Livre com um livro 2016

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LIVRE COM UM LIVRO 2016 Os Memoráveis

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Lídia Jorge


“ (…) Oito horas em ponto1. Uma movimentação estranha estava a acontecer no seu

país. Uma deposição pacífica. Ninguém acreditava

numa movimentação que se dizia pacífica. Aguardávamos com

serenidade, queríamos colocar no devido lugar a bandeirola vermelha, parecia natural que assim fosse. No entanto, já haviam passado dois dias e nada de grave ainda tinha acontecido. Era de facto uma

.

deposição sem sangue O mundo inteiro, expectante, a olhar para o seu país. Como era possível? Um caso sem pre-

cedentes. Uma fitinha de terra do tamanho de uma toalha, sem importância nenhuma, de súbito, transformava-se na noiva desejada de toda a gente. Em consequência, sobre a mesa de conferências, a partida de xadrez iria mudar de figura. A partir de então, o mapa das suspeitas nunca mais viria a ser desdobrado da mesma maneira. Mas a diferença não se deveu a todo o tipo de festejantes que lá acorreram a partir da manhã seguinte, muitos deles com a missão de espiar, intrigar, vigiar e

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página 16 – Daniela (Introdução)

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ocupar o seu país, deveu-se tão só, e apenas, à qualidade da sua gente.”


“Pode crer 2 , miss Machado, que nunca encontrei ao longo do meu percurso um

povo

tão

sensato

como aquele a que você pertence. Um povo

sem álgebra, sem letras ,

pobre,

cinquenta

anos de ditadura sobre as costas, o pé amarrado à terra, e de repente acontece um golpe

de Estado, todos vêm para a rua gritar, cada um com sua alucinação, seu projecto e seu interesse, uns ameaçando os outros, corpo a corpo, cara a cara, muitos têm armas na mão , e ao fim e ao cabo insultam-se,

batem-se, prendem-se, e não se matam. Eu vi, eu assisti. É esta realidade que é preciso contar antes

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página 17 – William

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que seja tarde . Compreende o que estou a dizer?”


“Eu3 O

falo do povo, mas o povo tem assinatura.

Lourenço é um dos que faz a sua assinatura, a

assinatura do povo. Almoçámos várias vezes juntos. Esse está vivo. Isto é, está vivo o Lourenço,

está

vivo o povo, está vivo o Carvalho, morreu o Antunes, e o Salgueiro está morto. O Salgueiro morreu. Sobre o destino desse, você sabe o que se passou. Era uma pessoa impoluta, e infelizmente tinha só quarenta e sete anos e partiu. Quarenta e sete e deixou-nos. Meu Deus, o Salgueiro era um menino e morreu. Pessoas maravilhosas que morreram, povo maravilhoso, cidade encantadora, passei lá os melhores anos da minha vida, a minha missão mais importante foi cumprida ali. E muitos amigos chegados lá deixei. Todos estão vivos, os meus amigos. Alguns deles não acredito que alguma vez possam vir

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Página 28 - Djany

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a morrer. Se alguns deles morressem, então seria sinal de que eu poderia morrer também, e eu não creio que tal aconteça.”


(…) Limpei4 a carrada de poeira que se havia depositado no vidro e na moldura lacada. Sentei-me no último degrau do escadote de Jacob. Era um bom reencontro. Na fotografia do Memories, António Machado ocupava o primeiro plano esquerdo de um grupo de vários, e Rosie Honoré, sentada à direita, ocupava um plano intermédio no canto oposto da mesa. Ali estavam os dois, separados pela mesa. Lembravame do que costumavam dizer. Éramos as gárgulas deles, dizia ela. Não, as gárgulas

deles eram os poetas, dizia ele. Eu conhecia a fo-

tografia desde sempre, e julgava reproduzi-la com precisão, mas afinal guardara dela uma recordação imperfeita. Havia fixado manchas em vez de rostos, e nem me lembrava da mesa. Agora o que me surpreendia era a nitidez dos contornos. As

feições dos

fotografados emergiam, debaixo do vidro, marcadas sob forte efeito de luz. Um contraste branco-preto intenso apre-

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Página 53- Tatiana (Fotografia)

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sentava relevos e sombras que eu não havia registado. O próprio mo-


vimento e a destreza resultante da composição do grupo surpreendiam-me. Não me lembrava bem da dinâmica do grupo, embora soubesse que havia sido a mão de Tião Dolores, um fotógrafo próximo do pai, quem tinha dirigido o foco de luz e preparado o clique remoto. Demorei-me a examinar o conjunto. Era perfeito.” “Eu5 conhecia a maior parte dos sublevados que ali se encontravam, sabia que no verso da fotografia, formato vinte por trinta, havia uma legenda escrita pela mão de Rosie Honoré ainda que não me lembrasse dos detalhes, também sabia que incluía uma projecção desenhada dos fotografados, seus nomes, ou alcunhas domésticas, seus petits noms, como ela dizia, e agora toda essa memória vaga se confirmava. Muito curioso. (…) Não havia dúvida, eu iria servir-me da fotografia do Memories , estava segura de que tinha feito o meu achado. Não só a fotografia em si era de boa qualidade, como o desenho das figuras e a legenda inscrita por Rosie Honoré confirmavam a virtualidade plástica daquele documento, de varias formas, raro. (…) mas o que a tornava relevante era a dimensão testemunhal de

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páginas 54,55,56 – Ana Rita

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um momento acontecido nas costas da história.”


"

Pois b e m , já agora vou contar." O chefe Nunes esfregou as mãos.

“Posso 6 dizer-lhe que nesse dia eu quase tinha ido amanhecer na Baixa, à procura de umas roupas para o serviço de que estava faltado. Entrava e saía das lojas, ali na Rua Augusta, quando a

coluna militar, vinda de baixo, estava a subir na direcção do Rossio. Foi um momento sem par. Quando vi a tropa a avançar entre lojas, e soube o que se passava, esquecime de tudo, e gritei – «Levem-me a mim, pessoal, arranquem-me a cabeça do corpo e façam dela uma bala...” Eu estava eufórico, olhei para o arco da Rua Augusta e achei que aquela coluna militar saía directamente das horas

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Páginas 74,75 – Ana Luísa (Chefe Nunes)

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do relógio. A hora deles era a minha hora, como escreveu no dia seguinte o poeta Pontais. Depois andei atrás deles o


resto da manhã e toda a tarde até à noite, assisti à descarga sobre a frontaria do Quartel do Carmo, vi a chaimite

Bula levá-los, e ainda corri atrás. Como

os outros, eu gritava de alegria . Lisboa era uma

festa pegada, dei por mim em vários locais da cidade ao mesmo tempo, e não dava por ter andado, como disse o poeta. À distância, agora, acho que o meu corpo se multiplicava, ou então era ilusão dos meus sentidos. As-

sim, aquele foi o dia mais feliz da minha vida, juro, nem quando nas-

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ceu o meu filho.”


“Falemos 7 então, senhor coronel, daquele dia,

o pri-

meiro da liberdade. Mesmo tendo estado ausente do teatro das operações, e mesmo tendo decorrido este tempo todo, em seu entender, como classifica o senhor o que se passou naquele dia?” Bronze começou a procurar uma palavra. Demorava, mas via-se agora que já a tinha encontrado. Viase também que sentia dificuldade em pronunciá-la. Andou com ela de trás para diante e de diante para trás, até que finalmente a pronunciou – “Milagre.” Disse. “Classifico-o como obra de um milagre, minha senhora.” Repetiu o oficial, enfrentando com coragem o plano que se apertava sobre o seu rosto. “Milagre, sim. Sendo eu um agnóstico, até que gostaria de usar outro termo mais sereno, mas não encontro. E milagre porquê? Pela coincidência no tempo de tantos factos inesperados. Olhai. Registem a minha opinião antes que seja

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páginas 95,96,97- Bruna e Carolina (Bronze)

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tarde. Primeiro. Porque está definitivamente apurado que, no teatro das operações, um alferes deveria atirar uma


bazucada contra o capitão que se encontrava em frente, ali mesmo, diante da torre do seu carro de combate, e todos aqueles que estavam em linha, mas contra tudo o que era de prever, o

alferes de-

sobedeceu e não deu ordem de abrir fogo. Segundo.

Uma corveta fundeada no Tejo deveria

disparar umas bombardas sobre uma praça, e contrariamente ao que deveria ter acontecido, todas as bocas de fogo se mantiveram inertes. O que se passou ainda hoje se interpreta mas não se conhece. Seja como for, milagre. Terceiro. Olhai.

Toda uma brigada, instalada no Cristo Rei, estava a ponto de

afundar essa corveta que se encontrava na sua mira, e apesar da indefinição do comando do navio, as armas que a vigiavam mantiveram-se caladas. Quarto. Um capitão deu ordem para abrir fogo con-

Naquele preciso momento, em que poderia ter-se iniciado uma carnificina, o oficial não tinha os auscultadores nos ouvidos.

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tra a frontaria de um quartel, e no momento o companheiro que estava no interior do carro não disparou.


Como interpretais isto? Quinto. O Chefe de Estado, encurralado no quartel, mandou abrir fogo sobre a cidade, lá onde fosse necessário, que se abrisse, que se abrisse fogo sobre o Largo em frente. O comandante da Guarda estava

diante do Chefe de Estado, era-lhe fiel, e no entanto não cumpriu a ordem. Não será isto extraordinário? Sexto. Quando, no interior do quartel, finalmente, alguém

estava prestes a soltar a palavra de ordem fatídica, umas crianças em fuga surgiram no corredor e essa imagem evitou o cumprimento da ordem. Alguém pensou que, depois daquelas crianças, iriam morrer milhares de outras como elas. Em vez do ruído da metralha, o silêncio que se fazia sentir no interior do quartel era total. Ali dentro só se ouviam sussurros, até que se deu a capitulação. Olhai. Os gritos de alegria vinham to-

à vitória final, já ao cair da noite.”

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dos lá de fora. Depois houve um sétimo, e depois um oitavo milagre. E assim se foi, de milagre em milagre, por aí afora, até


“Jovens8, naquela manhã, acordei estranho. Era demasiado cedo para me levantar, demasiado tarde para dormir. Peguei na Leica e fui para a rua tomar café, com vontade de dar ao dedo, mas nada em Lisboa, àquela hora, merecia entrar naquela máquina, e depois de ter-me desfeito em chapas no final da exibição da Sutherland, na noite anterior, restava-me apenas um rolo de película. Pensei que o melhor era pôrme a andar Avenida da Liberdade abaixo, o mundo pareceu-me cinzento, nada se recortava nele que merecesse entrar na minha Leica, e assim andei, andei, até que fui na direcção da Agfa onde havia encomendado material umas semanas atrás, e olhando as montras, onde nada acontecia a não ser os vidros que sempre lá deveriam ter estado, e nada acontecia atrás da sua superfície, como nada tinha acontecido no Coliseu, na noite anterior, com a Sutherland aos gritos para nada, uma Traviata para nada, as palmas retumbantes para coisa nenhuma, e o povo de Lisboa a aplaudi-la para nada, pois ela teria cantado a Traviata para uma sala com cevados, se lhe pagassem, e se os cevados aplaudissem ela viria agradecer sete

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Páginas 115,116,117 – Cátia, Maria Inês (Tião)

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vezes, tudo para nada, entrei na Agfa, levantei os rolos, paguei, e pensei que tudo nesta vida era para nada. Mas quando


deambulava pela Rua da Conceição, sem rumo, de repente vi uma coluna militar a surgir ao fundo, a avançar na direcção do Rossio, e parei. No início, o comboio da coluna ainda vinha encoberto, era tudo confuso, ou então eu não queria acreditar no que estava a acontecer. Depois, quando vi os tanques a avançar entre as lojas, e confirmei o que se passava, fiquei tão fora de mim que me esqueci da Leica. Então, de braços abertos, avancei para

eles, esquecido de que era um fotógrafo. Gritei. Eh! Passem por cima de mim, eu quero ser o vosso tapete, e comecei a correr atrás deles, a desabotoar-me e a oferecer o peito, a dizer que o meu pai tinha morrido na frigideira de Cabo Verde, a contar a minha vida aos berros, a sentir tudo

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aquilo acontecer, e não usava a Leica.


“(…) Por estranho que possa parecer, uma bruta criatura mais antiga do que o fotógrafo estava naquela manhã em mim, e só comecei a disparar a câmara quando me senti a caminhar no meio de uma multidão na

direcção da Garrett, e as pessoas diziam palavras semelhantes aquelas que eu ia dizendo. Por favor, passem por cima de mim, eu quero ser o vosso tapete. O vosso tapete vermelho, diziam alguns. Foi só aí, quando vi os meus colegas a fotografar, que acordei. Ia-me dando um treco. Isto é, perdi a Rua Augusta, perdi o Rossio, perdi a Rua do Carmo e a Rua Garrett. A partir daí, sim, fotografei os

cachos de pessoas pendurados das árvores, quando as pernadas já estavam tão cheias que não havia mais ramos livres. E depois os cachos às janelas, a frontaria do Largo do Carmo, o chão do Carmo, os passos de cada um, a saída da chaimite Bula levando-os aos quatro, e tudo o mais que aconteceu naquele dia. Nessa noite, não me deitei. Nos dias que se seguiram, não soube o que era uma cadeira. Lisboa tinha-se transformado num lugar sem paredes, dei por mim em vários locais da cidade ao mesmo

o meu corpo se multiplicava. Quando eu não via o que estava a acontecer, a Leica chiava e disparava por ela

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tempo, e não dava por ter caminhado, tinha a ideia de que


mesma. Só quando entrava na câmara de revelação, aí sim, aí é que tinha a noção de quanto ela havia trabalhado por mim. Mas as horas fundamentais, as primeiras, vivi-as de tal forma que as perdi. E muitas vezes me pergunto se serei mesmo um verdadeiro fotógrafo. Não sou, não, juventude, se o fosse, o meu primeiro gesto

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quando os vi a subir a Rua Augusta teria sido engatilhar a câmara, e chapa, chapa, cá vai disto.”


Umbela9 tinha sido um dos oito assaltantes do Rádio Clube, na noite de vinte e cinco, e sem o seu depoimento, parte da coerência do nosso projecto, assente no esquema da fotografia do grupo, sofreria um rude golpe. Quem o poderia substituir? No desenho de A História Acordada, a sua figura tornava-se imprescindível. (…) Pensando em Umbela, tínhamos passado os últimos dois dias de Fevereiro entretidos a reconstituir os movimentos do Batalhão de Caçadores 5, ao longo das ruas de Lisboa na noite memorável. Era um fim-de-semana e não o fizemos por menos. Fomos ao local, e aí nos demorámos longamente a trocar impressões sobre as horas e os passos. Havia sido ali. O Bronze não o mencionara no seu número de milagres, mas por certo que incluía essa manobra temerária na longa lista das coincidências como uma das principais acções de rara felicidade.

O antigo Batalhão de Caçadores 5, testa-deferro do antigo regime, vigiado por todos os la-

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Páginas 137,138,139 – Beatriz, Ana Laura (Umbela)

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dos, numa hora nocturna de sonolência, havia deixado escapar para a rua a mosca revolucionária.” (…)


Margarida Lota permanecia no local, impressionada por determinadas revelações. Lamentava. Porque eles só tinham

seis granadas de bazuca para assaltarem aquele quartel e, naquele tempo, encontravam-se de tal modo mal calçados e mal vestidos, que tinham andado por ali de mantas aos ombros para combaterem o frio inesperado que fazia nesse mês de Abril, e mesmo assim, desarmados,

desmuniciados, tinham acreditado na sua própria força e haviam resistido. E o facto de imaginar um exército esfarrapado a assaltar as forças leais ao governo, mais aumentava a sua admiração por essa página da sublevação justa, segundo dizia. (…) Havia que ser justo, pois tão esfarrapados estavam os assaltantes quanto os assaltados.

Nesse tempo, ao que parece, todos eram es-

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farrapados.”


Então 10 foi assim, meus amigos. Éramos cem . Saímos pela porta lateral, passámos por um tapume, encaminhámo-nos para a Rua Garrett, Chiado acima, depois atingimos as duas igrejas, já seriam umas três horas da madrugada, e no Largo Camões não havia vivalma. Não havia rumor, não havia estrondos, não havia sirenes, não

havia polícia, e nós pensámos. Teremos mesmo nós cem colocado a gravação no ar? Foi

mesmo verdade, ou foi um sonho, que à meia-noite e vinte o som dos passos começou a rolar pelo país fora, e depois dos passos do coro veio a voz do Zeca? A canção do

Zeca? O cante dele? A sua voz alternando com a voz dos companheiros? (…) Meu Deus! Tanto silêncio, tamanha

calma , pensámos, nós cem , quando paramos entre as duas igrejas. Possivelmente terá sido

uma fantasia das nossas cabeças , nós cem

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Páginas 176, 177 – Mariana, Diana Mendes (Salamidas)

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não teremos colocado a fita no ar, a canção não


terá passado, ninguém neste país a terá escutado, nenhum civil, nenhum militar em nenhum quartel, em nenhum regimento, e era por isso que nada iria acontecer. Pensámos nós, os cem. E nenhuma árvore se agitou, ne-

nhuma ave se moveu. Quando julgávamos que todos os rios subterrâneos corriam para o mesmo lado, afinal todas as águas tinham ficado paradas no fundo dos seus abismos. Pensámos nós dois, quando, ambos, perdão, nós cem, caminhávamos em passeios diferentes, devidamente afastados uns dos outros, como se não nos conhecêssemos. Os nossos cem corações batiam de medo debaixo das cem camisas. Foi assim, naquela

madrugada...” “Há11 três horas que a emissão foi para

o ar, há quase uma hora que andamos pelas ruas, e ainda estamos vivos. Melhor dizendo,

já devemos estar mortos. Pois, de contrário, já estaríamos a ser levados para os

curros da António Maria Cardoso, onde nos esperaria a tortura do sono, o pesa-

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Páginas 179, 180 - Cláudia

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delo da estátua, a tortura das agulhas


sob o sabugo das unhas, pensei. Pensei mais...” (…) Quando mais tarde acordei, ouvindo dizer que vinha a subir pela Rua do Carmo acima uma coluna de tanques carregados de soldados, com a população da cidade correndo atrás aos gritos de incitação, compreendem o que eu senti. A ressurreição veio ter comigo e vestiu a minha roupa,

calçou os meus sapatos. A ressurreição pequenina, individual, que, referida em voz alta, mais tarde, faz rir a gente, tomou conta da minha vida, no meio do meu quarto. (…) vocês são livres de rir(…)” (…) “Precisamente12, fale-nos dessa noite, por favor. Nós temos connosco a cópia dos seus planos memoráveis, andamos sempre com essas folhas debaixo do braço. Aqui estão eles.” Gritou Margarida Lota, agitando as cópias, desdobrando-as para que o cavaleiro visse e acreditasse. “Gostava13 que invocasse o que dizia o seu marido quanto ao momento em que

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Páginas 216, 217, 218, 219 – Tatiana (Campeador)

13

Página 240 – Tatiana, Jorge Eduardo (Charlie 8)

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tinha percebido que a operação Fim de Regime iria ser um sucesso.”


“É preciso dizer as palavras certas sobre o que se passou para que o povo possa salvar o que deve. O povo tem de saber que, se a mentira passar sobre nós, o povo ficará mais frágil porque ficará sem o exemplo dos seus defensores, e um povo sem defensores não passa de um rebanho de gado de lã branca abandonado à mercê dos lobos. Mas vocês são muito jovens, vocês não podem entender esta causa...” (…) “Pois eu estou aqui a pensar que o momento mais importante, aquele que mais esperanças me deu de que a revolução tinha pernas para andar, foi aquele que se seguiu à passagem do poder a um general que usava um caco de vidro no olho direito. Esse general, durante toda a noite e manhã do dia vinte e cinco, tinha ficado imóvel, a fingir-se de morto, enfiado em casa, à espera do desenlace, para ver para onde caíam as cartas, mas duas horas depois de termos passado o comando, ainda nem nos tinha visto o rosto, e logo ali começou a Página21

inaugurar o período do desmame revolucionário.”


“Vou14 então repetir o que sei. Naquela manhã, lá na Ribeira das

Naus, o meu marido percebeu que estava em marcha uma grande vitória quando um dos seus tenentes avançou em direcção ao adversário, pela Rua do Arsenal fora. Como todos os outros levava um

lenço branco nas mãos. O brigadeiro recebeu-o à bofetada e mandou abrir fogo sobre esse tenente, mas o coronel que deveria abrir fogo não o fez, sob o pretexto de que não podia abater um tenente que tanto estimava. Assim, olhos nos olhos. Entre coronel e tenente. Eram dez horas em ponto da manhã. Aí, o meu marido pensou que estavam salvos, porque havia cinco

mil efectivos dispersos no terreno, mas unidos pela amizade. O meu marido era assim. Desde África que o meu marido considerava que a amizade era a melhor ração de combate que se poderia levar para o campo da batalha. Aquele embate com o tenente aconteceu às dez da manhã, e o meu marido sempre disse que essa tinha sido a primeira página de uma folha decisiva de que ele mesmo, às dez e quarenta e cinco, iria interpretar a segunda, quando

ficou em frente do carro blindado, a olhar para o visor, olhos nos olhos com o alferes que se encontrava no

14

Páginas 241, 242 - Joana

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habitáculo do M47, e o meu marido não se desviou um milímetro que fosse.”


(…) “nem15

sempre a história é um pesadelo de que em vão

tentamos acordar para regressar ao ponto de partida. Olhe que por vezes, embora escassas vezes, a história também é um sonho

agradável, e tão apaziguante pode ele ser que vale a pena uma pessoa ao acordar tentar por todos os meios guardar-lhe a imagem para que não se esvaia. Sejamos práticos. Quando acontece desper-

tarmos a meio de um desses sonhos, o que devemos fazer é manter-nos em estado de alerta, guardando o momento de excepção, prolongando-o na memória de forma excepcional também. Tenho ou não tenho razão?”

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Página 13 - Tatiana

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Página 105 - Tatiana

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Um dia16, todos serão lembrados. Mesmo nós, que não fazemos


nada de especial nesta vida, havemos de ser lembrados. Para que servem as vidas se não for para isso? Tenho a certeza absoluta de que no futuro ninguém irá ser esquecido.

Há-de haver um lugar onde seja possível lem-

brarmo-nos de tudo e de todos.” Silêncio é morte e tu, se te calas morres, e nós também e se falas morres, e nós também

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então diz e morre. E nós também.


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