Os lusíadas leitura e cel

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Os Lusíadas Leitura e Conhecimento Explícito da Língua

Língua Portuguesa – 9º ano, turma C


Síntese

Cantos/ estrofes Planos da narrativa

Personagens Ação

Proposição

Início da Narração

Canto I , EE.1 a 3

Canto I, E.19

Viagem História de Portugal Mitológico Poeta Povo luso/ português Apresentação dos assuntos a abordar na obra

Viagem para a Índia Vasco da Gama e a sua armada In Medias Res (viagem a meio - típico das epopeias clássicas)

Tempo

1497

Espaço

Oceano Índico (junto a Moçambique)

Narrador(es)

Poeta

Vasco da Gama

Narratário(s)

Leitores

Rei de Melinde

Valor histórico e simbólico Tipologia do episódio

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Síntese Cantos/ estrofes Planos da narrativa

Personagens

Ação

Consílio dos Deuses

Inês de Castro

Canto I, EE. 20 a 41

Canto III, EE.118 a 137

Deuses ou mitológico

Deuses: - Baco - Júpiter - Vénus - Marte Reunião dos Deuses, no Olimpo, para decidir o futuro dos portugueses, no Oriente

História de Portugal e do poeta (Camões manifesta repúdio pela insensibilidade do rei e dos carrascos) - Inês de Castro - D. Afonso IV -Pedro - carrascos - filhos de Inês Morte de Inês de castro

Tempo

1497

7 de janeiro de 1355

Espaço

Olimpo

Coimbra

Narrador(es)

Poeta

Vasco da Gama

Narratário(s)

Leitores

Rei de Melinde

Valor histórico e simbólico

Sobrevalorizar o povo português (o valor do povo português dos Descobrimentos é igual ou superior ao dos Deuses) Mitológico (intervenção dos Deuses do Olimpo)

Tipologia do episódio

Comover o leitor com a narração de uma história de amor contrariada

Lírico (expressão de sentimentos,3de emoções, de estados de alma)


Síntese Cantos/ estrofes Planos da narrativa Personagens

Ação

Batalha de Aljubarrota

Despedidas em Belém

Canto IV, EE.28 a 45

Canto IV, EE. 83 a 89

História de Portugal

História de Portugal e da viagem

- Tropas portuguesas e castelhanas - D. João I de Castela e de Portugal - D. Nuno Alvares Pereira - traidores Batalha entre Portugal e Castela. Os portugueses venceram os castelhanos

Vasco da Gama e a sua armada, gente da cidade e religiosos

Partida das naus para a Índia (analepse)

Tempo

14 de agosto de 1385

8 de julho de 1497

Espaço

Aljubarrota

Belém

Narrador(es)

Vasco da Gama

Vasco da Gama

Narratário(s)

Rei de Melinde

Rei de Melinde

Valor histórico e simbólico

Exaltar o valor do povo luso, enquanto guerreiros

Sofrimento causado pelas viagens dos Descobrimentos

Tipologia do episódio

Bélico

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Síntese O Adamastor

Tempestade e Chegada à Índia

Canto V, EE. 39 a 60

Canto VI, EE.70 a 94

Planos da narrativa

História de Portugal e da viagem

Mitológico e da viagem

Personagens

Vasco da Gama e a sua armada e Adamastor

Vasco da gama e a sua armada, ninfas, Baco, Vénus e ventos

Ação

Dobrar o Cabo das Tormentas

Tempestade e chegada à índia

Tempo

22 de novembro de 1497

maio de 1498

Espaço

Cabo das Tormentas

Calecute

Narrador(es)

Vasco da Gama

Poeta

Narratário(s)

Rei de Melinde

Leitores

Cantos/ estrofes

Valor histórico e simbólico Tipologia do episódio

Valorizar e exaltar as capacidades do povo luso (a força, a coragem e Exaltar a coragem dos portugueses ao a persistência – a luta para ultrapassar o obstáculo da tempestade e ao conseguir alcançar o objetivo descobrir o caminho marítimo para a Índia pretendido) Simbólico

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Naturalista (fenómenos da natureza)


ESTRUTURA INTERNA 4 partes

Proposição

Invocação

Dedicatória

Narração

O autor apresenta o assunto

O poeta pede inspiração às musas para levar a cabo o seu projeto

O poeta dedica o seu poema a D. Sebastião

Narração da ação


ESTRUTURA INTERNA Plano da Viagem: refere-se à narração da viagem de Lisboa até à Índia, com a partida de Belém, a paragem em Melinde e a chegada a Calecute.

A obra apresenta 4 planos narrativos que orientam a ação:

Plano da História: refere-se aos momentos em que se apresentam factos da História de Portugal. Plano dos Deuses: também chamado mitológico pela intervenção dos deuses na ação, facilitando e complicando a viagem.

Plano do Poeta: refere-se às considerações pessoais que o poeta tece. 7


Episódios • Bélico Batalha de Aljubarrota Canto I, EE. 28 a 45

Episódios – pequenas narrativas de factos reais ou imaginários. TIPOS – bélicos, líricos, simbólicos, naturalistas e mitológicos:

• Lírico Morte de Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137

• Simbólico

O Adamastor

Canto V, EE. 39 a 60 • Naturalista

A Tempestade

Canto VI, EE. 70 a 91

• Mitológico Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 8


Proposição Canto I, EE. 1, 2 e 3 Estrutura externa: Canto I, EE 1, 2 e 3

Proposição Estrutura interna: 1ª parte

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Proposição Canto I, EE. 1, 2 e 3 1

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As armas e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados, Passaram ainda além da Taprobana, Em perigos e guerras esforçados, Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram;

Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram; Cale-se de Alexandro e de Trajano A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram: Cesse tudo o que a Musa antígua canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.

2 E também as memórias gloriosas Daqueles Reis, que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando; E aqueles, que por obras valerosas Se vão da lei da morte libertando; Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Oração subordinada adverbial condicional

Oração subordinada adjetiva relativa restritiva

Oração subordinada adverbial causal (que = porque) 10


Proposição Canto I, EE. 1, 2 e 3

2 partes lógicas Estrofes

Estrofes

1e2

2e3

apresentam o assunto do poema

introduzem novos elementos

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Proposição Canto I, EE. 1, 2 e 3

O poeta pretende cantar/ elogiar:

Estrofe 1 • as façanhas guerreiras dos homens ilustres que se fizeram heróis devassando o mar desconhecido e fundando no Oriente um novo Reino.

Estrofe 2 • os Reis que dilataram a Fé e o Império em África e na Ásia (vv. 1 a 4). • todos aqueles que por obras valorosas se tornaram imortais, aqueles que no passado, no presente e mesmo no futuro, pelas obras realizadas, ficaram na memória dos homens (vv. 5 a 8).

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Proposição Canto I, EE. 1, 2 e 3

Os novos elementos são os seus (do poeta) HERÓIS:

Estrofe 3 1. são superiores aos das antigas epopeias – o sábio Grego e o Troiano e não são lendários. 2. são superiores aos grandes heróis reais e conquistadores – Alexandre Magno e Trajano.

“o peito ilustre Lusitano “ (v. 5)

os portugueses = herói coletivo

Os Lusíadas

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Proposição Canto I, EE. 1, 2 e 3

A importância das formas verbais: “cessem”, “cale-se” e “cesse” Estrofe 3, vv. 1, 3 e 7 • Apesar de estarem no presente do conjuntivo, as três

formas verbais transmitem a ideia de ordem (imperativo = deixem de elogiar os heróis antigos). Para o poeta, os feitos dos outros heróis até agora venerados não têm comparação com os dos portugueses que merecem, por isso, ser dignificados – “Que outro valor mais alto se

alevanta” (v. 8).

DESCOBRIMENTOS

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Proposição Canto I, EE. 1, 2 e 3

Figuras de retórica (figuras de estilo) Sinédoque (1) • “Ocidental praia Lusitana” (E 1, v. 2): o poeta utiliza a palavra “praia”, referindo-se a todo o país - Portugal.

• (1) Sinédoque consiste na translação do significado de uma palavra para outra, fundando-se na relação entre a parte e o todo ou entre o todo e a parte.

Metonímia (2)

Antonomásia (3)

Hipérbole (4)

• “peito ilustre lusitano” (E. 3, v. 5): o ilustre povo Lusitano.

• "O sábio Grego... // O troiano..." (= Ulisses) (E. 3, v. 1): utilização de um nome sugestivo, grandioso ou não, em vez do nome próprio.

• “Mais do que prometia a força humana” (E. 1, v. 6): o poeta engrandece mais os portugueses, pois afirma que eles foram além do que era legítimo esperar de qualquer ser humano.

• (2) A metonímia é uma figura de estilo do nível semântico que consiste em designar uma realidade por meio de outra realidade relacionada com a primeira, por contiguidade ou proximidade.

• (3) Antonomásia utilização de um nome sugestivo, grandioso ou não, em vez do nome próprio

• (4) Hipérbole consiste no aumento ou na dimensão excessivos da força semântico pragmática de um enunciado, com finalidades encomiásticas ou satíricas em relação aos referentes em causa. 15


Proposição Canto I, EE. 1, 2 e 3

Planos narrativos: Na Proposição estão patentes os 4 planos narrativos da obra: • Plano da Viagem “Por mares nunca dantes navegados, / Passaram ainda além da Taprobana,” (E. 1, vv. 3 e 4)

• Plano do poeta “Cantando espalharei por toda a parte, / Se a tanto me ajudar o engenho e arte.” (E. 2, vv. 7 e 8) • Plano da História de Portugal “E também as memórias gloriosas / Daqueles Reis que foram dilatando” (E. 2, vv. 1 e 2)

•Plano mitológico “A quem Neptuno e Marte obedeceram:” (E. 3, v. 6) 16


Início da narração “in media res” Canto I, E. 19 19

Já no largo Oceano navegavam, As inquietas ondas apartando; Os ventos brandamente respiravam, Das naus as velas côncavas inchando; Da branca escuma os mares se mostravam Cobertos, onde as proas vão cortando As marítimas águas consagradas, Que do gado de Próteo são cortadas,

Estrutura externa:

Canto I, E 19

Narração

“ in media res”

A narração da ação central, pormenores da viagem, inicia-se quando esta já vai a meio, Oceano Índico. A este processo narrativo de iniciar a narração “a meio” chamamos “in media res” e constitui uma regra das antigas epopeias greco-romanas.

Estrutura interna: 4ª parte

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Início da narração “in media res” Canto I, E. 19

• Narrador Vasco da Gama • Narratário Rei de Melinde

• Plano da Viagem “Já no largo Oceano navegavam, (E. 19, v. 1)

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Início da narração “in media res” Canto I, E. 19 Estrofe 19 • A partir da estrofe 19, Canto I, Camões começa a narrar os factos da História de Portugal, a narração da ação central - viagem de Vasco da Gama à Índia -intervalada por outros episódios. Esta é a parte mais longa e também a mais importante do poema, começando no Canto I até ao final, Canto X. • N o i n í c i o d a n a r r a ç ã o , o s n a ve g a d o re s e n c o n t ra m - s e n o C a n a l d e

Moça m bi qu e ( “ la rg o Oc ea n o ” ) . A v ia g em d ec o rre favo ra velm en t e : a s on d a s s ã o p eq u en a s , o s ven tos s op ra m b ra n d a m en te e u m a es p u m a

branca cobre as águas.

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Início da narração “in media res” Canto I, E. 19 Estrofe 19

Já no largo Oceano navegavam, As inquietas ondas apartando;

Os ventos brandamente respiravam, Das naus as velas côncavas inchando;

Da branca escuma os mares se mostravam Cobertos, onde as proas vão cortando

As marítimas águas consagradas, Que do gado de Próteo são cortadas

• Campo lexical Este grupo de palavras destacadas (a azul) está relacionado com uma mesma realidade, a navegação. Campo lexical é um conjunto de palavras que fazem parte da mesma realidade. • Adjetivo anteposto ao nome Se reparares bem, a maioria dos adjetivos (a verde) aparece antes dos nomes que qualificam. Este recurso serve para realçar as qualidades dos nomes e dar mais expressividade ao texto. Ex.: “largo Oceano” (adjetivo anteposto ao nome) é mais expressivo do que “Oceano largo”.

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Início da narração “in medias res” Canto I, E. 19

Estrofe 19

• Conjugação perifrástica (1) (...) onde as proas vão cortando” Vão

Já no largo Oceano navegavam, As inquietas ondas apartando; Os ventos brandamente respiravam,

Das naus as velas côncavas inchando; Da branca escuma os mares se mostravam

Cobertos, onde as proas vão cortando As marítimas águas consagradas,

Que do gado de Próteo são cortadas

Cortando = gerúndio

verbo auxiliar - ir verbo principal – cortar; gerúndio

•Trata-se de uma conjugação perifrástica. Se substituísses a expressão “vão cortando = gerúndio” por “cortam”, a frase ficaria correta mas perdia-se o sentido de realização gradual da ação. • (1) A conjugação perifrástica consiste na utilização de um verbo auxiliar no tempo em que se pretende conjugar, seguido do verbo principal no infinitivo ou no gerúndio. Os verbos que, normalmente, surgem como auxiliares da conjugação perifrástica são: ir, vir, andar, dever, deixar, estar, ter, haver, começar, acabar, continuar, entre outros, e podem exprimir diferentes ideias. Neste caso, o auxiliar ir marca a ideia de continuidade.

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Início da narração “in media res” Canto I, E. 19

Figuras de retórica (figuras de estilo) Animismo ou personificação (1) • “Os ventos brandamente respiravam,” (E. 19, v. 3): a viagem decorre de forma favorável, pois os ventos sopram brandamente

• (1) Animismo ou personificação - consiste em atribuir propriedades humanas a uma coisa, a um ser inanimado ou a um ente abstrato.

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Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 20

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Quando os Deuses no Olimpo luminoso, Onde o governo está da humana gente, Se ajuntam em concílio glorioso Sobre as cousas futuras do Oriente. Pisando o cristalino Céu formoso, Vêm pela Via-Láctea juntamente, Convocados da parte do Tonante, Pelo neto gentil do velho Atlante.

Estava o Padre ali sublime e dino, Que vibra os feros raios de Vulcano, Num assento de estrelas cristalino, Com gesto alto, severo e soberano. Do rosto respirava um ar divino, Que divino tornara um corpo humano; Com uma coroa e ceptro rutilante, De outra pedra mais clara que diamante.

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Deixam dos sete Céus o regimento, Que do poder mais alto lhe foi dado, Alto poder, que só co'o pensamento Governa o Céu, a Terra, e o Mar irado. Ali se acharam juntos num momento Os que habitam o Arcturo congelado, E os que o Austro tem, e as partes onde A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde.

Em luzentes assentos, marchetados De ouro e de perlas, mais abaixo estavam Os outros Deuses todos assentados, Como a razão e a ordem concertavam: Precedem os antíguos mais honrados; Mais abaixo os menores se assentavam; Quando Júpiter alto, assim dizendo, C'um tom de voz começa, grave e horrendo:

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Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 24

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"Eternos moradores do luzente Estelífero pólo, e claro assento, Se do grande valor da forte gente De Luso não perdeis o pensamento, Deveis de ter sabido claramente, Como é dos fados grandes certo intento, Que por ela se esqueçam os humanos De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

"Deixo, Deuses, atrás a fama antiga, Que coa gente de Rómulo alcançaram, Quando com Viriato, na inimiga Guerra romana tanto se afamaram; Também deixo a memória, que os obriga A grande nome, quando alevantaram Um por seu capitão, que peregrino Fingiu na cerva espírito divino.

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"Já lhe foi (bem o vistes) concedido C'um poder tão singelo e tão pequeno, Tomar ao Mouro forte e guarnecido Toda a terra, que rega o Tejo ameno: Pois contra o Castelhano tão temido, Sempre alcançou favor do Céu sereno. Assim que sempre, enfim, com fama e glória, Teve os troféus pendentes da vitória.

"Agora vedes bem que, cometendo O duvidoso mar num lenho leve, Por vias nunca usadas, não temendo De Áf rico e Noto a força, a mais se atreve: Que havendo tanto já que as partes vendo Onde o dia é comprido e onde breve, Inclinam seu propósito e porfia A ver os berços onde nasce o dia

Função sintática: • Deuses = vocativo

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Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 28

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"Prometido lhe está do Fado eterno, Cuja alta Lei não pode ser quebrada, Que tenham longos tempos o governo Do mar, que vê do Sol a roxa entrada. Nas águas têm passado o duro inverno; A gente vem perdida e trabalhada; Já parece bem feito que lhe seja Mostrada a nova terra, que deseja.

Estas palavras Júpiter dizia, Quando os Deuses por ordem respondendo, Na sentença um do outro diferia, Razões diversas dando e recebendo. O padre Baco ali não consentia No que Júpiter disse, conhecendo Que esquecerão seus feitos no Oriente, Se lá passar a Lusitana gente.

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"E porque, como vistes, têm passados Na viagem tão ásperos perigos, Tantos climas e céus experimentados, Tanto furor de ventos inimigos, Que sejam, determino, agasalhados Nesta costa africana, como amigos. E tendo guarnecida a lassa frota, Tornarão a seguir sua longa rota.“

Ouvido tinha aos Fados que viria Uma gente fortíssima de Espanha Pelo mar alto, a qual sujeitaria Da Índia tudo quanto Dóris banha, E com novas vitórias venceria A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha. Altamente lhe dói perder a glória, De que Nisa celebra inda a memória.

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Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 32

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Vê que já teve o Indo sojugado, E nunca lhe tirou Fortuna, ou caso, Por vencedor da Índia ser cantado De quantos bebem a água de Parnaso. Teme agora que seja sepultado Seu tão célebre nome em negro vaso D'água do esquecimento, se lá chegam Os fortes Portugueses, que navegam.

Estas causas moviam Citereia, E mais, porque das Parcas claro entende Que há de ser celebrada a clara Deia, Onde a gente belígera se estende. Assim que, um pela infâmia, que arreceia, E o outro pelas honras, que pretende, Debatem, e na porfia permanecem; A qualquer seus amigos favorecem.

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Sustentava contra ele Vénus bela, Afeiçoada à gente Lusitana, Por quantas qualidades via nela Da antiga tão amada sua Romana; Nos fortes corações, na grande estrela, Que mostraram na terra Tingitana, E na língua, na qual quando imagina, Com pouca corrupção crê que é a Latina.

Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura De silvestre arvoredo abastecida, Rompendo os ramos vão da mata escura, Com ímpeto e braveza desmedida; Brama toda a montanha, o som murmura, Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida: Tal andava o tumulto levantado, Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

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Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 36

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Mas Marte, que da Deusa sustentava Entre todos as partes em porfia, Ou porque o amor antigo o obrigava, Ou porque a gente forte o merecia, De entre os Deuses em pé se levantava: Merencório no gesto parecia; O forte escudo ao colo pendurado Deitando para trás, medonho e irado,

E disse assim: "Ó Padre, a cujo império Tudo aquilo obedece, que criaste, Se esta gente, que busca outro hemisfério, Cuja valia, e obras tanto amaste, Não queres que padeçam vitupério, Como há já tanto tempo que ordenaste, Não onças mais, pois és juiz direito, Razões de quem parece que é suspeito.

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A viseira do elmo de diamante Alevantando um pouco, mui seguro, Por dar seu parecer, se pôs diante De Júpiter, armado, forte e duro: E dando uma pancada penetrante, Com o conto do bastão no sólio puro, O Céu tremeu, e Apolo, de torvado, Um pouco a luz perdeu, como enfiado.

"Que, se aqui a razão se não mostrasse Vencida do temor demasiado, Bem fora que aqui Baco os sustentasse, Pois que de Luso vem, seu tão privado; Mas esta tenção sua agora passe, Porque enfim vem de estâmago danado; Que nunca tirará alheia inveja O bem, que outrem merece, e o Céu deseja.

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Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 40 "E tu, Padre de grande fortaleza, Da determinação, que tens tomada, Não tornes por detrás, pois é fraqueza Desistir-se da cousa começada. Mercúrio, pois excede em ligeireza Ao vento leve, e à seta bem talhada, Lhe vá mostrar a terra, onde se informe Da índia, e onde a gente se reforme."

Estrutura externa: Canto 1, EE. 20 a 41

Estrutura interna: 4ª parte - Narração

Narrador: o poeta – narrador heterodiegético

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Como isto disse, o Padre poderoso, A cabeça inclinando, consentiu No que disse Mavorte valeroso, E néctar sobre todos esparziu. Pelo caminho Lácteo glorioso Logo cada um dos Deuses se partiu, Fazendo seus reais acatamentos, Para os determinados aposentos

Narratário: os leitores

Plano narrativo: dos deuses ou mitológico.

Tipo do episódio: mitológico

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Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 Resumo do episódio mitológico É o consílio dos Deuses no Olimpo um modo de interligar os deuses com a viagem. Será no Olimpo que se decidirá “sobre as cousas futuras do Oriente” (E. 20, v.4) e foi este consílio convocado por Júpiter - pai dos Deuses. A disposição hierárquica, que é feita nesta reunião, apresenta-se de maneira a que os considerados deuses menores (deuses dos “sete céus”) exponham também as suas opiniões sobre o seguimento ou não da armada portuguesa em direção ao Oriente. O pai dos Deuses profere o seu discurso, anunciando a sua boa vontade do prosseguimento da viagem dos lusitanos, e que estes sejam recebidos como bons amigos na costa africana. Júpiter diz que o facto dos portugueses enfrentarem mares desconhecidos, e de estar decidido pelos Fados que o povo lusitano fará esquecer através dos seus feitos os Assírios, os Persas, os Gregos e os Romanos, é motivo para que a navegação continue. Após este discurso, são consideradas outras posições em que se destaca a oposição de Baco, pois este receia vir a perder toda a fama que havia adquirido no Oriente caso os portugueses atinjam o objetivo. Uma outra posição de destaque é a de Vénus que defende os portugueses não só por se tratar de uma gente muito semelhante à do seu amado povo latino e com uma língua derivada do Latim, como também por terem demonstrado grande valentia no norte de África. É também Marte - Deus da guerra - um Deus defensor desta gente lusitana, porque o amor antigo que o ligava a Vénus o leva a tomar essa posição e porque reconhece a bravura deste povo. No seu discurso, Marte pretende que Júpiter não volte atrás com a sua palavra e pede a Mercúrio - o Deus mensageiro - que colha informações sobre a Índia, pois começa a desconfiar da posição tomada por Baco. Este consílio termina com a decisão favorável aos portugueses e cada um dos deuses regressa ao seu domínio celeste. 29


Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 Divisão em 4 momentos lógicos: 1º momento 1. Circunstâncias e ambiente em que prosseguia a armada portuguesa, na altura do consílio dos deuses. (EE. 19-20) 2. Partida dos deuses das diversas regiões do céu e chegada ao consílio. (EE. 20-21) 3. Descrição do trono de Júpiter, da sua majestade e a ordem dos outros deuses. ( EE. 22-23)

2º momento 4. Discurso de Júpiter que determina a proteção dos Portugueses. (E. 24 a 29) 5. Introdução do Poeta à discussão gerada. (E. 30)

3º momento 6. Razões de Baco contra os Portugueses. (EE. 30-32) 7. Razões de Vénus a favor dos Portugueses. (EE. 33-34)

4º momento 11. Júpiter aceita a sugestão de Marte, despede-se dos deuses e cada um regressa ao seu aposento. (E. 41)

8. Divisão dos deuses em dois partidos. (EE. 34-35) 9. Descrição de Marte . (EE. 36-37) 10. Discurso de Marte que contradiz as razões de Baco e suplica a Júpiter que envie Mercúrio para indicar o caminho aos Portugueses. (EE. 38-40) 30


Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 Discurso de Júpiter - pai dos deuses - a favor dos portugueses: Discurso  Introdução (E. 24)  Os portugueses vão fazer esquecer outros povos

 Argumentos (EE. 25 – 28)  venceram os mouros  venceram os castelhanos  venceram os romanos  lutaram contra as forças da natureza  os Fados prometeram que eles iriam governar no Oriente  os portugueses estão cansados

 Decisão (E. 29)  os portugueses devem ser abrigados na costa africana antes de chegar à Índia. 31


Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 Argumentos dos deuses a favor e contra os portugueses: a favor Razões de Vénus • gostava da gente lusitana pelas qualidades, que via neste povo, semelhantes às do povo romano, que ela tanto amava

• gostava também dos portugueses pela língua que ela achava ser, com pouca diferença, a língua latina • sabia que seria celebrada em todos os lugares onde os portugueses chegassem Razões de Marte • o grande amor que antigamente tivera a Vénus, também favorável aos portugueses • a bravura dos portugueses, reconhecida até pelo próprio Júpiter • a falsidade das razões apresentadas por Baco (que é suspeito)

contra Razões de Baco • sabia pelos fados que os portugueses dominariam todo o Oriente, que era seu domínio e que não queria perder

• tinha dominado toda a Índia e ainda nenhum poeta tinha cantado a sua vitória, temendo agora que o seu nome caia no esquecimento, se os fortes portugueses lá chegarem (se os portugueses chegarem à Índia ganharão o estatuto de deuses, pois realizarão algo que só um deus tinha realizado; perderá o seu estatuto, pois simples humanos conseguiram igualá-lo) 32


Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 Dimensão simbólica deste episódio mitológico • Os deuses reconhecem o valor dos portugueses ao decidirem ajudá-los na conquista do seu objetivo – chegar à Índia por mar -, logo os lusos têm tanto valor e poder quanto os habitantes do Olimpo. • Valor simbólico do maravilhoso pagão em Os Lusíadas A intervenção dos deuses pagãos constitui não apenas um adorno externo do poema de Camões, tornando-o

semelhante às grandes epopeias antigas. Mas esta bela alegoria dos deuses reveste-se de um alto valor simbólico, relacionado com a própria intenção do poema: exaltar o empreendimento marítimo dos portugueses. A descoberta da Índia era tão importante que interessou às próprias divindades. A convivência das deusas, na Ilha dos Amores, com os nautas portugueses representa não apenas uma concessão formal do poeta aos processos e mentalidade renascentistas, mas insere-se dentro de uma linguagem altamente literária e simbólica: o empreendimento marítimo da descoberta da Índia era de tal forma extraordinário que o poeta se serviu dos deuses para realçar a transcendência dessa descoberta. É este portanto o valor simbólico da mitologia em Os Lusíadas: uma alegoria de exaltação do grande feito dos portugueses.

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Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41 Figuras de retórica (figuras de estilo) Perífrase (1): “(…) neto gentil do velho Atlante” (E. 20, v.8) (1) Expressão por diversas palavras daquilo que se poderia dizer mais concisamente ou apenas por uma palavra.

Perífrase: “(…) luzente / Estelífero Pólo e claro Assento” (E. 24, vv. 1 e 2)

Designação dada a Mercúrio. Designação dada ao Olimpo.

Apóstrofe (2) e perífrase: “Eternos moradores do luzente” (e. 21, v.1) (2) Apelo do autor, através de interrupções, invocando pessoas ausentes, coisas ou ideias sob forma exclamativa.

Apóstrofe com que Júpiter se dirige aos restantes deuses do Olimpo.

Perífrase: “forte gente / de Luso” (E. 24, vv. 3 e 4)

Designação dada aos portugueses.

Sinédoque: “ao Mouro” (E. 25, v.3)

Referência aos mouros.

Sinédoque: “Castelhano” (E. 25, v.5)

Referência aos castelhanos.

Perífrase: “gente de Rómulo” (E. 26, v.2)

Designação dada aos romanos.

Aliteração (3): “lenho leve” (E. 27, v.2) (3) Repetição da mesma consoante, muitas vezes na sílaba inicial de palavras contíguas, tanto no verso como na prosa. Contribui para a musicalidade e para o ritmo

Repetição do som consonântico /l /.

do verso e da prosa, gerando efeitos de harmonia imitativa.

Perífrase: “Hua gente fortíssima de Espanha” (E. 31, v.2)

Designação dada aos Portugueses.

Aliteração: “Mavorte valeroso” (E. 41, v.3)

Repetição do som consonântico /v/.34


Consílio dos Deuses Canto I, EE. 20 a 41

Adjetivo Estrofe 31 O u v i d o t i n h a a o s Fa d o s q u e v i r i a Uma gente

fortíssima de Espanha

Pelo mar alto, a qual sujeitaria

• Grau

do adjetivo

Da Índia tud o quanto D óris banha,

E com novas vitórias venceria A fama antiga, ou sua, ou fosse estranha.

A ltam ente lhe dói perder a g lória ,

Superlativo absoluto sintético: o adjetivo “fortíssima” transmite bem a ideia de grandiosidade e bravura dos Portugueses.

De que Nisa celebra inda a memória.

35


Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Estrutura externa:

Narrador: Vasco da Gama – narrador heterodiegético

Narratário: rei de Melinde

Planos narrativos: História de

Canto III,

EE.118 a 135

Portugal e do poeta (Camões manifesta repúdio pela insensibilidade do rei e dos carrascos)

Narração

Estrutura interna:

4ª parte

Tipo do episódio: lírico

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Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137

119 Tu, só tu, puro Amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.

Exposição Vasco da Gama anuncia que vai narrar um caso trágico, que aconteceu depois de D. Afonso IV ter regressado, vitorioso, da Batalha do Salado.

Introdução

118 Passada esta tão próspera vitória, Tornado Afonso à Lusitana Terra, A se lograr da paz com tanta glória Quanta soube ganhar na dura guerra, O caso triste e dino da memória, Que do sepulcro os homens desenterra, Aconteceu da mísera e mesquinha Que despois de ser morta foi Rainha.

Deste caso “triste e dino da memória” só o amor “puro” e “fero” é responsável. AMOR Força trágica responsável pela morte de Inês

37


Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137

121 Do teu Príncipe ali te respondiam As lembranças que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus formosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam, De dia, em pensamentos que voavam; E quanto, enfim, cuidava e quanto via Eram tudo memórias de alegria.

Conflito

Desenvolvimento

120 Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruto, Naquele engano da alma, ledo e cego, Que a Fortuna não deixa durar muito, Nos saudosos campos do Mondego, De teus formosos olhos nunca enxuto, Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas.

Inês é apresentada num ambiente de tranquilidade, felicidade, saudade dos tempos felizes passados com o Príncipe. Tempo de amor correspondido entre Inês e Pedro.

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Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137

123 Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o filho que tem preso, Crendo co sangue só da morte indina Matar do firme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada fina Que pôde sustentar o grande peso Do furor Mauro, fosse alevantada Contra uã fraca dama delicada?

Conflito

Desenvolvimento

122 De outras belas senhoras e Princesas Os desejados tálamos enjeita, Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas Quando um gesto suave te sujeita. Vendo estas namoradas estranhezas, O velho pai sesudo, que respeita O murmurar do povo e a fantasia Do filho, que casar-se não queria,

São apresentadas as causas da oposição do rei D. Afonso IV e condenação de Inês: • acalmar a ira do povo (E. 122)

• acabar com aquela relação amorosa, que não era do agrado de muitos portugueses (E. 123)

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Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137

125 Pera o céu cristalino alevantando, Com lágrimas, os olhos piedosos (Os olhos, porque as mãos lhe estava atando Um dos duros ministros rigorosos); E depois nos mininos atentando, Que tão queridos tinha e tão mimosos, Cuja orfindade como mãe temia, Pera o avô cruel assim dizia:

Conflito

• No dia fatal, D. Inês é trazida à presença

do rei que por ela sente piedade mas o

Desenvolvimento

124 Traziam-na os horríficos algozes Ante o Rei, já movido a piedade; Mas o povo, com falsas e ferozes Razões, à morte crua o persuade. Ela, com tristes e piedosas vozes, Saídas só da mágoa e saudade Do seu Príncipe e filhos, que deixava, Que mais que a própria morte a magoava,

povo e os “algozes” persistem nos seus intentos. (E.124)

• D. Inês, rodeada pelos seus filhos, pede

súplica ao rei, invocando os seguintes argumentos (E. 125):

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Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Argumentos de Inês apresentados ao rei D. Afonso IV: (EE. 126 a 129) 126 - «Se já nas brutas feras, cuja mente Natura fez cruel de nascimento, E nas aves agrestes, que somente Nas rapinas aéreas têm o intento, Com pequenas crianças viu a gente Terem tão piadoso sentimento Como com a mãe de Nino já mostraram, E cos irmãos que Roma edificaram:

128 E se, vencendo a Maura resistência, A morte sabes dar com fogo e ferro Sabe também dar vida com clemência A quem pera perdê-la não fez erro. Mas, se to assim merece esta inocência, Põe-me em perpétuo e mísero desterro, Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente, Onde em lágrimas viva eternamente.

127 Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito

(Se de humano é matar ua donzela, Fraca e sem força, só por ter subjeito O coração a quem soube vencê-la), A estas criancinhas tem respeito, Pois o não tens à morte escura dela; Mova-te a piedade sua e minha, Pois te não move a culpa que não tinha.

Oração subordinada adjetiva relativa explicativa

129 Põe-me onde se use toda a feridade, Entre liões e tigres, e verei Se neles achar posso a piedade Que entre peitos humanos não achei. Ali, co amor intrínseco e vontade Naquele por quem mouro, criarei Estas relíquias suas, que aqui viste, Que refrigério sejam da mãe triste.» 41


Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Argumentos de Inês apresentados ao rei D. Afonso IV: (EE. 126 a 129) Desenvolvimento/ Conflito

• Até os animais ferozes e as aves de rapina têm piedade para com as crianças (E. 126).

• Não é humano matar uma donzela fraca e sem força só por amar a quem a conquistou (E. 127, vv. 1 a 4). • Devia ter respeito por aquelas crianças, filhos de Inês e, por suposto, netos dele. (E. 127, vv. 5 a 8) • Devia saber dar a vida, tal como soube dar a morte na guerra contra os Mouros (E. 128). • Se, apesar da sua inocência, a quiser castigar, que a desterre para uma região gelada ou tórrida ou para junto das feras, onde possa criar os filhos de Pedro (E. 129).

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Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Desenvolvimento/ Conflito 130 Queria perdoar-lhe o Rei benino, Movido das palavras que o magoam; Mas o pertinaz povo e seu destino (Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. Arrancam das espadas de aço fino Os que por bom tal feito ali apregoam. Contra uã dama, ó peitos carniceiros, Feros vos amostrais - e cavaleiros?

131 Qual contra a linda moça Policena, Consolação extrema da mãe velha, Porque a sombra de Aquiles a condena, Co ferro o duro Pirro se aparelha; Mas ela, os olhos com que o ar serena (Bem como paciente e mansa ovelha) Na mísera mãe postos, que endoudece, Ao duro sacrifício se oferece:

132 Tais contra Inês os brutos matadores, No colo de alabastro, que sustinha As obras com que Amor matou de amores Aquele que depois a fez Rainha, As espadas banhando, e as brancas flores, Que ela dos olhos seus regadas tinha, Se encarniçavam, férvidos e irosos, No futuro castigo não cuidosos.

Face aos argumentos de súplica e de defesa de Inês, o rei hesita (E. 130, vv. 1 e 2), mas face à insistência do povo e dos algozes (E.. 130, vv. 3 e 4), é perpetrado o bárbaro assassínio de Inês de Castro pelos algozes, (E. 130, vv. 5 a 8; EE. 131 e 132), comparando o poeta esta cruel ação com a bárbara morte da linda moça Policena.

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Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Evolução psicológica do rei D. Afonso IV: (EE. 124 e 130) Desenvolvimento/ Conflito Evolução psicológica do rei D. Afonso IV • no início, toma a decisão de mandar matar Inês, devido ao “murmurar do povo”. • quando os “horríficos algozes” trazem Inês à sua presença, já está inclinado a perdoar (“já movido a piedade”). (E. 124, v.2)

• mas o povo incita-o a matá-la (E. 124, vv. 3-4) • no fim do discurso de Inês, comovido pelas suas palavras “Queria perdoar-lhe o rei benigno” (E. 130, v.1), mas o povo e o destino não deixaram (E. 130, vv. 3-4).

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Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Conclusão/ Desenlace 133 Bem puderas, ó Sol, da vista destes, Teus raios apartar aquele dia, Como da seva mesa de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia! Vós, ó côncavos vales, que pudestes A voz extrema ouvir da boca fria, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes!

134 Assim como a bonina, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lacivas maltratada Da minina que a trouxe na capela, O cheiro traz perdido e a cor murchada: Tal está, morta, a pálida donzela, Secas do rosto as rosas e perdida A branca e viva cor, com a doce vida.

135 As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando memoraram, E, por memória eterna, em fonte pura As lágrimas choradas transformaram. O nome lhe puseram, que inda dura, Dos amores de Inês, que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água e o nome Amores!

O narrador (Vasco da Gama) faz considerações finais sobre este “triste caso”, que reprova emocionalmente (EE. 133 a 135); • Inês de Castro é comparada depois de morta a uma flor silvestre que, colhida e maltratada por uma criança, perde a cor e o perfume (E. 134); • A história trágica da morte de Inês é imortalizada em Coimbra, local onde aconteceu. Durante muito tempo, as ninfas do Mondego recordaram Inês com lágrimas que se transformaram numa fonte a que chamaram “dos amores de Inês” (E. 135). 45


Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Conclusão/ Desenlace 133 Bem puderas, ó Sol, da vista destes, Teus raios apartar aquele dia, Como da seva mesa de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia! Vós, ó côncavos vales, que pudestes A voz extrema ouvir da boca fria, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes!

135 As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando memoraram, E, por memória eterna, em fonte pura As lágrimas choradas transformaram. O nome lhe puseram, que inda dura, Dos amores de Inês, que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água e o nome Amores!

Indícios de lirismo 134 Assim como a bonina, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lacivas maltratada Natureza que comunga com a protagonista Da minina que a trouxe na capela, O cheiro traz perdido e a cor murchada: Tal está, morta, a pálida donzela, Recurso a metáforas e comparações que estão ligadas à Secas do rosto as rosas e perdida natureza A branca e viva cor, com a doce vida. O Amor é culpado 46


Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Conclusão/ Desenlace 136 Não correu muito tempo que a vingança Não visse Pedro das mortais feridas, Que, em tomando do Reino a governança, A tomou dos fugidos homicidas. Do outro Pedro cruíssimo os alcança, Que ambos, imigos das humanas vidas, O concerto fizeram, duro e injusto, Que com Lépido e António fez Augusto.

137 Este, castigador foi rigoroso De latrocínios, mortes e adultérios: Fazer nos maus cruezas, fero e iroso, Eram os seus mais certos refrigérios. As cidades guardando justiçoso De todos os soberbos vitupérios, Mais ladrões castigando à morte deu, Que o vagabundo Aleides ou Teseu.

A vingança de D. Pedro • Mal subiu ao trono, D. Pedro fez um acordo com outro Pedro crudelíssimo (o rei de Castela), tendo conseguido que os homicidas de Inês lhe fossem entregues (E. 136). • Durante o seu reinado, foi implacável com os criminosos, defendeu as cidades com a opressão dos poderosos e mandou matar muitos ladrões (E. 137).

47


Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Características da tragédia clássica •A ação é trágica, atingindo o seu ponto culminante com a morte da protagonista (Inês de Castro); • Personagens da classe nobre: “depois de ser morta foi rainha” (E. 118, v.8) • Ao longo da ação, surgem os sentimentos fundamentais da tragédia: - o horror - a piedade • Respeito pela lei das três unidades: - ação - espaço - tempo • Intervenção do destino, da fatalidade • A função do coro pode ver-se nas intervenções emocionais do poeta, que vai comentando apaixonadamente o desenrolar da ação (E. 119, vv. 5 a 8; e toda a parte final, desde os dois últimos versos da estrofe 130 até ao fim). 48


Inês de Castro Canto III, EE. 118 a 137 Figuras de retórica (figuras de estilo) Perífrase: “Lusitana Terra” Designa Portugal.

Designa Portugal.

Perífrase: “(…) da mísera e mesquinha / Que despois de ser morta foi Rainha”

Designa D. Inês de Castro

Apóstrofe: “Tu”

O poeta dirige-se ao amor, o qual aparece personificado. É ele o causador da morte de D. Inês de Castro.

Adjetivação de valor negativo: “com tirano”.

força crua”, “fero amor”, “áspero e

Emprego da maiúscula na grafia da palavra “Amor” Metáfora: “doce fruito”

Metáfora = consiste em designar um objeto ou ideia por uma palavra que convém a outro objeto ou outra ideia - ligados aqueles por uma analogia. A metáfora é, num único, os dois termos da comparação sem a partícula comparativa (como).

Perífrase: “O nome que no peito escrito tinhas”

Eufemismo: “Tirar Inês ao mundo”

Eufemismo = expressão que atenua ou modifica o sentido violento, mau ou desonesto da narrativa.

A adjetivação apresenta o Amor como devorador insaciável da alegria humana, implacável nos sacrifícios que exige.

Desta forma, o poeta personifica o amor. A felicidade é comparada a um fruto doce sem que seja utilizado um termo comparativo. Designa D. Pedro.

Esta expressão suaviza a ideia de morte.

Perífrase: “Os que por bom tal feito ali apregoam”

Designa os conselheiros.

Questão retórica: “Que furor consentiu que a espada fina/ Que pôde sustentar o grande peso / Do furor Mauro, fosse alevantada / Contra hua fraca dama delicada?”; Contra hua dama, ó peitos carniceiros, / feros vos amostrais e cavaleiros?”

As questões retóricas encerram uma condenação da decisão real, constituindo uma marca da subjetividade do poeta.

Comparação: “Qual contra a linda Polycena / (…) Tais contra Inês os brutos matadores”

A morte de D. Inês é comparada à de Polycena através do termo comparativo “qual”.

Perífrase: “Aquele que despois a fez Rainha”

Designa D. Pedro.

Comparação: “Assi como a bonina, que cortada / Antes do tempo foi (…) / Tal está, morta, a pálida donzela”

D. Inês é comparada a uma flor cortada antes do tempo através da 49 expressão comparativa “assi como (…) tal”.


Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 19

Estrutura externa: Canto IV, Narrador: Vasco da Gama – narrador heterodiegético

EE. 28 a 45

Narração

Narratário: rei de Melinde Plano narrativo: História de Portugal

Estrutura interna:

Tipo do episódio: bélico

4ª parte

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Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 28

Deu sinal a trombeta Castelhana, Horrendo, fero, ingente e temeroso; Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana Atrás tornou as ondas de medroso. Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana; Correu ao mar o Tejo duvidoso; E as mães, que o som terríbil escuitaram, Aos peitos os filhinhos apertaram. 29 Quantos rostos ali se vêm sem cor, Que ao coração acode o sangue amigo! Que, nos perigos grandes, o temor É maior muitas vezes que o perigo. E se o não é, parece-o; que o furor De ofender ou vencer o duro imigo Faz não sentir que é perda grande e rara Dos membros corporais, da vida cara.

30

Começa-se a travar a incerta guerra: De ambas partes se move a primeira ala; Uns leva a defensão da própria terra, Outros as esperanças de ganhá-la. Logo o grande Pereira, em quem se encerra Todo o valor, primeiro se assinala: Derriba e encontra e a terra enfim semeia Dos que a tanto desejam, sendo alheia. 31 Já pelo espesso ar os estridentes Farpões, setas e vários tiros voam; Debaxo dos pés duros dos ardentes Cavalos treme a terra, os vales soam. Espedaçam-se as lanças, e as frequentes Quedas co as duras armas tudo atroam. Recrecem os imigos sobre a pouca Gente do fero Nuno, que os apouca.

Sensações auditivas

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Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 32

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Eis ali seus irmãos contra ele vão (Caso feio e cruel!); mas não se espanta, Que menos é querer matar o irmão, Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta. Destes arrenegados muitos são No primeiro esquadrão, que se adianta Contra irmãos e parentes (caso estranho), Quais nas guerras civis de Júlio [e] Magno.

Rompem-se aqui dos nossos os primeiros, Tantos dos inimigos a eles vão! Está ali Nuno, qual pelos outeiros De Ceita está o fortíssimo lião Que cercado se vê dos cavaleiros Que os campos vão correr de Tutuão: Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso, Torvado um pouco está, mas não medroso;

33

35

Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano, Catilina, e vós outros dos antigos Que contra vossas pátrias com profano Coração vos fizestes inimigos: Se lá no reino escuro de Sumano Receberdes gravíssimos castigos, Dizei-lhe que também dos Portugueses Alguns tredores houve algũas vezes.

Com torva vista os vê, mas a natura Ferina e a ira não lhe compadecem Que as costas dê, mas antes na espessura Das lanças se arremessa, que recrecem. Tal está o cavaleiro, que a verdura Tinge co sangue alheio; ali perecem Alguns dos seus, que o ânimo valente Perde a virtude contra tanta gente.

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Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 36

38

Sentiu Joane a afronta que passava Nuno, que, como sábio capitão, Tudo corria e via e a todos dava, Com presença e palavras, coração. Qual parida lioa, fera e brava, Que os filhos, que no ninho sós estão, Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara, O pastor de Massília lhos furtara,

Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro, Que entre as lanças e setas e os arneses Dos inimigos corro e vou primeiro; Pelejai, verdadeiros Portugueses!» Isto disse o magnânimo guerreiro E, sopesando a lança quatro vezes, Com força tira; e deste único tiro Muitos lançaram o último suspiro.

37

39

Corre raivoso e freme e com bramidos Os montes Sete Irmãos atroa e abala: Tal Joane, com outros escolhidos Dos seus, correndo acode à primeira ala: – «Ó fortes companheiros, ó subidos Cavaleiros, a quem nenhum se iguala, Defendei vossas terras, que a esperança Da liberdade está na nossa lança!

Porque eis os seus, acesos novamente Dũa nobre vergonha e honroso fogo, Sobre qual mais, com ânimo valente, Perigos vencerá do Márcio jogo, Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente; Rompem malhas primeiro e peitos logo. Assi recebem junto e dão feridas, Como a quem já não dói perder as vidas.

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Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 40

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A muitos mandam ver o Estígio lago, Em cujo corpo a morte e o ferro entrava. O Mestre morre ali de Santiago, Que fortissimamente pelejava; Morre também, fazendo grande estrago, Outro Mestre cruel de Calatrava. Os Pereiras também, arrenegados, Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.

Aqui a fera batalha se encruece Com mortes, gritos, sangue e cutiladas; A multidão da gente que perece Tem as flores da própria cor mudadas. Já as costas dão e as vidas; já falece O furor e sobejam as lançadas; Já de Castela o Rei desbaratado Se vê e de seu propósito mudado.

41

43

Muitos também do vulgo vil, sem nome, Vão, e também dos nobres, ao Profundo, Onde o trifauce Cão perpétua fome Tem das almas que passam deste mundo. E por que mais aqui se amanse e dome A soberba do imigo furibundo, A sublime bandeira Castelhana Foi derribada òs pés da Lusitana.

O campo vai deixando ao vencedor, Contente de lhe não deixar a vida. Seguem-no os que ficaram, e o temor Lhe dá, não pés, mas asas à fugida. Encobrem no profundo peito a dor Da morte, da fazenda despendida, Da mágoa, da desonra e triste nojo De ver outrem triunfar de seu despojo.

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Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 44

Resumo do episódio bélico

Está Vasco da Gama a contar a História de Portugal ao Rei de Melinde, referindo a morte de D. Fernando e respetivas consequências, e referindo também D. João, Mestre de Avis, e toda a sua história de nomeação a Regedor e Defensor do Reino. Dá desenlace à batalha contra Castela que se travou em 14 de agosto de 1383. O Rei de Castela invade Portugal e poucos eram os que queriam combater pela Pátria. Mas os que estavam dispostos a defender o seu Reino, onde se destacava Nuno Álvares Pereira, iriam defende-lo com a convicção da vitória, pois o país vizinho tinha enfraquecido bastante no reinado de D. Fernando e D. João I era garantia de valor e sucesso e nunca Portugal tinha saído derrotado dos combates contra os 45 Castelhanos. No início desta batalha, o som da trombeta castelhana causa efeitos O vencedor Joane esteve os dias não só nos guerreiros, como nas mães, que apertam os filhos ao peito, e Costumados no campo, em grande glória; também na natureza: o Guadiana, o Alentejo, o Tejo ficam assustados! Com ofertas, despois, e romarias, Na descrição da batalha, destacam-se as atuações de Nuno Álvares As graças deu a Quem lhe deu vitória. Pereira e de D. João, Mestre de Avis; salienta-se também o facto dos Mas Nuno, que não quer por outras vias irmãos de Nuno combaterem contra a própria Pátria, acabando por Entre as gentes deixar de si memória morrer numa batalha em que foram traidores de Portugal. Senão por armas sempre soberanas, No final, Camões refere o desânimo e a fuga dos Castelhanos, que Pera as terras se passa Transtaganas. novamente foram derrotados pelos lusitanos. Alguns vão maldizendo e blasfemando Do primeiro que guerra fez no mundo; Outros a sede dura vão culpando Do peito cobiçoso e sitibundo, Que, por tomar o alheio, o miserando Povo aventura às penas do Profundo, Deixando tantas mães, tantas esposas, Sem filhos, sem maridos, desditosas.

55


Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 Divisão do episódio bélico em 3 partes lógicas

1.

2.

3.

Início da batalha – EE. 28 e 29

Narração da batalha – EE. 30 a 42

Vitória dos portugueses – EE. 43 a 45

56


Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 28

1ª parte

Figuras de retórica

Introdução

Expressividade

(EE. 28 e 29) Deu sinal a trombeta Castelhana, • Síntese Horrendo, fero, ingente e temeroso; • A trombeta castelhana Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana dá o sinal para a guerra Atrás tornou as ondas de medroso. Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana; e este ecoa por toda a Península Ibérica, Correu ao mar o Tejo duvidoso; desde o Cabo Finisterra E as mães, que o som terríbil escuitaram, ao Guadiana, desde o Aos peitos os filhinhos apertaram. Douro ao Alentejo. As mães apertam os filhos 29 contra os peitos. Há rostos sem cor e o Quantos rostos ali se vêm sem cor, terror é grande, muitas vezes maior do que o Que ao coração acode o sangue amigo! próprio perigo. Durante Que, nos perigos grandes, o temor o combate as pessoas, É maior muitas vezes que o perigo. com o furor de vencer, E se o não é, parece-o; que o furor esquecem-se do perigo De ofender ou vencer o duro imigo e da possibilidade de Faz não sentir que é perda grande e rara ficarem feridas ou Dos membros corporais, da vida cara. mesmo de perderem a própria vida.

• 0 poeta realça logo o tremendo sinal de combate, dado pelos castelhanos, por meio dos adjetivos horrendo, fero, ingente, temeroso, som terríbil. Com o fim de realçar o efeito produzido por esse tremendo som da trombeta castelhana, há a personificação de seres da natureza física (o monte, os rios) que, eles próprios, tremeram frente a esse terrível sinal de guerra. Associada à personificação surge também a hipérbole: o Guadiana atrás tornou as ondas de medroso; correu ao mar o Tejo duvidoso. Como símbolo do medo e terror deste som da guerra aparece a ternura das mães, aos peitos os filhinhos apertando. O efeito deste sinal de guerra é ainda realçado pelos rostos macilentos (quantos rostos ali se vêem sem cor). Para realçar este pavor que precedeu a própria batalha, o poeta afirma, a jeito de conclusão, que nos perigos grandes, o temor é maior muitas vezes que o perigo. 57


Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45 2ª parte Desenvolvimento

Figuras de retórica E NÃO SÓ...

(EE. 30 e 42)

Expressividade

• Síntese

• E. 31

• A guerra começa. Uns são movidos pela defesa da sua própria terra e outros pelo desejo de vitória. Os inimigos são muito numerosos, mas os portugueses defendemse com bravura. D. Nuno Álvares Pereira destaca-se na luta. D. Diogo e D. Pedro Pereira, irmãos de Nuno Álvares Pereira, estão a combater contra ele, “(caso feio e cruel)” – no entanto, não tão grave como combater contra o rei e a pátria. No primeiro esquadrão há portugueses que renegaram a pátria e combatem contra seus irmãos. D. João I, sabendo que D. Nuno Álvares corria perigo, acudiu à linha da frente para apoiar os guerreiros com a sua presença e palavras de encorajamento e, com um único tiro, matou muitos adversários. Depois desta situação, os portugueses mais entusiasmados lutam sem recearem perder a vida. Muitos são feridos, muitos morrem, mas a bandeira castelhana é derrubada aos pés da lusitana. Com a queda da bandeira castelhana, a batalha tornou-se ainda mais cruel. Sem forças para combaterem, os castelhanos começam a fugir e o rei de Castela vê-se derrotado e impedido de atingir o seu propósito.

• note-se a expressividade dos adjetivos: espesso ar (a salientar que a própria atmosfera se mostrava de ar carregado), estridentes farpões, pés duros, ardentes cavalos, duras armas; a expressividade dos verbos: tiros voavam, treme a terra; vales soam, espedaçam-se as lanças, tudo atroam, recrescem os inimigos. Há também a inversão da ordem das palavras (hipérbato), ao gosto clássico. Mas o que mais impressiona nesta estrofe é a admirável harmonia imitativa (onomatopaica) que existe entre o seu corpo fónico e o barulho da batalha. Como exemplo, aponte-se a frequência das sibilantes dos três primeiros versos e do 5º, sugerindo o sibilar das setas; as aliterações verificadas sobretudo nos versos 3º e 6º; a frequência dos rr, sobretudo no versos 2º, 4º e 6º, imitando o som ríspido e rude da refrega. Há ainda o ritmo próprio do verso heroico, com os acentos na sexta e décima sílabas, a alternância de ritmos (binário e ternário) e a frequência das oclusivas (p, t, d, b, c), tudo isto sugerindo, sobretudo nos quatro primeiros versos, o tropel dos cavalos. Observe-se, finalmente, o trocadilho nos dois últimos versos pouca e apouca. Em poucos textos da nossa literatura o significante terá tanta importância como nesta estrofe 31, para dar visualidade e impressionismo à mensagem. Aqui as palavras valem quase tanto pelo seu corpo fónico (significante) como pelo seu significado, na construção da mensagem. Veja-se como o corpo fónico das palavras sublinha o seu significado nestes dois versos, em que as aliterações e a sucessão de sibilantes se aliam ao encavalgamento, para sugerirem a catadupa estilhaçante de lanças e armas nas sucessivas quedas: Espedaçam-se as lanças, e as frequentes /Quedas co as duras armas tudo atroam. 58


Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45

2ª parte

Desenvolvimento

• E. 33 • Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano, Catilina, e vós outros dos antigos Que contra vossas pátrias com profano Coração vos fizestes inimigos: Se lá no reino escuro de Sumano Receberdes gravíssimos castigos, Dizei-lhe que também dos Portugueses Alguns tredores houve algũas vezes.

Intenção e efeito da estrofe 33

• Esta intervenção emocional do poeta, apostrofando (apóstrofe) célebres traidores da pátria, serve para, a jeito de coro na tragédia, pôr em evidência e comentar o caso feio e cruel de dois irmãos de Nuno Álvares se encontrarem do lado dos castelhanos, lutando contra a sua pátria e contra seu irmão. A descrição da batalha é um episódio essencialmente cavaleiresco, dominado do princípio ao fim pela bravura patriótica de Nuno Álvares. O facto de surgirem dois irmãos, como ele portugueses (esses renegados), lutando contra a pátria e contra o irmão, além de conferir maior dramatismo à descrição pelo que há de chocante em semelhante traição, vem realçar a figura impolutamente patriótica de Nuno Álvares. A descrição da batalha de Aljubarrota é-nos dada pelo poeta sobretudo como um quadro exaltador de Nuno Álvares.

59


Batalha de Aljubarrota Canto IV, EE. 28 a 45

3ª parte Conclusão

EE. 43 a 45

• Síntese • Os castelhanos fogem vencidos e encobrem a dor das mortes, a mágoa, a desonra, maldizendo e blasfemando de quem inventou a guerra ou atribuindo a culpa à sede de poder e à cobiça. D. João I passa alguns dias no campo de batalha para comemorar e agradecer a Deus a vitória com ofertas e romarias, mas D. Nuno Álvares Pereira, que só quer ser recordado pelos feitos bélicos, desloca-se para o Alentejo.

60


Despedidas em Belém Canto IV, EE. 83 a 89 19

Narrador: Vasco da Gama – narrador autodiegético “nós” = os nautas portugueses = personagem principal

Estrutura externa: Canto IV, EE. 83 a 89

Narratário: rei de Melinde

Narração

Estrutura interna:

4ª parte

Planos narrativos: viagem e História de Portugal Assunto: Partida das naus para a Índia

Analepse

61


Despedidas em Belém Canto IV, EE. 83 a 89 83

85

Foram de Emanuel remunerados, Por que com mais amor se apercebessem, E com palavras altas animados Pera quantos trabalhos sucedessem. Assi foram os Mínias ajuntados, Pera que o Véu dourado combatessem, Na fatídica nau, que ousou primeira Tentar o mar Euxínio, aventureira.

Pelas praias vestidos os soldados De várias cores vêm e várias artes, E não menos de esforço aparelhados Pera buscar do mundo novas partes. Nas fortes naus os ventos sossegados Ondeiam os aéreos estandartes; Elas prometem, vendo os mares largos, De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos. 86

84 E já no porto da ínclita Ulisseia, Cum alvoroço nobre e cum desejo (Onde o licor mistura e branca areia Co salgado Neptuno o doce Tejo) As naus prestes estão; e não refreia Temor nenhum o juvenil despejo, Porque a gente marítima e a de Marte Estão pera seguir-me a toda a parte,

Despois de aparelhados, desta sorte, De quanto tal viagem pede e manda, Aparelhámos a alma pera a morte, Que sempre aos nautas ante os olhos anda. Pera o sumo Poder, que a etérea Corte Sustenta só co a vista veneranda, Implorámos favor que nos guiasse E que nossos começos aspirasse.

62


Despedidas em Belém Canto IV, EE. 83 a 89 87

89

Partimo-nos assi do santo templo Que nas praias do mar está assentado, Que o nome tem da terra, pera exemplo, Donde Deus foi em carne ao mundo dado. Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo Como fui destas praias apartado, Cheio dentro de dúvida e receio, Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

Em tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam, As mulheres cum choro piadoso, Os homens com suspiros que arrancavam. Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Amor mais desconfia, acrecentavam A desesperação e frio medo De já nos não tornar a ver tão cedo. Introdução

Preparação .E. 85: preparação das naus, tempo

88

. E. 83: D. Manuel anima

ameno

Ajuntamento

A gente da cidade, aquele dia, (Uns por amigos, outros por parentes, das pessoas Outros por ver somente) concorria, . E. 88: Procissão Saudosos na vista e descontentes. entre a E nós, co a virtuosa companhia capela e De mil Religiosos diligentes, Em procissão solene, a Deus orando, as naus – Pera os batéis viemos caminhando. amigos, parentes

e curiosos

.E. 86: preparação das almas – os

os marinheiros

marinheiros rezam . E. 84: euforia e não há

.E. 87: oração numa capela em

Belém – Gama sente medo e

temor por parte

tem dúvidas

daqueles que vão partir

Divisão lógica em 4 partes

Despedidas E. 89: visão global dos que

ficam 63


Despedidas em Belém Canto IV, EE. 83 a 89 83 Foram de Emanuel remunerados, Por que com mais amor se apercebessem, E com palavras altas animados Pera quantos trabalhos sucedessem. Assi foram os Mínias ajuntados, Pera que o Véu dourado combatessem, Na fatídica nau, que ousou primeira Tentar o mar Euxínio, aventureira.

84 E já no porto da ínclita Ulisseia, Cum alvoroço nobre e cum desejo (Onde o licor mistura e branca areia Co salgado Neptuno o doce Tejo) As naus prestes estão; e não refreia Temor nenhum o juvenil despejo, Porque a gente marítima e a de Marte Estão pera seguir-me a toda a parte,

• D. Manuel I custeou a viagem de Vasco da Gama e animou os marinheiros portugueses, com palavras de encorajamento, a partirem em busca do Mundo Novo, daquilo que estava para além do visível e do conhecido.

• Da mesma forma que os Argonautas, os navegadores portugueses reuniram-se antes de partir. (Os Argonautas, a bordo da nau Argo, foram em busca do “Velo de Ouro”, a lanugem de um carneiro alado, guardada por um dragão, na região de Cólquida.)

• As naus estão preparadas para a partida, no porto de Lisboa, no preciso local onde o Tejo desagua no mar. Marinheiros e soldados, ousados e corajosos, seguem lealmente o seu mestre, Vasco da Gama, para toda a parte.

•me

= Vasco da Gama narrador participante que participa como personagem principal. Portanto, narrador autodiegético.

64


Despedidas em Belém Canto IV, EE. 83 a 89 85 Pelas praias vestidos os soldados De várias cores vêm e várias artes, E não menos de esforço aparelhados Pera buscar do mundo novas partes. Nas fortes naus os ventos sossegados Ondeiam os aéreos estandartes; Elas prometem, vendo os mares largos, De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.

86 Despois de aparelhados, desta sorte, De quanto tal viagem pede e manda, Aparelhámos a alma pera a morte, Que sempre aos nautas ante os olhos anda. Pera o sumo Poder, que a etérea Corte Sustenta só co a vista veneranda, Implorámos favor que nos guiasse E que nossos começos aspirasse.

• Incide sobre os preparativos dos tripulantes para a partida, em particular, os soldados. As naus estão também preparadas, com os estandartes que se agitam com a brisa marítima. Tal como aconteceu com a nau Argos, serão um dia imortalizadas.

• Os que iam partir faziam também a preparação da “alma para a morte,/Que sempre ao nautas ante os olhos anda”, numa igreja próxima do local de embarque, rezando e implorando a Deus que os guiasse e protegesse. • Aparelhámos/ Implorámos/ nos/ nossos = Vasco da Gama (e os seus marinheiros) narrador participante que participa como personagem principal. Portanto, narrador autodiegético. 65


Despedidas em Belém Canto IV, EE. 83 a 89 87 Partimo-nos assi do santo templo Que nas praias do mar está assentado, Que o nome tem da terra, pera exemplo, Donde Deus foi em carne ao mundo dado. Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo Como fui destas praias apartado, Cheio dentro de dúvida e receio, Que apenas nos meus olhos ponho o freio. 88

A gente da cidade, aquele dia, (Uns por amigos, outros por parentes, Outros por ver somente) concorria, Saudosos na vista e descontentes. E nós, co a virtuosa companhia De mil Religiosos diligentes, Em procissão solene, a Deus orando, Pera os batéis viemos caminhando

89 Em tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam, As mulheres cum choro piadoso, Os homens com suspiros que arrancavam. Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Amor mais desconfia, acrecentavam A desesperação e frio medo De já nos não tornar a ver tão cedo.

EE. 87, 88 e 89 • Navegadores e soldados partem da ermida de Nossa Senhora de Belém, no Restelo. Trata-se de um momento que Vasco da Gama recorda com bastante emoção, realçando os seus sentimentos de “dúvida” e de medo (“receio”), antes de partir. • A procissão dirige-se da ermida até aos batéis e é presenciada por parentes, amigos e curiosos. A convicção geral era de que os que partiam não regressariam (“Por perdidos as gentes nos julgavam”) porque o caminho era “longo” e “duvidoso”. • As mulheres choravam, os homens suspiravam e as mães, as esposas e as irmãs sentiam a angústia e o medo por considerarem que não veriam tão cedo os seus entes queridos. 66


Despedidas em Belém Canto IV, EE. 83 a 89 Estrofe/ verso

Figuras de retórica

84, v.7

Perífrase

“Porque a gente marítima e a de Marte”

86, vv. 4 e 5

Perífrase

“ Que sempre as nautas ante os olhos anda/ Pera o sumo Poder, que a etérea Corte”

87, vv. 2 e 3

Anáfora

“ Que nas praias do mar está assentado,/ Que o nome tem da terra, pêra exemplo,”

87, v. 5

Apóstrofe

“ Certifico-me, ó Rei, que, se contemplo”

89, v. 5

Enumeração

“Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso”

(figuras de estilo)

Exemplo

67


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 19

Narrador: Vasco da Gama – narrador autodiegético = personagem principal

Estrutura externa: Canto V

Narratário: rei de Melinde

EE. 39 a 60

Narração

Planos narrativos: viagem e História de Portugal Tipo de episódio: simbólico

Estrutura interna:

4ª parte

Valorizar e exaltar as capacidades do povo luso (a força, a coragem e a persistência – a luta para conseguir alcançar o objetivo pretendido) 68


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 39

41

Não acabava, quando uma figura Se nos mostra no ar, robusta e válida, De disforme e grandíssima estatura, O rosto carregado, a barba esquálida, Os olhos encovados, e a postura Medonha e má, e a cor terrena e pálida, Cheios de terra e crespos os cabelos, A boca negra, os dentes amarelos.

E disse: — "Ó gente ousada, mais que quantas No mundo cometeram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, E por trabalhos vãos nunca repousas, Pois os vedados términos quebrantas, E navegar meus longos mares ousas, Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, Nunca arados d'estranho ou próprio lenho:

40

42

Tão grande era de membros, que bem posso Certificar-te, que este era o segundo De Rodes estranhíssimo Colosso, Que um dos sete milagres foi do mundo: Com um tom de voz nos fala horrendo e grosso, Que pareceu sair do mar profundo: Arrepiam-se as carnes e o cabelo A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.

- Pois vens ver os segredos escondidos Da natureza e do húmido elemento, A nenhum grande humano concedidos De nobre ou de imortal merecimento, Ouve os danos de mim, que apercebidos Estão a teu sobejo atrevimento, Por todo o largo mar e pela terra, Que ainda hás de sojugar com dura guerra.

69


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 43

45

- Sabe que quantas naus esta viagem Que tu fazes, fizerem de atrevidas, Inimiga terão esta paragem Com ventos e tormentas desmedidas. E da primeira armada que passagem Fizer por estas ondas insofridas, Eu farei d'improviso tal castigo, Que seja mor o dano que o perigo.

- É do primeiro Ilustre, que a ventura Com fama alta fizer tocar os Céus, Serei eterna e nova sepultura, Por juízos incógnitos de Deus. Aqui porá da Turca armada dura Os soberbos e prósperos troféus; Comigo de seus danos o ameaça A destruída Quíloa com Mombaça.

44

46

- Aqui espero tomar, se não me engano, De quem me descobriu, suma vingança. E não se acabará só nisto o dano Da vossa pertinace confiança; Antes em vossas naus vereis cada ano, Se é verdade o que meu juízo alcança, Naufrágios, perdições de toda sorte, Que o menor mal de todos seja a morte.

- Outro também virá de honrada fama, Liberal, cavaleiro, enamorado, E consigo trará a formosa dama Que Amor por grã mercê lhe terá dado. Triste ventura e negro fado os chama Neste terreno meu, que duro e irado Os deixará dum cru naufrágio vivos Para verem trabalhos excessivos.

Futuro = profecias

70


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 47

49

- Verão morrer com fome os filhos caros, Em tanto amor gerados e nascidos; Verão os Cafres ásperos e avaros Tirar à linda dama seus vestidos; Os cristalinos membros e perclaros A calma, ao frio, ao ar verão despidos, Depois de ter pisada longamente Cos delicados pés a areia ardente.

Mais ia por diante o monstro horrendo Dizendo nossos fados, quando alçado Lhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendo Corpo certo me tem maravilhado.A boca e os olhos negros retorcendo, E dando um espantoso e grande brado, Me respondeu, com voz pesada e amara, Como quem da pergunta lhe pesara:

48

50

- E verão mais os olhos que escaparem De tanto mal, de tanta desventura, Os dois amantes míseros ficarem Na férvida e implacável espessura. Ali, depois que as pedras abrandarem Com lágrimas de dor, de mágoa pura, Abraçados as almas soltarão Da formosa e misérrima prisão."

- Eu sou aquele oculto e grande Cabo, A quem chamais vós outros Tormentório, Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo, Plínio, e quantos passaram, fui notório. Aqui toda a Africana costa acabo Neste meu nunca visto Promontório, Que para o Pólo Antarctico se estende, A quem vossa ousadia tanto ofende!

71


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 51

53

- Fui dos filhos aspérrimos da Terra, Qual Encélado, Egeu e o Centimano; Chamei-me Adamastor, e fui na guerra Contra o que vibra os raios de Vulcano; Não que pusesse serra sobre serra, Mas conquistando as ondas do Oceano, Fui capitão do mar, por onde andava A armada de Neptuno, que eu buscava.

- Como fosse impossível alcançá-la Pela grandeza feia de meu gesto, Determinei por armas de tomá-la, E a Dóris este caso manifesto. De medo a Deusa então por mim lhe fala; Mas ela, com um formoso riso honesto, Respondeu: — "Qual será o amor bastante De Ninfa que sustente o dum Gigante?

52

54

- Amores da alta esposa de Peleu Me fizeram tomar tamanha empresa. Todas as Deusas desprezei do céu, Só por amar das águas a princesa. Um dia a vi coas filhas de Nereu Sair nua na praia, e logo presa A vontade senti de tal maneira Que ainda não sinto coisa que mais queira.

- Contudo, por livrarmos o Oceano De tanta guerra, eu buscarei maneira, Com que, com minha honra, escuse o dano." Tal resposta me torna a mensageira. Eu, que cair não pude neste engano, (Que é grande dos amantes a cegueira) Encheram-me com grandes abondanças O peito de desejos e esperanças.

72


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 55 - Já néscio, já da guerra desistindo, Uma noite de Dóris prometida, Me aparece de longe o gesto lindo Da branca Tétis única despida: Como doido corri de longe, abrindo Os braços, para aquela que era vida Deste corpo, e começo os olhos belos A lhe beijar, as faces e os cabelos. 56

- Oh! Que não sei de nojo como o conte! Classe de Que, crendo ter nos braços quem amava, palavras: Abraçado me achei com um duro monte De áspero mato e de espessura brava. Estando com um penedo fronte a fronte, • Interjeição Que eu pelo rosto angélico apertava Não fiquei homem não, mas mudo e quedo, E junto dum penedo outro penedo.

57 - Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano, Já que minha presença não te agrada, Que te custava ter-me neste engano, Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada? Daqui me parto irado, e quase insano Da mágoa e da desonra ali passada, A buscar outro inundo, onde não visse Quem de meu pranto e de meu mal se risse,

58 - Eram já neste tempo meus irmãos Vencidos e em miséria extrema postos; E por mais segurar-se os Deuses vãos, Alguns a vários montes sotopostos: E como contra o Céu não valem mãos, Eu, que chorando andava meus desgostos, Comecei a sentir do fado inimigo Por meus atrevimentos o castigo.

73


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 59 - Converte-se-me a carne em terra dura, Em penedos os ossos se fizeram; Estes membros que vês e esta figura Por estas longas águas se estenderam; Enfim, minha grandíssima estatura Neste remoto cabo converteram Os Deuses, e por mais dobradas mágoas, Me anda Tétis cercando destas águas." 60

Assim contava, e com um medonho choro Súbito diante os olhos se apartou; Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoro Bramido muito longe o mar soou. Eu, levantando as mãos ao santo coro Dos anjos, que tão longe nos guiou, A Deus pedi que removesse os duros Casos, que Adamastor contou futuros.

74


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 Resumo Cinco dias depois da paragem na Baía de Santa Helena, chega Vasco da Gama ao Cabo das Tormentas e é surpreendido por uma nuvem negra “tão temerosa e carregada ”que pôs nos corações dos portugueses um grande “medo” e leva Vasco da Gama a evocar o próprio Deus todo poderoso. Foi o aparecimento do Gigante Adamastor, uma figura mitológica criada por Camões para significar todos os perigos, as tempestades, os naufrágios e “perdições de toda sorte”, que os portugueses tiveram de enfrentar e transpor nas suas viagens. Esta aparição do Gigante é caracterizada direta e fisicamente com uma adjetivação abundante e é conotada a imponência da figura e o terror e estupefação de Vasco da Gama, e seus companheiros, que o leva a interrogar o Gigante quanto à sua figura, perguntando-lhe simplesmente “Quem és tu?”. Mas mesmo os gigantes têm os seus pontos fracos. Este que o Gama enfrenta é também uma vítima do amor não correspondido, e a questão de Gama leva o gigante a contar a sua história sobre o amor não correspondido. Apaixona-se pela bela Tétis que o rejeita pela “grandeza feia do seu gesto”. Decide, então, “tomá-la por armas” e revela o seu segredo a Dóris, mãe de Tétis, que serve de intermediária. A resposta de Tétis é ambígua, mas ele acredita na sua boa fé. Acaba por ser enganado. Quando na noite prometida julgava apertar o seu lindo corpo e beijar os seus “olhos belos, as faces e os cabelos”, acha-se abraçado “cum duro monte de áspero mato e de espessura brava, junto de um penedo, outro penedo”. Foi rodeado pela sua amada Tétis, o mar, sem lhe poder tocar. O discurso do Gigante, que se divide em duas partes de acordo com a intervenção de Vasco da Gama, compreende, na primeira, um caráter profético e ameaçador num tom de voz “horrendo e grosso” anunciando os castigos e os danos por si reservados para aquela “gente ousada” que invadira os seus “vedados términos nunca arados de estranho ou próprio lenho”. A segunda parte do discurso do Adamastor representa já um caráter autobiográfico, pois assistimos à evocação do passado amoroso e infeliz do próprio Camões. O Gigante Adamastor diz ainda que as naus portuguesas terão sempre “inimigo a esta paragem” através de “naufrágios, perdições de toda a sorte, que o menor mal de todos seja a morte”, a fazer lembrar as palavras proféticas do Velho do Restelo. Após o seu desabafo junto dos lusitanos, a nuvem negra “tão temerosa e carregada” desaparece e Vasco da Gama pede a Deus que remova “os duros casos que Adamastor contou futuros”. 75


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 Divisão em 4 partes lógicas:

EE. 39 e 40 aparecimento do Gigante e a sua descrição

EE. 41 a 48 discurso

EE. 49

ameaçador e

Estrofe de transição

profético do Gigante

EE. 50 a 59

E. 60

discurso

desapareci

autobiográfico

mento do

do Gigante

Gigante

76


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 EE. 41 a 48 discurso ameaçador e profético do Gigante a. reconhece a valentia dos Portugueses manifestada em muitas guerras (E. 41, vv. 1 a 4) b. declara que nunca os segredos do mar foram descobertos (E.41, vv. 5-8/ E. 42, vv. 1a 4) c. anuncia os castigos que vai lançar contra os Portugueses (E. 42, vv. 5 a 8) d. os castigos sucedem-se em progressão ascendente de grandeza (EE. 43 a 48)

demover os portugueses da viagem empreendida EE. 49 a 59 discurso autobiográfico do Gigante a. é uma vítima do amor não correspondido

b. apaixona-se pela bela Tétis que o rejeita pela “grandeza feia do seu gesto”. Decide então, “tomá-la por armas” e revela o seu segredo a Dóris, mãe de Tétis, que serve de intermediária. A resposta de Tétis é ambígua, mas ele acredita na sua boa fé

c. acaba por ser enganado. Quando na noite prometida julgava apertar o seu lindo corpo e beijar os seus “olhos belos, as faces e os cabelos”, acha-se abraçado “cum duro monte de áspero mato e de espessura brava, junto de um penedo, outro penedo”. Foi rodeado pela sua amada Tétis, o mar, sem lhe poder tocar

. 77


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 57 - Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano, Já que minha presença não te agrada, Que te custava ter-me neste engano, Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada? Daqui me parto irado, e quase insano Da mágoa e da desonra ali passada, A buscar outro inundo, onde não visse Quem de meu pranto e de meu mal se risse,

 no fim, o Adamastor surge como o anti-herói para dar lugar a heróis de carne e osso, a heróis reais  simbologia reforçada pelo facto do episódio estar colocado no centro do Canto V que também é o centro de Os Lusíadas

monte

Porque se identifica com o Cabo das Tormentas

nuvem

Desfaz-se em nuvem

sonho

Está no imaginário dos homens

nada

É o anti-herói, com a vitória dos portugueses ao chegarem à Índia

Adamastor

78


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 Este episódio é importante, pois nele se concentram as grandes linhas da epopeia: • real maravilhoso (dificuldade na passagem do cabo) • a existência de profecias (História de Portugal) • lirismo (história de amor do Gigante)

• é também um episódio trágico, de amor e morte • é um episódio épico, em que se consolida a vitória do homem sobre os elementos (água, fogo, terra, ar)

79


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 Simbologia do episódio:  o Adamastor surge como criação maravilhosa a corporizar, a simbolizar a quase intransponível força do mar

 símbolo das forças cósmicas que o homem terá de vencer se quiser da lei da morte se libertar  a destruição do Adamastor surge como o completo domínio dos mares pelos portugueses

80


O Adamastor Canto V, EE. 39 a 60 Estrofe/ verso

Figuras de retórica (figuras de estilo)

Exemplo

E.39, v. 2

Adjetivação expressiva

“Se nos mostra no mar, robusta e válida”

E.40, v. 6

Comparação

“Que pareceu sair do mar profundo”

E.41, v. 1

Apóstrofe

“E disse: - «Ó gente ousada mais que quantas» “E do primeiro Ilustre (1),que a ventura”

E.45, v. 1

Perífrase (1) D. Francisco de Almeida, vice-rei da Índia

“…as almas soltarão”/ “Da fermosa e misérrima prisão” E.48, vv. 7 e 8

Eufemismo

E. 57, v. 1

Apóstrofe e hipérbole

• Os versos transcritos suavizam a ideia de morte. “Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano”

Gradação (2) E.57, v. 4

(2) Ordenação das ideias em escala crescente ou decrescente.

“Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?”

81


Tempestade Canto VI, EE. 70 a 91 19

Narrador: o poeta – narrador heterodiegético Estrutura externa:

Narratário: os leitores

Canto V I EE. 70 a 91

Narração

Planos narrativos: viagem e História de Portugal

Tipo de episódio: naturalista (fenómenos da natureza) Estrutura interna:

4ª parte

Exaltar a coragem dos portugueses ao ultrapassar o obstáculo da tempestade e ao descobrir o caminho marítimo para a Índia

82


Tempestade Canto VI, EE. 70 a 91 70 Mas neste passo, assi prontos estando, Eis o mestre, que olhando os ares anda, O apito toca: acordam, despertando, Os marinheiros dũa e doutra banda, E, porque o vento vinha refrescando, Os traquetes das gáveas tomar manda. – «Alerta (disse) estai, que o vento crece Daquela nuvem negra que aparece!»

71 Não eram os traquetes bem tomados, Quando dá a grande e súbita procela. – «Amaina (disse o mestre a grandes brados), Amaina (disse), amaina a grande vela!» Não esperam os ventos indinados Que amainassem, mas, juntos dando nela, Em pedaços a fazem cum ruído Que o Mundo pareceu ser destruído!

72 O céu fere com gritos nisto a gente, Cum súbito temor e desacordo; Que, no romper da vela, a nau pendente Toma grão suma d' água pelo bordo. – «Alija (disse o mestre rijamente, Alija tudo ao mar, não falte acordo! Vão outros dar à bomba, não cessando; À bomba, que nos imos alagando!»

73 Correm logo os soldados animosos A dar à bomba; e, tanto que chegaram, Os balanços que os mares temerosos Deram à nau, num bordo os derribaram. Três marinheiros, duros e forçosos, A menear o leme não bastaram; Talhas lhe punham, dũa e doutra parte, Sem aproveitar dos homens força e arte.

PRIMEIRA PARTE (EE. 70 a 73): primeira fase da tempestade, observada através dos seus efeitos no interior da nau de S. Gabriel, daí o poeta recorrer ainda a algumas formas verbais perifrásticas, com os auxiliares «ir» e «vir» [“vinha refrescando” (E. 70, v. 5), “nos imos alagando” (E. 72, v. 8)] para sugerir o p r o g r e s s i v o agravamento da s i t u a ç ã o .

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Tempestade Canto VI, EE. 70 a 91 74 Os ventos eram tais que não puderam Mostrar mais força d' ímpeto cruel, Se pera derribar então vieram A fortíssima Torre de Babel. Nos altíssimos mares, que creceram, A pequena grandura dum batel Mostra a possante nau, que move espanto, Vendo que se sustém nas ondas tanto.

76 Agora sobre as nuvens os subiam As ondas de Neptuno furibundo; Agora a ver parece que desciam As íntimas entranhas do Profundo. Noto, Austro, Bóreas, Áquilo, queriam Arruinar a máquina do Mundo; A noite negra e feia se alumia Cos raios em que o Pólo todo ardia!

78 Nunca tão vivos raios fabricou Contra a fera soberba dos Gigantes O grão ferreiro sórdido que obrou Do enteado as armas radiantes; Nem tanto o grão Tonante arremessou Relâmpados ao mundo, fulminantes, No grão dilúvio donde sós viveram Os dous que em gente as pedras converteram.

75 A nau grande, em que vai Paulo da Gama, Quebrado leva o masto pelo meio, Quási toda alagada; a gente chama Aquele que a salvar o mundo veio. Não menos gritos vãos ao ar derrama Toda a nau de Coelho, com receio, Conquanto teve o mestre tanto tento Que primeiro amainou que desse o vento.

77 As Alciónias aves triste canto Junto da costa brava levantaram, Lembrando-se de seu passado pranto, Que as furiosas águas lhe causaram. Os delfins namorados, entretanto, Lá nas covas marítimas entraram, Fugindo à tempestade e ventos duros, Que nem no fundo os deixa estar seguros.

79 Quantos montes, então, que derribaram As ondas que batiam denodadas! Quantas árvores velhas arrancaram Do vento bravo as fúrias indinadas! As forçosas raízes não cuidaram Que nunca pera o céu fossem viradas, Nem as fundas areias que pudessem Tanto os mares que em cima as revolvessem.

SEGUNDA PARTE (EE. 74 a 79): acentua-se a fúria da tempestade, cuja descrição é agora menos técnica e mais retórica. O poeta utiliza uma enorme variedade de recursos estilísticos para sugerir a grande violência dos elementos: • as orações subordinadas adverbiais consecutivas (transmitem uma consequência expressa na oração subordinante. São introduzidas por conjunções e locuções consecutivas. A oração subordinada adverbial consecutiva é muitas vezes anunciada na oração subordinante por um elemento correlativo como tanto, tão, tal, de tal maneira, de tal modo) de sentido hiperbolizante • a sugestão do rápido movimento ascendente e descendente para que contribuem as formas verbais “subiam” e “desciam”, a repetição de “agora … agora”, as sensações visuais e a hipérbole 84


Tempestade Canto VI, EE. 70 a 91 80

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Vendo Vasco da Gama que tão perto Do fim de seu desejo se perdia, Vendo ora o mar até o Inferno aberto, Ora com nova fúria ao Céu subia, Confuso de temor, da vida incerto, Onde nenhum remédio lhe valia, Chama aquele remédio santo e forte Que o impossíbil pode, desta sorte:

«Se tenho novos medos perigosos Doutra Cila e Caríbdis já passados, Outras Sirtes e baxos arenosos, Outros Acroceráunios infamados; No fim de tantos casos trabalhosos, Porque somos de Ti desamparados, Se este nosso trabalho não te ofende, Mas antes teu serviço só pretende?

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– «Divina Guarda, angélica, celeste, Que os céus, o mar e terra senhoreias: Tu, que a todo Israel refúgio deste Por metade das águas Eritreias; Tu, que livraste Paulo e defendeste Das Sirtes arenosas e ondas feias, E guardaste, cos filhos, o segundo Povoador do alagado e vácuo mundo:

«Oh ditosos aqueles que puderam Entre as agudas lanças Africanas Morrer, enquanto fortes sustiveram A santa Fé nas terras Mauritanas; De quem feitos ilustres se souberam, De quem ficam memórias soberanas, De quem se ganha a vida com perdê-la, Doce fazendo a morte as honras dela!»

TERCEIRA PARTE (EE. 80 a 83) súplica de Gama para ter proteção divina, rica em:

• adjetivação expressiva

• repetições • anáforas

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Tempestade Canto VI, EE. 70 a 91 84

QUARTA PARTE (E. 84)

Assi dizendo, os ventos, que lutam

Como touros indómitos, bramando, Mais e mais a tormenta acrecentavam, Pela miúda enxárcia assoviando.

Relâmpados medonhos não cessavam, Feros trovões, que vêm representando Cair o Céu dos eixos sobre a Terra, Consigo os Elementos terem guerra.

o poeta sublinha o facto de a súplica de Vasco da Gama não ter diminuído a força da tempestade e, portanto, os recursos estilísticos usados são semelhantes aos da segunda parte:

• comparação

• adjetivação expressiva • hipérbole

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Tempestade Canto VI, EE. 70 a 91 85 Mas já a amorosa Estrela cintilava Diante do Sol claro, no horizonte, Mensageira do dia, e visitava A terra e o largo mar, com leda fronte. A Deusa que nos Céus a governava, De quem foge o ensífero Orionte, Tanto que o mar e a cara armada vira, Tocada junto foi de medo e de ira.

88 Assi foi; porque, tanto que chegaram À vista delas, logo lhe falecem As forças com que dantes pelejaram, E já como rendidos lhe obedecem; Os pés e mãos parece que lhe ataram Os cabelos que os raios escurecem. A Bóreas, que do peito mais queria, Assi disse a belíssima Oritia:

86 – «Estas obras de Baco são, por certo (Disse), mas não será que avante leve Tão danada tenção, que descoberto Me será sempre o mal a que se atreve.» Isto dizendo, dece ao mar aberto, No caminho gastando espaço breve, Enquanto manda as Ninfas amorosas Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.

89 – «Não creias, fero Bóreas, que te creio Que me tiveste nunca amor constante, Que brandura é de amor mais certo arreio E não convém furor a firme amante. Se já não pões a tanta insânia freio, Não esperes de mi, daqui em diante, Que possa mais amar-te, mas temer-te; Que amor, contigo, em medo se converte.»

87 Grinaldas manda pôr de várias cores Sobre cabelos louros a porfia. Quem não dirá que nacem roxas flores Sobre ouro natural, que Amor enfia? Abrandar determina, por amores, Dos ventos a nojosa companhia, Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas, Que mais fermosas vinham que as estrelas.

90 Assi mesmo a fermosa Galateia Dizia ao fero Noto, que bem sabe Que dias há que em vê-la se recreia, E bem crê que com ele tudo acabe. Não sabe o bravo tanto bem se o creia, Que o coração no peito lhe não cabe; De contente de ver que a dama o manda, Pouco cuida que faz, se logo abranda.

91 Desta maneira as outras amansavam Subitamente os outros amadores; E logo à linda Vénus se entregavam, Amansadas as iras e os furores. Ela lhe prometeu, vendo que amavam, Sempiterno favor em seus amores, Nas belas mãos tomando-lhe homenagem De lhe serem leais esta viagem.

QUINTA PARTE (EE. 85 a 91) intercessão de Vénus, ao nascer do dia, é que vai acabar com a tempestade. Daí o uso de: • adjetivação de conotações positivas • comparação

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Tempestade Canto VI, EE. 70 a 91 EM SÍNTESE A tempestade é um episódio

naturalista

em que se entrelaçam os planos da

viagem e o dos deuses, a realidade e a fantasia. É o último dos grandes perigos que Vasco da Gama teve de ultrapassar antes de cumprir a sua missão, a chegada à Índia. Camões deve ter aproveitado a sua própria experiência

de viajante e de náufrago para descrever de forma tão realista a natureza em fúria (relâmpagos, raios, trovões, ventos, ondas alterosas) e, sobretudo, a aflição, os gritos, o

temor e o “desacordo” dos marinheiros, incapazes de controlar a situação, devido à violência dos ventos.

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Chegada à Índia Canto VI, EE. 92 a 94 92 Já a manhã clara dava nos outeiros Por onde o Ganges murmurando soa, Quando da celsa gávea os marinheiros Enxergaram terra alta, pela proa. Já fora de tormenta e dos primeiros Mares, o temor vão do peito voa. Disse alegre o piloto Melindano: – «Terra é de Calecu, se não me engano.

93 «Esta é, por certo, a terra que buscais Da verdadeira Índia, que aparece; E se do mundo mais não desejais, Vosso trabalho longo aqui fenece.» Sofrer aqui não pôde o Gama mais, De ledo em ver que a terra se conhece; Os giolhos no chão, as mãos ao Céu, A mercê grande a Deus agardeceu.

94 As graças a Deus dava, e razão tinha, Que não somente a terra lhe mostrava Que, com tanto temor, buscando vinha, Por quem tanto trabalho exprimentava, Mas via-se livrado, tão asinha, Da morte, que no mar lhe aparelhava O vento duro, férvido e medonho, Como quem despertou de horrendo sonho.

Narrador: o poeta – narrador heterodiegético

Narratário: os leitores

Planos narrativos: viagem e História de Portugal

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Chegada à Índia Canto VI, EE. 92 a 94 92 Já a manhã clara dava nos outeiros Por onde o Ganges murmurando soa, Quando da celsa gávea os marinheiros Enxergaram terra alta, pela proa. Já fora de tormenta e dos primeiros Mares, o temor vão do peito voa. Disse alegre o piloto Melindano: – «Terra é de Calecu, se não me engano.

93 «Esta é, por certo, a terra que buscais Da verdadeira Índia, que aparece; E se do mundo mais não desejais, Vosso trabalho longo aqui fenece.» Sofrer aqui não pôde o Gama mais, De ledo em ver que a terra se conhece; Os giolhos no chão, as mãos ao Céu, A mercê grande a Deus agardeceu.

94 As graças a Deus dava, e razão tinha, Que não somente a terra lhe mostrava Que, com tanto temor, buscando vinha, Por quem tanto trabalho exprimentava, Mas via-se livrado, tão asinha, Da morte, que no mar lhe aparelhava O vento duro, férvido e medonho, Como quem despertou de horrendo sonho.

Chegada à Índia Fora dos perigos e das dificuldades em que a tempestade os colocou, os marinheiros, à vista da Índia, deixam-se invadir pela alegria (estrofe 92). Com a notícia da chegada a Calecute, Vasco da Gama, sem disfarçar o seu contentamento, ajoelha-se e agradece a Deus a mercê recebida (estrofe 93). A descrição da euforia da chegada à Índia é muito curta, mas intensa. 90


Chegada à Índia Canto VI, EE. 92 a 94 92 Já a manhã clara dava nos outeiros Por onde o Ganges murmurando soa, Quando da celsa gávea os marinheiros Enxergaram terra alta, pela proa. Já fora de tormenta e dos primeiros Mares, o temor vão do peito voa. Disse alegre o piloto Melindano: – «Terra é de Calecu, se não me engano.

94 As graças a Deus dava, e razão tinha, Que não somente a terra lhe mostrava Que, com tanto temor, buscando vinha, Por quem tanto trabalho exprimentava, Mas via-se livrado, tão asinha, Da morte, que no mar lhe aparelhava O vento duro, férvido e medonho, Como quem despertou de horrendo sonho.

Chegada à Índia 93 «Esta é, por certo, a terra que buscais Da verdadeira Índia, que aparece; E se do mundo mais não desejais, Vosso trabalho longo aqui fenece.» Sofrer aqui não pôde o Gama mais, De ledo em ver que a terra se conhece; Os giolhos no chão, as mãos ao Céu, A mercê grande a Deus agardeceu.

Este pequeno texto desenvolve-se em três momentos: a)

os quatro primeiros versos da estrofe 92, em que os marinheiros, numa manhã luminosa (“clara”), lá do mais alto (“celso”) cesto de gávea, avistam a Índia

b)

os oito versos seguintes (segunda parte da estrofe 92 e primeira parte da estrofe 93), em que se enunciam as consequências imediatas do facto referido na primeira parte: o desaparecimento do medo (“o temor vão do peito voa”) e o discurso de confirmação do piloto Melindano

c)

nos quatro últimos versos, Vasco da Gama ajoelha-se e agradece a Deus a enorme graça concedida. A tão esperada índia é avistada numa “manhã clara”, o que nos prenuncia a esperança, perfigurada na manhã, e algo de bom, no vocábulo clara. 91


Chegada à Índia Canto VI, EE. 92 a 94 92 Já a manhã clara dava nos outeiros Por onde o Ganges murmurando soa, Quando da celsa gávea os marinheiros Enxergaram terra alta, pela proa. Já fora de tormenta e dos primeiros Mares, o temor vão do peito voa. (1) Disse alegre o piloto Melindano: – «Terra é de Calecu, se não me engano.

93 «Esta é, por certo, a terra que buscais Da verdadeira Índia, que aparece; E se do mundo mais não desejais, Vosso trabalho longo aqui fenece.» Sofrer aqui não pôde o Gama mais, De ledo em ver que a terra se conhece; Os giolhos no chão, as mãos ao Céu Céu, A mercê grande a Deus agardeceu.

94 As graças a Deus dava, e razão tinha, Que não somente a terra lhe mostrava Que, com tanto temor, buscando vinha, Por quem tanto trabalho exprimentava, Mas via-se livrado, tão asinha, Da morte, que no mar lhe aparelhava O vento duro, férvido e medonho, Como quem despertou de horrendo sonho.

asinha = arcaísmo (palavra que caiu em desuso; significa depressa)

• perífrase (=Índia) •personificação do Ganges “murmurando” •adjetivação (“manhã clara”, “celsa gávea”, “terra alta”) • aliteração em v • metáfora (“voa” (1) • sinédoque (“do peito”) •adjetivação expressiva (“vão”) •alternância rimática em “ais” e “e” como os adjetivos “alegre”, “verdadeira” e “longo” sugerem positividade •antítese “chão/Céu” •hipérbole “as mãos ao Céu” 92


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