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FEV AB R 2013
. ana luisa lima gustavo colombini jaime lauriano leonardo araujo maíra dietrich
edição do autor são paulo 2013
SUMÁRIO
fachada escrever na arquitetura: carta de intenção+raphael escobar. a cada semana o texto que ocupava a fachada do ateliê aberto se transformava com um apagamento realizado por um dos residentes
é comum que sintamos fascinação pela estrutura da linguagem, certas palavras fazem mais falta do que uma pessoa, frases como ‘é comum que sintamos’ sugerem uma dimensão democrática artificial, a ideia básica de linguagem, na prática artística, parece combinar a autopreservação discursiva de quem escreve com um elemento de identificação autoadesiva do texto, pois o objeto a ser representado antecipa a penetração do contexto e parece produzir uma resposta imune ao efeito mental de quem demanda interpretação, o frio da linguagem e sua comunicação são tarefas abertas e infinitas a serem constantemente retomadas, a percepção da estrutura do texto reavalia sua desconstrução numa página realocada, a terceira margem das ruas, o corte como um privilégio, as variedades de transparência dos significados, podemos resumir dizendo que, por questões de determinação, o indivíduo não deve manter rivalidade com a relutância genuína do conforto, como se pudéssemos nos inscrever na cronologia desse acontecimento e na incompetência privilegiada da linguagem, ao viver esperando que a nossa história silenciosa comece a fazer barulho, a linguagem, pela inércia de sua própria extinção, tem sido objeto de experimento, hospedeira de um parasita sem memória, rasgada pelo meio, empurrada para dentro, mordida pelo apagamento natural da entrada, uma porta aberta não é mais um convite, é apenas uma estrutura de linguagem, um verbo, um recinto gráfico, um recuo da linha, um atraso metamorfoseado em convivência inadequada, o corpo da linguagem, o texto, a palavra, a letra, a afasia, o fonema despressurizado, interpretados como um aparato neutro de realocação política, investigando a ordem de possíveis autonomias, eu pensei, eu escrevi, eu disse, você entendeu que
é comum que sintamos fascinação pela estrutura da linguagem, certas palavras fazem mais falta do que uma pessoa, frases como. ‘é comum que sintamos’ sugerem uma dimensão democrática artificial, a ideia básica de linguagem, na prática artística, parece combinar a autopreservação discursiva de quem escreve com um elemento de identificação autoadesiva do texto, pois o objeto a ser representado antecipa a penetração do contexto e parece produzir uma resposta imune ao efeito mental de quem demanda interpretação, o frio da linguagem e sua comunicação são tarefas abertas e infinitas a serem constantemente retomadas, a percepção da estrutura do texto reavalia sua desconstrução numa página realocada, a terceira margem das ruas, o corte como um privilégio, as variedades de transparência dos significados, podemos resumir dizendo que, por questões de determinação, o indivíduo não deve manter rivalidade com a relutância genuína do conforto, como se pudéssemos nos inscrever na cronologia desse acontecimento e na incompetência privilegiada da linguagem, ao viver esperando que a nossa história silenciosa comece a fazer barulho, a linguagem, pela inércia de sua própria extinção, tem sido objeto de experimento, hospedeira de um parasita sem memória, rasgada pelo meio, empurrada para dentro, mordida pelo apagamento natural da entrada, uma porta aberta não é mais um convite, é apenas uma estrutura de linguagem, um verbo, um recinto gráfico, um recuo da linha, um atraso metamorfoseado em convivência inadequada, o corpo da linguagem, o texto, a palavra, a letra, a afasia, o fonema despressurizado, interpretados como um aparato neutro de realocação política, investigando a ordem de possíveis autonomias, eu pensei, eu escrevi, eu disse, você entendeu que
é comum que sintamos fascinação pela estrutura da linguagem, certas palavras fazem mais falta do que uma pessoa, frases como. ‘é comum que sintamos’ sugerem uma dimensão democrática artificial, a ideia básica de linguagem, na prática artística, parece combinar a autopreservação discursiva de quem escreve com um elemento de identificação autoadesiva do texto, pois o objeto a ser representado antecipa a penetração do contexto e parece produzir uma resposta imune ao efeito mental de quem demanda interpretação, o frio da linguagem e sua comunicação são tarefas abertas e infinitas a serem constantemente retomadas, a percepção da estrutura do texto reavalia sua desconstrução numa página realocada, a terceira margem das ruas, o corte como um privilégio, as variedades de transparência dos significados, podemos resumir dizendo que, por questões de determinação, o indivíduo não deve manter rivalidade com a relutância genuína do conforto, como se pudéssemos nos inscrever na cronologia desse acontecimento e na incompetência privilegiada da linguagem, ao viver esperando que a nossa história silenciosa comece a fazer barulho, a linguagem, pela inércia de sua própria extinção, tem sido objeto de experimento, hospedeira de um parasita sem memória, rasgada pelo meio, empurrada para dentro, mordida pelo apagamento natural da entrada, uma porta aberta não é mais um convite, é apenas uma estrutura de linguagem, um verbo, um recinto gráfico, um recuo da linha, um atraso metamorfoseado em convivência inadequada, o corpo da linguagem, o texto, a palavra, a letra, a afasia, o fonema despressurizado, interpretados como um aparato neutro de realocação política, investigando a ordem de possíveis autonomias, eu pensei, eu escrevi, eu disse, você entendeu que
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FEV AB R 2013
. ana luisa lima gustavo colombini jaime lauriano leonardo araujo maíra dietrich
edição do autor são paulo 2013
ÍNDICE
capítulos apresentação e reverberação das pesquisas de cada um para os demais
M ‘seminário’ - maíra dietrich pure data - gustavo colombini descompaço - leonardo araujo primeiro plano - jaime lauriano a três textos por ana luisa lima, ‘as cores sem nome’, ‘o segredo dos pássaros’ e ‘helena’ (verbete por jimson vilela) j território experimental de intersecções entre cinema/artes visuais/escrita - jaime lauriano minissinopses - gustavo colombini vinte sete - maíra dietrich primeiro aviso - leonardo araujo (passageiro-leitor por jimson vilela) g panorama da dramaturgia moderna e contemporânea - gustavo colombini tentativa falida #1 de destruir ideologias - jaime lauriano resolutação de uma narrativa dramatúrgica - leonardo araujo meu nome - maíra dietrich l a escrita criativa no texto crítico - leonardo araujo maculé 1a leonardo 1b gustavo 1c jaime 1d maíra maculé 2 leonardo
convidar o outro a ver com seus olhos
M
descompaço 1˚ dia : 06-03-2013 Eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, vou realizar essa narrativa descompaçada que a narradora denominada aqui em quarto lugar, pensa que não vai acontecer. Mal sabe que, durante esse período quase longo que acha que existe até o fim desta, ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, será a coadjuvante de seu maior próprio erro. Mas eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, não me submeterei ao acaso da proposição de uma narrativa descompaçada, eu serei o personagem narrador secundário da narrativa que recolherá a principal, a narradora denominada aqui em quarto lugar, submetida com propósito, ou de propósito na proposição. 2˚ dia : 07-03-2013 Ela, feminina, a narradora denominada aqui em quarto lugar, toma posse dessa narrativa a fim de transformá-la, ela mesma, a narrativa, ou, se preferir, a narradora aqui denominada em quarto lugar, já que tanto faz, esta narrativa sendo narrada, em primeira pessoa. Em uma narrativa descompaçada, sem grandes discussões, todo personagem é narrador, seu melhor leitor, “autor”, personagem, principal. Eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, terei de reconhecer o próprio erro da narradora denominada aqui em quarto lugar em me propor essa narrativa com propósito de propósito da proposição, como meu. Cada narrador dessa narrativa, eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, serei secundariamente personagem da narrativa da narradora denominada aqui em quarto lugar, ao mesmo tempo em que ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, será secundariamente personagem principal da narrativa do narrador autodenominado em primeira pessoa, eu. Se o descompaço é o tempo necessário para a narrativa da proposição acontecer, então seremos juntos em dois tempos distintos. 3˚ dia : 08-03-2013 4˚ dia : 09-03-2013 5˚ dia : 10-03-2013 6˚ dia : 11-03-2013 Me enganei, eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, pois imaginei que não entraria na própria proposição com propósito de propósito da narrativa descompaçada dela, da narradora denominada aqui em quarto lugar. Acreditei que o erro dela, da narrativa descompaçada, da narradora denominada aqui em quarto lugar, não faria com que a minha narrativa, que a deixa ser coadjuvante, errasse. Deixei os tempos desta narrativa se descompaçarem sem regra, sem limite, e descobri que a narradora denominada aqui em quarto lugar não aceitou sua própria narrativa descompaçada e, além disso, tomou-lhe conta que ser coadjuvante desta narrativa, aqui, colocaria-lhe no mesmo tempo de sua própria narrativa vivida. No mais tardar dos dias, ou ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, esqueceria de narrar descompaçadamente a esta, ou eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, faria ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, perceber que deixei de escrever esta narrativa nos últimos dias para que a narrativa descompaçada se tornasse com propósito de propósito no próprio erro da narradora denominada aqui em quarto lugar. 7˚ dia : 12-03-2013 Vou continuar nessa tentativa descompaçada de descompaçar a narrativa de duas personagens em diferentes tempos. Me deixarei novamente sem correr minha narrativa por alguns dias para ver se a
narradora denominada aqui em quarto lugar entende o descompaço do narrador autodenominado em primeira pessoa, nesta narrativa. 8˚ dia : 13-03-2013 9˚ dia : 14-03-2013 10˚ dia : 15-03-2013 11˚ dia : 16-03-2013 Agora sim, acredito que, de uma vez por todas, a narradora denominada aqui em quarto lugar se deixou acompanhar por sua própria proposição com propósito de propósito, seu maior próprio erro. No momento em que eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, retoma a tentativa da e na narrativa descompaçada entre as duas personagens, a narradora coadjuvante dessa narrativa aqui esquece de retomar sua própria narrativa vivida. Em tempos distintos na narrativa, diferentes na proposição, temos a possibilidade de iniciar algum tipo de erro conjunto, em lugares contrapostos, enredados em tempos narrativos, realocáveis toda vez que a ordem dos narradores alcançam a si próprios e esquecem de que a personagem principal de suas narrativas são elas mesmas. Eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, sente a liberdade necessária do momento para iniciar a narradora aqui denominada em quarto lugar em primeiro lugar nessa narrativa de agora, pensada para iniciar-se por um narrador personagem coadjuvante. Ela, a protagonista dessa, a narradora denominada aqui em quarto lugar, não se secundariza ao narrador autodenominado em primeira pessoa. Por mais que pareça que a sua narrativa esteja aqui, nesta, sendo narrada em terceira pessoa, ela se encontra no quarto lugar, fora das denominações obrigatórias que a língua estabeleceu para os romances com os pronomes pessoais, para as narrativas, para mim, para os escritores e para esta aqui. Eu, o narrador autodenominado, no lugar de primeira pessoa, num lugar comum, confortável como todos os meus contemporâneos, tenta deixar o ego trabalhar para alcançar o único erro próprio de uma narrativa descompaçada, no interesse de contrapor o eu pronominal com um lugar inexistente, sem ficção, o quarto lugar, sem personagens em segunda ou terceira pessoa na narrativa. 12˚ dia : 17-03-2013 13˚ dia : 18-03-2013 Concordei com a narradora denominada aqui em quarto lugar quando me disse, fora desta narrativa, na narrativa vivida, dentro da narrativa dela, que a minha tentativa, do narrador autodenominado em primeira pessoa, em torná-la protagonista desta narrativa aqui não condizia com a minha atuação coadjuvada na narrativa dela, da narradora denominada aqui em quarto lugar. Tive de concordar, mal sabe ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, que nossas narrativas acompanham sua proposição com propósito de propósito no momento em que somente eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, consigo entender que elas, as nossas narrativas, se descompaçam apenas pela impossibilidade de serem um grande erro. Somente errando é que nós, juntos, em tempos narrativos diferentes, em lugares e espaços vividos próprios, podemos acertar em algum tipo de descompaço. 14˚ dia : 19-03-2013 15˚ dia : 20-03-2013 Somente no momento incerto em que ocupo a narrativa da narradora aqui denominada em quarto lugar como possível protagonista de sua própria narrativa é que assim consigo criar a ficção mais verdadeira desta narrativa de aqui e agora. Mal percebe ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, que
eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, consigo demonstrar-lhe seu maior erro em me propor um compasso rítmico perfeito de nossas narrativas em distâncias assimétricas quando alcanço a maior mentira em torná-la coadjuvante desta narrativa. Sendo que o pressuposto de minha negação, do narrador autodenominado em primeira pessoa, ou da minha proposição da proposição com propósito de propósito da narradora aqui denominada em quarto lugar ocupa o lugar primordial para a realização do nosso descompaço. O externo dessa narrativa vivida por ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, e o externo do meu, do narrador autodenominado em primeira pessoa, possível protagonismo vivido na narrativa dela, da narradora denominada aqui em quarto lugar, é a propositiva de um quarto lugar, um quarto tempo, um quarto espaço, uma experiência autocriada para ser vivida fora do eu, você e eles, e muito menos do nós, fora da tradição pronominal da língua. 16˚ dia : 21-03-2013 17˚ dia : 22-03-2013 Conseguimos! Finalmente o descompaço parece ter tomado corpo, pena que sua forma material só nos parece existir nesse lugar insipiente e desconhecido, entre esta narrativa, a minha, do narrador autodenominado em primeira pessoa, e da narrativa da narradora denominada aqui em quarto lugar. Essa característica própria do meu modo, do narrador autodenominado em primeira pessoa, de conseguir alcançar o maior próprio erro da proposição com propósito de propósito da narradora denominada aqui em quarto lugar, apenas foi possível pela maneira em que eu, o narrador autodenominado aqui em primeira pessoa, demonstrei a ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, que criaria esta narrativa a partir de minha própria narrativa vivida. Isso foi um ato ético-politico, já que a minha proposta dentro da proposição com propósito de propósito da narradora denominada aqui em quarto lugar foi de demonstrar-lhe apenas, no futuro próximo do momento da narrativa dela, o seu maior próprio erro, o de acreditar que as nossas narrativas não pudessem existir no mundo, ao mesmo tempo que, sem estarem perfeitamente compassadas. Foi assim, criando uma ficção própria para ocupar a narrativa da narradora denominada aqui em quarto lugar que consegui alcançar meu objetivo, o de criar um lugar entre, o quarto lugar de nós dois, em tempos diferentes, com princípios outros, recebendo as mesmas personagens, contradizendo minha própria coadjuvação com o protagonismo dela nesta narrativa e também contradizendo a coadjuvação dela, da narradora denominada aqui em quarto lugar, com o protagonismo na minha narrativa nesta narrativa aqui. 18˚ dia : 23-03-2013 19˚ dia : 24-03-2013 Se todo dia em que passa o tempo próprio da narrativa vivida, desta, aqui, ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, pudesse fazer as coisas acontecidas nas nossas duas narrativas se ordenarem de maneira a aparentarem abrigar o mesmo lugar de uma realidade possível, que a literatura nos dá toda vez que pretende mimetizar algum aspecto da nossa realidade obrigatória, nós, eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, e ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, estaríamos narrando um ao outro, como coadjuvantes de nós mesmos, e protagonizando o lugar de fora, o entre. Se estivesse assim nesta narrativa, nós estaríamos esquecendo do interesse conjunto de reavaliar nossas ações através da cogitação. A escassez do entendimento da narradora denominada aqui em quarto lugar em acreditar no descompaço, que lhe desmente, vem na medida certa para que a minha tese, de como demonstrar seu maior próprio erro, possa ser viável, já que ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, pensa que se acontece na minha narrativa, do narrador autodenominado em primeira pessoa, como principal, como a personagem protagonista. Mal sabe ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, que somente ocupa esse lugar nesta, aqui, de agora.
20˚ dia : 25-03-2013 21˚ dia : 26-03-2013 A repetição da narradora denominada aqui em quarto lugar nesta narrativa, terceirizada no lugar da língua, assim como a constante repetição do narrador autodenominado em primeira pessoa, inicialmente colocado no lugar de toda a língua, não é nada mais nada menos que o interesse das duas narrativas se descompaçarem entre as possibilidades de estarem sendo vividas em realidades possíveis dentro desta narrativa. Ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, se repete em sua narrativa, na minha e nesta de maneira a ser diretamente nomeada como própria, já que foi ela mesma que, a narradora denominada aqui em quarto lugar, me colocou a imposição do ritmo na minha narrativa, do narrador autodenominado em primeira pessoa. Eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, me repito nesta narrativa a fim de transparecer a ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, o seu uso constante, não para não reafirma-la sempre que posso, mas para não fazer com que eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, me esqueça da minha vontade do seu descompaço nesta narrativa. O protagonismo da narradora denominada aqui em quarto lugar nunca foi preciso ser nomeado na minha narrativa, do narrador autodenominado em primeira pessoa, já que sua visualidade me é vivida na repetição do cotidiano desta narrativa, aqui, de agora. Dessa maneira, o interesse desta narrativa no descompaço não se dá pelo meu método metódico de me ocupar da proposição com propósito de propósito dela, da narradora denominada aqui em quarto lugar, a fim de assegurar a memória desta narrativa, mas para dar a sensação de simetria do compasso entre nossas narrativas através da repetição de nossos possíveis acontecimentos conjuntos nas nossas narrativas em diferentes tempos. Somente assim é possível nos descompaçarmos, acredito eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa. Somente assim alcanço a minha maior mentira, ou melhor, a ficção necessária para realizar um descompaço criado. 22˚ dia : 27-03-2013 23˚ dia : 28-03-2013 A inexistência de outras personagens nesta narrativa não exime a possibilidade da existência de outras personagens nas narrativas das duas únicas personagens desta. Caso contrário, as personagens do eu pronominal de consciência única desta, o narrador autodenominado em primeira pessoa, e do ela submetido a possibilidade de erro nesta, a narradora denominada aqui em quarto lugar, não seriam senão mais um truque do narrador, do eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, para alcançar o julgamento perfeito do erro da proposição com propósito de propósito da narradora aqui denominada em quarto lugar com uma proposta intra, nesta, de alcançar o descompaço entre as personagens aqui vividas. Porque então o eu, do eu pronominal eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, teria de me denominar sem auxílio de um narrador onisciente, sozinho, sendo que desde então a minha única postura é negar a propositiva da narradora denominada aqui em quarto lugar, sem ao menos me, eu, sujeito, narrador autodenominado em primeira pessoa, propor a discorrer minha própria narrativa para ser autojulgável? Foi assim, me fazendo reflexivo, que em conversa com a narradora denominada aqui em quarto lugar, fora desta narrativa, fiz com que ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, acreditasse que o nunca necessário do descompaço, seria a minha, do narrador autodenominado em primeira pessoa, impossibilidade, na literatura, de me autodenominar um narrador por completo presente, já que sua postura me é mais importante, para alcançar o verdadeiro descompaço ficcional da criação do quarto lugar, ser confiável do que duvidosa. Porque então teria eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, de me autonomear um narrador secundário da narrativa dela, da narradora
denominada aqui em quarto lugar? Eu sei dessa necessidade, do narrador autodenominado em primeira pessoa, porém, a narradora denominada aqui em quarto lugar já me responde a reflexão desta, pra mim, pro narrador autodenominado em primeira pessoa, quando parece acreditar que o compasso perfeito de nossas narrativas acontece em sua narrativa vivida, nas nossas. 24˚ dia : 29-03-2013 25˚ dia : 30-03-2013 Seriam tantas as narrativas possíveis na realidade caso esta narrativa tivesse optado por abarcar todas as outras personagens acontecidas na nossa narrativa, minha, do narrador autodenominado em primeira pessoa, e dela, da narradora denominada aqui em quarto lugar, que seria assim mais fácil que o eu, meu, do narrador autodenominado em primeira pessoa, alcançasse o descompaço afirmativo entre eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, e o ela, dela, da narradora denominada aqui em quarto lugar. Em minha narrativa vivida, do narrador autodenominado em primeira pessoa, fora desta narrativa aqui de agora, as personagens se autoprotagonizam a fim de secundarizar a narradora denominada aqui em quarto lugar, com o interesse claro de retirá-la do lugar criado para nós, que eu mesmo, o narrador autodenominado em primeira pessoa, concebi. Porém, mal sabem as outras personagens da narrativa vivida nossa que convenço-as da simetria de nosso compasso, a partir do momento em que o eles, deles, das outras personagens, na nossa narrativa e na minha narrativa vivida, apenas aparecem para retomar a mentira a narradora denominada aqui em quarto lugar. Ou seja, a realização criativa das narrativas, das personagens, das denominações, das narrações, dos narradores, são personificações abstratas do material do quarto lugar, onde coisas acontecem em simultaneidade, mas em completas decorrências diferentes, com em tempos contrapostos pela ação de confiar numa possível realidade possível. Nos são viáveis cerca de seis tipos de narrativas nesse quarto lugar em que a linguagem tradicional da literatura humana nos deu a brecha de explorar, para nós, para mim, o narrador autodenominado em primeira pessoa, e para ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, sem outras personagens vigentes nesta narrativa. A narradora denominada aqui em quarto lugar me pareceu compreender factivelmente tal situação quando o eu dela, o narrador autodenominado em primeira pessoa da narradora denominada aqui em quarto lugar, se justapôs ao meu eu, a narradora denominada aqui em quarto lugar do narrador autodenominado em primeira pessoa. Nesse exato momento desta narrativa aqui, em um tempo único que consegue abarcar dois outros tempos em diferentes estados e maneiras concebíveis, que o descompaço tomou uma real forma material e se apresentou rapidamente quando a narradora denominada aqui em quarto lugar achou que entendeu minha proposição, do narrador autodenominado em primeira pessoa, de sua proposição com propósito de propósito. Abriu-se assim um leque, que continham seis leves hastes, fundidas uma a outra, sem a pretensão de dançarem coletivamente: duas foram as vividas, duas outras as criadas, uma apenas se autonomeou como nossa, se agarrando fortemente a última, a esta. E como um lapso de felicidade estampada em meu rosto, do narrador autodenominado em primeira pessoa, ocorreu um simulacro simétrico e perfeito do maior próprio erro da narradora denominada aqui em quarto lugar, esclarecendo o caminho confortável de nossa possibilidade de estarmos compassadamente sendo narrados por nós mesmos e protagonizando um ao outro em nossas próprias narrativas, da narradora denominada aqui em quarto lugar me narrando no narrador autodenominado em primeira pessoa e do narrador autodenominado em primeira pessoa se narrando na narradora denominada aqui em quarto lugar.
26˚ dia : 31-03-2013 27˚ dia : 01-04-2013 Pela primeira vez ocorreu em nossas narrativas vividas a constituição negativa de uma reflexão da narradora denominada aqui em quarto lugar, para que eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, respondesse o porquê do interesse tão profundo das outras personagens das outras narrativas em fazerem uma narrativa própria, fora da nossa, dentro desta, que sugerisse mais uma criação, ou melhor, a permanência constante do terceiro lugar e a retirada da muda posta para representar o nascimento de um novo, o quarto lugar, que ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, nem sabia a sua denominação. Respondi-lhe que, eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, a sua, da narradora denominada aqui em quarto lugar, narrativa pudesse se justaposta entre todos os lugares pronominais que esta narrativa de aqui e agora quis lhe mostrar, porém que não poderia lhe responder efetivamente tal reflexão, pois mantinha esta narrativa para que nossa narrativa não deixasse que a sua caísse por entre outras personagens de outras narrativas. Ou melhor, eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, não poderia lhe, a narradora denominada aqui em quarto lugar, responder algo tão esclarecedor, sendo que o interesse podia se dar na constatação de que o real descompaçamento do descompaço poderia também se dar pelo desenredamento do enredo do meio, tornando o início o fim e o fim o início desta narrativa, aqui, de agora. 28˚ dia : 03-04-2013 29˚ dia : 04-04-2013 Eu Tu Ele Nós Vós Eles
(sujeito : consciência) (julgamento de sinceridade : você) (Ela submetido : feminino oculto : tradicionalmente esquecido) (eu + tu + ele : antecipador do quarto pronome pessoal oculto) (julgamento de sinceridade em pluralidade : tus : vocês) (Elas submetidos : pluralidade de femininos ocultos : tradicionalmente esquecidos)
30˚ dia : 05-04-2013 31˚ dia : 06-04-2013 Eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, e ela, a narradora denominada aqui em quarto lugar, talvez pudéssemos constituir uma narrativa que se descompaçasse apenas na discussão consciente entre dois lugares distintos, porém que percorressem a mesma voz e a mesma personificação em narrativas em tempos diferentes. Essa conversa só seria útil se antes de tudo pudéssemos perceber juntos qual é o meu, do narrador autodenominado em primeira pessoa, verdadeiro lugar na narrativa da narradora aqui denominada em quarto lugar. Será que eu, o narrador autodenominado em primeira pessoa, também estou sendo pensado a ocupar um lugar em construção na narrativa dela, da narradora denominada aqui em quarto lugar? Será que devemos então, para que esse descompaço tanto almejado seja concreto entre as narrativas e nessa narrativa de aqui e agora, discutir o nosso lugar na linguagem entre e por? Ou
A
as cores sem nome Sentada na cama, o quarto em penumbra, mas ainda clareado por um restinho de sol que entra pela janela. Faz calor. O pouco de vento que sopra lambe a ponta dos pés, mas não chega a resfrescar o corpo. Que lhe parece cansado. Cansado de nada. Hoje fez nada além dos afazeres impostos pela fisiologia: comer, beber, expelir, banhar-se, dormir. Daqui dá para ver a rede muito azul estendida na choupana. Daqui para lá muitos verdes, um pouco de marrom-madeira e finalmente o azul. Que paleta de cor mais miserável seria sem esse azul. Uns perambulam pela minúscula casa. Outros ensimesmam-se em tarefas ociosas. Quase não há fala. Ninguém fala. Apenas gesticulam quando algum acontecimento estranho à rotina os assalta. Um casal de pássaros voa e volta aos mesmos galhos. Não se sabe se caçam, vigiam, ou apenas passeiam. Os pássaros têm tons de cinza e a cabeça azulada. Vez por outra, muitos cachorros ladram. Em latidos estridentes que beiram ao insuportável. Os cachorros da vizinha, disseram. Aqui o silêncio tem sons indecifráveis: grilos? Cigarras? Maritacas? Ou são sapos que coaxam? É bem possível que um pouco de cada é que faz essa sinfonia alucinante. Lembrou de uma reportagem que saiu sobre um missionário que descreu do deus que o havia enviado. O modo de estar no mundo tão simplificado dos índios, aos quais veio para ensinar salvação, deve ter-lhe sido muito mais espantoso e com mais sentido do que aquelas contradições todas de sua suposta vida civilizada. Tais índios não têm palavras para descrever cores, mas isso não deve significar desdém a toda sorte de manifestação das cores nas coisas da natureza. Pelo contrário, se não as nomeiam, talvez, as enxerguem com mais inteireza. Como se fizessem parte de alguma mágica diária: sem porquês, sem pra quês; apenas se fazendo cor. Eles também não têm números. Quem dera que por aqui também se pudesse imaginar melhor economia do que essa feita em valores especulativos orientados pelos números ditos cardinais. Um dia desses a tentaram explicar o significado de 1 bilhão. E deram-lhe exemplo de uma quantia que deveria ganhar diariamente por uma quantidade irrazoável de anos e ainda assim jamais chegaria lá. E pensou consigo mesma que espécie de depravação é essa de meia-dúzia de pessoas que acumulam cifra plural de bilhão. Na linguagem daqueles índios, não há tempos verbais de passado ou futuro. Não há tradição oral. Ninguém explicou nada para ninguém e ainda assim eles conseguem manejar uma vida em comunidade como os seus pais o fizeram, e os pais de seus pais. Eles se ocupam das coisas que são. E disseram que não conhecem o desenho ou quaisquer outras formas de arte. E foi inevitável pensar no grande equívoco que se tornou a arte, cá no mundo refém do particípio. Um criar que virou uma adequação monótona de gerúndios. Por certo, sem saber da arte, aquele grupo de índios conseguiu inventar coisa mais excelente com as manifestações do que por aqui carregariam tal nome. Por exemplo, incorporou à sua linguagem falada assobios que seguem os tons que criam significados para além de tonalidade padronizada. Palavras e frases inteiras po
dem ser construídas com o recurso dos assobios. Por meio dos tons, enquanto mastigam, nem por isso, a conversa se interrompe. Aqui na vida que finge se fazer certa de seus significados dados pelos significantes, há muito impostos pela tradição, haveria possibilidade de alguém sobreviver sem tais falas e escritas codificadas? Foi assim que desejou um dia ser como aqueles índios, daquela tribo, ou quase bicho. Não precisar se saber, tampouco dizer de si. Estabelecer um encontrar-se com outro em que fosse apenas necessária a presença e tudo mais pudesse ser dito por suspiros, grunhidos, assovios, ou ser a pele do corpo, também pele de percussão. Haveria entre eles uma linguagemcanto. Por aqui, os homens são lunares. Quando o astro Mãe inicia sua ronda, as mulheres marejam os olhos de cansaço e eles se agitam de lá para cá. São estripulias de todos os tipos. Reinventam as formas de caminhar. Como danças, ainda que fora de qualquer compasso previsível. As mulheres se recolhem. Se dormem. Enquanto aqueles se inflamam debaixo do céu negríssimo. Quando a noite se faz quase dia um galo canta rouco no quintal. Um outro, em réplica, responde um pouco mais agudo, e mais um outro e depois outro: como eco. O galo daqui canta de novo. E o diálogo permanece até que alguma luz desponte alaranjando a vida que mora do lado direito da janela. As mulheres amanhecem em suspiros e preguiças. Levantam, uma de cada vez, para um silêncio necessário. Andar pela casa. Reconhecer os espaços. Saber de como o corpo vai se comportar. Uma toma chá, a outra café. Vão ao encontro do sol. Uma desce as escadas que dão para o quintal e sobre uma pedra escura se deixa iluminar. A outra prefere subir as escadas que dão para a choupana. Logo mais, visitarão a cozinha para o desjejum. Daí, vêm os primeiros sorrisos. É bom dia. Há dias que, quando o sol não resiste adormecer por detrás das nuvens cor de chumbo, a rotina se interrompe. As mulheres se põem inquietas num perambular que não finda. O silêncio quando maculado antes do tempo quebra algo de inteiro que se refaz todas as manhãs, sob a luz do sol que dá forma ao apaziguamento necessário para mais uma jornada. Sem isso, os gestos perdem seus contornos. Não se desenham como deveriam. Ficam borrados entre um e outro. As tarefas não se completam. A fala se impõe para o preenchimento das lacunas. Explicar, justificar, aquilo que antes era perfeitamente sabido com atos. A fala-muleta faz com que tropecem uns nos outros.
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o segredo dos pássaros Um dia desses, um sábio que pertence a uma tribo irmã veio. Não se sabe se em visita, em missão ou arrependimento. É comum, nas tribos mais desenvolvidas, do ponto de vista da linguagem-generosidade, sempre que algum sábio vacila gravemente nos tratos da vida em comum, fazer uma espécie de exílio de expiação de culpas no seio de uma comunidade subdesenvolvida. Não deve ter sido o caso. Tal visitante não tinha modos de quem vacila. Muito pelo contrário, era um sábio-observador. E é certo que todo aquele que não faz da fala uma tecnologia para preencher silêncios resguarda o que há de mais puro na alma. A tagarelice é sempre sintoma de ausência. De pedaços internos que faltam, seja por inabilidade de se construir gente, ou por violência. Nas tribos subdesenvolvidas, é corriqueiro toda sorte de violência. A vida em comum é mediada por objetivos pueris que chamam de produção. E os objetivos pueris quase sempre se corrompem durante os percursos. Nessas comunidades, todos estão envolvidos na confecção de um produto de ordem efêmera, comparado-se ao tempo da alma, nem sempre úteis, tampouco imprescindíveis. O nível de insensatez dessas espécies de tribo tornou-se tão grande que tranformou a linguagem em produto. No início, a linguagem era ritual, seja de luto ou celebração. O diariamente era sem finalidade. Cada dia: inteiro em si mesmo. O visitante passou poucos dias por aqui. Era um sábio, só agora se foi possível perceber, eleito dentre as espécies mais puras. Seu caminhar era pendular, quase desequilibrado aos olhos de quem o observa. No entanto, aquilo que era aparentemente desequilíbrio é na verdade uma sofisticada forma de estar no mundo conectado aos mais sutis vetores de força, seja essa humana ou da natureza. O caminhar que oscila está apto a perceber, reconhecer e agir ao mais leve mover-se existencial das coisas. Seja o sussurro do vento, que logo mais tornarse-á temporal, seja o mais quieto suspiro de alguém que deixa escapar um rumor interno que não tardará transformar-se em fúria. Aquele que caminha frouxo não tem uma existência autocentrada de cujo eixo, que baliza a vida, está nas plantas dos próprios pés. Quem caminha certo da firmeza dos seus próprios pés, na verdade, leva uma vida irresoluta. E a mais suave mudança vetorial, tropeça em si mesmo. O visitante tinha seu eixo balizador no osso ímpar situado na parte anterior do peito, em que se articulam as costelas e as clavículas. Não à toa, estava entregue a toda forma de adaptação aos hábitos que não eram seus, sem gerar transtornos aos seus próprios modos de. Foi o único que, quando veio a tempestade, não se agitou em preocupações sobre si. Na região centro-sul do continente, era usual observar-se a mutação dos pássaros que ao longo dos tempos especializaram-se em determinadas formas de canto. Na vida engajada com outras espécies, os pássaros daquela região estabeleceram cantos aos quais serviam de comunicação entre os da mesma espécie, ao tempo que incorporaram tons que junto às outras espécies participavam de uma mesma composição harmônica. Essas especializações do canto operaram aperfeiçoamentos estruturais no formato das patas e bicos. Recentemente, descobriu-se que também algumas famílias de tribos que habitavam por ali conseguiram desenvolver-se ao ponto de criar transformações estruturais no corpo. Sobretudo, nas mãos. Famílias de escritores, músicos, filósofos e domadores de animais selvagens tiveram modificações significativas nos dedos das mãos e dos pés. O visitante, por exemplo, era da família de músicos-escritores de uma tribo irmã. E apenas no último dia que esteve por aqui, pode-se perceber que na sua mão esquerda havia apenas quatro dedos. Foi especialmente desenvolvida para certos instrumentos de corda e manejo virtuoso da pena para as escritas sobre linguagem da sua tribo.
helena As árvores eram altíssimas e a quantidade tamanha que se amontoavam de um jeito que dali não se podia supor o céu. Toda sorte de aromas o envolviam como um afago. Os pulmões respiravam em sua plenitude. Hoje diria que aquilo era estar vivo mas, naquela idade de cinco anos, não existia ainda a ideia de finitude. Tudo era vivo, vida, ida-e-volta. Não havia pressustos de qualquer tipo de depois. De fim.
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A experiência de vazio parece ter tomado o corpo inteiro. A notícia de morte do irmão trouxe temporariamente uma inabilidade do sentir. Tudo ficou relapso ao ponto de já não se saber onde começava uma dor ou um prazer. Do excesso de tudo, veio o torpor. Anestesiado, impôsse sair para uma caminhada. Voltar a saber-se de pés pesando o chão, talvez, pudesse trazer de volta algum senso de direção. Mas não. Que possibilidade é essa de existência sem distinção do sentir? Que animosidade era aquela que lhe aguçava o faro atrás de qualquer conflito que lhe pudesse trazer de volta alguma sensação conhecida? Estar. Ficar. Permanecer. Verbos inarticulados naquela lacuna de vida. Um livro por escrever, um amor para desamar, uma viagem para planejar. Tudo começava a correr o risco de perder sentido. Ela tinha os lábios cor de cassis em dias de frio. Aquilo veio à lembrança quando começou a sentir fome. Continuou caminhando. Ignorou o estômago que lhe pedia atenção. O cansaço tinha, agora, outros nomes. Virou a esquina que dava para uma rua próxima ao edifício que costumava morar. Era inadequado não ter naquilo qualquer importância afetiva. Lembrança nenhuma estava atada a sentimento algum. Como se aquele pedaço de história já não fosse seu. Poderia seguir sem olhar para trás. Logo adiante, reviu a praça em que costumava sentar-se para fumar um cigarro e ler aleatoriamente parágrafos de um novo livro que acabara de comprar. Se alguma parte lhe seduzisse, ele cheiraria as páginas, fecharia os olhos e, como se fizesse uma prece, sentir-se-ia grato por encontrar palavras de companhia para o dia inteiro. Caminhou ao redor da praça e seguiu.
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Depois que ele morreu, a lucidez foi insuportável. Confesso. Como se fazia? Como que era? Estar no mundo pr’o quê? Pr’a quê? Todo dia era dia de fingir. O que tinha aprendido, até ali, era que a vida deveria ser para a família, para os filhos. Para que os filhos, tivessem filhos e, eu agora pudesse ser avó. Minha família era os meus dois filhos. Mas nem sei ao certo que espécie familiar tínhamo-nos tornado. Cada um pr’um lado. Quando dava, um tentava visitar o outro a título de curiosidade: anda fazendo o quê? Tem trepado com quem? Está trabalhando menos? Àquela altura, já tinha chegado a fase dos remédios. A diversão deles era ver que nova pílula eu tinha acrescentado à paleta farmacêutica de cor.
Nunca quis saber do que ele morreu. Saber pr’a quê? Ia me adiantar de quê? Não teria morrido menos saber se morreu de AVC ou insensatez. Sempre foi imprudente, isso eu sabia. Mas teria ficado tentada a culpá-lo por morrer se soubesse que foi aquele seu jeito impulsivo de levar a vida que o fez tropeçar na morte. Preferi culpar ninguém. Culpei a mim, nos primeiros dias impossíveis de respirar. Nunca quis ter filhos. Às vezes, acho que os tive por descuido. Mas não dá para se dizer isso em voz alta. Quem aguenta ouvir que a maternidade não me era natural? Natural me era levar uma vida des-tino. Como o inseto que vi ontem passear pela varanda. Ia de nenhum lugar para lugar nenhum. Ia indo. Cansado das asas. Ia numa resiliência tão admirável. Uma das patas, ele a arrastava com mais dificuldade. Me peguei pensando. O que será que o teria feito aquela deformidade? Foi algo fortuito da sua vida natural de inseto? Ou um humano, a não lhe entender sua necessidade de existir, o tentou esmagar por farra ou fobia? Voltei a me concentrar no cigarro que fumava. Nos estalos do papel que queimava disforme, que com o fumo era brasa e depois cinzas. Tentei lembrar do ano em que conheci o pai dele. Fiquei aqui tentando lembrar: que ano era aquele? Era ano de eleição, não era? O ano do palhaço? Ou o ano que o palhaço virou o melhor político? Ele e o jogador de futebol? Como pode, né? Nunca pensei que essas coisas poderiam se misturar: política, palhaçada, futebol. Mas naquela época, era assim. Uma palhaçada só, trazer uma copa do mundo pra cá. Quem já viu? Já não cabíamos nos metrôs. Ir e vir, trabalho, casa, era ser sardinha. E o presidente na televisão a nos convencer que éramos mais patriotas quando vestíamos a camisa da seleção. Não gosto nem de lembrar. Foram tantas as tragédias. Tantos os gritos. Tantos os gols. Tantos os mortos. Fez-se uma guerra civil para se ver futebol. Aquele ano, foi o ano que decidi usar saias, não foi? Ou foi o ano das calças jeans bem apertadas e camisas azuis? Lembro das suas calças de brim.
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Mas era dali que sua história se desenrolaria em muitos fins. E começos que não sabia de onde surgiam. O clima era úmido a ponto de não se saber se calor ou frio. Noite ou dia. Outra vez, se visse com os olhos de hoje teria ali a certeza de que estava testemunhando a primeira experiência de infinito.
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Naquele momento, tanto fazia se amor ou se faca. Voltou à rua com a certeza de que de um jeito ou de outro sangraria. Se deixasse o vinho falar, talvez, ouvisse alguma fala sã. Porque o dia inteiro lhe passou indecentemente beirando o absurdo. Guardou as palavras dentro de si evitando o desastre. Ainda assim, quis bater em duas, três pessoas, que viu pela frente pelo simples deleite do desejo de revanche.
Pensou seriamente na misantropia como modo de vida. Considerou, no entanto, que talvez levar esse plano a cabo lhe custaria uns bons bocados de prazer. Alguns fragmentos de afeto que, apesar das dores dos depois, valeriam. Estabelecer uma hierarquia para as inquietações que tinha não lhe parecia razoável. Haveria de encontrar um jeito de forjar alguma paz, ainda que não soubesse com quem ou o quê. Sofrer não era uma opção. Várias vezes, achou que não haveria linguagem para aquele seu sentir. Tinha algo de bicho. Mas, já que era assim, se era para ser linguagem, não poderia ser demasiadamente pobre. Outra dia, descobriu que havia absorvido a dor da ausência e transformado em saudade. Os sonhos eram como camadas de tempo que a pele da realidade recusava.
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Eu tinha pouco mais de vinte anos quando tentaram me convencer de que o desleixo pr’as coisas da vida, a desesperança com as coisas do mundo, era patologia. Que o certo era se deixar encantar, enternecer: o novo namorado, as flores, os bebês. Era rosa, a pílula que deveria me conduzir para uma vida normal. Passei a tomar a pílula, menos para agradar, mais para não ter que responder sobre os meus desejos de nada. Dar respostas sobre si é sempre infame. Quando saí da casa dos meus pais, finalmente, pude me fazer melhor diagnóstico. Não sofria de depressão como disseram. Sofria era de mais do mesmo. A mesmice das coisas. A repetição dos ciclos. Com o passar dos anos, vai-se aprendendo a saber sobre antes e depois. Veio-me, então, essa vidência pragmática.
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Largou as mãos de sua mãe e fugira pr’ali como se tivesse a necessidade de esconder-se, mas, na verdade, latejava nele a estranha sensação de um chamado. Ficou estendido de pé por muito tempo, acalentado por aqueles sons que pareciam vir de todos os lados. Até então, só havia aprendido sobre o vento e sobre as árvores que, quando juntos, cantavam. Jamais poderia supor que aquela árvore cantante que acabara de ver abrigava em sua casca um bichinho capaz de fazer coro àquele barulhão.
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Os olhos dela, castanhos-canela, sob a luz do sol lhe veio de assalto. Dali a pouco se sentaria para atender à vontade de um café. Escolheu a mesa que ficava entre a janela e a parede – onde havia uma prateleira na qual descansavam xícaras e bules. Daquele canto era possível ver todos os personagens daquela cena clichê que se repetia todos os domingos e ainda saber dos acontecimentos do lado de fora. Ignorou o cardápio e apenas gesticulou para a garçonete
já acostumada aos seus mesmos desejos de café coado, sem adoçante ou açúcar, e um pedaço de bolo com goiabada. Inquieto, mais do que os dias em que notava nele certo descompasso, a garçonete resolveu não perguntar. Nem por sua esposa, que nunca mais havia passado por ali, nem porque uma das mangas de sua camisa estava violentamente rasgada. Serviu o café e o bolo, sorriu e comentou que havia começado a ler o livro do Casares que ele havia indicado. Ele tentou sorrir de volta. Foi um sorriso trágico. Que naquela mera tentativa de, fez-lhe cair uma lágrima. Como se tivesse represado há muito tempo as angústias por detrás das pálpebras. A tentativa de sorrir foi como uma fissura por onde o furor das mágoas logo lhe abririam espaço para se derramar. A garçonete segurou-lhe a mão direita por alguns segundos, beijou-lhe a testa e voltou ao que tinha que fazer. Nele, havia um desacordo do que sentia e as lembranças que vinham como slides de imagens desconexas. Eram paisagens que não sabia ao certo se havia testemunhado. Eram todas de mar. Vistas por incontáveis pontos de vista. Em nenhuma, havia registro de vida humana. Só sua própria presença incorpórea. Em breve, estaria de pé sobre a linha do horizonte.
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Três dias. Os últimos em que o pai dele insistiu ao meu lado. Minha sonolência, uma constante. Corpo doído, braços frouxos, meneava a cabeça. Ele entendia que não. Mas era: nem sim, nem não. Os vidros escuros dos xaropes pela metade. Pelos vidros transparentes, via as cápsulas brancas quase acabando. Eu estava quase lá. Curando. Mais uma –ite; daquela vez, nos brônquios. Ele balbuciava aquele velho: “hã”. Aborrecida: “não, nada.” Mais um: “tá doendo, né?” E eu dizia: “um pouco” – com vontade de mandar ele se foder. Tudo assim: mais ou menos. Não é era pra menos que nos havia acostumado ao desconforto. Quando terminou um dos remédios dos vidros escuros, o derrubei no chão. Um mosaico se formou com outros pedaços de vidro quebrados. Era uma tarde de inverno, a luz diagonal que vinha da janela fazia brilhar nos meus olhos uma espécie de caleidoscópio – eram tão diversos em forma, cor e transparência, os cacos! Um chão de estilhaços, era motivo mais do que suficiente para não nos movermos. Ninguém queria correr o risco de sangrar – mais uma vez? Não era pra mais que vivia sonhando, delirando para ser mais exata, naquela eterna falta do que fazer. Ninguém perambulava em nossa casa. Ali, ninguém falava, nem cantava, nem nada. Tinha por vezes aquele sofejar dele que me era um martírio. Mais uma tosse, e eu me lembrava dos brônquios. Coração frouxo. Tinha sono. Passados como que arrastados, os três dias, e ele foi embora. Era uma espécie de regra. Músico que era, penso ser aquele seu jeito de estruturar acordes. Ele saia pela portas dos fundos. E eu me apegava às pílulas brancas e parava de tomar os xaropes muito doces. Desistia da cura, desistia do drama. Em janeiro daquele ano, vivi dias que beirou o surreal. Como se houvesse uma reprogramação do corpo para perceber certos modos de ser no mundo. Tinha me dado à convivência com o
pôr do sol e a aurora. E questionei aquilo que damos nome. Em cadência, certos pensamentos flertaram comigo. Pensamentos que me reapareceram hoje. Como aquele em que me dei conta de que a imagem pura e simples, considerada como fragmento – o que seria uma fotografia, sabe? – é impossível distinguir o que é amanhecer e anoitecer. Aquilo que já temos por conhecido é que nos faz reconhecer a miríade de imagens que se sucedem como aquilo que se põe e aquilo que nasce. Mas, o certo é que, a imagem que se faz no fundo dos olhos não é nem uma coisa nem outra. E que, no fim, somos nós mesmos que amanhecemos e anoitecemos e não o dia em sua relação dependente com o sol. Fiquei ponderando sobre isso e pensando em todo o resto daquilo que inventamos. Sobretudo, os nomes que damos para as relações humanas. Há tanta coisa que é em si, mas insistimos em nomeá-la por nossa necessidade de reconhecimento. A coisa em si é o que é bonito, mas sempre a amanhecemos ou anoitecemos por nossa ansiedade de ter tudo sob controle. Os desejos de alguém, sobretudo. O verde-azul do céu-mar era lindo. A areia da praia era como um sorriso branco. As nuvens, tão baixas, que pensava poder tocá-las com as mãos. O som das ondas do mar que iam se deixando esmorecer era acalanto. Ainda me sentia atada. O pai dele era uma presença sem corpo que, vez por outra, me reconduzia àquela forma de vida a dois que maquinalmente desenvolvi. Um ritual necessário até que pudesse lidar com o ônus do fim.
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Chegou bem perto daquele bichinho estranho que parecia ser feito de árvore. Hesitou longos minutos até juntar todas as coragens para tocá-lo. No milésimo de segundo que, ouviu seu nome sendo gritado como nunca antes. O que fizera de errado? Outra vez haveria um castigo sob o jugo do qual sempre se sentia desolado? Descobrir coisas sempre era um perigo. E ele já tão cansado de sempre e sempre as mesmas histórias contadas.
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Naquela chácara, onde por muito tempo viveu sua tia escritora que desde cedo o fez se entender como bicho, viu-se encarcerado por um silêncio apaziguador. A lua, em breve, deitarse-ia e com ela também o desejo de continuar insistindo. Murmurou pelo desejo de aprender a estar assim adormecido. Se desfazer de todas as agruras do não. Queria um escafandro aos reveses do barco que se deixava navegar na vacilante maré de adaptações a toda espécie de nunca. Sentado à mesinha da biblioteca que dava de frente para janela, tentou avançar na escritura de mais uma ficção. Passaram-se horas e não havia sensação, enredo, ou assunto que pudessem se desenrolar em verbos. Nem os cães ladravam lá fora, era como se a noite não reconhecesse seu desejo de fúria. Tudo era calmaria. O vento cantava nada de grave junto às árvores. Havia apenas um marulho. Um sussurro como de mil fadas que junto aos vagalumes
o queriam ninar. Saiu para caminhar aos arredores da casa com apenas uma caixinha de fósforos na mão.
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Ele se foi muito cedo, não foi? Mas também, fico a me perguntar o que é cedo. Depois dos trinta, achei que já tinha cumprido com meu infortúnio social. Estava casada e com dois filhos. Diante disso, decidi que a partir dali, qualquer hora já era uma boa hora de ir. Era tanto, o cansaço. As demandas de todas as ordens se acumulavam, eventualmente se resolviam, e retornavam numa rotina monótona. Não havia reinvenção, de nada. Nem dos desejos, nem dos afetos, nem dos maus tratos à inteligência. Continuavam a existir os programas ruins de televisão. As rádios só tocavam pobres lamentos melódicos, a ponto de meu sofrer me soar arrogante. Jamais ouvi música que pudesse vislumbrar meu desencanto. A partir dali, pouquíssimo me propus procurar um médico, para o que fosse. Decidi que meu corpo já havia me estabelecido um prazo de validade e eu seria fiel a esse. Das vezes que parei num hospital, todas a contragosto, era porque as dores já estavam a ponto de não ter com elas uma convivência possível. No mais, penso que a qualquer dia vão estourar as varizes, ou vão parar os rins, ou os pulmões haverão de cansar, ou ainda o coração: farto de seu sim-e-não.
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Minutos depois, sua mãe, com ares de muito cansaço, apertar-lhe-ia em um abraço, não sem antes resmungar dezenas de palavras por segundo na tentativa inútil de arrancar do peito aquele acúmulo de angústia, medo e culpa. Pegou-o no colo e perguntou por que ele havia saído do seu lado. Sem deixar que respondesse, seguiu com a ladainha que já esteve incontavelmente nas bocas de todas as mães aflitas. Ainda encantado por aquilo que acabara de viver, o menino se tornara surdo ao monólogo da mãe.
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Um sentir sem sentido. Um sem pé nem cabeça. Um desejo-desvario. Um oco ali dentro que se alimentava de seu próprio infortúnio. Um ser de alguém que fingia existir. Concebido e gestado por suas entranhas. Pelo seu asco de ser sozinho. Como se vergonha fosse o não ser percebido pelo faro do outro. Que espécie de bicho se tornou? Um cão sem matilha. Um cão vagabundo, alimentado por migalhas. Se os tempos fossem outros, estaria mais seguro de si. Sentir-se-ia um lobo solitário. E quem sabe, vez por outra, solidário às necessidades de carência. Fugir de algo que lhe tomava sem que se desse conta. Refém. Sem direito à resgate. A única recompensa seria, talvez, a própria solitude. Coisa rara é esse estar consigo mesmo. Em si, mesmado. Mas algo soa alarmante. Perigoso o saber-se só e ser sozinho, suficiente.
Os ermitões são mal vistos. A arrogância de serem bastantes. Os mendigos, não. Suas demonstrações diárias de necessidades os fazem menos hostis. Menos danosos ao que nos acostumamos entender por vizinhança e caridade. Do outro lado da rua, mora um velhinho. Tão patético em sua existência esquálida. E todos os cumprimentam com uma docilidadevil. Compungidos apenas pelas rugas, veias aparentes, barba hirsuta e cabelos brancosamarelados. Ele não queria envelhecer. Senão, as memórias que lhe pesam as costas. Por que tão vívidas? Lembrar é adoecer. É desacostumar o corpo de entregar-se àquilo que chamamos hoje. Fomos programados para viver de passado. De meias imagens, meias verdades, meios significados. E no entanto, os sentimentos querem se permanecer inteiros. E pr’a quê? Chorar seu coelho que morreu afogado. Enegrecer a alma por não ter se tornado músico como queria. Lembrar daquele concerto em que não pode tocar por ter quebrado o punho numa briga de bar que não era sua. Lembrar do sorriso lascivo de sua esposa quando lhe procurava nas madrugadas frias e aquilo por si só o fazia acalentado. Anda mal. Mal das pernas. Mal dos braços. Mal dos cotovelos que lhe doem. Anda encurvado e sem segurança nos pés. Os caminhos se tornaram cada vez mais cheios de obstáculos. Lombadas, fendas, pássaros mortos, árvores caídas, estilhaços.
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Hoje, eu tomei o chá que descobrimos naquela tarde de muita chuva quando fomos caminhar no bairro japonês. Aquele que tem laranja e canela. E mais um tanto de coisas que jamais nossos paladares puderam reconhecer. Não lembro se já àquela época meu corpo era todo desequilíbrio, ou meus escorregos condiziam com a escolha errada do uso de alpercatas em dias demasiadamente cinzas. Passados os anos, eu já deveria saber que, naquela cidade, tudo o que escurece é precipitação. Interrompemos nossa ida preguiçosa e nos afligimos em direção à casa de chá para nos abrigar do que ainda era garoa. Entre um passo e outro, eu ensaiava um contrapasso para evitar o próximo tropeço. Depois de tantos anos de austeros passeios pelos bairros do centro, o pensei já acostumado com meu modo pendular de caminhada. Nesse dia, lhe estranhei a conduta, mas nada que pudesse se transformar em imaginação. Ele resolveu tomar a minha mão, não só para evitar uma iminente queda, mas a guardou todo tempo de maneira tão cerrada como quem teme perder algo que pudesse escorrer pelos dedos. Tenho essa sensação de que as melhores palavras são aquelas apagadas. Ou as frases inteiras escondidas debaixo da língua. Fico, cá dentro, combatendo uma cruel batalha: perscrutar as entrelinhas, desviar dos obstáculos. Esqueceram-me de me dizer que os códigos linguísticos são tão irresolutos quanto arbitrários. Tem dias que me confundo com minhas armadilhas, e me perco em minhas próprias encruzilhadas. Não é sempre, mas há dias em que me culpo por não ter lhe sabido responder
com brandura as poucas perguntas intranquilas que me fazia: “mãe, aonde vai?”. Encontro indulgência, em mim mesma, por causa das insônias e essas dores constantes no corpo que, desde então, já não me deixavam ser afago e doçura. Que ele me perdoe as escusas, e a ausência de palavras; ou ainda, as palavras translúcidas – que davam margem aos seus pensamentos equivocados.
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Demoraram cerca de quarenta minutos até finalmente deixarem o bosque e mais dez até alcançarem os arredores da casa. Ao tocar o chão, os pés dele aceleraram rumo à cozinha. Hipnotizado pelo cheiro de bolo recém-tirado do forno, deixou para trás rapidamente os momentos mágicos que passara. Aquela experiência logo se tornaria apenas uma fina camada de memória. Jamais voltaria ao bosque. A chácara e seus arredores já eram imensamente grandes para pensar em procurar aventuras para além do jardim sempre colorido, da horta cheia de novos pequeninos bichos e da casa da árvore repleta de mangas.
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Quando perdi meu filho mais novo, foi ele quem me reajustou à rotina. Sinto falta dele. Do nada para dizer que tínhamos em comum.
Palavra Coisa orgânica, de ocorrência natural (necessidade do outro) e composição sonora definida pela combinação casual das letras. Possui propriedades gráfico-linguísticas específicas. Sua exploração ou estudo pode ser feito a céu-aberto ou em completo silêncio. Qualquer palavra é um agregado de letras. Palavras geram frases. A frase é uma estrutura etérea e heterogênea com ordem interna (ir)regular limitada por linhas retas ou bocejos.
Como identificar palavras Hábito É a forma ou aparência externa geral de uma palavra. Geralmente reflete em sua estrutura o modo com que o enunciador a pronuncia. Densidade É o desejo expresso na razão entre o peso da palavra e o peso de um mesmo volume de saliva do enunciador. Clivagem É a propriedade que minhas palavras apresentam quando se partem com maior facilidade segundo determinados planos relacionados com a estrutura da frase. A clivagem pode ser obtida por pressão ou por choque entre os corpos (enunciador e ouvinte). Brilho É o reflexo da luz natural na superfície dos olhos do ouvinte em relação à palavra emitida. Transparência As palavras por sua própria natureza são transparentes: não absorvem ou absorvem pouco a luz. Possuem o corpo opaco apenas no instante em que estão misturadas à saliva do emissor ou ouvinte. Dureza É a resistência relativa de uma palavra à abrasão dos lábios. É a resistência que uma palavra oferece ao ser pronunciada. Cor Palavras escritas são idiocromáticas, possuem a mesma cor. Palavras faladas são alocromáticas, variam num comum e não enunciado acordo entre emissor e ouvinte. Odor e sabor Tudo o que se sabe é relativo. Cada experimento realizado contribuiu e confundiu ainda mais esse campo de estudo. Sabe-se apenas que essas propriedades atuam mediante o silêncio entre enunciador e ouvinte.
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minissinopses cena 1 06 de março de 2013 confusas com o fim do mundo, as plantas resolvem se manifestar a favor da instalação de placas termovoltáicas nas principais cidades mundiais cena 2 07 de março de 2013 quando ele acordou, a sua casa tinha mudado de lugar cena 3 08 de março de 2013 na manhã do dia oito de março de dois mil cento e treze, o sol não nasceu cena 4 09 de março de 2013 no início da noite de nove de março de dois mil duzentos e treze, o sol não se pôs cena 5 10 de março de 2013 no quilômetro cento e catorze da estrada para mogi mirim, um milhão de borboletas invadiram o nosso carro cena 6 11 de março de 2013 ela cuidou do seu jardim como se pudesse associar a sua vida aos ritmos vegetais (esse desequilíbrio de tempo que provocava um sorriso no canto da
boca) ela cantou baixinho o farfalhar das folhas como se fosse a última chance de descobrir a direção daqueles olhares (os olhos das árvores) (a insônia profunda das pedras) (ela cuidava do seu jardim de olhos fechados) cena 7 12 de março de 2013 ela cuidou do seu jardim até perceber que nela (justo nela) morava a possibilidade dos dois extremos do som: o (completo) silêncio e o (total) barulho (ela não sabia usar nenhum dos dois) (ela cuidou do seu jardim até perceber que as pedras também dormiam) cena 8 13 de março de 2013 um dia, cansadas de tanto silêncio, as plantas do seu quintal começaram a gritar cena 9 14 de março de 2013 um dia, cansadas de tanto barulho, as plantas do seu quintal se calaram novamente cena 10 15 de março de 2013 (aliás, quando eu vou poder sentir saudade de novo?) cena 11 16 de março de 2013 em comemoração ao dia dezesseis de maio, a prefeitura trocou todas as lâmpadas dos postes urbanos por luz negra (faltam 290 dias pro ano acabar)
cena 12 17 de março de 2013 parecia que ia acabar bem, mas eles sempre deixam alguma coisa por fazer cena 13 19 de março de 2013 eles chegaram chutando a porta e me apontaram o dedo cena 14 20 de março de 2013 eu nunca fui tão corajoso cena 15 21 de março de 2013 toda vez que eles ficavam em silêncio, eu sabia exatamente o que falar cena 16 22 de março de 2013 acho que se eu tivesse asas, eu pensaria duas três quatro cinco seis sete oito nove dez vezes antes de voar cena 17 23 de março de 2013 no final, tinha sangue por toda parte (eu não achei sujo) (talvez não achasse que sangue fosse algum tipo de sujeira) cena 18 24 de março de 2013 talvez eles já tivessem a chave, mas eles chegaram chutando a porta só pra assustar
cena 19 25 de março de 2013 parecia que o mundo inteiro batia no vidro da janela cena 20 26 de março de 2013 nada pra mim é fácil, esse é o charme da minha vida cena 21 e 22 27 e 28 de março de 2013 eu/você sempre fui/foi egoísta e medroso (talvez eu/você só te/me amasse/ amava pra esquecer um pouco de mim/você) cena 23 29 de março de 2013 queimaram os manuais de instrução cena 24 30 de março de 2013 juntos nós não somos absolutamente nada, mas separados somos menos ainda cena 25 31 de março de 2013 chutaram as portas quebraram as pontas subiram as escadas gritaram por dentro derrubaram as mesas estilhaçaram os vidros rasgaram o sofá deitaram no chão cuspiram nas paredes riscaram os móveis arrebentaram os espelhos estouraram a geladeira pisotearam as roupas queimaram os cantos explodiram as lâmpadas sujaram o teto cortaram os fios desfizeram as ligações
cena 26 1 de abril de 2013 eu nunca soube qual era o verdadeiro barulho das coisas cena 27 2 de abril de 2013 parecia que ia acabar bem, mas eles sempre deixam alguma coisa por fazer (2) cena 28 3 de abril de 2013 molharam os colchões quebraram as garrafas destrancaram os cadeados desconectaram os cabos destruíram os telefones bombardearam os tapetes gritaram pelos cantos mijaram nos armários comeram os restos cortaram as cortinas arrancaram as flores reviraram a terra inundaram os quartos socaram a televisão arremessaram os copos acenderam as velas serraram as grades vomitaram nas pias dançaram pela casa cena 29 4 de abril de 2013 as plantas, a casa, a luz negra, o sol e as borboletas deixaram de existir (aliás quando eu vou poder sentir saudade de novo?)
as vinte sete poses viraram oito desenhos de pedras olhando pedras e a lente transcorrendo os desenhos virou vinte sete frames
PRIMEIRO AVISO 1˚ cena : 1˚dia : 06-03-2013 “1˚ foto : parede de tijolos marrons : 1˚ aviso ao diretor” Senhor Diretor, meu roteiro vem-lhe em forma de carta, na intenção de pedir-lhe que não subverta minha escrita, quero dizer, os detalhes lhe serão necessários. Um minuto de parede de tijolos marrons lhe fará mais sentido no decorrer de suas 26 cenas seguintes. Por mais que lhe pareça estranho pedir, gostaria que, se possível fosse, colocasse o som da música de Chico Buarque ao fundo dessa cena/plano primeiro. Ainda não sei lhe dizer qual é a música, pois não me recordarei-lhe agora, mas tranquilize-se, pois em algum momento ela aparecerá, talvez no momento mais inoportuno possível a você, não para lhe irritar, mas apenas para desconcertar o público. Talvez isso aconteça durante a escrita das próximas cenas subsequentes a esse plano/cena primeira, sem maiores descrições. 2˚ cena : 2˚ dia : 07-03-2013 “2˚ foto : parede de tijolos marrons : 1˚ aviso ao diretor de fotografia” Me desculpe senhor Diretor, mas terei de deixá-lo sozinho nesse momento, pois agora devo me concentrar em convencer o seu fotógrafo, por causa de toda a ordem hierárquica do filme e do Cinema, ou do roteiro que procuro escrever, se preferir, a continuar filmando a mesma parede de tijolos marrons, mas só que com um leve movimento para a esquerda. Não se esqueça, senhor fotógrafo, isso deve ser passado ao senhor Diretor sem muitos tropeços: você deve ser objetivo, mas não duro, elegante, mas não ditador. Não esqueça, eu e você ainda trabalhamos para o senhor Diretor. Senhor Diretor, não se ofenda, os detalhes lhe serão importantes, devo lembrar-lhe que faço o possível para desequilibrar seu público. Para isso e para não me esquecer, devo também confessar-lhe mais um aviso, senhor hierarquizado fotógrafo, convença-o, se possível for, o senhor Diretor, a continuar a música de Chico Buarque, que ainda não me lembrarei-lhe, ao fundo dessa segunda cena/plano primeiro, sem maiores descrições. 3˚ cena : 3˚ dia : 08-03-2013 - 4˚ cena : 4˚ dia : 09-03-2013 5˚ cena : 5˚ dia : 10-03-2013 - 6˚ cena : 6˚ dia : 11-03-2013 “3˚ foto : janela de cortina azul, aberta, canto direito : 1˚ aviso ao diretor de som (ERRATA) | 4˚ foto : janela de cortina azul, aberta, canto esquerdo : 1˚ aviso ao diretor de som (ERRATA) | 5˚ foto : janela de cortina azul, fechada, canto direito : 1˚ aviso ao diretor de som (ERRATA) | 6˚ foto : janela de cortina azul, fechada, canto esquerdo : 1˚ aviso ao diretor de som (ERRATA)” Novamente me desculpe senhor Diretor, deverei retomar-lhe alguns detalhes, pois como você mesmo sabe, os detalhes lhe serão importantes, mesmo que ainda não os tenha dito, mas hoje não conseguiremos avançar nos andamentos necessários para a continuação de seu filme. Por conta de sua viagem a Viena, o senhor sonoplasta ficou um tanto atrapalhado, pois perguntou ao senhor fotógrafo o que teria de fazer com o som dessa nova cena. Mas como eu não consegui, ainda, dar o aviso de convencer-lhe a manter a música de Chico Buarque, que ainda não me recordarei-lhe, então decidiu-se por aqui que tanto o senhor fotógrafo como o senhor sonoplasta continuarão as imagens/cenas/planos
terceiro, quarto, quinto e sexto em sequência, sem alguma modificação. Fique tranquilo, retomaremos o aviso ao senhor sonoplasta assim que sua volta for viável. A música de Chico Buarque, que ainda não me recordarei-lhe, continua a soar, porém, reduziremos sua velocidade minimamente. Senhor hierarquizado fotógrafo, que bom que você decidiu filmar a cada minuto uma parte de uma janela de cortina azul, já que descobriu que ao lado da mesma existe outra janela de cortina azul, porém ela encontra-se fechada, mas mesmo assim você a filmará da mesma maneira que a última janela. Como acredito já ter dito, senhor confuso sonoplasta, mas mesmo assim devo retomar, estou feliz por você decidir junto conosco em reduzir a velocidade da música. Senhor Diretor, todos se encontram apreensivos por aqui, mas fique tranquilo, acredito que esses detalhes imprevistos lhe serão mais importantes que os pensados para seu filme, já que seu público poderá desconcertar-se ainda mais com sua falta. 7˚ cena : 7˚ dia : 12-03-2013 - 8˚ cena : 8˚ dia : 13-03-2013 9˚ cena : 9˚ dia : 14-03-2013 - 10˚ cena : 10˚ dia : 15-03-2013 “sem foto : sem descrição : sem aviso” Senhor Diretor, parabéns, seu filme continua com muito sucesso entre os desavisados, pois ainda se maravilham com a possibilidade do filme conter o concerto ordenado de planos e cenas em perfeita sequência. Os avisados agradecem seu retorno ao filme. 11˚ cena : 11˚ dia : 16-03-2013 “3˚, 4˚, 5˚ e 6˚ foto (NOVAMENTE) : janelas de cortinas azuis, abertas e fechadas, cantos direitos e esquerdos : 1˚ aviso ao diretor som (CONTINUAÇÃO)” Senhor Diretor, não se incomode, nós estamos muito felizes por sua volta ao filme, mas devo retomar o aviso necessário ao senhor sonoplasta ainda mais confuso, assim como havia lhe dito. Não se esqueça, os detalhes lhe serão importantes. Se o senhor ainda se incomoda com os meus avisos, mesmo após uma bela viagem de descanso a Viena, obrigatória por eu ter te desconcertado antes do público, devo lhe acalmar, pois devo dizer que tenho plena certeza que o seu público já mudou de posição na cadeira por pelo menos quatro vezes nesses últimos minutos de janelas. Senhor sonoplasta, devo recomendarlhe cautela ao conversar com o senhor Diretor, pois ele acaba de retornar de uma importante viagem de negócios, os quais não deram muito certo. Seja cauteloso, mas não demonstre qualquer tipo de gagueira, isso denigre a imagem e o som do nosso filme, esteja certo do que for falar, mas não seja autoritário, pois devo lembrar-lhe que tanto eu como você e o senhor hierarquizado fotógrafo ainda respondemos às demandas obrigatórias do senhor Diretor nesse filme. Não esqueça, senhor hierarquizado sonoplasta confuso, os mínimos detritos do tempo e de ruídos do som que você irá captar e editar, junto a sua equipe, lhe serão de extrema importância, já que o nosso interesse é confortar o senhor Diretor ao ponto de ele nos deixar a vontade para desconcertar o público desse filme. Senhor Diretor, peço que por favor, deixe o senhor sonoplasta tentar convencer-lhe de que devemos retomar as últimas quatro imagens que o senhor fotógrafo trabalhou para conseguir, juntamente com a música de Chico Buarque que ainda não consegui me recordar-lhe-ei. Senhor hierarquizado confuso sonoplasta, dessa vez devemos convencê-lo a deixar a música de Chico Buarque rodar normalmente, em seu tempo real, pois o senhor hierarquizado fotógrafo acredita que suas imagens nos renderão o encaminhamento correto para o início do fim da música que você captou. Continuemos assim a recorrência, de novo, das últimas cenas.
12˚ cena : 12˚ dia : 17-03-2013 - 13˚ cena : 13˚ dia : 18-03-2013 “7˚ foto : porta aberta, canto direito superior : 1˚ aviso ao diretor de arte | 8˚ foto : porta aberta, canto esquerdo superior : 1˚ aviso ao diretor de arte” Espere um pouco senhor cenógrafo, pois por mais que tenhamos chegado a você, na sua vez, e mesmo que você tenha esperado a recorrência de 11 cenas até o momento de entrar em ação nesse filme, devo retomar alguns pontos importantes ao senhor Diretor. Senhor Diretor, acredito que nessa altura do campeonato, dos jogos empregado no seu roteiro, não seja mais preciso lhe pedir tanta calma, já que possivelmente você já entendeu o seu próprio interesse em desconstruir uma narrativa a ponto de desconcertar o seu público. E assim, quem sabe, você poderá entrar para a lista dos grandes cineastas que causaram fricção o bastante para conseguir modificar a maneira de fazer filmes hoje. Agora sim, senhor cenógrafo, não preciso nem lhe dizer-me que você também é mais um dos instrumentos hierarquizados desse filme, como todos os outros em que seu currículo nos demonstra que já trabalhou. Senhor hierarquizado cenógrafo, devo lhe dizer que, por mais que o senhor Diretor tenha estado ou pelo menos aparentado estar calmo, nós ainda precisamos deixá-lo a par de todos os acontecimentos necessários para o encaminhamento perfeito do nosso filme. Então vá com calma, se vista muito bem e se for preciso, sorria constantemente, tome um banho, pois já deve ter entendido que agora você deve convencer o senhor Diretor a manter as imagens do senhor hierarquizado fotógrafo em sequência, junto ao término da música de Chico Buarque que ainda não recordarei-lhe-me. Mas, antes de tudo, você deve convencê-lo que não é necessário que coloquemos qualquer outro objeto de cena na cena presente. Você já deve ter escutado pelos corredores do nosso set, que nós acordamos que todos os detalhes nos são mais importante que o objetivo dos contextos existentes em cada setor de hierarquização ou em cada equipe do nosso filme, por isso peço que não questione muito as decisões coletivas. Pois bem, senhor Diretor, já deve estar mais que convencido de que estamos fazendo um movimento circular dos detalhes arquitetônicos, de abertura e fechamento do que se encontra dentro e fora da casa. Agora, senhor Diretor, temos em mãos duas cenas correntes de uma porta aberta, filmadas por cima, quase no teto, em uma vista superior, que nos dará, ou dará ao público, um interesse internos de se, ou de nos, reconhecer fora da narrativa entre aberta e fechada do seu filme. 14˚ cena : 14˚ dia : 19-03-2013 - 15˚ cena : 15˚ dia : 20-03-2013 “9˚ foto : janela de cortina azul, fechada, canto superior direito : 1˚ aviso a figuração | 10˚ foto : janela de cortina azul, fechada, canto superior esquerdo : 1˚ aviso a figuração” Senhor Diretor, as imagens das janelas com as cortinas fechadas que o senhor fotógrafo está captando nesse exato momento em que lhe escrevo essa carta/roteiro do seu filme, lhe serão muito importantes, pois se o senhor estiver atento aos detalhes, como venho lhe pedindo incessantemente, irá perceber que a música de Chico Buarque, que ainda não me recordarei-lhe, se encerrou quando as imagens das últimas cenas nos encaminharam para uma porta aberta. E que após esse mínimo detalhe anteriormente pensado, estamos retomando o ambiente fechado já existente em algumas das últimas cenas, na vontade de retrocedermos ao início dos avisos dados até agora, com a finalidade obrigatória de aconselharmos nossos amigos desavisados que estão trabalhando efetivamente para o encaminhamentos perfeito de seu filme. Acredito assim, após essa tentativa de retomada de sua própria consciência que acabei de tentar fazer, senhor Diretor, que poderei deixar-lhe novamente sozinho, para pensar no seu filme e para imaginar o desequilíbrio do seu público, sem nenhum remorso, já que agora o senhor transparece entender melhor que nossos avisos devem continuar sem muitas interrupções, pois estas interrupcões sempre nos fazem conceber novos e outros detalhes. Pois bem, com toda a licença senhor Diretor, caros senhores desavisados figurantes, preciso desde já, pedir-lhes que não se desesperem, pois o que venho lhes dizer não será, possivelmente ou constantemente, bem recebido por
vocês e muito menos pelo senhor Diretor, já convenci o senhor hierarquizado sonoplasta a captar o som necessário para esse detalhe dessa cena e o senhor Diretor parece estar contente com a proposta. Mas vamos lá, devo dizer-lhes que fiquem calmos, vocês não terão suas imagens fotografadas pelo senhor hierarquizado fotógrafo. Pode parecer estranho, mas peço que se posicionem em roda do lado de fora do set, ou se preferirem, da casa, sentem no chão, em baixo da janela e iniciem uma conversa qualquer, pois o senhor hierarquizado sonoplasta já os espera com os microfones pessoais em mãos enquanto o senhor Diretor descansa em seu QG. Sei que até agora nós não havíamos conversado sobre o acontecimento dessa cena, senhores hierarquizados figurantes, mas fiquem tranquilos, os detalhes nos serão muito importantes e vocês irão perceber que quando estiverem sentados para assistir a finalização do nosso filme, a sensação que sentem, ou que acham que irão sentir, será, ou é, muito parecida com a do público ao redor na sala de cinema. 16˚ cena : 16˚ dia : 21-03-2013 - 17˚ cena : 17˚ dia : 22-03-2013 “11˚ foto : parede de tijolos marrons, canto superior direito : 1˚ aviso ao assistente de direção | 12˚ foto : parede de tijolos marrons, canto superior esquerdo : 1˚ aviso ao assistente de direção” Senhor Diretor, peço que espere somente mais um pouco, pois antes de retomarmos nossa conversa sobre o encaminhamento das próximas cenas terei de continuar a avisar os desavisados. Por esse motivo, gostaria que o senhor pudesse ficar convencido que minha conversa com o seu primeiro assistente não terá o tom grosseiro de passar por de cima de seus comandos, lhe respeitarei como merece, assim como respeito esse seu grande filme. Senhor assistente do diretor, não é necessário nem lhe dizer que por mais que seja nomeado o primeiro assistente de direção, o “braço direito” do senhor Diretor, você lhe remete justificativas ao tomar decisões sem consultá-lo. Além disso, também nem é preciso lhe dizer que você deixa a submissão transparente quando serve café para o senhor Diretor, por toda vez que ele reclama de alguma informação que você esqueceu de passar às equipes. É claro que ter essa conversa com você, senhor hierarquizado assistente do diretor, somente nessa altura do filme, nos faz mais sentido do que se você já estivesse sido avisado desde o início das filmagens, caso contrário, sem o seu modo de paparicar o senhor Diretor, teríamos de criar saídas para novos outros detalhes não pensados anteriormente, já que sua influência foi tão grande a ponto de não deixar que o senhor Diretor se desconcertasse completamente em todas as cenas até agora realizadas. Senhor hierarquizado assistente de direção, devo lhe pedir toda a simplicidade possível ao falar com o senhor Diretor, mesmo que nós já tenhamos percebido sua costumeira gagueira ao dirigir a palavra a ele, ainda assim o senhor deve passar a informação de que todos nós achamos melhor apenas filmar uma nova parede de tijolos marrons, do mesmo tipo da última no nosso mesmo set, porém, dessa vez, chegaremos até o seu canto direito e depois, na segunda cena, o esquerdo. Esse detalhe nos será de extrema importância para caminharmos em nosso objetivo, por isso precisarei que você seja o mais simpático possível e ao mesmo tempo objetivo. Fique tranquilo, na última carta que escrevi desse roteiro ao senhor Diretor, já o inicia nessa informação que você deve passar, e me parece que agora ele poderá receber bem melhor esse novo direcionamento sem maiores descrições da cena. 18˚ cena : 18˚ dia : 23-03-2013 - 19˚ cena : 19˚ dia : 24-03-2013 “13˚ foto : céu cinza, direito : 1˚ aviso ao chefe de produção | 14˚ foto : céu cinza, esquerdo : 1˚ aviso ao chefe de produção” Senhor Diretor, continue em profundidade no seu resguardo, sei que havia dito que retornaríamos o mais rápido possível para nossa conversa de pensarmos o encaminhamento simétrico de seu filme, porém, me recordei-lhe que um dos principais pilares para a factual realização do seu filme se encontra
até agora desavisado, o que nos é um problema já que não queremos ter de criar novos detalhes. Por causa disso lhe pedi-me, logo de início, nessa cena/carta ou roteiro, como preferir, que se mantivesse ocupado com o descanso, pois o quanto mais relaxado o senhor voltar para realizar as próximas cenas, garanto, melhor você receberá os mais importantes detalhes pensados para o futuro. Confie em mim, lhe sou o mais justo e ético. Como o senhor mesmo havia me dito anteriormente, o interesse agora não é mais desconcertarmos nós mesmos, mas desequilibrar o seu público. Pois bem, vou-me de saída para um breve retorno. Senhor Produtor, devo confessar-lhe que você é o único, imagino eu, ao qual não acho necessário utilizar de todos os dedos para pedir-lhe um convencimento direcionado ao senhor diretor, pois como já prescrito em nosso vasto mercado, no final das contas, o dono de tudo isso é o senhor. Captou todo o dinheiro e fez jus ao negócio, assim as vendas lhe serão ótimas, eu garanto-lhe-me, estou trabalhando efetivamente devotado ao seu público alvo. Mas agora deixemos de lado as certezas e iniciemos o aviso. Talvez o senhor esperasse que não fosse necessário ter essa conversa, porém não sei se o senhor já tem conhecimento, mas o locador do nosso único e melhor set de filmagem não nos reservou a chave da casa para o dia de hoje, para essa nova cena. Nos avisou de última hora, que havia esquecido, mas tinha alugado a locação para uma festa de debutante hoje, um contrato acordado com o locatário no fim do ano passado. Dessa maneira, devo pedir-lhe que, se possível for, convença o senhor diretor a não se utilizar obrigatoriamente do set de filmagem para essa nova cena, somente por hoje, pois nos ocorreu um detalhe mais importante do que os pensados quando fui apresentar-lhe esse roteiro a dois anos atrás. Eu, o senhor hierarquizado fotógrafo e o senhor hierarquizado sonoplasta confuso pensamos que poderíamos captar a imagem de qualquer céu e o som de quaisquer pássaros, por pequenos e rápidos e poucos minutos. Somente assim conseguiremos dar o procedimento necessário do nosso maior objetivo e além disso, lhe entregar todo o material desse filme afinadamente no prazo estabelecimento. Não esqueça, com certeza esse nos é o maior e o melhor detalhe até agora pensado. 20˚ cena : 20˚ dia : 25-03-2013 - 21˚ cena : 21˚ dia : 26-03-2013 “15˚ foto : corredor, parede, chão, canto direto : 1˚ aviso geral | 16˚ foto : corredor, parede, chão, canto esquerdo : 1˚ aviso geral” Antes que caminhemos em direção as últimas cenas dessa carta ou roteiro, como preferir, senhor Diretor, gostaria que se possível fosse, convidasse todas as equipes ou pelo menos seus chefes e diretores, para se concentrarem no único corredor do set, ou da sua casa, como preferir, pois tenho o interesse de conversar com todos, já que o número de desavisados se encontra quase ínfimo nessa altura da realização do seu filme. Sei que pode parecer um tanto estranho para o senhor lhe pedir tal feito, por isso o primeiro pedido vem-lhe diretamente. Acontece que preciso de você ao meu lado no momento tão nobre da fala, em que ressaltarei a sua importância e a necessidade de nos mantermos todos calmos e unidos na reta final, pois não devemos esquecer o direcionamento do objetivo que nos foi passado pelo senhor desde o início. Senhor Diretor, obrigado por compreender o objetivo desse encontro, dessa fala e da mensagem. Com licença, agora dirigirei a palavra a outros, mas continue aqui comigo, preciso de sua força, sua imagem, seu semblante. Senhores fotógrafos, sonoplastas, cenógrafos, assistentes e figurantes, o senhor Diretor e o, para vocês ainda desconhecido, senhor produtor estão extremamente entusiasmados com a realização efetiva de todas as cenas até agora, assim como se demonstraram felizes com as cenas que tivemos de repensar detalhes. Mas peço-lhes agora que por estarmos a poucas cenas do término de nosso longo trabalho, não pretendam fazer escolhas próprias e muito menos questionem os interesses do senhor Diretor, por mais que eles possam parecer um tanto estranhos, porém todos já estão cansados de escutar que os detalhes nos são mais importantes do que o processo de criação no acaso, já o objetivo é desconcertar o público, mesmo sabendo que tal feito já vem nos desestabilizando por algum tempos aqui. Senhores fotógrafos, sonoplastas, cenógrafos, assistentes e figurantes, quantas vezes nos vimos preocupados em recomeçar cenas e repensar detalhes durante esse
últimos dias de árduo trabalho no set? Quantas vezes a confusão entre nós causou certo esquecimento dos avisos e fizeram com que os desavisados espalhassem boatos desnecessários, por não saberem do contexto das cartas ou das cenas do roteiro, como preferirem, espalhadas entre os avisados? Pois bem senhores avisados, todos, agora temos a presença do senhor Diretor no set, por algum tempo nos deparamos com sua ausência e alguns avisados se propuseram a continuar no objetivo do filme, enquanto os desavisados naquele momento, não puderam ter uma proatividade por não terem o conhecimento do aviso necessário, então reconheçamos a importância do nosso Diretor e de uma vez por todas, apenas para não ficarmos mais cansados do que já estamos, não questionemos mais suas escolhas. Senhor Diretor, concorda comigo nesse caso? O senhor não acredita que devamos nos manter mais centrados nessa reta final em que nos encontramos? Então fique tranquilo nesse momento, senhor Diretor, você presenciou que lhe sou justo e que minha ética se compromete com seu único objetivo: construir esse filme a ponto de desequilibrar o seu público. Por agora terei de recomeçar outro aviso ao senhor fotógrafo, pois acredito que ele já esqueceu do primeiro. Com licença senhor Diretor, é claro que, senhores avisados, também lhes organizei aqui, nesse lugar da casa, do set, para pedir-lhes que se dirijam de volta aos recintos que não são de passagem, os que são de trabalho e pouso, pois como conversado com o senhor hierarquizado fotógrafo e com o senhor hierarquizado confuso sonoplasta anteriormente, teremos de agora captar a imagem de parte desse longo corredor e além disso, nos é importante que vocês mantenham suas conversas, pois devemos captar o som justaposto de diversas falas. Fiquem tranquilos, se mantenham ocupados, porém não passem pelo corredor nos próximos minutos. Senhores avisados, nessa cena não é necessário que tenhamos muito cuidado com suas descrições, pois como já havia sido dito anteriormente pelo senhor Diretor, os detalhes nos serão de extrema importância. 22˚ cena : 22˚ dia : 27-03-2013 - 23˚ cena : 23˚ dia : 28-03-2013 “17˚ foto : noite, luminária de rua redonda, bola direita : 1˚ aviso ao roteirista (RECORDAR) | 18˚ foto : noite, luminária de rua, bola esquerda: 1˚ aviso ao roteirista (RECORDAR)” Senhor Diretor, após a última cena realizada com sucesso, confesso que me senti um tanto exausto com a decorrência de tantos detalhes pensados e recriados. Não imaginei que seria tão difícil para os avisados entenderem que para a gravação dessa última cena eles deveriam manter-se ocupados normalmente, como em qualquer dia de filmagem, mas que suas imagens não seriam necessárias. Foi cansativo, até mesmo eu me peguei atropelando os detalhes para que o tempo e o trabalho se tornasse rápido, na tentativa de alcançar o resultado ligeiramente, porém me encontrei esquecido mais do que o senhor fotografo e confuso como o senhor sonoplasta. O que venho pedir-lhe mais claramente, se possível for, já que por algum tempo viemos estabelecendo um laço de confiabilidade entre ambos, é que faça o necessário para deixar que o senhor fotógrafo capte as imagens obrigatórias na carta ou nessa cena do roteiro, se preferir, que lhe enviei, e, por favor, não deixe o senhor sonoplasta ainda mais confuso, pois como o senhor havia pedido, talvez não precisemos dos cuidados dele nessa cena já que o interesse em filmar uma luminária de rua durante a noite não é nada mais nada menos que desestabilizar o entendimento de caos que o público acha que tem com a cidade. Então senhor hierarquizado confuso sonoplasta, por hoje acreditamos não precisar efetivamente de seu serviço, pois foi acordado entre o senhor hierarquizado fotografo, o senhor Diretor e eu, que não teríamos som durante essa cena. Fique calmo, você irá receber pela diária não trabalhada e também isso não significa que não precisaremos mais de sua companhia, muito pelo contrario, na verdade esse detalhe lhe fará mais sentido quando estiver com sua equipe editando o som captado. Não esqueça senhor hierarquizado sonoplasta, por favor, os detalhes não avisados nos são importantes que os pensados anteriormente, já que o nosso interesse no filme é desordenar o entendimento narrativo do nosso público. Senhor Diretor, o que na verdade venho te pedir é um descanso para o resto do dia, garanto que retornarei-lhe mais disposto e certo de todos
os combinados amanhã, assim como também mais devotado aos detalhes e quem sabe com maiores e melhor detalhes não pensados para nossas futuras cenas já pensadas anteriormente. 24˚ cena : 24˚ dia : 29-03-2013 - 25˚ cena : 25˚ dia : 30-03-2013 19˚ foto : parede, sombra humana feminina, parte superior : 1˚ aviso aos atores | 20˚ foto : parede, sombra humana masculina, parte inferior : 1˚ aviso aos atores” Senhor Diretor, estou bem melhor hoje, peço-lhe desculpas pelo último dia de filmagem, na verdade queria mesmo me redimir por não deixar explícito ao senhor os melhores detalhes para a finalização da sua última cena e também por eu não ter podido estar com você nos momentos finais dela. Porém, devo me confessar-lhe que meu interesse não foi somente descansar, quero ser sincero o bastante para te explicar tal situação. O fato é que, antes disso senhor Diretor, peço que fique relaxado, o que vou lhe falar não rebaixa em nada sua moral e muito menos o seu grande reconhecimento em nosso meio de trabalho, aí vai: decidi pedir o fim do dia de descanso, pois gostaria muito de provar aos avisados da equipe o quanto sua presença nos é mais importante do que qualquer um deles, já que sem o senhor nós não teríamos nem iniciado o pensamento sobre a realização desse filme e muito menos concebido algum tipo de detalhe. Agora, fico muito feliz de você aceitar meu detalhes com respeito e dignidade, devo lhe pedir mais uma vez tranquilo, sei que estamos na penúltima cena e ainda temos muito trabalho, porém como você mesmo sabe, nos falta ter uma boa conversa com os atores que você contratou já que eles são os únicos que nos sobram algum aviso, além do fato de eles terem participado efetivamente até agora de todas as cenas sem a menos cogitarem a possibilidade da importância dos detalhes que lhes passaram despercebidos. Com toda a licença senhor Diretor. Senhores atores principais ou se preferirem, os nossos únicos, venho-lhes escrever essa carta a fim de assegurar a permanência da atuação de vocês nesse roteiro e principalmente nessa cena presente. Eu sei muito bem que não havíamos tido nenhum tipo de conversar referente a não subversão das cenas pela atuação de vocês, mas garanto que o mais simples e o mais belo trabalho possível acontecerá, se vocês não contradizerem os objetivos do senhor Diretor, pois como vocês mesmos sabem não preciso nem dizer o quanto você lhe devem, já que o casting para entrar nesse filme lhes foi um dos mais duros e além disso, quem o fez diretamente foi o próprio senhor Diretor de vocês. Pois bem senhores hierarquizados atores, peço que mantenham a calma, pois o que venho lhes dizer não é de todo bom aos seus olhos, mas lhes garanto que o interesse de toda essa equipe que lhes ampara é algo maior que a visualidade de cada um, já que nos mantemos objetivos por algo melhor, o desequilíbrio. Já conversei com o senhor hierarquizado fotógrafo e o convenci de captar a apenas a sombra de vocês, senhores hierarquizados atores, por alguns poucos minutos em uma única parede com pouquíssimo movimento se possível, pois teremos de levar essa imagem o mais rápido possível para o senhor Diretor que nos espera descansando em seu QG. Como disse, não fiquem nervosos, vocês irão perceber todos os detalhes que lhes causaram o maior de todos os desconcertos quando no lançamento desse filme vocês se depararem com a mesma sensação do público ao redor, quase uma sensação de enjoo de tanto rodar, mais próxima do desequilíbrio que o mar nos dá com relação a gravidade de nosso corpo.
FIM
26˚ cena : 26˚ dia : 31-03-2013 - 27˚ cena : 27˚ dia : 01-04-2013 “21˚ foto : cidade, rua sem fim, lado norte : 1˚ aviso ao público | 22˚ foto : cidade, rua sem fim, lado sul : 1˚ aviso ao público” INÍCIO
Senhores Espectadores, o aviso lhes chegou em tempo, mas mesmo assim peço que vocês possam esperar apenas mais um pouco, pois por mais que vocês já tenham percebido que esse filme lhes é diretamente dirigido ainda tenho de recordar alguns aspectos detalhados dessa última cena para o senhor diretor. Peço-lhes uma rápida licença para um rápido retorno. Senhor Diretor, chegamos na sua última cena e me parece que o senhor está um tanto ansioso para o término, mas claramente feliz com o andamento do seu filme e com toda a certeza também estou contente com o desconcerto que eu senti a duas cenas ou cartas ou como preferir, do seu roteiro, pois isso reflete a eficiência de seus escolhidos detalhes. Como havíamos conversado durante a realização da última cena, fora dessas escritas, lá no seu QG, o fim de seu filme lhe viria no momento mais inoportuno, pois como você já deve ter percebido que ainda não me lembrarei-lhe qual é música de Chico Buarque que usamos nas primeiras cenas de seu filme, mas não fique nervoso, fique tranquilo, isso acabará sendo eficaz para o seu roteiro. Porém o que venho lhe pedir, tenha calma, é o último pedido, é de extrema importância, pois detém nosso melhor detalhe. Vamos lá, senhor Diretor, preciso pedir-lhe que essa última carta vá em direção ao seu público e que o senhor me dê o aval para poder conversar com eles sem nenhuma interrupção, garanto que não lhes desvendarei seus segredos e muito menos o caminho de seus detalhes, apenas tentarei lhes subverter para o caminho de seu objetivo. Pois bem, vou-me sem remorso e com a premissa de um retorno possível. Senhores Espectadores, acredito que vocês possam estar se perguntando o porquê de receberem uma carta como essa, mas fiquem tranquilos, na verdade a finalidade é a mais transparente possível, pois apenas gostaria de pedir para vocês que após saírem dessa sala de cinema e quando estiverem realmente com os seus pés no chão, deem um jeito de escutar a música Construção de Chico Buarque em completo silêncio e por favor, se possível for, escutem sozinhos usando fones de ouvido pessoais e principalmente, caminhando em alguma longa rua da cidade que vivem e se a rua terminar antes de acabar a música, fiquem tranquilos, apenas retornem ao início da rua ou da música, tanto faz, mas prestem a atenção aos detalhes, lhes garanto que estes lhe são os mais importantes para assistir este filme.
Ao abrir um livro em frente à realidade os olhos, por uma questão de focagem ou voracidade por uma linha reta, pousam sobre a borda.
O tempo decorrido entre o pouso e a fixação é ínfimo, pois ao passo que põem o pé neste lugar artificial escorrem segundo o fluxo da leitura.
Do topo.
Até a outra borda onde é arremessado pelas últimas palavras ao
outro topo.
Entretanto, entre quedas e arremessos é de comum acordo que textos escritos no ocidente são uma sequência de palavras. Na ausência do escritor esta culmina no corpo do leitor.
L
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Qualquer movimento simpático de um ser que não estivesse presente no horizonte discreto de Maculé, conseguia realizar um acontecimento novo no seu entendimento do mundo. Por mais que a percepção de Maculé se dirigisse apenas ao mais reconhecível possível, os desencontros causados por sua mente quando ele encontrava um ser completamente autárquico lhe atribuía um novo modo de ser no mundo. A partilha ocorrida dentro de si mesmo era dolorosa e forçosamente necessária. Deveríamos assim, dizermos a Maculé que, contando com toda sua dor relativa ao prazer do ser em ser autárquico, não se reprimisse em sua vontade de tornar-se igual, ou ao menos, próximo dessa nova realidade que o permitia mudar. Qualquer visualidade grosseira de uma nova fé coletiva em movimentos políticos, defronte a um “agora possível Maculé autárquico”, distinguia as necessidades de Maculé em modificar-se a partir do desconhecido juntamente com a vontade desse ser se diferenciar de tudo o que reconhecia como igual ao que não é. Ainda que fosse possível que Maculé se regenerasse em seu passado ao invés de tentar se modificar com o diferente, ou melhor, tentar se tornar o máximo parecido com o que desconhecia, para assim se conhecer e reconhecer o mundo que o abriga, Maculé ainda entende que é possível se frustrar com os limites de uma nova convenção em seu modo de vida presente, mas os riscos lhe serão mais necessários do que as dores que podem deles decorrer. Uma clara e objetiva divisão que ocorre dentro do corpo de Maculé, como num espírito que ressurge do passado, separando a matéria carnal do material da mente, se demonstra infalível no objetivo ainda desconhecido de sua vida. Poderíamos assim ter uma conversa com e entre as partes de Maculé, na tentativa de lhe declarar sua própria vontade de se tornar outro, ou de amar a diferença assim mesmo como ainda não pode aprender a se amar plenamente, talvez isso pudesse lhe tornar mais diferente que o mesmo que o difere. Qualquer que seja o barulho desconhecido, reconhecido por não saber qual é, que pudesse permitir um contentamento de Maculé em se obrigar a descobrir a causa, realizava a regeneralização de um “agora de novo Maculé diferente”. Mesmo que se tornasse obrigatório o cansaço causado pela busca da causa e assim como certas dores que ressurgissem incontestavelmente a sua vontade de não senti-las, a vontade do ser do barulho em demonstrar diferença não se equiparava a inquietude de Maculé não conseguir se permitir indiferente. A comparação entre o que se difere e o que é diferente existe para Maculé de forma organicamente desconhecida, assim como no acreditar dele em outras cores que a sua mente não consegue captar do mundo, e pode, ou deve, transparecer um entendimento do mundo ainda não vivido, apenas ensaiado no momento que escutava algo que não conhecia. Seria assim possível nos contradizermos um pouco, ao dirigir uma obrigação a Maculé, se disséssemos que a natureza das coisas que nunca viveu sempre lhe serão diferentes, desconhecidas e quase inegociáveis, mas, reconhecendo uma natureza inquieta, o mais correto a ser explicitado é que Maculé pudesse se demandar para o diferente reconhecendo anteriormente suas partes semelhantes. Qualquer contentamento possível pela diferença e pelo desconhecido não realizava em Maculé a sensação de prazer, muito pelo contrário, esse contentamento lhe era mais opressor que a presença do inefável, a descoberta da confusão entre dor e prazer lhe vinha muito depois da experiência, pois com a obrigação que se fazia a entender o que se tornou após o reconhecimento do novo era o auge do seu próprio acontecimento. Ou seja, ainda que, por mais que, e mesmo que todo o acontecimento dentro de Maculé fizesse com que ele reconhecesse a si mesmo como um ser original, as dores decorrentes de todo o cansaço que teve até chegar aqui sempre lhe eram mais recorrentes do que o prazer em acreditar na mudança que pode ter ocorrido. Então, a partilha, a divisão, a comparação podem ter sido extremamente necessárias, mas ainda não conseguiram fazer com que Maculé entendesse a natureza biológica das coisas diferentes dele, já que a única ocorrência dessas naturezas na natureza dele era a homogeneização das diversas partes de si, entre corpo e mente. Então, nesse momento de nosso reconhecimento do desconhecimento de Maculé, poderíamos afirmar que suas obrigações para com um novo de novo pudesse ser menos despreocupada que as últimas, mas assim, estaríamos esquecendo que um dos modos diferentes de Maculé se amar é se estabelecendo pela crise causada a si mesmo na busca do reconhecer-se no possível desconhecido.
G
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FEV AB R 2013
. ana luisa lima gustavo colombini jaime lauriano leonardo araujo maíra dietrich
edição do autor são paulo 2013
RELAÇÃO
estacionamento escrita criativa/escrita obrigatória. ao final do processo de pintura da fachada do ateliê aberto o grupo foi surpreendido com um convite. um homem entrou na galeria perguntando quanto cobrávamos para pintar o letreiro do seu estacionamento. todos se entreolharam muito surpresos e gaguejaram que mais tarde passavam lá para avaliar. X
gustavo colombini e leonardo araujo mimajneb maíra dietrich
fragmentos de um discursso por fabio morais
vírgula gustavo colombini cena de mentira gustavo colombini e leonardo araujo as coisas gustavo colombini reunião leonardo araujo sintaxe I maíra dietrich uma linha gustavo colombini e ketherin heliara we met samantha moreira
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NTO 12
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o tempo passa e a gente ainda não sabe se sabe viver junto. se transferir para outro lugar é um dos melhores jeitos de enxergar o que a gente acha que é onde vive. que horas você foi dormir? cerceia e se inscreve no outro, eu falei.. como o vidro do carro que não fecha sozinho, é preciso o pra cima, pra baixo, pra cima, pra.. peraí! temos que fazer juntos! pra cima, ah! foi! quer suco? quer café? encontrei dois palitos de dente no bolso da calça que me emprestaram e quase atirei longe, dai lembrei que não era meu aquele bolso. e com todos esses lugares e pedras a gente prefere os benjamins e mais benjamins para que cinco dividam a tomada. vamos dar uma volta? vamos no extra? você já leu isso aqui? não conseguimos ficar juntos nem separados. e junto só existe coeso e consciente de si quando pelo menos um não está presente, não por esse um específico, mas por que mesmo não ali, todos estão. é o ímpar-par. ou ver ao vivo um tomando o lugar do outro, na fala e na postura, nos apresentamos como contraponto do que achamos que deve ser embatido. antídoto do outro. e as vezes mil decibéis pra falar a mesma coisa. todas as estórias tem frente e verso, né? no nosso caso, cinco frentes e cinco versos. e se o barulho desbundado que vem da janela fosse eu? era não hoje, aquele hoje que reimprime um novo tom, nova audácia da reação. todas as estórias tem frente e verso, até nossa voz tem nuca e pelos. nossa voz tem ranço e redenção. somos todos a voz que vem da janela, voz não, berro, trambolhada de erros fonéticos respingando um monte de coisas. e todo dia, a cada dia, ter o deleite de ver o outro viver, reaprender a amar esse outro, não por um exercício de tolerância, mas por amar, por amor mesmo. exercício de enxergar com simultaneidades, da sala, imaginar como está o coreto. as formigas que sobem e descem, a luz está apagada, mas se estivesse acesa, vários insetos ao seu redor, e imaginar o que o coreto agora imagina da sala, aonde estou (estava). tem um silêncio bom aqui, o dia já vai amanhecer mas ainda frio demais pra sair. começamos a residência em pleno calor e agora.. respeitando o horário metalúrgico troquei as horas do dia, ainda desencontrado com o pleno horário dos trabalhadores, mas com o mesmo cerne, o dia amanhecendo, frio e forte. começa a esquentar os ladrilhos e as telhas. e o corpo acorda, mesmo já acordado. alguma coisa dentro dele vibra e encoraja as outras. parece que o dia começou, e dentro dele ainda algumas horas de pura luz e silêncio na casa. escorro pela varanda olhando cada luz aparecer no recém-velhíssimo preto e branco da madrugada. cada coisa ganha de volta a sua cor, silhueta envoluma, relembro o que não conseguia ver no escuro, os terrenos se abrem, os caminhos me vem, sem pressa... vontade de prolongar essa luz tão estranha por mais um tempo ainda, só pra olhar mais, sem nem entender, mas não se pode. o sol chega, chega bem aonde estou, nas poltronas, atravessa os coqueiros (sim! coqueiros!) e acende a minha cara na varanda.. espreguiço mil coisas a dizer, mil palavras vou falar hoje. bom dia. recém uma semana voltada a são paulo, me estréio na cidade, metrô e confusão. me sinto um bicho pequeno, terrivelmente sozinho, completamente solta, sem entender uma palavra ouvida nas ultimas três horas, perdida e ilhada numa livraria um braço me encosta e eu abraço forte forte sem coragem de soltar meu amigo naufrago. até pergunto se ele sente o mesmo, mas antes disso já eu via em seus olhos, a mesma estranha saudade misturada com cansaço e avulsabilidade do entorno. tô tão perdida! eu também.
mimajneb
.ogla somairc
as coisas 1. sendo o erro a maneira mais involuntária das nossas certezas, nós não devemos acertar demais, por exemplo, nesse momento, eu não vou conseguir ser mais claro do que isso, eu descobri coisas que explicam muitas outras coisas, explicações em progressões terrivelmente geométricas, números vastíssimos, sem fim, nós estamos realmente falando sobre o infinito, uma infinidade desleal, uma traição aos nossos olhos, a impossibilidade significativa da medida, nesse caso, nós estamos falando de um momento específico onde a poesia vem ajudar a matemática, a álgebra, a geometria governando o mundo, o ciúme que eu tenho da distância dos seus braços, por exemplo, o espaço aberto entre os pontos mais extremos da sua silhueta, o desenho da sua sombra em ângulos diferentes, vejamos, certas teorias recriam um tempo que inverte o espaço relacional das nossas presenças, sendo a única responsável por essa reinvenção a plenitude da variabilidade natural das coisas, sim, são elas de novo, as coisas sofrem a mesma pressão dos carbonos, dos ouvidos na serra do mar, quando nós viajávamos juntos pra praia, a longitude da nossa respiração, os nossos bocejos despressurizados, muitas dessas revelações distorcem a quantidade exata de domínio emocional que nós temos sobre os nossos atos mais impulsivos, ou seja, e é exatamente aqui onde eu quero chegar, nós estamos falando de grandezas inversamente proporcionais, o erro nos engana, assim como a certeza nos desequilibra 2. ao levar em conta o equilíbrio como força de ocupação, da maneira que nós estamos tentando desconstrui-lo, retornamos ao início, as coisas precisam de incertezas voluntárias, inassociáveis, por exemplo, nós estamos pedindo desculpas, e nós sabemos que assim é melhor, pois ao tratarmos o equilíbrio como pressuposto subjetivo da presença, assim como o tempo, deslocamos o resíduo conceitual que antes se encontrava no repouso, nas possibilidades infinitas de silêncio e no clichê de suas relações internas, já que existem relações internas dentro do equilíbrio, assim como existem relações internas em qualquer pedido involuntário de desculpas, por exemplo, isso é uma traição, enfim, tudo isso para transpormos o sedimento conceitual para a ausência das coisas, é isso o que eu estou tentando fazer agora, nós estamos pensando em uma teoria sintética das coisas que se pauta principalmente pela ausência delas, e não mais pelo acontecimento de suas presenças, elevando a palpabilidade das coisas a uma categoria de superioridade instintiva, descobrindo na certeza da matéria a maior impossibilidade explicativa de qualquer teoria, já que elas
devem morrer no campo das ideias, você disse, já que elas devem ser todas enterradas embaixo de muita terra, essa é a prova de que todas as coisas podem provar a existência de outras coisas, além de sua própria existência em conceitos muito particulares, como se eu mesmo fosse culpado por existir, pelo deslocamento de matéria e de tecidos orgânicos, como se nascesse uma ciência inteira só pra explicar a minha maneira própria de respirar ou assoar o nariz ou caminhar descalço, e sobra a minha forma mais pessoal de morte, fazendo o termo morte se arrastar pelas letras de sua própria palavra, e é só a própria palavra que não a deixa morrer, você sabe o que eu estou tentando dizer, mesmo se eu estiver errado, quando nós viajávamos juntos pra praia, o que eu quero dizer é que essa nova teoria das coisas aponta um desequilíbrio universal dos erros e, assim como a certeza nos desequilibra, não há absolutamente nada que nós não possamos simplesmente tocar 3. existe, por esse motivo, uma relação de dependência entre o toque e a sensação de existência, eu insisto em descrever as teorias que mais me levam pra longe daqui, o traço pontilhado que limita a realidade, sendo a distorção ambígua desse termo o ponto chave do campo prático da fisicalidade que estamos tentando entender, você provou pra todos nós, mesmo que estivesse errado, quando nós assistimos a cidade inteira pegar fogo, do alto daquela sacada insegura, não há nada que nós não possamos simplesmente tocar e, assim como a redenção física está emocionalmente ligada aos fins e às despedidas, o toque, nesse sentido, se mostra como a expansão territorial do que ainda não experimentamos, nós não podemos ser mais claros do que isso, nós estamos falando de uma guerra se vocês ainda não perceberam, nós estamos falando da sensação do toque antes mesmo de entender quais são os nossos próprios limites, e quando falamos sobre limites, retomamos involuntariamente as explicações em progressões terrivelmente geométricas, os números vastíssimos a se perder de vista, as estratégias militares de grandes guerras e a tentativa do erro como o impulso mais equilibrado de todas as nossas certezas 4. a guerra começa quando a palavra falta, nós estamos falando sobre isso, como se esticássemos um mapa sobre a mesa e marcássemos as linhas, o traço pontilhado que limita os bombardeios, os círculos de baixa resolução, os avanços imaginários, aqui entra o problema, são as explicações das coisas na ausência de explicação das coisas, como se nascesse
uma ciência inteira só pra explicar a forma mais impessoal de morte, fazendo o termo morte se arrastar pelas letras de sua própria palavra, mas tanto faz, só depois eu percebi que o verbo morrer tem a palavra erro dentro de si mesmo e é só o próprio verbo que não me deixa morrer, o verbo e esses números vastíssimos a se perder de vista, a tentativa do erro como o impulso mais equilibrado de todas as nossas certezas, são pequenas mortes, são pequenos lutos constantes, você sabe o que eu estou tentando dizer, mesmo se eu estiver errado, são associações erradas que formam as opiniões absolutas, o som ao redor, por exemplo, nós podemos falar sobre o fenômeno da chuva, as precipitações atmosféricas vistas sob o ângulo da produção sonora, veja só, quando nós ficávamos no quintal colhendo as roupas pra dentro e esperando por ela, a chuva surgia afônica, a chuva não tem som, o som da chuva vem da água caindo nas coisas, a água caindo no chão, a água caindo no telhado, a água caindo em tudo, caindo e escorrendo, uma guerra de atritos, e é aqui onde eu quero chegar, a linguagem, assim como a morte nos indispõe, não há absolutamente nada que nós não possamos simplesmente tocar, desmoralizando o atrito recente produzido pelo tempo, e aqui surge mais um conceito muito importante, o atrito do tempo é uma constante matemática, cabe perfeitamente nas fórmulas teóricas que invertem o espaço relacional das nossas presenças, sendo a plenitude da variabilidade das coisas a única responsável por essa reinvenção, é por isso que as coisas sofrem a mesma pressão dos carbonos, dos ouvidos na serra do mar, o tempo atrita a matéria assim como a linguagem digere a palavra 5. agora a palavra, saindo de qualquer aprisionamento semântico, é generoso tentar explicar as metáforas de um jeito mais tenebroso, pensemos nas palavras como instrumentos alimentares e também na abrangência da azia, do vômito, do engasgo, do apetite e da bulimia, a linguagem como um conjunto de transformações químicas e físicas que as palavras sofrem ao longo de um sistema digestivo, a língua, para se converterem todas em compostos menores, hidrossolúveis e absorvíveis, podemos voltar a esse conceito depois, ao gênero, ao estilo, à fala, à escrita, ao pacto do escritor com a sociedade e à responsabilidade intransferível de se escrever no presente, estamos condenando também o clichê das relações internas, o clichê da palavra clichê, as palavras sem demanda, o momento semântico de um símbolo, na teoria oposta da ausência das coisas como explicação da mais profunda presença, a condenação se misturando com uma grande celebração das coisas, nós continuamos
falando de grandezas inversamente proporcionais, a comida nos alimenta, assim como a fome nos desestimula 6. o momento semântico de um símbolo, agora é possível conectar a esse conceito o significado autoral, a diluição da posse criativa, a gramática do ato ilocutório que pode fornecer uma estrutura pública ao evento da linguagem, vejamos, essa também é uma guerra, uma guerra que começa na profusão do dito, num enxurrada de palavras, numa intensidade do discurso, uma guerra silenciosa pra sugerir o seu próprio paradoxo, como se nascesse uma gramática inteira só pra explicar a minha maneira própria de escrever ou tossir ou fechar os olhos e sobraria a minha forma mais pessoal de linguagem, sob um respeito involuntário, um novo escudo invadido, assim como o significado autoral se torna uma dimensão do texto na medida em que o autor não está disponível para ser interrogado, uma quebra de escudo do pacto social, como se esticássemos um mapa sobre a mesa e não marcássemos nada, a hipofísica da guerra estomacal dos pronomes, de novo a solução conceitual de uma digestão e seus desdobramentos a serem desenvolvidos pela imagem a) o sistema digestivo da linguagem b) a mastigação exclamativa da língua c) a deglutição pontuada da pergunta d) as enzimas do ponto e) a dança peristáltica das palavras f) o bolo alimentar da pontuação 7. nesse momento eu não vou conseguir ser mais claro do que isso
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FEV AB R 2013
. ana luisa lima gustavo colombini jaime lauriano leonardo araujo maíra dietrich
edição do autor são paulo 2013
INDEX
visitas trabalhos realizados por quem participou e colaborou com ow projeto
carta para uma maquinação processiva... gustavo torrezan saco de visitas ketherin heliara obedecer no es vivir samantha moreira arte naif andré sant’anna uma introdução necessária+ entrevista não registrada a marco maggi julia buenaventura notação maíra dietrich+daniela castro+fabio morais manual para a construção de um corpo que dança henrique lukas percurso+palavra cruzada amilton santos e juliana solimeo
silencio ana luisa lima pálpebra gustavo colombini tipotuação leonardo araujo o quarto gustavo colombini
carta para uma maquinação processiva...1 Motivo-me a participar de feituras que promovam uma prática para se pensar a arte enquanto uma pesquisa experimental, especialmente criadas a partir de encontros intensivos. Que venham afim de uma prática enquanto modo de fazer e pensar na arte e que se possa configurar como uma espécie de máquina que produza aberturas para experimentos que busquem o dilacerar o corpo universal que padroniza um espectador. Este corpo que pode ser visto como uma máquina subjetiva e ser entendido como corpo/texto padronizador de um único tipo de leitor. Também, em direta relação a esse raciocínio, pode ser dizer a um padrão de escritor, que, dito “universal” se constitui como expressão de um público. Por isso é preciso ir além a essas perspectivas padronizadoras e universalizantes e traçar pela escrita um combate anti ideias prontas e aquilo que esta estabelecido. Menciono Gilles Deleuze: “Não escrevo contra alguém ou algo. Para mim escrever é um gesto absolutamente positivo: dizer o que se admira e não combater o que se detesta. Escrever para denunciar é o mais baixo nível da escrita. Em contrapartida, é verdade que escrever significa que algo não vai bem no estado da questão que deseja abordar. Que não está satisfeito. Então eu diria escrevo contra ideias prontas. Escrevemos sempre contra as idéias prontas” (Deleuze, 1996, p. 26)2. Esse modo de pensar a escrita pode também ser deslocado para se pensar outras práticas que podem legitimar o estabelecido ou então abrir-se enquanto possibilidade para lançar-se na produção de um experimento, de uma pesquisa do desconhecido a partir da construção de arranjos. Combater através de uma prática as idéias prontas que possam vir a colocar-nos como prisioneiros de uma ou da mesma lógica plana ou que planifica a possibilidade do pensar, já que torna tudo raso, removendo o desdobrar das idéias, a produção de variações e a possibilidade do encontro de troca é INTENÇÃO. Perspectiva que vislumbra sensivelmente e motiva a que participe desse experimento, combativo, de produção prática do pensar através da escrita, e da escrita como arte e da arte como escrita...
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Inspirado no texto Uma escrita para um combate incerto de Ana Godoy.
2 Esta referência pode ser obtida no caderno de Subjetividade no. 4 do núcleo de estudos e pesquisas da subjetividade da PUC – SP. Edição especial organizada por Suely Rolnik e Peter P. Pelbart.
uma introdução necessária Apresento o seguinte texto sobre o artista uruguaio Marco Maggi, no marco da publicação “Carta de Intenção”, pois boa parte da obra do artista uruguaio, supõe uma pesquisa sobre a folha de papel, já não como suporte do discurso ou desenho, mas como material, o que tem vários pontos em comum com os trabalhos desenvolvidos durante a residência, origem desta publicação. A peculiaridade dos trabalhos que conheci durante a minha estadia com Maíra Dietrich, Leonardo Araujo, Gustavo Colombini, Jaime Lauriano e Ana Luisa Lima radica na procura de um texto plástico, cujo carácter físico seja tão importante quanto seu carácter informativo, ou inclusive maior. Dai as produções de textos sobre as paredes, de textos que são riscados até produzir textura, daqueles formados ao modo de uma colagem ou cadáver esquisito, onde vão se aportando frases de dois autores diversos, ou daqueles que mais do que texto se configuram como desenho, traço sobre o papel. Desse interesse na escrita saiam várias procuras relacionadas com a materialidade do suporte, ora a parede, ora a folha eram pensadas como elementos ativos da criação. Penso nos trabalhos de Maíra, um livro cuja brochura tinha uma densidade corporal e páginas cuja espessura e consistência era palpável, ou na intervenção na enciclopédia de Leonardo, trabalho em que a capa, plana, virava em objeto tridimensional, e no qual o interior do livro era investido, de forma que o texto estava fora e não dentro do livro mesmo. Em fim, no trabalho desenvolvido pelo grupo vi toda uma pesquisa que, partindo do texto, leva por diferentes soluções plásticas. Interesse que me fez pensar nas explorações de Maggi, e propor a tradução ao português do artigoentrevista que realizei o ano passado, quando o artista passou pelo Brasil, como contribuição a este projeto.
entrevista não registrada a marco maggi
Conhecido dos brasileiros principalmente por sua participação na 25ª Bienal de São Paulo e na 3a e 4a edições da Bienal do Mercosul, Marco Maggi (1957) é um artista uruguaio com obras nas coleções do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) e da Fundação Daros da Suíça. Esta entrevista, não gravada, entre diálogo e ensaio, aconteceu durante a montagem da exposição “Desinformação Funcional, Desenhos em Português” realizada no Instituto Tomie Ohtake em 2012. Os óculos de Marco Maggi não são nem grossos nem finos e os olhos por trás das lentes não ficam nem grandes nem pequenos. Assim, a primeira questão desta entrevista não registrada foi de múltipla escolha: Você é míope ou hipermetrope? perguntei, frente ao que Maggi respondeu: Sou astigmático. Fiquei perplexa. Para mim, o mundo dividia-se em dois grupos: os que enxergam de longe e os que enxergam de perto; eu pertenço a este último, e ele não pertence a nenhuma das minhas duas categorias. Assim, fui obrigada a abrir um novo conjunto. Maggi explicou que, aos 18 anos de idade, os números dos ônibus começaram a tremer. Isto é, conseguia ver de longe e de perto com clareza, mas era-lhe difícil estabelecer se um 1 era um 1 ou um 7. Em resumo, determinava a quantidade de números enquanto figuras, mas não a quantidade que todos esses números estavam fingindo ser. No astigmatismo, as formas não resultam turvas como acontece na miopia, mas, no entanto, as figuras não conseguem ser lidas facilmente, ter sua informação identificada. Identificar é diferente de ver. Segundo a Teoria da Gestalt, mais do que ver, uma pessoa identifica: ainda que não tenha terminado de ver o copo seu cérebro já exclamou: “copo!”; segundo os míopes, uma pessoa só vê com uma mínima possibilidade de identificar o objeto; segundo Marco Maggi estamos cansados de identificar e identificar, ação que tem nos tirado qualquer possibilidade de ver. “Desinformação funcional, Desenhos em português”, exposição aberta no Tomie Ohtake de 8 de março a 13 de maio de 2012, consiste em várias obras cujas variações em tamanho são notáveis. De uma parte, temos uma série de 700 resmas de papel, formato A4, dispostas no chão uma atrás outra, assim como um labirinto geométrico que bem pode ser percebido como paisagem ou percorrido como caminho. De outra parte, temos obras compostas por slides, envelopes, folhas, cubos e espelhos com incisões de estilete, assim como se se tratasse da matriz de uma gravura que jamais tem sido impressa; e, finalmente, peças tridimensionais de papel que, sem superar um ou dois centímetros de área, encontram-se diretamente coladas na parede, de forma que basta distinguir uma para começar a procurar outras. As páginas utilizadas por Maggi são brancas ou de uma cor primária: amarelo, azul e vermelho. De fato, a folha superior de cada uma das resmas do labirinto tem uma cor determinada, a qual segue uma disposição não aleatória: bem parece ter um código porém sem seu manual de instruções. Assim como sucede com uma ruína ou inscrição antiga, onde é evidente uma língua, um conjunto de signos, ainda que não tenha como capturar sua mensagem. Do mesmo modo, o conjunto, num primeiro olhar seriado, genérico, está cheio de detalhes elaborados a mão: incisões de estilete das quais se desprendem formas minúsculas sobre a área do papel, espécies de pontes e colunas, cujo cuidado é compartilhado por artífice, e se o observador quiser ver a minúcia precisa abaixar-se, ficar de cócoras ou até se sentar no chão. Entretanto, para olhar o panorama todo, será preciso se afastar, quase sair da sala, mas para estudar um detalhe localizado na altura do teto, terá de esticar o pescoço, e como você não é girafa, ficar na ponta dos pés. A exposição implica, assim, um exercício físico capaz de quebrar qualquer ilusão de omnisciência. A segunda questão não despertou maior interesse em Maggi: se escolhe entre lupa ou luneta? Ele alçou os ombros. Cai em conta que era a mesma pergunta que já tinha realizado antes, porém com palavras distintas; lembrei que era astigmático, e tentei explicar como o longe e o perto da exposição, a experiência da distância, realizava a tarefa de uma lente. Maggi tomou outro caminho.
Indicou a relação de suas resmas de papel com a língua braile, assinalando que a topografia que geravam no chão o fazia pensar no tato: em uma superfície cujas interrupções, altos e baixos, construíram um signo determinado. Assim como se a visão terminara por criar, em vez de uma imagem, a noção de um conhecimento tátil, mas não de textura senão de mensagem, isto é, de informação. Imaginei um Gulliver cego que, para receber um recado, passara sua mão sobre o chão da mostra. Comuniquei minha versão, frente a qual Maggi respondeu que esse chão também poderia ser tomado por um slide ampliado a tal ponto que somente conseguíssemos observar alguns pixels. Perspectiva desde a qual meu gigante converteu-se num anão. Daí, Maggi desenvolveu um dos pontos chaves da sua obra: a questão da cegueira que domina o nosso momento. De um lado, por algo que ele chama de censura por saturação e não por omissão: temos tantas notícias em um só segundo, que não conseguimos compreender uma décima parte do que nos chega. Os meios de comunicação, diz Maggi, estão usando uma forma de velar a realidade diferente àquela que usaram faz algumas décadas, durante a Guerra Fria e as ditaduras: em vez de subtrair informação operam por overdose, nossa percepção colapsa e ficamos sem a menor possibilidade de análise. Maggi indicou que o código que a obra parecia ter era uma espécie de estratégia para, em vez de enviar mais informação, dissolver qualquer informação possível, isto é, realizar uma “desinformação funcional”, um contradictio in terminis, pois uma desinformação carece, de fato, de qualquer funcionalidade. O críptico título, não dizendo nada, revela o eixo que percorre a obra deste artista uruguaio, um objetivo consistente de que o espectador realize uma pausa na sua rota. O assunto é bem simples. Quando a gente percebe um código—as cores das resmas, as inscrições com estilete sobre um cubo de acrílico—quer ter a chave, e então se detém para tentar identificar o objeto, ler, tirar a mensagem, mas não existindo o código na obra, tem que fazer uma pausa, observar, ver e já não identificar. (Isto aconteceu depois, assim, não pude comentá-lo com Maggi. Faz pouco tempo, deixei um amigo na exposição, questão de um minuto; quando voltei, ele me esperava sentado, já não sobre uma cadeira, mas no chão, tentando compreender um detalhe minúsculo sobre uma folha amarela. Efetivamente, ele tinha feito uma pausa.) Volto ao bate-papo. Maggi falou muito da necessidade de nos deter, do cansaço por saturação que todos nós carregamos, e da sua tentativa por conseguir parar alguém, em um mundo onde todos corremos sem saber atrás de que. Ele concedeu uma cifra que fala por si só: um visitante do Louvre emprega um tempo médio de 16 segundos por obra, o que não oferece a menor chance de compreender o que está vendo. Percorrer e deter-se são as ações que o visitante realiza na mostra. O percorrer é conseguido por um jogo de escalas, que implica aproximar-se e distanciar-se, em um exercício físico capaz de revelar que teus olhos estão em um ponto determinado de teu corpo, e com isso, do espaço, algo que parece óbvio mas que costuma ser esquecido. O deterse, por outra parte, é conseguido através de duas estratégias básicas: primeiro, pela intriga desse aparente código, segundo, pela mão de Maggi, essa minúcia do estilete sobre o papel ou sobre o acrílico que obriga você a levar seu nariz até o limite da peça para não perder o detalhe. A última questão foi óbvia: O que você vai fazer com todas essas folhas quando a mostra acabar?, a resposta, outra pergunta: O que vai fazer o instituto? As folhas estão intactas. A penúltima, outra de múltipla escolha, você fica com o formato A4 ou com a carta? Aqui vou me estender: o tamanho carta é o formato usado nos países de língua espanhola (21,6 x 27,9cm) alargado; o A4 usado no Brasil (21x29,7cm) alongado, sua diferença constitui num verdadeiro problema na organização de um arquivo e, segundo meu critério, na representação do mundo. Após pensar um momento, Maggi respondeu: para os labirintos no chão fico com o A4, pois sendo mais comprido, permite franjas mais largas, para os outros trabalhos prefiro o tamanho carta. E terminou indicando que era justamente daí a origem do subtítulo: “Desenhos em português”. Então pensei, claro!, se fossem em espanhol não seriam dessa forma.
MANUAL PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CORPO QUE DANÇA Fique sozinho em silêncio. Repare no som da respiração e do próprio corpo. Fique em pé com os joelhos levemente flexionados e o quadril encaixado no eixo vertical, perpendicular ao chão. Feche os olhos. Ao inspirar, sinta como se um fio preso no topo de sua cabeça te puxasse para cima. Estique os joelhos, os pés continuam em paralelo. Segure o ar até que ele se espalhe por todo o corpo. Sinta o percurso do oxigênio atravessando o corpo. Perceba o corpo como um só membro. Sinta as solas dos pés coladas no chão. Levemente solte o corpo e deixe que gravidade te desloque do eixo, explorando os limites sem mover os pés. Mantenha o corpo reto e os pés grudados no chão como se a única articulação do corpo estivesse no tornozelo. Mantenha a cabeça em linha reta com a coluna. Volte para a posição vertical, perpendicular ao chão. Estique o corpo ao máximo, sentindo a gravidade e o fio no topo da cabeça puxando as extremidades em direções opostas. Corte o fio que te suspende, desmonte toda a organização do corpo de forma brusca sem mexer os pés em paralelo. Com os joelhos levemente dobrados, deixe os braços e a cabeça soltos. Comece a organizar o corpo na posição inicial. Sinta o peso dos braços e da cabeça criando resistência ao movimento. Depois de esticar os joelhos, encaixe os ombros e a cabeça em linha reta com a coluna. Tombe a cabeça para frente e inicie um movimento circular. Ao completar três voltas, inclua os ombros e a escápula, deixe que o ombro conduza o movimento e solte o tronco. Continue o movimento sempre na mesma direção, lentamente, sentindo todas as partes do corpo. A cada repetição amplie e acelere o movimento. Na sexta volta diminua a velocidade progressivamente até a posição inicial. Abra os olhos. Dance.
o quarto o quarto tá cheio de lembrança dele, amiga. me explica como eu posso fechar os olhos com esse bando de coisa querendo ser vista? me explica, faz um daqueles discursos que eu gosto tanto de ouvir, quando você mistura a sua voz com a minha e a gente parece a mesma pessoa falando a mesma coisa. mas de jeito diferente, você sabe. você é mais antenada, você nunca guarda as suas coisas pra você, você sempre tem tanta certeza de tudo. aliás, ontem eu rezei pro seu santo me ajudar a ter a mesma certeza que você tem das coisas, são infinitas as maneiras de deixar que as coisas se fodam como elas mesmas merecem, elas precisam, eu também preciso, não ri de mim. você ainda tem aquele pôster dos smiths na parede da sala? eu lembro da gente ouvindo unloveable bêbadas, tanto faz a sujeira, a gente só queria um lugar pra se esconder. eu fico pensando, amiga, eu fico pensando no que a gente se tornou. puta que pariu, cadê esse lugar? eu te mato se você encontrou antes de mim e não me avisou. cê me assustou no último telefonema, disse que ia sumir por uns tempos e que me amava. e eu perguntei quanta grana você queria que eu te emprestasse. a gente sempre faz essa piada, a gente desacredita demais das coisas. esse nosso cinismo filho da puta. eu sei que você não queria grana nenhuma, mas você não riu, você ficou séria de repente, daquele jeito que eu acho graça. você passou um dia inteiro treinando isso comigo. eu nunca me importei, você sabe disso, tem coisa suja que não é pra se lavar nunca. o que eu to querendo dizer, amiga, é que existe um tipo de sujeira que não é pra ser limpa. eu to lembrando de você agora, o quarto tá cheio de lembrança dele e eu quero mais é tacar fogo nessa merda toda. eu sinto falta da sua arrogância e das suas piadas sem graça. eu imaginei que a gente pudesse fugir juntas um dia, tacar o foda-se pra esse mundinho de merda e se jogar na noite. juntar uma grana, sei lá como, e viver de putaria por aí. parar de se apaixonar por qualquer pessoa que entende a gente, você me entenderia e eu te entenderia, até o fim, a gente não precisa mais de ninguém. eu compraria aquela sombra magenta, meio bjork meio on drugs, pra parecer com você, eu compraria uma capa de super-herói pra gente pular da janela de algum lugar bem alto se as coisas derem errado de novo, as coisas não podem dar errado desse jeito, eu não consigo parar de imaginar a gente voando, por um minuto que seja, vai valer a vida toda, eu tenho certeza. e imagina quem cairia primeiro? olha pro meu braço, amiga. você perdoa o meu olho roxo e eu perdoo o seu ombro deslocado. a gente devia mudar de cidade como quem muda de humor, ter um lugar em cada lugar do mundo. aí você acordaria e falaria pra si mesma nossa hoje eu to meio paris, meio bangkok, meio buenos aires, meio honolulu, que merda de vida. como você me disse uma vez a gente tem uma história linda pela frente, só falta alguém pra escrever essa merda logo. a gente não sabe escrever a nossa história, puta que pariu. até pra isso a gente depende de alguém, nem pra você se formar em letras e virar uma grande escritora, nem isso. nem pra eu virar uma grande personagem da literatura brasileira, cheia de conflitos e decisões irresolutas, problemas familiares, preconceitos, amor, romance, glamour e tristeza, muita tristeza. eu até tentei escrever alguma coisa naquele ano em que você decidiu que ia sumir
por uns tempos, mas você achou tudo aquilo deprimente demais. e você tava certa. você é uma filha da puta, você sempre tá certa. por isso que eu queria ter um pouco da certeza que você tem das coisas. to achando que a nossa história é só pra gente mesmo. e quer saber, já tá ótimo. é pra quem merece, quem te compre que te conhece. a gente tá barateando o nosso preço, daqui a pouco a gente tá saindo como brinde. e eu quase nem consigo mais pensar nessas coisas. o corpomercadoria, o tempodinheiro, neoliberalismoantiético, eu não escolhi nada disso, mas se eu ficar parando muito pra pensar, já era. ter tempo é mordomia, é vantagem entre as classes sociais. você que me disse. e é engraçado, mas eu só te entendo porque eu to cansada. eu também fui taxada por uma sujeira que não era nem minha. são infinitas as maneiras de deixar que as coisas se fodam como elas mesmas merecem, elas precisam, eu também preciso, agora você pode rir de mim. só você pode rir de mim agora, então aproveita. cê também queria que o tempo pudesse passar mais devagar, não seja ridícula, essa merda vai matar a gente rápido demais. então vê se muda a chave logo. às vezes eu me importo demais com essa merda. você me perdoa pelo mau hálito e eu te perdoo pelos quilinhos a mais. quando você fala não, eu também falo não, e isso é um problema. antes a gente perguntava porquê pra tudo, hoje a gente não pergunta mais. eu lembro do dia que você me explicou que aquilo era um avanço, mas esse avanço eu não quero. esse avanço deixou a gente assim, toda estragada por dentro. por fora jamais, deixa de ser besta. tá bom, eu vou falar por mim. esse avanço me deixou cansada, amiga. cê lembra quando te pisaram na rua, calçando a marca dos teus olhos, você matou um por um. é a mesma coisa. eu te ajudei. a nossa maquiagem sem graça depois daquela noite, o medo de respirar dentro da minha pele, a vergonha de querer o que eu quero, o pavor de quebrar a cintura esticada nesse pedaço de rua, na mão de algum filho da puta que vai se salvar antes de mim, deus me proteja. deus não, amiga. tô cheia de desculpa. o quarto tá cheio de lembrança dele e eu não consigo nem respirar direito. me explica essa besteira, faz um daqueles discursos que eu gosto tanto de ouvir, quando você mistura a sua voz com a minha e a gente parece a mesma pessoa falando a mesma coisa, e eu não entendo mais nada e de repente já to viajando nos estímulos sonoros da noite junto com você. me desculpa a demora, só agora eu me dei conta de que essa sua demora podia ser alguma coisa maior do que a sua arrogância em me deixar esperando por você. por isso que eu to preocupada com a nossa história, tá faltando um start, o quarto tá cheio de lembrança sua e eu não sou mais quase nada aqui dentro. você me avisou que era perigoso, mas você me entende melhor do que ninguém. você perdoa a minha teimosia e eu perdoo os seus conselhos idiotas. mas acho que agora não tem mais jeito. eu não tenho muita coisa na vida, mas toma, é tudo seu. eu já comprei as nossas capas e se eu resolver me espalhar em purpurina pela rua, eu espero que seja um rosa poderoso, fulgurante, uma nuvem de brilho riquíssima. aí vão batizar uma cor com o meu nome e vão batizar uma avenida inteira com o seu. e eu faço questão de me espalhar na sua avenida, amiga.
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FEV AB R 2013
. ana luisa lima gustavo colombini jaime lauriano leonardo araujo maíra dietrich
edição do autor são paulo 2013
CONJUNTO
norte sul leste oeste maíra dietrich
introdução ana luisa lima, gustavo colombini, jaime lauriano, leonardo araujo e maíra dietrich
introdução palavras-chave: campinas, são paulo, texto, linguagem, objeto, residência, arte, experimento, experiência, experimentação
carta de intenção - edição campinas foi uma residência artístico-literária que aconteceu entre fevereiro e abril de 2013. nós, o grupo (ana luisa lima, gustavo colombini, jaime laurino, leonardo araujo e maíra dietrich), concretizamos nossa vontade de mexer com a matéria palavra. aqui, estamos falando da linguagem como objeto manipulável, tanto pelo sujeito que a organiza quanto pelo contexto em que ela é utilizada. desse lugar heterogêneo (áreas de atuação, pessoalidades, ideologias, vontades coletivas, interesses, cordas vocais, músculos da mão, cérebros, corações, cidades, posicionamentos artísticos, mundo) surgiram 50 dias (quanto tempo?) de imersão coletiva numa pesquisa da escrita que se deu em todas as instâncias: da literatura à dramaturgia, da crítica de arte ao fazer poético. (quais são mesmo as fronteiras da linguagem?) achamos que nem mesmo a linguagem pode nos comprometer com a imagem. a tentativa foi desvencilharse das fronteiras, mas não foi assim tão fácil. os acordos foram quebrados entre todos, fizemos o possível para enganar a linguagem, fizemos o possível para enganar uns aos outros através de linguagens próprias, mas o processo da convivência nos mostrou que a escrita sempre converge para os acontecimentos no presente. por isso, o EU falou mais alto em alguns momentos, enquanto que em outros, só pensávamos ELES quando tínhamos de voltar para as nossas casas em alguns poucos fins de semana, para uma separação necessária. quando percebemos a necessidade do isolamento conjunto, uma pseudossolidez, um sozinho coletivo, nos acometemos nas proposições dos visitantes da casa. uns foram interessados em favorecer os trabalhos já em desenvolvimento, outros estiveram preocupados em desconfortar o campo de produção, colocando-nos em caminhos sempre desconhecidos. nós não sentíamos nenhuma mudança porque não sabíamos que ela estava por vir: essa sensação era algo parecido com a felicidade que tínhamos quando acreditávamos, mesmo que por pouquíssimos segundos, termos alcançado a autonomia da linguagem, na realização de qualquer nova proposição que tentava subverter a sua ordem tradicional que achávamos que conhecíamos. conhecíamos mais ainda uns aos outros ao mesmo tempo que construíamos um trapiche em cima dele mesmo. a chácara-nossa-sede acolhia todos os humores, pedra, sol, grama e formigas. jantas, insônias, filmes, entrevistas, o que você acha disso e daquilo. trocar as personalidades como quem troca os chinelos. e um escrever maluco que não sabíamos onde enfiar. por mais que o momento presente fosse sempre o presente, semanalmente íamos ao ATELIÊ ABERTO entender o que fazíamos na chácara, momento de espacializar ‘palavra’ na parede, projeta, raspa, corrige, divaga. para depois voltarmos pra casa e lá entender o que fazíamos na galeria. assim como nos súbitos retornos a são paulo. só no ônibus entendíamos o que era campinas e só na rede-do-coreto entendíamos o que fazíamos em são paulo. em campinas, descobrimos que são paulo se resume a um eterno ir e vir. um retorno constante. nos 50 dias que ficamos juntos, as voltas sempre foram mais importantes que as partidas. a volta para a chácara-residência e a volta para uma escrita mais ‘sisuda’ mais ‘careta’. as voltas nos mostravam o quão atravessados nós estávamos. foi só quando descobrimos que algo já estava modificado que conseguimos adentrar e entender realmente o que estávamos fazendo ali. não se tratava somente de um esgarçamento da linguagem, mas uma tentativa de testar novas possibilidades de subjetivação, ou melhor, da criação de um sujeito coletivo, j+a+a+a+b+d+f+f+f+g+g+g+h+j+j+k+m+m+l+l+r+s
agradecemos todos que fizeram conosco: ao ateliê aberto e sua equipe, que acolheram diversos desdobramentos desse projeto, samantha moreira, henrique lukas e maíra endo. aos interlocutores convidados andré sant’anna, daniela castro e julia buenaventura, pela disponibilidade, visita e tantas conversas. aos interventores gráficos fabio morais e jimson vilela, por acompanharem o processo num outro tempo e pelo desafio de intervir na publicação. aos amigos: gustavo torrezan que nos acolheu em campinas. raphael escobar pela ajuda com a fachada. ketherin heliara, amilton santos e juliana solimeo, pelas visitas com proposições. daniel nogueira, bruno baptistelli, flora himmelstein, frederico filippi, maristela fantin, rosimeri jorge, lucas guedes, eloah melo, luiz dietrich, cauê dietrich, raí dietrich e gustavo salomão, pelas ilustres visitas que aqueciam nossos corações. dona ilma, seu murivaldo, dona mazinha e família pela ajuda com a casa. maria montero pelo diálogo. pablo vieira e noara quintana pela força com a publicação. francisco vacio e alcilene creuza por receberem tantas reuniões do grupo.
carta de intenção
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interventores gráficos
fabio morais e jimson vilela
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amilton santos andré sant ’ anna daniela castro gustavo torrezan henrique lukas julia buenaventura juliana solimeo ketherin heliara samantha moreira
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anfitrião em campinas - sp
ateliê aberto
carta de intenção é formado por ana luisa lima, gustavo colombini, jaime lauriano, leonardo araujo e maíra dietrich. essa publicação foi pensada como plataforma de desdobramento gráfico da residência artístico-literária que aconteceu entre fevereiro e abril de 2013 na cidade de campinas-sp. funciona como cinco livros dentro de um, territórios nos quais os trabalhos circulam e se acomodam. os índices podem ser usados como mapa/âncora para o percurso.
www.cartadeintencao.com franklin gothic e news gothic projeto gráfico maíra dietrich polém bold 90 g / m ² tiragem 2000 distribuição gratuita
ISBN 978-85-915409-0-7
projeto realizado com o apoio do governo do estado de são paulo, secretaria de estado da cultura - programa de ação cultural - 2012