Catálogo Contornos

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contornos



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marรงo | agosto | 2013



Desenho conversa

Q

uando desvinculada de lastros com o mundo efetivo, a arte corre o risco de parecer dispensável, quase um capricho.

Se, por um lado, é certo que os artistas suspendem, em maior ou menor grau, a cadência do cotidiano, por outro lado essa suspensão tem limites. Afinal, é mantendo no horizonte as possibilidades de sentido próprias de cada contexto que as obras viabilizam o diálogo com seus públicos. Sobre isso, o desenho tem um tanto a nos dizer. Seja ele compreendido como uma manifestação visual ou como

O projeto Contornos propõe, por meio de expo-

o pensamento que subjaz a esta manifestação, o desenho invade

sições, palestras e oficinas, um contato apro-

todos os campos da experiência humana. Não apenas notamos

fundado com o desenho. Expressão artística

as mais diversas áreas de conhecimento utilizarem-se do dese-

cuja autonomia é reconhecida ao menos des-

nho como linguagem, como também nos referimos a ele ainda

de a arte moderna, o desenho é permeável às

que em sua suposta ausência. O voo de um pássaro, o cresci-

questões da contemporaneidade e permite en-

mento urbano, o passe perfeito numa partida de futebol: pode-

tradas variadas para o espectador, já que con-

mos apreender esses fenômenos em suas tendências desenhis-

versa usando uma gramática que lhe é familiar.

tas, a partir de suas linhas, vetores, contornos.

Ao abordar a cultura em seu pendor educativo, o Sesc valoriza a arte de desenhar vínculos, de

Daí a porosidade do desenho, a forma generosa como ele abraça

esboçar cenários, de figurar realidades. Como

o mundo. Outro modo de encarar o tema é lembrar que, quando

base dessa valorização, há o entendimento de

criança, nos entregamos ao jogo de cheios e vazios redefinindo a

que, num cotidiano de dispersões, cabe a pro-

topografia do papel (ou da parede) – ao menos até que o ingresso

vocação das subjetividades pelo exercício crí-

no mundo dos adultos desestimulasse, com sua vigilância

tico do olhar – algo que o desenho, de modo

permanente, nossos arabescos antes audaciosos.

simples, solicita.

Fertilizado por outros tempos e espaços, teria o desenho o potencial de suturar a relação entre arte e público, dilema cultural contemporâneo?

Sesc São Paulo

5



Contornos

O

Sesc São José dos Campos realiza,

nizadora da série de livros Cadernos de Dese-

entre março e agosto de 2013, o

nhos, que inclui o de Marcello Grassmann – foi

projeto Contornos, que conta com uma série

convidada para compor o texto sobre as expo-

de atividades, entre elas três exposições:

sições, contribuindo com informações impor-

Corpo em Risco, Mito e Assombro: o desenho

tantes sobre a questão do desenho na história

de Marcello Grassmann e Linha Tênue - Edith

da arte. 7

Derdyk. Os projetos expositivos pretendem abarcar a amplitude que o termo desenho

Com esse projeto o Sesc São José dos Campos

possui na produção artística atual, além

visa disponibilizar ao público o contato com

de possibilitar o diálogo entre jovens e

trabalhos artísticos significativos, aproximando

consolidados artistas.

as pessoas da linguagem da arte. Dessa forma mantém o compromisso estabelecido pela en-

O termo desenho adquire amplas e diversas interpretações no

tidade de contribuir com a formação de seu pú-

atual contexto das artes. Desenhar pode ser sinônimo de linha

blico por meio de ações educativas que levem à

no papel, linha no espaço, projeto, rabisco, escopo, corpo, de-

reflexão e à construção do conhecimento.

sign, desígnio, etc. Trata-se de uma técnica artística ancestral que deflagra um fértil terreno para a materialização de proposições que são inerentes à produção contemporânea. O presente catálogo, além de ser um registro do projeto, busca proporcionar ao público referências e aprofundamento das questões envolvidas. Para isso, a artista e pesquisadora Lygia Eluf – professora titular na área de desenho da Unicamp e orga-


Foto: Nilson Sato

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Nilson Sato ReminiscĂŞncia #2 70x120cm Tinta Sumi sobre papel / 2010


Ver e pensar, pensar e ver – desenhar para fazer conhecer Lygia Eluf

T

alvez uma das questões mais instigantes em relação ao de-

senho no mundo contemporâneo seja a questão da representação.

Image-making begins with interrogating appearances and making marks. Every artist discovers that drawing – when it is an urgent activity – is a two-way process. To draw is not only the measure and put down, it is also to receive.1

Vivemos numa época em que so-

capacidade de um novo modo de pensar. Surgiu no Renascimento e originou todas as outras palavras relacionadas ao desenho em outras línguas. Ela

mos bombardeados constantemente por imagens de diversas

(a palavra) carrega o significado de uma lingua-

naturezas, uma época repleta de formas representadas numa

gem que engloba, em geral, as representações

escala contínua, na qual se encontram desde as imagens mais

e construções realizadas para se obter uma

descritivas e objetivas até as mais simbólicas e abstratas. Nada

imagem marcando, de maneira simples ou ela-

parece ter mais força que a imagem.

borada, uma superfície. O desenho foi, de fato, um instrumento poderoso que os homens usa-

Diante disso, como podemos entender o que é o desenho nos

ram para inventar e fazer crescer o pensamen-

dias atuais e como ele é capaz de transformar, modificar e alte-

to renascentista.

rar significativamente nosso olhar? O desenho como percurso, como ato, como fato pode ser considerado uma das relações

Giorgio Vasari (1511-1574), em Vidas dos mais

mais antigas que temos com a representação. Por meio dele o

excelentes pintores, escultores e arquitetos,

artista apreende o mundo à sua volta e transforma a observação

publicado pela primeira vez em 15502, refere-

em discussão sobre essa observação. Desenhar é pensar, é nos

-se ao desenho de Giotto (1266/7-1337): “E

forçar a olhar o outro (ou o objeto), dissecá-lo e reorganizá-lo

verdadeiramente foi grandíssimo milagre que

novamente transformando, expressando e concretizando a ação.

naquela época grosseira e inapta tivesse força

É a vontade de compreender o mundo e o desejo de figurá-lo. É

de operar tão doutamente em Giotto o desenho,

o lugar de nosso corpo no espaço da existência.

do qual pouca ou nenhuma cognição tinham os homens daquele tempo.”

A palavra desenho tem originalmente um compromisso com a palavra desígnio. Ambas se identificam e na medida em que es-

Ceninno Cennini (1370-1440), em seu Il libro

tabelecemos os vínculos entre as duas recuperamos também a

dell ´arte3, fala sobre o desenho que, segundo

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ele, aparece logo no início da vida de qualquer

turas e esculturas, mas obras acabadas e devem ser admirados

pintor: “o intelecto deleita-se ao desenhar”.

como tais. A partir daí o desenho ganha autonomia.

Para ele, o desenho é algo natural, um talento inato que deve ser desenvolvido. O artífice deve

Considero o desenho a base de toda experiência artística e,

copiar as obras de grandes mestres e “copiar

como tal, está associado não só a uma tradição de técnicas ar-

sempre do natural continuamente. Desse modo

tísticas, mas também a questões que ampliam os limites de tais

o pintor será esperto, prático e capaz de muitos

definições. É comum se estabelecer relações entre o desenho e

desenhos em sua cabeça”.

a produção artística de um modo geral e sua abrangência compreende o território da experiência do homem comum, os prin-

Leon Battista Alberti (1404-1472) , embora

cípios das representações simbólicas e os da escrita. É nessa

não tão entusiasta quanto seu contemporâneo

direção que se apresenta aqui o desenho: para ser tratado como

Cennini, afirma que o desenho é fundamental

pensamento, como meio de transmissão de conhecimento, seja

para a existência de uma boa pintura e que

ele objetivo, sensível, descritivo, ou ainda o início de uma inves-

esta (a pintura) não será de boa qualidade sem

tigação que pode ser conduzida para a fotografia, a pintura ou

uma boa “circunscrição”, ou seja, um bom de-

outros tipos de finalização das imagens. O desenho se aproxi-

senho. Além disso, é Alberti quem escreve que

ma também da noção de projeto, de uma espécie de lançar-se à

o desenho serve para o pintor compor “sob a

frente incessantemente movido por uma ideia. Essa ideia é resul-

sombra do natural”, o que significa não apenas

tante de uma consciência de necessidade e de intenção artística.

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a construção das figuras, mas também das narrativas que se apresentam.

O desenho, em sua natureza, é como um fundamento, um princípio. É uma maneira de adquirir consciência e qualificar o pen-

E para concluir essa introdução chegamos a

samento. Heidegger (1889-1976)6 diz que pensar é a limitação

Leonardo da Vinci (1452-1519)5, que concebe

a um pensamento que em algum tempo, como uma estrela no

o desenho como o fundamento de tudo. Para

céu do mundo, permanece fixo. Mas não há nenhuma regra fixa

ele, o artista deve aprender primeiramente a

ou de controle sobre o desenho. Apenas a linha, a mancha, a

perspectiva, a proporção das coisas, copiar os

cor que, uma vez registradas no suporte, assumem os papéis de

grandes mestres e copiar do natural. Aí então

protagonistas e indicam o próximo passo explicitando a intenção

pode confirmar a razão das coisas apreendi-

do artista. Primeiro, a forma criada responde à forma observa-

das. O desenho deve muito a Leonardo, mas

da, como uma aparição, para depois transformar-se em poesia.

talvez sua principal contribuição seja a noção

Trata-se de um caminho específico relacionado com a visão em

de “desenhos acabados” ou ”desenhos para

seu âmbito mais completo, seja observando o mundo ao redor,

apresentação”, considerados não apenas pro-

seja olhando para o desenho interno.

jetos ou instrumentos para a realização de pin-


Merleau-Ponty (1908-1961)7 afirma que vemos as mesmas coi-

Notas

sas e que o mundo é aquilo que vemos. Mas precisamos aprender

1. Berger, J. A professional secret. 1987: Captar a imagem e interrogar: começa com as aparências e fazer marcas. O artista descobre que desenhar – quando isso é uma atividade urgente – é um processo de duas vias. Desenhar não é apenas observar, medir e registrar, é também receber.

a ver! A coisa percebida se desdobra em duas: há aquela que se percebe e aquela que conseguimos ver. Observação, percepção e sensação são os mecanismos que acionamos nessa ação. Derrida (1930-2004)8 fala de nossos olhos videntes que antecipam, avançando, tocando, tateando como se fossem nossas mãos. Existem no desenho o olhar e a mão, e já é senso comum dizer que desenhamos com nossos olhos e não com as mãos.

2. Vasari, G. Le vite de´piu´eccellenti pittori, scultori e architettori. Roma, Newton Compton, 1997 3. Cennini, C. Il libro Dell´arte. Vicenza, Brunello, 1971. 4. Alberti, L.B. Da pintura, Editora Unicamp, 1989. 5. Da Vinci, L. Libro di Pittura. Florença, Giunti Gruppo Editoriale, 1995. 6. Heidegger, M. Da experiência do pensar. Editora Globo, Porto Alegre, 1969. 7. Merleau-Ponty, M. O visível e o invisível. Editora perspectiva, São Paulo, 2000.

Foto: Ana Teixeira

8. Derrida, J. Pensar em não ver. Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.

Ana Teixeira Capivara 38x30cm Aquarela sobre papel / 2010

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Foto: Fรกbio Machado

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Página anterior: Sem título 50x71cm / crayon e óxido de ferro / 2003

Foto: Fábio Machado

Sem título 51x70 cm / pena e pincel / 1986

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misterioso, irônico e sinistro

O desenho sempre foi para ele uma espécie de obsessão e, incentivado por Oswaldo Goeldi (1895-1961), começa a aprender gravura em metal com Henrique Oswald (1918-1965) e litografia com Poty Lazzaroto (1924-1998). “Sempre desenhei muito. Na escola, por exemplo, havia uma pequena biblioteca com

M

muitos livros ilustrados. Foi um período áureo

arcello Grassmann nasceu em São Si-

da história em quadrinhos – havia, pelo menos,

mão, São Paulo, em 1925, onde viveu

dez grandes artistas que se dedicavam ao

até 1932, quando mudou-se com a família

desenho. Tínhamos contato, por exemplo, com

para São Paulo.

ilustrações do Alex Raymond [1909-1956], autor de Flash Gordon, e Harold Foster [1892-1982],

“Saí aos sete anos de idade de São Simão [interior de SP] e fui,

desenhista do Príncipe Valente. Ingressei na

com a família, para São Paulo. Gostava de gravura desde criança.

adolescência lendo HQs, mas interessando-me

Era uma coisa até surpreendente. Se não me engano, uma editora

mais pelas ilustrações do que pelos textos. Essa

americana vendia pequenas bibliotecas já montadas, com estan-

minha fixação pelo desenho é inata. A imagem,

tes e tudo. E, entre as coleções, havia a do Tesouro da Juventu-

para mim, sempre foi fundamental.”

de. Por meio dela, conhecíamos os personagens da história e as ilustrações do [Gustave] Doré [1832-1883]. O que me fascinava,

Participa, em 1951, da 1ª. Bienal Internacional

e a curiosidade era muito grande, é que sempre se referiam aos

de São Paulo com xilogravuras e, em 1953, re-

desenhos, às reproduções, como ‘gravuras’ de Gustave Doré. A

cebe o Prêmio de Viagem ao Exterior no 1º. Sa-

palavra gravura sempre me deixava inquieto.”

lão Nacional de Arte Moderna, indo para Viena,

Entre 1939 e 1942 frequentou aulas de entalhe, escultura e fun-

onde estuda na Academia de Artes Aplicadas

dição no Instituto Profissional Masculino, no Brás, mas percebeu

e aprofunda seus conhecimentos de gravura no

que o que pretendia fazer não era uma aplicação profissional da-

Gabinete de Estampas da Academia Albertina.

quele aprendizado, o que procurava era arte.

Conhece o artista Alfred Kubin (1877-1959), com quem mantém correspondência e é for-

“Era uma coisa interessante, porque você aprendia muitas coi-

temente influenciado por sua poética. Partici-

sas que poderiam defini-lo como marceneiro, escultor, serralheiro

pa de duas Bienais de Veneza, em 1950 e em

ou entalhador. Todas as matérias eram fascinantes. Foi preciso,

1961. Desde então, nunca mais parou: hoje,

porém, de uma certa maneira, que todo o aprendizado fosse des-

aos 87 anos de idade, com centenas de expo-

manchado para eu poder achar um caminho.”

sições (mais de quatrocentas) realizadas pelo

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obra, o artista ainda sente imenso prazer diante de sua mesa de desenho no ateliê. Falar do desenho de Marcello Grassmann não é uma tarefa fácil. Sua precocidade nos anos 40 se revela num desenho que registra o aparecimento de um artista jovem e talentoso que, uma vez ou outra, ilustrava suplementos literários nos jornais e insistia numa característica de familiaridade com o expressionismo alemão. Seu espírito sempre inquieto se abriu para uma experimentação constante que extrapolava a limitação de encontrar um resultado gráfico específico. O que Grassmann sempre buscou 16

foi encontrar a solução para uma determinada ideia, numa luta constante contra o óbvio ou o aplauso fácil. Sua forte intuição gráfica e sua fixação inata pelo desenho foram constituindo uma depuração de seu olhar, na construção de um universo onde seres animalescos e diabólicos se reúnem numa espécie de lado soturno da vida. Isso nunca foi uma escolha, e sim uma fatalidade. “De onde vêm as coisas da imaginação? Bom, desde criança, muitas coisas me fascinavam, entre as quais toda a mitologia, carregada de imagens inéditas, sobretudo aquelas vinculadas ao cotidiano. Interessava-me muito mais, por exemplo, apreciar uma obra desesperada de Michelangelo [1475-1564] fazendo a parte do

Foto: Fábio Machado

mundo e inúmeros prêmios recebidos por sua


inferno na Capela Sistina – e, raríssimas vezes, é divulgado esse seu lado, que sempre foi relegado. Sentia mais prazer por essa faceta do que, digamos, pelos aspectos divinos, pelos quais as pessoas ficam em êxtase.” Em vez de ingressar numa zona de conforto depois de encontrar seu caminho pessoal, o artista, extremamente habilidoso e talentoso, ingressou num processo brutal onde as inúmeras tentativas de resolução de uma ideia específica resultaram num experimentalismo repleto de saídas gráficas, mas, antes de tudo, um importante exercício de criação. “Somos únicos... porém, ficamos condicionados à situação e à disponibilidade de material. Se houver um arsenal à mão, serão diferentes as soluções encontradas. Pode-se experimentar. Muitas vezes, não dá certo. Às vezes, apenas a mudança de papel já muda seu traço, sua intenção. Algumas obras são mais retrabalhadas, outras são mais espontâneas, outros são mais croquis.” Da mesma família que artistas como Goeldi, Kubin ou Picasso (1881-1973), o artista construiu um universo mágico e misterioso onde

Sem título 50x96 cm / crayon, conté e sanguínea / 2003

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Foto: Fábio Machado

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seus seres diabólicos se multiplicam perdidos no tempo e no espaço. Um imaginário deliberadamente arcaico, constituindo um animalismo maravilhoso e fantástico, sedimentando um estilo, uma iconografia e uma técnica próprios. Grassmann paira acima de qualquer discussão e deve ser inserido na tradição dos grandes mestres.

Acima: Sem título 89x69 cm / crayon / 1977 Pág. 17 Sem título 34x49 cm / pena e aguada / 1993 Sem título 20x14,5 cm / pena e aguada / 1978


Foto: Fรกbio Machado

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Foto: Fรกbio Machado


essa exposição, tarefa prazeirosa feita por George Gütlich e Denise Ardo acompanhados

Foto: Fábio Machado

A escolha de cada desenho dos que compõem

pelo olhar atento, crítico e sagaz de Grassmann, determina apenas uma das possibilidades oferecidas

a

nós

pelo

impressionante

universo criado por esse artista. A gama de procedimentos técnicos que essas obras nos apresentam é extensa: desde as rápidas anotações feitas com pena à nanquim, ou extrato de nogueira, com carvão ou sanguínea, aos elaborados “climas” construídos com aguadas e cores rebaixadas. A extraordinária familiaridade que o artista tem 20

com seu métier é um dos fatores que possibili-

instância, uma espécie de narrativa sagrada que tenta explicar

ta a criação de um universo onde suas figuras

as relações entre o mundo e o homem. Mas são também ali-

mitológicas ocupam obsessivamente todo o

mentos constantes para a alma desse artista a música e, acima

espaço do papel. Porém, reduzir esse conjunto

de tudo, o profícuo diálogo que sempre estabeleceu com a obra

de desenhos às questões da mitologia, como

dos artistas que admira. Grassmann é um dos poucos artistas

se tais argumentos fossem necessários para

contemporâneos capazes de nos colocar em contato com um as-

validar a importância do que vemos, seria uma

pecto de inestimável valor para a humanidade: o afeto que cons-

atitude apressada. Evidentemente, esse é um

trói cada uma de suas figuras, seus gestos, olhares e o profundo

dos grandes alimentos de Marcello e, em última

amor pela prática do desenho.

Acima: Sem título 50x70cm / crayon / 2005 Pág. 19 Sem título 50x71cm / pena / 1986


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Foto: Fรกbio Machado


Foto: Katia Kuwabara

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24 Foto: Edith Derdyk


Foto: Edith Derdyk

O desenho em sua materialidade absoluta

E

dith Derdyk graduou-se em Licenciatura em Artes Plásticas na Fundação Armando Álva-

res Penteado (FAAP), em São Paulo. Participa de inúmeras exposições no país e no exterior. Seu trabalho se caracteriza por um complexo acúmulo de elementos e materiais, com os quais constrói um espaço de desenhos. Ver é uma maneira de qualificar o pensamento, é uma consciência adquirida. Aí se insere o discurso de Derdyk. Ela se distancia da questão da representação para nos propor um sutil exercício de reflexão sobre o desenho e de relação com ele. Os elementos de linguagem e os materiais e suportes específicos do desenho assumem o papel principal em suas criações e, a partir deles, a artista nos convida para uma espécie de expansão do olhar no espaço. Seus desenhos-instalações se esparramam pelo espaço real, físico, como se a ponta do lápis fosse seu próprio corpo que percorre esse espaço construindo seu desenho. A questão da representação aí fica distante e arriscamos dizer que o trabalho de Derdyk se

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aproxima muito mais do conceito de “apresentação” do que do conceito de “representação”. Sua intenção parece ser a de conduzir o observador através da materialidade de cada um dos elementos visuais que elege como protagonistas. Seus personagens somos todos nós, convidados a fazer parte do espaço constituído por seu desenho. A instalação Linha Tênue – Volume Perdido utiliza a natureza das próprias linhas que atravessam o espaço expositivo em vão livre, integrando-o ao espaço arquitetônico. Derdyk apresenta o projeto dizendo que: “(...) provoca um corte transversal no espaço, potencializando e reterritorializando a percepção do espaço arquitetônico do SESC São José dos Campos como um todo, provocando no espectador um desejo de caminhar pelas rampas laterais, ou adentrar no espaço expositivo, favorecendo a observação de vários pontos distintos: de baixo, de cima, de lado, percebendo que a linha em sua unidade e multiplicidade ora fica um fio denso, ora se abre em superfície como

Fotos: Edith Derdyk

uma trama delicada e transparente.”

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Foto: Guilherme Gasparello

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Pág. 36 Thiago Hattnher Sem título 160x140cm / Acrílica sobre tela / 2012


I

números fatores ampliam a distinção existente entre um desenho “acabado” e uma

anotação, um desenho em processo: o tempo usado para realizá-lo; a escala ou dimensão, ou ainda a quantidade de trabalho executado; o uso de elementos da linguagem visual que demandam elaborações comple31

xas como, por exemplo, a cor; a necessidade de pensar nas relações cromáticas escolhi-

Representar a figura humana tem sido talvez o

das, no tom, na qualidade do pigmento ou

momento desse processo que mais nos apro-

na textura. Mas a verdadeira distinção acon-

xima de nosso corpo. A partir do momento em

tece apenas na cabeça do artista e em sua

que estabelecemos um diálogo com o outro

intenção poética.

lado do espelho, com nosso avesso, estabele-

O desenho geralmente é uma ação particular, privada, íntima e

cemos para o corpo um território sagrado. Esse

serve, na maioria das vezes, apenas para seu autor. Entretanto,

território constitui um espaço mental onde o

quando se torna um trabalho “acabado” para ser apresentado

observador, o desenho e o artista estabelecem

numa exposição, ele demanda outros aspectos relacionados ao

um relacionamento especial e único.

processo de comunicação de uma ideia, pensamento ou percep-

Os quatro artistas que constituem a exposição

ção. É nesse momento que o ponto de vista do observador passa

Corpo em Risco enfrentam esse diálogo em

a ser considerado: na medida em que ele estabelece uma re-

suas obras e cada um deles constrói um es-

lação com o desenho, seja interpretando-o, identificando-se ou

paço específico recorrendo à narrativa como

não com ele, seja tentando alcançar uma experiência sensível e

estrutura constitutiva daquilo que apresentam.

consciente ao estar diante de um fato representado ou de um

O grupo é formado por Ana Teixeira, Nilson

registro do olhar interior do artista.

Sato, Tamara Andrade e Thiago Hattnher.


Foto: Ana Teixeira

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Foto: Ana Teixeira

Foto: Ana Teixeira

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Ana Teixeira, natural de Caçapava, São Paulo, é formada pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Tem participado de inúmeras exposições e favorece em seu trabalho o desenho, a performance e a instalação. Privilegia a questão narrativa, seja em seus desenhos, seja em suas ações artísticas, construindo um espaço simbólico onde a palavra desempenha um papel importante. Na série apresentada – Nós, os vivos – Ana constrói figuras nas quais a linha uniforme e segura nos aproxima de uma narrativa intrigante. Ela diz: “Esta série de desenhos foi feita a partir de fotos. Fala de nós, os vivos, e de nossas maneiras de estar no mundo, às vezes em contato tão próximo com animais e outros humanos, às vezes abandonados apenas a nós mesmos. Ocupando as janelas do espaço expositivo está um de nós, que nos olha e nos faz silenciosas perguntas.”

Pág. 30 Menina e ratos 38x29cm / Aquarela sobre papel / 2010 Acima, à esquerda: Cachorro 38x29cm / Aquarela sobre papel / 2010 à direita: Casal e galhos 14,8x21cm / Aquarela sobre papel / 2010


Foto: Nilson Sato

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Foto: Nilson Sato

Foto: Nilson Sato

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Nilson Sato, paulistano, formado no Centro Universitário Belas Artes, nos convida a percorrer um espaço silencioso e vazio representado pelo branco do papel. O artista estabelece aí uma narrativa descritiva para seus personagens, mantendo fortes vínculos com o observado. Numa tentativa de explicar o próprio processo, diz: “O que me motiva a realizar o meu trabalho com desenho e pintura é o exercício da observação da figura humana, o meu mote. Um colega estrangeiro comentou que sou um ‘people watching’. Diferente do voyeur, eu observo e analiso as figuras que estão interagindo em seu meio natural. Todo o processo se inicia neste ponto, com o registro fotográfico ou em anotação em caderno de desenho. Muitas das minhas ideias, narrativas e temas surgiram a partir desta observação. Para mim, a poética se revela através do corpo que emite uma linguagem não codificada.”

Pág.32 Por esta rua 70x120cm / Tinta sumi sobre tela / 2010 Acima, à esquerda: Eu sei 70x120cm / Tinta sumi sobre tela / 2010 à direita: Reminiscência #1 70x120cm / Tinta sumi sobre papel / 2010


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Foto: Tamara Andrade

Tamara Andrade nasceu em São José dos Campos, São Paulo, e estudou na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Inicia seu trabalho de conclusão de curso dizendo: “Os primeiros anos de minha formaPág. 34 Mergulhador (detalhe) Abaixo: Mergulhador Coxa O Mergulhador Dimensões Variáveis / Instalação / 2009

ção, entre 1994 e 2002, foram fundamentais para reconhecer no desenho um meio de organização de meus interesses: o corpo humano como convergente das questões que envolvem hereditariedade, o ambiente familiar e a iminência da morte num organismo vivo.”

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Foto: Tamara Andrade

Foto: Tamara Andrade

Na instalação O mergulhador a artista insere suas figuras num espaço ambíguo, híbrido e até claustrofóbico, e com ele descreve questões relacionadas ao suporte no qual seus registros se inscrevem, e também ao espaço físico, real. Esse trabalho surgiu a partir de textos, anotações e esboços, e o primeiro deles, desenhado na janela de seu ateliê revelou, a partir da transparência do vidro, a ideia de que a imagem imergia na paisagem, tornando o espaço um eixo estruturante do trabalho.


38 Foto: Guilherme Gasparello


Foto: Thiago Hattnher

Pág. 36 Sem título 150x180cm Acrílica sobre lona / 2011 À esquerda: Sem título 210x170cm Acrílica sobre tela / 2012

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As figuras de Thiago Hattnher, jovem artista paulistano tam-

amadurecidos do que as questões técnicas que

bém formado no Centro Universitário Belas Artes, se encontram

dizem respeito à hibridez existente entre dese-

numa fronteira entre o desenho e a pintura, e revelam a expres-

nho e pintura.”

são de uma emoção subjetiva, individual. Os contornos clara-

Esse embate cria um espaço mental que convida

mente definidos pela linha são preenchidos parcialmente com

o observador a compartilhar um estado de espí-

cores suaves, rebaixadas pelo branco, criando um aspecto de

rito, ou uma atitude, cujo ponto de vista passa

“inacabado” e reforçando sua intenção de ambiguidade:

a ser o do representado. As distorções e ele-

“O corpo humano, foco e ponto de partida para a minha produção

mentos visuais são usados de modo a tratar a

e pesquisa, é abordado em meu trabalho de diferentes maneiras e

realidade como uma experiência individual, nos

em inúmeras situações, narrativas ou compositivas. Ainda assim,

convidando a explorar o espaço mental que se

todos eles têm como elemento comum a dubiedade com relação

produz a partir dessas referências emocionais.

ao sexo e à identidade. Esse tem sido o assunto em minha produção há muito tempo e sua abordagem e tratamento já estão mais


desenho, ato conceitual

O que motivou reunir no projeto Contornos um grupo de artistas e obras assim diversificados? O que é capaz de nos fazer compreender como as especulações espaciais, e as de linguagem, dialogam com os silêncios reflexivos e as figuras fantásticas que alimentam nossa imaginação? O ato de registrar o pensamento e o gesto nunca vem desacompanhado de uma intenção. A intenção do artista, seja ela representar, registrar, marcar, determinar, indagar, afirmar ou provocar uma reflexão é o que move esse universo. O desejo de figurar, de imaginar, de idear e de fazer sonhar. Fica aqui nosso convite para que as imagens dessas exposições provoquem sonhos.


contornos m

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to mi o desenho de Marcello Grassmann 07 de maio a 16 de junho ue

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ha lin 02 de julho a 04 de agosto


SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo PRESIDENTE DO CONSELHO REGIONAL Abram Szajman DIRETOR DO DEPARTAMENTO REGIONAL Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDÊNCIAS Técnico Social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Administração Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento Sérgio José Battistteli GERÊNCIAS Ação Cultural Rosana Paulo da Cunha Adjunta Flávia Carvalho Assistentes Juliana Braga, Nilva Luz Estudos e Desenvolvimento Marta Colabone Adjunta Andréa de Araújo Nogueira Sesc São José dos Campos Oswaldo Almeida Jr. Adjunto João Omar Gambini Projeto Contornos Coordenadores Daniela Savastano, Pedro Carlos dos Santos, Marília Toledo, Marcus Vinicius de Almeida Supervisores Consuelo Carvalho, Edimara dos Santos Concepção e Criação do Projeto Equipe Sesc São José dos Campos Coordenação Denise Ardo Estagiária de Artes Visuais Julia Francisca Projeto Gráfico Magno Studio Capa “equilátero”, de Magno Silveira Foto de Capa Fábio Machado Texto Lygia Eluf Revisão de Texto Mariângela Guelta. Agradecimento: ao artista George Gütlich pela colaboração na seleção das obras de Marcello Grassmann.




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