Parésqui

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PARÉSQUi o olhar de uma atriz pesquisadora sobre o processo de criação

Valéria Andrade


Este projeto foi contemplado pela Fundação Nacional de Artes - FUNARTE, no Programa de Bolsas de Estímulo à Produção Crítica em Artes - Categoria Produção Crítica em Teatro.

Projeto gráfico Nando Lima Fotografias André Mardock, Valéria Andrade, Nani Tavares Revisão Valéria Andrade

Belém, julho de 2009.

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Ao meu pai Valter Rocha (in memoriam) - eterna inspiração, Ao meu companheiro Beto Bicho, pelo amor e o incentivo de sempre, Ao meu filho �talo, por me ensinar tanto sobre a vida, e a Nani e Alberto, amigos e parceiros preciosos.

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Sumário

1. Tripulantes da embarcação: uma introdução

Página 6

2. A madeira do barco: as bases da pesquisa - o treinamento - o olhar para o outro: a mímesis corpórea e a Ilha do Combu

Página 9

3. A construção do barco - a concepção - a criação da dramaturgia - a montagem do espetáculo

Página 38

4. Barco a navegar: atores e espectadores a bordo

Página 71

5. Bibliografia

Página 75

6. Anexos - fotografias do espetáculo - material gráfico - histórico de apresentações - ficha técnica - críticas e matérias de jornal

Página 77

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Tripulantes da embarcação: uma introdução “A trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos.” (Clarice Lispector)

Este trabalho tentará refletir sobre os caminhos percorridos durante a criação do espetáculo Parésqui, do grupo Usina Contemporânea de Teatro, produzido em 2006 como resultado da Bolsa de Pesquisa, Experimentação e Criação Artística do IAP- Instituto de Artes do Pará. Buscarei as palavras, sabendo que elas dificilmente darão conta de traduzir o mosaico de acontecimentos e sensações de um processo calcado na ausência de um texto como suporte para a criação, na experimentação da mímesis corpórea (metodologia baseada na observação, imitação e codificação de ações físicas e vocais para posterior teatralização), e no mergulho em um recorte do universo ribeirinho. Ser atriz e viver na Amazônia. Creio serem duas condições determinantes não só para a concretização do espetáculo cujo processo é objeto desta reflexão, mas sobretudo para a maneira de me relacionar com o meio em que vivo. Impossível não se encantar com a exuberância da natureza e a singularidade do homem que nela habita. Ao atravessar o rio para realizar a pesquisa de campo na Ilha do Combu, a apenas quinze minutos de Belém, tinha constantemente a sensação de desbravar um pouco dessa vida amazônica; a bordo do barco, deixava para trás a cidade, e de repente, o tempo parecia dilatarse e eu podia simplesmente contemplar. Mais do que contemplar, queria adentrar naquele universo, me sentir parte dele, pelo menos por alguns momentos. E se já não fosse pouco navegar pelas águas do rio Guamá, ainda fui agraciada com a força, a generosidade e a sabedoria de pessoas que alimentaram a base dessa pesquisa: uma família composta por três irmãos, seus filhos e netos, todos nascidos e criados naquela ilha. Ao reavivar a memória dos momentos iniciais da pesquisa, vejo-me ainda sozinha tateando o ambiente, repleta de incertezas quanto ao que iria encontrar, mas já afetada pela aura de devaneio que marca profundamente a cultura amazônica, segundo João de Jesus Paes Loureiro: “Devaneando à beira dos rios, acocorado à soleira da porta de sua morada, debruçado no peitoril da janela, fumando no trapiche ou à cabeça da ponte em frente às águas, navegando após as fainas de pesca, o caboclo devaneia diante do rio e da floresta, desenvolvendo audaciosas personificações estéticas, convive com os sonhos, repousa no tempo sem pressa nesse mundo sonhado” (2001, p.197). 1 - Procedimento de criação de cenas criado por Luís Otávio Burnier em 1981, e desenvolvido pelo grupo Lume Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, em Campinas/SP.

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Partilhando de uma maneira muito particular de compreender e explicar a realidade, resultado dessa atitude descrita por Paes Loureiro, pude também sonhar o mundo “por detrás do olhar do rio”, onde “há um mundo de signos, seres, mistérios. Assim, por detrás do rio - que é olho olhado que nos olha - há um mundo de mitos, lendas, encantarias” (Loureiro, 2001, p.202). Além dos rios, da floresta, dos mitos e de um homem “que se projeta no objeto de sua contemplação” (ibidem, 2001, p.198), tinha pela frente uma nova condição como atriz: a de criadora da cena. Condição esta que exigiu disciplina e uma mudança de postura diante do ato criativo, pois não existiria o diretor a dar respostas e soluções. A pesquisa partiu do trabalho sobre mim mesma, sobre o que eu sabia da minha presença em cena - princípio da pré-expressividade desenvolvido por Eugenio Barba2 em sua antropologia teatral,3 que compreende o nível em que o ator “modela a qualidade da própria 4 existência cênica” (Barba, 1994, p.151), operando sobre sua energia, sobre “o bios de suas ações e não seu significado” (ibidem, 1994, p.154). No trabalho do Lume, encontrei a referência mais direta para a pesquisa corporal, perseguindo uma forma particular de apropriação do treinamento que conheci nas oficinas ministradas por Carlos Simioni.5 Treinamento este capaz de tornar “o corpo teatralmente decidido, vivo e crível” (ibidem, 1994, p.23) por meio da ativação de energias potenciais do ator. Abrindo caminho ao não preestabelecido, revela a pessoa, e resulta “em um conjunto de ações físicas que, em geral, apresenta uma ligação mais profunda com o ator” (Burnier, 2001, p.139), podendo levar ao que Burnier chamou de dança pessoal ou dança das energias.6

2 - Diretor e estudioso do teatro contemporâneo, fundou em 1964 o Odin Teatret, um dos pontos de referência da arte teatral do nosso tempo. Em 1979 fundou a ISTA (International School of Theatre Antropology). 3 - “Estudo do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas” (Barba, 1994, p.23). 4 - “Temperatura-intensidade pessoal que o ator pode individuar, despertar e modelar” (Barba, 1994, p.94); “Podemos associá-lo [conceito de energia] ao ímpeto externo, ao grito, ao excesso de atividade muscular e nervosa. Mas ele também se refere a algo íntimo, algo que pulsa na imobilidade e no silêncio, uma força retida que flui no tempo sem se dispersar no espaço” (Barba, 1995, p. 81). “Fluxo, um caminhar que encontra resistências e as vai vencendo; radiação, ou seja, vibração, algo que se propaga pelo espaço” (Burnier, 2001, p.50). 5 - Um dos primeiros atores do Lume, Simioni veio a Belém para essa oficina em 2003, ocasião em que tive o primeiro contato direto com a experiência do grupo. O IAP cedeu o espaço para que parte do grupo desse continuidade ao treinamento, sem a figura do coordenador, e sim, com a pesquisa individual a partir de bases comuns deixadas por Simioni. 6 - “O termo 'dança pessoal' vem de treinamento pessoal. Ele tenta dissolver um sentido mais 'mecânico', de 'exercício', que pode estar embutido na palavra treinamento e introduzir uma dimensão mais fluídica, orgânica, viva, através da palavra dança.(...) Quando uso o termo 'dança das energias', estou me referindo a um momento mais avançado da dança pessoal, quando o ator ultrapassa o código e pode se concentrar na qualidade das energias envolvidas em suas ações” (Burnier, 2001, p.141).

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Nani Tavares, que também havia participado dessas oficinas, mostrou interesse em participar da pesquisa. Coincidentemente voltava de Campinas, onde fazia um curso de mímesis corpórea na sede do Lume. A princípio apenas me auxiliaria, mas envolveu-se tanto que acabou indo para a cena; o resultado não seria mais um monólogo, como o planejado. A partir de uma base comum, experimentávamos possibilidades individuais para o treinamento. O esforço em direção à conquista de autonomia ainda era grande, mas já compartilhávamos a vontade de “cavar fundo até encontrar as cavernas subterrâneas” (Barba, 1994, p.61). Após três meses trabalhando sozinhas, juntou-se a nós Alberto Silva Neto, ator e diretor: os olhos que nos ajudaram a ver, emprestando a imagem de Eduardo Galeano7 . Outros profissionais vieram compor a equipe6 e sentiram a necessidade de beber nas fontes do trabalho à procura da melhor opção para recriar no palco aquele pedaço de vida que escolhemos, ou que nos escolheu. Creio que, entre dúvidas e incertezas, conseguimos alcançar um resultado que tece um delicado elo por meio do qual os dois mundos conversam.

7 - Escritor uruguaio que, em seu O Livro dos Abraços ,escreveu: “Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!” (A função da arte/1, p. 15) 8 - Leo Bitar, desenho de som; Patrícia Gondim, cenário e iluminação; Manoel Pacheco, montagem e operação técnica; Aníbal Pacha, figurino; Mauriti, visagismo.

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A madeira do barco: as bases da pesquisa

O treinamento

“Fazer teatro quer dizer praticar uma atividade em busca de sentido. (...) Inventar o próprio sentido significa saber como buscar o modo para encontrá-lo” (Barba, 1994, p.59/75). “Encontrar o próprio sentidodo teatro quer dizer invenção pessoal do ofício” (ibidem, p.74).

Éramos duas atrizes movidas pelo propósito de reinventar nosso ofício em busca de um sentido pessoal para ele. Caberia a nós a construção e condução de nossos próprios barcos. Não sabíamos exatamente como fazer, mas tínhamos a consciência da necessidade de romper os automatismos da vida cotidiana para alcançar a organicidade9 que traz ao corpo cotidiano “uma certa potência artística, um corpo de intensidades que pode ser trabalhado e transbordado nele mesmo” (Ferracini, 2006, p.85), propiciando o surgimento do corpo-subjétil.10 Já havíamos vivenciado o treinamento energético, e constatado como ele joga o ator no território do desconhecido, onde os impulsos geram a movimentação, e induzem ao contato consigo mesmo. Através de movimentos aleatórios, grandes, sempre realizados de maneira dinâmica, faz com que o ator possa, por meio da exaustão, limpar o corpo de “energias primeiras” (Burnier, 2001,p.86 ), dilatando-o. Mesmo antes da chegada da Nani, estava certa de que partiria dele, pois havia sido impossível não perceber, no corpo, a recompensa pelo sofrimento. A fim de pontuar alguns momentos com sua intensidade própria, utilizarei alguns trechos de diários de trabalho, como o do primeiro dia em que trabalhei sozinha na sala de ensaio: Diário de bordo, dia 11/abril/2006: (...) foi um momento muito intenso, repleto de dúvidas e medos. Tinha apenas o meu corpo, minha energia, minha vontade de fazer, uma ideia de onde partiria o trabalho, e mais nada, e mais ninguém. O fato de trabalhar sozinha impõe a necessidade feroz de disciplina. [Comprovaria, aqui, que coletividade e generosidade são premissas desse treinamento, pois nessa ocasião, colocar-me em trabalho causou algo como uma vertigem, tamanha a sensação de vazio.] Trabalhar com uma metodologia que conheço apenas na teoria me coloca uma condição primordial: coragem de me lançar ao desconhecido e testar a capacidade de me colocar em trabalho, buscando o “desnudamento” do qual fala Luís Otávio Burnier. 9 - “A vida que emana de um ator, fluxo de vida que alimenta uma ação” (Burnier, 2001, p.53). “Força virtual do trabalho de ator que possibilita um corpo em estado de arte gerando, assim, uma espécie de troca-em-arte com o espectador” (Ferracini, 2006, p.51). “Para Stanislávski 'organicidade' significava as leis naturais da vida 'cotidiana' a qual, através de uma estruturação e composição, aparecia em cena e se transformava em arte; enquanto que para Grotowski, organicidade indica algo como a potencialidade de uma corrente de impulsos, uma corrente quase-biológica que vem de 'dentro' e sai acompanhada de uma ação precisa” (Richards, 1995, p.93 apud Ferracini, 2006, p. 103). 10 - “Criar um corpo-subjétil seria a capacidade do ator para usar uma 'vida', uma pulsão de vida de seu próprio corpo cotidiano, insuflando, imprimindo organicidade a esse mesmo corpo quando em estado cênico” (Ferracini, 2006, p.89). Para compreender melhor este conceito, ler Café com queijo: corpos em criação, em especial das páginas 85 a 109, e 147 a 207.

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Já o treinamento técnico leva ao aprendizado de como manipular as diferentes intensidades de energia e tensão muscular, reeducando o corpo do ator para que ele se coloque no espaço e no tempo de maneira extracotidiana. Alguns princípios recorrentes da antropologia teatral foram utilizados: dilatação corpórea, equilíbrio, oposição, base, olhos e olhar, equivalência e corpo decidido.11 Incorporamos os seguintes exercícios à nossa rotina de trabalho: a raiz, que proporciona base a partir do movimento de empurrar o chão; o lançamento, através do qual o ator treina lançar o corpo para o espaço; os elementos plásticos, no qual se explora as possibilidades de articulação no tempo/espaço a partir da segmentação corporal; o koshi, a ativação do ponto abdominal que ocasiona a condensação de energia nessa região; e o samurai, que trabalha a força, a movimentação em bloco e a precisão. Os treinamentos energético e técnico foram se diluindo, constituindo, junto com os outros exercícios, a base da nossa pesquisa corporal. Durante algum tempo, experimentamos usar a música na etapa inicial do treinamento, mas percebemos que ela induzia demasiadamente o trabalho, impondo uma dinâmica externa que não nos interessava. A dança dos ventos, dinâmica criada pelo Lume, em que a movimentação harmoniza-se com a respiração a partir da relação peso/leveza, em ritmo ternário, nos foi muito útil para encontrarmos o fluxo de energia das ações. Aliamos à dança dos ventos o bastão, que consiste em lançá-lo de uma para a outra de maneira dinâmica e livre pelo espaço, o que nos trouxe prontidão e precisão. Também utilizamos a dança dos ventos como base para que cada uma de nós experimentasse livremente os exercícios do treinamento técnico.

11 - Princípios comuns pertencentes a cada tradição em cada país. Ver A Canoa de Papel (p.27-58); A Arte Secreta do Ator (p.54-67, 176-185, 104-119, 95-103), de Eugenio Barba; A arte de não-interpretar como poesia corpórea do ator (p. 146-148) e Café com Queijo: corpos em criação (p.163-166), de Renato Ferracini.

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O contato improvisação , que caracteriza-se pelo silêncio durante a performance e o intenso contato físico entre os intérpretes de maneira improvisada, nos trouxe novas possibilidades de movimentação e um maior diálogo corporal. Inevitavelmente, utilizamos muito dessa vivência no espetáculo. Experimentamos também aliar o bastão ao contato improvisação, o que nos rendeu muitas imagens interessantes. O nosso processo, assim como o resultado, traz algumas características dessa técnica, embora isso tenha acontecido casualmente: a ausência de um diretor ou coreógrafo; a disposição da plateia adotada nas sessões de contato improvisação abertas ao público; o início da performance antes da entrada do público; a utilização de roupas práticas e a ausência de elementos cênicos mais elaborados, e por fim, a inexistência de qualquer distinção de importância entre os intérpretes, seja pela ordem de aparição ou duração da performance, seja por elementos externos.

12 - A criação da técnica é atribuída ao americano Steve Paxton, e foi desenvolvida a partir da dança moderna, nos anos 70. Baseiase na movimentação de dois ou mais intérpretes, que desenvolvem relações nas quais elementos como peso, fluência e encaixe estão presentes para aguçar a própria consciência corporal, a percepção do outro, a escuta. Seus movimentos mais freqüentes são os deslizamentos, rolamentos, suspensões e quedas.

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O olhar para o outro: a mímesis corpórea e a Ilha do Combu “Cada pessoa é um olhar lançado ao mundo e um objeto visível ao olhar do mundo. Cada corpo dispõe de um jeito de olhar que lhe é próprio e essa particularidade condiciona também sua visibilidade como corpo diferente dos outros.” Leyla Perrone Moisés (O olhar, 1993, p.327)“

Depois do trabalho sobre si mesmo, penso que o princípio mais importante deste processo foi o olhar. O olhar que percebe, que compreende, que abre os sentidos, atento para captar e apreender aquilo que diferencia cada um de nós. A observação profissional da qual fala Luís Otávio Burnier, como condição essencial para transpor ao palco “informações que estão na vida revestidas pela dimensão cotidiana do uso do corpo” (Burnier, 2002, p.182). Há dezenove anos morando em Belém, posso dizer que esse processo me permitiu descobrir um pouco mais da Amazônia, e algumas das infinitas cores de uma “cultura dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria sua realidade. Uma cultura que, por meio do imaginário, situa o homem numa grandeza proporcional e ultrapassadora da natureza que o circunda” (Loureiro, 2001, p.42). A pesquisa investigou a mímesis corpórea como forma de buscar “uma organicidade e uma vida a partir de ações coletadas externamente” (Burnier, 2002, p.202). Desde as primeiras leituras sobre esse procedimento - uma das linhas de pesquisa do Lume - e depois de ter assistido ao espetáculo Café com Queijo,13 senti-me profundamente instigada a verificar como o cotidiano poderia servir de alimento para a criação teatral.

13 - Espetáculo do Lume estreado em 1999, no qual histórias de gente simples são recriadas também com simplicidade e competência por quatro atores do grupo: Ana Cristina Colla, Raquel Scotti, Jesser de Souza e Renato Ferracini.

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Estudar dois objetos relativamente desconhecidos - a mímesis e a Ilha do Combu14 - foi motivo substancial para que me lançasse à experimentação, mesmo sem ter tido qualquer vivência do método, que tem na ação física15 a célula básica do texto do ator. Entendendo o conceito de texto conforme a perspectiva semioticista da cultura: o que “não é aplicado somente nas mensagens em língua natural, mas também em qualquer veículo de significado global. Seja ele um ritual, uma obra de arte figurativa ou uma composição musical” (Ivanov, 1979, pp.198-99 apud Burnier, 2002, p.36). Sobre a mímesis, tomo emprestadas as palavras da atriz Ana Cristina Colla: “Vestir-se do outro como revelação de si mesmo. Será isso possível? A cada vestir um revelar-se. Impregnado pelas ações do outro aproveito para espelhar meus próprios sentires. (...) No outro-eu mesmo, me vejo. Aceito ou renego” (2006, p.94). 14 - O Combu é uma das 39 ilhas pertencentes a Belém, e compreende uma área de aproximadamente 15 km². Foi transformada em Área de Preservação Ambiental (APA) em 1997. O ecossistema sofre influência direta da maré dos rios; de dezembro a abril, há constantes inundações, o que caracteriza o solo de várzea. Os moradores vivem basicamente da extração e comercialização do açaí e do cacau; a proximidade de Belém oportuniza empregos como domésticas, descascadoras de castanhas e ajudante de pedreiro. Inserem-se, também, no setor de serviços, fretando e construindo embarcações, alugando som e gerador, roçando terrenos, e ainda como agentes comunitários de saúde, manipuladoras de alimentos ou serventes. Como milhões de brasileiros à margem do desenvolvimento, os ribeirinhos sobrevivem com dificuldades e parca assistência governamental. Serviços de saúde e educação são deficientes; até 1999, não havia nenhuma escola de ensino fundamental, hoje são duas. Para cursar o ensino médio, precisam ir a Belém, e superar o cansaço, a demora das embarcações no Porto da Palha, localizado no bairro do Guamá, a falta de dinheiro para pagar a travessia e, por incrível que pareça, o preconceito na cidade: muitas vezes são chamados de “caboquinhos” e outros termos do gênero. Para o lazer, restam o futebol, mas apenas seis meses por ano, quando o campo não fica encharcado; a pesca e algumas festas, nas quais não são raras brigas e bebedeiras. A despeito disso, os jovens são profundamente enraizados, o que se retrata na expectativa de continuar morando na ilha, se possível, trabalhando para a comunidade. Têm fortes vínculos afetivos dos quais não querem se desfazer, enfim, amam o lugar onde vivem. Já havia visitado a ilha algumas vezes, e sempre foi muito agradável passar dias no restaurante Saldosa Maloca (com “l” mesmo), onde o peixe e o açaí garantem um almoço delicioso. Na realidade, a beleza e o bucolismo atraem não só turistas, mas pesquisadores de todas as áreas. Fontes:http://www.belem.pa.gov.br/semma/paginas/proj_combu.htm www.ufpa.br/beiradorio/arquivo/Beira 20/Noticias/noticia4.html 15 - Conceito primeiramente elaborado por Stanislavski, ampliado e desenvolvido ao longo do século por nomes importantes da história do teatro. Para Stanislavski, a ação psicofísica deveria desencadear processos interiores. No livro O ator-compositor, Matteo Bonfitto coloca que a ação física caracteriza-se por ser uma possível célula geradora de outra práticas e poéticas teatrais, e levanta a hipótese de que ela é um “elemento estruturante dos fenômenos teatrais que têm o ator/atuante como seu eixo de significação” (Bonfitto, 2002, p.119 ).

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Espelho “dos próprios sentires”. Penso hoje que descobrir a mímesis foi descobrir também uma forma de expressão estreitamente ligada a uma verdade pessoal, ao sentido pessoal a que me referi antes. Luís Otávio Burnier conceitua a mímesis como uma técnica situada entre o treinamento e a montagem: “(...) precisa de um treinamento que a anteceda, mas ainda não é técnica de representação” (Burnier, 2001, p.182). O nosso exercício primeiro no Combu foi justamente treinar o olhar a fim de realizar a observação simultânea do geral e do detalhe, para depois, em sala, “transferir com precisão” as ações observadas para o próprio corpo, fase denominada por Burnier de codificação. Na etapa seguinte - a teatralização - as ações são retiradas do contexto que as originou, transformando-se em “materiais de trabalho”. O ator pode, então, “operar pequenas alterações em elementos componentes dessa mesma ação” (...), alterar seu ritmo, “sua espacialidade, ampliar o impulso, dilatar um contra-impulso” (ibidem, 2001, p.186), anular ou introduzir partes da ação. Em nosso caso, as circunstâncias da pesquisa de campo permitiram que a observação acontecesse paralelamente à imitação e memorização, pois íamos ao Combu quinzenalmente. Podíamos, portanto, tirar dúvidas, coletar novas ações, enfim, aprofundar a observação ao mesmo tempo em que memorizávamos as ações físicas e vocais. O que, ao meu ver, amenizou um pouco a dificuldade desse momento em que tudo parece mecânico e complexo, pois ficávamos horas tentando trazer para o corpo não só o aspecto mais concreto, como a forma dada ao corpo, as tensões, o itinerário do movimento - a 16

fisicidade - mas também algo que a antecede e que não pode ser visto pelo espectador, e sim, sentido e percebido: a corporeidade, assim definida por Burnier: “(...) a maneira como as energias se corporificam (...), como o corpo age e faz, como ele intervém no espaço e no tempo” (Burnier, 2001, p.55), ou ainda, “os aspectos in-corpóreos, energéticos, virtuais e intensivos” (Ferracini, 2006, p.227 ) Por isso a mímesis vai além da pura imitação; é um “processo de recriação da corporeidade percebida no cotidiano” (Ferracini, 2006, p. 225). Compreende a busca das equivalências, ou seja, como o corpo pode abrigar um outro ser, com sua energia, seu ritmo, seus sentimentos e impulsos, através do encontro das “tensões musculares que permitam uma nova relação dos gestos e movimentos com o tempo/espaço” (Ferracini, 2001, p.148), redimensionando, assim, a ação física. Embora a mímesis também possa partir de pinturas e desenhos, objetos, animais, textos literários ou músicas, optamos por observar pessoas e fotografias. 16 - “Aspecto puramente físico e mecânico da ação física” (Burnier, 2001, p.184).

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Belém

UFPa Rio Guamá

Ilha do Combu

Furo do Benedito


A seguir, descreverei como se deu a pesquisa de campo, relacionando-a com o trabalho em sala, já que as duas etapas aconteceram concomitantemente. Embora conhecesse alguns moradores da ilha, estava receosa com a chegada, pois, munida de gravador, máquina fotográfica, começaria a travar um outro tipo de relação. Tive sempre um cuidado muito grande nesse contato, pois estaria entrando em suas casas, pedindo para que me contassem coisas de suas vidas. Precisava, portanto, ser aceita na convivência, o que de maneira geral aconteceu. Como inicialmente o projeto previa abordar o universo feminino, nas duas primeiras vezes que fui à ilha procurei conversar com as mulheres: batalhadoras, quase todas lutando sozinhas pelo sustento dos filhos. Logo constatei o que os atores do Lume comentam sobre ser, de certa forma, escolhido por aqueles que escolhemos, pois ninguém havia me provocado a empatia necessária para iniciar a observação, até que descobri dona Catita e sua família. Tinha ficado curiosa para conhecê-la desde que uma professora me falou dela enquanto esperávamos o barco para retornar a Belém. Por sorte, ou alguma obra do acaso, quem fazia meu transporte era o seu genro. A seguir, um trecho do diário deste dia: Diário de bordo, dia 07/abril/2006: Logo chegou 'seu' Luís [marido de dona Catita] que começou a falar sem parar sobre vários assuntos. Ele me orientava a andar na lama: "tem que enfiá os dedo fundo, pra não cair." Ainda dando os primeiros passos nesse novo lugar, já me sinto envolvida pelas maneiras peculiares e pela generosidade em me receber. Aos poucos vou me deixando entranhar pelos cheiros, ruídos, silêncios, e especialmente pelo jeito simples dessa gente. Gente que desde muito cedo aprendi a respeitar. Por sorte, ainda estava por ali quando chegou aquela que ia me pegar pelo coração: dona Catarina, também conhecida por dona Catita.

Mais velha de três irmãos, com aparência sofrida, mas no entanto alegre e conhecedora de plantas e ervas, habilidosa na confecção de cestos e paneiros, olhar generoso, ela me deixou cheia de vontade de voltar. Rezou ladainhas, e contou histórias como esta, com a qual cheguei a trabalhar, mas que não entrou no espetáculo: 16


“Eu num tinha medo de água grande, agora eu tenho, pra mim a água num vai secar mais...de nuite eu me levanto vou olhar...assim negócio de vento, negócio de zuada, eu num tinha medo, agora qualquer ventinho eu fico cum medo. As menina um dia foram pro mato, quando chegaram aqui, mãe, tem alguma coisa fazendo uh, uh... (...) Aí quando foi outro dia eles tornaram a ir pra lá, aí tornou a começá aquilo de novo uh, aí ninguém responde, aí uh, fazia ah! e o Teia começou bater panela, e assobiava, e gritava, e aquela arrumação fazia uh, ah! Aí vinham, mamãe, tá de novo...(...) deixa. Aí peguei o banho, joguei, joguei, joguei. Aí foi gritá já lá em cima, credita? Aí rezei, rezei, rezei, rezei o credo, rezei, fui mimbora. Joguei tanto remédio, aí noutro dia nóis fomo, nem sinal, graças a Deus, se mandou de lá. Disse, as minha reza são mais forte do que tu, tenho fé em Deus, fé em deus, tamo aqui com deus, implorei em nome de deus, chamei em nome de deus, aí foi embora....mas aquilo era feio!”


A partir do comentário sobre elementos do cenário onde vive - a água e o vento - deixa transparecer como, para ela, o invisível passa a ser real. É o maravilhamento de que fala João de Jesus Paes Loureiro: “Algo como uma espécie de origem, um destino, uma segunda realidade, nos elementos da natureza circundante. (...) O caboclo parece não crer que a natureza em torno, organizada esteticamente em paisagem, seja apenas matéria orgânica. Parece estar certo de que há alguma coisa inerente nela dando-lhe um novo e original sentido, retirando-a da monotonia, conferindo-lhe um sentimento, uma nova beleza e uma intensa vida” (Loureiro, 2001, p.143).


Sem dúvida alguma, testemunhamos uma intensa vida nesse contato. E era uma parte dessa intensa vida que almejávamos levar à cena. Em sala, a memória serviria de arcabouço para o exercício de 17 recriar um corpo real, portanto absolutamente concreto, partindo da ativação de um campo virtual: os momentos em que estive com a dona Catita,minha percepção da sua pele, seu olhar, sua respiração, seus impulsos, seu sorriso. Para recriá-la, ativo dois pontos musculares específicos: a tensão nos ombros, que se elevam e contraem-se para a frente, me trazendo a sensação da magreza dela, e as tensões no rosto: a sobrancelha sobe, os olhos fecham-se um pouco, e a boca assume algo quase como um sorriso constante, com os lábios inferiores pressionando os superiores. Ao andar, projeta levemente a bacia para a frente, e mesmo com os 65 anos, é bem ágil. Como instrumentos de registro, foram utilizadas anotações, fotografias e gravação em áudio. Nani começou a me acompanhar nessas visitas ainda com o intuito de ajudar no registro das observações. Na primeira vez que foi comigo, conhecemos o seu Raimundo, irmão de dona Catita, uma figura também absolutamente singular, e foi encantamento à primeira vista. Eu já tinha conhecido o marido dela, seu Luís, que com o jeito falante e “malemolente de ser” me capturou em longas conversas. Não houve como ficarmos impassíveis diante da presença masculina, suficientemente forte a ponto de alterar o foco inicial do projeto e marcar de maneira definitiva o processo criativo. Estar sensível ao acaso foi fundamental para que rumos diferentes dos planejados se revelassem mais contundentes, e por que não dizer, inevitáveis.

17 - “Problemático por essência, o virtual é como uma situação subjetiva, uma configuração dinâmica de tendências, de forças, de finalidades e de coerções que uma atualização resolve. A atualização é um acontecimento, no sentido forte da palavra. Efetua-se um ato que não estava pré-definido em parte alguma e que modifica por sua vez a configuração dinâmica na qual ele adquire uma significação. A articulação do virtual e do atual anima a própria dialética do acontecimento, do processo, do ser como criação” (Lévy, 1996, p.137 apud Hirson, 2006, p.31).

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Cada uma de nós desenvolveu maneiras peculiares de realizar suas anotações. Eu usava uma palavra ou pequena frase dita para facilitar a lembrança de determinada ação. A seguir, reproduzo as primeiras anotações sobre dona Catita: - a coluna é bastante curvada, com tensões nos ombros; - conversando, de pernas cruzadas, coloca a mão no rosto de três maneiras, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita: 1. o indicador esquerdo na bochecha e polegar no queixo; 2. segura o queixo com o indicador e polegar esquerdos; 3. indicador esquerdo na bochecha. - olhei, olhei, olhei... (pernas cruzadas, abaixa tronco olhando para fora da casa) - ai, Jesus! (cotovelo esquerdo apoiado na mão direita e mão na testa) - sentar para descascar guarumã , segura a saia e senta: 1. com a perna direita dobrada e a esquerda esticada; 2. com as duas pernas esticadas, cruzadas. - espanta a abelha (vou te matar!) - coça o pescoço. - em pé: 1. mão direita na cintura (polegar na frente do corpo e dedos apoiando as costas); 2. mão esquerda na cintura e mão direita no rosto, perto da orelha; 3. antebraço esquerdo na parede da casa, e a mão direita na cintura.

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Posteriormente, sistematizei da seguinte forma: 1. Sentada - pernas cruzadas, balançando a perna com o pé levemente flexionado, com cotovelo apoiado na mão e indicador no queixo (punho quebrado); - uma perna apoiada atrás, com os dedos nos cantos da boca; - uma perna apoiada atrás, sacudindo, com o mesmo braço apoiado atrás, na cadeira; - pernas para a frente, abrindo e fechando rapidamente e mãos no meio das pernas, esfregando uma na outra; - pernas cruzadas, com mão no quadril;

2. Sentada/ gestos dos braços e mãos - cotovelo apoiado, passa a mão no rosto, da testa para o queixo; - cotovelo apoiado, palma da mão no rosto, cabeça inclinada; - cotovelo apoiado, indicador no meio da testa, olhos apertados, sobrancelhas franzidas; - cotovelo apoiado, dedos no meio da testa, fechando os olhos; - cotovelo apoiado, apertando com os dedos o lábio inferior; - braços cruzados, passa mão no outro braço;

3. Sentada/ gestos - espanta mosquito ao lado da orelha, mão direita lado direito; - bate uma mão na outra, dizendo “ninguém sabe...” - estala os dedos, mexendo também o braço; - aponta o indicador para cima, dizendo “aí pra cima”; - conta nos dedos da mão apoiada na perna; - passa as palmas da mão na sua frente dizendo “um perfume!” - mãos escondendo o rosto, dizendo “Meu deus!” - mãos sacodem na frente, dizendo “não sei quantos anos” - coça a orelha; - mão mostra como os botos buiam.

4. Sentada/ gestos da cabeça - inclina a cabeça; - cabeça para frente, inclinada, dizendo “foi!”; - olha para fora; - balança a cabeça dizendo “não!”

5. Rosto - olho do jacaré; - baixa o olhar; - levanta as sobrancelhas;

6. Tronco - inclina tronco, com pernas na frente e mãos no meio das pernas, dizendo “sabe o que aconteceu?”

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Até construir a seguinte sequência, que se transforma no fluxo das ações de dona Catita no espetáculo: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33.

balança as pernas, dois pés no chão; aponta mão direita para o lado esquerdo - “bem ali” indica com braço esquerdo para o lado esquerdo - “pra cá do novotel” coça a nuca olha para trás apoiando perna - “quem tá passando?” junta pernas esticadas cruzando os pés e balança apoia costas da mão direita na perna direita, cruzada cruza braços com o indicador esquerdo no rosto mão direita no rosto, inclinando a cabeça pega no meio da testa com o polegar e o indicador, com a testa enrugada, cabeça baixa - “como é mesmo?” apoia perna direita em forma de 4, palma da mão esquerda pra frente, ombros suspensos - “num sei o que foi” cruza as pernas, mão esquerda passa pela testa e lado direito do rosto passa antebraço esquerdo pelo rosto bate uma mão na outra, pés no chão - “num sei quantos ano” braço direito faz o movimento do boto pulando n'água - “teplei!” passa os dois braços pela frente do corpo - “chuá...” apoia as duas mãos no rosto - “meu deus” balança indicador direito falando com alguém - “olhe aqui!” apoia indicador esquerdo no queixo, pernas cruzadas aponta indicador esquerdo para baixo, pernas cruzadas passa as costas da mão direita no olho, pés de gancho junta as mãos e joga as mãos para o lado, pés de gancho - “graças a meu bom deus!” estala os dedos, pernas cruzadas - “num sei que tempo” mostra com os braços a barriga inchada, pernas cruzadas - “desse tamanho!” passa mão esquerda no braço, pés no chão olho do jacaré, pés no chão sacode as duas mãos, pés no chão - “joguei, joguei” passa mão esquerda no antebraço direito, pernas cruzadas coloca dedos no meio da testa, com os dedos esticados e olhos fechados, pernas cruzadas balança mão esquerda na frente com a palma virada para o rosto, pernas cruzadas inclina o tronco para a frente, pernas cruzadas - “sabe o que aconteceu?” conta nos dedos da mão apoiada na perna, pés no chão espanta mosquito 22


Nani foi sempre bastante minuciosa, fazendo desenhos e descrições detalhadas, tanto no momento do trabalho em campo, quanto depois, como forma de sistematizar os aspectos observados. Lembro, por exemplo, de quando começou a recriar o seu Raimundo, e da força que havia na “metamorfose”. Era como se o seu corpo abrisse espaço para a presença de um outro ser por meio da ativação de pontos de tensão e da completa alteração de ritmo. A princípio utilizou roupas e objetos que a ajudavam na execução das ações, o que depois foi abandonado. Ele, seu Raimundo, estava sempre mexendo com algo, fazendo alguma coisa. Nunca olhava para nós, movimentava-se lentamente, falava bastante, ainda que devagar. E Nani conseguia, já desde o início, “corporificar” (Burnier, 2001, p.61) o seu Raimundo com uma precisão impressionante. A seguir, alguns exemplos de suas anotações:

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Ela também se valeu de descrições detalhadas, como esta, em que indica características de três das pessoas que observou:

Seu Raimundo Coluna ereta com uma corcunda na cervical, curva muito sutil no início. Lordose. Respiração abdominal a barriga enche na inspiração e solta lentamente. O ar sai pela boca quando fala e pelo nariz, se calado. Ombros curtos e tensos, de costas se funde com a corcunda na cervical. Pescoço atrás um pouco alongado, com esternocleideomastóideo bastante tenso e visível. Na frente se funde com o sulco que fica acima das clavículas, na parte inicial ao meio. Ritmo interno não fica parado, impulsos fluídicos em forma de movimento, andando, coçando ou em uma ação. Andar igual ao do vovô. Vem direto num ritmo rápido. Pende pra frente e o andar está nesse equilíbrio de troca de pernas, sem fazer barulho nos pés, que está pra fora e às vezes arrasta um pouco. Ponto de força no cóccix. Em pé se apoia em cima das pernas, girando no pé direito. Toda a superfície do pé entra em contato total com o chão. Pé chato. Peso do corpo sentado no cóccix - Para abaixar na região lombar (final) e pélvica. - Em pé num dos pés ou nos dois, com o corpo. Braços em relação ao corpo andando, cotovelo sutilmente pra trás. Mãos concentradas. Como uma bexiga que sopra, cuja boca é o umbigo. Pele fina, seca, com pregas. Estava muito inchada há uma semana. Frente tronco duro, com peito de pombo. Clavículas saltando. Diafragma evidente. Pele no osso. Rosto osso da maçã bem destacado. Boca parada, toda fechada. Lábios finos. Fica um molhado nas beiras com saliva. Gruda nos cantos quando fala, ficando só o centro da boca, mais precisamente os lábios centrais articulando a fala. Lábio superior se projeta mais quando fala. Dentes e língua mexe pouco, quase não aparece na fala e atrapalha a articulação nas palavras muito longas. Tem só os dentes da frente e talvez do fundo da boca, não tendo os caninos e primeiros molares. Sorriso dentuço, aparecendo a gengiva de cima. Olhar olhos grandes, amarelos e fundos. Não olha pra pessoa. Não encara nunca. Não está no lugar, é distante, vazio. Sobrancelha entra no osso da sobrancelha, afunda. Tamanho mais ou menos da minha altura. Cabelo ralo, seco e cheio de bolotinha, que também desenham um cavanhaque e um pedaço do queixo do rosto, e um pouco no peito também.

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Dona Neuza Respiração abdominal, toráxica na barriga, puxa soltando pelo nariz. Impulsos os corporais por vezes coincidem com os vocais no destaque de alguma palavra. Quando sentada aparece nas pernas e/ ou nos pés que se balançam. Ombros fica m em concha, com clavícula em “V”, afundando no meio. Pescoço muito tenso, aparecem todos os ligamentos. Testa pequena tensão no chakra do terceiro olho. Olhos normais, vivos, maliciosos. Olha às vezes pelos cantos dos olhos. Sorriso desconfiado, malicioso. Quase fechando os olhos, aparece a arcada dentária superior mantendo todo o beiço pra frente, que encosta levemente na base inferior, limitatória da mesma arcada. Nariz aberto, largo, negro. Maçã do rosto se destaca, principalmente no sorriso. Seios peito quase na barriga, principalmente quando sentada. Pés pé direito com queimadura sobre o calcanhar. Articulação da boca mexe mais beiço inferior, junto com arcada dentária inferior. Pele negra, seca. Dentes e língua dentes cerrados e unidos sem força, sem tensão.

Seu Luís Respiração barriga grande, no abdômen. Coluna lordose e bunda tensionada pra dentro. Bunda “sila”. Impulsos no cóccix e no canto direito da boca enquanto tique, aí também pega o ligamento que vai até o pescoço. Ombros pequenos, curtos, espremendo pra frente. Peso do corpo principalmente quando anda, na barriga. Máscara olhos pequenos, com um olhar de um sorriso vago galanteador míope e de peixe morto. Sobrancelha músculo pra cima, mais do lado direito. Boca retângulo, levanta lábio superior quadrado, tensão no canto direito. Articulação da boca na fala só mexe o centro dos lábios, aparece a arcada cerrada e quase imóvel. Dentes cerrados com leve tensão. Pernas arqueadas para trás em “C” quando se vê lateralmente. Andar impulso no cóccix, joga pés para frente alternados e muito lentamente distribui esses impulsos de forma fluídica como uma dança interna.

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A partir da construção de uma sequência de ações observadas, experimentávamos variações de fisicidade, ou seja, alterávamos ritmo, níveis de tensão e expansão, até mesmo realizando as ações internamente, apenas na intenção, como se fosse possível desenhar no espaço uma aura de energia do movimento. Percebemos que isso imprimia densidade à ação, quando realizada com o desenho original; na realidade, era o corpo dilatado do qual fala Barba. Tivemos a percepção dessa “imobilidade em movimento” (Barba, 1984, p.83) graças à outra oficina com Simioni, realizada durante o processo. Barba usa o termo sats para referir-se ao momento em que a energia fica suspensa, “instante que precede a ação, quando toda força necessária se encontra pronta para ser liberada no espaço” (ibidem, 1984, p.84). Trabalhamos a partir da ideia de que essa energia sustentasse uma espécie de sopro da ação, como se ela fosse totalmente realizada, mas apenas com dez por cento da fisicidade. Simioni foi conosco ao Combu, encantou-se como nós, e deu preciosas indicações sobre a forma de acionar os pontos musculares de cada pessoa, que são como “portas de entrada para o personagem” (Ferracini, 2006, p. 185). Uma experimentação que considero importante detalhar é a mímesis de uma mesma pessoa pelas duas atrizes. Durante a pesquisa de campo, o seu Luís nos provocou muito interesse. Cada uma realizou a observação a seu modo, e em sala fomos trabalhando as suas ações. Tivemos, com isso, a chance de confrontar formas muito distintas de corporificá-lo. Às vezes, algum aspecto que chamava a atenção de uma, não o fazia com a outra. Afinal, eram dois olhares sobre a mesma pessoa, buscando trazer para corpos diferentes uma mesma corporeidade.18

18 - Com relação a experiência parecida, quando duas atrizes dialogam com a mesma imitação, a atriz Raquel Scotti escreveu: “Um novo dado surgia para mim: além da memória, da voz gravada, fotos e anotações, havia aquilo que eu via de dona Maria no corpo da Cris e, portanto, sobrepondo-se à minha observação de dona Maria, uma espécie de imitação da recriação de dona Maria no corpo da Cris. Acabava sendo uma imitação crítica, pois eu via na Cris coisas que haviam fugido à minha percepção, mas também via coisas nas quais eu desacreditava como sendo parte de dona Maria que eu enxergava e com a qual eu me conectava. Eram dois olhares sobre uma mesma pessoa; duas atualizações de ações captadas de uma mesma pessoa” (Hirson, 2006, p.142). 29


Chegamos a construir a mesma célula, a do remédio genérico, que reproduzo a seguir: Luís - Eu também tenho um pobrema de doença que me apareceu, fico arreado, num posso fazer força... É um pobrema dum mal de sangue, que eu vou sujar aí sai aquele sangue e eu vou ficando fraco porque o sangue da gente que é a vida. Aí eu faço exame só dá pobrema de ameba. Ameba, ameba, olhe, essa dotora daí ela me passô acho que uns oitenta e pouco comprimido. Aí eu tumei, tumei, tumei, e nada...acho que aquilo é remédio genérico, é remédio fraco, num tem competência pra matá o tipo da verme. O causo é que eu me intoxico. Me deu um pobrema aí que eu fiquei cum um azedume, azedume, azedume na minha boca, até que atacou o fígado. O fígado da gente é uma coisa fina, né? É sim

Embora a Nani não estivesse presente na ocasião desse depoimento, ela teve condições de recriá-lo com o acesso à gravação, outro instrumento de registro fundamental, pois sem ele dificilmente se conseguiria reproduzir a sonoridade da fala. Durante algum tempo trabalhamos o mesmo texto, até definirmos que ela o faria no espetáculo. Também criamos uma cena na qual o seu Luís é feito por nós duas, falando ao mesmo tempo a versão dele sobre uma briga com o Gororoba, imitado anteriormente pela Nani. Luís (Nani e Valéria) - Aí eu tarra saindo di lá du Porto da Palha já foi mi chamandu di filho da puta, cum o perdão da palavra. Aí eu digo, que que eu tô devendo pra esse cara? Num devu pra essi cara, nem favô! Aí eu digu, issu vai é mi pagá. Aí condu foi um dia tinha uma minina lá na fêra. Aí eu tarra lá incostado conversandu cum ela, aí eli passô e dissi assim: - É tu mermo, filha da puta, cum o perdão da palavra, sabi. Aí eu dissi, marré hoji qui tu vai mi pagá. Aí aquilo mi isquentô, aí eu garrei eli, tu num conheci a minha mãe, pá ti tá chamandu... mexendu cum a minha mãe... Aí eu agarrei eli Deus mi ajudô qui eu dei uma queda neli lá no meio da rua lá. 30


Aí eu pulei in cima deli, dei uns tápa na cara deli, dissi olha: tu acaba cum essa tua sujera pru meu lado, purque eu num ti mexo, né? Intão cumé qui tu fica tirandu graça cum a minha cara...seu filho da puta!...cum o perdão da palavra.

Referi-me, anteriormente, à sonoridade da fala, e abro um parênteses para tecer alguns comentários sobre isso. É claro que lendo a história reproduzida acima, não se pode ter ideia da musicalidade absolutamente singular, não só do seu Luís, mas de toda a família. O sotaque, as nuances de ritmo, os acentos, tornam essa fala incrivelmente teatral. No entanto, o nosso trabalho foi não realçar nada que parecesse engraçado, mas simplesmente ser fiel aquilo que ouvimos. Em outras palavras, o esforço sempre foi o de buscar a organicidade também da ação vocal, o que exigiu um colocar-se no lugar do outro. A recriação da voz foi um dos aspectos do trabalho que mais me fascinaram e desafiaram, não só pela radical diferença com o “falar urbano”, mas também pelo exercício de tentar alcançar o timbre de cada um, e descobrir através de quais ressonadores19 aciona-se determinada voz. O que partiu, inevitavelmente, de escutar exaustivamente as gravações (não foram poucas as vezes em que dormi com o fone no ouvido) e depois experimentar muito, até ter a sensação da semelhança com a voz da pessoa. Pela primeira vez, como atriz, não tive que “descobrir a voz do personagem”, mas sim, perceber por onde acessar uma voz que já existe. Em outra cena, nós duas fazemos o seu Luís, mas dizendo, ao mesmo tempo, falas diferentes; mais uma forma encontrada de “teatralizar” os depoimentos, sobrepondo trechos colhidos em um só momento: Luís (Valéria) - E eu, coitado, andei pá escola, um bucado de ano, só aprendi marmente a riscá meu nome, e alguma coisinha, alguma contazinha só. Eu fico assim, pensando, eu digo meu deus, mais por que eu num aprendi a lê, mais né? Aquilo na minha cabeça, assim, parece, minha cabeça assim é uma dificuldura pá leitura. E agora, eu digo, é verdade, se eu tivesse aprendido uma leitura...mais fiquei dando murro, né? Dando murro, trabalhando no serviço pesado, serviço no mato, mais mi sinto bem, porque já tô acustumado mesmo nesse serviço, né?

19 - “O termo ressonador, usado por Grotowski, na verdade não indica ressonadores vocais no corpo, mas pontos de vibração” (Burnier, 2001, p.133). Por meio da oficina com Simioni, conhecemos os cinco ressonadores essenciais trabalhados por Burnier: máscara, peito, estômago, cabeça e nuca.

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Luís (Nani) - O mundo insina a pessoa. A gente andando, o melhó professô que tem é o mundo. Se a pessoa andá e num aprendê a vivê, intão ela é uma pessoa muitu nó. (Repete)

Um exercício muito interessante foi fazer a transição entre duas corporeidades. Na realidade, todo o espetáculo apoia-se nesse princípio, já que não saímos de cena, e os personagens surgem em vários momentos, sem que nenhum elemento material indique a passagem de um para o outro. Íamos diluindo os pontos de tensão, alterando-os, para que outro corpo surgisse. Por exemplo, do seu Luís nasce a filha, Totonha, que em seguida, dá lugar ao pai novamente; da dona Neuza surge seu Luís. Foi necessário, portanto, encontrar o fluxo de energia que possibilitasse a “dança das imitações” (Hirson, 2006, p.132). Nossos achados não se limitaram às pessoas que já citei. Dona Catita ainda me levaria até o Amadeu, seu primo, que estava acabando de construir uma casa na beira de um pequeno furo próximo a casa dela. Vivendo sozinho, separado, pai de quatro filhos, um barquinho na frente de casa, conta que já morou no barco, e sem precisar de muitas perguntas, falou da briga com a ex-mulher, da separação, dos filhos, mas acima de tudo, deixando entrever a honestidade, integridade e responsabilidade de alguém que despreende-se do pouco que tem em função do bem estar da família. Um homem sábio, com uma visão e uma postura de vida que poucos conseguem ter. Mais uma história de vida a me alimentar para conduzir o olhar do público não àquilo que os diferencia, mas para o que torna todos nós humanos. Creio que nesse caminho tão desconhecido, isso foi algo a nos guiar: a vontade de mostrar seres humanos, sem colar à fala deles nenhum tom panfletário, sobre a pobreza, por exemplo, e nem ressaltar opiniões ou colocações que pudessem soar simplórias. Comprovamos que relatos de fatos aparentemente banais podem ter tanta densidade quanto as grandes histórias. Afinal, o que faz uma grande história? O que dá grandeza ao homem? Talvez seja exatamente o que há de mais comum, de mais terreno: sua visão de mundo, sua filosofia de vida, suas dores e alegrias. Mesclando notações do real, de autobiografia e de intimidade, creio que tecemos uma colcha na qual cada retalho tem seu valor porque bordado com o fio da humanidade. E colocar em evidência histórias de gente humilde foi algo completamente novo para nós enquanto criadores. O ator Jesser de Souza comenta essa questão de forma muito bonita:

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“É preciso estar aberto para aceitar o outro, para dignificar e validar o outro, incluir o supostamente excluído. Isto não deixa de ser, no mínimo, um exercício de cidadania, no sentido da construção de uma sociedade mais justa e menos egoísta. Mas não apenas. Estas pessoas simples são, em verdade, como qualquer um de nós. Sua grandeza, revelada para nós graças ao convívio com eles, os torna incomuns ou especiais. De excluídos passam a ser escolhidos” (Souza, in: Revista do Lume, 1998, pp. 102-03).


Ao fazer a pesquisa de campo, tivemos que lidar com uma condição especial: nossos escolhidos faziam parte da mesma família, morando num mesmo local. E como a maior parte das famílias, com muitos conflitos. Logo sentimos que precisávamos ter um cuidado extremo, e procuramos manter uma postura que nos permitisse transitar ente eles sem tomar partido, pois já havíamos estabelecido uma relação de respeito e afeto com todos. Poderia pontuar a experiência desse estado de pesquisa relatando um episódio que nos causou enorme impacto: em um dado momento, Alberto sugeriu que propuséssemos a eles a troca de alguns objetos, e decidimos perguntar a dona Catita se nos daria sua rede, explicando como poderíamos utilizá-la no trabalho, falando mais uma vez sobre a pesquisa e a intenção de fazermos uma apresentação na ilha ou trazê-los a Belém para assistir. A reação dela, me lembro bem, nos assustou, tamanha a postura defensiva: disse que precisava consultar as filhas. Conversamos todas e elas acabaram deixando dona Catita à vontade, mas nos falaram de algumas situações em que foram expostos de maneira pejorativa. Ela então nos entregou sua rede, não sem uma certa vergonha e ressaltando seu desejo de não apresentarmos nada na própria ilha, nem que identificássemos que a rede era dela. Ficamos atordoadas, achando que não havia sido correto começar por algo tão íntimo e simbólico como a rede, e que foi precipitado falar sobre apresentar o trabalho lá. Serviu para nos fazer refletir sobre muitas questões que tangenciam este trabalho, do ponto de vista ético: o respeito, a seriedade, a delicadeza dessa matéria. Foi um dado rico para a pesquisa, à medida em que nos colocou diante de uma situação inesperada, alterando a dinâmica do processo, nos levando a repensar estratégias de abordagem e mesmo de construção do espetáculo. Acima de tudo, nos fazendo perceber o quanto era preciso estarmos atentas para não ferir suscetibilidades.

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Além das anotações, a fotografia foi um instrumento de registro fundamental, devido à possibilidade de se recorrer a ela para voltar a momentos e ações retidos no tempo/espaço, e recuperá-los com precisão. Enquanto captura de um instante que havíamos presenciado, essas fotografias nos permitiam ativar a memória daquele determinado instante, com todos os aspectos envolvidos naquela ação: o ritmo, o contexto, o clima, enfim. Algo que não tínhamos no outro campo de pesquisa escolhido: as fotografias com imagens de moradores da Amazônia. Dos livros pesquisados,20 cada uma selecionou as imagens que trabalharia. Algumas, experimentamos durante um tempo e abandonamos, outras fomos encontrando depois. Dispor apenas da imagem - uma ação estática, “congelada” no papel, nos obrigou a testar outros procedimentos de corporificação, também com o referencial do Lume. Imaginamos o que antecedia e sucedia à ação capturada pelo fotógrafo; buscamos, também, incorporar a imagem de forma precisa, quase como uma colagem da foto no próprio corpo, atentando às equivalências necessárias, partindo do macro para chegar à microtensões que sustentam cada membro, e só posteriormente explorando as ações sugeridas pela imagem. No artigo Ator: um olhar poético para a imagem, (Revista do Lume, nº 6, 2005, p.17), Ana Cristina Colla e Renato Ferracini relacionam o conceito de punctum, criado por Roland Barthes “para nomear um detalhe na foto que chama atenção daquele que olha”, ao trabalho do ator de transpor a ação da foto para seu próprio corpo por meio de pontos de tensão, trazendo tanto sua materialidade como sua organicidade. Falam sobre um redimensionamento do tempo poético estático da foto para um tempo poético in continuum no corpo do ator.

20 - Fotografia Contemporânea Paraense - Panorama 80/90 (Belém: SECULT, 2002) e II Fotonorte Amazônia: o olhar sem fronteiras (Rio de Janeiro: Funarte, 1998) (vários fotógrafos), Mulheres da Amazônia (Editora Jaraqui, 2004) e Amazônia, o povo das águas (Editora Terra Virgem, 2000), ambos de Pedro Martinelli, e Terra (1997), de Sebastião Salgado.

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A seguir, exemplifico como nomeamos as imagens:

Nani Me abraça liso Língua no beiço Esse fumo é meu Olhando o céu Abao Que saco Chuá Lançando pesca À espera Penteia Canoa virada Perto de um longe indizível

Valéria Lançando pesca Feixe Lamento Labuta Pode sentar À margem Beiju Justiça Cansaço Nhá perera Sorriso À espera

Trabalhamos as sequências de ações usando, a princípio, uma ligação muito simples: a passagem de uma para a outra em tempos diferentes (em 16, 8, 4 e 1). Depois experimentamos alguns dos ligamens21 descritos por Burnier em seu livro A arte de ator, da técnica à representação: seco, melting (derretendo), gongo, respiração.22 Mesmo nas sequências de ações coletadas no Combu, também utilizamos esses elementos de ligação, muito importantes para a organicidade e o fluxo de energia.

21 - “Os ligamens são elementos que operacionalizam a ligação entre dois materiais distintos. (grifos do autor) Eles podem trabalhar questões de tempo (alterações de ritmo, de dinamoritmo, introdução de pausas, acelerações, ralentandos) de espaço (alterações na espacialidade das ações, de impulsos (introdução de impulsos ou contra-impulsos), ou ainda de qualidade vibratória da ação“ (Burnier, 2001, p.193 - 194). 22- Seco: é uma ligação de tipo simples. O coração da primeira ação é distinto da segunda. A passagem é feita de maneira delicada. Melting: a passagem do final de uma ação para o início de outra se opera como se a primeira “derretesse” até chegar na outra. Gongo: acrescenta-se um impulso forte que ecoa como um gongo para entrar na ação seguinte. Respiração: é por meio de uma expiração ou inspiração de possíveis tipos diferentes que se opera a ligação (Burnier, 2001, p.194).

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Estudo das imitações de fotografias

“Lamas” - Walter Silvera

“Sem título” - Cecília Larrabure


A construção do barco “É necessário projetar o próprio espetáculo, saber construí-lo e pilotá-lo em direção ao redemoinho onde ele se rompe ou então assume uma nova natureza: significados não pensados anteriormente, que seus próprios 'autores' observaram como enigma” (Barba, 1994, p.161).

A concepção Barba refere-se a uma esfera do conhecimento “resultado da revolta pessoal, da nostalgia, da recusa, da vontade de encontrar a si mesmo e perder-se” (Barba, 1994, p.61). Não é simples descobrir a própria voz, “sufocada por tudo o que nos foi derramado pelos outros, pela cultura, pela sociedade, pela tradição que nos circunda” (ibidem, p.61). Nesse processo em que buscamos uma voz própria, os “enigmas” surgiram a todo momento, nos instigando a mergulhar cada vez mais na pesquisa a fim de que novos significados se revelassem quando começássemos a projetar o nosso barco para lançá-lo em direção ao redemoinho do qual fala Barba. Já tínhamos um grande repertório de ações físicas e vocais, e precisávamos criar a nossa composição. Precisávamos construir, enfim, o nosso barco. Nos ensaios de direção, Alberto, que nos ajudou a organizar e escolher prioridades entre o nosso material, via o que havíamos produzido durante a semana e comentava, propunha encaminhamentos. Nunca foi, no entanto, uma “voz soberana” a ditar decisões, o que não deixava de ser um novo dado para nós, atrizes, habituadas ao paradigma que centra no diretor a maior responsabilidade sobre a criação do espetáculo. As opções da encenação foram sempre muito discutidas, as soluções sempre avaliadas coletivamente, em especial com a chegada dos técnicos, que participaram ativamente do processo. Todos foram a campo, desenvolvendo pesquisas paralelas, o que propiciou a experimentação da relação entre os elementos cênicos e o material das atrizes. A maior parte da equipe teve cerca de quatro meses para fazer as suas proposições. Leo, Patrícia, Alberto e Nani passaram uma noite na ilha para gravar sons ambientes e buscar referências para a iluminação. Patrícia, Manoel e Alberto foram ao Mercado do Ver-o-Peso23 de madrugadinha para observar os barcos, com seus fios e suas luzes acesas. Essa postura da equipe, assumindo-se também criadora, marcou o processo com constantes experimentações. Lembro de chegar um dia para o ensaio e ver metros e metros de fio branco pendurados, esticados, como às vezes se vê nos barcos da região. Após muitas conversas, descartamos a ideia, mas a verdade é que nunca nos furtamos a ver, na prática, como funcionavam as propostas. 23 - Mercado tradicional de Belém do Pará, localizado às margens da baía do Guajará, integra o complexo arquitetônico e paisagístico do Ver-o-Peso, tombado pelo IPHAN em 1997. Fundado em 1625, tem esse nome devido à antiga prática de conferir o peso exato das mercadorias para o cálculo dos impostos. Lá é possível encontrar, além das frutas, verduras e legumes, ervas, produtos de artesanato, açaí 38 com peixe frito, cerveja, roupas, calçados e utilidades domésticas.


Em determinado momento, sentimos necessidade de outros olhares sobre a maneira como estávamos organizando as histórias. Nos indagávamos muito sobre o desenho do espaço de encenação. Com o objetivo de ter algumas pistas que nos ajudassem, principalmente, a resolver essa questão, realizamos dois exercícios cênicos, um para os profissionais que estavam chegando para compor a equipe, e o outro quase dois meses depois, para alguns convidados. Seriam os nossos leitores particulares. No primeiro, as cadeiras ficaram espalhadas pela sala, e devido a um insight do Alberto, acabamos descobrindo como seria a entrada do público no espetáculo. Quando já estávamos prontas para começar, ele nos propôs que iniciássemos a sequência das fotos utilizando vários ligamens, antes mesmo da entrada dos nossos cinco espectadores,24 e que apresentássemos as células escolhidas de forma contínua, sem explicações prévias. Começamos, então, a apresentar os personagens, ou algo deles: dona Catita, seu Raimundo, dona Neuza e Amadeu. A proximidade foi essencial para a comunicação com o nosso pequeno público, que teceu comentários sobre aspectos primordiais para nós: a evidência da pesquisa com relação à partitura corporal e musicalidade das falas; o exercício de atriz em cena, com uma cenografia limpa, que não precisaria e nem deveria reforçar as referências da ilha; o respeito pelas pessoas observadas, e a ausência de caricaturas. O feedback nos mostrou que o trabalho tinha em si a potência de afetar o espectador. No dia 14 de setembro fizemos o segundo exercício para um número maior de pessoas.25 Ainda transitando entre os espectadores, desta vez posicionamos as cadeiras nas quais sentávamos em diagonal. Percebemos que a estrutura fragmentada das falas poderia abrir fendas para que o público construísse o próprio entendimento dos vários recortes apresentados. Começamos a experimentar formas de ligar os relatos e as sequências de ações criadas a partir das fotos; elementos que, até então, vínhamos trabalhando de forma isolada.

24 - Alberto, Alexandre Sequeira (que faria a concepção visual, mas ao invés disso, fez o nosso projeto gráfico), Leo Bitar, Patrícia Gondim, e Elaine Oliveira. 25 - Estavam presentes Wlad Lima, Karine Jansen, Ronald Bergman, Regina Maneschy, Lana Machado, Linda Ribeiro, Marton Maués, David Matos, Elaine Oliveira, Ester Sá, Leo Bitar, Alberto Silva, Marluce Oliveira, e a minha mãe.

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O exercício apresentado já possuía uma estrutura que consistia em três blocos de textos, intercalados com uma partitura de ações criadas a partir das fotos. Essas transições foram configurando-se em uma espécie de coreografia, pois definimos uma sequência que era repetida com diferentes ritmos e níveis de tensão. A anotação abaixo pode dar uma ideia de como estávamos fundindo as ações do Combu e das fotos:

EXE ERC RCÍC ÍCIO O nº nº 2 -- 14/09/2006 (Detalhamento do prólogo intercalado com imagens, e de cada bloco de imagens) Entrada do público - Imagens livres Prólogo – imagens intercaladas com as mímeses. 1 - Nani termina na imagem “Me ab raça liso” emendando com a máscara “lingua no beiço”. Raimundo vai se construindo por impulso nas seguintes partes sequenciais: ombros - alonga ab dômen – cóccix no eixo – máscara – respiração. “Oi, podi entrar. Cês vierum falá cá Catita? Podi ir sentando e começando a cunversá.” 2- Valéria estará na imagem “horizonte” pra começar seu Luís. “Ferrada de Muruçoca, dá uma coceira que credo! Só aquela zuada no ouvido da gente, às vez de noite tira meu sono. Perco o sono, num durmo. É horrívil. Olha, num tô lembrado que mês é que elas aperream mais.” 3 – Nani se desloca até a área Neusa e estanca em uma “ação em pé Neusa”, quase que imperceptivelmente vai introduzindo a másca ra “esse fumo é meu”. Impulso “Me divirt o sozinha. Aí tenho as minhas criações, meus patos, aí eu converso muito com eles quando eu tô só. Com Deus primeiramente, qui eu sô evangélica da Assembléia de Deus. Aí eu converso com o meu Deus, depois eu vô conversá com os meus animalzinhos de criação, é.

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5 - Neusa termina na imagem “olhando o céu” e cai lento no “abao”. Chegou, pega um contra-impulso e vai direto pra “chuá”. Raimundo começa a falar no “chuá” e deslizando vai construindo sua ficisidade. Ele coça, senta e termina no “mas eu tô”, olhando pra Valéria. “Eu mesmo tenho sessenta i um. A Ca-Catarina tem sessenta i cinco parésqui. A Ne-Neusa num tem cinqüenta sessenta não. Agora esses zum qui naceru atrás di nós já tão tudo grandi já, já tem otra remessa di novo.”

6- Valéria fica na “à espera” para começar a Totonha. “Aí eu fugi com ele, é, eu fugi (ri). Ai meu Deus, eu passei quatro meses, cinco meses pra lá com ele. Aí quando eu vim di lá já vim grávida.” 7 - A transição pro “mas eu tô” é 200%. Chegou na imagem normal, estanca e Marlete começa. “Acho feio a pessoa tá cum confusão, briga. Acho que uma família ela também tem que sê unida né, pra genti dizê qui é uma família.” 8 – Valéria no “lançando pesca” para ir pra seu Luís. “O Gororoba é safado, é. Logo que eu cheguei pra cá eli andava querendo tirá umas peitada comigo aí. Eu num sô di briga. Eu sô uma pessoa que eu gosto de batalhá minha vida i tá.” 9 – Nani sai da “mas eu tô” girando sentada e levantando nesse fluxo até “lançando pesca” em direção ao seu Luís, que Valéria estará começando a fazer. Na deixa “I tá” impulsos rápidos do freio se transformam em Gororoba. “Paixão daquela que leva o cara pro abismo” 10 – Valéria na imagem “cansaço” vai pra Catita. “Raimundo, tá quebrando a minha bananeira? Quem contava era as minha tias né, que o cachorro num tinha língua, o jacaré é que tinha...”

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IMAGENS 1 (com relação) 1- Ação: Valéria “lançando pesca” dilatando + Reação: Nani “à espera” normal. 2- Ação: contra-impulso Nani para “lançando pesca” no vai-sem-ir . 3- Ação: Valéria na “índia”. Reação: Nani no “abao” girando. 4- Ação: Valéria no “sorriso”. Reação: Nani no “abao” pedra em impulsos. 5- Ação: Valéria na “justiça”. Reação: Nani na “penteia”, as duas juntas no contra-impulso. Inicia bloco 2 IMAGENS 2 (com contato) 1. Valéria “lançando pesca” várias vezes; 2. Nani no “que saco”, indo em direção a Valéria; 3. Nani pega no braço da Valéria, que conduz um giro da Nani; 4. Valéria vai pra “índia” e Nani para o “abao”, apoia-se nas costas da Valéria com ”o beiço” e é carregada pela Valéria “índia”; 5. Valéria vai para o “lamento” e Nani “pentear”; 6. Valéria gira e vai para “pode sentar” e Nani no enraizamento com “pentear”, passa à frente e faz a imagem “lançando pesca” em 10% com samurai; 7. Com força centrífuga, Valéria vai para “justiça” e Nani para “canoa virada”; 8. Nani passa por baixo das pernas da Valéria e fica na posição cachorro; 9. Valéria vai para “à espera” e Nani faz máscara de “à espera”; 10. Valéria vai para o “lamento”, apoiando cabeça no ombro da Nani 11. Valéria levanta e manipula Nani vazia até sentá-la na cadeira.

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A criação da dramaturgia “A palavra texto, antes de se referir a um texto escrito ou falado, impresso ou manuscrito, significa tecendo junto. Neste sentido, não há representação que não tenha texto. Aquilo que diz respeito ao texto (a tecedura) da representação pode ser definido como dramaturgia, isto é, 'drama-ergon', o trabalho das ações na representação. A maneira pela qual as ações trabalham é a trama” (Barba, 1995, p.68).

Conforme o conceito desenvolvido por Barba em seu livro A Arte Secreta do Ator, a dramaturgia pode ser compreendida como o entrelaçamento de tudo aquilo que compõe o espetáculo, de todos os fatores considerados por ele como ações: luz, som, figurino, objetos, mudanças no espaço, variações de ritmo e intensidade, episódios da história, as relações, as interações entre os personagens ou entre os personagens e as luzes, os sons e o espaço, enfim, “tudo que trabalha diretamente com a atenção do espectador em sua compreensão, suas emoções, sua cinestesia, é uma ação” (Barba, 1995, p.68). Sabe-se que a crescente relação entre o teatro, a dança e a performance, para não falar do vídeo e da literatura, tem tornado menos nítidos os contornos de cada linguagem artística, o que amplia ainda mais a definição de dramaturgia. Ferracini fala de uma “dramaturgia de ator” como algo que encontra-se na borda entre teatro, dança e performance, num espaço “em que a multiplicidade é um princípio” (Ferracini, 2006, p.254). Considera que realizar uma dramaturgia de ator pode ser “buscar uma diagonalização e um equilíbrio de forças dentro dos elementos que compõem o espetáculo a partir de ações físicas e vocais previamente codificadas dos atores” (ibidem, p.255). Ressalta, no entanto, não serem essas ações o centro do evento cênico, mas um potencial “princípio norteador dessa poetização não hierárquica do espetáculo” (ibidem, p.255). Portanto, tecerei comentários sobre como se deu a construção do elemento textual do espetáculo. Diante das inúmeras histórias, relatos, “causos” e queixas que tivemos o privilégio de ouvir nas conversas com os nossos “eleitos”, fomos nos dando conta da infinidade de possibilidades de arranjo de uma pequena parte das nove horas de registro em áudio, coletadas durante os quatro meses de pesquisa de campo. Ao encontrar a família de dona Catita, tivemos a certeza de que nos concentraríamos em um núcleo absolutamente rico: os laços familiares, as histórias de amor, as perdas, os conflitos, as brigas. Assumiríamos a polarização representada pelas duas mulheres mais velhas dali, dona Catita e dona Neuza, ainda que sem maniqueísmo. Era claro para nós o conflito essencial existente entre elas e outros conflitos periféricos.

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A transcrição das conversas pautou-se na máxima fidelidade à maneira de falar, inclusive com as pausas e vacilações. Para mim, especialmente, o linguajar típico foi uma descoberta inigualável. Digo isso porque a Nani, por ter nascido em Ponta de Pedras, município da Ilha do Marajó, tinha maior familiaridade com trejeitos e palavras bem peculiares do caboclo amazônico. Eu não sou paraense, e nunca havia tido a oportunidade de uma maior aproximação com pessoas do interior. Fiquei muito impressionada com a força desse traço caboclo bem ali, pertinho, onde, da cidade, se avista o outro lado do rio. Concluída a transcrição das entrevistas e a seleção de trechos que nos pareciam interessantes - ao que demos o nome de células - passamos a nomeá-las e classificá-las, chegando a um quadro no qual cruzávamos personagens e os temas de seus depoimentos.

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TEMA PERSONAGEM

Catita

Raimundo

Neuza

Luís

FAMÍLIA

RELIGIÃO

Casamento Raimundo (7)

Reza (1) Falando da separação (9) Infância e ladainhas (1)

Árvore Genealógica (4)

O primeiro marido (2)

Apresentação (2) Após a morte dos pais (2) Traição da ex do seu Raimundo (8) Chegada dos pais ao Combu (8) Infância com os irmãos (8) Briga com o Luís (8)

Aceitar Jesus (8)

Evangélica da Assembléia de Deus (2) Despertamento de Deus (2) Hinos de Harpa (MP3) Paixão do Raimundo

Em defesa da Totonha (1) Briga com Neuza (8) Briga com Gororoba (8) Os porres de Raimundo (9)

Amadeu

Briga e separação (5)

Totonha

Namoro e casamento (1)

Marlete

Num sô de falá (9) Confusões de família (9)

Gororoba

AMORES

Briga com seu Luís O soco na Catita

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DOENÇAS

Goma da coluna (3)

SERES MÍTICOS O jacaré e o cachorro (3) Ricardinho (3) Assombração Morte da bota (3)

AMBIENTE \GEOGRAFIA

VISÃO DO MUNDO

Medo de maresia (3)

Doença de memória (2)

Remédio genérico (1)

O mundo (3a)

Ispinhé da botinha (3a) O tralhoto e a pescada (3b)

Muruçoca (1)

Analfabeto (CD)

Terreno para casa (CD)

Sobre o Combu (9)

Sobre o Combu (9)

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Dividimos, também, os blocos em categorias, considerando “histórias” as narrativas de fatos dos quais eles não tivessem participado, já que todas poderiam ser tomadas como histórias de vida:

Mímesis em processo

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Categorias

Nome

Título dado

Atriz

Depoimentos

Neuza

Apresentação A jaca Despertamento de deus Deus e os animais Mocidade morte do pai Doença de memória A doença do neto Dança do primeiro casamento

Nani

Seu Luís

Em defesa da Totonha Muruçoca

Valéria

Catita

O jacaré Visagem Infância e ladainhas Medo de maresia A goma da coluna Casamento do Raimundo Peito aberto

Valéria

Amadeu Seu Raimundo Gororoba Marlete Totonha

Briga e separação Árvore genealógica Briga no Porto da Palha Preguiça de estudar Namoro e casamento

Valéria Nani Nani Nani Valéria

Catita e Luís

O mundo Morte dos botos

Nani/ Valéria

Totonha e Raimundo

Casamento do Raimundo

Nani/ Valéria

Histórias

Catita

O boto de Cametá Ricardinho A galinha

Valéria

Rezas e ladainhas

Seu Luís Catita Neuza

Ispinhé da botinha Reza Hinos de harpa

Diálogos

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Com esses instrumentos, pudemos ter uma noção mais exata do material que tínhamos em mãos. A partir daí, intensificamos o trabalho de “levantar as células” selecionadas, ou seja, tornar aquela ação concreta, trazendo para o nosso corpo o registro das corporeidades observadas em campo. O exercício da carpintaria do texto, portanto, aconteceu paralelamente à construção das cenas. Em alguns casos, trabalhamos durante algum tempo cenas das quais abriríamos mão, pois entre tantas pérolas, era preciso escolher aquelas com as quais teceríamos essa colcha de histórias. Começamos - eu, Nani e Alberto - a experimentar maneiras de “ordenar os dados”, excluindo ou incluindo textos, editando alguns, fragmentando outros, reunindo depoimentos colhidos em ocasiões diferentes, por vezes voltando atrás na opção feita anteriormente, buscando uma escrita que oportunizasse um jogo maior entre as atrizes. O roteiro do espetáculo ficou estruturado em um prólogo, três blocos intercalados por transições com a partitura de ações das fotos e um epílogo. No prólogo, apresentamos os personagens através de uma pequena fala pinçada dos depoimentos. A definição dos blocos não pautou-se em temas ou qualquer outra categorização, e sim pelo fluxo de uma fala que pudesse trazer o espectador para o convívio momentâneo com essa família. O primeiro bloco traz quatro dos oito “personagens”: seu Raimundo de certa forma apresenta a família, dona Catita mostra-se a exímia contadora de histórias, Marlete, sua filha, reclama das dificuldades enfrentadas para estudar, e seu Luís se queixa de uma doença do fígado. No segundo bloco, aparecem Amadeu e dona Neuza; há também uma cena em que seu Luís e dona Catita falam à plateia sobre o seu Raimundo. Para criar essa espécie de diálogo, partimos de conversas que eles tiveram conosco separadamente, o que aconteceu também com duas cenas do bloco seguinte: a primeira é um embate entre seu Luís e Gororoba, por meio do qual “atualizamos” o momento de uma briga que nos foi contada pelos dois em ocasiões diferentes. A outra é a “briga do papeiro”, também construída a partir das versões de dona Neuza e seu Luís para um confronto entre os dois. Nesse terceiro bloco, aparece ainda Totonha, a filha mais velha de seu Luís. O trecho que encerra esse bloco foi retirado de uma ocasião em que seu Luís e dona Catita conversavam conosco, podendo-se perceber as interferências precisas de dona Catita:

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Transcrição da gravação – “O mundo” Seu Luís - Porque a gente andando, a gente andando, porque eu ainda num andei muito, mais eu tenho andado por aí, tenho virado no mundo um pedaço... A gente andando, o melhó professô que tem é o mundo. O mundo insina a pessoa. Se a pessoa andá, andarilho, se ele num aprendê a vivê no mundo, intão ele num tem, intão ele é uma pessoa muitu nó (ri). Dona Catita – Nó cego! Seu Luís – Por causa que o mundo... Dona Catita – É muito pirigoso... Seu Luís – O mundo, né,.... o mundo é composto de tudo, né? Dona Catita – E aí... Seu Luís – Pelo menos... pelo menos eu sô uma pessoa, não querendo me gabá, mais eu sô uma pessoa adonde eu chego, eu percuro arrumá camaradage cus otro, tê intimidade cuas pessoa, mais tem pessoas que tem reiva de mim, já vem querendo me ofendê e tal, mais só que nosso velho lá de cima... Sabe o verdadero, sabe qual é o verdadero, né? Porque eu num tenho, num tenho aquela ofensa. Porque ele tá mi olhando, e quero que ele me olhe sempre, e nóis todo, né? É. No espetáculo ficou assim: Luís – O mundo insina a pessoa. A gente andando, o melhó professô que tem é o mundo. Se a pessoa andá e num aprendê a vivê, intão ela é uma pessoa muitu nó.

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Para o epílogo, escolhemos uma fala da dona Neuza na qual ela se apresenta e fala também da morte de uma filha e da memória que tem falhado. Poderia dizer que nesse processo da escrita “a seis mãos”, tivemos que exercitar o despreendimento, porque tudo parecia valioso divertido ou emocionante, com uma simplicidade que nos fazia pensar em coisas tão profundas sobre a vida. E também o exercício da síntese, pois era preciso escolher aquilo que poderia resumir a ideia essencial de todos os testemunhos de vida que nos foram generosamente partilhados. Em especial, a vida compactuada entre seu Luís e dona Catita, duas pessoas que há muitos anos dividem o mesmo pedacinho de terra na beira de um furo, numa ilha, dividindo, também, a mesma sabedoria e integridade. Foram nove versões até chegarmos ao roteiro definitivo, em final de outubro, o que não significou engessamento, pois até às vésperas da estreia fizemos alterações. Aos poucos, sentíamos o espetáculo ganhar corpo, e como em tudo, foi fundamental estar sensível ao modo como soava cada célula ou cena. E ainda manter abertos esses canais, pois mesmo depois de levar a público o resultado da pesquisa, sempre temos a chance de alterar essa dramaturgia.

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ENTRADA DO PÚBLICO As atrizes deslocam-se no espaço, realizando a dança da imitação das fotos com ritmo lento e máxima tensão muscular. Luz amarela das “caixinhas” colocadas no chão. Som de galos ao amanhecer. Depois do som do latido do Tigre, cachorro do seu Raimundo, há uma lenta transição para os corpos do seu Raimundo (Nani) e dona Catita (Valéria).

PRÓLOGO Raimundo (Nani) – Passa daí, tigre! Tigre, peraí cachorro! Oi podi entrar. Cês vierum falá ca Catita? Podi ir sentando e começando a cunversá. Luís (Valéria) - Ferrada de muruçoca, dá uma coceira que credo! Só a quela zuada no ouvido da gente, às vez de noite tira meu sono. Perco o sono, num durmo. É horrívil. Olha, num tô lembrado que mês é que elas aperream mais. Neuza (Nani) - Me divirto sozinha. Aí tenho as minhas criações, meus patos, aí eu converso muito com eles quando eu tô só. Com Deus primeiramente, qui eu sô evangélica da Assembléia de Deus. Aí eu converso com o meu Deus, depois eu vô conversar com os meus animalzinhos de criação, é. Amadeu (Valéria) - Agora só tem uma coisa que eu vou logo te dizê: eu num sou um cara chué, pra mulhé ir pá festa e eu ficá vigiando criança. Marlete (Nani) - Acho feio a pessoa tá cum confusão, briga. Acho que uma família ela também tem que sê unida né, pra genti dizê qui é uma família. Catita (Valéria) – Raimundo, tá quebrando minha bananeira, Raimundo?

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BLOCO 1 Raimundo (Nani) - A Neusa qui é mais criança, a caçula da família. Eu sô du meio i a Catita é a mais velha. A catarina teve três, uma mesmo num é filha dela, qui é essa uma qui ta aí, a cume, a Totonha. Aí as outra dela foi a cileni e a...marleti. eu teve o Arnaldi o primero neto e a neusa teve seis. Era seis. Agora é só três minina e dois minino. É tudo cum d: Denisi, qui durmiu onti aqui, Denilsi, Darleni, Daysi e Denílson. Aí sela quisessi mais chegava até u fim dite u Z. E aquela família Quaresma qui dizem é tudo nu a. Tudo cum A. Finado Oscar já morreu. Oscar é cum A. Omar, Orico, didito qui a genti chama A outra da toca, dona Maria qui, essa Maria. Inda tem a minina...I a tia Odeti qui é a mais velha, qui foi nossa professora.Tudo cum A. Porque um dia dessi tava, tava dando essi negócio qui... sobri os no-nomi das criança. A genti primeiro quando nascemo era, era Ma-Maria, quandu era antigamenti si era minina. Se era um homem era Manuel. E agora já põe tudo qui é nome de criança qui a pessoa às vez vai tirar... É certo! Uma cert...Agora pra tirá uma certidão como eli mesmu disse, eli falou sim, cumprica a juíza! Purquê si é teu nomi...Tem nomi aí qui é bem difícil da genti cumpriendê. Catita (Valéria) - Quem contava era minhas tia, né, que o cachorro num tinha língua, né, o jacaré é que tinha. Aí quando foi um dia o jacaré buiô, “uooo”... disse lá o que ele queria pro cachorro, pro jacaré. Aí ele disse pois nã o, eu empresto. Aí ele emprestô a língua pro cachorro, só que ele nunca mais devolveu. Aí por isso que jacaré tem raiva de cachorro. Ele mata cachorro. E o jacaré num tem língua. Por isso que assim, uma senhora gestante, assim, né, olha num come jacaré que teu filho nasce mudo! Mas por quê? Porque ele num tem língua. Mas...escute só. Quando eu tava gestante da minha filha, caçula, né, a minha prima morava lá na Monte Serrá. Aí na hora de almoço, o almoço tá pronto, mas a comida que tem tu num come. Por quê? É bem gurijuba, porque eu num como gurijuba. Não, num é gurijuba, é jacaré. E porque que eu num como? Não, tu tá gestante, de pocos meses, tu num vai cume jacaré porque senão teu filho nasce mudo. Hum, peraí. Olha, eu fiquei cum uma vontade, uma vontade. Ela mandou comprar carne pra fazê pra mim. Aí, na hora do almoço, come pra cá, come pracolá, cabô do almoço todo mundo foro deitar... Tavam dormindo, eu tirei três pedaço e ó! Quero ver nascer mudo. Aí passados...Eu gosto de jacaré. Jacaré é gostoso! É, jaca ré é gostoso. Incrusive...Ah, eu comi. Depois, passado uns dia, mas será que jacaré, o filho da gente nasce mudo? Nasce, mana! Quando eu teve a Ma rlete, a Marlete começou a falar, eu disse olha, eu acho que jacaré num faz efeito assim não. Ela disse por quê? Porque quando eu tava gestante da Marlete eu cumi jacaré. Mas aonde? Aqui. Mas...Eu tirei, cumi, aqui. Só que ela num gosta assim de falar muito, muito, muito. Mas ela fala. Quando ela tira pra conversá...ontem ela tava conversando que só. Ela só é meia vesga. É, jacaré é meio assim. (imita o jacaré) Mas eu num disse isso pra ela.

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Marlete (Nani) - É muitos anos né pra istudá. Tenho priguiça! Vô terminá essi ano mesmo na marra. É muito cansativo, tem qui si acordá muito cedo aí ficá lá naqueli porto. É, o pobrema é esperá barco. Olha tem vez qui eu chego cedo nu porto. Aí eu chego onzi i meia, vô chegá pra cá duas hora da tardi. Só ficandu lá, só isperando o barco sentada lá. Aí aquilo vai cansando a genti, só da genti ficá sentada lá pra isperá o barco. Ano passado quandu eu istudava a tardi chegava aqui quasi novi horas da noiti. Ficava lá na beira, chegava seis hora na beira, eu tinha qui isperá os outro aluno, aí eu ficava lá, ficava... Catita (Valéria) - Uma velhinha contou uma história. Que uma prima dela, aconteceu com a prima dela, ficou gestante, grávida nesse tempo, quando chegou um dia ah, meu deus, quem é o pai desse menino, num aparecia, e ela num tinha contato, num t eve contato cum home nenhum, né, como é que ela ficou gestante? Aí deu a dor nela, lá foi a parteira pra lá, quando nasceu diz que um bicho. Era ingual a um...a senhora sabe o que é puraqué? Nunca virum um poraqué? Pois é. É ingual a um poraqué, cumpridinho assim. Aí sabe o que aconteceu? Eles soltarum ele no rio. Se virô numa cobra! Antão, essa cobra diz que ainda mora lá. O nome, aí colocarum o nome dele de Ricardinho. Era. O nome da cobra era Ricardinho. Quando foi uma ocasião, ele baxô, esse negócio de curador, de pajé, sabe o que é, esse negócio de macumba. Já ouvirum falar? Aí sim, baxou numa mulhé lá, e disse que ele queria vê a mãe dele. Mas quem é a tua mãe? Quem é a tua mãe? Aí ele disse quem era, né? Que se ela falasse cum ele, ela desencantava ele. Aí ela ficou cum medo de ir...Ficou cum medo. Se vocês subessem como ele é tão lindo, ele mora aí nesse fundo, t ão lindo! Ele num qué fazê nada de mal pra ela, só qué desecantá. Se ela for lá, falar com ele, na hora marcada, ela desencanta ele. Ah, mas quando que ela foi. Aí no dia marcado lá, esperou, esperou, esperou, aí disse pronto, redobrou os encanto dele! Ele é encantado, é uma cobra. Agora num sei quantos ano vai durá esse encante pra lá. Só sei que tem gente que parece que já viu, mas só que, eu num acredito. Passou a cobra num quero cunversa! Diz que ela num mexe cum ninguém, mas eu, deus me defenda, num passava nem lá, graças a deus que nóis mora pra cá...num tem cobra. Ai, minha coluna! Eu gosto muito de lavá ropa. Agora mais que não, por causa da minha coluna, né? Minha coluna dói muito. Porque negócio de coluna é uma inflamação que dá dentro do osso da pessoa, né? Porque a junta da gente, tem uma goma, né? Quando aquela goma inflama, paresqui, que dá isso na gente. Eu sei que é uma coisa assim tão ruim...

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Luís (Nani) - Eu também tenho um pobrema de doença que me apareceu, fico arreado, num posso fazer força... É um pobrema dum mal de sangue, que eu vou sujar aí sai aquele sangue e eu vou ficando fraco porque o sangue da gente que é a vida. Aí eu faço um exame só dá pobrema de ameba. Ameba, ameba, olhe, essa doutora daí ela me passo acho que uns oitenta e pouco comprimido. Aí eu tumei, tumei, tumei, e nada ...acho que aquilo é remédio genérico, é remédio fraco, num tem competência pra matá o tipo da verme. O causo é que eu me intoxico. Me deu um pobrema aí que eu fiquei cum um azedume, azedume, azedume na minha boca, até que atacou o fígado. O fígado da gente é uma coisa fina, né? É sim. Transição com a mesma sequência da dança da imitação das fotos, agora num ritmo um pouco mais acelerado e com as atrizes em relação através do olhar.

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BLOCO 2 Amadeu (Valéria) – Oito, nove ano. Amigado, né? Só que num deu certo! Aí agora ela já arrumô um, já casô. Eu quero que ela seja feliz. É, porque as coisa da vida, as coisa da nossa vida parece uma pranta: quando a pranta nasce ela tá bunita que só, depois que ela vai envelhecendo as coisa vai mudificando. Primero que num deu certo por causa que ela cumeçô uma parte de ciúme. Aí era muito ciúme, e cumeçô a dizê que ela ia imbora. Bom, o pobrema cumigo é só o seguinte: eu num sô de ficá, vai hoje e volta amanhã, vai hoje e volta amanhã... Aí tá bom. Aí arrumarum um aniversário lá pra casa da prima dela. A prima dela convidô ela. Eu tava trabalhando, cheguei do serviço, olha, tem aniversário lá na casa da minha prima, veio me convidá, disse olha, eu tô chegando agora num tô nem sabendo de festa , aí a prima dela já tava lá. Ê, arrumaste um marido, o teu marido te amarrô? Quem disse que eu vô ficá numa dessa? Aí ela foi atrais da colega dela e pegô e disse que ia pro aniversário. Que num tava amarrada, que ela num tava presa. Eu disse olha, tu num tá amarrada, tu num tá presa, tu num tá acorrentada, e nem eu tampoco tô te segurando! Pronto, qual o pobrema? Agora só tem uma coisa que eu vô logo te dizê: eu num sô um cara chué, pra mulhé ir pra festa e eu ficá vigiando criança. Tu vai pra tua festa, tu pode amanhecer pra lá, mas agora tu num bate na porta, por causa que tu num vai entrá. Quando foi de manhã, pei, pei, pei na porta. Disse quem é? Eu. Ah, chegô a mamãe! Disse até ontem cêis tinhum mãe, tua mãe e teu pai agora sô eu. Num abri a porta. Na cuzinha, tava cum um fogão novinho, tinha tirado na yamada, tava terminando de pagá. Botei aqui na porta. (...) Tinha duas cama de casal, porque uma era nossa, né, e outra era dos piqueno. Pequei uma cama, botei na porta cum colchão e tudo. E ela lá na porta. Ela num agüentô a pressão do sol, era umas oito pra nove hora da manhã, e t oda a bagulhada lá na porta. Tudo na porta. Eu abri a porta, ê tu tá me inxotando.

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Num tô te inxotando, tu escolheu o que tu queria. Tu escolheste o que tu quiria. Quiria a liberdade, pronto, tá liberta. Num tem cumpromisso cumigo nem eu cuntigo. Entra na casa, ixamina o que tem, o que tu quisé pode levá. Não...Não, num isquenta a cabeça, eu trabalho a semana inteira, num vô isquentá a cabeça, eu só quero é que no dia que fô pagá a prestação, tu vá lá na yamada. Aí...ah, porque eu num tenho como levá...chama a carroça. Leva pra casa da tua prima. Num foi ela que veio fazê o coisa? Então manda tudo pra casa dela. A ca sa taí! Num tem nada escondido. (...) Eu ficando ca minha ropa e minha caxa de ferramenta inda num tô na miséria. (...) Ah, e como nóis vamo leva todo esses troço? Vai chamá a carroça...Num era isso que tu queria? Acabô a confusão, acabô a coisa todo, num tem mais confusão, num tem avexame, num tem mais pré.., num tem mais presídio, que tu num tá presa. Aí fiquei cum os piqueno. Depois que eles crescerum, ela pegô arrecadô tudinho, tá tudo cum ela. Ela arrumô um parcero, já casarum pra lá...Eu quero a felicidade dela, eu nunca casei, num sei como é que casa, eu nunca casei na minha vida (ri). Quero que tu seja feliz no teu casamento, né? Num é porque tu num foi feliz cumigo, eu quero que tu seja feliz no teu casamento. Num tem pobrema nenhum. Que tem pessoas que dexa uma família, dexa uma mulhé, aí ele qué matá, ele qué cortá, ele qué... coisa. Eu já não! Entendeu? Eu num tenho espríto pra discutí. Eu num sei brigá. Então pra mim, tanto faiz como tanto feiz, eu num tô nem vendo (ri). O pessoal diz, égua, cara, a mulhé, a mulhé arrumô otro e tu num arrumaste nenhuma? Eu disse não, as mulhé num me querem, então pronto. O dia que dé certo, a gente arruma uma, se aparecê...

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Neuza (Nani) - Era, a genti era unido qui era só nós três, mais cum Raimundo nós era mais unida, eu cum o Raimundo qui nós era menor não. Aí a... mamãe dava atenção pra Catita qui é a Catarina né.I.... a Catarina também pra ela i eu cum Raimundo era os menor nós brincava mais. Só ela mesmo qui era mais increquera assim um poco cum nós era, era mais increquera. Aí eu, eu cum Raimundo não, nóis sempri fomu unido. Assim num sei, achu qui é o jeito sempri di dum né na família. Querê sê melhó di qui os outro Eu tenho pra mim qui é isso né. Aí eu cum Raimundo nóis sempre fomu unido. Sabi comu nóis si travava um cum outro, meu amigo Era meu amigo um pro outro. Eli chamava di meu amigo pra mim eu chamava meu amigo pra eli. Quando o Raimundo casô eu chorei muito, muito mesmo. Nessi tempos mamãe já tinha morrido, só o papai qui era vivo. Aí morava eu a Catita o Raimundo e o papai, era só nós quatro. Aí lá eli gostô dessa piquena, o papai inda preoguntô: - meu filho você qué casá cum ela ou qué qui a genti compri um motô? eli dissi: - eu quero casá! Aí pronto, a genti num pudia impatá né? I olhe, foi um casamento di primera. Só qui depois a mulhé já arranjo essi otro pronto, desdisso meu irmão ficô assim paixonado, paixão mesmo. O meu irmão saía ela ficava cum essi otro. Aí sabi quela fazia? Convidava eli pra í pra festa. Chegava lá, mandava comprá bibida, dava pra eli, eli deitava durmia porri, ela ficava aí cum otro. Aí isso qui é a nossa revolta né? I eu i a Catarina demu um piau bunito nela i ela foi imbora. Só qui eli ficô sofrendu qui até hoje essi homi chora. Luís (Nani) – Ah, isso chorava quando eli tava porre. Ah, ele ia pa perpará peixe i ficava cum a faca (imitando Raimundo) – desgraçado levô a minha mulhé, desgraçado vô rogá uma praga pra esse disgraçado, agora ele levô comeu, comeu a fruta qui... Mas rapaz, qui, dava graça dessi tio Raimundo. Esse tio Raimundo já bebeu muito. Aí ele chorava, (imitando Raimundo) huuuu... muito feio. Aí dava dó de vê ele, poxa eu ia mi imbora. Catita (Valéria) - Agora das duas ele escolhe. Ou a vida ou a cachaça. Ele ficou inválido. Ele trabalhava, ele era homem pra tá pisando em cima do ouro. É porque ele fazia, trabalhava, fazia a casa dele, mobiliava de tudo, andava com a sua boa roupa e sapato. Aí então era pra ele viver a vida dele assim né, tê um barquinho bonito, brilhando como é o do meu genro. Ganhá dinheiro, ganhou, si fossi colocava o dinheiro dele num depósito lá guardava numa caixa, num banco, eli tinha um bucado de dinheiro, mas jogou a felicidade dele toda fora. Por que se jogou na bebida, ele achava que a bebida ia dá futuro pra ele, ou a bebida ia arrumá uma mulhé pra ele. Olha muita gente já falou isso, tio Raimundo agora arrumô uma mulher, a cachaça. Porque todo dinheiro que ele arrumava, pácaçhaçapácachaçapácachaça.

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Luís (Nani) – Eli fala assim tudo coisa quando eli tá porre. (imita seu Raimundo) cu, cu, cu... Aí a genti num intendi, pareci ingrês quandeli tá chumbado, aí fica muito interessanti tio Raimundo. Aí os cara, os cara fazi sacanagi cum eli sabi. Fomu ali pruma festa sabi, eli, eli ia ficá nu barcu reparandu. Aí o cara incontrô, cumé, eli lá na escada, agarrô um pedaçu di pau torto assim ingual um revólver: Bora um assarto! Aqui é um assarto, agora você vai intregá tudo essi dinhero, num é qui o cara tirô dinhero dessi tio Raimundo. Quandu nós vimu eli varô lá no barco... Uhhh mi acuda um assarto... Ih, ih, ih, ih... essi disgraçado, o disgraçado du Vilaça... levô meu dinheiro, meu dinheiro que ia comprá cumida...Quandu acaba o cara num era assartanti mesmo, era cunhicidu, o Vilaça sabi, más só qui eli fico cum o dinhero deli. Catita (Valéria) – É, mas ele ficô cum o dinheiro dele! Cansei de dizê pra ele, Raimundo, se preza rapaz, tu é um homem novo. Aí olhe, caía de mulhé im cima dele, aí era só pra ele escolhê. Néra? Luis (Nani) - É, agora ele só qué nova, cherando a leiti ainda. Catita (Valéria) – Mas ele já tá cum sessenta e um, já num dá mais pra ele, né? Luís (Nani) - Uma minina ali embaixo, ele chorava pur causa dela. Ele brigava por essa uma de quatorzi anos, qui ele pegava o terçado... si essa uma viessi daí, o homem num ia passá aí qui eli ia cortá um.(RISOS) Aí eli ficô apaixonado por essa minina, credo, Deus o livre!Hum! Catita (Valéria) - Mais ela num quiria ele. Luís (Nani) - Ele botava a Catita “Catita leva atrapalhá, agora porque tudu qui eu arrumo a Catita num qué”. Mais num era a catita não. (RISOS) É qui eli qué novinha i as novinha num querim né. Catita (Valéria) – Eu! mi apaixoná por uma coisa... I as criança já sabe, qué saber da joventude, joventude com joventude, né? Luís (Nani) - Ih, ele querê velha pá comprá remédio pra tratar di reumatismo... Aí depois a velha, a mãe dessa minina qui ele gostô já tava animada já também. Eli num queria essa uma por causa qui ela era beçuda.. Aí quandu eli bibia eli ficava porri há, eli chorava chorava... (imitando Raimundo) Ah, eu num quero essa uma, essa uma é muito feia, tem um beço grandi. Catita (Valéria) - É... por isso que ele não andô. Tem que crariá a vida dele.

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Transição com a mesma sequência da dança da imitação d as fotos, em ritmo acelerado e com as atrizes em relação através do olhar. Passagem para seu Luís (Valéria) e dona Neuza (Nani). BLOCO 3 Luís (Valéria) – Eu tenho dó dessa menina, coitada, porque eu fiquei com ela gita, a mãe dela morreu, tenho aquela lembrança da mãe dela, um dia ela saiu de casa viva numa rede, aí ela disse “ah, minha filha”, e chorando, olha aquilo tem hora que eu num gosto nem de falar. Aí quando ela saiu de casa viva numa rede, disse “ah, minha filha, vou levar a minha filha”. Eu disse “não faça isso, num leve a menina. Aí ela se calô, só que ela saiu chorando de casa, pra num voltá. Aí quando eu arrumei essa outra mulher, olha essa mulher aí num é querer... a catita, a Catarina, ela nunca bateu ela, nunca fez coisa ruim com ela, isso, esse favor eu devo pra essa mulher. Criou ela, acabou de criá...Mas só que esse cara se ent rosou na vida dela e foi esse escangalho que houve. (...) que essa três menina ele teve junto com ela que Deus ajude com que ela seja feliz com essas menina. Totonha (Valér ia) - Ele me dexô com elas. Mas graças a Deus, né, eu não me aperreio, né, dô meus pulo e tô criando elas, né? Porque ele era um pai, a senhora sabe, menos dedicado, só tratava as menina na ignorância. Eu sei que a senhora sabe pra mim tanto faz eu ter marido ou nã o. Já acostumei fazendo a minha parte. Olha, ele foi meu primeiro namorado, eu quase num saía, meus pais num deixavam ir pra festa, sair pra conhecer um rapaz, né? Aí gostei já dele, boba, e já tinha 20 anos. Aí eu fugi com ele, é, eu fugi . Ai, ai meu Deus, eu passei quatro meses, cinco meses pra lá com ele. Aí quando eu vim de lá já vim grávida. E a gente num pensa a s coisa, pensa ah, o marido o tempo todo vai dá certo, aí quando dá por si, né? Eu num me arrependo de tê as minha filha, mas a senhora sabe, tivesse voltado atrás, tinha pensado um pouco, porque hoje em dia num é só fazê filho, a gente tem que pensá , né? Neuza (Nani) – Papai num dexava a gente saí. Num pudia saí nem namorá. Ia pra Belém fazê compra i a gente ficava in casa. Nóis nem tinha essa liberdade di pidí dinhero e saí assim pra comprá um objeto. Nóis ficava esperando a vida. Pra dizê que quando eu arrumei marido, primeiro marido, eu tava cum vinti e novi anos. A minha irmã arrumô depois. Aí qué dizé qui eu já fui aproveitá minha mocidade depois que ele morreu.

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Luís (Valéria) - Logo no cumeço parecia que era uma coisa e tal, mas depois se meteu num negócio duma colegagem, duma camaradagem...eu num sei bem, mas eu acho que ela apanhou até dele. Acho, porque um dia nóis tava aí em casa tomando café, aí “ai, ai, ai”, aquela confusão, aí chegamo aqui ela tava arreada aí na cama. Ele ficou todo por aí sem jeito, eu num quis falá nada, mas eu, eu num sô caju, eu intindi um pouco, mas eu fiquei com aquilo na lembrança, que quarqué coisa que eu ouvia, isso aqui tem boi na linha. Eu fiquei parece relógio, o ponteiro ficou só controlado, eu digo um dia eu pego esse cabra. Quando foi um dia de nuite, tinha dado uma chuva, aí eu vim tirá a água do casquinho senão estraga o óleo do motô, tava escorrendo, num tava fazendo zuada, aí eu ouvi ele tava no pega praí com ela. Aí ele disse assim, e sortando ela, que ela era mulher de nuvo, era mulher de velho, era mulher de todo mundo. Olhe dona menina, eu num puxo saco, negócio de puxa saco num é cumigo, mas ela é minha filha, então me doeu na veia. Esquentou as orelha. Aí eu botei quente com ele, nesse dia queria dá-lhe umas porrada nele boa, mas ele num foi macho, essa janela aí, ele num varou? Aí desde esse dia ela parece que mandou ele embora, sei lá. Porque ninguém é melhor do que ninguém, nóis semo só uma coisa. Mas acho que procedê ainda tem, gente que tem um procedê de gente, que sabe respeitá os outro, porque dona menina, olha, o respeito é uma coisa muito bom, pra quem usa do respeito, né? Porque a vida, a vida é demais bom a gente vivê. Neuza (Nani) - Sim... eu um ela tava di resguardi né, a Catita, e eu foi fazê mingau. Aí eli cumeçô tirá confiança cumigo comecei a isculhambá não. Aí eli disse: - Ah, é tu qui tira as coisa daqui, qui eli fala assim. Eu dissi olha rapaz si eu venho aqui por causa qui a minha irmã mandô mi chama, né. Luís (Valéria) - Não, porque o caso quela foi qui quandu eu cheguei praí ela tinha uma paz di querê governá a Catita. Um vez ela veio lá in casa eu tava cum panelinha lá fazendo mingau, aí ela meteu a mão falando qui num tinha nem fugão num sei o quê. Aí ela foi mexê na panela do mingau, mais isculhambandu sabi, mi isculhambandu. Mi ispirrô mingau ainda, sabe. Neuza (Nani) - Aí eu já tarra cum raiva, peguei o papero soltei o mingau quenti na cara deli. Aí pronto, desdisso. Luís (Valéria) - Aí eu agarrei, mi aborreci aí pá em...emporrei ela assim, ela caiu pru terrero sabi.

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Neuza (Nani) - Tevi um tempo aí por quê a genti é evangélico né tem qui amá os próximo ama a si mesmo né. Aí eu.. já falei cum eli umas três vezi, mas eli num respondeu, intão, eli pra lá i eu pra cá né. Foi...aí ela saiu a favor deli. Aí purisso qui ela num falava cumigu i nem eu cum ela. Aí já depois qui fiquei crenti, aceitei Jesus, aí essa situação, ah, a senhora tem qui pidi perdão. Porque eu foi na casa dela falei cum ela né, aí pronto. Luís (Valéria) - Aí desdessis tempu eu digo bom talvez qui tu é dessi jeito aí eu tombem, intão podi í tá pra lá. As atrizes pegam os bancos para a “briga”, até colocarem-no lado a lado, no centro do espaço. Gororob a (Nani) – O Luís é só porrada cum eli. Luís (Valéria) – O marido da Neusa, o Gororoba, é safado. Gororob a (Nani) - Porque eli tava ali mi bicandu, só vinha... ah cum pedaço di pau grandi, então, eu fui pegá um pedaço di pau nóis foi quase si matandu. Junto com as falas seguintes, as atrizes executam a dança das fotos em ritmo bastante acelerado. Luís (Valéria) - Logo qui eu cheguei aqui ele andô querendo tirá umas peitada cumigo. Gororob a (Nani) – Não, porque ele queria tomá o... aí eu foi debaixo deli pi.... Eli veio precurá a morti. Luís (Valéria) - Mais eu num sô de briga. Eu sô uma pessoa que eu gosto de batalhá minha vida, e tá. Gororob a (Nani) - I a mulhé deli queria mi cortá. Ela dizia qui eu bibia da cachaça du Raimundo pá robá eli. Eu ia dá uma tapa na Catita. Um dia dessi ela vinha cum o Raimundo, eu dissi eu Catarina tu inda num viu o Raimundo, ah quandu ela abriu a boca soquei, caiu cinco metro longi.

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Som de b arco. As atrizes se colocam ao lado dos bancos, cada uma virada para um lado, assumindo uma ação do seu Luís (em pé, o pé esquerdo apoiado na perna direita, mão esquerda pouco abaixo da cintura e braço direito para cima, como estivesse segurando num varal), e falam juntas o texto: Luís (Nani e Valéria) – Aí eu tarra saindo di lá du Porto da Palha já foi mi chamandu di filho da puta com o perdão da palavra. Aí eu digo que que eu to devendo pra esse cara? Num devu pra essi cara, nem favô! Aí eu digu, issu vai é mi pagá. Aí condu foi um dia tinha uma minina lá na feira. Aí eu tarra lá incostado conversandu cum ela,aí eli passô e dissi assim: - É tu mesmo filha da puta, com o perdão da palavra sabi. Aí eu dissi, mais é hoji qui tu vai mi pagá. Aí aquilo mi isquentô aí eu garrei eli, tu num conheci a minha mãe pa ti tá chamandu, mexendu cum a minha mãe... Aí eu agarrei eli Deus mi ajudô qui eu dei uma queda neli lá no meio da rua lá. Aí eu pulei in cima deli, dei uns tápa na cara deli, dissi olha: tu acaba cum essa tua sujera pru meu lado purque eu num ti mexo, né? Intão cumé qui tu fica tirandu graça cum a minha cara, seu filho da puta?!... com o perdão da palavra. Valéria arr uma os bancos como carteira de escola e senta. As duas falas do seu Luís são ditas ao mesmo tempo pelas duas atrizes. Luís (Valéria) – E eu, coitado, andei pá escola, um bucado de ano, só aprendi marmente a riscá meu nome, e alguma coisinha, alguma contazinha só. Eu fico assim, pensando, eu digo meu deus, mais por que eu num aprendi a lê, mais né? Aquilo na minha cabeça, assim, parece, minha cabeça assim é uma dificuldura pá leitura. E agora, eu digo, é verdade, se eu tivesse aprendido uma leitura...mais fiquei dando murro, né? Dando murro, trabalhando no serviço pesado, serviço no mato, mais mi sinto bem porque já tô acustumado mesmo nesse serviço, né? Nani apóia os pés no pneu, se balançando. Luís (Nani)– A gente andando, o melhó professô que tem é o mundo. Porque o mundo insina a pessoa. Se a pessoa andá e num aprendê a vivê, intão ela é uma pessoa muitu nó. Transição com a dança das fotos, agora lentamente e em contato. Incorporam o pneu nas ações, até que Nani assume a dona Neuza e senta nos bancos agora já dispostos formando um banco corrido (talvez uma cama), e Valéria senta-se no pneu.

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EPÍLOGO Neuza (Nani) – Meu nome é Neusa Custódia da Silva. Nascida e criada aqui neste local. Tô casada faz dezoito anos, é, dezoito anos. Fora o primeiros. Esse agora é o tercero três cum essi já. O primeiro eu tevi um casal di filhos, uma menina e um menino gêmeos. O outro eu teve três, mas num foi gêmeos. Gesta ção eu tevi onzi gestação, só qui vingô seis. Aí dessis seis morreu uma com oito anos, foi a gêmeos. Foi, oito anos, ela morreu. Aí os otro num cheguei a carregá no colo, más... Foi uma coisa qui era meu sangui, um pedaço di mim né. Muito duro, muito mesmo! Eu tê tido assim aborto, né, i depois essa uma cum oito anos morrê, depois deu criá, depois di bem dizê criada. Essa noiti até sonhei cum a minha filha. Porque olhe, eu, eu passei numa dificuldade, assim di pobrema di duença, num sei si era derrami qui ia mi dando ( ) queu fiquei cum a minha menti ruim ( ) é, olhe, tem vez qui seu venho buscá algum objeto aqui na sala, aí eu tô na cozinha aí eu venho venho chego aqui eu esqueço. Num adianta nem eu tá procurando, eu volto pro mesmo lugar ( ) pra vê si eu lembro. Chega aqui si eu esqueço eu preogunto pra eles, é. Aí tem tempo qui isso mi ataca é a menti mi ataca muito, muito mesmo. Aí eu vô esquecendo das coisas passado. Valéria cantarola “Meu Primeiro Amor”, de Hermínio Gimenez (versão de José Fortuna e Pinheirinho Jr.): “Meu primeiro amor Tão cedo acabou, só a dor deixou nesse peito meu. Meu primeiro amor Foi como uma flor que desabrochou e logo morreu. Nessa solidão, sem ter alegria o que me alivia são meus tristes ais. São prantos de dor, que dos olhos saem. É porque eu bem sei quem eu tanto amei não verei jamais.” Som das vozes de dona Catita, dona Neuza, seu Raimundo, seu Luís, Amadeu. Sons ambientes captados na ilha: rádio, latido de cachorro, crianças brincando. Rezas e ladainhas. Falas acerca d e falta de memória, de esquecimento. Até que vai surgindo uma falinha de bebê. É o Ítalo, filho da Valéria, falando de barco, rindo numa brincadeira com a mamãe. Junto com a sua voz, todas as luzes do barquinho vão sendo acesas, e as atrizes começam a brincar de balanço no pneu, até que as luzes se apaguem.

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Barco - a escrita da movimentação da atrizes


A montagem do espetáculo Construídos os alicerces da dramaturgia, era a hora de tomar decisões sobre a encenação. A primeira questão dizia respeito ao lugar onde essa história seria contada; pensamos em recriar o espaço de uma casa, na intenção de remeter o espectador à sensação que tivemos ao entrar nas casas da dona Catita, dona Neuza, Totonha e Amadeu. Imaginamos um cenário que teria por base um piso, como uma metáfora do espaço geográfico da ilha, o que logo foi abandonado. Experimentamos o espaço vazio, com as cadeiras dispostas aleatoriamente pela sala, de modo que circulássemos livremente entre essas cadeiras, mantendo a proximidade que tivemos com aquelas pessoas no momento da pesquisa de campo. Funcionava, mas a visibilidade ficava seriamente comprometida. Certo dia, resolvemos “limpar” o espaço central e dispor as cadeiras numa espécie de arena, embora isso ainda não resolvesse o principal problema: onde se passa a ação? Foi então que chegamos à forma de uma embarcação, e descobrimos que nosso espaço poderia ser um barco da região. A metáfora se adequava perfeitamente à natureza da pesquisa. O barco era a “ponte” entre o nosso mundo urbano e o lugar onde nossas personagens viviam. Além disso, pelas circunstâncias geográficas, o rio é, de fato, a principal via para o deslocamento, e, ainda, um barco não deixa de ser a “casa” deles também.

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A colaboração dos técnicos foi fundamental para transformar o espaço cenicamente. Os primeiros elementos cênicos definidos foram dois bancos de madeira, típicos do interior, que serviram de referencial para desenhar no espaço os ambientes das casas das personagens Catita e Neuza, as irmãs que polarizavam os conflitos da família. Deslocados de sua posição inicial, eles se transformariam em outros espaços, como a casa da Totonha, ou o banco de escola do seu Luís e o trapiche de um porto. A iluminação foi concebida a partir de observações feitas por Alberto, Manoel e Patrícia no cais da feira do Ver-o-Peso. Resolvemos utilizar as mesmas lâmpadas fluorescentes de cores diversas usadas pelos pescadores em suas embarcações. As lâmpadas verde e vermelha foram a opção para enfatizar a polaridade Catita/Neuza, já que essas são as duas cores utilizadas como códigos na navegação. Para dar suporte à concepção de luz, a ambientação cenográfica foi composta de fios que sugeriam as cordas do mastro do barco. O figurino, por sua vez, precisava ter uma certa neutralidade, já que fazíamos mulheres, homens, jovens e velhos, e queríamos que o espectador visse cada um deles, e não sua caracterização. O resultado foram calças e blusas sobrepostas, em cores vivas que remetiam àquele universo, e remetiam também ao caráter de exercício cênico. Tinha cortes diferenciados para cada uma das atrizes, com tons que lembravam, para nós, alguns dos nossos personagens. O dilema maior foi em relação ao cabelo e maquiagem. A princípio, pensamos em algo que pudesse se contrapor à simplicidade e aos aspectos regionalistas do cenário, feito basicamente de madeira e fios. Experimentamos, por exemplo, uma cabeça feita a partir de uma touca de grampos de cabelo, mas isso não abarcava a ambigüidade de sexos a que me referi. Acabamos optando pelo corte de cabelo acima da nuca, o que se mostrou eficaz. Resolvemos, também, não utilizar qualquer tipo de maquiagem, nem mesmo a neutra; nos interessava o rosto que ia ficando suado com o trabalho.

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É Alberto quem comenta um dos aspectos mais importantes da concepção: “Estava tudo muito correto, muito simétrico, muito limpo. Foi quando, quase por acaso, descobrimos o elemento de cenografia que considero fundamental, a síntese de tudo. Esse elemento é um pneu de bicicleta velho sustentado por um gancho de aço e suspenso por uma corda pendida bem ao meio do nosso barquinho. Além de criar uma 'quebra' na homogeneidade do espaço cênico, esse elemento mostrou-se infinitamente rico cenicamente. Ele é ao mesmo tempo inúmeras coisas. Primeiramente, elementos ligados à navegação, como os próprios pneus que os pescadores usam para proteger as laterais os barcos, salva-vidas, boia e escotilha. Mas também ele transforma-se, ao longo da encenação, em um pé de bananeira, uma fogueira, uma janela, uma rede e, no final, um balanço de parque infantil. Ou seja, esse singelo elemento representa tudo aquilo que almejamos com nossas pesquisas da linguagem do teatro: usar o mínimo para criar na imaginação do espectador uma grande quantidade de possibilidades de sentido que se sobrepõem. Acho que nossa encenação, enfim, abarca ao mesmo tempo a simplicidade inerente ao lugar e às pessoas que foram a inspiração do trabalho, e também uma rica e instigante teatralidade, expressa na sua multiplicidade de sentidos.”

Complementando essa ideia,“o vazio no teatro permite à imaginação encher os buracos. De maneira aparentemente paradoxal, quanto menos lhe damos mais satisfeita fica. A imaginação fica muito feliz por jogar o jogo” (Brook, 1993, p.38). Das diversas camadas que constituem o espetáculo, há uma que envolve com um delicado fio, unindo num mesmo bloco, todas as histórias, a memória, o mundo daquelas pessoas, e a nossa própria memória. É um sutil, mas denso depoimento pessoal. Em grande parte, estivemos interessados no “olhar que se desperta em direção ao passado, divertindose e compenetrando-se nas imagens de um outro tempo (...)” (Gonçalves Filho in O Olhar, 1988, p.95). Isso fez com que o elemento da memória permeasse todo o processo, que, afinal, nutriu-se do desejo de ouvir histórias, todas as histórias que aquelas pessoas quisessem contar, todas as lembranças que se faziam presentes em nossas conversas. A todo momento cruzaram-se história e intimidade, lendas e experiências vividas, o público e o pessoal: crônicas dessas pessoas na família, no trabalho, na escola, no espaço onde vivem, que nos revelaram a maneira simples de compreender o mundo, seus valores, e que foram verdadeiras lições de vida para nós. Com elas, rimos, nos comovemos, nos indignamos. 68


Uma gente já em si tão esquecida por políticas públicas, acaba tendo relegadas ao esquecimento as inúmeras histórias e o vasto conhecimento empírico. Os mais velhos se referiram muito à perda da memória, de como percebem esse afastamento da realidade. Este foi um dado que induziu o depoimento pessoal do qual falei acima; meu pai, mesmo ausente, foi um grande inspirador desse trabalho. Homem do povo, homem de teatro e das letras - mesmo tendo freqüentado a escola apenas o suficiente para aprender a ler - deixou escritas suas memórias antes de tê-las apagadas pelo Alzheimer e deixou impressas em mim as marcas de um amor, admiração e respeito profundos. Escolhi, para a última cena do espetáculo, uma canção que ele cantava com minha mãe, e que fala de um primeiro e grande amor. Sentada no pneu, ao cantarolar um trecho dessa música - seguido de uma gravação das vozes dos nossos “personagens” - sinto o que há de mais essencial e verdadeiro no trabalho, pois “a evocação de pessoas concretas atinge-nos não apenas o pensamento, mas também e sempre de novo a imaginação, a fantasia e as emoções, a espontaneidade e a inventividade, numa palavra, todas as camadas do humano” (Hanz Küng apud Gonçalves Filho, 1988, p.99). E como a lembrar que a vida sempre renasce, quando as luzes do barquinho começam a acender, é a voz do meu filho, então com dois anos - que memória terá ele desse espetáculo e do Combu? - que motiva o pneu ser agora um balanço. E somos também, eu e Nani, duas atrizes brincando, felizes pelo encontro e pelo que construímos.

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Barco montado na sala do Instituto de Artes do Parรก - IAP


Barco a navegar: atores e espectadores a bordo “A essência do teatro é um encontro.” (Grotowski, 1997, p.48)

Por nove meses, nos moveu o desejo de partilhar um pouco do que vimos e sentimos junto àquelas pessoas, na beira daquele furo da Ilha do Combu. Desejo que impulsionou o treinamento diário na busca de um corpo reorganizado, que pudesse criar um outro espaço, um outro tempo diante do espectador, realizando com ele uma troca. Não uma troca baseada na premissa de que tivéssemos encontrado alguma “verdade” cênica, ou “essência” humana, mas que, como bem coloca Renato Ferracini: “Essa 'troca' não pode ser relacionada à comunicação, mas, sim, a uma espécie de criação, ou ainda, influências múltiplas entre ator e espectador, entrecorpos, em um plano evidentemente artístico, ou seja, em um plano outro, no qual toda a complexidade e profundidade desse 'entre' possa ser vivida, percebida, sentida” (2006, p.34).

Ferracini fala também de um campo de intensividades criado na relação ator/espectador como resultado da ressignificação do corpo do ator e consequentemente, do público. Ressignificação que resulta, por sua vez, da entrega do ator ao trabalho pré-expressivo através do qual cria “as ações físicas orgânicas que serão, em sua recriação, no momento do Estado Cênico, os enunciados que realizarão a troca com o público, numa relação em zonas e planos outros. Plano da arte” (ibidem, p.36). Se o encontro com aquela família de ribeirinhos nos revelou tanto sobre a vida, o encontro com o público tem nos mostrado o quanto o espectador pode afetar o ator quando é afetado por ações construídas com base na organicidade, constituindo-se o que Ferracini chama de “zona de turbulência”.26 27

No caso do espetáculo Parésqui, essa zona é permanentemente atualizada através do ato mesmo de narrar. Nós nos dirigimos diretamente ao público quando recriamos o momento em que ouvimos as histórias na Ilha do Combu. Estabelece-se uma “conversa” com o espectador, o que desencadeia em nós, atrizes, um redimensionamento contínuo de ações e estados devido à maneira como esse espectador “responde” ao que lhe é contado. Alterações que podem ser microscópicas ou macroscópicas conforme os “desvios, lanças, setas, buracos, modificações e recriações” (Ferracini, 2006, p.190) advindos dessa rede de afetos (ator/espaço/outro ator/público). 26 - Zona que está entre as ações físicas, matrizes e estados do ator, o espaço, o outro ator e o público. “Local/espaço no qual tudo ao mesmo tempo se acumula, se conecta, se desconecta, se atualiza, se virtualiza, se diagonaliza; tudo se auto-afeta e se recria a cada momento. Multiplicidade autogestante” (Ferracini, 2006, p.196). 27 - O espetáculo estreou em 02 de dezembro de 2006 durante a Mostra Arte Final, programação em que foram mostrados ao público os resultados de todas as pesquisas realizadas através da Bolsa de Pesquisa, Experimentação e Criação Artística do IAP. Na ocasião, fizemos 71 duas apresentações na sala de dança do Instituto, para um público de aproximadamente duzentas pessoas no total. Já havíamos feito três ensaios gerais, nos dias 29 e 30 de novembro, e 01 de dezembro.


Creio que a nossa opção de espacialidade contribuiu muito para comprometer o espectador no jogo, pois da proximidade decorrem fatores absolutamente instigantes para o trabalho de atriz. Acontece uma intensa troca sensorial, as percepções alteram-se: olhar nos olhos do espectador e sentir suas mínimas reações, ao mesmo tempo em que este espectador pode ver o suor no rosto e os detalhes do trabalho físico, pode sentir a respiração e o cheiro das atrizes. Há um enorme esforço em manter o fio que nos une à plateia, não deixar que ele se rompa. Desafio que se renova a cada apresentação, e que nos faz buscar sempre o frescor e a organicidade em cena. Algo de que não se pode ter ideia senão na presença do público, como diz Yoshi Oida: “Na realidade, o público é o verdadeiro espelho. Não sei realmente como interpretar meu papel até o momento em que esteja à frente a uma plateia. É naquele instante que o descubro. A sala de ensaio é apenas a preparação que leva 28 à descoberta. O público é quem me diz como devo atuar” (2001, p.88).

Em função da necessidade de adaptar o espetáculo ao Espaço Cuíra, onde posteriormente fizemos duas temporadas de um mês, experimentamos uma outra disposição espacial. O formato original da arena/barco foi substituído pelo palco italiano, o que exigiu da equipe um esforço para colocar o nosso “barquinho” em condições de navegar, ou seja, encontrar soluções para que a sugestão do barco não se perdesse ao espectador. Foi preciso adequar a nossa movimentação à relação frontal. Creio que conseguimos preservar a conversa com o espectador, embora inevitavelmente perdêssemos muito daquilo que comentei sobre a proximidade, além de suprimir um dado interessante da arena, que era o espectador ter “ao fundo” outros espectadores, o que poderia alterar ainda mais a zona de turbulência. Barba observa que o espectador não distingue os diferentes níveis de organização do espetáculo, mas pode perceber a potência muscular e nervosa do ator moldada num contexto especial, que é o teatro. E atribui à sua existência, a condição fundamental para o acontecimento teatral: “O teatro é a arte do espectador” (Barba, 1994, p. 63).

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O nome Parésqui surgiu também de um exercício conjunto. Cada um de nós três escreveu rapidamente todos os nomes que nos ocorriam. Dos nomes sugeridos, este nos soou muito bem. Corruptela de “parece que”, é um termo que ouvimos diversas vezes durante a pesquisa de campo. Varia um pouco de região para região da Amazônia; pode também ser pronunciado parêsqui. Além da sonoridade interessante, achávamos também que brincava um pouco com a própria essência do trabalho: não éramos, parecíamos... Foi muito comum, depois das apresentações, algumas pessoas comentarem conosco sobre como o espetáculo as havia remetido a lembranças de algum parente do interior, ou mesmo de um tempo em que passavam férias em determinado local. Tive uma compreensão maior da razão disso acontecer ao ler este depoimento da atriz Raquel Scotti: “...Seu Anísio ainda pode ser lembrado, por exemplo, através de meu corpo-em-ação, que atualiza suas ações e faz vibrar algo das vibrações por mim captadas de seu Anísio. Esta vibração pode encontrar interseções intensivas com o espectador e despertar sua memória de outras vibrações, de maneira involuntária. (...)Ele simplesmente recebe flashes de atualizações descontínuas de lembranças e vibrações que podem levá-lo a localizações (do passado determinado: a casa do avô, por exemplo) ou a sensações de um passado não datado, não reconhecível ou codificado. Levam ao encontro” (Hirson, 2003, p.193).

Encontro. Parece-me ter sido este um dos cernes do processo de criação do espetáculo. Não apenas o encontro entre seres humanos - tão diferentes e tão iguais - que cultivaram uma troca afetiva, verdadeira geradora da matéria do Parésqui. Falo também do encontro com uma realidade de imensa e aterradora beleza na qual estão inseridos homens e mulheres que parecem caminhar entre o eterno e o cotidiano. Mas falo, sobretudo, do encontro com uma autonomia de trabalho que me trouxe um novo horizonte enquanto atriz capaz de reinventar o ofício a cada apresentação, a cada novo projeto. O desejo de correr riscos, deixando-me “contaminar” por outros métodos na busca por algo muito particular, dentro de uma ética própria do grupo com o qual eu trabalho, resultou na transformação da minha conduta como atriz. Impossível, também, não ser profundamente afetada pela força da natureza e das histórias de vida com as quais nos deparamos naquela ilha. Força que nos guiou na construção de um espetáculo que pudesse irradiar tal potência transformadora quando do encontro com o público.

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Creio que, na busca pela organicidade em cena, soubemos aproveitar os “bons conselhos” dados através dos escritos de Barba, Burnier e Ferracini nessa jornada em que as muitas descobertas pessoais tornaram singulares o caminho e o resultado do trabalho. E como a constituir um “projeto poético” não apenas meu, mas de um grupo que desde 2004 investiga a criação cênica a partir do olhar sobre o homem amazônico,30 a Usina Contemporânea de Teatro tem pela frente o município de Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó. Graças ao Prêmio Myrian Muniz, da FUNARTE, daremos continuidade à pesquisa de mímesis corpórea, dessa vez utilizando como pretexto a obra do escritor Dalcídio Jurandir.31 Que outras questões venham nos inquietar na “aventura” de reinventarmos a nossa prática, reinventando o mundo em que vivemos. Que novos “fazeres” estimulem outros pensamentos, numa espiral através da qual deve se constituir a trajetória de um “ator-compositor”, segundo Bonfitto. E que muitas outras questões possam alimentar trabalhos como este ensaio, no qual espero ter conseguido, a despeito das limitações da palavra, desvelar os meandros dessa criação, revelando as forças que agiram e se opuseram, enfim, os caminhos pelos quais se realizou e padeceu.

29 - Barba usa a seguinte metáfora para se referir aos conselhos e àquilo que depende exclusivamente do ator: “Aqui estão os canos, canais, alguma cisterna; tudo seco. A tua água ninguém pode oferecer-te” (Barba, 1994, p.74). Para Ferracini, “esses bons conselhos serão, tão-somente, pequenos barcos jogados na correnteza para que outros os roubem e os transformem em seus próprios barcos, talvez mais fortes, ou melhor: que sejam transformados, por outros, em grandes navios” (Ferracini, 2006, p.52). 30 - Em 2004, Alberto Silva Neto desenvolveu, ao lado do ator e músico Walter Freitas, o projeto Partitura Gestual e Corporal do Pará, contemplado pela Bolsa de Pesquisa, Experimentação e Criação Artística do Instituto de Artes do Pará (IAP), resultando no espetáculo Tambor d'água, apresentado em diversos municípios paraenses. Acompanhei parte deste trabalho como preparadora corporal. 31 - Um dos maiores romancistas brasileiros, infelizmente muito pouco conhecido. Nasceu em Ponta de Pedras, na Ilha do Marajó, em 1909 e faleceu em 1979. Escreveu dez romances que integram a série Extremo Norte. Recebeu o prêmio Dom Casmurro de Literatura em 1940 por Chove nos Campos de Cachoeira, e em 1972, foi homenageado pela Academia Brasileira de Letras, recebendo das mãos de Jorge Amado o prêmio pelo conjunto de sua obra.

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BIBLIOGRAFIA BURNIER, Luís Otávio. A Arte de ator: da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. FERRACINI, Renato. A Arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. _____________ . Café com queijo: corpos em criação. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores: FAPESP, 2006. _____________ . Corpos em fuga, corpos em arte. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores: FAPESP, 2006. COLLA, Ana Cristina. Da minha janela vejo...: relato de uma trajetória pessoal de pesquisa do Lume. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores: FAPESP, 2006. HIRSON, Raquel Scotti. Tal qual apanhei do pé: uma atriz do Lume em pesquisa. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores: FAPESP, 2006. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado. São Paulo: FADESP: Annablume, 1998. Revistas do LUME, números 1, 2, 3, 4, 5 e 6. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998, 1999, 2000, 2002, 2003 e 2005. BARBA, Eugênio. A Arte Secreta do Ator. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995. _____________. A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. BONFITTO, Matteo. O Ator-compositor, as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

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MAIA, Reinaldo. O ator criador (um caminho). São Paulo: Folias d’Arte, 1998. BAIOCCHI, Maura; PANNEK, Wolfgang. Taanteatro/ Maura Baiocchi e Wolfgang Pannek. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. ORNELLAS, Raquel. Caldeirão de Bruxas: De Como Macbeth Virou Irmãs do Tempo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras reunidas – Cultura amazônica, uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras Editora, 2001. OIDA, Yoshi. O ator invisível. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001. LISPECTOR, Clarice. A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. BROOK, Peter. O diabo é o aborrecimento. Portugal: Edições Asa, 1993. GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços. 4ª edição, Porto Alegre: L&PM, 1995.

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ANEXOS - fotografias do espetáculo - material gráfico - críticas e matérias de jornais Histórico de apresentações: IAP - Instituto de Artes do Pará, dias 2 e 3 de dezembro/2006. Teatro Waldemar Henrique, dia 27 de março de 2007. Fundação Curro Velho, dia 23 de agosto de 2007. Espaço Cuíra, de 09 de março a 1º de abril de 2007 e de 07 a 30 de setembro de 2007. Teatro Margarida Schivasapa, de 25 a 27 de abril de 2008. Município de Ponta de Pedras, no Marajó, em novembro de 2007.

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Cena da briga no Porto da Palha Seu LuĂ­s


Cena Ricardinho Dona Catita

Cena casamento do seu Raimundo Dona Neuza


Cena apresentação da família Seu Raimundo e dona Catita

Cena preguiça de estudar Marlete e dona Catita


Cena da briga no Porto da Palha Gororoba

Cena contando sobre a Totonha Seu LuĂ­s


Programa do espetรกculo



Ficha técnica:

Interpretação: Nani Tavares e Valéria Andrade Dramaturgia: Alberto Silva Neto, Nani Tavares e Valéria Andrade Direção: Alberto Silva Neto Cenografia, montagem e operação técnica: Manoel Pacheco Cenografia e iluminação: Patrícia Gondim Desenho de som: Leo Bitar Figurino: Aníbal Pacha Confecção de figurino: Núbia Goiano (in memoriam) Visagismo: Mauriti Projeto gráfico: Alexandre Sequeira Fotos: André Mardock

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Breve relato de uma viagem à Ilha do Combu (Alberto Silva Neto) O portal do espaço-tempo Quando finalmente sentei no banco de madeira do barco do Teia, já a caminho da Ilha do Combu, foi que consegui relaxar dos percalços da nossa tumultuada saída de Belém, na manhã do sábado, dia 12 de agosto. Eu, as atrizes pesquisadoras Valéria e Nani, a iluminadora Patrícia, além do pequeno Ítalo (filho da Valéria), partimos juntos com o objetivo de conhecer o lugar e as pessoas que têm sido objeto de investigação em nossa pesquisa de mímesis corpórea. Valéria e Ítalo voltariam depois do almoço, e eu, Nani e Patrícia dormiríamos lá, o que de fato aconteceu. Enquanto o pequeno barco singrava as marolas do rio Guamá, pensei em tudo o que naquele momento ficava para trás: o cansaço, o atraso, a pressa, a ansiedade, o corre-corre, a vida na cidade, enfim. Eu ainda não sabia, mas estávamos atravessando uma espécie de portal de tempo e espaço, como bem definiu a Patrícia já na nossa viagem de volta. Um portal misterioso, imaginário e ao mesmo tempo concreto, que separa dois mundos. Nossa meta me parece que é tecer um delicado elo que faça esses dois mundos conversarem. Acho que é isso que almejamos com esse trabalho. Cinco casas e um rio Quando entramos no furo d'água, Valéria e Nani começaram a nos mostrar, a mim e Patrícia, que íamos pela primeira vez, as casas: primeiro da dona Neuza, depois a da dona Catita e do seu Luís, logo ao lado a da Totonha, filha deles, depois a da Cilene, outra filha, com a maloca onde mora o seu Raimundo à beira do furo, e por fim, lá pra dentro daquele igarapé, a casa do seu Amadeu, que até agora só existe na minha imaginação. Descemos na maloca e aí ficou um tumulto o meu coração. Eles foram surgindo, lentos, serenos, um a um, e a Valéria dizendo, “esse é o seu Raimundo”, “olha, lá vem a dona Catita” (nunca vou esquecer a primeira imagem dela sorrindo ao entrar na maloca). E eu pensando: que loucura! Eu querendo olhar tudo ao mesmo tempo, absorvê-los num átimo de segundo. Mas isso é impossível, pensava logo depois. E também o desejo de chegar sem chegar, de não causar nenhum espanto ou alteração neles, afinal éramos gente diferente, um grupo bem maior do que eles estavam acostumados a receber, quando vinham apenas as atrizes. Querer ficar invisível e não poder (grande, branco, barbudo). Querer ser só eu e nada mais. E a Patrícia, o que estará pensando? Era o que eu pensava também. Compreenderia depois, que aquele tumulto iria serenar, e logo eu estaria tranqüilo, me sentindo parte daquele lugar, pelo menos por alguns momentos. Mas confesso que naquele instante pouco pude perceber ou pensar a respeito do trabalho. E talvez isso nem fosse mesmo necessário. 85


À “buca” da noite Enquanto eu, Nani e Patrícia voltávamos do almoço no pequeno barco através do furo estreito, a Valéria rumava de volta pra casa com o Ítalo (que memória terá ele dessa viagem ao longo da vida? Que memória teremos nós?). Enfim, voltávamos pra passar a noite e percebi então que ali começava a etapa decisiva da nossa viagem. Ainda no barco, combinamos, Nani e eu, de irmos à casa da dona Neuza, porque não dera tempo de fazêlo pela manhã. Foi o que fizemos. E foi também quando meu coração disparou pela primeira vez. Devastador e belo, foi o depoimento dela. As situações, os conflitos, as contradições, tudo jorrava das palavras, e eu ali, perplexo. Bonito ver a Nani pesquisando, ver a Neuza tão de pertinho, e, ouvindo ela falar, pensar na responsabilidade que temos em nossas mãos: é da história de vida dessas pessoas que estamos nos apropriando. Pensei em todas as questões éticas que esse tipo de pesquisa abarca, mas senti que já sabemos respeitar isso, ou pelo menos temos uma consciência disso que nos coloca no rumo certo. Esse encontro com a Neuza também me fez começar a pensar em aspectos da dramaturgia, um dos nossos grandes desafios. Sobre isso, gostaria de dizer que ainda acredito muito em dona Catita e dona Neuza como personagens que polarizariam o conflito essencial do espetáculo, isso, é claro, se mantivermos como mote o universo familiar. Explico minha opinião. Primeiro porque é visível que as mulheres centralizam o verdadeiro poder ali. E elas são as duas mulheres mais velhas, as duas irmãs, das quais descendem todos os outros. O outro irmão, seu Raimundo, parece ser para ambas mais filho do que irmão, sobretudo pelas circunstâncias da doença dele, que conhecemos. Acredito que os outros personagens, com seus conflitos, circulam em torno desse conflito maior. Será? Mas, enfim, tudo o que a dona Neuza revelou naquela noite conduz a isso, e fortalece essa ideia. Será? Que pensam Valéria e Nani sobre isso? De qualquer maneira é preciso que fiquemos atentos para essa ideia não nos conduzir ao maniqueísmo. Nessa história não existe o bom e o mau. Que fique claro: não há vilões (ou vilãs, para me fazer entender melhor, percebem?). Não podemos esquecer nunca que em todo ser humano habita essa qualidade de contradição fantástica. E devemos sempre buscar isso em todos eles.

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Uma luz de lamparina, um rosto na penumbra, vultos na escuridão. Enquanto dona Neuza falava, uma luz tênue de lamparina lhe lavava parte do pescoço e do rosto. Era uma mulher que falava na penumbra, enquanto os filhos circulavam lá dentro da casa, como vultos na escuridão. Tudo isso acrescentava uma atmosfera fascinante ao relato que estávamos escutando. Nesse momento fiquei feliz ao perceber o quanto era rica a nossa presença lá, minha e da Patrícia, porque pela primeira vez percebi o diálogo entre dramaturgia, encenação e luz, que começava a se anunciar. Pesquisar possibilidades de luz era, afinal, um dos nossos principais objetivos. Outro momento precioso aconteceu quando retornamos à maloca e já estávamos em nossas redes. Uma chuva abençoada nos presenteou com um momento mágico. Para impedir que o vento da chuva apagasse a frágil chama de sua lamparina, seu Raimundo se levanta, num gesto simples, porém decidido, e envolve a chama num cesto. Imediatamente ali era outro lugar: o reflexo da chama em movimento vazava pela trama das fibras do cesto e fazia desenhos no telhado de palha da maloca, enquanto a chuva acariciava nossos ouvidos. Bendita chuva, pensei. Notei o brilho nos olhos da Patrícia, que logo experimentou fotografar o objeto. Naquele momento tive certeza: esse espetáculo nunca seria o mesmo se não tivéssemos ido todos ao Combu, e vivido aquilo tudo. Ainda sobre a luz, fiz algumas anotações, algumas delas fruto de conversas com a Patrícia. Penso em reflexos, luz difusa: o céu na água barrenta, a lua também, a luz que bate na água e reflete nas raízes e na folhagem à margem do rio, entre outras imagens. Também penso na gradação lenta da luz, tipo aquela do amanhecer e do anoitecer, quando a cada momento percebemos que houve uma pequena alteração na intensidade, mas o movimento é imperceptível, compreendem? As fotos da Patrícia registram alguns desses momentos e certamente serão muito úteis para induzir o processo de criação nessa área. Sei que ela ainda vai digerir tudo isso, lentamente. No mais, só a minha taquicardia terrível e inexplicável, que me fez pensar: Pronto, vou morrer no Combu e ser enterrado na minha rede de 12 reais aqui mesmo, no quintal da dona Catita. Será que as meninas vão me homenagear na estreia (risos). Agora eu brinco, mas a sensação foi terrível.

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Sonoridades de um amanhecer Pássaros, muitos pássaros. Galos, uns perto, outros longe. Barcos, vento, folhagem, rio. Canoa que bate no cais, que bate no cais, que bate no cais. E eu pensando: puta merda, o Leo tem que vir. Logo. Venho com ele. Ah, se venho! É que é muito rico o lugar. Devemos criar (já estou fazendo isso) um mapa de gravações: além dos que já citei, a cachoeirinha que achamos no passeio de canoa, um mergulho de alguém no rio, um tchibum!!! daqueles, um barco que vem de longe, passa perto e some depois, e também o radinho do seu Raimundo sintonizado na Rádio Clube bem cedinho. Que lindo aquele som de radinho! Baixinho, baixinho. Mas lá. Aí, quando passeávamos de canoa, no silêncio do rio, pensei: e se esses sons ambientes que vamos captar não tivessem necessariamente função de ambientar, como indica o óbvio? Ao contrário, poderíamos usar os sons do lugar, mas para pontuar o que está sendo dito pelos personagens com sons precisos que atuam como “efeitos” que dialogam com a dramaturgia. Aí, num momento de clímax, preciso, um galo canta! Quando a dramaturgia eleger que algum fragmento de texto não deve ser ouvido, um barco passa e o som do motor se sobrepõe à voz da atriz. São ideias, mas de qualquer forma é preciso, sobretudo, proporcionar ao Leo, nosso designer de som, a possibilidade de estar lá. Os ouvidos dele estarão muito mais sensíveis que os nossos. Mas ele precisa ir. E o Alexandre Sequeira, nosso cenógrafo, também. Que surpresas nos esperam lá? “É certo!” Outra vez o portal Quando voltávamos, falei pra Nani sobre uma coisa que me parece crucial no trabalho de criação das atrizes, sobretudo em se tratando de mímeses corpórea: a diferença entre atividade física e ação física concreta. O Grotowski falava muito disso e também já ouvi pessoalmente o Cacá Carvalho explicando esse pensamento. A diferença é que na atividade existe apenas o movimento, como varrer uma casa. No caso da ação, que nos interessa, o movimento está, de alguma maneira, ligado às intenções da personagem. Um exemplo simples: é diferente a situação de uma mulher que passa roupa, apenas, da situação em que esta mesma mulher passa roupa enquanto fala sobre o atraso do marido para o almoço, que muito a aborrece. Enquanto ela fala, parece que a vemos passar o ferro quente na cara do coitado. Falo nisso aqui porque temos uma bela partitura gestual que vai nos servir para construir conflitos dramáticos. 88


Ainda sobre o que eu falava, ocorre-me um pensamento que tem tudo a ver com essa ideia de dilatação do espaço-tempo, depois que atravessamos o nosso portal inventado. Pergunto: até em que nível nós poderíamos aprofundar nossa investigação sobre aqueles momentos de dilatação da metamorfose das personagens, que estamos exercitando nos ensaios, e que costumamos dizer que revela em cena o processo da pesquisa? E se os ligamens do nosso repertório forem escolhidos precisamente para cada personagem, ou para cada momento da dramaturgia desses personagens? E ainda: se nós experimentarmos uma dilatação das sonoridades, da palavra falada, assim como fazemos das ações, que resultado teríamos? Se for a palavra e não o corpo derretendo? Qual será o contra-impulso da palavra? No que isso nos ajudaria a encontrar o tal elo delicado que faz esses mundos conversarem? O que pensam vocês disso tudo? Será que alterando o tempo real/ natural/ cotidiano das ações e das sonoridades poderíamos encontrar um modo belo de fazer o espectador experimentar a passagem por esse portal inventado quando sentar para assistir à nossa encenação? Será isso uma maneira de começarmos a discutir qual seria a mímeses da encenação, num equivalente da mímeses corpórea do ator? Afinal, não queremos construir com nossas vidas uma espécie de mímesis sensível daquele lugar, daquelas pessoas, daquele universo dilatado? O tempo de uma manhã, um dia, uma vida, que o seu Raimundo leva pra tecer um cesto? E ser tão lindo assim. Como a Nani disse: talvez ele seja o mais puro de todos. Enfim, sabem, estou feliz por estar vivendo, pela primeira vez no teatro, em outra função, a mesma visceralidade que sempre senti como ator. Sinto e sei que é muito forte e belo o que estamos construindo, seja lá o que isso for, afinal. É importante ainda dizer: muita coisa que pensei e vivi na viagem, não está nesse relato, nem poderia estar, afinal ele não conseguiria abarcar tudo, e preciso aprender a conviver com essa ansiedade. Coisas de quem vive na cidade. Mas acredito que temos aqui um ponto de partida para as próximas etapas do trabalho. Estou cansado, mas feliz. É tarde da noite de uma terça-feira, amanhã viajo cedo para trabalhar, e agora só consigo pensar: em que quietude estarão imersos nossos amigos/ pessoas/ personagens lá do outro lado do rio? Que seres fantásticos os estarão observando silenciosamente? Eles são invisíveis, e é bom que seja assim. Tão invisíveis como tudo o que nossos olhos não puderam ver durante a viagem. E nunca poderão. Esses momentos, cabe a nós inventá-los. Como eu ainda invento a “minha” casa do seu Amadeu, que na minha próxima viagem ao Combu não poderei jamais deixar de conhecer.

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Críticas e matérias de jornal “Parésqui: sutil, simples e forte” Uma delicada homenagem às nossas mais profundas raízes. O espetáculo Parésqui, da Companhia Usina Contemporânea de Teatro, em cartaz no espaço Cuíra, é sutil, sem ser adocicado, forte sem ser agressivo. O espetáculo tem a poesia do encantamento e a dureza da realidade. A medida do espetáculo encontra o equilíbrio em uma encenação enxuta, somado a um trabalho limpo das atrizes em cena, e fundamentado em um texto simples. Porém, jamais simplório. O espetáculo é o resultado da bolsa de pesquisa da atriz Valéria Andrade, que durante o ano de 2006, incentivada pelo Instituto de Artes do Pará(IAP), pesquisou o cotidiano dos moradores de uma comunidade da ilha do Combu. Fundamentada nas técnicas de Mímesis Corporal - mais difundidas no Brasil pelo grupo Lume, de São Paulo, que consiste, grosso modo, na observação e representação do homem e suas ações -, a atriz passou cerca de sete meses convivendo (quase que diariamente) com os moradores da localidade. Ouvindo suas histórias de alegria, dores, desejos, resignações e filosofias de vida. Alimentando-se do jeito simples daquela gente. Para desenvolver o trabalho, Valéria chamou para perto de si a atriz Nani Tavares e a direção do competente Alberto Silva. Decisão acertada. O trabalho das atrizes em cena não tem arestas. A direção se livrou de todo e qualquer artifício “teatralizante” de cenários e de iluminação para deixar o trabalho das atrizes em primeiro plano. O palco é quase nu, a iluminação é sensível, o figurino é despojado, a maquiagem é invisível. O que o espectador assiste em quase uma hora de espetáculo é a força e a sutileza das atrizes se revezando em vários personagens. Não me furtarei a dizer que a representação das atrizes é a mais consistente que vi nos últimos anos no palco de Belém. A jovem Nani Tavares lança mão de toda a sua força de iniciante, com consciência, técnica, entusiasmo, e, sobretudo, com sobriedade. Valéria Andrade tem a postura das grandes atrizes - no meu entender a melhor atriz em atividade no momento -, sua representação é marcante em gestos firmes, ações limpas e musicalidade de texto que beira a perfeição. As histórias contadas pelas atrizes pegam o público de surpresa, quebram uma possível quarta parede, e o colocam dentro de cena, se emocionando com as aventuras e desventuras da família de dona Catita, e da própria, que é uma figuraça.

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O texto é uma compilação de pequenos relatos de vida. Mas não pensem que a fábula teatral contada é apenas uma descrição exótica do modo de vida de pessoas interioranas. É muito, muito mais. É vida, no sentido mais profundo da palavra. São histórias cheias de armadilhas, que vão encantando o público. Do encantamento, passamos, sem perceber, ao envolvimento, e quando menos esperamos, deixamos o conforto de nossas poltronas para rir, torcer, chorar, enfim, viver junto com as personagens. Parésqui é uma homenagem às nossas mais profundas raízes, e não estou falando apenas para quem nasceu nesse Estado. Estou falando de todos os que temos histórias de vida para contar. Adriano Barroso (Jornal O Liberal, 07 de setembro de 2007)

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“É, Parésqui!” O espetáculo teatral Parésqui, em cartaz no espaço Cuíra de Teatro, traz uma luz, ou melhor, uma certeza de que nem tudo está perdido. Ufa! Graças aos deuses dionisíacos dos palcos, ainda existem pessoas sensíveis às expressões não registradas pela história oficial e não re-apresentadas nas emissoras de grande audiência, não raro com programações de qualidade discutível. Pessoas que transitam para além dos modismos empobrecedores da língua portuguesa e de um modo geral, a semelhança do gerundismo e outros ismos em voga, tanto em parte da mídia como em salas de aula. Pessoas com formação acadêmica que, paralelo aos referenciais teóricos indispensáveis do processo ensino-aprendizagem, buscam, via trabalho de campo, experiências outras que caracterizam parte do compromisso que todos os intelectuais devem assumir junto à sociedade, o de ir e vir, o de sair dos gabinetes e do conforto de suas salas refrigeradas para a periferia, para o interior do Estado, para outras margens em busca de vozes espalhadas aos ventos, por falta de registro e de audição. Essa é uma prática que alimenta o ensino, a pesquisa e a extensão, em todos os graus de ensino. O trabalho foi desenvolvido a partir da bolsa financiada pelo Instituto de Artes do Pará - IAP. “Durante nove meses, as atrizes Valéria Andrade e Nani Tavares mergulharam na observação do cotidiano de oito pessoas que fazem parte de uma mesma família, na ilha do Combu. O roteiro da peça nasceu da colagem de diversos fragmentos dessas valiosas histórias de vida relatadas às atrizes por cada um desses ribeirinhos”. Uma das pesquisadoras, paraense, é formada pela Escola de Teatro e Dança - ETDUFPA e cursa filosofia na UFPA. A outra, Valéria Andrade, já veio para Belém com formação teatral, experiência em televisão e é formada em comunicação social pela UFPA. Esse tipo de trabalho é gratificante de se ver, merece destaque e estudos, afinal, não é comum experiências dessa natureza nos palcos: a fala cabocla em cena. O gestual, aparentemente meio desarticulado do caboclo, exige das atrizes um preparo adquirido na prática, no estudo, na dedicação, na sensibilidade e competência. Estas habilidades elas têm e precisam ser conhecidas por todos os amazônidas, em primeiro lugar. O tratamento que as pesquisadoras-atrizes dispensaram ao objeto de estudo - histórias de vida - é digno de nota e de maior permanência nos palcos.

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Enquanto as cenas acontecem, o cenário, os sons, as falas, o gestual, as expressões, todos os signos visuais e perceptivos remetem o espectador a outro espaço e tempo “mágico-vivenciado”. É o canto do galo ao amanhecer, é o barulho da água escorrendo e, principalmente, a dramaturgia pessoal de cada uma das atrizes que fisgam e fixam o olhar de quem assiste, não dá para desviar a atenção, não há como quebrar a sinestesia e o todo harmônico das cenas. A linguagem oral, a mais antiga forma de transmissão do saber, confirma: o jeito de falar, aparentemente simples do povo, transmite uma inegável reflexão sobre os mais diversificados temas que todo ser humano experimenta. Das relações familiares às indagações impertinentes, tudo está lá, o que muda é a maneira descomplicada de dizer e de narrar as experiências vividas. As explicações ficam para quem tiver preparo para ligar com o “simples”, no sentido de tocar naquilo que é essencial, sem adereços e enfeites, ao público cabe sentar para embarcar na deliciosa conversa, tão rara nos dias atuais. Parabéns ao trio: Nani Tavares, Valéria Andrade e Alberto Silva Neto. A Amazônia precisa, além da preservação da biodiversidade, de novos dramaturgos e estudiosos das expressões culturais do povo amazônida, patrimônio imaterial, tão importante quanto as riquezas naturais. É, Parésqui há esperança para todos os tipos de vozes, de todos os povos. Parésqui há espaço e há público para esse tipo de espetáculo, também. Parésqui essas falas caboclas ficarão a ecoar na mente e no coração de pessoas sensíveis, dispostas a ver outras formas de expressão como elementos indispensáveis à formação cultural de um povo. É, Parésqui! Bene Martins (Professora da Escola de Teatro e Dança da UFPA)

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Nani e Valéria, [...]Observar, ouvir, olhar, intuir, ver, falar, ir, voltar e silenciar...silenciar acima de tudo. Essa é a matériaprima desse trabalho encenado no “barco-casa-palco” das nossas memórias. Bordado com a delicadeza da alma feminina, o espetáculo é gostoso de estar com ele, porque o humor é na medida certa, sem caricaturas, há fidelidade nos olhos das atrizes e dos personagens. As histórias são como as nossas, ora felizes ora desiludidas, mas a simplicidade é que é a luz do espetáculo. Obrigado e parabéns. Vou ver de novo. Paulinho Assunção (Músico e atual gerente de artes cênicas e musicais do IAP) “Parésqui segue até 1º de abril” O tiririririm dos grilos invade o palco do teatro. Como nas noites da ilha do Combu, em meio ao rio Guamá, bem às proximidades da capital paraense. O canto desses pequenos insetos envolve um dos momentos em que os personagens conversam entre si. O espectador também ouve o canto dos galos e o instante em que os remos das canoas tocam as águas amazônicas. Sonoridades que integram o espetáculo teatral “Parésqui”, da Usina Contemporânea de Teatro, em cartaz no espaço Cuíra, até o próximo 1º de abril. “Parésqui” não conta uma história linear com início, meio e fim. “É uma colagem de fragmentos de depoimentos de vida. Por exemplo, histórias de amor, de paixão e de brigas de família”, conta Alberto Silva Neto, diretor do grupo e que participou do processo de criação desse espetáculo teatral. No palco, as atrizes Nani Tavares e Valéria Andrade vestem-se com o figurino neutro para mostrar esse universo, que pesquisaram durante quatro meses do ano passado junto a ribeirinhos da ilha do Combu. [...] Em um cenário que lembra um desses barcos regionais de pesca, os oito personagens vão tomando vida. Sob uma iluminação de lâmpadas fluorescentes, como as que se podem ver nas embarcações que aportam no Ver-O-Peso, surge a história de Dona Catita. Conforme Alberto Silva Neto, ela conta a história da mulher grávida não poder se alimentar de jacaré, pois, como esse réptil não tem língua, o filho dela poderia nascer mudo. “Uma história muito engraçada, que se relaciona com as nossas lendas”, recorda ele. Jornal Amazônia Hoje, 16 de março de 2007. 94


“Mímesis é o fundamento de Parésqui” Um modo lento de caminhar, um trejeito nos lábios e pronto: num piscar de olhos, as atrizes Nani Tavares e Valéria Andrade assumem o corpo e a voz das oito personagens da peça Parésqui, que pertecem a uma mesma família do Combu. O resultado da pesquisa realizada pelo grupo encanta o público porque é simples e preciso, mas, sobretudo, porque aproxima o espectador de uma realidade que está, ao mesmo tempo, tão perto e tão distante de nós, moradores das grandes cidades. Trazer esta realidade de forma tão concreta para o palco não teria sido possível sem a utilização da técnica de mímesis corpórea, utilizada como fundamento da metodologia desta investigação. A técnica foi desenvolvida pelo grupo Lume, de Campinas, que a aplica nas construções de personagens a partir de suas viagens por todo o território nacional. [...] Em síntese, porém, o que importa é que a técnica evita algo que assola os palcos: os gestos fáceis, óbvios, sem a organicidade tão fundamental para criar a verdade no palco. E é essa verdade que dá a base a este trabalho, fazendo dele uma abordagem responsável em busca de revelar em cena nossa mais íntima identidade cultural amazônica. Jornal O Liberal, 14 de setembro de 2007.

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ValĂŠria Andrade Contatos: valeriandrade@yahoo.com.br celular: 091 9112-6278 fone: 091 3230-4058


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