Livre com um livro

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LIVRE COM UM LIVRO

MÚSICA (entra quando o público está quase sentado...)

RAFAELA: Se a arte arrasta um grande manto de púrpura, desconfiem dela: nunca é mais do que quando traz um manto coroado em que ninguém repara. E assim os livros: há-os que falam altos, que pregam e os que falam baixinho; mas os que sabem ouvir as palavras só murmuradas despertam mais emoções.

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TODOS: (murmuram) Pinta-me Abril outra vez!!! (10 x) LAURA: (sai e entra na tela, no 7º tempo) No tempo da “Outra Senhora”, O Zé queria ser pintor.

ELSA: É certo que na alma de cada ser humano existe um poço de maldade: nunca, como diz Dostoiévski, nos aproximamos das desgraças alheias sem um movimento instintivo e secreto de alegria. Podem vir depois a compaixão, a sinceridade ou a máscara.

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DANIELA: Tinha pelo na venta A sinistra criatura, Mal cheirosa, bafienta. Gostava da “dita dura” Por isso, estava sempre a tramar o Zé. (Não digo a outra palavra, pois bem feia ela é.)

MARIA JOÃO: Não há no mundo país como o nosso, que trate os seus sonhadores e os seus poetas com idêntico desprezo: quando surge uma boca formidável o nosso ideal é logo matá-la à fome.

BEATRIZ P.: E a dita dizia: MARIA INÊS: - tu vais ser é lavrador, Página 3 de 17


INÊS: Ou então vais para o “cotão”…

ANA LUISA: Agora artista, pensador, isso não!

EDUARDO: E “a bem da Nação”, vais prà tropa, Vais ser carne pra canhão!

LUÍSA: Era assim o mundo do tempo da “Outra Senhora”, Cinzento e opressor… E o ZÉ queria ser Pintor!...

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CLÁUDIA: Porque na planta não há somente a planta, nem no homem apenas o homem: está a emoção, que é e t e r n a . A forma dispersase logo, nuvem e pó um momento reunidos. Numa simples árvore há um mistério tão profundo como o do bravio universo. O que é necessário é e n c o n t r á - l o , ir aos seres e às coisas e arrancar-lhes as roupagens ilusórias. Para bem sentir, é preciso igualarmo-nos. BEATRIZ: Até que um dia, era Abril, justamente dos quartéis, capitães, praças, furriéis, saíram pra rua, e à opressão disseram: Não!

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TODOS: Não! BEATRIZ: Foi de vela a “dita cuja”, TOMÁS: Uma árvore! Pintar a grande macieira do meu quintal!... Mas só eu que a adoro e que às vezes, sozinho, a abraço, e que, se soubesse, a poderia pintar. A minha macieira é uma pessoa: tem a sua feição, carácter: de Inverno, nua e trágica, conversa com estas ásperas ventanias do mar largo; na Primavera, cheiinha de flor, tem galhos que enternecem.

MAGDA: Foi-se o cheiro bafioso. O sol sorriu pra todos, Aroma de Primavera! Ao Zé deram pincéis, Página 6 de 17


Deram tintas e uma tela. - Pinta o País Novo, e a alegria deste povo.

BRUNA: A pintura, como todas as artes, tem, para ser superior, necessidade de alma, Deus, emoção extraordinária, força prodigiosa e única. Eu creio bem que para se ser grande na pintura ou no livro, na filosofia ou na música, é sempre preciso ser-se um poeta.

JOÃO P.: E o Zé pintou, cravos e mais cravos, Bandeiras e mais bandeiras, Tudo de um vermelho vivo, como a alegria do povo. O único elemento branco, era uma gaivota que, voava, voava…

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TODOS: (cantam: “ Uma gaivota, voava, voava...” , trauteiam)

TATIANA: Foi necessário que o tempo passasse, que as exposições se sucedessem, e, sobretudo, que o estrangeiro Columbano fosse aclamado como um dos maiores pintores da actualidade, para que nós, ainda a medo, com o receio que o português tem sempre de ser enganado, lhe fizéssemos justiça.

MATILDE: É certo que ninguém é profeta na sua terra, mas em Portugal acontece pior: o público odeia todos os seus grandes homens; não perdoa a quem quer que se eleve acima da banalidade comum. De forma que, quando se chega ao fim — a ser-se aclamado — os triunfadores, por maior que seja o sucesso, devem decerto perguntar a si mesmo se valeria a pena trabalhar tanto e – sobretudo – sofrer tanto...

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EDUARDO: Ainda pintava o Zé, e já uns mirones diziam: BEATRIZ: - A pintura está muito forte, deve ser esbatida… EDUARDO: O Zé deu ouvidos aos opinantes, e adicionou branco ao vermelho, repintando a composição. Foram-se os cravos e as bandeiras, agora era tudo rosa, até as flores… Da obra inicial, apenas a gaivota, transferida para o fundo da tela. No seu ouvido direito alguém sussurrou:

M. INÊS: - com essa cor não vais a lado nenhum… enriquece a paleta…

BRUNA: Há na criação terrena dois seres extraordinários: a mulher e a Página 9 de 17


árvore. Pode-se, por ventura, crer que a árvore seja só produto da matéria? Não tem alma um pinheiro? Uma árvore estende-me os braços, dá-me sombra e frescura, abrigo: uma árvore moraliza--me. M. INÊS: Conta-se que um homem que ia para matar, sentando-se à sombra de uma árvore esqueceu o próprio ódio. Quase todos os Santos conviviam com as árvores. Depois um grande sobro, por exemplo, comunica connosco: quem sabe escutar as árvores tem sempre belas coisas a ouvir.

SOFIA: É um ser de força e de humildade – e ainda depois de secas, de mirradas, vão aquecer e iluminar os p o b r e s . Há -as heroicas, belas, formidáveis, humildes e nossas amigas. Desculpem-me, mas eu amo mais uma árvore do que muitos dos meus semelhantes.

JOÃO P.: E

o

assim

fez,

acrescentou amarelo, a cor do ouro, e a mistura surtiu um laranja, que tomou conta da tela. E da gaivota, nem vêla…

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BEATRIZ P.: - Refaz a pintura,

JOÃO P.: diziam do outro lado… E o Zé já estava a ficar baralhado. Então alguém disse: INÊS: - precisas é de aprender, tira um curso de pintura, há dinheiro para isso.

ANA LUISA CUNHA: Inscreveu-se o Zé no curso, pago pela “Grande Senhora” com residência em Bruxelas. Nas aulas nada aprendeu, que o dinheiro para elas, sumiu, desapareceu…

TATIANA: Depois, acontece que um escritor, neste amável país, é sempre odiado. Apenas se exceptuam os homens de génio. Ter talento Página 11 de 17


para que serve? Ganha-se dinheiro? glórias? honras?... RAFAELA: Não, tem-se em troca o desprezo. O Oiro é que triunfa e impera, brutal e omnipotente. O Oiro esmaga. Diante de um banqueiro e de um homem de génio curvam-se os espinhaços para o poder do Oiro, que atrai e subjuga; diante de um tendeiro e de um santo ninguém hesita, que o Oiro na terra dá gozo à farta.

BEATRIZ: Ter talento serve para se ser amesquinhado. Começa-se por se sorrir de um homem que escreve. Ele que fez? Um livro!... Mais lhe valia ter feito uma má acção. Depois afirmam: «É um poeta, toca a rir do poeta!»

CLÁUDIA: Ó Zézinho, se queres pintar, vai por mim, que eu é que sei… - Zézinho, não faças isso, mete-lhe azul , okei?!… E o Zézinho cada vez mais baralhado sentia-se pobre e angustiado.

INÊS: Tornavam-se em grandes senhores… Às vozes mais solidárias, Não dava ouvidos o Zé.

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BEATRIZ P.: - Os Senhores do capital, É que sabem como é.

ELSA: E assim, num triste fado, Só ouvia dois ou três, Mexia e remexia, Sempre a mesma porcaria.

LAURA: De tanta mistura na obra, ficou borrada a pintura. As cores agora na tela, mais parecem da ditadura. - Pinta-me Abril outra vez Página 13 de 17


MARIA JOÃO: Sofre-se,

ri-se,

morre-se!...

Carácter,

honestidade,

dissolveram-se... Só se pensa cm vencer, à custa de todos os ódios e de todos os sacrifícios... Calcar amigos, ideias, para se chegar ao Poder e ao Oiro.

LUISA: Pinta-me Abril outra vez Com paixão e com afinco. Não ponhas lá o “primeiro”, Pinta-me o VINTE E CINCO!!!

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ENTRA MÚSICA MARCHA MFA Todos se levantam, cada um no seu tempo. Deixam os textos e os pincéis no chão. Ficam em pé, olhando o público ao mesmo que a marcha decorre (até o João P. dar a palavra de ordem).

JOÃO P. Pinta-me Abril outra vez!

TODOS: Pinta-me Abril outra vez! (6x – a 6º - grito)

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BLACK OUT AGRADECIMENTOS Todos agradecem nas suas posições.

João P. apanha os cravos e vai dando aos colegas, um a um. Estes dirigem-se a uma pessoa do público e entregam -no.

Voltam ao palco, agradecem novamente e dirigem -se para o lado esquerdo do palco (onde o coro inicia), formando um semicírculo.

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