O Saber e o fazer no Museu do Folclore

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Marcos Silva Professor Titular de Metodologia na FFLCH/USP

O saber e o fazer no Museu do Folclore

alertaram para os limites das ideologias dominantes no Brasil imperial (a suposição de um país luso, que pudesse negar seus componentes de tradição indígena e africana) e também na república inicial (a modernidade transferida ideologicamente para os imigrantes, numa nova negação dos brasileiros, embora cobrando dos imigrantes determinadas condições físicas e culturais – cor branca, Catolicismo...). O Brasil que conhecemos nesse começo de século XXI é tudo isso e muito mais: a contribuição milionária das migrações internas, instaurando o mais amplo transregionalismo; novos grupos de imigrantes, incluindo africanos e hispano-americanos; ondas emigratórias de brasileiros em diferentes partes do mundo. Este livro é um convite para compreender tudo isso e incentivar mais de tudo isso e do que não vimos ainda. A cultura popular é simplesmente cultura.

CULTURA POPULAR HOJE

O SABER E O FAZER

realização

MUSEU DO F OLCLORE

NO

Rediscutir a cultura popular nos dias de hoje pode parecer, para alguns leitores, antiquado, desnecessário, repetição ideológica do que já se cansou de ver e dizer. Isso poderia ocorrer se não houvesse reflexão efetiva. Não é o caso desta publicação. Acompanhamos aqui múltiplos fazeres, vidas humanas, experiências compartilhadas. Estamos longe das apropriações que a cultura popular sofreu por sistemas políticos ditatoriais – o Estado Novo, a Ditadura de 1964/1984. Estamos também afastados da cultura popular de shopping ou videoclip, higienizada pelo design. As práticas que aparecem aqui são de outra natureza e sugerem poderes alternativos, capacidades aprendidas e ensinadas por vias não previstas. Poderes de ver, ouvir, dizer e incitar os outros a partilharem desses poderes. Sylvio Romero, Câmara Cascudo, Mário de Andrade e tantos outros foram pioneiros nessas discussões. Seus escritos nos


C oleção C adernos

de

F olclore

22o Volume

o

São José dos Campos 2012


C apĂ­tulo 1

Maria Alzira da Rosa

Dona

Alzira


P icote

O momento de picotar o papel

olha novamente, dobra, recorta. Maria Alzira da Rosa, a dona Alzira, 60 anos, mergulha com destreza em seu fazer artístico. “Quando estou fazendo, não penso em nada, me esvazio.” Mediante o vai e vem da tesoura, sem desenho, entre tantas bifurcações inscritas nas ranhuras do papel, das suas mãos surgem pássaros, cálices, ramos e corações. Ela não sabe explicar de onde provêem os motivos que picota no papel, mas sabe falar do tempo de quando eles chegam à sua consciência, um espaço aberto em seu cotidiano. “No dia em que estou com a cabeça meio quente, eu pego para fazer”, diz com cativante gargalhada. Na sala de sua casa, dona Alzira exibe com orgulho o certificado emoldurado na parede, exatamente cinco anos depois de sua emissão pela Comissão Paulista de Folclore. Conta que antes do reconhecimento do seu trabalho pelo Museu do Folclore, poucas pessoas davam valor ao seu trabalho. “Algumas pessoas para quem eu dava os picotes de presente enrolavam e colocavam no bolso.” Quando chegou ao Vale do Paraíba, em meados de 1977, dona Alzira veio acompanhada de seu marido, Lupércio Francisco da Rosa. Por indicação da tia, que conhecia a região, ficaram na cidade de Santa Isabel, a 60 quilômetros da cidade de São Paulo. Lá trabalhou cinco anos em uma tecelagem, como ajudante de produção, enquanto o marido trabalhava como montador de móveis. Tiveram a primeira filha, guardaram economias, e venderam a casa de Santa Isabel para comprar terreno na cidade de São José dos Campos, no Bairrinho, região leste da cidade, onde nasceram seus ou-

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l h a , d o b r a , r e c o r ta ,


C apĂ­tulo 2

Joaquim

Alves de Lima


P resépio

A devoção ao ciclo natalino

epois de ouvirem o rei,

partiram; e eis que a estrela que viram no Oriente os precedia, até que, chegando, parou sobre onde estava o menino. E vendo eles a estrela, alegraram-se com grande e intenso júbilo. Entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, o adoraram; e, abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra.” (Bíblia Sagrada. Matheus 2: 9-11). Esta é uma história que vira cenário na arte de Joaquim Alves de Lima, morador da rua Tupinambá, no bairro de Santana, zona norte de São José dos Campos. Joaquim é um montador de presépios. Ele tem um lugar de destaque no ciclo natalino da paróquia do seu bairro e também no Museu Vivo. Na figuração dos presépios que constrói com suas engenharias, o tradicional e o religioso se misturam com elementos da paisagem urbana. A gruta aonde os Reis Magos chegaram para homenagear o Messias recém-nascido fica ao lado de estradas que levam às cidades, vilarejos rurais, cidadezinhas do interior. Remonta à Idade Média a montagem dos presépios ou das lapinhas. No texto do folclorista Câmara Cascudo, é possível ler que nas lapinhas são recitados os autos pastoris, autos populares que fazem parte do ritual de devoção. Na região do Vale do Paraíba, montar presépios é uma manifestação estudada pelo folclore. Pode-se encontrá-la em residências ou mesmo em centros comerciais. Todo ano no Museu do Folclore, por meio do programa Museu Vivo, alguns fazedores de longa data montam seus presépios. A cada ano é convidada uma pessoa diferente. Seu Joaquim já foi uma delas. Montar o presépio é um ato complexo. Envolve relações variadas, misturadas entre a relação do montador do presépio com sua comunidade e com sua fé. A respeito da devoção dos visitantes, Joaquim narra muitas histórias. “Tem gente que leva o pó de arroz, o pó de serra, diz que é para a sorte. Outros levam os próprios bichinhos que é para dar sorte. Cada um tem o seu modo de ver e expressar sua

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C apĂ­tulo 3

Renato

Vieira

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são dos projéteis, máquina que lhe rendeu prestígio dentro e fora do Brasil. Desde os 16 anos seu Renato é espírita. Conta que inicialmente teve alguma dificuldade quando começou a estudar o espiritismo, algumas pessoas diziam que ele iria morrer ou ficar louco. Hoje, seu Renato frequenta alguns centros espíritas em São José dos Campos. Neles, participa ativamente e, além do trabalho com os brinquedos e outros projetos comunitários, aplica passes energéticos de cura em pessoas que precisam. Seu Renato é viúvo de Maria José da Costa Vieira, companheira com quem teve sete filhos. Hoje, três deles, Ricardo, Ruth e Rúbia moram com ele na zona sul da cidade. Segundo Ricardo, sempre que seu pai sai para a rua leva folhinhas de tabuada e balas para presentear e desafiar as crianças que por ali passam. No muro, o gosto pela linguagem numérica se faz presente pelo destaque dado ao teorema de Pitágoras, explicitado através de dois triângulos. Ao lado direito dos números pitagóricos, vertem os versos do número irracional: “π = Que o cabo e ponta terrestre que previ desde que nasci 3,1415935535... ” No outro lado do muro, seus preceitos organizados: 1 – Servir e Amar, 2 – Perdoar e resignar, 3 – Humildade, 4 – Simplicidade, 5 – Fraternidade, 6 – Reforma íntima, 7 – Mocidade que tanto Jesus ama, abandonais o vício dando o testemunho de viver e vencer, 8 – Energia, força, dedicação e trabalho. Na imagem da estrela-guia, o “mensageiro do progresso” dá sentido a seus preceitos, a filosofia de vida de um artista popular de uma cidade tecnológica.

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C apĂ­tulo 4

Argemiro

Barbosa Nicoletti

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C harrete

A lida com animais: as memórias e a narração Não sei como vim no mundo Não sei como fui batizado Tenho o chão por minha cama Tenho o céu por meu telhado Eu não tenho rumo certo Na fazenda ou no matão Eu pra lá que fui convidado Para montar num burro bravo preto por nome de silverado um pouco de seu cotidiano na lida com animais. Trabalhou ao longo da sua vida com carro de boi, carroça, charrete e como boiadeiro, levando e trazendo boiadas. Com o carro de boi começou a trabalhar ainda criança, ajudando o pai como candeeiro à frente do carro, abrindo caminho. Nasceu em 18 de setembro de 1937 num sítio localizado no bairro do Buquirinha 2, extremo norte de São José dos Campos. “Em 1942 uma geada muito forte matou tudo que foi plantação do meu pai, ali ele ficou desgostoso e comprou um sítio pros lados da cidade, eu tinha uns cinco anos quando ele mudou para cá. Eu fui criado aqui, mas tudo que é serviço de roça foi aqui mesmo que aprendi. Aqui mesmo, porque meu pai não gostava de trabalhar de empregado. Ele comprou uma carroça e trabalhou um ano, não gostou e daí comprou um carro de boi, onde foi que aprendi.” Argemiro Barbosa Nicoletti aprendeu com seu pai, Joaquim Barbosa de Lima, a ser carreiro. Ainda jovem adquiriu o seu próprio carro de boi, passando a carregar

A

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rgemiro narra em versos


C apĂ­tulo 5

Maria JosĂŠ

Oliveira

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ceira de um total de quinze filhos. Conta que na comunidade viviam do que “tiravam da terra.” Com exceção do sal, quase todos os ingredientes eram produzidos e comercializados pelos agricultores do bairro: açúcar mascavo, mandioca, milho, feijão, além das criações de porco, galinha e vaca. Dona Maria José diz que sente saudades dessa época quando faz o bolinho da roça: “Tenho muita saudade, minha mãe fazia ainda o cafezinho com garapa, que aqui fala caldo de cana. A gente ia lá no engenho, moía a cana, trazia, punha na chaleira, ela ia fervendo e a gente ia tirando aquela espuma, até acabar toda aquela espuma. Aí punha o café no coador de pano, passava aquela garapa quente por cima e fazia um cafezinho. Chegava o domingo a minha mãe fazia um almoço gostoso, com o céu azul, era muito bom. A vida na roça é gostosa, mas é muito cansativa.” Ela chegou a São José dos Campos em 1967, acompanhando a emigração da família. Casou e teve uma filha, Miriam, psicopedagoga, que conheceu o trabalho do Museu Vivo e notou que sua mãe sabia fazer artesanato semelhante aos expostos no Museu do Folclore, pois, além de saber fazer pratos tradicionais da cultura caipira, Maria José também sabe fazer figuras em barro. Ela conta que começou fazê-las quando era criança e ainda brincava na roça. “Eu morava na roça e a gente, na roça, não tem brin-

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quedo. Naquela época, há 64 anos, não tinha brinquedo, mas a gente inventava. Aí um dia eu estava no quintal de casa, assim, peguei um ovo de galinha, olhei: ah, se eu puxar uma orelhinha, aqui dá outra, aqui dá um rabinho, dá um porquinho. Como onde a gente morava tinha muita argila, aqui chama argila, mas lá a gente chamava de tabatinga, porque é branquinha, um barro branco. Aí eu fui lá, peguei e fiz o primeiro porquinho, já fui fazendo os animais porque em casa tinha muito animal. Olhava: ah, vou fazer uma vaca, pegava, fazia a vaca, cavalinho, porquinho, galinha, galo, e assim fui fazendo. Aí, depois, quando eu vim para cá, eu tinha minha fazendinha, tinha tudo, chiqueirinho de porco, ainda passava água, era a coisa mais linda.” “Eu larguei de brincar quando eu estava com quinze anos, eu estava de paquera com um rapaz. Aí, lá na roça a gente fala proutra banda, língua de roça, lá proutra banda, lá pro outro lado. Aí eu tava lá proutra banda lavando roupa, enquanto a roupa ia esquentando no sol, porque lá em Minas a gente faz isso, aí eu tava brincando, conversando com meus bichinhos, mudando eles de lugar, pondo pastinho, chiqueirinho, eu olhei, uma sombra perto de mim. Quando eu olho para cima, era o rapaz. Nunca mais brinquei, e não casei com o filho da mãe.”

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Marcos Silva Professor Titular de Metodologia na FFLCH/USP

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alertaram para os limites das ideologias dominantes no Brasil imperial (a suposição de um país luso, que pudesse negar seus componentes de tradição indígena e africana) e também na república inicial (a modernidade transferida ideologicamente para os imigrantes, numa nova negação dos brasileiros, embora cobrando dos imigrantes determinadas condições físicas e culturais – cor branca, Catolicismo...). O Brasil que conhecemos nesse começo de século XXI é tudo isso e muito mais: a contribuição milionária das migrações internas, instaurando o mais amplo transregionalismo; novos grupos de imigrantes, incluindo africanos e hispano-americanos; ondas emigratórias de brasileiros em diferentes partes do mundo. Este livro é um convite para compreender tudo isso e incentivar mais de tudo isso e do que não vimos ainda. A cultura popular é simplesmente cultura.

CULTURA POPULAR HOJE

O SABER E O FAZER

realização

MUSEU DO F OLCLORE

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Rediscutir a cultura popular nos dias de hoje pode parecer, para alguns leitores, antiquado, desnecessário, repetição ideológica do que já se cansou de ver e dizer. Isso poderia ocorrer se não houvesse reflexão efetiva. Não é o caso desta publicação. Acompanhamos aqui múltiplos fazeres, vidas humanas, experiências compartilhadas. Estamos longe das apropriações que a cultura popular sofreu por sistemas políticos ditatoriais – o Estado Novo, a Ditadura de 1964/1984. Estamos também afastados da cultura popular de shopping ou videoclip, higienizada pelo design. As práticas que aparecem aqui são de outra natureza e sugerem poderes alternativos, capacidades aprendidas e ensinadas por vias não previstas. Poderes de ver, ouvir, dizer e incitar os outros a partilharem desses poderes. Sylvio Romero, Câmara Cascudo, Mário de Andrade e tantos outros foram pioneiros nessas discussões. Seus escritos nos


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