Dexistencia

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pré-edição

fa c - s i m i l a r

São José dos Campos

2012


Vi da l o n g a p a r a D e xis t ên c ia

A

p e q u e n a p a s t a de couro trabalhado provavelmente guardou os originais de Dexistência, de Cassiano Ricardo (1895-1974), por quase

40 anos. Com certeza os protegeu do tempo. Cassiano começou a organizar a série de poemas em 1973, nos sofridos meses que antecederam sua morte, em janeiro de 1974. Os textos foram datilografados e posteriormente emendados com sua conhecida letra miúda e arabesca. Não faltou nem mesmo trabalho de improvisado paste-up, com páginas rasgadas e coladas para dar corpo a uma ordem – o poeta aí inteiro, revivido na sua rotina de engenhos e lirismos além da literatura. É essa coleção de poemas que aqui se apresenta, com ineditismo, em edição fac-similar e também em versão para acompanhamento do leitor, esta última preparada e revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – projeto coordenado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo. A revisão técnica e de “proteção”, inerente aos processos editoriais, é prudente ressaltar, não faz do texto aqui reproduzido a sua versão definitiva. A Fundação tem como uma de suas missões justamente resgatar, divulgar e ampliar o acesso à herança cultural deixada pelo poeta. A publicação de Dexistência, portanto, está mais do que consoante ao propósito, como matéria-prima de pesquisa literária. Caberá a estudiosos e acadêmicos avaliar futuramente, em abordagem crítica e desapaixonada, a importância desses últimos poemas na vasta bibliografia do escritor. É quando também eventuais anacronismos da presente revisão poderão ser ajustados. A solidez da obra de Cassiano Ricardo é sustentada por uma fortuna crítica de vários matizes; poeta colocado de maneira unânime na “pri-

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meira fila de nossos poetas ‘consagrados’”, como escreveu o insuspeito Mário Faustino. Monumento que nem de longe parece estar ameaçado pela suposta fragilidade de textos confessadamente crepusculares. Edições fac-similares – e aqui se há de lembrar da inspiradora e primorosa brochura de anotações de José Saramago, quando da escritura de seu romance A Jangada de Pedra, editado pela Colóquio/Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian, com todos os riscos e rabiscos, marcas das hesitações próprias de gênios criadores – não são apenas objetos de desejo de museólogos e arquivistas habituados ao mundo das relíquias. Acompanhar as “andanças da pena de um escritor” sobre textos originais, tais como os de Dexistência, pode se transformar em pequenas epifanias, no palco de encontro e entregas entre autor e leitor. Certamente são indispensáveis para estudiosos dos chamados “prototextos” – ponto de partida da intrigante disciplina que investiga a genética das criações literárias, traçando mapas nem sempre lineares de seus caminhos e trazendo à cena as medidas do trabalho de construção dos escritores. Dexistência é um livro notadamente de despedida, fruto de um “derradeiro esforço”, como Cassiano fez questão de escrever no brevíssimo prólogo. Palavras iniciais que soam como se fôlego já lhe faltasse, num campo de batalha onde a caneta esferográfica foi lança em luta com as palavras “existir” e “dexistir” – busca a essa hora dramática da melhor forma de expressão. Ou palavras derradeiras, que se apressam, como se um editor ou um agente da fronteira vida/morte estivesse à sua porta bradando um deadline. Será dessa ansiedade a referência a um livro de seis partes que na verdade está reduzido a quatro seções? Faltou tempo ao poeta? Pouco antes de morrer, Cassiano tinha obtido uma vitória em meio a papéis, memórias e reflexões. Fizera chegar ao Conselho Estadual de Cultura (SP) originais de Invenção de Orfeu, livro publicado em 1974, “rigorosamente na forma organizada pelo poeta”, contendo basicamente um ensaio de deslumbramento diante da obra de Jorge de Lima e discursos de recepção a novos integrantes da Academia Brasileira de Letras e da Academia Paulista de Letras, instituições que tanto cultuava. Dexistência, entretanto, gestado provavelmente no mesmo período de Invenção de Orfeu, todo ele feito de poemas, permaneceu inédito. E aqui se vislumbra outra tarefa para os historiadores: descobrir por que o livro não seguiu seu almejado destino já àquela época, uma vez que a editora José Olympio, a casa de coração do poeta, foi explicitamente indicada à mão, na página de rosto dos originais.

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DEXISTÊNCIA

A versão de Dexistência a seguir foi preparada e revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


A PRIMEIRA PEDRA

(p. 27)

I

II

Vês a pedra, não

O nascimento

vês a carga de

das lajes, uma a uma,

afeto

o lento

que se gastou no edifício

desfalecimento

pedra por pedra.

do tronco ainda verde. Algo de secreto

Ossos, detritos,

no que é só cimento:

cascas sangrando folhas secas, f ’agulhas,

O edifício –

lascas de estrelas

girândola –

repentinas.

chovido de pétalas

Agora um furo

da inauguração

que a gota d’água

florida

abriu no corpo

e o esque/cimento,

de concreto

já, dos que moram

mas o musgo tapando

no beco

a boca ao epitáfio.

entre cactos e cacos de vidro.

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A S E G U N DA P E D R A

(p. 29)

Vês a pedra, não vês o que é uma pedra depois enfurecida no apedrejamento da Embaixada. Ou adormecida (pedra) que ao fim,

tudo

guarda, não fechada, escondida a dor-de-quem sofre preso ao fundo de um cofre, sentindo bater, na consciência, a continu/idade do mundo.

A TERCEIRA PEDRA Ó tu que pensas em viajar pra Lua agarrado às crinas do quinteto de Pégaso, não jogues o primeiro caco que achares na

rua

ao que vive no

beco

dos cactos com cacos de

vidro

sem saberes primeiro se a culpa também não é

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tua.

(p. 31)


pré-edição

fa c - s i m i l a r

Direto r Pr e s id e n t e Mario Domingos de Moraes

Co o r de na ç ã o E di t o r i a l Sílvia Corcevai

Direto r C u lt u r al Cláudio Mendel

Co ns ul t o r i a E di t o r i a l José Guilherme Rodrigues Ferreira

Direto r d e Pat r im ô n io H is t ó r ico Vitor Chuster

Projeto Gráfico Magno Studio

Direto r A d m in is t r at ivo Marcelo Borges

Ca p a Magno Silveira

Assesso r a d e C o m u n icação Edna Petri

Tr at a m e n t o d e i m a g e n s e e d i t o r a ç ã o Rafael Souza Re v i s ã o e p r e p a r a ç ã o de t e xt o s Ana Paula Soares

A Fund ação C as s ian o R icar d o express a ag r ad e cim e n t o s à fam í l i a d o po e t a : Brasil Gomide Ricardo Filho (filho/herdeiro de Brasil Gomide Ricardo) Jaci de Souza Ricardo Pinto Costa (filha/herdeira de Brasil Gomide Ricardo) Paula Leite Ricardo (filha/herdeira de Brasil Gomide Ricardo) Georgia Leite Ricardo (filha/herdeira de Brasil Gomide Ricardo) Iara de Moraes (filha/herdeira de Laura de Podestá) Jurandir Cassiano Ricardo (filho/herdeiro de Laura de Podestá) Jurema Cassiano Ricardo (filha/herdeira de Laura de Podestá) Rubens Ricardo Gianesella (filho/herdeiro de Célia Cecília Ricardo Gianesella) Regina Célia Ricardo Gianesella (filha/herdeira de Célia Cecília Ricardo Gianesella)



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