiópia, organizada por Maitê Proença (Editora Agir/2013), 101 Poetas do Paraná - Antologia de Escritas do Século XIX e XX, organizada por Ademir Demarchi, publicada pela Biblioteca Pública do Paraná (2014), O Fio de Ariadne (poesia/ Atrito Arte/2014) e Especiarias (poesia/ Atrito Arte/2015), O tempo visto daqui: 85 cronistas paranaenses, organizada por Luis Bueno, publicada pela Biblioteca Pública do Paraná (2018), Nòmadas (antologia de poesia feminina/Atrito Arte/2018), além de ter textos e poemas em outras publicações. Editora de Cultura na Folha de Londrina. Tem textos e poemas publicados nas revistas literárias Coyote, Germina, Zunái, Mallarmargens, Agulha, Biblioteca Nacional, Celuzlose, Diversos e Afins, Polichinello, InComunidade (Portugal). Formada em Comunicação Social pela UEL, é mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp, onde pesquisou a obra de Maura Lopes Cançado. 17
Ariadne morreu distraída Ela tinha uma visão de vidro que iluminava escuros, dedos que faziam arabescos em superfícies frias, sabia o gosto das lágrimas porque era íntima do sal, ouvia passos de insetos em silêncios insondáveis, adivinhava o perfume em frascos vazios. Tinha os sentidos multiplicados como um alarme orgânico cujo DNA transbordou. Por isso, acusava alegrias e angústias como um sismógrafo e acidentava-se com facilidade. Morreu ao tomar 30 soníferos enquanto assistia a um filme, confundiu as pílulas com pipocas. A vigésima nona engoliu às pressas, achou que o espasmo na boca era a cena final. Fechou os olhos ao beijar James Dean, isso sim era amor. Diante disso, o laudomédico apontando clonazepam no sangue não tinha a menor importância. Sempre soube que a realidade padecia de uma falta enorme de imaginação. O laudo poético seria: Ariadne morreu distraída. Muito mais bonito.
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Paixão em origami
(uma carta, quase um blues)
Não fuja baby, há muita história pra rolar, geografias a percorrer, uma aventura a dois tem um grau de intimidade que nos tira do chão e nos coloca num espaço inimaginado, onde não há razão, só coração, órgão máximo da delicadeza, vaso onde nascem flores de origami que moldamos entre os dedos, fazendo carícias, descobrindo formas de amar. Quando a aventura é grande e a viagem longa, entregamos as identidades e os RGs, vamos em busca daqueles outros que habitam em nós, embora nem sonhássemos com eles na vizinhança. Você tirou algumas outras de dentro de mim, aquelas que dançam rumba, vaporizam perfume no ar, celebram a vida, pelo fato de serem carne que se entrega e arrepia, muito além de um osso duro de roer. Havia tantas lá dentro. Escondidas entre os véus, me espreitando como odaliscas que me habitavam e eu nem sabia. Ou havia esquecido, entre um passo de dança e a necessidade urgente de voltar pra casa, colocando uma a uma em disciplinado silêncio, sem música para não despertar seus sentidos. Mas estes desdobramentos, estas vozes, estas mulheres teimam sempre em acordar do seu sono profundo, nascidas das memórias que as fazem únicas, herdeiras da aventura de amar. Penélopes e Alices, Helenas e Yokos sopram em meus ouvidos uma canção de coragem, um ato 20
de ternura que irrompe como um animal, entre dengos, sobressaltos e murmúrios. Elas permanecem ali, por um tempo, inspirando-me histórias de Sherazade, num plano de criatividade ao qual dou voz, neste instante, narrando a mesma história, que parece sem fim... Era uma vez tantas vezes. Então, não fuja baby. Há muita história pra rolar, acontecimentos que não se adivinham. Quando nos despimos pra valer há um encontro indizível, uma possibilidade de descobertas que só se fazem a dois, antes que o dia amanheça e a gente pegue o RG como se fossemos um, embora tenhamos sido tantos outros que emergem, se escondem, viajam até as estrelas, desembarcam no quarto. Até a próxima vez, quando o pássaro nos acordar do mistério.
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CHRISTINE VIANNA Diretora do Festival Literário de Londrina e da Vila Cultural Cemitério de Automóveis. Vocalista na Banda Benditos Energúmenos. Participou das antologias de poesia feminina O fio de Ariadne e Nòmadas (Atrito Arte/2014, 2018 respectivamente). Em 2015 recebeu o Prêmio Nacional “Todos por um Brasil de Leitores” projeto “Assalto Literário” e a “Bolsa Circulação Literária/ Sarau” projeto Sarau: prosa, poesia e outras delícias, do Ministério da Cultura. Idealizou o projeto Um dedo de prosa nas escolas (Bolsa de Fomento à Literatura do Ministério da Cultura). É professora e atriz.
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Açúcar ou adoçante? Ou meu bem, guarde um verso pra mim dentro da sua canção Algumas verdades são escandalosamente certas para ela e para tantas outras. Pausa longa. Mulheres sobrevivem aos homens. Não quero dizer que ela não goste deles. Silêncio longo. Não. Ela adora os homens. Melhor: ainda não conseguiu se livrar por completo deles. Algumas amigas dizem que com o tempo será diferente, mas este tempo teima em não abrandar sua temperatura... Gosta do cheiro. De como olham. Gosta principalmente de como mexem suas mãos. O tempo se foi. Há tempos que eu já desisti. Dos planos daquele assalto. E de versos retos, corretos. O resto da paixão, reguei e regava com muito suor e principalmente lágrimas. Mas ela jamais viveria com um sobre o mesmo teto. Inconcebível. Em grande parte por causa dela que lê poemas, escuta rock roll ao menos sete dias por semana e fica com quem lhe der na telha apesar dos vinte quilos que os anos lhe brindaram. Posso dizer que é uma náufraga como eu. Sobrevivemos a perda de amores, mas não sobrevivemos aos incaultos que nos acusam de assédio, a ogros que aparecem na janela depois das 6 da manhã, risotos que esperam a noite toda, ou parte dela. A estes não sobrevivemos pois eles nem chegaram no primeiro tempo, não fizeram um gol e não é por terem gozado em seu tapete que se tornaram alguém. E ela nunca quis ter um tapete pois eles teimam em não voar. Olha que bonito: 25
nunca voltaram intrépidos segurando a mão um do outro depois de uma balada regada a Lenny Kravitz. Eu não sei dançar (é o que quase todos dizem), mas você já andou de bicicleta? Quase todos andaram. Então só mexe seu corpo juntoaomeuEbeberamedançaramebeberamerirameelachorouedançaramEfoiumanoitesagrada e voltaram intrépidos não se incomodando com os raios de sol e seguravam a mão um do outro. Você quer um café? Adoçante ou açúcar? E tomaram o café e ele nunca mais voltou depois de ter saído de dentro dela, mas isto não faz diferença pois a noite foi sagrada e ela vai sobreviver não importa se a uma noite ou a dez anos e sua lembrança vai ser doce como o açúcar no café duas colheres. É pecado amar por uma noite apenas? Um silêncio absurdo. Ela canta. Não quis ouvir seus passos pois sabia que não voltaria, ainda assim se virou e viu seus pés seguindo e ele não olhou para trásmaslenuncasaiudelaeelajamaissairádelemesmoquenuncamaissedeitemcomoumhomemeumamulher. Não olhou para trás pois a amava e ACABOU. Não o amor, mas aquela história. Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção.
*Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção”, verso da canção “Coração Selvagem” de Belchior. 26
trouxe a chave pra libertar sua tristeza ela é sua a chuva dança lá fora vamos lavar nossas mãos esqueça as promessas que fez e não pode cumprir e venha caminhar um pouco comigo podemos naufragar (no mar) correr através da noite posso dirigir quando estiver cansado trouxe a chave pra libertar sua tristeza vamos atravessar as bombas do lado de fora estivemos sozinhos por tanto tempo trouxe a chave pra libertar sua tristeza tome minha mão eu vou cantar pra você vamos atravessar a escuridão que cai sobre o mundo estou cansada da guerra tome minha mão se quiser trouxe a chave pra libertar sua tristeza não volte para onde você estava não há ninguém te chamando e o tempo corre depressa demais trouxe a chave pra libertar sua tristeza
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EDRA MORAES Profissional de marketing e eventos há 20 anos, produtora cultural e curadora do Londrix - Festival Literário de Londrina (2012) e da Expocultura - Exposição de Artes Plásticas da Rural do Paraná (2014 e 2015). Idealizadora do Movimento Londrina Criativa. Estuda Economia Criativa e Gestão Pública desde 2006. Escritora, atriz e autodidata no universo das artes. Seus livros saíram pelo selo da Atrito Arte: Da Divina, da Humana e da Profana (poesia/2010), O fio de Ariadne (antologia de poesia feminina/2014), Para ler enquanto escolhe feijão (2015/poesia/Bolsa Criação Literária/Ministério da Cultura), Nòmadas (antologia de poesia feminina/2018).
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Desastres naturais Quem de vocês nunca prendeu o ar para que o vento de tuas tormentas não arrastasse a mobília da sala? Quem de vocês nunca prendeu o ar para que o grito do teu abismo não abafasse o riso dos convidados na sala? Quem de vocês nunca prendeu o ar para que o mar das tuas lágrimas não inundasse as crianças que brincavam na sala? Quem de vocês nunca prendeu o ar para que a avalanche dos teus pensamentos não cobrisse de lama os doces sobre a mesa da sala? Quem de vocês nunca prendeu o ar para que o furacão dos teus desejos não sugasse os corpos que dançavam felizes na sala?
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Eu não sou musa, sou poeta Musas são diáfanas, tocam como a seda, suaves como a pena Eu tenho o peso de um bloco de mármore, e rasgo a carne como o ferro Musas caminham nas pontas dos dedos, Admiram Sade, Foucault e Loyola Eu caminho coxa arrastando este fantasma, E todos eles me estudaram e nunca me entenderam Musas têm bundas, seios e sorrisos fáceis Eu não tenho corpo, sou bela como um vulcão Musas caminham de mãos dadas ao teu lado E despertam a inveja dos teus amigos Eu caminho sozinha, mesmo na multidão E uso minhas mãos para tirar as pedras do caminho Musas estudam arte, cinema, música e poema Eu vomito palavras, erro acentos e troco pronomes Musas nasceram para serem amadas Eu, poeta que sou, nasci para amar Amar a ti, os pássaros e o cão morto na esquina 32
Sou daquelas que nada pedem Se não te peço jantares, regalos, e nem mesmo olhares Se não te peço a mão, o abraço no salão estes clichês da paixão Não é meu amado decerto por de ti nada querer No oposto do que não peço o que quero não se implora Nem se ganha por decreto relacionamento, casamento e tantos sacramentos não o protegem O que desejo de ti encerra em si inicio e fim é eterno por não existir Traz em si a qualidade do etéreo é energia consciente sem matéria é metafísica pura, não é poética. 33
EDUARDO BACCARIN COSTA Professor, radialista, ator, poeta, produtor cultural, escritor. Nascido em Londrina, aqui cresceu, vive, publicou seus 4 livros (3 anos - em parceria com Rosby Queiroz (poesia/1983), Caminhada (poesia/) 1985 e Uaauuu!!!! (poesia/2012), O solitário do 406 (romance/2018). Já esteve entre os 3 primeiros colocados em alguns concursos de poemas e músicas. Atualmente tem 2 romances e um livro de poesia no prelo.
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Antônio Só Se existia um homem pacato, certamente este era Antônio Só. Invariavelmente calmo, nunca reclamava de nada da vida. Por mais que nada desse certo com ele, nunca se ouviu de Antônio Só, apenas uma palavra de lamento, de murmúrio em relação a seu destino. No caso específico daquele homem, o advérbio que carregava como substantivo próprio, havia se tornado desde sempre um adjunto adnominal de sua existência. Invariavelmente acompanhando aquele sujeito: Só, sempre o Antônio estava só. Morava numa edícula minúscula, mas muito bem cuidada e limpa que ficava no fundo do mercadinho onde ele trabalhava. Na varanda da casa do Antônio uma cadeira preguiçosa esperava os amigos que nunca apareceram. Preso, numa gaiola, estava Toninho, o canário que ele criava literalmente como se fosse um filho. Naquela área travava diálogos com os seus melhores amigos: os livros. Apenas e tão somente ali, o mundo era perfeito, com encaixes precisos e harmônicos e com amores intensos e verdadeiros. Sim, Antônio Só tinha, na mocidade, vivido um amor. Mas foi roubado por um jovem que parecia amigo e inofensivo. Como sempre, não reclamou de nada. Afastou-se dos dois e passou a viver uma vida quase celibatária. Depois, chegou a ter seu próprio negócio, sua casa ampla, seu carro do ano. Tudo, paulatinamente tirado por espertalhões que se aproximaram dele se apresentando 37
como pessoas interessadas em conhecê-lo melhor. Havia sido, na ótica de Antônio Só, apenas mais um deslize que ele cometera ao avaliar mal as pessoas. Não havia, portanto, motivo para se queixar ou se lamentar com os outros, com o mundo. Bastava resignar-se diante da impiedade do seu destino e do seu caminho. Perdera também, por conta dos constantes fracassos, a crença em Deus. Não conseguia mais apegar-se a nada e tomara – erroneamente – para si o conceito que o amor celestial está diretamente relacionado com a sinceridade dos pregadores. E por conta disto, afastara-se da convivência apaziguadora, celestial, amorosa do Pai. Assim, da maneira como viveu, Antônio Só morreu no domingo de Páscoa. De infarto. O coração não aguentou mais tanta solidão, tanto marasmo, tanto conformismo diante das adversidades. Na cabeceira da sua cama, a biografia de Sêneca. Estava quase tudo explicado. Vida sem o mínimo de drama e indignação, também estanca e paralisa a alma e o coração.
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Cilada O verso escorre na noite nublada o amor canta em cada canto em ĂŞxtases apaixonados a vida reescreve a poesia tirando a vida de qualquer cilada
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ERNESTO FERREIRA DE OLIVEIRA Ingressou na UEL em 1972 como Professor de Latim e se aposentou em 1994. Desde então dedica-se à pesquisa de histórias referentes à vida rural da região de Londrina, sobre a história informal do campo, das lutas nos inícios, indo à fonte desses fatos através do relato dos pioneiros desconhecidos, ainda sobreviventes da epopéia do desbravamento e colonização da referida região. Pela Atrito Arte publicou Ouro Verde (romance/ 2005) e Ibimaraíma, Nas entrelinhas do café e Eva (contos/2015), Minhas histórias contadas por Bia e Amigas (contos 2016)
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(parafraseando Bandeira) Utopia... Vamos passear, Maria, Lá no parque da alegria! Onde o sol, que lindo! Sorrindo, nos acena em vão! Os compromissos? Que isso! Deixe pra lá, vamos já! Que o tempo rápido passa! Esta vida é sem graça Sem tempero de alegria, Em que somos só joguetes De tantos falsos pudores Destes tempos e seus valores! Viu aquela nuvem branca, No azul do céu da canção? `No azul pintado de azul´! Deixe-me que lhe pegue a mão Conduzi-la no arrebol! Lá tem parques com brinquedos Tem doces de sorrisos Nem precisa de juízo Pra gente ser feliz! Vamos passear, Maria, 43
No país da fantasia, No faz de conta sem conta De um universo paralelo! E lá a pessoa é gente Com direitos e deveres Pois não há quem lhe apoquente Com mentira de justiça Seu direito a ser feliz! Vamos passear, Maria! Lá no país da utopia!
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Vozes Vozes de ontem na varanda Casos que antigamente Se contavam para a gente Em voz compassada e branda Era a vida numa lida No compasso da saudade Hoje aqueles bancos dormem O sono do esquecimento, Mas fica a dor, o lamento de o tempo não mais voltar. E ficou ainda o espaço A montanha, como o ar, e lá no fundo da mente Quando a lembrança consente Estão as vozes e os risos De todos eles, de outrora Contando histórias pra gente Como se fosse no agora. 45
FABIO GIORGIO Escritor, autor de Na BOCA do BODE – Entidades Musicais em Trânsito (Atrito Arte/2005); e produtor audiovisual, dirigiu Beleléu Cá Entre Nós – Itamar Assumpção antes do Nego Dito. Editou o zine Toxina F.C. e corroteirizou e coapresentou o programa Risco no disco, na Usp FM. Nasceu e vive em São Paulo. Os poemas inclusos nesta publicação integram o livro inédito Bigorna em queda livre.
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a galáxia (ad)mirada de uma rua sem saída ou apenas um moleque da vila Paiva que passava horas das noites fitando o céu havia antes da miragem e do incrível rio que desaguara no precipício das iniciativas um incalculável manto escuro cobrindo tudo e a mudez reverente da inocência em sua recusa guerrilheira (sobrou um despropósito nessa lembrança – morro da avenida Conceição): dói um bocado mergulhar sem medo
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nós em todos nós merreca no universo espanando o pó de estrelas – de constelações inteiras (limar o nó repetidas vezes da abstração inicial) [pauta desabalada cuja métrica absurda a distende infinitamente – e haja poeira dentro da cosmológica garrafa para ser sacudida] a romper, decidida o cordão umbilical com o planeta azul – e mergulhar no mistério desembaraça o novelo ou renova a lida, cortando mais uma vez a linha ao burilar o verso e seu reverso, ao parir o silêncio do fim? 50
rabiscador de desalinhos minhas preces vagabundas não se acomodam no colchão são dardos nada tranquilizadores agora que zunem zombando até mesmo da cultivada impaciência antes das bombas: – a vila Bagdá fica logo ali mesmo que nem seja a menor e menos evidente pista falsa [plantada nos rincões dos pixels ordinários ainda que a reticente oração da paróquia dos descrentes [grite dentro de mim para não disparar o dedo – fantasma sisudo que se fez irromper na anatomia [em único gesto quer rasurar a paisagem rabiscando um novo desalinho: esta noite nunca mais
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FERNANDO GIMENEZ Fernando Antonio Prado Gimenez é londrinense, professor universitário e escritor. Criou e edita a Revista Livre de Cinema e a Revista Livre de Sustentabilidade e Empreendedorismo. Mantém um blog de poesia (umhaikaiaodia.blogspot.com) e outro de contos (brevestextos.blogspot.com).
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A Meio Caminho Foi visto pela última vez na sexta-feira. Era quase meia-noite. Embarcou no ônibus das 23:57 com destino a sua cidade natal. Trazia consigo uma pequena mochila. Algumas mudas de roupa. Um livro de bolso que comprara em um sebo no centro da cidade. Ficara em dúvida sobre qual comprar. Por fim, decidiu levar o de Dalton Trevisan. Gostava de textos breves. Ninguém melhor que Dalton para isso. Na carteira pouco dinheiro. No meio do caminho a tradicional parada de ônibus. A última vez que tinha feito este trajeto fora há quarenta anos. Se espantou, pois tudo estava exatamente igual. Os mesmos balcões apinhados de passageiros com ar sonolento tentando atrair a atenção das poucas atendentes. Tinham só vinte minutos. Quatro ônibus chegaram quase que ao mesmo tempo. Ele descera com a mochila nas costas. Era desconfiado. O livro no bolso traseiro do lado esquerdo da calça. No direito, a carteira. Contou os trocados. Dezessete reais em notas. Talvez mais cinco ou seis em moedas. Pediu uma média e um pão com manteiga na chapa pra moça que lhe atendeu. Ao servi-lo, deu um sorriso e disse: _ Você me lembra alguém. Viaja muito por aqui? Apesar da diferença de idade, não estranhou a informalidade. Ele com quase sessenta. Ela não mais que dezenove. _ A última vez que passei aqui você não era nem nascida. _ Verdade? 55
_ Sim. Saí de minha cidade bem jovem e nunca mais voltei. Não tinha ninguém. Fui criado em um... De repente calou-se. Pensativo. Por que estou falando isso para essa moça que nem conheço? Ela tentou continuar a conversa: _ Nossa. Por que está voltando agora? _ Não sei. Algo me fez ir até a rodoviária e comprei a passagem. Era a última que tinha. Embarquei sem muito pensar. Aonde moro também não tenho ninguém. Há dez anos vivo em um... Parou de novo. A mesma pergunta na cabeça. Por que estou falando isso pra essa moça? Sentiu uma agonia. O sistema de alto falante chamou os passageiros embarcados no horário das 23:57. De repente, falou pra moça: _ Tem algum hotelzinho por aqui? _ Não. Por que? _ Desisti da viagem. _ Se você quiser pode ficar na minha casa. Tem um quarto vazio. Sempre hospedo pessoas que perdem o ônibus. Isso acontece muito por aqui. Faço uma grana extra. _ Verdade? _ Sim. Mas, não vá pensar errado. É só hospedagem. _ Topo. Que horas você sai? _ Meu turno se encerra daqui meia hora. Na casa dela, um quarto simples com uma cama de solteiro, um criado mudo e uma pequena cômoda. Sobre a cômoda, uma jarra e bacia de louça daquelas bem antigas. Ao lado de um porta-retratos com uma foto de um casal de jovens em frente à parada de ônibus. 56
_ Quem são? _ Minha avó com um passageiro de um ônibus. Ele se reconheceu na foto. Não disse nada. Ela continuou: _ Ela não resistiu à beleza dele com aqueles olhos azuis. Um dia ela me contou. Não dá pra ver porque a foto é em preto e branco. Mas, deviam ser como os seus. _ O que aconteceu? _ Ela me disse que ele perdeu o ônibus. Ela estava sozinha. Os pais estavam viajando. Levou ele pra casa. Fizeram amor. No dia seguinte ele foi embora. Nove meses depois minha mãe nasceu. Dos olhos dele correram lágrimas. Ela perguntou: _ Que houve? Ele ficou calado por um tempo. Ela olhando sem entender. Depois disse: _ Vou deixar você à vontade. E saiu. Quando acordou no dia seguinte, perto das onze horas, ela percebeu que ele já tinha ido embora. Ao lado do porta-retratos, o livro de Dalton Trevisan e um bilhete: “Que bom que pude lhe conhecer. Eu sou o homem da foto com sua avó. Bom saber que não estou só no mundo. Tenho que seguir viagem. Esse é o único presente que posso lhe dar.” Ele nunca voltou para o asilo. Ela continua trabalhando na parada de ônibus. Sempre buscando o homem de olhos azuis. Ele não lhe disse o nome. Nem sua avó. De vez em quando, de seus olhos azuis, brotam lágrimas. Ninguém sabe porquê. 57
HERMAN SCHMITZ Iniciou a sua carreira artística nos anos 1980 atuando, dirigindo e escrevendo para teatro. É músico diletante e montou a banda de música & poesia Radicais Livres para divulgar a sua produção poético-literária. Desde que se fixou em Londrina participa ativamente no cenário artístico da cidade, trabalhando como design gráfico, editor e produtor cultural de importantes publicações. Publicou o seu primeiro livro de poemas Os Maracujás em 2007. Produziu e participou do projeto Poesia in Concert contemplado com a Bolsa Funarte de Circulação Literária em 2012. Em 2014 lançou o seu livro de contos de ficção científica Terrassol, pela Atrito Arte. Também mantém o blog de ficção científica literária marcianoscomonocinema.blogspot.com. br. Participa do Projeto Um Dedo de Prosa desde a sua criação. Atualmente é mestrando em Literatura comparada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
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Micro Invasão Ainda é difícil de acreditar que a invasão começou no meu próprio quintal, num fim de tarde de domingo, tranquilo e aprazível, por volta das cinco horas. Mas o pior é saber que utilizaram meu corpo para localizar a Terra e invadi-la. Tudo começou quando estava cortando as unhas do meu pé esquerdo, e avistei na ponta do dedão umas manchas esbranquiçadas que logo tomaram a forma de algo metálico, como se fossem diminutas embarcações flutuando no espaço. Elas estavam saindo do meu dedo em formação alinhada, ordenada de duas em duas, o que me pareceu visivelmente artificial e engraçado. A princípio duvidei daquilo tudo, minha mente ociosa se recusava a aceitar as tais naves minúsculas como sendo algo mais que uma agradável ilusão de ótica provocada pelos raios oblíquos do sol. Mas a insistência daquele voo de insetos sem nenhum zumbido me fez sair lentamente de minha letargia para dar um piparote ao acaso em uma das naves mais próximas. Imediatamente recuei horrorizado pela dor lancinante em meu dedo e pela constatação de que a nave não se movera com o esperado recuo de um inseto abalado, e pior, abriram umas escotilhas na fuselagem e delas emergiram pequeninas canhoneiras negras que logo abriram fogo, me fazendo estremecer de dor ao ser atingido por agulhadas em diversos pontos do meu corpo. 61
Levantei-me depressa e ainda tonto pela surpresa percebi que as naves se reposicionavam, cercando-me por todos os lados. Ao nível dos meus olhos mantinha-se a nave que me atingira tão duramente. Havia tensão nessa abordagem, pareciam esperar só mais um passo meu para ativarem novamente seus canhõezinhos. “Leve-nos ao seu líder! ” – Pensei eu sem saber por que, e a frase se repetia salmodiada em minha mente como se fora implantada por aquela diminuta nave de guerra e por seus misteriosos ocupantes. Dei um passo para trás e as naves me acompanharam. Agora sim estou frito – pensei. Estou sendo feito prisioneiro por alienígenas em meu próprio quintal. Feche os olhos, respire fundo e relaxe, essa alucinação passará sem dúvida. Mas no íntimo algo já me dizia que não era um delírio, já sabia que isso não passaria, que havia ali uma terrível verdade: eu havia sido abduzido! Sim, meus caros compatriotas, fui eu mesmo quem chegou em frente ao Congresso na segunda-feira de manhã e provocou todas aquelas reuniões de emergência a portas fechadas. Fui eu quem sofreu o descrédito dos militares, até eles virem seus charutos destroçados pelos pequenos mísseis do inimigo, seus tanques violados pelo laser alienígena e suas frotas desbaratadas pelas pequenas naves que se introduziam em qualquer fenda, infiltrando-se nos controles e os destruindo com facilidade e precisão. 62
Eles usaram a minha voz como emissária dos seus interesses – eu estive presente em todas as reuniões. Não eu, mas sim o farrapo humano que era arrastado de sala em sala, exigindo rendições e armistícios. O planeta foi derrotado, enfim. E hoje, que já não sou mais útil e fui descartado como todos os outros, acabamos prisioneiros desse exército e trabalhamos sob a guarda de suas micronaves, aqui nessas minas de urânio e cobalto de onde são retirados os elementos para a fabricação da ponte interestrelar – por onde virão os verdadeiros conquistadores. Ainda penso naquela tarde domingueira e vejo que minhas unhas precisam novamente de um corte…
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JOSÉ ANTONIO PEDRIALI Jornalista há mais de três décadas, tendo atuado, entre outros jornais, na Folha de Londrina, Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo. É autor de nove livros. Entre eles, O poeta da rebeldia (Atrito Arte) e Fuga dos Andes (Record)
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A figueira da minha infância Havia uma figueira, e era sob ela que, à noite, meu irmão Marco, meus primos Gilberto e Cristina e eu - escoltados por tio Pedro - nos sentávamos, num banco de pedra. A figueira ficava no início da Avenida Paraná, em seu entroncamento com as ruas Quintino Bocaiúva, Tupi e Ceará (hoje Hugo Cabral). Centro de Londrina. Era o cenário em que o tio contava suas histórias, que não tinham fim - não pela extensão, mas pela diversidade. Quando ele se cansava, ou quando nossa capacidade de absorver suas narrativas havia se esgotado, dedicávamo-nos a uma brincadeira impossível hoje: tentar adivinhar o modelo do carro que passaria por nós. Impossível hoje devido à quantidade de carros e diversidade de modelos. No início dos anos 60, que é quando nos sentávamos sob a figueira, a passagem de um carro era um acontecimento - e os modelos, todos importados, eram Fords, Chevrolets, Buicks... Quando ouvíamos o barulho de um carro, dávamos as costas à rua pela qual ele trafegava, fechávamos os olhos e arriscávamos o palpite. A figueira, explicava tio Pedro, tinha grande simbolismo: fora a primeira árvore plantada durante a administração de Hugo Cabral (1947-51), que promoveu um amplo e pioneiro programa de arborização. O plantio dessa árvore, li muito tempo depois, foi 67
assistido por dezenas de pessoas. Entre elas estava o médico Jonas de Faria Castro Filho, o doutor Joninhas. Ele foi um dos fundadores do Aeroclube, que teve participação destacada nesse programa de arborização. O local sofreu profunda transformação. A Avenida Paraná foi fechada para veículos a partir desse ponto até a rua Minas Gerais, dando origem ao Calçadão. Isso foi na primeira administração de Antonio Belinati (1977-82). O piso, projetado por Jaime Lerner em petit-pavê, era preto e branco e formava desenhos geométricos. A figueira resistiu a tudo. À mudança paisagística, à evolução da cidade, ao tráfego de veículos e de pedestres, à geada que pulverizou nossos cafezais em 1976... ... até que um prefeito, que buscava uma obra de visibilidade para deixar sua marca para o futuro, e esse futuro era sua reeleição – praticamente impossível devido às acusações a que responde -, sepultou o passado. O piso do Calçadão exigia uma ampla reforma, não há dúvida, mas - à revelia dos arquitetos e destruindo um patrimônio histórico - o prefeito Homero Barbosa substituiu o petit-pavê pelo pavere suas cores e desenhos por um salamaleque que faz lembrar o arco-íris. Não bastasse isso, o (por enquanto) prefeito autorizou o maior dos crimes: a erradicação da figueira que resultou do esforço e da visão de futuro de uma geração de homens e mulheres que construíram os pilares da nossa cidade. Há poucos dias, o (por enquanto) prefeito autorizou o corte de outras árvores - ipês amarelos e sibipirunas, entre outras - em outro ponto do Calçadão. 68
A natureza não reage. Ela se vinga. Os eleitores se vingam através das urnas, mas provavelmente não terão esse prazer com o (por enquanto) prefeito: a Câmara tem munição suficiente (disposição é outra coisa) para cassar seu mandato... A morte da figueira da minha infância, da figueira da infância das árvores de Londrina não pode ficar impune!
(Esta crônica foi publicada em 7 de agosto de 2011 no blog josepedriali.com.br Homero Barbosa foi cassado em 30 de julho de 2012. A natureza se vingou, e teve pressa). 69
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JOSÉ MASCHIO Repórter que conta histórias. Na vida fez de tudo. Até coisas bem feitas. Isso raramente. Foi catador de ossos (em um tempo que usavam ossos para fazer botões), boia-fria, pacoteiro, bancário, professor universitário. Trabalhou em redações de jornais alternativos, sindicais, jornais legais e jornalões. Hoje dedica-se à militância social e a escrever livros. Os dois últimos: Crônica de Uma Grande Farsa (em parceria com Luiz Taques) e o romance Tempos de Cigarro Sem Filtro.
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Um bom virado Um virado. É só nisso que sonho hoje. Um bom virado. Como aquele dos tempos de adolescência, infância. Na roça. Era assim quase sempre. O frango preparado ao molho. Antes é claro, cercado e preso pelos guris. E sabes amigo. Cercar frango solto é coisa para quem tem ginga no corpo. Ou dança. É enganado. Que um bom frango, mesmo uma galinha, tem meneio, tem saberes que não sabemos. E, num repente, mudam o rumo da corrida. Assim como Garrincha com os joãos de sua história. Cercar frango é coisa para gente de sapiência. E quanto mais guri, mais sábio nisso de meneio. Eu fui um garoto desses, cercador de frangos. Hoje não cerco nem minha estupidez. Estupidez de velho. Que sabe só recordar passado que foi. Por isso essa angústia pelo bom virado. O virado da roça. Aqui no Flores do Campo. Essa ocupação de povo sem moradia, que chamam sem-teto. E quando a polícia chega. E chega todo dia, tenho saudades de um tempo em que conseguia. Cercar o frango, entender sua ginga. Com a polícia nem é possível ginga. Nem gingado de corpo. Petulantes eles contra nossa miséria. Chamam a gente de invasores. Pô, é só busca por teto. Eles, tão miseráveis quanto. Mas fardados. E fardados se acham. Eles achados, mas miseráveis como nós. Impõem razões que não razoamos. E quando se vão. Para voltarem depois, fica a certeza. Querem que a gente saia daqui. Devem defender interesses outros. Que sabemos. Os interesses imobiliários valem mais que a vida. Dos miseráveis que 73
somos. E é quando eles vão é que penso no bom virado. Era assim. Um frango ao molho e farinha. Farinha muita. Para volume e consistência. Volume de comida, consistência de corpo. Era feito à noite para a labuta do dia seguinte. No eito, a roçar ou capinar, a boca salivava. De pensar no virado. A gente comia e se deliciava. Nem precisava de requento. Que o bom virado, o virado da roça. Comemos frio. E se come com prazer. Um prazer que é quase como fazer sexo. Pois dizem e acredito. Comer e comer são as delícias da vida. Já quase nem faço uma coisa ou outra. Uma por falta de tino. De senso. Ou de bom senso. Envelheci, sofri e perdi. Perdi mulheres que me comiam. Adoráveis mulheres. E nem foram culpas delas. Foram culpas minhas. Que o homem, sabe menino? O homem é animal estúpido, que nem percebe a mulher do lado. Quando percebe é que perdeu. Essas perdas são as quais mais lamento. Onde andarão as mulheres que andaram pela minha vida? Devem estar bem melhores que eu. Espero que sim. Que isso de morar em ocupação, no despreparo da vida, é dolorido. Como é dolorido pensar que vida toda, a viração da vida podia ter dado certo. Não deu. Às vezes, só às vezes, me sinto como Caim. Não o Caim de Abel, mas o Caim de Lilith. Teve ele ela. Vivia bem ele com ela. Mas, imposição do demônio que chamam deus, teve que deixar Lilith. E quando voltou, nada sabia sobre Enoch, filho dele com Lilith. E já nem sabia das curvas de Lilith. Isso de desperceber é o mais dolorido. Cá estou eu, a lamentar as mulheres que passaram pela vida. Pela minha vida. E, sério, não consigo 74
lembrar nenhuma saliência, descompostura de uma só. Mulheres melhores que eu. Todas elas. Perfeitas. E eu, com minha imperfeição. As perdi. A todas elas. Mas o homem é assim. Estava a falar de necessidade de corpo. E acabei por falar de mulheres. Necessárias elas. Sempre. E também, elas, necessidade de corpo. Mas a fome é outra necessidade. Quase sempre maior que qualquer outra. Por isso, o sonho de um bom virado. Na roça, o virado de frango era fartura. Sinal de gente que conseguia comer. Quase uma ostentação. Que muitos. E não poucos. Não conseguiam isso de ter virado de frango na marmita de boia-fria. A maioria aparecia com sopa de fubá com couve. Miséria de olhar e sentir. Alguns mais virantes nisso de viver, improvisavam. E traziam virados de avoantes. De rolinhas, pequenas, sórdidas. Ou de asa branca, quase uns franguinhos. Essa viração variava, mas acabava, também, em um bom virado. Esses eram os espertos. Devem ter dado certo na vida. Não foi meu caso. Aqui, no ocaso da vida. Na ocupação Flores do Campo. Que nem sabemos o que vai virar. Se der certo, teremos um teto. Caso não. Busco outra viração. Por isso hoje só penso num bom virado. Frango ao molho e farinha.
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MARCO FABIANI É médico cardiologista. Na universidade participou intensamente dos movimentos estudantis, que eclodiram em meados da década de 70, reivindicando a redemocratização do país. A vivência com estudantes de diversas áreas, principalmente jornalistas, despertou nele interesse pelos textos. Desde essa época escreve com regularidade. Inicialmente eram textos militantes. Mas desde que se formou vem se dedicando a textos literários. Pela Atrito Arte lançou: Trilhas do fogo (contos/2004), Contos de Pau e Pedra (2005), Histórias de um Norte Tão Velho (contos/2009), A memória é um pássaro sem luz (romance/2013), Um bourbon para Faulkner (romance/2018). Tem textos publicados na revista CULT (nº 100Divide o tempo entre medicina e literatura. E entende que são áreas que se encontram, principalmente pelo caráter profundamente humanista de ambas. Recebeu em 2015 a Bolsa Circulação Literária pelo projeto “Um dedo de prosa”.
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Ao que espera O velho viu o liquido cristalino descer pela cânula até seu braço. Sentiu a substancia queimá-lo, no local da punção, como se houvesse ali uma minúscula chama. Ele acabara de acordar e permanecia ainda numa situação intermediaria de semi-consciência. Como tudo que acontecia com ele nas últimas semanas, a diferença entre dormir e despertar, entre presente e passado, anoitecer e amanhecer, estava cada vez menor. Tudo parecia misturar-se numa massa em que o tempo perdeu suas costuras e tudo se emplastrava num fluxo continuo, onde a imagem da moça dando um comprimido e a irmã, anos e anos atrás, oferecendo um pedaço de fruta, ocupava o mesmo espaço nesse mundo misterioso das células memoriais. Agora ele é apenas um homem emagrecido, consumido pela enfermidade, movendo-se lentamente na cama. Ao seu lado, a senhora corpulenta ajuda-o mais uma vez a mudar de posição até achar o conforto. Ele a olha e transmite gratidão no rosto. Ela apenas sorri e pergunta se está tudo bem. Ele murmura que sim. Olha mais uma vez e pergunta se o filho tinha ligado. Já havia perguntado dezenas de vezes. Ela, com um sorriso, responde afirmativamente. Ele então desliga-se do mundo à volta. Quase não tinha mais dor física, graças aos medicamentos. Apesar da perene sensação de mal estar, agora conseguia dormir, alimentar-se, viver com esses confortos mínimos que restam na velhice. O suficiente para cultivar suas lembranças, como quem cultiva um jardim 79
de espinhos. As memórias, como uma cama de pregos, doíam e sangravam. Na sua história de vida, lembranças e culpas eram exatamente a mesma coisa. Olhou novamente à volta do quarto. Constatou uma vez mais, o que de longe já sabia. Que a cada hora, o mundo real se distanciava. Uma espécie de consciência do fim próximo. Ele passou a habitar essa pequena faixa de território onde a vida e a morte abraçam-se fraternalmente, como duas amigas inseparáveis, esquecidas das inimizades e enfrentamentos de outros tempos. É um tempo de reconciliação. Do pedido e da oferta do perdão, de amarrar as velhas cartas com laços de fita, de arrumar os armários, organizar os livros, quitar as dividas, agradecer aos que não merecem, varrer o chão e deixar a alma feito um lar, limpo e perfumado. Mas e o filho? Viria? Já não havia mais a alternativa da busca. Só a da espera. Nesse momento ele olhou a porta, pois nitidamente ouviu passos no corredor e num delírio teve a certeza de que ouvia os passos do rapaz. Não era. Como outras vezes. Não se transformaram em presença os passos que ele tanto pensava ouvir, ora no corredor da casa, ora na sala. Ele, tantas vezes imaginando um abraço terno, prolongado. Como também não era a voz do filho no outro lado da linha, a cada vez que soava a campanhinha do telefone. Lá fora, a manhã ensolarada de abril espalhava calor pelas ruas e a vida fluía numa pacífica normalidade. O avião riscou a manhã e sobrevoou a cidade rumo ao aeroporto. Em minutos, os pneus tocariam a pista e o motor rosnaria, num esforço enorme para deter aquele gigante. 80
Mal o avião começou a taxiar e o rapaz, desrespeitando os avisos, soltou o cinto. Com visível ansiedade, na primeira oportunidade saiu rapidamente pelas escadas da frente. Mal esperava esse momento, depois da viajem. Não podia perder um minuto sequer. Passou-se uma vida inteira desde que partiu de casa sem acenos de despedidas. Depois, os longos anos de silencio e o desejo de reconciliação brotando recentemente. O rapaz saltou do taxi e subiu aos tropeços a escada e chegou ao quarto. A senhora abriu a porta, convidou-o a entrar. Ele não viu que os olhos dela estavam úmidos.
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MÁRIO BORTOLOTTO Escreve para teatro desde 1981. Em 1982 fundou o grupo de teatro Cemitério de Automóveis. Vocalista da banda de blues “Saco de Ratos”. Montou 60 textos seus com o Cemitério de Automóveis e ganhou vários prêmios como autor, diretor, ator, sonoplasta e iluminador. Em 2000, recebeu o Prêmio APCA pelo conjunto da obra e o Prêmio Shell de Melhor Autor por Nossa vida não vale um chevrolet. Tem dez livros publicados pela Atrito Arte: Mamãe Não Voltou do Supermercado (romance), Seis Peças de Mário Bortolotto - Vol. I, Para os inocentes que ficaram em casa (poesia), Seis peças de Mário Bortolotto – Vol. II, Gutemberg blues (compilação de matérias escritas para os Jornais Folha de Londrina e Correio Londrinense), Doze peças de Mário Bortolotto – Vol. IV, Atire no dramaturgo (coletânea de textos do blog), Um bom lugar pra morrer (poesia), Treze peças de Mário Bortolotto Vol. V. Pela Ciência do Acidente, publicou o romance Bagana na chuva. Mamãe não voltou do supermercado (2ª edição leva o selo da Editora Alaúde). Os anos do furacão (Editora Realejo). Esse tal de amor e outros sentimentos cruéis e O pior lugar que eu conheço é dentro da minha cabeça (Editora Reformatório).
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Os dois Eles eram dois Mas nem sabiam que eram dois pois os dois eram sozinhos e se sentiam assim sozinhos os dois Às vezes ficavam abraçados testemunhando enchentes e dividiam segredos e riam das bobagens um do outro e telefonavam sempre um para o outro só numas de ouvirem a voz um do outro Eles não eram felizes E falavam alto nos bares E contavam histórias estapafúrdias os dois Se encontravam no meio de tanta gente Eles sempre se encontravam e sorriam tímidos um para o outro porque eram sozinhos os dois 85
e por um momento já não era tão assim eles eram quase dois mesmo sozinhos assistindo filmes de madrugada e pegando no sono abraçando almofadas sozinhos bêbados tomando comprimidos pra dormir aviltados com a publicidade que cercava a solidão dos dois E eles queriam fugir E ele queria entrar dentro dela E ficar lá o resto de sua vida não pra ser um mas pra ser dois definitivamente de uma vez por todas os dois
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Don’t let me be misunderstood A tarde que parece inatingível Meu suspirar nervoso e quase insolente Quando a cozinha é quase um pântano Quando o coração ameaçar explodir no peito Quando o seu nível de apreensão te levar a completa exaustão Quando você brinca com frisbees pra passar o tempo Quando o tempo ameaça não passar Quando a música te levar pra um canto escuro atrás da cortina Quando toda a tristeza derrubar a sua porta E não há como dormir, não há como fugir Quando saio na noite incendiando bares Quando volto pra casa com a alma atormentada Me sentindo o mais solitário e infeliz dos caras Você saindo de dentro de um temporal Com o sorriso mais bonito do mundo
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MAURÍCIO ARRUDA MENDONÇA Poeta, dramaturgo, tradutor. Publicou os livros de poemas Epigrafias (2002, Editora Ciência do Acidente); A Sombra de um Sorriso (2002, Atrito Arte); Eu caminhava assim tão distraído (1997, Editora Sette Letras). Em prosa publicou Londrinenses (contos, 2010, Kan) Foi colaborador da Armazém Cia de Teatro de 1995 a 2014, tendo recebido, ao lado do diretor Paulo de Moraes, os prêmios: Shell-RJ de Melhor Autor nos anos de 2008 e 2012; Prêmio Cesgranrio de Melhor Texto Nacional em 2014; Fringe First Award “for innovating and outstanding new writing”, concedido pelo jornal The Scotsman, durante o Festival de Teatro de Edimburgo, Escócia, nos anos de 2013 e de 2014; e o prêmio de crítica Coup de Coeur durante o Festival de Teatro de Avignon, França, em 2014. Traduziu para o grupo Cemitério de Automóves as peças Killer Joe de Tracy Letts e O Canal de Gary Richards. Em 2015 estreou seu monólogo Plínio Marcos – A História do Maldito Bendito. É doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina.
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A arte de sempre sorrir Mesmo com o figurino rasgado com o nariz amassado sacaneado pela trapezista vilipendiado pelo mestre-de-pista enxotado pelo mágico escapas do arremessador de facas na roleta da fortuna sim beijaste a serragem do picadeiro o circo é teu mundo inteiro com a alma lavada palhaço meu mantém teus olhos no céu.
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Eu caminhava assim tão distraído. olha
eu ando louco à procura
de um olhar que como
o seu me acalme um pouco
e eu possa chamar poema
salto de cervo
lua de outono
olha
a parede se descasca
poeira em tudo o que fica
pense um pouco
cinza de cigarro tubo de caneta
não foi assim que eu te ensinei a mentir
tenho febre
algum tipo de dor
mas ainda que eu erre
olha
velocidade é uma fissura da juventude
solidão é um método maluco
de saber quem está dentro de você
quando a cidade inteira te odeia
mas entre almas de jeans
você segue
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olha
nada na neblina
alĂŠm de borboletas transando
estĂĄtuas se mexendo
pessoas que se esqueceram de sorrir
e vocĂŞ vai se matando
de tanto dizer sim
mas olha
a chuva fina no asfalto
meu suor em sua pele
pra sempre
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NELSON CAPUCHO Nelson Capucho é jornalista, poeta e cronista. Publicou os livros de poesia Solta Chama (1980), Sundae Cogumelo (1984), Vida Vadia (1995), Hominimalis (2002/Atrito Arte) e Tropicorientao (2007/Atrito Arte) e o volume de crônicas O Jardineiro de Flores Estranhas (2002). Participou de várias antologias e teve poemas veiculados nas revistas Coyote, Nicolau, Garatuja, Poesia Sempre (Biblioteca Nacional), Babel e outras. Tem poesias publicadas em sites do Chile e da Espanha. Ganhou um prêmio nacional de poesia e dois prêmios nacionais de jornalismo.
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A bolinha do Jadir Quem apareceu com a maravilha na repartição foi o Jadir. Era do tamanho de uma bola de tênis, de material macio e transparente, cheia de pontos luminosos no seu interior, o que conferia ao objeto um caráter ao mesmo tempo lúdico e místico. - Comprei de um camelô - ele explicou para a dona Zuleica, a secretária, sempre curiosa. - Pra que serve? - Na verdade, não sei. Achei bonitinha e comprei. Na mesa ao lado, o Abreu resmungou: - Humpf! No seu dialeto, poderia significar muitas coisas. Neste caso, queria dizer ‘‘que bobagem’’. Mas o Abreu era um daqueles sujeitos que quando acordam se sentindo feliz, logo pensam: algo deve estar errado. Então o Jadir não deu muita importância e sentou-se para trabalhar. De vez em quando não resistia e apalpava a bolinha sobre a mesa. Percebeu que aquilo era prazeroso e relaxante. Ficava rindo sozinho. Aí a dona Zuleica reapareceu: - Posso dar uma pegadinha? - Na bolinha? - É, só um pouco. Já devolvo. - Claro, claro. O Pacheco foi até a mesa da secretária levar um memorando e percebeu que ela acariciava a esferazinha translúcida com uma serenidade oriental. E olha que dona Zuleica era do tipo eficiente-agitadinha. 97
- Que é isso? - Bolinha. - Hãã...e é gostoso? - Só. Maior barato. A novidade se espalhou. Nas rodinhas de fofocas do cafezinho, no refeitório, nos corredores só se falava da bolinha do Jadir. - Dá uma sensação meio estranha assim por dentro da gente. - Você pegou? - Só um pouquinho, né! - Soube do boy? - O que aconteceu, pelo amor de Deus? - Foi flagrado no banheiro com a bolinha. Estava desaparecido há mais de uma hora... - Menina, que coisa! No dia seguinte, mais três funcionários tinham comprado bolinhas. Formavam-se filas nas mesas. Todo mundo queria experimentar. O Abreu naturalmente foi o último. E gostou. Não disse nada, é verdade, mas sorriu levemente. Em 17 anos de serviço era a primeira vez que isso acontecia. O efeito da esfera logo se disseminou, desestressando o ambiente. As pessoas começaram a se vestir de modo diferente. Nada de paletós ou tailleurs; mais jeans, camisetas. - Prefiro o básico, entende? - Só. Brincavam, contavam piadas. Rixas foram esquecidas. 98
Casais de namorados da repartição, que antes evitavam se olhar, por constrangimento ou medo de perder o emprego, agora trocavam beijinhos. O Helinho, rapaz introspectivo, esquisitão mesmo, certo dia subiu em uma cadeira e fez um discurso sobre ‘‘o filosófico e o metafísico’’, Foi engraçado. Até o Abreu aplaudiu. Quem não estava gostando muita da festa era o seu Almeida, o gerente (que, aliás, nunca tocou na esfera). Primeiro fez uma advertência por escrito a todos os funcionários. Não adiantou. Resolveu procurar o diretor. Não gostava de incomodar o homem, mas o caso estava ficando grave, pô! Explicou a situação. O diretor ouviu com o aparente desinteresse de sempre. Aí ordenou ao Almeida que fosse buscar uma das tais bolinhas. Queria ver se era esta realmente a causa da ‘‘insubordinação’’. Experimentou: - Humm...hummm Não teve dúvidas: representava um perigo para a empresa. - Prazer e serviço não se misturam. Baixaram uma norma proibindo ‘‘o manuseio e mesmo o porte do nocivo objeto no local de trabalho’’. Foi também contratado um psicólogo para avaliar periodicamente os empregados: todo aquele que apresentasse ‘‘desvio de comportamento’’ seria afastado de suas funções. Como exemplo, demitiram o Jadir. A maioria achou que estava certo. Ele não podia ter feito aquilo! Foi uma irresponsabilidade. Aos poucos a repartição voltou ao normal. Dizem que o Jadir pegou o fundo de garantia, montou seu próprio negócio e está indo muito bem. Vende bolinhas. 99
SAMANTHA ABREU É professora em Londrina/PR e pesquisa a literatura de autoria feminina pela UEL. Já foi publicada em sites, revistas e teve textos adaptados para o teatro. Participa e produz eventos e projetos literários. Lançou os livros Fantasias para quando vier a chuva (Orpheu, 2011); Mulheres sob Descontrole (Atrito Arte, 2015); A pequena mão da criança morta (Penalux, 2018); e tem dois livros no prelo. Integra as antologias O Fio de Ariadne (poesia/Atrito Arte, 2014), 29 de Abril: o verso da violência (Patuá, 2015) junto com autores contemporâneos de todo o país e Nòmadas (poesia/Atrito Arte/2018). Faz parte do Coletivo VERSA, que divulga, organiza e dialoga com a escrita de autoras londrinenses.
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Faz sol Logo agora que a chuva parou, que voltamos a ter vinis na estante. Agora, bem agora que não queremos mais ter tudo, pois estamos de folga, que não precisamos calçar sapatos, que a lua de mel mora no sofá de veludo. Bem agora. Estava chovendo antes de ser hoje. Antes de ser este cabelo ruivo secando com o vento, antes de ser vida acontecendo a partir das dez da amanhã. Mas dormir é sonho que também é noite. Bem agora que dormir é sonho, eu escuto esses gritos lá fora e corro pra ver a morte, o ardor, a bomba. Bem agora, bombas. Explosões que não são coloridas e a gente querendo um banho morno seguido de pijama, cama pra dois, nossa comida. Bem agora que acabou a comida, que o sapato aperta, que a gente desaprendeu a dançar, já não temos cabelos nem sono nem os sonhos. O que é que a gente vai fazer quando a guerra acabar?
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De tudo o que me resta e que não seja amor, seja o portão de partida despedida, de pequenas causas diárias. Eu sangro momentos, derreto venenos e morro nos cotidianos fins. Ainda prefiro a mortalha envolvendo afazeres não entranhados. Quero a devastação irreversível de qualquer pequena vida vã.
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É como se no centro de todo barulho tudo, de repente, fosse eco. Ressonância dentro do vácuo e todo o cenário em câmera lenta. Eu-estátua enquanto o mundo flutua agitado e implora: pressão nos nervos e pescoço pulsante. Medo do agudo de fora, medo do escuro de dentro, cisma com a música que ele sussurra enquanto entra e faz serenata. Ninguém vê enquanto a vida se arrasta, só eu e você.
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SILZA MARIA PASELLO VALENTE Doutora em Educação, atuou no Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina, no período 1982-2007. É autora e co-autora de livros sobre Educação e de artigos publicados em revistas científicas e na Grande Imprensa. Desde 2006 coordena, junto à Associação de Senhoras de Rotarianos de Bela Vista do Paraíso, o Projeto de Leitura Viajando com as Palavras, de caráter permanente. Em 2011 coordenou o Projeto Leitura, Escrita e Valores: os fios da Trama de um Novo Amanhã, desenvolvido em parceria com a UEL, o Departamento de Educação de Bela Vista do Paraíso e os Colégios Estadual Presidente Vargas e Sagrado Coração. Publicou: A presença rebelde na cidade sorriso: contribuição ao estudo do anarquismo em Curitiba/1890-1920 (Atrito Arte) e Meu eu derramado (poesia/ Atrito Arte).
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Brado de angústia Em vão O procurei Entre as pedras do caminho Em vão, entre as estrelas do infinito Em vão bradei ao mar e ao vento Em vão fitei o firmamento Clamei, foi tudo inútil E, na derradeira hora, compreendi Ele estava em mim E eu, cega, não O via.
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Pretendo a solidĂŁo E o vento Depois quero ver A vida passar
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Meu ser finito-infinito Procura fora de si Um sentido, uma explicação E na eterna busca Acha entre mortas coisas A indicação de que As verdades eternas Estão em sua própria essência Mescladas às suas emoções Fundidas em meu existir
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SOBRE A ATRITO: A Atrito Arte Editora foi fundada em 1988 por Christine Vianna em parceria com Aline Abovsky. Publica autores que divergem de uma literatura massificada. Sua proposta é desenvolver um mercado editorial mais justo para os autores. A editora busca apoio através de leis de incentivo e marketing cultural para suas edições. Publicou 120 títulos, a maioria de autores londrinenses. Lançamentos: • Um Bourbon para Faulkner (romance) Marco Antonio Fabiani • Pedras, paus e pétalas (romance) Moacyr Eurípedes Medri • Nòmadas – (antologia poética feminina) Volume II
Um Dedo de Prosa foi composto em Swift Light e impresso em papel pรณlen 90g (miolo) e cartรฃo supremo 240g (capa) em marรงo de 2019.
PATROCÍNIO:
PROMIC: 18-066