Cidade Imaginada: Compreendendo a lógica social do espaço em Dogville.

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Cidade Imaginada: Compreendendo a lógica social do espaço em Dogville Manuela Cristina Rêgo de Carvalho*

*Graduanda do curso de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Este trabalho tem como objeto de estudo o ambiente fílmico de “Dogville” e busca através da teoria da Sintaxe Espacial um melhor aprofundamento no processo de construção de sentido e nas questões narrativas e estéticas envolvidas na trama. A análise de visibilidade e dos grafos de integração são aqui contemplados na busca de um melhor entendimento das relações sociais básicas entre as principais funções e movimentos no espaço cinematográfico. O filme traz com enfoque principal a desumanidade, o egoísmo e a avareza presente em todas as sociedades. Reconhecido pelo críticos de cinema como um dos melhores do diretor Lars Von Trier, Dogville pode ser tratado como uma parábola moral; uma reflexão, que mesmo feita com os mínimos recursos cinematográficos e fazendo uso de um “cenário imaginário”, consegue transmitir ao seu espectador todas as inquietudes do comportamento humano, da vida em comunidade e os conflitos gerados ao contrapor os interesses individuais aos coletivos.

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Partindo dos conceitos de visibilidade, integração, movimento natural e conectividade; este estudo vincula as percepções e inquietudes presentes no desenrolar da trama ao material – planta baixa do cenário – analisado por meio dos softwares Depthmap e Jass, buscando uma conexão entre essas duas partes. Assim, são propostos os seguintes questionamentos: quais os espaços mais visíveis? Estes possuem um maior destaque na trama? As áreas mais segregadas estão presentes como os locais mais perigosos? Que espaços tendem a desempenhar o papel de imãs neste arranjo? Observa-se algum movimento contínuo em determinados lugares? Qual é o papel social desta configuração espacial para os personagens? Estas são algumas das indagações abordadas por esse ensaio. Os resultados indicam que, premeditado ou não pelo diretor, o espaço de Dogville podruz efeitos decisivos nos conflitos da trama. Seja no movimento natural dos personagens, na relação visibilidade ocorrencia de violência, como também no protagonisto de algumas áreas em relação à outras. Palavras-chave: Dogville; Lars Von Trier; espaço cinematográfico; sintaxe espacial.

introdução Analisar Dogville pela ótica da Sintaxe Espacial implica em conhecer a sua configuração espacial juntamente às suas propriedades “sociais” na busca de uma melhor compreensão dos efeitos dessa forma aos conflitos existentes na trama. Por se tratar de um filme como fonte de dados implica necessariamente em seguir a sequência da trama narrativa da história, e a partir desta retratar os eventos interligando-os à análise. Para isso esse ensaio é dividido em quatro momentos: um primeiro capítulo onde tratamos da imagem da cidade cinematográfica através do reconhecimento dos seus principais elementos; um segundo momento onde é feita uma análise da visibilidade deste espaço; um terceiro, onde a análise ocorre através de grafos; e por fim, as considerações finais. Todos os dados qualitativos e quantitativos foram recolhidos a partir do filme e estruturadas de acordo com observações dos conflitos em suas localizações. Assim, essa composição é então justificada perante às análises aqui propostas.

Imagem 1: Personagem principal do filme Dogville. Fonte: http://www.guiadasemana.com.br. Acesso em: 05 de Junho de 2016.

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a imagem da cidade

Imagem 2: Cidade cenográfica do filme Dogville. Fonte: http://cinemacao.com/wp-content/uploads/2015/03/Dogville-1.jpg. Acesso em: 05 de Junho de 2016.

Dogville pode ser intepretada de diversas formas, variando de acordo com a inquietude e anseios do expectador. Mas, o fato é que, para um real entendimento da trama é necessária a compreensão do espaço cenográfico, mostrado através de pouco mobiliário como cadeiras, mesas, e alguns eletrônicos; elementos que restringem o espaço, como a pedra, e os limites das ruas e residências demarcados no chão. Assim como qualquer agrupamento urbano, a configuração espacial proposta por Lars Von Trier possui características bastante marcantes à um olhar atencioso: a rua principal - ELM. ST - contempla todos os principais acontecimentos do filme, é onde os encontros acontecem.

Ainda, é a partir dela que se tem uma melhor visual de todos os outros locais; dos conflitos e dos principais movimentos de entrada e saída da cidade. Podemos citar a mina abandonada, a pedra, o banco e o moinho - mostrados na imagem 3 - como barreiras ao olhar do expectador em relação aos limites do cenário. Esses quatro elementos são obstáculos, barreiras dispostas sobre este contínuo que limitam a livre movimentação e a visualização do todo. Nota-se também a existência de áreas ainda mais imagéticas, como a casa do cachorro e a horta. E de uma importante relação entre espaços mais e menos segregados - como por exemplo a garagem do Ben em contraponto à residência de Thomas Edson, possuindo relações opostas de visibilidade.

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Diante destas percepções e da combinação de um conjunto visual - imagens, sons, cores, símbolos - à uma arquitetura imaterial, Dogville pode ser interpretada como uma cidade “imaginária” que admite interpretações diferentes para sua história, mas, que possui uma interferência social nos acontecimentos que independe da concepção individual do expectador. Para um melhor entendimento da análise admitiu-se a separação do espaço cinematográfico em: vias, espaços fechados e barreiras. Podendo distinguir as vias em: rua principal - ELM ST, rua lateral ao moinho - STEEP HILL. ST e estrada Canyon - principal acesso e rota de fuga da cidade; os espaços fechados em seis residências, a garagem e a igreja; e as barreiras seriam os limites do espaço: a mina, a pedra, o moinho e o banco. (imagem 3)

Nota-se na trama que existem locais que são mais utilizados, como a Rua Principal e a Igreja, onde acontecem as reuniões com todos os moradores e os encontros informais. E outros ambientes como a residência de Thomas Edson, são menos evidentes ao longo da história. O reconhecimento dos diversos elementos do cenário junto aos seus respectivas participações nos ajudam a compreender a análise e poder apontar melhores respostas para os questionamentos aqui expostos.

A igreja

O MOINHO

O banco

A loja

A garagem

A mina

Imagem 3: Reconhecendo a cidade. Fonte: Acervo próprio. Acesso em: 05 de Junho de 2016.

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“o que se vê”

Imagem 4: Grafico de visibilidade. Fonte: Acervo próprio.

Através do software depthmap (Varoudis , 2012) é obtido o gráfico de visibilidade - VGA ( Turner el al, 2001). Na imagem acima as cores mais quentes, tendendo ao vermelho, indicam as localizações com maior visibilidade e as cores mais frias, chegando ao azul escuro são aquelas com menor visibilidade. Segundo Renato Saboya¹, na página Urbanidades, “em espaços urbanos abertos [...] localizações com maior visibilidade tendem a denotar maior hierarquia, destaque, importância, etc. Por outro lado, áreas com baixa visibilidade tendem a ser menos importantes dentro do conjunto, ou ainda a serem percebidas como áreas com maior privacidade, destinadas a atividades de interação de pequenos grupos ou casais, à leitura, etc. Além disso, um aspecto importante a ser considerado a respeito de áreas com baixa visibilidade é a possibilidade de criação de áreas com baixa segurança, pela maior dificuldade de vigilância por parte dos demais usuários do espaço.” (SABOYA, 2014) ¹ Renato T. de Saboya é professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC - Graduação, Mestrado e Doutorado; e editor chefe do site Urbanidades.

A primeira conclusão a que se chega é que a rua principal se configura como o espaço mais visível, estando quase toda preenchida pela cor vermelha. Como já foi mencionado anteriormente, é nesse espaço que se convergem todos os conflitos da trama e é onde há uma maior vitalidade de usos - os moradores se encontram, as crianças brincam, algumas pessoas trabalham - como é o caso do senhor Ben que transporta legumes e da loja da senhora Ginge; confirmando assim sua maior hierarquia nas interações sociais dentro do enredo. Ainda, compreende-se uma relação bastante permeável entre a rua e as casas; de acordo com o gráfico, as residências de maior visibilidade são a de Chuck e Vera e a dos Hanson. Dentre as demais “edificações” imaginadas, destaca-se a igreja e a garagem como as de maior visibilidade, a primeira já se admitia essa propriedade pois está como o espaço interno integrador de todos os moradores, onde ocorrem as reuniões;

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Posteriormente, nota-se uma pouca visibilidade em relação à residência cinco, do Sr. Jack Mckay, que propositalmente ou não, é o personagem mais excluso da trama. O qual se mostra um pouco mais recluso aos outros personagens na busca de esconder sua deficiência visual. Outro fato importante é que espaços com grande visibilidade como o moinho e a residência de Chuck e Vera estão marcados pela ocorrência de violência sexual à protagonista. O que vai em desacordo com a relação espaços de grande visibilidade e segurança, porém, é justificável pela intenção do diretor em manter na cena principal os conflitos “grotescos” à medida que a vida na cidade acontece de forma natural. (imagem 5) Portanto, os espaços de maior hierarquia denotam um maior controle de todas as ações que acontecem na trama, sendo palco para os acontecimentos mais drásticos.

Imagem 5: Cena de assédio no filme Dogville. Fonte: Acervo próprio. Acesso em: 05 de Junho de 2016.

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reconhecendo o espaço

Imagem 6: Particionamento dos espaços. Fonte: Acervo próprio.

Num primeiro momento a cidade de Dogville é então analisada segundo a estrutura topologica, através de um grafo. Para isso, inicialmente é feito o particionamento dos espaços justificado nos seus usos e acontecimentos ao longo do filme. Este espaço é então dividido em: vias em tons de cinza e os demais locais em cores variadas, como mostra a imagem 6. A partir disso se pode compreender melhor o particionamento que passou então a guiar essa segunda análise.

Levou-se em consideração o uso como critério principal para o particionamento; por exemplo, a Rua Principal foi dividida em três partes: um primeiro espaço de chegada (em azul), uma área central onde são acessadas as residências (cinza escuro) e uma terceira, onde na trama sempre estava em uso pelas crianças (em roxo). Diante do grafo obtido temos algumas categorias analíticas para relacionar aos atributos dessa estrutura morfológica, são elas: conectividade, integração, controle de acessos e inteligibilidade.

Imagem 7: Particionamento dos espaços 2. Fonte: Acervo próprio..

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legenda - cores

Imagem 7: Particionamento dos espaços 3. Fonte: Acervo próprio.

vias - ruas e vielas

casa - olivia e june

a velha mina abandonada

casa - thomas edson

igreja

casa/loja - sra. ginger

o moinho

casa - jack mckay

o cachorro moisés

casa - hansons

a horta

casa - chuck e vera

o banco

A planta baixa de Dogville gera um grafo profundo, onde são necessários sete passos topológicos para um ambiente, como um quarto na “residência dois” ser alcançado a partir do exterior (imagem 7) . Ainda, possui treze espaços terminais e apenas cinco conectados a dois espaços, sendo os demais conectados à mais de dois espaços. Apesar de não possuir nenhuam anel tal configuração se mostra bastante integrada e de fáceis alternativas de percursos. Observa-se também que a rua principal, de menor RRA - 0,3378, é a raíz integradora de toda a estrutura urbana. Tendo o maior controle de todos os demais ambientes e funcionando como palco para a maioria dos acontecimentos da trama, como se pode notar no gráfico ao lado.² E, a residência dois (casa Thomas Edson) tem em um dos seus ambientes o maior valor de RRA - 1,5849 - configurando-se como o espaço menor integrado no grafo. Pautado nisso e na análise dos acontecimentos em cada espaço, observa-se que este espaço está entre os que não aparece frequentemente na trama. (gráfico 1) ² Gráfico produzido ao longo do filme observando o uso dos espaços a cada cinco minutos. O filme possui duraçao de duas horas e cinquenta e cinco minutos.

gráfico 1. permanência nos espaços CASA THOMAS EDSON 3%

O VELHO MOINHO 10% RESIDENCIA JACK MCKAY 3% RESIDÊNCIA CHUCK E VERA 16% CASA OLIVIA E JUNE IGREJA 3% 7%

RUA 55% VELHA MINA ABANDONADA 3%

Gráfico 1: Permanência nos espaços ao longo do filme - análise feita a cada cinco minutos. Fonte: Acervo próprio. 7 6 5 4 3 2 1 0 Imagem 8: Grafo de dogville. Fonte: Acervo próprio.

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considerações finais Apoiando-se na teoria da sintaxe espacial este ensaio analisou o espaço social de Dogville buscando respostas à questionamentos relacionados à influência dessa configuração nas ações que levavam a trama. Como respostas à esses questionamentos temos que os espaços mais visíveis em Dogville estavam como os protagonistas do espaço, mantendo e influenciando o movimento natural dos personagens e as suas ações. Mas, que muito dessa visibilidade era usada pelo autor com o propósito de fortalecer a idéia de “imaginar essa cidade”. Pois bem, usando os locais mais visíveis como palco dos conflitos mais fortes, o diretor conseguiu transmitir ao expectador o “desprezo” dos cidadãos de Dogville com o que se passava à Grace, protagonista da trama.

Ainda, vale destacar o importante papel social da rua principal no filme como geradora de encontros e padrões de probabilidade de movimento. Sendo portadora de todas as conexões e acessos às residências, a Rua ELN, estava como controladora de todos os movimentos. Utilizando-se disso, o diretor nos mostra que apesar de toda a “democracia” exposta em Dogville pelas conversas formais na Igreja e da rua como recurso cultural acessível a todos, a cidade se mostra apática e desumana aos estranhos. Por fim, toma-se como relevante este estudo para uma melhor análise fílmica e uma melhor compreensão da importância da configuração espacial nas relações sociais, mesmo que analisada virtualmente.

Imagem 9: Cena do filme Dogville. Fonte: https://mendeleievselements.wordpress.com/tag/fiac/. Acesso em: 05 de Junho de 2016.

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REFERÊNCIAS

SABOYA, Renato T. de. Sintaxe espacial: graficos de visibilidade. Urbanidades. Disponível em: <http://urbanidades.arq.br/2011/04/sintaxe-espacial-graficos-de-visibilidade-2/> Acesso em: 05 de Junho de 2016. SABOYA, Renato T. de. Sintaxe espacial: graficos de visibilidade. Urbanidades. Disponível em: <http://urbanidades.arq.br/2011/04/sintaxe-espacial-graficos-de-visibilidade-2/> Acesso em: 05 de Junho de 2016. SAILER, Kerstin. The spatial and social organisation of teaching and learning: The case of Hogwarts School of Witchcraft and Wizardry. Artigo apresentado no SSS10 Proceedings of the 10th International Space Syntax Symposium, Londres. HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The social logic of space. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. VARGAS, Julio César et al. Lendo e medindo a cidade. Disponível em: <http://urbanismo.arq.br/metropolis/wp-content/uploads/2009/09/Lendo-e-Medindo-a-Cidade.p df.> Acesso em: 05 de Junho de 2016.

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